PADILHA Entre Macacos Velhos e Queerpiras
PADILHA Entre Macacos Velhos e Queerpiras
PADILHA Entre Macacos Velhos e Queerpiras
SÃO CARLOS
2019
FELIPE ANDRÉ PADILHA
SÃO CARLOS
2019
Para minha amada Maria Luiza
AGRADECIMENTOS
Esta tese é uma etnografia dos usos sociais dos aplicativos de busca por parceiros no interior
paulista e argumenta que os usos sociais das mídias digitais se constituem como dispositivos
de midiatização dos sujeitos. O campo de pesquisa é construído a partir da rede de conexões
que estabeleço com meus interlocutores: homens nascidos entre as décadas de 1975 e 2000, de
classes populares, que vivem no interior paulista e que fazem uso de serviços comerciais de
busca por parceiros para homens gays. A partir das conexões entre meus interlocutores e as
interfaces, proponho uma abordagem etnográfica dos usos sociais dos Apps. A etnografia
apresenta e analisa as maneiras como essas tecnologias são modeladas pelos contextos nos quais
são usadas. A tecnologia gera oportunidades, mas também consequências com as quais os
sujeitos são forçados a lidar. O digital gera novas questões, abordagens, condições e também
contingências para a pesquisa de campo. A tese mobiliza um conjunto diverso de perspectivas
sobre a etnografia com e nas mídias digitais e propõe uma compreensão do campo como rede
e, longe de buscar respostas cabais, pretende esmiuçar um quadro teórico-metodológico
emergente para tratar de campos inteira ou parcialmente construídos pela tecnologia. O trabalho
busca esmiuçar as lógicas subjacentes às plataformas. Recorrendo a fontes culturais, históricas
e sociológicas, apresento uma história dos serviços comerciais de busca por parceiros que
conecta formas preexistentes com as que se desempenham nas mídias digitais. Os usos situados
em contextos empíricos mostram como os sujeitos mobilizam a tecnologia também para
responder às contingências que os cercam. A etnografia mostra como, sobretudo para os
homens que vivem suas experiências sexuais com outros homens em segredo, as interfaces
digitais podem ser lidas como um ambiente privado e seguro, mas que exige do sujeito uma
postura de controle ativo sobre a situação social. A hipótese explorada é que os aplicativos
geram um procedimento para as interações sociais e, ao fazê-lo legitimam as práticas que
engendram. Além disso, assim como ocorre com as interfaces, as subjetividades e os
procedimentos adotados para as interações intersubjetivas são também socialmente modelados
e deslocadas pelos usos, na medida em que as formas de interação aqui empreendidas são
instrumentalizadas para a busca por parceiros dentro de um conjunto de normas previamente
estabelecidas e reforçadas. Uma vez que é a partir da materialidade das interfaces que os sujeitos
se reconhecem, ao gerar um procedimento para as relações intersubjetivas, os aplicativos
também se constituem como fragmentos materializados da subjetividade.
This thesis is an ethnography of the social uses of applications for partner’s search in the
countryside of Sao Paulo state, and argues that the social uses of digital media constitute
themselves as mediatization devices of subjects. The research field is built from the network of
connections that I establish with my interlocutors: men born between the decades of 1975 and
2000, of the popular classes, who live in the countryside of Sao Paulo and who use commercial
services for partner’s search for gay men. From the connections between my interlocutors and
the interfaces, I propose an ethnographic approach to the social uses of apps. The ethnography
presents and analyzes the ways in which these technologies are shaped by the contexts in which
they are used. Technology generates opportunities, but also consequences that the subjects are
forced to deal with. The “digital” generates new questions, approaches, conditions and also
contingencies for the field research. The thesis mobilizes a diverse set of perspectives on
ethnography alongside and inside digital media and proposes an understanding of the field as a
network and, far from seeking a complete answer, intends to break apart an emerging
theoretical-methodological framework to deal with fields wholly or partially constructed by
technology. The work seeks to investigate the underlying rationale behind the platforms.
Drawing on cultural, historical and sociological sources, I present a history of commercial
services for partner search that connects preexisting forms with those in digital media. The uses
placed in empirical contexts show how the subjects mobilize the technology also to respond to
the contingencies that surround them. The ethnography shows how for men, especially those
who live their sexual experiences with other men in secret, the digital interfaces can be read as
a private and safe environment, but which requires the subject to take an active control position
on the social situation. The explored hypothesis is that the applications generate a procedure
for social interactions and, in doing so, legitimize the practices that engender. Furthermore, as
occurs with the interfaces, the subjectivities and procedures adopted for intersubjective
interactions are also socially modeled and displaced by its uses, as far as the forms of interaction
undertaken here are instrumentalized for partner’s search within a set of previously established
and enforced standards. Since it is from the materiality of the interfaces that subjects recognize
themselves, by generating a procedure for intersubjective relations, applications are also
constituted as materialized fragments of subjectivity.
LISTA DE TABELAS
APRESENTAÇÃO .................................................................................................................14
1 UMA PESQUISA POR ENTRE AS INTERFACES DO DESEJO ................................17
1.1 DELIMITANDO O PROBLEMA DE PESQUISA ...........................................................17
1.2 A CONSTRUÇÃO DO CAMPO ETNOGRÁFICO ..........................................................19
1.3 DEFINIÇÃO DO OBJETO, OBJETIVOS E PRESSUPOSTOS DA PESQUISA ............35
1.4 O TERRITÓRIO DA PESQUISA: CARACTERÍSTICAS SOCIOESPACIAIS DA
REGIÃO DE SÃO CARLOS ...................................................................................................40
1.5 CRITÉRIOS E ESTRATÉGIAS DE PESQUISA ..............................................................46
1.6 A PESQUISA DE CAMPO................................................................................................53
2 UMA ETNOGRAFIA DOS USOS SOCIAIS DAS MÍDIAS DIGITAIS .......................64
2.1 OS USOS SOCIAIS DOS APPS ........................................................................................67
2.2 PARADIGMA DAS MOBILIDADES ..............................................................................70
2.3 GEORREFERENCIAMENTO, POSICIONAMENTO E POSICIONALIDADE ............72
2.4 CARACTERÍSTICAS DA CONEXÃO COM PROXIMIDADE .....................................75
2.5 ETNOGRAFIA DIGITAL .................................................................................................77
2.6 O CAMPO COMO REDE..................................................................................................82
2.7 PARTICULARIDADES DA MEDIAÇÃO DIGITAL ......................................................91
3 HISTORICIZANDO A TECNOLOGIA E AS PRÁTICAS SOCIAIS ..........................95
3.1 FRAGMENTOS SOBRE A HISTÓRIA DA Busca por parceiros NO INTERIOR
PAULISTA ...............................................................................................................................95
3.2 CONEXÕES PARCIAIS ENTRE TECNOLOGIA, MERCADO E ESTRATÉGIAS DE
USO ..........................................................................................................................................98
3.3 O SEXO NAS REDES: AS PLATAFORMAS DE RELACIONAMENTO ONLINE E A
PORNOGRAFIA ....................................................................................................................107
3.4 DO DISPONÍVEL.COM À DISPONIBILIDADE DO SEXO PELOS APLICATIVOS111
4 INTERFACES ENTRE TECNOLOGIA, SEXUALIDADE E INTIMIDADE ...........123
4.1 SIGNIFICADOS CULTURAIS ASSOCIADOS À Busca por parceiros ........................123
4.2 CONFORMANDO-SE COM A INTERFACE OU SE CONFORME À INTERFACE .125
4.3 UMA ANÁLISE SOCIOLÓGICA DA INTERFACE DO APLICATIVO GRINDR .....130
4.4 TECNOLOGIA E FORMA CULTURAL: APONTAMENTOS SOBRE A MODELAGEM
SOCIAL DA INTERFACE, O CASO DO APLICATIVO GRINDR ...................................141
4.5 APONTAMENTOS SOBRE A MODELAGEM CULTURAL DOS PERFIS
PRODUZIDOS NOS SERVIÇOS COMERCIAIS DE Busca por parceiros ONLINE PARA
HOMENS GAYS ...................................................................................................................146
5 NÃO É SÓ ENTRETENIMENTO – OBSERVAÇÕES PARA UMA SOCIOLOGIA
DOS USOS SOCIAIS DOS SERVIÇOS COMERCIAIS DE Busca por parceiros
ONLINE ................................................................................................................................157
5.1 COWBOYS, COWBICHAS E QUEERPIRAS ...............................................................158
5.2 BONITO DE CORPO ......................................................................................................173
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............................................................................................186
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................191
APRESENTAÇÃO
Esta tese é uma etnografia dos usos sociais dos aplicativos de busca por parceiros no
interior paulista. busca identificar e analisar os significados que vinculam uma tecnologia
específica a uma determinada experiência social. Acompanhando os usos dos meus
interlocutores, homens que vivem no contexto das cidades de médio e pequeno porte do interior
paulista, busco apresentar e analisar as maneiras pelas quais os serviços comerciais de busca
por parceiros online se articulam à experiência social da busca por parceiros.
Em termos metodológicos, trata-se de abordagem baseada na observação etnográfica
e qualitativa. O campo foi construído a partir de uma rede formada por homens nascidos entre
as décadas de 1975 e 2000, que residem e trabalham na região da cidade de São Carlos, no
interior de São Paulo, e que fazem uso de aplicativos para smartphones destinados a busca de
potenciais parceiros. A principal característica desses aplicativos é permitir a conexão entre
usuários com base no critério de proximidade geográfica. Ao longo do trabalho buscarei
esmiuçar um conjunto de maneiras pelas quais compreensões culturais sobre homossexualidade
e tecnologia confluem e ganham novos sentidos na materialidade desses Apps1 (BARAD,
2003; INGOLD, 2012).
Considerando este recorte, buscarei responder às seguintes questões: de que maneira
a entrada dos serviços comerciais de busca por parceiros online remodela o circuito da paquera
gay no interior paulista, precisamente na região de São Carlos? Quais convenções são acionadas
quando a busca por sexo casual passa a ser mediada pelas interfaces dos aplicativos?
Considerando o caso das mídias geoconectivas, caracterizadas pela possibilidade de uso
contínuo e individualizado, como as relações estabelecidas entre sujeitos e interface refletem,
reforçam ou contestam - ampliando ou restringindo - compreensões culturais locais sobre
gênero e sobre a sexualidade?
Serviços comerciais digitais para homens gays existem e operam dentro de uma rede
extensa de relações - e ao que tudo indica em franca expansão - que conecta sites, blogs pessoais
e comerciais, redes de compartilhamento de arquivos, plataformas e aplicativos de
relacionamento que produzem, promovem ou circulam materiais culturais que, ativamente,
1 Acompanhando o diálogo entre o antropólogo Tim Ingold (2012) e a filósofa feminista Karen Barad (2003),
emprego a noção de materialidade com dois sentidos particulares: no primeiro, como a “materialidade bruta”
do mundo físico; e, no segundo, para sinalizar as formas pelas quais este mundo é apropriado em projetos
humanos.
contribuem para os processos de fazer sentido das (homos)sexualidades masculinas. Em que
medida pode-se afirmar que as interações mediadas por interfaces digitais e a interação
estruturada em rede colocam remodelam os repertórios e práticas sobre a (homos)sexualidade?
Considerando o contexto do interior paulista, como conectividade2 e sexualidade se articulam?
A internet coloca as plataformas de busca por parceiros à disposição de quase todos.
Aplicativos costumam ser vistos como úteis e eficientes quando permitem que antigas práticas
sejam atualizadas por meio da interface. Para muitos dos homens com quem conversei, os
serviços comerciais de busca por parceiros online são descritos em termos de eficácia na medida
permitem a atualização do sexo casual sob um novo arranjo.
O sexo casual e desvinculado de compromisso entre homens é uma prática que deita
raízes históricas. Entre meus interlocutores, sujeitos integrados às mídias digitais, os aplicativos
de busca por parceiros emergem como uma solução estratégica, tecnológica e de mercado para
resolver - ao menos provisoriamente - na dimensão da interface muitas das contradições que os
afetam. Nesse sentido, as plataformas de relacionamento podem ser entendidas como
tecnologias com efeito performativo (SILVEIRA, 2017), já que transformam práticas sexuais e
as identificações que as cercam ao mesmo tempo em que fala delas.
Sistemas classificatórios não se limitam simplesmente a dar sentido - quer dizer,
significar - às práticas dos corpos, mas talham a carne como um profundo corte
(PERLONGHER, 2008, p.216, p.17). Em termos específicos, o trabalho etnográfico pretende
entender as maneiras pelas quais os usos sociais dos aplicativos se relacionam com os sistemas
classificatórios o sexo casual, atualizado no contexto das tecnologias digitais. Como a relação
entre sujeitos e tecnologia tem produzido novas gramáticas morais sobre corpos? Como as
fronteiras entre corpos físicos e digitais se estabelecem em plataformas de relacionamento
online? Em quais momentos as tecnologias digitais oferecem oportunidades para driblar,
reafirmar ou contestar ideários hegemônicos? E, não menos importante, quais são os caminhos
teórico-metodológicos de que dispomos para percorrer esse conjunto de questões?
Os estudos sócio antropológicos sobre a dinâmica da busca por parceiros online
produzidos nos últimos anos mostram que, organizada sob a égide do uso personalizado e
individualizado do telefone celular, a interface aloca o usuário em uma posição de destaque,
2 José van Dijck (2012) estabelece uma diferenciação entre os termos conexão e conectividade. De acordo com
esta autora, a conexão responde a um primeiro momento histórico da internet - predominantemente marcado
pela formação de vínculos interativos estabelecidos de forma espontânea a partir dos usuários, em
contrapartida, o termo conectividade caracteriza um novo ecossistema de plataformas online, consolidado entre
os anos de 2006 e 2012, que não permite apenas a conexão entre pessoas mas a produz ativamente por meio
de algoritmos que modulam o uso da internet.
como um “eu selecionador” imbuído de fazer a melhor escolha (ILLOUZ, 2011; PELÚCIO,
2018; MISKOLCI, 2017). No contexto da chamada web 2.0, caracterizada pela conectividade
perpétua (VAN DIJCK, 2016) e pela proliferação de materialidades, as tecnologias da
informação e da comunicação se revelaram articuladas às crenças, às práticas culturais e aos
modos de ser no mundo contemporâneo. Em termos sociológicos, mais do que tecnologias
informacionais, artefatos digitais tem se consolidado na contemporânea como verdadeiros
dispositivos de midiatização dos sujeitos.
Autores como Norbert Elias (1993) oferecem pistas teóricas para pensar sobre como,
no interior de longos processos históricos, dinâmicas sociais e psíquicas são reciprocamente
constitutivas. Os conceitos de sociogênese e psicogênese, desenvolvidos pelo sociólogo
alemão, referem-se ao caráter inextricável e da relação mutuamente constitutiva entre indivíduo
e coletividade, que ocorre no interior de configurações sociais específicas. Elias nos mostra que
tempo e coletividade não moldam apenas os comportamentos e as compreensões que os
indivíduos fazem sobre si, mas a própria economia psíquica dos sujeitos. Somos mediados por
imagens que construímos sobre nós mesmos.
Mais do que formular respostas fechadas, esta tese buscará indicar tendências sobre
temas narrativos, tropos, modelos, gramáticas e modos de conduta sexuais que são recorrentes
entre os sujeitos engajados nos circuitos de busca por sexo casual, com os quais tive contato.
As problemáticas aqui levantadas expressam as maneiras pelas quais, entre meus interlocutores,
a tecnologia emerge ora oferecendo um roteiro para as relações, ora como uma ferramenta para
lidar com os desejos e as pressões coletivas com as quais se deparam. Em outras palavras, no
contexto da busca por sexo casual no interior paulista, as mídias geoconectivas para homens
gays emergem como uma solução sociotécnica - um mecanismo provisório - que se molda às
condições locais e permite a esses homens deslizar por entre as convenções que dividem as
expressões do desejo tidas como aceitáveis daquelas consideradas imorais.
Minha conexão com as mídias digitais como temática de estudo e como campo de
pesquisa aconteceu durante o mestrado. Ainda que sempre tivesse nutrido certa curiosidade
pessoal pela internet, foi a partir de 2013, como estudante recém-chegado ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, que tive uma aproximação
com as tecnologias digitais como tema de estudo e, portanto, de uma perspectiva sociológica.
Nesse primeiro momento, sob orientação do Professor Doutor Richard Miskolci,
desenvolvi um primeiro projeto de pesquisa com o objetivo de entender os usos sociais dos
serviços comerciais de busca por parceiros no interior paulista. O estudo desenvolvido com
financiamento concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP) resultou na dissertação de mestrado, defendida em 20153.
O segredo é a alma do negócio constitui uma primeira abordagem sobre o uso
estratégico que homens do interior de São Paulo fazem das mídias digitais móveis visando
interações e encontros casuais uns com os outros, ao abrigo do olhar público. O campo foi
construído interagindo com sujeitos que fazem uso de três plataformas de conexão baseada em
georreferenciamento, que operam por meio de aplicativos para tablets e smartphones, e que
propiciam a conexão entre os usuários de acordo com o critério de proximidade geográfica4.
Em seu livro Desejos Digitais, Richard Miskolci (2017) explica que, em termos
históricos, diferente do que se passou nos Estados Unidos da América pós-Segunda Guerra
Mundial,
3 Ver: PADILHA, Felipe. O Segredo é a Alma do Negócio: mídias digitais móveis e a gestão do desejo
homoerótico entre homens na região de São Carlos. 120 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. 2015.
Disponível em: <https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/7178>. Acesso em 16 Ago. 2017.
4 Embora existam dezenas de serviços similares disponíveis no mercado, optei por delimitar o campo
circunscrevendo os usuários das três redes com o maior número de perfis na região em torno da cidade de São
Carlos, localizada na região central do Estado de São Paulo, base da pesquisa. Assim, minha entrada em campo
se deu a partir da interação com usuários dos aplicativos Grindr©, Scruff© e Hornet©. As três plataformas são
semelhantes em termos funcionamento, com pequenas variações em relação ao design e aos recursos oferecidos
ao usuário por cada serviço.
plataformas de relacionamento online permitiu a criação de novos circuitos de relacionamento
mais ligados à fruição do sexo e à impessoalidade de uma maneira que até então seria então
impensável.
Não se trata de entender como a tecnologia determina mudanças comportamentais,
mas de elaborar um enquadramento capaz de dar conta das maneiras pelas quais as tecnologias
são adequadas à experiência dos sujeitos e modeladas aos contextos de uso ao mesmo tempo
que modelam os sujeitos.
Assim como Miriam Adelman (2015) notou em seu estudo sobre jovens do meio
campeiro que vivem no Sul do país, um contexto também atravessado por ruralidades e
urbanidades, observei que, para muitos dos meus interlocutores,
[...] a integração de características tidas como do campo e da cidade que, se antes eram
pensadas como opostas, se integram e possibilitam práticas, construção de
subjetividades e estilos de vida múltiplos, constituídas de acordo com suas referidas
realidades sociais. Para esses jovens, o estilo de vida campeiro não é exclusivamente
rural, já́ que estão imersos em uma múltipla trama cultural, permitindo trânsitos
diversos e livres por espaços sociais pensados como distantes ou não comunicáveis
entre si. A juventude campeira participa ativamente dos processos em curso, que
começam a desmanchar as fronteiras entre campo e cidade, nas práticas e nos
discursos. Enquanto muitxs jovens residentes nas cidades resgatam uma herança
familiar real ou fantasiada com o meio rural, xs jovens do campo encontram nessa
convivência uma revalorização de suas raízes camponesas, um passo no sentido de
desconstrução de hierarquias e desigualdades (2015, p. 156).
Os sujeitos com os quais estive e conversei não percebem as tecnologias digitais como
algo excepcional, mas como uma ferramenta comum, integrada à rotina. Os usos que fazem dos
Apps são também estratégicos, o que os permite ingressar em redes de interações mais amplas,
driblando as contingências locais com as quais se confrontam. Maria Bakardjieva (2005)
explica que ao mesmo tempo que deixarmos de perceber a tecnologia como algo extraordinário
revelamos a maneira como ela se apresenta profundamente integrada ao cotidiano e, por isso,
passamos a tratá-la como um objeto comum.
Em sua forma atual, a internet tem se consolidado, em grande medida, graças a ampla
difusão dos telefones celulares aptos à conexão com a internet, o que resultou numa articulação
profunda entre a rede e as mais variadas esferas da vida cotidiana. Essa articulação se
consubstancia num tipo de uso individual, personalizado, contínuo e orientado pelas lógicas do
mercado. Também por essa razão “a quase onipresença da internet passou a sustentar uma
expectativa crescente de que todos tenham acesso a ela” (BURREL, 2018).
A questão da integração das mídias às rotinas cotidianas também gera consequências
para a pesquisa. Jenna Burrell (2018) comenta que o termo “Internet” tem sido
convencionalmente empregado no singular para se referir a um conjunto complexo que, pelo
menos desde a década de 1980, tem passado por mudanças drásticas. De acordo a autora, ao
tratar a internet como se fosse algo estável deixamos de perceber o deslocamento em termos de
padrões, plataformas e conteúdos subjacentes à rede, assim como as maneiras pelas quais esses
deslocamentos afetam os sujeitos.
Em sua forma atual, a internet tem se consolidado, em grande medida, graças a ampla
difusão dos telefones celulares aptos à conexão com a internet, o que resultou numa articulação
profunda entre a rede e as mais variadas esferas da vida cotidiana. Essa articulação
consubstanciou um tipo de uso individual, personalizado, contínuo e orientado pelas lógicas do
mercado. Também por essa razão “a quase onipresença da internet passou a sustentar uma
expectativa crescente de que todos tenham acesso a ela” (BURRELL, s.p., 2018).
A conexão com proximidade é a principal diferença entre os aplicativos em relação às
mídias digitais para a busca por parceiros preexistentes. Além disso, o uso contínuo e
individualizado dos telefones celulares, diferente dos computadores, apresenta condições para
o acesso à conexão que alteram a relação que os sujeitos estabelecem com a interface.
O fenômeno de expansão dos dispositivos georreferenciados, iniciado em 2007, tem
sido tratado a partir de diferentes abordagens acadêmicas vinculadas aos mais diversos campos
de produção de conhecimento. Termos como “posicionamento”, “geomídia”, “mídia com
reconhecimento de localização”, “serviços baseados em localização”, “mídia locativa” e “redes
geossociais”, são alguns exemplos de como uma nova terminologia tem sido empregada com
vistas a descrever e caracterizar uma funcionalidade semelhante (LINDGREN et al., 2002;
MCQUIRE, 2008; SUTKO e DE SOUZA E SILVA, 2011; KATZ, 2008; HJORT, 2009;
NAYAR, 2010; PADILHA, 2015b).
As variações entre os termos empregados para descrever as características dessas
mídias servem como indicativos dos caminhos pelos quais cada autor ou autora busca, à sua
maneira, enfatizar um aspecto relativo à capacidade da mídia operar com base no Sistema de
Posicionamento Global (Global Positioning System). O contato georreferenciado, portanto, é o
principal traço diferencial desses serviços comerciais de busca por parceiros em relação à
plataformas preexistentes. Com o objetivo de simplificar a leitura, ao longo do texto, eu usarei
os termos acima apresentados de forma intercambiável, como se fossem sinônimos perfeitos,
embora esteja consciente a respeito das variações entre um e outro. Por isso, ao empregá-los
buscarei explicitar o sentido que pretendo extrair de cada um.
Para estabelecer um semblante de continuidade entre essa variedade de discursos
ambivalentes em torno da localização, do aspecto social ou do caráter comercial dos
aplicativos5, também empregarei a expressão “mídias geoconectivas”, entendida aqui como um
termo guarda-chuva e, portanto, mais amplo, para dar conta de todas as plataformas que operam
entrelaçando a conectividade à localização geográfica. Com isso, quero designar qualquer
programa que utilize, de forma ativa ou passiva, a localização e a proximidade entre os usuários
como um princípio para a conexão.
Adriana de Souza e Silva e Jordan Frith (2010, p. 486) chamam a atenção para como
o fenômeno de crescimento e expansão das tecnologias baseadas em georreferenciamento
apresentaram uma tentativa de comercialização da consciência de localização por meio de
aplicativos comerciais que são amplamente disponibilizados para o público geral. É nesse
contexto histórico e tecnológico que se inserem os serviços comerciais de busca por parceiros
online para homens gays.
No App, depois de criar uma conta, o usuário pode produzir um perfil descrevendo a
si mesmo e, caso queira, também poderá explicitar as características que considera desejáveis
ou não nos potenciais parceiros a sua volta. Uma vez conectado à rede, a interface apresenta
uma grade de perfis posicionados em cascata, isto é, da esquerda para a direita, obedecendo o
critério de proximidade geográfica, do mais próximo até o mais distante.
No App, depois de criar uma conta, o usuário pode produzir um perfil descrevendo a
si mesmo e, caso queira, também poderá explicitar as características que considera desejáveis
ou não nos potenciais parceiros a sua volta. Uma vez conectado ao aplicativo, a interface
apresenta uma grade de perfis posicionados em cascata, isto é, da esquerda para a direita,
obedecendo o critério de proximidade geográfica, do mais próximo até o mais distante.
Esses serviços digitais operam em dispositivos como tablets e smartphones e se
apresentam em versões gratuitas ou pagas. Na versão gratuita, os recursos são limitados, mas
podem ser expandidos mediante o pagamento de uma taxa de aproximadamente US $10 ao
mês. A expansão integra um conjunto de recursos adicionais à interface. A despeito das
especificidades que variam entre um aplicativo e outro, de modo geral, esses recursos incluem
a possibilidade de visualizar um maior número de perfis ou de acrescentar mais imagens ao
próprio, assim como coloca à disposição do usuário mais recursos de filtro, que podem ser
5 Autoras como van Dijck (2016) enfatizam a dimensão da conectividade também como um recurso para em
perspectiva crítica o discurso público dos serviços de redes sociais - como Google e Facebook - assinalando
que nas plataformas de relacionamento na internet a produção da socialidade ocorre sob a égide da
conectividade. Desse modo, a rede não é social, antes a rede precisa tornar-se social e para isso criam as
condições necessárias para que as pessoas ativamente produzam socialidade. Em outras palavras, ser social é
um resultado e não um princípio da rede.
empregados para refinar a busca por potenciais parceiros selecionados com base em
preferências.
Para realizar o trabalho de campo fiz uso apenas de versões gratuitas dos aplicativos.
Durante a pesquisa não encontrei relatos de pessoas que fizessem uso de versões pagas, o que
me permitiu inferir que os usos se davam dentro dos limites disponibilizados pela interface em
sua versão grátis. Acompanhando as interfaces, também pude notar que, para muitos dos
homens com quem interagi ou mantive contato, o jogo de negociação e sedução que se produz
juntamente com os usos que fazem dessas plataformas é marcado pela presença daqueles que
sustentam – e, em alguns casos, ostentam – uma apresentação tida como “discreta” e enfática
com relação à atributos culturalmente considerados masculinos em contraposição àqueles
compreendidos como femininos.
Com base nas observações, entrevistas e conversas, arrisco-me a dizer que, no interior
paulista, os valores e atributos considerados masculinos e heterossexuais tem grande relevância
na gramática das relações que se produzem nas interfaces dos Apps de busca por parceiros para
homens gays6. Em contrapartida, traços considerados femininos são muitas vezes abertamente
criticados, contestados e até mesmo rechaçados.
Desde a publicidade que apresenta as plataformas, a paisagem visual dos aplicativos é
povoada por rostos delineados pela barba, torsos, braços, pernas e abdomens bem definidos.
Não se trata apenas de uma mera imagem publicitária, mas também de uma primeira instrução
visual oferecida pelas plataformas, que situa os usuários a respeito das lógicas que regem a
“comoditização de si” na internet (ILLOUZ, 2011; FERREIRA, 2017).
Na esfera da sexualidade, “a internet expandiu radicalmente as possibilidades
relacionais para pessoas que se interessam por outras do mesmo sexo conectando-as”
(MISKOLCI, 2017, p. 83). Também pode-se argumentar que a presença da tecnologia tem se
apresentado articulando deslocamentos profundos, sobretudo, no nível das dinâmicas
preexistentes em comunidades menores e mais afastadas dos centros urbanos (ADELMAN,
2015).
Serviços de comerciais busca por parceiros online são definidos a partir de “repertórios
culturais baseados no mercado [que] moldam e impregnam as relações interpessoais e afetivas,
e as relações interpessoais encontram-se no epicentro das relações econômicas.” (ILLOUZ,
2011, p. 23). “O encontro virtual é literalmente organizado dentro de uma estrutura de mercado”
6 Trato o conjunto de serviços comerciais de busca por parceiros que operam por georreferenciamento como
mídias geoconectivas com a intenção de manter em destaque principal característica dessas plataformas: são
mídias que promovem a conexão com base na posição geográfica dos usuários.
(idem, p.280), o que radicaliza e leva às últimas consequências a ideia do eu como
“selecionador” e a “a ideologia do encontro sob a égide liberal da escolha”.
Sobretudo para homens que buscam interagir com parceiros também dispostos a
encontros sexuais ocasionais, as explicações sobre os usos emergem ora enredadas por fantasia
de liberdade e fruição ora parecem fundadas na expectativa de controle do sujeito sobre a
distância com o outro desejado. O deslocamento entre os dois sentidos pode ser compreendido
levando em conta que a busca por parceiros para esses sujeitos se produz sob normas culturais
que podem ser facilmente aproximadas das regras do mercado. Dito de outro modo, as redes de
busca por parceiros online convidam o sujeito a ocupar uma posição empreendedora de
gerenciamento e controle sobre a vida íntima.
Já no caso dos homens que buscam exclusivamente por interações sexuais em segredo,
os aplicativos oferecem oportunidades de maximização dos prazeres e minimizando as
possibilidades de prejuízos com os quais teriam que arcar caso fossem vistos em público. Em
contrapartida, para os homens que se identificam abertamente como gays, predominantemente
nascidos na década de 1990, as interfaces dos aplicativos costumam ser experienciadas como
um espaço de diversão e entretenimento. Para esses rapazes, os aplicativos são encarados como
ferramentas que ampliam o circuito da paquera e que os coloca em contato com “gente nova”.
Entretanto, tanto em um caso como em outro a imagem do “eu selecionador” está
presente mediando os contatos em uma paisagem emocional saturada de sexualidade. Em sua
análise sobre as redes românticas na internet a partir de plataformas destinadas a busca por
parceiros heterossexuais, Illouz (2011) sustenta que as buscas amorosas nas mídias digitais são
regidas por repertórios culturais de mercado, que acentuam as características de competição
mercadológica entre os sujeitos. De acordo com a autora, a sensação de abundância de parceiros
provocada pelas mídias coloca o sujeito à numa posição neoliberal, em que deve escolher
sempre a melhor opção dentre as que estão disponíveis.
Illouz emprega a metáfora do “eu selecionador” para descrever o processo de
racionalização da sexualidade subjacente às plataformas de relacionamento online, mas
também para sublinhar os seus efeitos sobre a subjetividade. A racionalização da busca introduz
um elemento de distância entre o sujeito desejante e o outro desejado.
A imagem do “eu selecionador” pode ser entendida como uma metáfora para descrever
o processo de racionalização da sexualidade subjacente às plataformas de relacionamento
online. A racionalização da busca introduz um elemento de distância entre o sujeito desejante
e o outro desejado. Diante da promessa de abundância evocada pela interface, o “eu
selecionador” orienta-se para o tempo com o objetivo de fazer o melhor uso dele (ILLOUZ,
2014). Entretanto, nas mídias geoconectivas, o contato é definido em função da proximidade
geográfica, o que recoloca as interações no contexto local.
Atenta às relações heterossexuais nos Estados Unidos da América, Illouz (2011)
sustenta que as buscas amorosas mediadas pela internet são regidas por repertórios culturais de
mercado, que acentuam as características de competição mercadológica entre os sujeitos. Para
esta autora, a sensação de abundância de parceiros provocada pelas mídias coloca o sujeito a
uma posição neoliberal, em que deve escolher sempre a melhor opção dentre as que estão
disponíveis.
Ao serem transportadas para outros contextos, esses repertórios são aclimatados à
cultura local. Corroborando com os argumentos apresentados por Keith D. Kurashige (2018)
em sua tese de doutorado, em meu campo, tenho observado uma operação inversa a descrita
por Illouz: uma das principais fontes de queixas por parte dos meus interlocutores tem a ver
com a escassez qualitativa de parceiros. Queixas desse tipo são expressas nas falas dos
interlocutores em referência às dificuldades para encontrar pessoas com as características
idealizadas.
Kurashige explica que, no contexto do interior paulista,
As problemáticas levantadas por Illouz inspiram a compreensão que faço dos Apps.
Entretanto, considero que as mídias geoconectivas possuem características próprias, sendo a
principal delas a definição da rede de contatos em função da proximidade geográfica. Outra
particularidade marcante é que as interfaces para homens gays acionam repertórios culturais
para a homossexualidade que fundamentam o seu uso e se refletem na forma como os sujeitos
se apresentam e interagem. Além do mais, por se tratarem de interações co-localizadas os
aplicativos atam as interações a um contexto geográfico.
A localização se produz articulada a um lugar moldado por uma série de contingências
e aciona convenções culturais em torno do seu uso. Em seu estudo sobre como as pessoas fazem
a mobilidade com os smartphones, Alexandra Weilenmann (2003) sustenta que a mobilidade é
produzida entrelaçando pessoas, tecnologias e os contextos de uso. O estudo de Weilenmann
demonstra como o significado de uma posição geográfica depende das atividades são
desempenhadas de modo que é como parte dessas atividades que a posição se torna relevante.
Para Weilenmann, as mídias geoconectivas produzem uma relação baseada na
associação intrínseca entre o lugar e as atividades que nele são desempenhadas e, por isso, o
contexto não é algo dado. A autora também observa que o uso dos telefones celulares implica
em expectativas, entre elas, ser respondido. Desse modo, para esta autora, o contexto se produz
na interação entre pessoas situadas em lugares específicos e a tecnologia que as conecta em
rede.
Ao serem transportadas para diferentes lugares, os Apps aclimatam os repertórios
midiáticos globais sobre a “cultura gay” à cultura local. É nesse jogo que se produz o contexto
da interface. Mas quais são as particularidades presentes no interior paulista?
Ainda na primeira etapa da pesquisa, durante o mestrado, percebi que “segredo” e
“discrição” não eram sinônimos de privacidade, mas tinham sentidos culturais que se
combinavam noções de gênero, como a virilidade, de modo que passei a compreendê-los como
valores associados na composição das masculinidades em suas versões locais. Entretanto,
também foi possível perceber que as imagens locais dialogavam com uma versão global da
masculinidade, expressa nas propagandas veiculadas pelos aplicativos. Entre meus
interlocutores, discrição e sigilo apontavam para sujeitos capazes de resistir ao escrutínio
público sendo presumidos como heterossexuais, o que acabava indo ao encontro das demandas
expressas nos perfis.
Para os homens com quem mantive contato, discrição e sigilo apontam para sujeitos
capazes de resistir ao escrutínio público sendo presumidos como heterossexuais, o que acaba
indo ao encontro das demandas expressas nos perfis. O trabalho de campo etnográfico permitiu
verificar que o critério da discrição como pré-requisito para as interações se faz presente,
sobretudo, entre homens com idade entre 30 e 55 anos. Com base em observações, conversas
informais e entrevistas, aventei então uma primeira hipótese: esse tipo de busca “sigilosa”
aspirava preservar a segurança dos sujeitos nos espaços do trabalho e da família.
As três plataformas circunscritas pelo recorte da pesquisa têm comunidade gay como
alvo público alvo. Entretanto, durante a pesquisa de campo, encontrei muitos homens que,
embora mantivessem perfis ativos, relataram que mesmo vivenciando experiências sexuais com
outros homens, não se classificavam como gays, como explica João, 40 anos, enfermeiro, com
quem conversei durante alguns dias pelo aplicativo:
Pesquisador: No seu perfil no aplicativo, você diz que não é gay, porquê?
João: Eu não sou gay, nem frequento lugares gays. Até fui à sauna uns anos atrás, em
Ribeirão [Preto], mas não gostei. Eu curto só uma pegação7 entre machos, mas não
sou gay. Já fui casado, tenho uma filha e, hoje em dia, estou separado, posso desfrutar
minha liberdade, mas não quero me expor.
Pesquisador: Quando você estava casado não saia com outros homens?
João: Até rolava, mas era muito raro. Quando você é casado as coisas são mais
complicadas, não dá pra sair assim, quando dá.
Pesquisador: Atualmente você também se relaciona com mulheres?
João: Claro! To dizendo pra você: eu sou homem. Não sou gay. Aliás, no meu perfil
já deixo claro que sou só ativo no sexo. (Diário de Campo do Pesquisador).
O diálogo que mantive com Luciano, 24 anos, estudante de gastronomia, por meio de
um aplicativo de mensagens oferece uma versão alternativa aos argumentos apresentados por
João:
Pesquisador: No seu perfil você diz que é assumido e que não tem tempo para os
caras enrustidos, o que você quer dizer com isso?
Luciano: Aqui tá cheio de caras com esse papo de que tem jeito de homem, que busca
na encolha, que são discretos e tal. Mas é tudo conversa fiada. Os caras deitam e rolam
depois lançam esse papo de que são discretos.
Pesquisador: Mas porque você diz isso?
Luciano: Na real, os caras são gays e sabem disso, senão estariam buscando mulheres.
Eu acho que tem a ver com um monte de coisas. Eles tem vergonha e por isso tem
medo que os outros fiquem sabendo. Normalmente, esses caras convivem com outros
caras héteros, então acho que tem um lance de pressão social. Esse papo de discrição
é só fachada. (Diário de Campo do Pesquisador).
7 “Pegação” é uma expressão nacional equivalente ao cruising e, mais tarde, ao hook up, termos que respondem
ao contexto dos EUA, culturalmente marcado pela busca por sexo sem compromisso via internet. Para uma
análise sobre as continuidades entre as práticas do cruising e do hook up, ver: Miskolci, Richard. San Francisco
e a Nova Economia do Desejo. Lua Nova, São Paulo, n. 91, pp. 269-295, 2014. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64452014000100010>. Acesso em: 17 de maio de 18.
usos sociais cujos sentidos podem ser significativamente distintos uns dos outros. Corroborando
com as observações feitas por Miskolci (2017), minha pesquisa indica que, no interior paulista,
os usuários se encontram predominantemente dentro de famílias ou estão alocados em posições
de trabalho que presumem sua heterossexualidade ou, ao menos, não os interpelam sobre as
relações homossexuais (Padilha, 2015a).
Considerando a ostensiva presença de homens que buscavam parceiros mediante um
tipo de apresentação pública capaz de sustentar uma heterossexualidade presumida, percebi o
segredo como um elemento organizador da busca por parceiros neste campo da pesquisa. Nas
interfaces dos Apps, as diferentes versões de masculinidades são objetos de disputas e
controvérsias entre os usuários. Em diálogo com Georg Simmel (2011), passei compreender o
segredo como “economia da informação”, isto é, como uma rede que implica em pessoas
incluídas e excluídas daquilo que se pretende ocultar. Então, inspirado por autores como Erving
Goffman (1988) e Howard Becker (2008), passei a me dedicar a entender quem ocultava o quê
de quem e por quais razões.
Com o avanço do trabalho de registro etnográfico notei que, nas interfaces dos Apps,
os homens com quem mantive contato encontravam maneiras culturalmente sancionadas de
lidar, por um lado, com as pressões coletivas, e, por outro, com seus desejos que as
contradiziam. Essa corda-bamba que divide a normalização da abjeção 8 permitia a eles
conciliarem, ao invés de romper, as expectativas da vida familiar com as demandas da esfera
do trabalho. Isso lhes garantia certa dignidade, algum respeito e consideração social.
Vale ressaltar que, em contextos de estigmatização da homossexualidade, como é o
caso do interior paulista, circunscrito pela pesquisa, a garantia de preservação da dignidade,
respeito e consideração social acabam por se converter em uma espécie de “privilégio”
publicamente garantidos à heterossexualidade. Não foram raros os relatos de violências
psicológicas e até mesmo ameaças de violência físicas sofridos por meus interlocutores. Esses
relatos, feitos em diferentes ocasiões, permitem constatar que as estratégias de (in)visibilidade
não buscavam lidar apenas com pressões e restrições de ordem moral. O segredo é uma
estratégia mobilizada visando também a conservação da própria integridade física, mas,
8 Inspirado pelos escritos de Judith Butler, ao falar em abjeção me refiro ao efeito de exclusão mediante normas
culturais que regulam processos de inteligibilidade. Nesse sentido, abjeção pode ser entendida como o processo
por meio do qual determinadas formas, objetos, corpos, ações e sensações assumem uma forma ininteligível.
Se, num período anterior, a homossexualidade era vista como abjeta e como sinônimo de degeneração,
atualmente, o que se verifica é um movimento de normalização homossexualidade, em larga medida, mediado
pelo mercado.
sobretudo, psíquica dos sujeitos, considerando que parece existir uma frequência maior na
ocorrência de ataques morais e psicológicos do que situações que cheguem às vias de fato.
Ainda durante o mestrado produzi um banco de informações com base nos perfis dos
sujeitos com quem mantive contato. Em um primeiro momento, esse banco de dados
possibilitou a inferência em torno de questões gerais como, por exemplo, a proporção de
usuários contida na amostra que ocultavam ou não o rosto, assim como as faixas etárias que
concentravam o maior número de interlocutores da pesquisa. Constatei que a maior parte dos
meus interlocutores eram homens nascidos na década de 1990.
Vale ressaltar que, em contextos de estigmatização da homossexualidade, como é o
caso do interior paulista, circunscrito pela pesquisa, a garantia de preservação da dignidade,
respeito e consideração social acabam por se converter em privilégios publicamente garantidos
à heterossexualidade. Não foram raros os relatos de violências psicológicas e até mesmo
ameaças de violência físicas sofridos por meus interlocutores. Esses relatos feitos em diferentes
ocasiões permitem constatar que as estratégias de (in)visibilidade não buscavam lidar apenas
com pressões e restrições de ordem moral, mas visavam também a conservação da própria
integridade física, mas, sobretudo, psíquica dos sujeitos, considerando que parece existir uma
frequência maior na ocorrência de ataques morais e psicológicos do que situações que
chegassem às vias de fato.
Ainda durante o mestrado, produzi um banco de informações com base nos perfis com
quem mantive contato. Em um primeiro momento, esse banco de dados possibilitou a inferência
em torno de questões gerais como, por exemplo, a proporção de usuários contida na amostra
que ocultavam ou não o rosto, assim como as faixas etárias que concentravam o maior número
de interlocutores da pesquisa. Mais adiante, foi possível construir uma caracterização dos
interlocutores da pesquisa dividindo-os em dois grandes grupos separados mediante o critério
dos que mostravam e dos que ocultavam o rosto nas fotos dos perfis. Vale destacar também que
mostrar o rosto em plataformas de relacionamento online não equivale a ser assumido no plano
offline.
Devo dizer que não encontrei elementos para inferir a existência de uma relação direta
entre mostrar o rosto nos perfis produzidos em plataformas de relacionamento online e ser
assumido no plano offline. Embora seja possível notar uma tendência acentuada a ocultar o
rosto entre aqueles que buscam em segredo, também é possível encontrar um número
considerável de homens “assumidos” que buscam parceiros controlando a exposição, o que
sugere um caráter socialmente estigmático associado à busca aberta por interações
exclusivamente sexuais.
No interior de cada um dos grupos, com e sem rosto, as informações foram cruzadas
resultando numa métrica do público. Esta estratégia metodológica se mostrou produtiva para
estabelecer uma categorização sociológica dos sujeitos, além de facilitar a identificação de
convenções e comportamentos mais gerais separando-os de outros mais específicos. Além
disso, num primeiro momento, essas informações acabaram por consolidar, a partir de uma
visão quantificada, algumas percepções alcançadas com a etnografia como, por exemplo, a
certeza de que a maioria dos interlocutores ocultava o rosto (63%), enquanto 39% mostravam
(cf. PADILHA, 2015, p. 61).
O tratamento quantitativo permitiu verificar as recorrências e as dissidências de acordo
com de acordo com as diferentes faixas etárias, por exemplo. Apenas para ilustrar, as
informações sobre os perfis permitiram quantificar, além da proporção etária dos usuários, a
proporção de perfis que se descreviam com referência à masculinidade, a proporção das
forclusões, como chamei as exclusões imediatas a tipos corporais, personalidades e práticas
sociais específicas expressas nos perfis. O mesmo recurso também permitiu estabelecer as
proporções entre as preferências sexuais autodeclaradas pelos usuários de acordo com o grupo
dos que mostravam e dos que não mostravam o rosto.
Entre os usuários que mostram o rosto, 82% têm até́ 30 anos de idade. Considerando
as proporções, entre os mais jovens com idade abaixo dos 20 anos, o número dos que
mostram o rosto (19%) é significativamente maior do que os que o ocultam (6%). Na
faixa etária seguinte, que compreende de 21 até́ 25 anos, 40% dos perfis mostram o
rosto enquanto 30% não o mostram. Na sequência, as proporções vão se invertendo:
no intervalo de 31 a 35 anos, 12% dos perfis mostram o rosto e 24% não o mostram.
Na faixa dos 36 a 45 anos, quase todos os usuários ocultam o rosto, apenas 3%
mostram. Por fim, entre os usuários com mais de 45 anos, a proporção é de 6%
mostrando o rosto e 1% não o deixando à mostra (PADILHA, 2015, p. 63-64).
9 Keith Diego Kurashige (2018, p.217) apresenta em sua tese de doutorado uma história alternativa para a
formação social da cidade de São Carlos recuperando as memórias de homossexuais. O trabalho é revelador a
respeito das especificidades em torno da homossexualidade nesse contexto e mostra “a multifacetada dinâmica
dos desejos homossexuais em São Carlos, tanto as amarras sociais que impediram o floreio pleno dos desejos
quanto às condições que permitiram modos de agir e resistir encontrando suas formas possíveis, mesmo que
parciais e imperfeitas”.
casamentos de fachada e outros componentes do antigo “armário homossexual”, embora ainda
sirvam de suporte à heteronormatividade e atestem os privilégios publicamente garantidos à
heterossexualidade.
Esses deslocamentos se refletem também numa transformação nos repertórios
culturais que moldam os “horizontes de aspiração” (FACIOLI, 2017) desses rapazes.
“Assumir-se homossexual” não é o mesmo que simplesmente revelar um segredo. Também
convém reiterar que “sair do armário” não é apenas uma meta individual, mas também
culturalmente situada e, portanto, cercada por ideais geracionais, condições materiais e
fantasias de classe e de gênero que, por vezes, podem ser bastante normativas e exigentes a
respeito de como deveria ser a (homo)sexualidade.
A partir de 2015, como estudante de doutorado, minha proposta foi expandir o estudo
iniciado no mestrado, com o objetivo de aprofundar a investigação e o tratamento teórico com
relação dado à tecnologia. Nesse percurso, busquei aprofundar o diálogo com a vertente de
estudos da Sociologia Digital e com a literatura produzida sobre a tecnologia, em especial, com
inspiração na vertente feminista e dos Estudos Culturais.
Ao longo dos últimos 40 anos, o campo de estudos da ciência e tecnologia desenvolveu
críticas contundentes ao determinismo tecnológico enfatizando a construção mútua entre social
e técnico. Nesse campo de estudos, sociólogas como a feminista Judy Wajcman (2012),
tensionam o debate ao demonstrar como artefatos materiais fazem parte do tecido social que
mantém a coletividade unida, de modo que eles não são possíveis defini-los como sendo
exclusivamente técnicos ou sociais. De modo semelhante e quase ao mesmo tempo, a
antropóloga Donna Haraway (2000) empregava em seu poderoso manifesto a metáfora do
ciborgue com a intenção de produzir uma crítica da identidade em favor das diferenças e para
reivindicar novas possibilidades de apropriação politicamente responsável da ciência e da
tecnologia.
Também foi nesse período que, em termos metodológicos, os estudos culturais
consolidaram a constatação de que a produção cultural não pode ser tomada em si mesma, mas
apenas e tão somente em conexão com uma formação social da qual é parte (CEVASCO, 2003).
Desde uma perspectiva que cobre simultaneamente história, economia, política, sociedade e
cultura, para Raymond Williams (2016), um dos autores incontornáveis dessa vertente, a cultura
pensada como o campo por meio do qual essa organização se expressa no concreto, na forma
de um modo de vida real.
Inspirado pelos escritos de Williams sobre a televisão, a partir da confluência entre
homossexualidades masculinas e as mídias digitais no interior paulista buscarei analisar as
mídias digitais como experiência cultural. Deste modo, considero que os Apps de busca por
parceiros emergem da articulação entre práticas de produção, relações entre tecnologia e
economia e ganham uma função social na vida cotidiana mediante estruturas formais que
moldam tipos de produtos e serviços oferecidos individualmente. Em outras palavras, os
escritos de Williams me levam a refletir sobre como os serviços comerciais de busca por
parceiros oferecem uma forma cultural, tecnológica e institucionalmente regulada, que permite
a interação social e expressão cultural. Essa forma só pode ser tomada levando em consideração
sua dimensão local também entendida como expressão de forças sociais, políticas e econômicas
mais amplas.
Assim, analiso os Apps compreendendo sua dupla dimensão: enquanto tecnologia e
como forma cultural. Meu argumento se contrapõe a compreensão de que as mídias digitais
causam mudanças sociais. De outro modo, buscarei mostrar como deslocamentos são
produzidos na relação entre a tecnologia e as práticas preexistentes articulando de maneira
complexa práticas sociais, subjetividades, produção, mercado, máquinas, corporações e
economia. Não se trata de entender a tecnologia em termos de causa e efeito, mas como
expressão.
De modo algum minha afirmação deve ser confundida com a alegação de que o avanço
tecnológico não promova mudanças. Minha intenção é apresentar como as interfaces dos Apps
de busca por parceiros se moldam a uma experiência cultural específica, mas a partir de aspectos
e com resultados que não podem ser predeterminados. As interfaces dos aplicativos me parecem
uma entrada adequada para conectar o tema das tecnologias, sem deixar de fora como os grupos
de pessoas interesses e, principalmente, poder, se moldam na relação com a tecnologia e, nesse
processo, suas práticas sociais acabam por se alterar.
Na execução do trabalho de campo, tendo em vista que para o funcionamento dos
aplicativos a localização geográfica e a distância entre os usuários são elementos cruciais para
o estabelecimento de contatos e interações, estabeleci como critério para o contato conversar
com sujeitos que estivessem localizados em um raio de até 100 quilômetros de distância de São
Carlos, base da pesquisa.
A escolha metodológica de delimitar os contatos a partir da distância foi motivada por
duas razões. Em primeiro lugar, porque notei que entre meus interlocutores havia uma tendência
de deslocamento mais acentuada entre cidades próximas de São Carlos, quer dizer, as pessoas
se moviam mais de uma cidade a outra, quer seja por conta do trabalho, do estudo ou em busca
de lazer. Os fluxos de pessoas tendem a acontecer de maneira mais acentuada quanto mais curta
for a distância entre as cidades em questão. Em segundo lugar, uma vez que me limitei a utilizar
apenas a versão gratuita dos aplicativos para estabelecer os contatos de pesquisa, a interface me
limitou a interagir com usuários mais próximos, desse modo, foi sob um raio de até 100
quilômetros que a interface permitiu que eu estabelecesse contatos.
10 No original: “The telephone is a site at which the meanings of gender are expressed and practiced. Use of the
telephone by women is both gendered work — work delegated to women — and gender work — work that
confirms the community's beliefs about what are women's natural tendencies and abilities”
assim dizer, como uma versão analógica da função atualmente cumprida pelas plataformas de
relacionamento online.
Entretanto, num primeiro momento, esta não foi considerada uma maneira socialmente
aceitável de procurar um cônjuge, sendo vista como último recurso adotado por pessoas
desesperadas. Considerando as convenções culturais da época, buscar um casamento por meio
de anúncios, em última análise, denotaria alguém que não dispunha de pais presentes ou de uma
família com quem pudesse contar para organizar seu matrimônio. Daí a razão pela qual,
inicialmente, os anúncios eram predominantemente publicados por homens mais velhos,
solteiros ou viúvos. Entre outras informações informações interessantes, o trabalho de Cocks
(2009) recupera o passado de Helen Morrison, apresentada como a primeira mulher a colocar
um anúncio pessoal em um jornal buscando por um cônjuge, em 1727. Depois da publicação
do anúncio no periódico Manchester Weekly Journal, o governo enviou Morrison para um asilo,
onde permaneceu durante um mês, sob o argumento de que ela seria mentalmente instável.
Contrastando os anúncios de busca por parceiros veiculados no Lampião da Esquina,
um periódico popular entre homossexuais paulistanos e cariocas de camadas médias durante a
década de 1980, com os perfis apresentados em aplicativos como Grindr e Hornet, Ferreira da
Silva (2017) analisa como as expressões sociais do desejo podem ser localizadas em momentos
históricos distintos. Para este autor, os classificados são compreendidos como “facilitadores de
uma sociabilidade muitas vezes negada sem possibilidade alguma de mediação” (p. 4).
Ainda que práticas como as documentadas por Cocks sejam descritas a partir dos
Estados Unidos da América e da Europa, o trabalho de Ferreira (2017) permite questionar como
a busca por classificados respinga em solo nacional e é adaptada às condições históricas,
tecnológicas e culturais locais.
Meus interlocutores com mais de 35 anos, como Rafael 11 , de quem falarei mais
adiante, oferecem relatos interessantes sobre como a busca por parceiros ocorria em uma época
11 Ao longo do texto substitui os nomes reais dos meus interlocutores por nomes fictícios e suprimi todas as
informações que considerei passíveis de torná-los identificáveis. Assim, as cidades de origem apenas serão
mencionadas quando autorizadas pelos interlocutores que, informados sob as condições da pesquisa,
consentiram a divulgação desta informação no estudo.
anterior à internet. Rafael se lembra que, no começo dos anos 2000, num momento tecnológico
anterior aos smartphones e computadores móveis de uso pessoal, algumas revistas
pornográficas nacionais, como a Private©, traziam nas páginas finais anúncios de casais
heterossexuais buscando por outros parceiros e parceiras, em meio a anúncios publicados por
homens que buscavam por outros homens. Isso indica algumas continuidades e confluências
entre práticas e universos que à primeira vista nos parecem radicalmente distantes e
descontínuos.
Finkel et al. (2012) explicam que
12 No original: “Just as printed personal advertisements followed the emergence of newspapers, and just as video-
dating followed the emergence of video cassette recorders, computer-based matching services followed the
emergence of computers. Indeed, computers were used for romantic matching decades before the development
of the Internet, both in conjunction with academic research on the attraction process and as a component of
commercial adventures in matching”.
O que esses estudos permitem verificar é o modo como as tecnologias
comunicacionais foram cruciais para o estabelecimento de relações entre grupos historicamente
subalternizados, como mulheres e homossexuais.
Na era das mídias digitais, marcada por mudanças históricas e culturais profundas, as
plataformas de relacionamento foram aperfeiçoadas. Nas mídias geoconectivas, o papel do
ativo do computador na formação de pares perdeu relevância sendo limitado apenas à
apresentação das opções disponíveis. O computador cedeu espaço à vontade do usuário que,
imerso em repertórios culturais de mercado, passou a imaginando como alguém que faz
escolhas livres em um ambiente livre de interferências. Em sua forma atual, a antiga plataforma
de relacionamento, imaginada para otimizar as relações evitando perdas - de tempo, emocionais
e financeiras -, se converteu em um poderoso mediador para as relações sociais (cf. VAN
DIJCK, 2016, p. 54), que modula a performatividade dos sujeitos e não apenas facilita a
produção da socialidade.
O trabalho de Eva Illouz (2007) oferece insights valiosos sobre como as tecnologias
não constituem apenas parte do nosso aparato de comunicação, mas passam a integrar também
nosso aparato emocional e se vinculam a mudanças subjetivas profundas. Nesse sentido,
serviços comerciais de busca por parceiros online podem ser sintetizados como mídias
conectivas que produzem a socialidade entrelaçando emoções, tecnologia e ação econômica.
Os smartphones são tecnologias tributárias do período da Guerra Fria. Em meio a
chamada “corrida espacial”, os processos de miniaturização da tecnologia se revelaram cruciais.
Naquele momento, reduzir o tamanho dos equipamentos mantendo o seu desempenho figurava
como uma questão crucial para pudessem chegar ao espaço. Foi nesse processo que os antigos
mainframes que povoaram o imaginário da década de 1950 foram reduzidos.
Anos mais tarde, durante as décadas de 1980 e 1990, os computadores passaram a ter
sua utilização nos ambientes de trabalho e no meio doméstico (ATHIQUE, 2013). “A história
das mídias digitais, como a conhecemos, é moldada por um contexto de transição que fez de
um equipamento comunicacional bélico uma arma de mercado, de consumo e de comunicação
em rede” (PADILHA; FACIOLI, 2018).
Mas como a introdução de novas formas de conexão são articuladas à vida nas
comunidades e como o desenvolvimento de tecnologias - hardware, software e design - se
alinham aos deslocamentos na experiência dos sujeitos? Como estruturas tecnológicas se
relacionam com a cultura? Quais os sentidos atribuídos pelos os sujeitos à busca por sexo casual
online?
Existe uma forte inclinação contemporânea a relacionar as mudanças tecnológicas
ocorridas nas últimas décadas como causa para a explosão de novos comportamentos, o que
inclui novas práticas sexuais. De maneira quase obsessiva, essa tendência se expressa nas mais
variadas áreas se estendendo desde a psicologia até os sofás dos programas televisivos
matutinos ora dizendo sobre como a tecnologia melhora, ora sobre como piora a qualidade e a
dinâmica das relações.
A expectativa de que a tecnologia produza mudanças sociais, de que ela resolva
antigos problemas e apresente solução para os novos é tão antiga quanto a própria tecnologia.
A teoria da modelagem social da tecnologia proposta por Donald MacKenzie e Judy Wajcman
(1999) demonstra que tecnologias são socialmente contextualizadas e que seu design,
desenvolvimento, utilização, domesticação e rejeição são moldados pelas relações sociais a sua
volta. De modo semelhante, Williams (2016) observou que o surgimento de uma nova
tecnologia por si não acarreta mudanças de comportamento. Historicizando os processos
tecnológicos, este autor oferece considerações importantes sobre o modo como se dá a
articulação da tecnologia com grupos específicos de interesse dentro de certa ordem social.
Tendo em vista o estado atual de desenvolvimento das mídias digitais é possível supor
que as coisas se tornaram mais complexas, na medida em que novos sujeitos, agentes e artefatos
se tornaram atuantes nas interações. Analisando a cultura da conectividade, Van Djick (2016,
p.60) nota que a socialidade online passou a ser, cada vez mais, “o resultado de uma coprodução
entre humanos e máquinas”. A socióloga holandesa destaca o modo como as estruturas
tecnológicas constituem um meio indispensável para investigar como elas próprias atuam nas
interações sociais e se relacionam com a cultura.
Afinal, no contexto do interior paulista, os aplicativos de busca por parceiros
inauguram a prática do sexo casual ou apenas intensificam uma prática social preexistente? De
que maneira as mídias digitais remodelaram as antigas práticas sob novas condições
tecnológicas? Como as práticas são atualizadas e quais são os novos sentidos que adquirem?
De que maneira o sexo se insere na gramática que rege a busca por parceiros em um contexto
marcado por restrições às expressões públicas consideradas homossexuais?
Esta é uma tese que parte de uma abordagem etnográfica sobre a busca por sexo casual
nos aplicativos de busca por parceiros para homens gays. Durante a execução da pesquisa, os
interlocutores foram todos inicialmente contatados a partir de 3 plataformas comerciais de
busca por parceiros. Os serviços analisados formam redes homossociais, ou seja, são ambientes
digitais formados exclusivamente em torno de identidades masculinas. Em parte, esta é uma
das razões pelas quais a presença das mulheres figura apenas de maneira lateral ao longo do
texto, elas aparecem como mães, irmãs, avós, tias, primas, amigas, chefes e, por vezes, esposas.
Isto será melhor compreendido deixando evidente que a homossocialidade opera como um
elemento definidor do campo.
A maioridade dos interlocutores representa outro coorte igualmente crucial para a
definição do escopo empírico da pesquisa. Os aplicativos são de uso expressamente restrito a
pessoas com idade acima de 18 anos. Sendo assim, ainda que ocasionalmente tenha me
deparado com alguns adolescentes nas plataformas, em todas as vezes que esse fato ocorreu
optei por não prosseguir a interação interrompendo o contato assim que fui informado sobre a
idade.
As primeiras interações entre mim e os interlocutores foram sempre iniciadas por meio
dos aplicativos e, mais tarde, informados sob as condições da pesquisa, a partir do interesse e
concordância dos interlocutores em colaborar com o estudo, foram estendidas para interações
e conversas em outras plataformas de conexão. Sendo assim, sempre que possível e mediante
o consentimento das pessoas com quem conversava, busquei estender as interações até alcançar
entrevistas realizadas em encontros face a face. Com isso, operei na articulação entre on e
offline de maneira contínua e relacional. Portanto, os sentidos atribuídos aos usos sociais das
mídias digitais apenas podem ser compreendidos considerando modo como estão articulados
aos diferentes contextos locais.
Em termos metodológicos, os trabalhos de Néstor Perlongher (2008), Laud Humphreys
(2008) e A. J. Barnes (1954) me inspiraram na construção de uma abordagem que tomava do
campo como uma rede de interlocutores. Durante a pesquisa, busquei obter informações sobre
os vínculos sociais estabelecidos entre os sujeitos que se dispuseram a colaborar com o estudo
– com quais pessoas eles se relacionavam, por quais locais transitavam e em que tipos de
atividades se envolviam em suas rotinas diárias.
A partir desses três enfoques conduzi observações livres, entrevistas itinerantes e
entrevistas profundas, de acordo com a disposição dos sujeitos em colaborar com a pesquisa.
Operando de forma mais aberta meu propósito foi obter novas informações sobre o
funcionamento das plataformas de busca por parceiros, bem como sobre as redes sociais em
que os participantes se envolviam sempre que possível. Conversas via aplicativos de mensagem
também permitiram complementar informações já́ registradas.
Com o objetivo de construir uma caracterização sociológica dos interlocutores e dos
usos que eles faziam dos serviços comerciais de busca por parceiros, as entrevistas foram
guiadas a partir das seguintes questões:
a) Idade; profissão e local de moradia.
b) Há quanto tempo e como você conheceu o aplicativo?
c) Por que você decidiu usar o aplicativo?
d) Quais são suas impressões sobre o aplicativo?
e) Antes dos aplicativos, você usava outras redes para buscar parceiros na internet?
i - Se sim, quais?
ii - Se não, como fazia?
15 De modo complementar, Richard Miskolci e Fernando F. Balieiro (2018, p. 146-147) observam que “os
megadados trouxeram discussões sobre as novas formas de controle social e exploração midiático-comercial
das relações sociais no presente assim como originaram reflexões metodológicas para lidar com essa nova
realidade. Por sua vez, tal perspectiva deixou de explorar outras novidades, como o fato de que nas relações
mediadas digitalmente tudo passa a ser documentado criando um arquivo crescente e rico para a pesquisa social
qualitativa (o que alguns tratam como small-data). Frequentemente os arquivos gerados pelas interações
mediadas abrem aos investigadores um do- mínio inexplorado até recentemente, já que as plataformas de
socialização permitiram a circulação de formas de comunicação cujo conteúdo antes era relegado à
privacidade”.
sempre gerava alguma nova informação e, com o passar do tempo, os registros acabaram se
tornando mais completos, o que acabou facilitando a caracterização sociológica dos sujeitos.
Embora o contato inicial tenha se dado por meio das mídias geoconectivas, considero
importante destacar que isto não quer dizer que as interações tenham sido exclusivamente
restritas às interfaces. Além disso, as pessoas transitam por diferentes plataformas com os mais
variados propósitos e, conforme o trabalho de campo mostra, as condutas dos sujeitos tendem
a mudar radicalmente de acordo com a plataforma em questão. Assim, busquei me inserir no
maior número de plataformas possíveis com as quais os interlocutores estavam engajados, o
que ofereceu a oportunidade de refletir sobre o peso que a dimensão da infraestrutura tem na
definição das interações online.
Plataformas são regidas por protocolos que, nos termos de Alexander Galloway (2004,
p. 121), pode ser entendido como “um conjunto técnico de regras cujas formas de uso são dadas
pela forma como foi programado e pela forma como os seus proprietários o governam ou o
administram”. Assim, não apenas o registro de dados dos sujeitos importava para a pesquisa,
mas, sobretudo, foi preciso entender os termos que regulavam os usos de cada plataforma.
Passei então a ler os regulamentos e termos de conduta que regulam os serviços
geolocativos de busca por parceiros. Por exemplo, o regimento que regula o direito de
propriedade do aplicativo Grindr, um dos aplicativos incluídos na pesquisa, expressa que:
Respeitando as interdições expressas nos termos de uso, optei por não expor as
imagens das interfaces dos aplicativos, bem como o logotipo e quaisquer informações que
ferissem a regulamentação expressa, exceto quando as imagens são apresentadas pela
publicidade dos serviços.
Para aqueles que não são sociólogos, o sexo pode ser entendido como o ato
pecaminoso ou prazeroso que praticamos na privacidade do quarto. Para o sociólogo,
o sexo e a sexualidade são um eixo em torno do qual a vida social é organizada, um
eixo que une ou separa as pessoas de acordo com modelos específicos e previsíveis.
Com quem é permitido ou proibido fazer sexo; as maneiras pelas quais a sexualidade
está ligada à moralidade; qual é a relação entre sexo prazeroso e reprodução biológica;
a quem se pode pagar por sexo e a quem não se pode; quais são as diferentes formas
pelas quais a transferência de dinheiro ocorre envolvendo o sexo; o que é definido
como sexo legal e ilegal? Essas são algumas das perguntas que os sociólogos fazem
sobre sexualidade. A sexualidade é uma questão sociologicamente relevante, porque
é socialmente regulada e porque a sua regulação social está oculta aos nossos olhos,
na verdade, decerto invisível. Praticar sexo é uma maneira de perceber e reproduzir
estruturas sociais e culturais porque a sexualidade contém respostas a perguntas como
quem tem o poder (por exemplo, um homem grego livre seria considerado moralmente
inferior se tivesse sido penetrado analmente por um escravo; teria de ser ele o
penetrador); que papel o desejo desempenha na subjetividade de cada um (esse
aspecto tem total legitimidade na cultura de consumo e quase nenhuma na cultura
monástica cristã); qual é o quadro organizacional apropriado para a sexualidade (o
quarto conjugal, o bordel, a boate, os cultos religiosos misteriosos, como os de Baco
e Dionísio); ou que lugar a sexualidade ocupa na moralidade (um sinal de depravação
na cultura dominada pelo freudismo)? A sexualidade nunca é simplesmente o
17 Evitarei o uso do termo erótico por duas razões: em primeiro lugar, porque meus interlocutores reconhecem
conteúdos sexuais como pornográficos e não como eróticos, além disso, a segunda razão é que desejo manter
as associações culturais e carnais entre pornografia e má reputação. Agradeço ao Professor Jorge Leite Júnior
pelas contribuições a esse respeito.
encontro entre corpos, mas também uma maneira de representar as hierarquias sociais
e a moralidade de uma sociedade (as transgressões sexuais não são menos definidas
pela sociedade, pois só podem fazer sentido em referência a uma norma). Que a
sexualidade é sempre social é verdade mesmo, especialmente quando ‘livre’.”
(ILLOUZ, 2014, p.52)18.
Afastados os juízos morais, considero que a pornografia gay pode ser compreendida
como uma forma de representação e como um gênero midiático, que cria um espaço para a
produção de um tipo de conhecimento experiencial do corpo. Ao falar em pornografia gay ou
pornô gay me refiro a quaisquer tipos de produções, sejam amadoras ou profissionais, autorais
ou não, que expressam uma imagética do desejo homossexual. Sendo assim, minha intenção é
entender como e por quais razões a retórica da pornografia se integra às interfaces dos
aplicativos está articulada às sensações e percepções dos sujeitos.
Retomando o fio cronológico, no final de 2016, em meio às disputas de mercado pelos
dados dos usuários, as startups promoveram novas mudanças na interface acrescentando novos
recursos aos perfis. Entre as novas funcionalidades, os Apps facilitaram a convergência entre
diferentes plataformas. A partir de então passou a ser possível vincular contas pessoais em
serviços de redes sociais como, por exemplo, Twitter, Tumblr, Facebook e Instagram, aos perfis
dos usuários nos aplicativos Grindr, Hornet e Scruff.
A partir de então, sempre que um usuário integrava uma outra rede social ao perfil que
mantinha no aplicativo, após ser autorizado, eu passava a acompanhá-lo em suas postagens e
interações também nessas outras plataformas de relacionamento online. Os limites e restrições
18 No original: “Para los que non son sociólogos, el sexo son los actos pecaminosos o placenteros que realizamos
en la privacidad del dormitorio. Para el sociólogo, el sexo y la sexualidad son un eje en torno de lo cual se
organiza la vida social, un eje que une o separa personas según modelos específicos y predecibles. Con quién
está permitido o prohibido tener relaciones sexuales; cómo se conecta la sexualidad con la moralidad; qué
relación hay entre el sexo placentero y la reproducción biológica; a quién se le puede pagar por sexo y a quién
no; cuáles son las diferentes formas de transferencia de dinero en el sexo; y qué se define como sexo legal y
ilegal: estas son algunas de las preguntas que los sociólogos formulan acerca de la sexualidad. La sexualidad
es un tema muy importante para los sociólogos porque está socialmente regulada y porque su regulación social
está oculta a la vista, en realidad es invisible por decerto. Practicar el sexo es una forma de realizar y reproducir
estructuras sociales y culturales porque la sexualidad contiene respuestas a preguntas como quién tiene el poder
(por ejemplo, un hombre griego libre había sido considerado moralmente inferior si hubiera sido penetrado
analmente por un esclavo; debía ser él el penetrador); qué papel desempeña el deseo en la subjetividad de cada
uno (tiene total legitimidad en la cultura del consumo y casi nada en la cultura monástica cristiana); cuál es el
marco organizacional adecuado para la sexualidad (el dormitorio conyugal, el burdel, el club nocturno, cultos
religiosos mistéricos como los de Baco y Dionisos); o qué lugar ocupa la sexualidad en la moralidad (señal de
depravación en la cultura dominada por el freudianismo). La sexualidad nunca es simplemente el encuentro de
los cuerpos, sino también una forma de poner en acto las jerarquías sociales y la moralidad de una sociedad
(las transgresiones sexuales no están menos definidas por la sociedad, puesto que sólo tienen sentido en
referencia a una norma). Que la sexualidad siempre es social es cierto incluso, o especialmente, cuando es
‘libre’” (Illouz, 2014, p. 52).
em termos de usos e dos conteúdos veiculados variam consideravelmente de acordo com o
serviço de rede social em questão.
Plataformas como Twitter, por exemplo, são encaradas pelos usuários como “mais
flexíveis”, sobretudo, por permitirem postagens com conteúdo adulto, desde que previamente
assinalado pelo autor da postagem como conteúdo impróprio para menores. Outras, como
Facebook, são caracterizadas por impedir a circulação do conteúdo assim que violações são
detectadas, quer seja por meio de algoritmos especializados em reconhecer pornografia ou por
terem sido alvo de denúncia por parte de outros usuários.
Os perfis que meus interlocutores mantêm em outros serviços de redes sociais, em
especial, no Twitter, via de regra, são usados exclusivamente usados para formar redes em torno
do sexo. Alguns, preferem postar exclusivamente conteúdos autorais, isto é, fotos e vídeos que
mostram seus corpos e encontros sexuais, enquanto outros mantêm páginas exclusivamente
voltadas à partilha e divulgação dos conteúdos produzidos e promovidos por aqueles que segue.
Em geral, os perfis mantidos no Twitter são identificados por nomes fictícios, que
ocultam a identidade real dos sujeitos, mas enfatizam suas preferências. Entretanto, em meio à
profusão de perfis anônimos ou ficcionais, também existe uma quantidade considerável de
perfis mantidos por garotos de programa e atores de filmes pornográficos, que usam as redes
com o objetivo de aumentar seus rendimentos.
Olhando para essas relações passei a aventar se existiria uma articulação entre a
pornografia, os afetos e a intimidade nas mídias digitais voltadas ao público gay. Seguindo
19
meus interlocutores, fui conectado também aos chamados sites tubes , plataformas
especializadas no armazenamento, distribuição e circulação desse tipo de conteúdo.
O percurso assumido pela pesquisa de campo sobre o sexo casual nas mídias digitais
me levou à pornografia. As mídias digitais favoreceram a criação de redes que possibilitaram
falar sobre o desejo, assim como intensificaram a troca de “imagens” mais plurais sobre a
“homossexualidade” e sobre “como ser gay” em escala global (MOWLABOCUS, 2010).
19 Por sites “tubes”, gíria de língua inglesa para televisão, quero designar os sites e portais que gerenciam os
compartilhamentos de vídeos produzidos e/ou anexados à plataforma pelos usuários. Atualmente, o mais
popular do segmento é o YouTube. Essas plataformas podem ser compreendidas como centrais caracterizadas
pela capacidade de abrigar um grande número de “canais” criados por seus usuários. Sites “tubes” também
podem ser entendidos como “tubos”, conservando a analogia com o sentido literal da palavra, já que são
plataformas que abarcam conexões com outros sites e outras plataformas produtoras de conteúdo e que, por
meio de hiperligações, drenam dali os seus objetos gráficos. Para uma explicação sobre o funcionamento dessas
plataformas, do modelo de negócios e da política legal que rege os direitos autorais que adotam, ver: LEMOS,
Ronaldo. Desafios do século XXI. In: OLIVEIRA, Fátima Bayma de (org.). Tecnologia da Informação e da
Comunicação: articulando processos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: E-papers: Fundação Getúlio
Vargas, 2009.
Entretanto, online, a confluência entre formas de sexo pagas e não pagas posiciona os sujeitos
de maneira ambígua em relação a um conjunto articulado de práticas sociais que envolvem o
anúncio de si e o consumo do outro num contexto de comercialização.
Mas, afinal, qual o lugar da pornografia no contexto dos serviços comerciais de busca
por parceiros? Como a busca por parceiros enredada em um contexto digital produz uma “ética
da curiosidade” que torna plausível que alguém peça uma foto de nudez antes mesmo de
conhecer o rosto do seu interlocutor? De que maneira formas de sexo pagas e não pagas
confluem nas mídias digitais?
Plataformas de relacionamento compõem um gênero de artefatos eloquentes a respeito
da sexualidade contemporânea. Os aplicativos operam como um conjunto de ferramentas
destinadas à superação de problemáticas circunscritas em torno da sexualidade de homens gays,
e ao fazê-lo codifica as aporias das relações homossexuais.
O percurso assumido pelas observações etnográficas online sobre os Apps de busca
por parceiros me levou à pornografia. As mídias digitais favoreceram a criação de redes que
possibilitaram falar sobre o desejo, assim como intensificaram a troca de “imagens” mais
plurais sobre a “homossexualidade” e sobre “como ser gay” em escala global
(MOWLABOCUS, 2010). Entretanto, online, a confluência entre formas de sexo pagas e não
pagas posiciona os sujeitos de maneira ambígua em relação a um conjunto articulado de práticas
sociais que envolvem o anúncio de si e o consumo do outro num contexto de comercialização.
De acordo com o Google Trends, uma ferramenta que mostra os termos mais buscados
na internet em um passado recente, 2015 foi o ano de maior repercussão da expressão “manda
nude”. Nesse mesmo ano, após o vazamento de imagens íntimas de atores e atrizes conhecidos
do público, a expressão chegou aos telejornais e aos palcos dos programas televisivos. A
repercussão também foi explorada por institutos especializados em pesquisa sobre tendências
de comportamento digital, que reforçaram a constatação de que a expressão estava entre as mais
buscadas naquele ano.
Illouz (2014, p. 58) observa que, durante o século XX, a sexualidade recreativa e serial
chegou a ser caracterizada como sinônimo de masculinidade. Isto permite entender como, em
termos sociológicos, as plataformas para busca por parceiros online não são simplesmente
tecnologias para a fruição sexual, mas também tecnologias de gênero. Para a socióloga
marroquina, o deslocamento da organização social do matrimônio para o mercado consumidor
conferiu caráter recreativo à sexualidade moderna, que passou a imitar o mercado de consumo
do ócio, visto como o local reservado à expressão da autenticidade e à fruição.
A sexualidade se converteu na sede da representação do valor moderno de liberdade
como a capacidade de exercer o lugar do consumidor. Alocada sob repertórios culturais de
mercado, a sexualidade moderna se tornou regada de incertezas, o que passou a demandar dos
sujeitos estratégias - emocionais e sexuais - para alcançar um melhor desempenho (ILLOUZ,
2014, p. 59).
Os Apps oferecem recursos e roteiro para a interação entre parceiros com propósitos
que podem ser consonantes. Mowlabocus (2010) argumenta que a especificidade das mídias
voltadas para consumidores gays é que elas convidam os sujeitos a construírem representações
de si em um espaço onde a homossexualidade – e não a heterossexualidade – é o padrão. De
acordo com o sociólogo, os perfis são centrais para a interação nas plataformas de
relacionamento porque tornam o assunto culturalmente legível dentro deste espaço. Desse
modo, o perfil do usuário não apenas representa o sujeito online, mas opera como um meio
através do qual a subjetividade é produzida e tornada legível (cf. MOWLABOCUS, 2007).
Mediada pelas interfaces, a “recreação erótica e visual” se confunde com a própria
busca (LEAL-GUERRERO, 2013, p. 121). As interfaces das plataformas de relacionamento
online para homens gays são animadas pelo repertório cultural da pornografia gay. Conforme
observou Mowlabocus (2007), a consequência disso é que os corpos passam a ser lidos a partir
dos ideais da pornografia que, por sua vez, torna-se a narrativa no interior da qual esses serviços
devem operar para serem reconhecidos.
Em 2017, como aluno visitante, tive a oportunidade de participar durante um período
de 6 meses das atividades coordenadas pelo Professor Thomaz Drabowitz junto ao
Departamento de Estrutura e Mobilidade Social, na Faculdade de Economia e Sociologia da
Universidade de Lodz, na Polônia. Além da experiência acadêmica, esta foi uma oportunidade
rica para que eu pudesse refletir sobre meus argumentos a respeito dos serviços comerciais de
busca por parceiros online contrastando os usos a partir de dois contextos culturais
significativamente diferentes, a saber, o brasileiro e o polonês.
De volta ao Brasil, prossegui com as observações e entrevistas. Nesta etapa da
pesquisa, meus esforços se guiaram em torno de formar uma compreensão sobre a relação entre
os usos dos Apps e o espaço físico das cidades. Passei a observar com mais atenção o modo
como os sujeitos faziam determinados usos em lugares específicos. Perguntei-me se as pessoas
usavam os aplicativos em bares, parques e festas; se usavam mais durante o dia ou à noite; se
durante os dias da semana ou aos finais de semana e sobre em quais horários o uso era mais
frequente. A princípio minha intenção era verificar se e como os usos dos Apps alteravam ou
não a dinâmica das interações sociais em locais públicos e como as dinâmicas sociais dos
espaços físicos moldavam os usos.
Em certa ocasião, chamou minha atenção o comentário feito por um rapaz sobre como
a presença dos aplicativos atrapalhava a paquera face a face tanto em espaços públicos, quanto
nos espaços privados. Essa afirmação despertou meu interesse porque, do modo como eu
entendia, ao menos em tese, os ambientes “gayfriendly” seriam mais propícios aos encontros
entre pessoas do mesmo sexo, o que acabaria tornando dispensável o aplicativo20.
Conversando com meus interlocutores em busca de informações que me permitissem
historicizar a busca por parceiros no interior, descobri que em quase todas as cidades, até
mesmo nas menores, determinados locais eram por eles reconhecidos como “pontos de
pegação”. Assim, descobri os banheiros públicos, em geral localizados em praças e rodoviárias,
eram corriqueiramente frequentados por homens em busca de sexo casual. Observar os espaços
físicos colocou o sexo casual sob outra perspectiva. Minha interpretação foi reposicionada não
mais para entender como as mídias produzem o sexo ocasional e sem compromisso - aliás, uma
leitura fundada no determinismo tecnológico -, mas com o objetivo de compreender de que
maneiras a socialidade em torno do sexo passou a ser atualizada e recriada no contexto das
mídias digitais.
Os locais de pegação revelaram um tipo específico de busca, que combina estratégias
on e offline: em geral, os homens ficam parados em torno dos pontos enquanto conversam pelos
aplicativos e, só depois de arranjado o encontro, atravessam a porta do banheiro. Diferente do
trottoir descrito por Néstor Perlongher, nesses espaços, os homens já não circulam pelo
território buscando potenciais parceiros, mas o fazem escrutinando e mapeando os contatos ao
redor por meio dos aplicativos.
Pesquisadores e pesquisadoras brasileiras da área de sexualidade, com atenção ao
contexto tecnológico que se apresentava, rapidamente perceberam que a internet havia se
convertido em
um espaço privilegiado para essa deriva, parece mesmo intensificá-la, ramificando-se
por links intermináveis que permitem experimentos e experiências orgásticas e
transgressoras, por um lado, e encapsuladoras, por outro. Nas ruas, como na rede, os
espaços também estão marcados. No ambiente difuso e anárquico da web velhos
códigos se reinventam para falar do negócio do desejo. As territorialidades marginais
de Perlongher estendem-se agora dos bares aos blogs; das praças aos chats; dos
mictórios públicos às interações sexuais pelo MSN, mas, sobretudo, da São Paulo
analisada pelo pesquisador à todo país (MISKOLCI e PELÚCIO, 2008, p. 17).
20 Vale destacar que observações semelhantes foram reiteradas pelo trabalho de Miskolci (2017) que, ao analisar
o contexto de San Francisco, mostra que, para os homens gays que experienciaram o contexto anterior à
internet, o aplicativo era visto como responsável pela derrocada do “bar gay”.
Em cidades menores, não sendo inexistente, o número de equipamentos públicos é
proporcionalmente reduzido, o que também inclui as praças e banheiros públicos. Como
consequência, o número de pontos disponíveis para os encontros também acaba diminuindo
consideravelmente e, de maneira inversamente proporcional, parece haver maior risco de
encontrar pessoas conhecidas desprovidas dos mesmos propósitos. Levando em conta o caráter
estigmático que envolve esses encontros, a recorrência na escolha dos banheiros das rodoviárias
como ponto pode ser explicada por ser nessa região onde se concentra o maior número de
transeuntes desconhecidos. Acompanhando os espaços físicos foi possível entender como as
dinâmicas de mobilidade e autonomia são produzidas articulando territorialidades.
Com o passar do tempo, percebi que esses lugares, com certa frequência, congregavam
homens mais velhos, sujeitos remanescentes de uma época anterior aos aplicativos, e os coloca
em contato com uma geração de nativos digitais em busca do mesmo propósito: sexo casual.
Entretanto, em locais públicos, a presença de seguranças e funcionários de empresas
privadas, que administram os terminais rodoviários e os banheiros, cria um ambiente de
constante vigilância e punição. Durante minhas observações presenciei episódios abusivos
protagonizados por seguranças e funcionários de empresas públicas e privadas que, após terem
flagrado alguma situação considerada suspeita envolvendo homens nos banheiros, expuseram
os sujeitos às situações de vexatórias e de humilhação pública. Algumas dessas situações
poderiam ser classificadas como verdadeiros linchamentos morais.
A despeito do policiamento feito por agentes públicos e privados, além de
empreendedores morais, os territórios de pegação parecem ter conservado ao longo do tempo
o mesmo aspecto de “região moral” (PARKER, 1979), isto é, uma relação com a ordem moral
da cidade que vincula o plano do espaço geográfico à socialidade, mas que ganhou novas cores
com a tecnologia. Recuperar esses elementos particulares permitiu traçar linhas de
compreensão sobre como se deu a formação e as consequências da implementação das
tecnologias digitais no contexto em tela.
As observações offline foram fundamentais para relacionar como essas tecnologias
digitais são articuladas às atividades cotidianas. Essas situações trouxeram novos elementos
para pensar sobre como as coisas não são feitas apenas porque as pessoas agora possuem um
telefone celular ao alcance da mão.
Durante o ano de 2018, diminui a regularidade das observações, assim como a
realização de entrevistas e passei a me dedicar à publicação de artigos e ao processo de
estruturação e escrita do texto final da tese.
2 UMA ETNOGRAFIA DOS USOS SOCIAIS DAS MÍDIAS DIGITAIS
Gerir riscos, [em contextos assim], passa pelo controle das informações, seja
monitorando sua circulação (cuidados com senhas para impedir o acesso a seus
equipamentos e perfis); o que exige também cuidado relativo à identidade, por isso a
adoção de nicks e a relativa parcimônia na divulgação de fotos pessoais; vigilância
sobre o que se informa e como se faz isso, por exemplo, atentando para a escrita a fim
de evitar mal-entendidos; regulação do volume de dados pessoais divulgados e
compartilhados, acumulando e sistematizando informações sobre as outras pessoas de
modo a garantir uma circulação pessoal mais confortável entre os meios, seja a
ferramenta de mensagem do site, o e-mail, o MSN, ainda ativo na época desta
pesquisa, o skype, bem como as SMS para celulares (no caso, para não confundir as
mulheres com quem estão se comunicando, trocando seus nicks ou fazendo confusões
relativas a eventos vividos ou narrados, entre outras).
21 No original: “El uso social simboliza una forma de comportamiento convencional y mecánico que
institucionaliza o pauta nuestras acciones y conductas individuales”.
espanhol José Ortega y Gasset, que postula o uso como um elemento constitutivo do social,
Honrubia apresenta sua proposta de uma antropologia dos usos sociais.
Os usos, explica o antropólogo, estão arraigados na coletividade e, por isso, também
possuem um caráter coercitivo, que se expressa em configurações de usos mais fortes ou mais
rígidos em contraste com usos mais difusos. A diferença entre um e outro se estabelece apenas
em relação ao grau de coerção social porque os usos reiteram um determinado repertório de
ações, que inclui ideias, normas e técnicas sobre como agir diante da enorme diversidade de
situações que definem a experiência social. Desse modo, a sociedade pode ser entendida como
um conjunto de sujeitos que coexistem submetidos à pressão de um certo sistema geral de usos
(HONRUBIA, 2010, p. 7).
De acordo com Honrubia (2010, p. 9), os usos sociais são elementos constituídos
intersubjetivamente porque, embora estejam situados na dimensão do comportamento
individual e possam nos parecer próprios, são coletivamente moldados e, portanto, não podem
ser tomados como se fossem exclusivos ou originais de um sujeito.
[Os usos] São ações que os homens realizam, mas, estritamente falando, não são
humanas. Os usos são irracionais. Eles são realidades impessoais. Dos usos, ninguém
é um sujeito criador responsável e consciente. Como a vida social ou coletiva consiste
em uma rede de usos, podemos concluir que essa vida não é humana. É algo
intermediário entre a natureza e o homem. É uma quase-natureza e, como a natureza,
irracional, mecânica e brutal” (HONRUBIA, 2010, p. 4)22.
Honrubia sustenta que o uso é o local onde se diluem as fronteiras entre o indivíduo e
a coletividade, de modo que não há um autor ou indivíduo criador e consciente por trás do uso.
Deste modo, pode-se entender como os usos configuram os contornos do mundo social na
medida em que estão intrinsecamente conectados com a produção de sentido. Os usos
constituem técnicas vitais para os costumes e imprescindíveis para guiar as condutas morais.
Sendo assim, quanto mais institucionalizado for um tipo de uso tanto mais acentuado tende a
ser o seu caráter de tópico, isto é, como tema ou forma de expressão legitimada.
Porém, diferentes usos não são moldados apenas pelas normas sociais. De certo modo,
essas normas resultam do seu entrelaçamento com uma ecologia legal que regula aquilo que é
possível e impossível dentro de cada plataforma. Desse modo, plataformas como Twitter, por
22 No original: “Los usos sociales suscitan acciones cuyo preciso contenido nos es ininteligible. Son acciones que
ejecutan los hombres pero que, en rigor, no son humanas. Los usos son irracionales. Son realidades
impersonales. De los usos nadie es sujeto creador responsable y consciente. Al consistir la vida social o
colectiva en un entramado de usos, podemos concluir que esa vida no es humana. Es algo intermedio entre la
naturaleza y el hombre. Es una cuasi-naturaleza, y, como la naturaleza, irracional, mecánica y brutal”.
exemplo, permitem a exposição de imagens de pornografia, desde que o usuário informe as
características do conteúdo partilhado em seu perfil. Com um regulamento mais flexível e
filtros de segurança mais eficazes, a plataforma se torna atrativa para exibicionistas, atores
amadores e atores profissionais, garotos de programa e uma variedade de outros profissionais
do mercado do sexo, que buscam a rede com a intenção de promover seus trabalhos.
Por outro lado, o foco sobre os serviços de redes sociais geolocativos permite
questionar quais são as formas atualmente disponíveis para imaginar e questionar a vida do
desejo e suas expressões públicas dentro, mas sobretudo fora das metrópoles.
Na literatura sociológica e antropológica, as cidades contemporâneas tendem a ser
caracterizadas como lugares dinâmicos, complexos e mais ou menos abertos à experimentação,
que são moldados por fluxos econômicos, de pessoas, coisas e informações através de espaços
geográficos arquitetônicos contrastantes (CASTELLS, 1995; SASSEN, 1998; SOJA, 2000).
Para além da “relação sinérgica” entre pessoas e tecnologias (HARDEY, 2007), novas
formas de segregação também emergem da reconfiguração da cidade por meio de conexões
digitais (MITCHELL, 2000). Tais problemáticas ainda não foram devidamente discutidas ou,
no limite, essas formas de segregação têm permanecido à margem da Teoria Social, sobretudo,
quando são tratadas como questões privadas ou de foro íntimo.
No que se refere à sexualidade e suas convenções, pouco foi discutido sobre as práticas
homoeróticas fora dos grandes centros urbanos. Por vezes, essa lacuna foi preenchida de
maneira apressada, associando a vida urbana à um maior grau de liberdade decorrente,
principalmente, da possibilidade de anonimato e da impessoalidade como sendo características
refratárias à vida na metrópole. Essa associação guarda tendência ou propensão à igualdade
tipicamente associadas ao modo de vida urbano, o que de fato pode ser questionado, sobretudo,
considerando os episódios de violência que diariamente se sucedem em países como o Brasil.
A diversidade de condições de vida e as diferenças entre as metrópoles nacionais
permitem inferir que tratamos mais de ideologias liberais importadas e apressadamente
adaptadas aos contextos específicos, do que de uma versão descritiva do que efetivamente se
passa nessas localidades. Minha sugestão é que métodos qualitativos de investigação, quando
situados, podem nos ajudar a descompactar as presunções sobre usuários e sobre as tecnologias,
bem como sobre a localidade. Creio que esse recurso torna possível a distinção entre um
comportamento comunicativo mais geral ou social, dos comportamentos específicos em uma
plataforma digital.
Ao assumir uma postura metodológica atenta aos usos pretendo também esmiuçar as
presunções sobre as normas sociais, as condições de vida e as preocupações sociais sobre a
tecnologia, bem como sobre as suas adequações, que cercam as relações que meus
interlocutores estabelecem com as interfaces dos Apps.
As tecnologias móveis oferecem novas possibilidades para as pessoas atuarem na vida
cotidiana espacialmente organizada (WEILENMANN, 2003; AMIN e THRIFT, 2002). O
tratamento dado ao público estruturado em rede e a sua caracterização constitui uma questão
fundamental para escapar das armadilhas do determinismo, seja ele tecnológico, social ou
cultural (LIGHT, 2013). Minha intenção é compreender como essas tecnologias
comunicacionais são mobilizadas pelos usuários, como elas atuam regulando os corpos, os
afetos, as fantasias e os desejos através da orientação (ou desorientação) do contato co-
localizado.
Os Apps destinados à busca por parceiros emergem em um momento histórico no qual
o gênero e a sexualidade estão entrelaçados a uma cultura de “startup” ativamente empenhada
em produzir “socialidade” (VAN DIJCK; POELL, 2013). O empenho por parte das empresas
de tecnologia é produzido ambientado em um competitivo mercado destinado a fazer do hookup
um negócio lucrativo. Pode-se questionar em que medida a expansão dessas tecnologias tem
colaborado para o gradual reconhecimento de gays e lésbicas, sujeitos econômicos ambientados
em uma cultura de consumo. Os aplicativos móveis constituem também um campo profícuo
para estender o debate sobre o tema do reconhecimento precário a partir do consumo.
Redes sociais digitais são construídas para ativar impulsos relacionais e, no caso
específico dos Apps, esses impulsos são ativados tomando a espacialidade e a sexualidade como
critérios.
A etnografia e o trabalho de campo não são a mesma coisa. Um exemplo disso pode
ser observado a partir de um desenho de pesquisa que tome o trabalho de campo etnográfico
como uma técnica empírica de acesso às fontes e à coleta de material, sem necessariamente
incorporar todos os princípios tradicionalmente associados à etnografia. A pesquisa etnográfica,
grosso modo, implica em uma estratégia analítica específica para a coleta e para a interpretação
dos resultados do trabalho de campo.
A experiência etnográfica é sempre situada e submetida a um tipo de escrutínio
analítico atento aos fatos que ocorreram durante a pesquisa. Isso implica que, se por um lado,
os dados são recolhidos, com frequência, por observação, por outro lado, o campo é uma
abordagem que resulta de uma “mentalidade analítica”. Isso faz da etnografia mais do que uma
mera descrição, já que a mentalidade analítica informa o modo como os dados são teoricamente
compreendidos e analisados.
Os estudos etnográficos historicamente se interessaram pelas práticas socioculturais e
pelos significados que essas práticas adquirem para quem as desempenha. As descrições e as
análises etnográficas mantêm em comum uma explicação da vida social que inclui a perspectiva
dessa coletividade. Eduardo Restrepo (2015) sustenta que a etnografia é um enquadramento
metodológico que busca entendimento capaz de sustentar um conjunto de técnicas de pesquisa
que dão ênfase à descrição do que uma coletividade pensa e faz.
A etnografia pode ser definida como um tipo de descrição que articula representações
(pensamentos) e práticas sociais (atividades culturalmente informadas desempenhadas pelas
pessoas) em busca de explicar as lógicas que constituem a vida social. Dito de outro modo, uma
atividade econômica, uma instituição, um programa, um ritual ou qualquer variável relevante e
suscetível de ser avaliada com tais descrições pode ser tomada como objeto de investigação. O
enquadramento etnográfico, portanto, possibilita o entendimento de determinados aspectos da
vida social, sem perder de vista como as pessoas concebem esses aspectos, ou seja, trata-se de
uma perspectiva analítica que inclui o ponto de vista êmico.
Restrepo argumenta que, no enquadramento etnográfico, técnicas, metodologias e
métodos operam em planos diferentes, ou seja:
23 Um exemplo elucidativo a esse respeito pode ser extraído a partir do que ocorreu com o aplicativo “Lulu”,
lançado em 2013. O diferencial desta plataforma foi permitir homens fossem classificados e avaliados por
mulheres. Após 2 meses, o uso do aplicativo foi proibido no Brasil em meio a polêmicas e discussões sobre os
limites da privacidade e o sexismo na sociedade brasileira, que resultaram em ações judiciais sobre danos
morais. Para uma abordagem antropológica a respeito do tema, ver: ALVAREZ, Illana Lopes. Eles na pele
delas: dilemas acerca do aplicativo Lulu. Revista Florestan Fernandes, v. 4, n. 6, pp. 49-69, 2017. Disponível
em: <http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/article/view/179>. Acesso em: 10 dez. 2017.
da pesquisa, da seleção das técnicas e dos processos de coleta e análise de dados? Quais são as
consequências desta presença para a prática etnográfica? Quais as implicações do digital para
a logística do trabalho etnográfico?
A presença da tecnologia como mediador para as relações sociais leva às últimas
consequências os pressupostos que orientam a construção das categorias conceituais e analíticas
que dispomos para classificar e analisar as interações sociais. Em outras palavras, as mídias
digitais contribuem tornando visíveis os limites das categorias analíticas que foram forjadas em
um mundo marcado por interações face a face quando as mobilizamos com o objetivo de
entender um mundo conectado.
Não se trata de dizer que então precisamos de teorias totalmente novas, tampouco
afirmar que esta ou aquela abordagem teórico-metodológica tem pouca serventia, mas,
conforme argumenta a socióloga Noortje Maares (2017), a questão é considerar se e como a
presença das materialidades digitais implica em mudanças nas relações entre tecnologias e vida
social; entre conhecimento, tecnologia e sociedade.
Materialidades digitais integram as relações humanas e são também integradas às
relações. Os recursos técnicos e as funcionalidades oferecidas pelas interfaces que se
apresentam nos dispositivos com os quais nos envolvemos cotidianamente evidenciam outros
aspectos às relações sociais. Por exemplo, a possibilidade de co-presença trazida pelos grupos
formados a partir de aplicativos de mensagens instantâneas, como WhatsApp, tornam possível
a interação simultânea e coletiva de mais de uma centena de usuários individuais, algo até então
impensável considerando os recursos técnicos dos quais se dispunha.
O adjetivo digital não busca a definição de uma nova etnografia. O se apresenta é a
possibilidade de compreender as implicações decorrentes da expansão da mediação tecnológica
por áreas diferentes da vida social, sem deixar de lado sem deixar de enfrentar os desafios que
neste contexto estão colocados para o trabalho etnográfico (Pink et al., 2016).
O que se propõe é uma aproximação reflexiva sobre o modo como a tecnologia
atravessa a prática de pesquisa revelando o impacto da presença do digital nos contextos com
os quais estamos trabalhando. Cabe reiterar que a ênfase no digital não se caracteriza pela
primazia do online como uma abordagem descolada do mundo offline, mas marca o modo como
a mídia está integrada ao cotidiano das pessoas, o que inclui também o cotidiano do
pesquisador.
O sociólogo Klaus Bruhn Jensen (2011) explica que a comunicação digital se
assemelha a interação face a face em diversos aspectos e, em alguns deles, as semelhanças são
até mais profundas do que com a comunicação de massas. Aliás, a própria ideia de comunicação
foi informada, durante muito tempo, pelas mídias até então disponíveis. A comunicação, diz
ele, só foi pensada como categoria geral e atividade humana concomitante ao desenvolvimento
dos meios eletrônicos, a partir da última metade do século XIX, começando pelo telégrafo (cf.
JENSEN, 2011, p.45). A proposta de uma etnografia digital, portanto, não é o mesmo que o
emprego de métodos e técnicas de pesquisa exclusivamente tecnológicos, tampouco pode ser
reduzida a uma mera digitalização dos métodos (MARRES, 2017).
Os métodos e as técnicas mobilizados em minha experiência etnográfica foram ser
pensados e acionados tendo em vista as questões de pesquisa que eu buscava responder. Devo
dizer que minha compreensão sobre o trabalho etnográfico parte de uma perspectiva aberta e
relacional. Minhas estratégias e reflexões são produzidas considerando o local que a tecnologia
ocupa na vida dos sujeitos com os quais interagi durante a pesquisa. O digital ganha relevância
e sentido a partir dos usos sociais e das conexões que estabelece com o contexto em que vivem
meus interlocutores e como este artefato permite relacionar o contexto micro com
problemáticas mais amplas.
O fato de que a rede digital seja um instrumento facilitador do contato e do intercâmbio
de informações não quer dizer que essa seja a solução para todas as pesquisas. Em cada estudo
deve-se ponderar, por exemplo, se abordar um determinado público a partir de um serviço de
rede social digital é ou não melhor maneira de realizar a pesquisa; se a tecnologia é relevante
para o grupo estudado e para a questão que a pesquisa busca responder (PINK et al., 2016).
A etnografia é, então, uma forma de conhecimento que opera no marco das vertentes
interpretativas da investigação social. Em sua acepção clássica, o trabalho etnográfico remonta
aos paradigmas fenomenológicos, compreensivos e interpretativos. Essas diferentes
denominações são empregadas de acordo com a ênfase que se pretende dar a alguma de suas
dimensões constitutivas. Entendo que a compreensão de que as ideias que as pessoas têm sobre
o mundo social interagem com o que acontece nele é o ponto de partida assumido pela pesquisa
etnográfica para dar conta dos sujeitos considerando, ao mesmo tempo, a produção e a
reprodução do social (FONSECA, 1999).
Marres (2017, p. 32) observa que, independente da abordagem adotada, a pesquisa
social se caracteriza por ser intrinsecamente interativa, uma vez que conhecimento e vida social
se influenciam mutuamente. O digital não apenas evidencia a emergência de novas fontes ou
instrumentos de pesquisa, mas tem o potencial de deslocar as próprias relações que constituem
a investigação social (p. 35).
Um balanço sobre as pesquisas etnográficas envolvidas com a presença da tecnologia
no Brasil contemporâneo permite verificar que o digital reconfigurou as relações entre
pesquisadores/as e pesquisados/as, entre a pesquisa e os contextos nos quais ela é aplicada.
(CARVALHO e CARRARA, 2015; PELÚCIO, 2015; DO PRADO, 2015; NASCIMENTO,
2016; SILVEIRA, 2017; FACIOLI, 2017; PRADO, 2015).
A consolidação de uma percepção coletiva a respeito da relevância cultural, política e
econômica das mídias digitais parece ter se tornado um fato inegável. No entanto, ainda
precisamos saber para quem, como, onde, de que maneiras e por quais razões ela importa
(STINGL, 2016). Perceber essas nuances exige um olhar crítico sobre as presunções estreitas
sobre uma possível universalidade da experiência digital, o que torna improvável o surgimento
de uma “teoria geral” nesse campo24.
Conforme Marwick (2013) observa, métodos e técnicas qualitativas como entrevistas,
observações etnográficas e análises de conteúdos constituem fontes de dados que nos permitem
avançar além da descrição revelando sobre como o digital afeta a vida, as normas e as práticas
sociais. Também podem colaborar desmistificando as presunções individualistas sobre as
tecnologias e sobre o comportamento comunicativo ou de mídia social mais geral permitindo
distingui-lo do comportamento específico de uma plataforma digital.
Com relação ao método etnográfico, uma variedade de estratégias que tem sido
empregada de acordo com os objetivos de cada investigação. Uma vez que a etnografia consiste
em uma prática de pesquisa que está arraigada em diferentes campos de investigação, as
estratégias de abordagem são produzidas buscando adequá-las aos contextos e aos interesses de
acordo com cada pesquisa. No campo das Ciências Sociais, uma síntese possível é oferecida
pela antropóloga Cláudia Fonseca (1999, p. 59) para quem “o método etnográfico é visto como
o encontro tenso entre o individualismo metodológico (que tende para a sacralização do
indivíduo) e a perspectiva sociológica (que tende para a reificação do social)”.
24 Siddhartha Kara (2017) retrata a centralidade do trabalho escravo no mundo contemporâneo na produção das
empresas de eletrônicos. Em sua análise sobre o caso das minas de cobalto da República do Congo, além de
nos aproximar do trabalho desumano cotidianamente desempenhado por mulheres e crianças na extração das
pedras, o cronista também revela as diversas formas pelas a tecnologia pode se fazer presente alterando as
experiências cotidianas. O cobalto, elemento químico de alta toxidade, encontra-se em todas as baterias
recarregáveis, em especial naquelas feitas de íons de lítio, indispensáveis para o funcionamento de
smartphones, tablets, laptops e veículos elétricos; e também é empregado na fabricação de superligas
necessárias para motores a jato, turbinas a gás e alguns tipos magnéticos de aço. O trabalho de extração deste
minério é especialmente degradante e perigoso, sobretudo nas partes inferiores das cadeiras de produtivas, o
que nos confronta com os limiares, paradoxos, contradições e ambivalências de que os processos tecnológicos
estão imbuídos.
Em suas versões mais alegóricas e tradicionais, os estudos etnográficos de campo
foram realizados por um longo período de tempo, geralmente por anos, permitindo ao
pesquisador “imergir na cultura”, a partir do convívio cotidiano com os sujeitos (nativos). A
etnografia, por sua vez, emerge como um esquema complexo envolvendo enquadramentos
epistemológicos, técnicas metodológicas e práticas de escrita. Como é próprio do conjunto de
práticas e pressupostos que orienta a pesquisa etnográfica, as abordagens iniciais foram
reconsideradas e reconfiguradas em diferentes épocas e sob diferentes domínios da vida social.
Um olhar retrospectivo permite constatar que a relação entre a tecnologia e a pesquisa
etnográfica não é nova. O uso de câmeras fotográficas para registrar imagens e de cilindros
fonográficos usados para gravar entrevistas estiveram disponíveis e ao alcance dos
pesquisadores pelo menos desde o século XIX. Isso nos leva a considerar que a novidade em
questão não se resume ao emprego de recursos tecnológicos na pesquisa de campo, mas o fato
de que os recursos tecnológicos são empregados pelos sujeitos que vivem em um mundo de
relações digitalmente mediadas e em relações que não seriam possíveis sem o suporte oferecido
pela materialidade digital. Dito de outro modo, se há algo de novo é que estamos lidando com
campos parcial ou inteiramente construídos pela tecnologia.
Há mais de três décadas etnógrafos e etnógrafas debatem, a partir de variadas
perspectivas - e sem um consenso -, a concepção de que o campo é, em última instância, a
compreensão de um “espaço delimitado” que contém uma “cultura” (WAGNER, 2010;
CLIFFORD, 1998; MARCUS, 1995; STRATHERN, 1996; INGOLD, 1996; APPADURAI,
2004). Tais abordagens produzem uma leitura crítica dessa compreensão do campo refletindo
sobre os efeitos dessa concepção sobre as narrativas antropológicas. De um ponto de vista
prático, pode-se questionar em que medida a alegoria do campo como um espaço delimitado
foi uma presunção alimentada experiências e pelas narrativas resultantes de pesquisas em
pequenas comunidades (MARCUS, 1995).
Não é raro que colegas digam que estão “indo a campo” ou “estão em campo” como
uma parte separada do processo de pesquisa. Nesse ponto, o que se evidencia é uma percepção
do campo como algo desconectado do restante do processo de investigação. Restrepo (2015)
lança críticas incisivas a essa compreensão alegando se tratar de uma postura antropológica
extrativista, em que o pesquisador vai até o campo extrair os dados que convém ao seu problema
de pesquisa. O antropólogo também assevera que, em casos assim, frequentemente, a influência
exterior, ou melhor, daquilo que é tomado como externo ao objeto, passa a ser tratado como um
conjunto de questões secundárias dentro do processo de pesquisa.
No caso de um campo construído a partir do digital nenhuma dessas duas posturas se
torna sustentável. Em primeiro lugar, porque ao selecionar um objeto de estudo como um site,
um aplicativo ou uma plataforma, invariavelmente, somos convidados a uma posição de
imersão. Projetar um recorte desse tipo envolve que nos tornemos também usuários. Precisamos
criar e manter contas, perfis ativos e à disposição dos nossos interlocutores, de tal modo que
essas ferramentas passam a integrar o nosso cotidiano. Além disso, a adoção da segunda
posição, que isola os fatores externos como secundários, oblitera os processos sociais que
moldam a própria tecnologia em questão e que constituem, ao fim e ao cabo, a materialidade
com a qual a pesquisa tem de lidar (HSU, 2014).
Ao isolar um conjunto de relações sociais a partir de uma plataforma, site ou aplicativo,
não podemos desconsiderar os processos legais, econômicos e estatais que moldam a interface.
Esses não são fatores secundários. Deixar de fora o papel da infraestrutura da interface
compromete não apenas a descrição do uso, mas também a compreensão que fazemos da
própria tecnologia.
A despeito das controvérsias que existem em torno do tema, permanece o fato de que
a definição de espaço foi percebida como um elemento crucial para o enquadramento daquilo
que faz ou não parte do campo etnográfico. Desde o início, o campo é uma das primeiras
escolhas que organizam o desenho da pesquisa. Fora do digital, com frequência, o espaço
escolhido delimita o ponto a partir do qual será desenvolvida a observação participante. Essa
operação de recorte envolve um ato de exclusão que implica na separação entre aquilo que a
pesquisa cobre e o que ela deixa de fora.
O campo é sempre “construído” por um processo de abstração que envolve a exclusão
e a inclusão de relações com vistas aos objetivos da pesquisa. O campo é sempre uma produção
criativa e nunca uma descoberta. Talvez, por isso, para muitos pesquisadores e pesquisadoras,
a espacialização do campo atue reiterando a percepção alegórica do campo como algo que está
lá (MARCUS, 1995).
Nas últimas décadas, o debate sobre a globalização e sua articulação com os meios de
comunicação e informação adentrou este conjunto de questões deslocando as presunções que
sustentavam uma ideia estacionária de cultura - como algo que está lá. O resultado foi uma
compreensão da cultura em fluxo (CLIFFORD, 1998; MARCUS, 1995; APPADURAI, 2004;
CASTELLS, 1999). Os movimentos de pessoas, objetos, ideias, mídias e do próprio
pesquisador em campo tornaram visíveis novos insights sobre novos objetos de investigação
(BURRELL, 2009). As críticas levantadas por estudos contemporâneos ofereceram um
caminho profícuo para a fundamentação de uma compreensão contemporânea de que a cultura
é situada e não como estando contida em um espaço (MARCUS, 1992, WAGNER, 2010).
George Marcus (1995) inovou ao tratar a problemática da configuração local do campo
sugerindo uma variedade de modos possíveis de estabelecer a coerência da pesquisa sem ceder
à fixidez do local. Burrell (2009) sustenta que os argumentos de Marcus podem ser profícuos
para as pesquisas com mídias digitais, pois mostram a centralidade do movimento para a prática
social e permitem verificar que os processos sociais podem ocorrer em grandes distâncias
articulando entidades distintas.
Marcus (1995), a partir de uma análise crítica dos paradigmas canônicos da
antropologia, oferece uma reflexão sistemática sobre os contextos em que a etnografia se
realiza. Ao desconfiar do pressuposto de que as situações pesquisadas se desenrolam em
comunidades isoladas e fechadas, Marcus recorre à história para mostrar como a integração de
mercados, esquemas de diferenciação social e de interação dos “nativos” com diferentes grupos
de referência foram elementos artificialmente apagados, mas que estiveram presentes desde as
primeiras abordagens etnográficas. Esse giro na compreensão da cultura é especialmente
produtivo para os estudos com, nas e sobre as materialidades digitais.
Os processos de modernização, inovação e desenvolvimento tecnológico e a sua
relação intrínseca com as interações mediadas pelas interfaces digitais contribuem para a
diversificação e diferenciação de práticas sociais, atividades, identidades e associações. Em
termos metodológicos, a proposta de Marcus parte de uma estratégia de investigação que
envolve práticas de pesquisa multissituadas produzidas a partir da ênfase na ação social. Os
argumentos deste autor também colaboram para colocar em xeque a noção de “informante” à
medida em que deixa visível o processo de interlocução e articulação implícito ao trabalho
etnográfico.
O caso das etnografias envolvidas com materialidades digitais alimenta um intenso
debate em torno da reestruturação teórico-metodológica do fazer etnográfico no mundo
contemporâneo. Ainda que a etnografia digital não seja considerada fundamentalmente
diferente da etnografia tradicional, autoras como Weilenmann (2003) observam que as
multiplicidades - de sentidos, modalidades, fontes de informação, linguagens, categorias, tipos
de dados e nos quadros de análise - estão intrinsecamente vinculadas à conjuntura tecnológica
atual. Em todos esses aspectos o que se revela é que a tecnologia está subjacente a uma mudança
profunda, que incide tanto sobre as formas como também sobre os conteúdo da vida social.
Na última década, autores como Scott Lash (2007a, p. 18) perceberam que as relações
e as interações sociais contemporâneas não são apenas mediadas por softwares e códigos
digitais, elas são cada vez mais constituídas por eles, ou seja, o que era um meio se converteu
numa coisa, um produto. Mais tarde, revisitando algumas de suas proposições mais antigas,
Lash (2006) reposiciona seu argumento afirmando que, atualmente, a informação deixou de ser
apenas um meio pelo qual entendemos o mundo e se converteu também em um agente ativo na
sua construção. O digital passou a ser entendido como uma questão ontológica extrapolando o
caráter meramente epistemológico (LASH, 2007b).
A condição interativa que caracteriza as mídias digitais também afeta nossas ideias
sobre participação (DEAN, 2005), o que tem reflexos sobre os limites de nossos horizontes de
aspiração (FACIOLI, 2017). As pesquisas contemporâneas que se debruçam sobre analisando
e teorizando sobre os deslocamentos resultantes da articulação entre pessoas e interfaces
tecnológicas invariavelmente se deparam com questões sobre os modos como praticamos,
incorporamos e elaboramos as lições que aprendemos com o campo. Se a reflexividade é um
componente básico da etnografia e do seu processo de interpretação, assim como a
intertextualidade, então a análise das condições de produção da intersubjetividade e a crítica
cultural não podem deixar de considerar nosso entendimento sobre o desenvolvimento dessas
tecnologias que sustentam o nosso trabalho (BURRELL, 2009)
A popularização dos computadores e, mais tarde, o surgimento da internet, no final da
década de 1990, não contribuíram para reposicionar as problemáticas circunscritas em torno os
fenômenos e o espaço, mas também deslocaram as relações com o tempo. Em sua análise sobre
as condições da visibilidade mediada pela tecnologia, John B. Thompson (2008) comenta que
ao libertar as interações sociais da co-presença, as tecnologias da informação e da comunicação
colaboraram para a ruptura entre o vínculo que até então parecia indissociável entre a presença
física e a experiência espacial. A comunicação e a tecnologia da informação deslocaram os
limites das restrições espaço-temporais na comunicação e na transmissão de informação.
Em termos históricos, o método etnográfico foi pensado e produzido com base em um
conjunto de interações sociais entre sujeitos que se relacionavam face a face. Desse modo,
pode-se argumentar que os fundamentos da interação sincrônica definiram e caracterizaram a
interação social tendo em vista que sujeitos se relacionam e se comunicam em uma situação de
co-presença, na qual, presumivelmente, podem ver e ouvir uns aos outros, enviando e recebendo
informações de forma simultânea. Entretanto, os novos meios digitais permitem um tipo de
interação remota que pode ser tanto sincrônica, quanto assíncrona, de modo que os participantes
envolvidos em uma interação não dependem da presença ao mesmo tempo e em um mesmo
lugar para que possam interagir.
Thompson (2008) sustenta que um dos deslocamentos mais profundos promovido pela
presença das tecnologias da informação e da comunicação foi a liberação das interações face a
face das suas propriedades espaço temporais. Isto é, trata-se de um tipo de comunicação e de
interação na qual o campo de visão é espacialmente ampliado e pode ser alargado
temporalmente, o que traz consequências para as interações. Ainda que deixar um bilhete em
um lugar para alguém possa ser um exemplo de comunicação assíncrona - em que a localidade
permanece e a temporalidade é deslocada -, a particularidade produzida pelas mídias digitais é
que permitir diferentes níveis de sincronicidade na comunicação mediada. Os diversos serviços
digitais para a comunicação, como WhatsApp, Skype, Facebook, Twitter, e-mail, apenas para
citar os mais conhecidos entre os brasileiros, alteraram radicalmente as possibilidades de
interagir de forma sincronizada à distância.
Burrell (2009) observa que a definição dos objetos e temas que ocupam a agenda de
pesquisa sobre as mídias digitais tendem a ser circunscritos a partir de uma rede de relações,
geralmente, estabelecidas em torno de uma plataforma. Para esta autora, o campo pode também
ser definido como rede quando incorpora espaços físicos, virtuais e imaginados de maneira
articulada. A rede se constitui um recurso de localização para a pesquisa e opera como uma
bússola que situa o pesquisador diante do fluxo ininterrupto característico das relações online.
A partir de uma analogia com o terreno espacial, a Burrell propõe uma abordagem metodológica
para o tema.
Assim como ocorre com o campo de pesquisa em sua versão tradicional, o campo em
rede pode ser definido como um conjunto heterogêneo e articulado, que resulta de uma
construção da pesquisa. Em outras palavras, a rede é uma abstração sobre as relações entre
diferentes sujeitos, artefatos e entidades. Da mesma forma que nas pesquisas tradicionais, a
abordagem proposta por Burrell se preocupa também com as relações logísticas da pesquisa,
que implicam em etapas práticas, inclusive, de escrita. O termo “campo”, portanto, refere-se
tanto às características espaciais de uma pesquisa quanto ao período em que os processos sociais
estudados ocorreram.
Em diálogo com Marcus (1995), Burrell fundamenta seu argumento assumindo a
compreensão de que a etnografia contemporânea é um estudo de partes e não de conjuntos
inteiros. Assim, os movimentos dos pesquisadores e pesquisadoras não podem ser executados
como se fossem co-extensivos à forma como o fenômeno social em estudo se estende pelo
espaço. Para Burrell (2009, p. 187) entender que pesquisadores e pesquisadoras estudam partes,
em vez de processos inteiros, é parte do processo de “acomodação logística” da pesquisa.
A noção de rede como instrumento de pesquisa social remete a uma problemática de
vinculação social. Ao que tudo indica, o sociólogo britânico A. J. Barnes (1954) foi o primeiro
a empregar a noção na pesquisa social. O objetivo da pesquisa de Barnes envolvia compreender
o fluxo das relações sociais e as características do contato entre as pessoas na vida cotidiana.
Delimitando sua problemática em torno de uma pequena comunidade o é uma ferramenta de
representação visual do contato entre as pessoas e as razões que sustentam essa ligação.
Enquanto método de reconstituição, a rede social permitia que Barnes identificasse os
vínculos estabelecidos entre as pessoas e como essas relações atravessam a vida cotidiana.
Atualmente há uma variedade de insights desenvolvidos a partir do estudo de Barnes: Marilyn
Strathern (1996) sugere que a imagem da rede é adequada para descrever a maneira como se
pode vincular ou enumerar diferentes entidades sem fazer suposições sobre o nível e sem
estabelecer hierarquias entre elas; Hannerz (1991) sugere que as redes podem ser entendidas
como uma maneira de estabelecer um corte transversal nas unidades de análise convencionais;
Nancy Baym (2011) pontua que o conceito de rede não substitui nem a comunidade, nem o
indivíduo, mas evidencia uma mudança cultural que seria implementada e acelerada pelas
tecnologias da internet; de modo complementar, Burrell (2009) comenta que as redes oferecem
uma oportunidade para o desenvolvimento de uma compreensão não-convencional dos
processos sociais.
A despeito da variedade de proposições, em comum permanece a compreensão de que,
uma das vantagens da rede é possibilidade de construção de uma estrutura visual de relações
que pode ser reconstituída a partir das conexões que os participantes realizam e que são
observáveis.
O trabalho de Christine Hine (2000) representa uma das primeiras tentativas
sistematizadas de uma “etnografia adaptativa”, formulada considerando as situações novas que
se apresentavam com uma vida integrada pela presença das mídias digitais. Esta autora rompe
com o paradigma do ciberespaço ao argumentar que, se querem ser metodologicamente
inovadores, os estudos precisam levar em conta os contextos on e offline de maneira articulada.
Trata-se de uma proposta de etnografia que busca se adequar ao seu objetivo, a saber,
compreender a complexidade da internet.
Inspirado pelo trabalho de Hine, busquei construir um esquema capaz de combinar
técnicas que permitissem construir o campo na articulação entre on e offline em continuidade.
Meus esforços se guiaram no sentido de combinar a observação participante realizada dentro e
fora dos aplicativos às entrevistas e interações on e offline. Também me dediquei à análise dos
perfis produzidos nos aplicativos considerando o conteúdo e sua infraestrutura. Além disso, os
discursos publicitários, as mudanças legais e a interface dos serviços comerciais de busca por
parceiros são analisadas considerando a sua inserção em uma ecologia de mídias mais amplo.
Definir o campo como uma rede é uma estratégia para fazer com que o fenômeno
social se torne visível, colocando-o em primeiro plano contra a complexidade social
do seu enquadramento urbano. O primeiro plano implica em desenhar os contornos
do fenômeno, distingui-lo das atividades concorrentes e intersecções que também
ocorrem dentro do campo espacial, que é definido mais tradicionalmente pelas
fronteiras da cidade. O termo contorno descreve melhor o resultado desse ato de
primeiro plano, indicando que se obtém maior precisão do que seria possível contando
com os limites da cidade, do país e assim por diante. Ao mesmo tempo, esse termo
preserva a qualidade da irregularidade e a noção de que o fenômeno social é delineado
e não separado do seu contexto (BURRELL, 2009, p. 170)
pensar em sites da Internet como objetos de sentimentos joga luz não apenas sobre a
intensidade emocional das interações online, mas também sobre tecnologias digitais
de forma mais ampla, mostrando como elas podem ser objetos, mediadores e
repositórios de afetos.
Em diálogo com o que Sarah Ahmed (2004) descreve como “economias afetivas”, isso
é, como o poder das emoções se acumula através da circulação de textos, Kunstman e
Karatzogianni chamam a atenção para o fato de que, online, sentimentos e interações tornam-
se verdadeiros “fósseis virtuais” que permanecem congelados em arquivos online armazenados
em servidores por anos.
Estas reflexões nos convidam a vislumbrar as articulações possíveis entre tecnologias,
práticas sociais, emoções e contextos de comunicação. Mais do que isso, tais análises mostram
que a velocidade e da rápida circulação de conteúdo, tipicamente associadas às culturas digitais,
coexistem com a preservação e documentação de conteúdo. Embora sejam distopicamente
fantasiadas como “frias”, as tecnologias estão saturadas de emoções.
Contrastada com o modo tradicional e analógico de escrita e registro dos dados de
campo, a pesquisa com as mídias digitais e a Internet possibilita o acesso à informação em
tempo real. Essa informação, ao longo do processo de pesquisa, pode ser complementada com
outras fontes, interseccionando interações on e offline. As novas tecnologias digitais formaram
um repositório de informações diversificadas sobre preferências, gostos, estilos de vida de
variados públicos e atividades cotidianas. Este recurso abrangente e onipresente, na medida em
que tem sido progressivamente incorporado à vida cotidiana, pode também ser empregado
como uma ferramenta complementar de pesquisa.
Dicks et al. (2015) chamam atenção para o fato de que a Internet não deve ser
entendida como um espaço de observação “neutro”. Em primeiro lugar, porque embora a rede
possa oferecer uma falsa impressão de horizontalidade e simetria, o que se verifica é a formação
de elites digitais com maior ou menor capacidade de influência. Além disso, as escolhas que
cercam um determinado objeto, o trabalho de campo, a seleção e a análise de dados de um
pesquisador estão comprometidas por agendas, histórias pessoais e normas sociais. Nossos
campos de pesquisa representam mais continuidade do que rupturas com práticas etnográficas
anteriores.
Larissa Hjorth (2017) ressalta que as formas de comunicação são sempre mediadas,
senão pela tecnologia, por gestos, memórias e emoções. A diferença é que os ambientes digitais
são conglomerados de tecnologias, eventos e realidades que se interpenetram e, às vezes, co-
constituem-se, o que leva a alterações na forma da comunicação. A mediação digital fomentou
novas expressões de identidade, novas formas de trabalho colaborativo, novos negócios E
estratégias políticas, novos modos de produção e distribuição de arte e novas configurações de
socialidade, intercâmbio e intimidade. O digital está tão intimamente envolvido com o mundo
físico e a vida cotidiana que até mesmo a antiga oposição entre o “virtual” e o “real” passou a
ser considerada enganosa.
A pesquisa digital se depara com a imposição de reconhecer a ecologia que molda a
plataforma em questão, bem como os marcos legais e éticos sobre as informações que serão
divulgadas e aquelas que serão omitidas. Afinal, os códigos legais formam as condições básicas
que podem incentivar ou inviabilizar determinados usos e a própria pesquisa. Por exemplo, uma
pesquisa que apresente a transcrição literal de um conteúdo publicado por um usuário em seu
perfil em um serviço de rede social, como o Facebook, mesmo modificando nomes,
inevitavelmente, tornará esse conteúdo rastreável, expondo a pessoa em questão. Isto nos obriga
a reconhecer que manter o anonimato dos interlocutores no plano digital não se passa como
uma transposição exata das mesmas normas que regulam a busca por preservar o anonimato de
interlocutores em formas relacionais que se passam no plano offline.
Diferente do que se passou nas primeiras abordagens sobre o digital, atualmente, as
pesquisas passaram a entender que tratamos de um campo integrado e contínuo com o cotidiano.
Uma síntese possível é que, com o passar do tempo, as pesquisas progressivamente passaram a
reconhecer que, para além das identidades virtuais, existem pessoas de carne e osso que operam
as tecnologias com finalidades específicas. Certamente, isso também tem a ver com a ampla
disseminação das tecnologias e com a variedade de maneiras pelas quais as “novas” tecnologias
foram inseridas na vida pessoal e social integrando o cotidiano.
Steve Woolgar (2005, p. 37) comenta que “a aceitação e o uso das novas tecnologias
depende crucialmente do contexto social”. Trata-se de reconhecer e compreender as
implicações de universos sociais co-constituídos e enredados por tecnologias digitais e que
emergem desafiando a prática etnográfica. O digital é parte de uma conjuntura que nos convida
não apenas a teorizar sobre o mundo digital de novas maneiras, mas também de repensar a
forma como entendemos práticas, interações sociais, mídias e ambientes pré-digitais.
Marres (2017) sustenta que o digital também aponta para um conjunto de
transformações sociais que exigem mudanças no modo como entendemos e investigamos a vida
social. Um exemplo da relação retomada pela autora é o fato de que questões que antes pareciam
ser separadas da tecnologia, como a sociologia das relações raciais, agora se revelam
profundamente entrelaçadas. Marres reitera que, atualmente, o digital constitui um fato social
total argumentando que, de modo semelhante ao que ocorreu com a temática do meio ambiente,
o digital passou a afetar diferentes setores da organização social tornando se relevante para
diversos domínios da vida contemporânea.
Longe de buscar respostas cabais ou fórmulas prontas, a intenção deste capítulo se
concentra em tratar das metodologias etnográficas mobilizadas para estudar as mídias digitais,
contextos sociais e práticas culturais. O que se tem é uma visão geral de um quadro teórico
emergente preocupado com as práticas etnográficas envolvidas em contextos digitalmente
mediados. Espero que, mais do que modelos, a partir das questões colocadas possamos discutir
questões relacionadas à realização do trabalho de campo etnográfico digital considerando as
suas implicações para a observação participante, entrevistas e como ferramentas digitais para
registro e análise de dados.
A etnografia digital nada mais é do que uma abordagem do método etnográfico
consciente da presença da tecnologia na vida social, bem como das novas oportunidades e
limitações apresentadas pelo envolvimento entre digital e vida social. Não se trata uma mera
alegação de que o digital inaugura novas maneiras de conhecer a sociedade, já que essa posição
solucionista parece exagerar na expectativa de que as infraestruturas digitais possam resolver
problemas tanto da sociedade, quanto das ciências sociais (MARRES, 2017).
O digital não apresenta apenas novas fontes ou instrumentos de pesquisa ao trabalho
etnográfico, mas desloca as bases da ação social em um mundo digitalmente mediado e que
abriga práticas que, até então, seriam impensáveis sem a presença da tecnologia.
3 HISTORICIZANDO A TECNOLOGIA E AS PRÁTICAS SOCIAIS
Eu sou de uma época que, se as pessoas quisessem conhecer alguém diferente para
sair, conversar, ficar e transar, tinham que fazer sinal de fumaça. Não existia nada
disso, era tudo mato mesmo. Não tinha internet, não tinha sites e nem aplicativos. O
negócio funcionava no modo analógico. E se você acha que essa cidade é entediante
hoje, imagine como era há 20 anos atrás (Anotação extraída do caderno de campo do
Pesquisador).
Foi como Rafael, 38 anos, representante comercial de uma grande marca de gêneros
alimentícios, descreveu a cidade onde nasceu e cresceu.
Com pouco mais de cinco mil habitantes, a cidade em que Rafael cresceu faz parte de
um dos 12 municípios paulistas considerados estâncias climáticas, o que garante à cidade a
alocação de incentivos fiscais no turismo regional, eixo predominante em torno do qual se
organizam as atividades comerciais, bens e serviços, que compõem o mercado local. Em termos
ocupacionais, a população se divide entre o funcionalismo público e o setor privado, centrado
em atividades como passeios ecológicos, restaurantes típicos, comércio e hospedagem de
visitantes. Há também um número expressivo de trabalhadores rurais, alocados em chácaras,
sítios e fazendas situados nas imediações.
Rafael vive em São Carlos, mas com frequência vai até a cidade natal rever a família
e os amigos de infância. Depois de algumas semanas conversando por meio de aplicativos de
mensagens, nos encontramos pela primeira vez numa tarde de sábado, quando ele me disse que,
depois da academia, teria um horário livre. Morando na mesma cidade, marcamos nosso ponto
de encontro em uma praça, na região central da cidade, onde conversamos por
aproximadamente uma hora, até que decidi aceitar o convite feito por ele para tomarmos uma
cerveja em um dos bares da região.
Cerca de duas semanas depois, Rafael me enviou uma mensagem perguntando se
gostaria de conhecer sua cidade natal. Como não dirijo e nem tenho automóvel, prontamente
aceitei a carona oferecida por ele. Então, no dia e horários combinados, Rafael passou em minha
casa e fomos até a cidade. A frase com que iniciei acima foi dita por ele assim que adentramos
os limites do município cercado por matas, pastagens e plantações.
A cidade é pacata, marcada pelos elementos que tipicamente caracterizam a vida
imaginada no interior paulista. Moradores e moradoras se conhecem e se cumprimentam
enquanto caminham pelas ruas. A presença de estranhos é convencionalmente associada ao
turismo, embora a minha tenha sido percebida pelos conhecidos de Rafael como a de um dos
seus amigos da cidade vizinha.
Rafael explica que, diante da oferta de reduzida de postos de trabalho, não é incomum
que muitos jovens - sobretudo aqueles com melhores condições econômicas e educacionais -
aspirem se mudar de cidade almejando novas oportunidades. Foi assim com ele e também com
a maior parte de seus primos e primas. Após completarem os estudos secundários, todos foram
morar em cidades maiores da região em busca de formação superior ou com o objetivo de
alcançar melhores oportunidades de emprego.
Meu anfitrião é filho de um casal de funcionários públicos aposentados. Ele conta que
desde muito jovem assumiu a meta de mudar-se de cidade. Mas, para Rafael, não se tratava
apenas uma estratégia para driblar as escassas oportunidades de trabalho. Ele conta que sua
maior motivação para se mudar da pequena cidade foi a busca por “movimento”, por conhecer
pessoas novas em meio a pessoas desconhecidas. Segundo ele, durante a adolescência, viver
em uma cidade maior representava também a possibilidade de desfrutar de um ambiente sem
fofocas e mexericos sobre a vida alheia.
Rafael cresceu cercado por uma família extensa e unida em torno dos avós paternos e
maternos, todos filhos de imigrantes italianos. Por isso, as memórias de infância são sempre
povoadas por tios, tias, primas, primos, amigos e amigas da rua, com quem sempre manteve
proximidade. Embora a imagem possa parecer acolhedora, para ele, sobretudo após a
adolescência, o contexto foi se tornando cada vez mais sufocante.
A expressão usada por Rafael pode ser melhor compreendida levando em consideração
que nas cidades pequenas, como as do interior paulista, é comum que todos se conheçam pelo
nome ou pelo sobrenome. Gerações crescem e estudam juntas na única escola local. Parentes
são vizinhos e, não raro, vizinhos tornam-se parentes. Assim, presume-se que, não sendo turista,
alguém chegou até ali por meio de outra pessoa. Mesmo desconhecidos costumam ser
posicionados em relação a alguém da comunidade se tornando, de acordo com a expressão
local, o “fulano de alguém”. Assim, já na segunda ou terceira visita que fiz à cidade, passei a
ser reconhecido por Graziela, dona do bar que ficava perto da praça central, como “o Felipe
[amigo] do Rafael”.
A proximidade social não se revela apenas na forma relacional como as pessoas são
posicionadas entre conhecidos e desconhecidos, mas modela as compreensões sobre os limites
da privacidade. A literatura socio antropológica sobre comunidades menores permite verificar
que contextos menores tendem a produzir um maior grau de proximidade social entre os
indivíduos (FONSECA, 2000; ELIAS, SCOTSON, 2000). Essa tendência se expressa nas
dinâmicas das relações sociais e em práticas de controle social, como é o caso da fofoca.
Elias e Scotson (2000, p. 129) sustentam que a fofoca não deve ser entendida como
fenômeno independente, pois “o grupo mais bem integrado tende a fofocar mais livremente do
que o menos integrado, e [...], no primeiro caso, as fofocas das pessoas reforçam a coesão
existente”. Essa abordagem oferece uma perspectiva que inclui a posicionalidade dos sujeitos
em espaços e relações de poder, assim como permite entender o papel da adesão por parte dos
sujeitos a determinadas normas e valores.
Do ponto de vista da pesquisa social, a fofoca é uma operação útil para revelar as
conexões entre os sujeitos. Para que a fofoca aconteça é preciso que os sujeitos envolvidos na
interação compartilhem de normas e crenças coletivas. Também é preciso que as pessoas
partilhem de um rol de relações e interações sociais em comum. Não se fofoca sobre alguém
desconhecido. Sendo assim, quanto maior for a proximidade entre os sujeitos, mais provável
será que fofoquem entre si. Além do mais, é justamente porque aderem aos mesmos valores e
ideais que os sujeitos tendem a reforçar esses mesmos valores controlando por meio da fofoca
os que são considerados desviantes. Nesse sentido, a fofoca atua reforçando a integridade prévia
do grupo diante do estrangeiro.
Claudia Fonseca (2000), por outro lado, oferece uma interpretação específica sobre
como, em grupos populares brasileiros, a fofoca se articula com a violência e relações de
gênero. Nos termos colocados pela antropóloga, a fofoca aciona um conjunto de códigos,
formas e simbolismos imiscuídos nas dinâmicas de gênero e classe social, que operam como
um mecanismo de controle social disperso entre “fortes” e “fracos”. De acordo com Fonseca,
“a fofoca seria instrumental da definição dos limites do grupo — não se faz fofoca sobre
estranhos, pois a estes não se impõem as mesmas normas; ser objeto, sujeito da fofoca,
representa a integração no grupo” (p. 19).
Os argumentos apresentados acima traduzem em termos sociológicos como passando
a ser reconhecido por Graziela como amigo de Rafael ingressei no circuito de relações locais.
Ser amigo de um amigo prontamente me posicionou com algum nível de proximidade de
alguém inserido na rede de relações sociais. Assim, depois desse dia, todas as vezes que passei
pelo bar de Graziela fui recebido com algum entusiasmo, como alguém já conhecido. Evidente
que como cliente algum prestígio poderia ser esperado, mas, com o passar do tempo, tornei-me
também alguém com quem ela poderia conversar sobre os pequenos fragmentos que
movimentavam o cotidiano local.
Enquanto conversávamos no bar, com certo entusiasmo, Rafael me explicou sobre
como a cidade havia crescido nos últimos anos, especialmente na última década. Ele lembra
que, na década de 1990, quando computadores e telefones celulares ainda não integravam nossa
vida com o grau de sinergia que experienciamos hoje, a rotina das crianças e adolescentes da
cidade era marcada pelo ritmo da escola, núcleo central de socialidade, intercalado com as
brincadeiras na rua e expedições pelas cachoeiras e parques da cidade.
Pode-se dizer que meu interlocutor faz parte de uma geração de pessoas que nasceu
em um mundo analógico, marcado por relações face a face, quando a comunicação acontecia
mais por telefones públicos - ou orelhões como eram conhecidos em São Paulo -, que
funcionavam com fichas, do que por telefones fixos, e que cresceu juntamente com o
aprofundamento da presença das tecnologias digitais na vida cotidiana. Talvez por isso, para
ele, seja difícil recompor os fragmentos de suas memórias ordenando-os sem tomar a tecnologia
como coorte a partir do qual se estabelece um vetor de produção da mudança social.
Ainda que seja eficaz para os efeitos de ordenamento das memórias de Rafael, a
tecnologia como coorte que opõe formas estranhas de organização social - o analógico e o
digital -, com efeito, torna-se contraproducente para uma compreensão sociológica da
tecnologia na medida em que oculta o percurso que liga um ponto ao outro. De modo contrário,
é possível entender que a narrativa de Rafael mostra exatamente como não se trata de um
percurso que conduz de uma vida sem tecnologia para uma vida com a tecnologia e, portanto,
mais mediada do que antes, mas de um processo mais amplo, que inclui transformações
econômicas, políticas, tecnológicas e socioculturais.
Nos termos do antropólogo Tom Boellstorff, (2008, cf. p.99) as invés de ver mundos
pré-digitais como menos mediados, precisamos estudar como a ascensão das tecnologias
digitais criaram a ilusões de que eles eram menos mediados. O quebra-cabeça de memórias
acionado por Rafael permite visualizar um quadro de mudança social, cultural e tecnológica e
como esse deslocamento se articula à esfera da sexualidade, recorte temático desta pesquisa.
As lembranças de Rafael oferecem um caminho profícuo para o exercício analítico que
busca delimitar a partir da experiência vivida como porta de entrada para situar, em termos
históricos, por quais caminhos se deu o entrelaçamento entre pessoas e tecnologias nesse
contexto.
26 No original: “[The] poor Internet connectivity is not simply a ‘natural’ consequence of the demographics of
rural areas where residents tend to be lower income, possess lesser educational attainment, and are older in
age. It is a matter of exclusion. This exclusion is shaped by geography, remoteness, and population density
which are consequential within a particular American political economy where the availability of connectivity
is largely market-driven”.
27 No original: “In particular, approaches that measure inequality by population demographics and frame
disparities as a ‘digital divide,’ rely on a limited understanding of patterns of technology innovation and uptake.
A standard account of technology diffusion presumes that as the uptake and use of a technology rises, problems
of non-access are solved linearly. Technology non-use is still frequently attributed to the characteristics (or
even character) of non-users themselves”.
Diferente dos fliperamas em que o jogador enfrenta um oponente ou a própria
máquina, a conexão entre vários computadores em rede viabilizou a produção de uma série de
games para serem jogados coletivamente. Na lan house, uma vez que cada pessoa dispunha de
um computador para o uso pessoal, múltiplos jogadores tinham condições de interagir
simultaneamente dentro de uma mesma plataforma. Rafael conta que um dos jogos preferidos
pela sua turma de amigos chamava-se “Counter-Strike”, um game para múltiplos jogadores
baseado em um campo de batalha onde grupos de jogadores interagem em uma missão baseada
no enfrentamento entre dois times: um formado por terroristas e outro por contra terroristas.
Nos primeiros dias da internet, o computador não foi inicialmente percebido como um
equipamento de uso individual, mas coletivo. Quer fosse no cybercafé, no trabalho ou em casa,
a partilha de um mesmo equipamento entre vários usuários foi a regra e seu uso exclusivo a
exceção. Assim, em muitos lugares, o computador foi concebido primeiro como um
eletrodoméstico de uso coletivo, que ficava à disposição da família.
O acesso aos computadores como equipamentos para o lazer é marcado por questões
de classe, mas sobretudo de gênero (masculino) no que toca o acesso privilegiado à tecnologia.
As lan houses começaram como espaços predominantemente masculinos e associados a jogos
digitais coletivos enredados em torno de estratégias, esportes, guerra e combate. Além do que,
sendo a lan house um espaço comercial aberto ao público acessá-la implica em ter dinheiro
disponível para gastar em jogos, o que pode ser especialmente complicado para os mais jovens,
que não dispõem de renda própria, sobretudo, quando mais pobres.
Com o ingresso dos computadores nos lares, para manter o controle dos pais sobre os
usos que seus filhos e suas filhas faziam, muitas famílias mantinham este equipamento no
mesmo cômodo em que a televisão e, por uma necessidade técnica, sempre próximo ao telefone.
A sala de casa era, por assim dizer, o local do computador. No caso de famílias com mais filhos
e que dispunham de um único equipamento de uso coletivo, essa estratégia também garantia
uma forma de acesso mais igualitário entre os membros da família. Rafael se recorda que
durante anos compartilhou com os irmãos mais novos seu “computador de trabalho” tanto para
que realizassem atividades escolares, quanto para o lazer.
Assim como ocorreu com Rafael, durante alguns anos, minha família também
compartilhou o computador. Entretanto, mesmo sendo compartilhado, é possível aventar que a
popularização do computador doméstico trouxe consigo novos usos baseados em condutas
“mais individualizadas” e voltadas aos interesses pessoais dos sujeitos.
Conforme já comentei, acessar a rede aos finais de semana e durante a madrugada era
uma das principais estratégias mobilizadas por quem precisava driblar o preço das conexões.
Assim, como muitos de seus colegas, Rafael desenvolveu o hábito de acessar à internet nesses
horários específicos. Mas, ainda que tivesse relação com os custos, esta estratégia também lhe
garantia certa privacidade, sobretudo durante as madrugadas, enquanto o restante da família
dormia.
Eu comecei a usar o bate-papo por acaso. Entrei porque ava querendo me distrair e a
ideia de poder conversar com pessoas desconhecidas me pareceu legal. Logo que
comecei a usar descobri que muita gente usava buscando sexo. Você percebe pelos
nicknames que as pessoas colocam: “pauzudo não sei o que”, “dotado procura”,
“passivo busca” e por aí vai. No começo eu fiquei meio com o pé atrás. Sabe como é,
né? Mas a minha curiosidade foi maior. Eu nunca tinha me relacionado com homens.
Na verdade, até então, eu só tinha transado com a minha namorada e poucas vezes.
Nessa época, nós já tínhamos terminado o namoro. Mas eu já tinha vontade de sair
28 O acrônimo “ICQ” expressa uma redução das palavras em inglês “I seek you” (eu procuro você) e se tornou
um dos programas para troca de mensagens mais populares entre jovens brasileiros no final dos anos 1990 até
a primeira metade da década de 2000, quando programas como Messenger e Skype chegaram ao mercado.
com outros caras. Quando entrei no bate-papo, percebi que ali teria uma oportunidade
para experimentar como seria sair com outro homem, sem ninguém saber o que eu
tava fazendo. (Trecho extraído de conversa com Rafael por Whatsapp).
Tributárias da chamada web 1.0, como ficou é chamada a primeira fase da internet
comercial caracterizada pelo domínio de portais que provinham o conteúdo para os usuários,
as salas de bate-papo serviram para moldar parte das lógicas, modelos e modos de uso e
comunicação de gênero que, renovados, persistem até hoje nos sites e aplicativos de busca por
parceiros. A fala de Rafael corrobora com a compreensão de que, no contexto do interior, a
entrada da internet e dos computadores nos lares se fez concomitantemente ao ingresso dos
sujeitos em salas de bate-papo.
A respeito da entradas nas salas de bate-papo na dinâmica de busca por parceiros no
interior paulista, Kurashige (2018, p. 28) explica que “isso não quer dizer [...] que outros modos
de interação tivessem acabado, pois o bate-papo foi apenas um dos meios pelos quais sujeitos
tiveram oportunidade de negociar os desejos com mais discrição”. A facilidade das câmeras
acopladas aos computadores e mais tarde aos telefones celulares com múltiplas funcionalidades
intensificou a troca de imagens. O caráter descritivo da textualização do corpo deu lugar a um
tipo de textualidade visual. O corpo passou a ser mais visto do que textualmente descrito.
Cabe reiterar que o processo histórico de envolvimento entre sexualidade e as mídias
digitais não foi vivido na mesma época e com a mesma intensidade por todos. Nesse sentido,
há que se reconhecer por parte de Rafael um maior interesse ou necessidade em acessar a rede
para buscar parceiros do mesmo sexo.
As salas de bate-papo estão inseridas em um conjunto complexo de relações e
interações em movimento que engloba a sexualidade, as tecnologias, o mercado e o Estado,
mas que não se inicia com as tecnologias digitais. Além disso, para sujeitos como Rafael, o uso
individual e personalizado do computador permitiu a experimentação e o descobrimento da
própria sexualidade de maneiras que seriam improváveis ou até mesmo impossíveis num
contexto anterior à internet.
Foi na época que comecei a entrar nas salas bate-papo que sai com o primeiro cara.
Ele morava em XXX, aqui perto. Conversamos durante umas duas semanas até eu
conseguir criar coragem. Ele teve paciência. Eu era muito medroso e inexperiente
então ficava enrolando ele, mas, pensando agora, acho que eu já estava achando tudo
aquilo muito excitante. Era quase como o tele-sexo, só que no computador. Eu tinha
acabado de fazer 22 anos, tinha terminado com minha namorada e estava a milhão.
Aí não teve como. Até que chegou uma hora que resolvi encontrar com ele. Ele tinha
uns 25 anos, era um pouco mais velho que eu. Ele passou na minha casa, me pegou e
fomos para um motel que ficava ali na XXX. Rapaz, nesse dia eu fiquei nervoso, hein?
Não sabia o que fazer. Eu era bem bobão nessa época. Nunca tinha saído daqui, era
caipirão pra caramba. Mas ele foi paciente comigo. Foi um cara legal demais. Nesse
dia, pra dizer a verdade, eu nem consegui fazer muita coisa, mas curti e então saímos
outra vez e depois outra e assim foi até que passou. Também porque depois disso eu
já tinha ganhado experiência no assunto e comecei a querer conhecer outros caras.
(Trecho transcrito a partir de mensagem de áudio via Whatsapp).
29 Algumas das chamadas publicitárias veiculadas pelos serviços comerciais de sexo via telefone podem ser vistas
no YouTube. Uma delas anuncia o “Telefantasia”, nome de um desses serviços, e data de 1993 (Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=EBk9tGSOfBE>). Em outro vídeo é possível acompanhar a
programação exibida no intervalo entre os filmes adultos veiculados pela Rede Bandeirantes de Televisão, nos
anos 2000 (Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cKBL_RrVNvM>).
30 No original: “In a sense, pornography is defined by technology, because its creation, transmission and diffusion
are so intimately related to the development of communication technologies”.
envolver em uma fantasia sexual escolhida de acordo com os próprios interesses com
(efetivamente) um trabalhador do call center” (MOWLABOCUS, 2016, p. 393)31.
Em uma época anterior à profusão dos hoje populares sites comerciais “tubes” e
plataformas de streaming que prescindem da conexão com banda larga, Rafael conta que usava
a internet para baixar música, relacionar-se com os amigos ou desconhecidos em salas de bate-
papo ou em programas de mensagens e para ler notícias nos portais de internet. Também foi
nessa época que tomou conhecimento sobre os sites voltados à exibição e distribuição de
conteúdo pornográfico. Ele se recorda que dois ou três sites figuravam entre os que mais
acessava, eram eles: tudo.nu; drdunha.com e pombalouca.com. Todos já inativos.
Também é importante notar que a pornografia gay existe e opera dentro de uma
extensa e aparentemente crescente rede sites promocionais, blogs pessoais e
comerciais, redes de compartilhamento de arquivos e fóruns de discussão que
promovem, produzem ou distribuem material e, consequentemente, contribuem para
os processos de significação desses textos (MERCER, 2012, p. 318)32.
31 No original: “The telephone is a great example of an interpersonal communication technology that became
sexualized. [...] Around the same time, live sex-chat lines began to appear, allowing the caller to engage in a
sexual fantasy of their own choosing with (in effect) a call-centre worker”.
32 No original: “It is also important to note that gay pornography exists and operates within an extensive and
seemingly ever-expanding network of promotional sites, personal and commercial blogs, filesharing networks,
and other discussion fora that all variously promote, produce, or circulate material and consequently contribute
to the processes of making meaning out of these texts”.
Em termos sociológicos, pode-se afirmar que a pornografia é tanto produto quanto
produtora de cultura e, portanto, está sujeita a variações de acordo com os acontecimentos do
mundo real (BURKE, 2016, p. 6).
FONTE: <https://disponivel.uol.com.br/web/home.asp>.
33 De acordo com as especificidades de cada interface, plataformas de relacionamento permitem interações que
podem ser visíveis ou invisíveis aos olhos da rede de contatos. Sendo assim, existem interações podem ocorrer
Assim como Rafael, Emerson também relata sua relação com o site. Meu interlocutor
é um homem alto, robusto e dono de uma voz grave com timbre marcante e nos conhecemos
pelos aplicativos. É o mais experiente entre os meus interlocutores mais próximos. Aos 42 anos,
profissional liberal, há cerca de 2 anos vive em Ribeirão Preto, desde que se divorciou da
esposa, com quem morou por quase 12 anos. Assim como Rafael, Emerson também relata sua
relação com Disponível.com antes dos aplicativos:
Cara, antes eu usava o Disponível porque eu gosto de vídeos amadores e lá dava pra
acompanhar os caras. Eu ainda tava casado então tinha que dar meus pulos. Tinha
página que o cara postava mais de 200 vídeos. Mas depois de um tempo foi
diminuindo. Eu cheguei a fazer a assinatura para poder ver mais vídeos, mas hoje em
dia nem compensa. Eu acho que o Disponível ficou ruim porque agora tem muitos
sites que são bem melhores. Não faz sentido pagar pra ver video amador no Disponível
sendo que no XVideos e no Pornohub dá pra ver de graça. (Trecho transcrito a partir
de mensagem de texto via WhatsApp).
Eu uso o Twitter porque é mais prático e todo mundo está lá. Já tentei usar um tal de
Disponível que a galera fala, mas não achei graça porque só tem cara velho. Tem uns
vídeos e tal, mas é bem pouco. O Twitter é muito melhor porque a galera tá o tempo
todo postando vídeos e fotos. (Trecho transcrito a partir de mensagem de texto via
WhatsApp).
na interface pública da página (visível) ou de maneira privativa (invisível) por meio da troca de mensagens
exclusivas entre dois - ou mais - usuários.
Enquanto para Rafael e para Emerson as plataformas de busca por parceiros permitiam
o gozo ao abrigo do olhar público, para Iago elas são sinônimo de dinamismo, simplicidade e
objetividade. Não que para os dois primeiros os significados atribuídos por Iago não estivessem
colocados, eles estavam, mas sob outras condições.
Eu comecei a usar os aplicativos logo que lançaram. Eu já usava esses sites de pegação
então fiquei sabendo do Grindr, acho que foi o Grindr mesmo. Foi mais ou menos em
2012, por aí. Se não me engano foi 2013. Um amigo comentou comigo e eu baixei,
depois disso fui parando de usar as outras. O Disponível eu nunca mais usei, nem sei
se ainda existe, pra dizer a verdade. O bate-papo do UOL hoje em só tem spam34.
Outro dia eu entrei pra ver como estava. A gente tava falando disso e fiquei curioso
pra ver se ainda existia. Cara, aquilo tá um horror. Não tem mais ninguém interessante.
(Trecho transcrito a partir de mensagem de texto enviada por Rafael via WhatsApp).
Meu interlocutor oferece pistas do caráter pedagógico das interações em rede. Para
ele, conectar-se à rede significou também acessar repertórios culturais midiáticos que estão ao
fundo da sua transformação. A mesma tela que o protegia nas interações sociais com
desconhecidos acabou sendo para Rafael um instrumento de autoconhecimento e aprendizado
sobre si e sobre o mundo.
As plataformas de relacionamento online integram um gênero de artefatos eloquente a
sobre a sexualidade contemporânea e não apenas porque são importantes para o mercado adulto.
Mas porque operam como um conjunto de ferramentas destinadas à superação de problemáticas
circunscritas em torno da sexualidade (ILLOUZ, 2014).
34 Spam é como são chamadas as publicações predominantemente comerciais feitas por perfis robotizados,
conhecidos como “bots”.
As interfaces digitais foram o meio para que Rafael pudesse buscar informações de
seu interesse e parceiros. Meu interlocutor me leva a pensar sobre como os repertórios culturais
das plataformas gays também o ajudaram a codificar as aporias das relações homossexuais
funcionando também, por assim dizer, como um “manual de autoajuda sexual”.
Os modos de comunicação, as formas de interação e a imagética das salas de bate-
papo, que passaram pelo Disponível.com chegaram aos aplicativos de busca por parceiros para
smartphones e, ao que tudo indica, também às plataformas relacionamento que não são
direcionadas à busca por parceiros.
Nesse percurso, os sujeitos aprenderam que o sucesso tende a ser maior de acordo com
as imagens. Para isso, a espetacularidade dos ângulos, filtros e cortes importam. Nas redes de
busca parceiros formadas por homens, os perfis costumam criar uma atmosfera propícia a
fruição agenciando estereótipos baseados em taxonomias pornográficas (ursos, cafuçus,
sarados) ou em temas tidos como sensoriais e sensacionais ligados ao sexo (preferências
sexuais, fetiche, características e medidas corporais). O núcleo das fantasias acionadas nos
serviços comerciais de busca por parceiros revela a dinâmica social que eles retratam.
Para Illouz (2014), o problema cultural central na era da internet não é que a tecnologia
da rede empobreça a vida íntima, mas a possibilidade que a internet oferece de produzir
sociabilidade e relacionamentos de maneira estratégica de um modo sem precedentes.
Entretanto, ao promover esse deslocamento, a tecnologia esvazia os recursos afetivos e
corporais que até então ajudavam os sujeitos a se sustentar. Isso porque a mídia cria um
ambiente com as condições necessárias (dispositivos) e adequadas (filtros, câmeras e editores
de imagem) para que o sujeito produza uma versão melhorada de si na interface. De acordo
com a socióloga, isso torna muito mais difícil o deslocamento de volta do estratégico.
Pergunto ao meu interlocutor quais são as principais diferenças que ele vê entre
serviços como o bate-papo e os aplicativos.
Cara, eu acho que assim. No Disponível e no chat do UOL era divertido, mas no
aplicativo é mais divertido. O grande lance desse aplicativo é que ele te prende. Você
fica entretido porque o tempo todo fica chegando mensagem então sempre tem alguém
diferente. No fim das contas a maioria não vira nada (risos), mas a gente se distrai.
No Disponível tinha o lance do computador então muda né? Você tem que sentar na
frente do computador e pelo telefone é mais fácil. No Grindr não tem os vídeos, mas
tem as fotos que a galera manda e você tem mais chance de encontrar o cara porque é
prático: se tá perto e tá a fim já vai e pronto. Mas eu acho que no aplicativo o lance
fica mais exigente… Tipo assim, a galera quer ver gente bonita, né. Se você não
agradar o freguês o cara te bloqueia e pronto. No Disponível rolava mais conversa do
que no aplicativo. Mas é mais fácil pra achar gente. Quando eu volto pra minha cidade
volta e meia eu consigo encontrar alguém de fora que tá por lá visitando as cachoeiras
ou alguém da cidade. Mas se é da cidade eu conheço. E também tem muita molecada,
então acaba que os aplicativos me ajudam a encontrar gente de fora mesmo. (Rafael -
Trecho transcrito a partir de mensagem de texto enviada via WhatsApp).
A relação entre os usos sociais das mídias digitais, práticas cotidianas e produção de
conteúdo por parte dos usuários pode ser tomado como um traço que marca uma segunda fase
no desenvolvimento das mídias digitais. Em sua forma atual, as mídias digitais estão articuladas
às crenças, às práticas culturais e aos modos de ser no mundo contemporâneo. A crença das
mídias como tecnologias que “facilitam” a vida aparece em diferentes momentos ao longo das
conversas com meus interlocutores. Encontrar alguém próximo, distrair-se e ter algum
divertimento estão entre as principais facilidades trazidas pelas mídias digitais.
Estabelecendo um paralelo com Illouz (2014, p. 100), pode-se dizer que os serviços
comerciais de busca por parceiros são amplamente difundidos porque a condição de serem
mediados pela internet os coloca à disposição de quase todo mundo. E são bem-sucedidos
porque se apresentam como uma solução estratégica, tecnológica e de mercado que resolve -
ao menos provisoriamente - na dimensão simbólica da interface muitas das contradições que
afetam a homossexualidade. Desse modo, são tecnologias com efeito performativo, já que
transformam práticas sociais e as identificações que as cercam ao mesmo tempo em que fala
delas.
A experiência de uso dos serviços comerciais de busca por parceiros é frequentemente
descrita pelos meus interlocutores como diversão. Essa percepção encontra apoio na
publicidade que descreve a interface dos aplicativos a partir de associações com o
entretenimento. A retórica publicitária enquadra os usuários dos Apps e as interfaces de maneira
sempre otimista e idealizada a partir de pessoas jovens, felizes, com as contas em dia, cabelos
perfeitos, barbas aparadas, amigos maravilhosos, um emprego realizado e tempo disponível
para curtir depois dos exercícios na academia.
O universo preparado pelos desenvolvedores das plataformas comerciais de busca por
parceiros é um mundo livre da miséria, da peste, da fome, das datas de vencimentos dos boletos
bancários, da velhice, da demência, das enfermidades terrenas, dos parentes desagradáveis, da
solidão, da tristeza, da gordura corporal, da morte, das frustrações e também das intermináveis
e mal remuneradas horas de trabalho em condições precárias.
Serviços comerciais de busca por parceiros online estão vinculados diretamente à
estrutura capitalística do mercado. Por definição, o interesse por trás do desenvolvimento de
qualquer aplicativo com finalidades comerciais é que ele seja capaz de gerar lucro, assim como
um sabonete ou um vídeo game. A relação entre os usos sociais das mídias digitais, práticas
cotidianas e produção de conteúdo por parte dos usuários pode ser tomado como um traço que
marca a segunda fase dos estudos sobre as mídias digitais35, durante o processo de consolidação
das mídias digitais articuladas às crenças, às práticas culturais e aos modos de ser no mundo
contemporâneo.
O bom desempenho para um perfil resulta de uma combinação otimizada entre prazer
e satisfação do sujeito a partir da sua performance em relação aos outros. Em outras palavras,
ser bem-sucedido em uma rede social significa de ser procurado e ser procurado confirma a
aprovação dentro de certa ordem social. Esse é um dos mecanismos pelos quais as mídias
digitais reproduzem e estendem as desigualdades replicando-as no plano mediado (MISKOLCI,
2017). Sendo assim, uma rede que não propicia uma boa oferta de contatos tende a ser encarada
como obsoleta.
O aspecto de padronização na apresentação dos perfis criados nas plataformas de
relacionamento e as mensagens sociais impregnadas de pornografia revelam o repertório
cultural de um estilo de vista específico, moldado também pelos ideais que regem o Vale do
Silício. Esse mundo é, por assim dizer, adaptado quando deslocado, articulando-se às
conjunturas e sazonalidades dos contextos locais. Serviços comerciais para homens gays estão
impregnados de narrativas sobre estilos de vida e gostos que não se expressam apenas na
publicidade dirigida a esse grupo de consumidores, mas também nos perfis online que os
sujeitos produzem.
No caso Brasileiro, o aparato técnico e cultural acionado pelas mídias digitais se ajusta
a um conjunto de inércias que moldam o consumo. Em um país caracterizado pelo baixo nível
de renda da população a fantasia de entretenimento apresentada pelos aplicativos está,
paradoxalmente, montada para forçar o que os economistas chamam de efeito de demonstração,
isto é, o estímulo na produção de necessidades por meio de modelos socioculturais importados
e adaptados, mesmo que não haja dinheiro suficiente para pagar por eles.
Os lucros extraídos pelos serviços comerciais digitais dependem hoje em grande
medida da publicidade e da venda de dados dos usuários para outras empresas. Digamos que
esse não é um mecenas desinteressado. Publicidade que é direcionada mediante a venda de
dados que, por sua vez, tornam-se metadados. Conforme observou Mowlabocus (2007), as
mídias geoconectivas são produzidas para viabilizar o contato entre homens gays, mas, ao
realizar cumprir com esse objetivo circunscrevem um grupo demograficamente identificável.
35 A primeira fase dos estudos sobre a internet e as mídias digitais, marcada pelo uso do conceito de ciberespaço,
tinha como objetivo principal compreender como as pessoas se comportavam, agiam e se compreendiam no
espaço virtual. A chamada Web 1.0 caracteriza-se por suportes cujos limites também se refletem nos usos que
dela podem ser feitos. Para uma discussão sobre esse tema ver: BAYM, 2011; MISKOLCI e BALIEIRO, 2018.
Informações como sexo, idade e localização são também categorias poderosas para a
pesquisa de mercado digital. Online, a representação demográfica das pessoas permite a
elaboração de estimativas de fundo racial e socioeconômico sobre o cliente (BOYD, 2001, p.
04). Com frequência, essas informações fundamentais para a constelação demográfica são
apresentadas ao usuário como condição para que possa fazer uso de um serviço comercial
online, quer seja um e-mail ou um aplicativo de táxi. A idade, por exemplo, opera como um
elemento crucial nas definições legais que moldam o acesso aos conteúdos na internet. A
localização, por sua vez, pode ser facilmente alcançada a partir do Código de Endereçamento
Postal ou por meio dos instrumentos de geolocalização integrados às mídias digitais.
A busca por sexo casual no contexto das mídias digitais deve ser entendida no interior
de um sistema complexo, para o qual confluem:
A dita era das mídias digitais é relativamente nova. Embora os princípios técnicos de
base sobre os quais repousa a transmissão de dados em rede estivessem em experimentação
desde a primeira metade do século XX. No Brasil, a despeito das experiências pioneiras que
foram acima mencionadas, a internet comercial só foi mesmo implantada após 1997 tornando-
se efetivamente popular no final da primeira década dos anos 2000.
O “mercado adulto” ou “mercado do entretenimento adulto” está estreitamente ligado
à pornografia e à publicidade. Sem ousar mencionar o nome, o bem-comportado “mercado
adulto” faz do pornô um negócio rentável, com certa aura de respeitabilidade. Os
desenvolvedores dos aplicativos de busca parceiros compreenderam cedo que a exploração da
fotografia era um dos mais valiosos meios de incorporação da Revolução Gráfica aos serviços
comerciais digitais.
Assim, nos aplicativos, ser visto passou a significar também saber se mostrar. Disto
resulta que os usuários baseiam seu sucesso na excelência do perfil. Outros sujeitos se esforçam
para manter a conotação sexual da busca em segundo plano. Carlos, 28 anos, advogado, oferece
um exemplo a esse respeito:
Eu uso os aplicativos para conhecer pessoas. Eu não busco sexo. No meu perfil já
deixo bem claro que detesto caras promíscuos, que só querem trepar. Eu deixo meu
rosto no perfil e já aviso que não mando fotos de nudez que é pra evitar que esses
caras me procurem. Eu uso pra conhecer alguém e ver se rola algo legal. Mas é difícil.
Kkkkkkk. (Trecho transcrito a partir de mensagem de texto enviada por Whatsapp).
Não sei se você já reparou, mas, às vezes, eu acho que esses aplicativos são como um
açougue: a gente entra, olha a vitrine e escolhe. Só que aqui, o quilo de linguiça pode dizer
não. Foi como Renan, um jovem de 24 anos, assumidamente gay desde os 19, sintetizou as
interações nos serviços comerciais de busca por parceiros online.
Renan nasceu em São Paulo, mas, há 3 anos, desde que ingressou no curso de Direito,
vive em Ribeirão Preto, cidade de grande porte no interior do estado. Bem-humorado, trata com
ironia as contradições que enredam as interações nos apps. Meu interlocutor observa que,
diferente do que se passa em São Paulo, no interior, as conversas tendem a ser mais longas e as
pessoas mais reticentes sobre mostrar o rosto.
Ele também nota que a questão de revelar ou não a identidade torna-se mais
complicada, sobretudo, quando a interação é, desde o começo, conduzida abertamente em busca
por sexo casual. As “entrevistas”, como ele nomeia as conversas consideradas muito longas,
costumam ser classificadas como exaustivas por aqueles que, como Renan, usam o aplicativo
buscando encontros ocasionais.
Este capítulo parte das compreensões dos sujeitos sobre os usos que fazem dos
aplicativos articulado às intencionalidades subjacentes às plataformas para, na interface entre
sujeitos e tecnologia, analisar os significados que vinculam uma tecnologia a uma experiência
social específica. Ao analisar a interface entre usuário e os aplicativos busco identificar os
significados que explícita e implicitamente articulam as tecnologias às expectativas dos sujeitos
e vice-versa.
Relações sexuais são estruturadas e atualizadas por um sistema de significados
culturais, e, portanto, são moldadas por padrões de gênero, desigualdades de ordem
socioeconômica e diferenças regionais. Um dos pressupostos que orienta esta pesquisa é o de
que a relação sexual, e tudo o mais que a circunda, isto é, a sexualidade entendida como um
dispositivo, é principalmente uma relação social atravessada por relações de poder, hierarquias,
expectativas e significados sociais (FOUCAULT, 2014).
Nos últimos 60 anos, formas de “conexões” mais casuais ganharam prioridade em
relação às formas tradicionais de namoro e busca de relacionamentos amorosos. Nas últimas
décadas, breves encontros sexuais entre pessoas que não mantém uma relação romântica ou
namoro deixou de ser tabu. Quer seja entre hétero ou homossexuais, o comportamento sexual
fora dos tradicionais pares românticos comprometidos tornou-se cada vez mais comum e
socialmente aceitável, por vezes, podendo ser considerado como comportamento normativo.
Entretanto, ainda que possam ter sido atenuadas, as práticas que informam o namoro tradicional
não desapareceram completamente. Em alguns casos, elas foram atualizadas.
As leituras utópicas e distópicas - como a de Renan - sobre esse deslocamento tendem
a produzir enquadramentos morais para analisar as mudanças e as alterações nas interações,
principalmente, quando refletem mudanças de comportamento. Os deslocamentos são
enquadrados ora como benéficos, ora como prejudiciais aos sujeitos. No entanto, as duas
leituras nos dizem mais sobre visões morais e pouco sobre como essas tecnologias redefinem
os sujeitos desejantes.
Enquadrado sob uma perspectiva queer,
(...) o “sexo” não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática
regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-
se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir — demarcar, fazer,
circular, diferenciar — os corpos que ela controla. (BUTLER, 2000, p. 155).
Via de regra, plataformas de relacionamento são projetadas para ativar o contato social
entre pessoas valendo-se de pressupostos sobre o tipo e qualidade das relações sociais.
Conforme José van Djick resume (2016, p. 55), “o software ajuda a traduzir as ações sociais
em linguagem computacional e vice-versa: a converter a linguagem computacional em ação
social”. No caso dos apps, trata-se de um artefato técnico fundamentado nos aspectos centrais
da sexualidade e da cultura gay contemporâneas.
Online, a socialidade é produzida e mediada por infraestruturas tecnológicas que
alteram as condições comunicacionais que até então, num mundo anterior à internet,
caracterizaram as interações sociais. Os estudos feministas mostram que tecnologias são
moldadas a partir de relações sociais específicas, que incluem também relações de gênero
(WAJCMAN, 2012). Nesse sentido, um aplicativo feito para homens gays pode ser entendido
como uma tecnologia de socialidade, que parte da existência prévia de identidades
sóciossexuais, para produzir um artefato digital capaz de facilitar o contato entre os sujeitos
situados em uma determinada localidade geográfica.
Serviços comerciais de busca por parceiros emergem no mercado de entretenimento
para adultos. Como parte da cultura popular, plataformas digitais de busca por parceiros
expressam o imaginário que molda o comportamento sexual contemporâneo, caracterizado pela
desvinculação entre sexo e compromisso36. Ao mesmo tempo que retratam o comportamento
sexual, esses produtos culturais também legitimam novos roteiros sexuais para interações e
práticas sociais emergentes.
Os aplicativos são serviços comerciais centrados numa compreensão cultural sobre o
sexo recreativo e, precisamente por essa razão, desde a infraestrutura, a sexualidade é o tempo
todo mobilizada tanto como um marcador de classificação identitária para os sujeitos, quanto
como um índice para as interações sociais. Quer seja endossada ou contestada pelos sujeitos, o
sexo se coloca como questão central na definição das interações.
A metáfora do aplicativo como um açougue colocada por Renan é um exemplo de
como os sujeitos percebem e avaliam aspectos que consideram críticos e paradoxais na
experiência da busca por parceiros mediada pela tecnologia. Os apps não apenas colocam em
evidência a existência de mercados amorosos/afetivos/sexuais, mas também exacerba essas
lógicas, materializando-as numa plataforma que evidencia o caráter de competição no interior
desses mercados.
Se as relações mediadas pelo aplicativo pudessem ser simplesmente reduzidas ao
caráter de objetificação como alude a metáfora do açougue, Renan o abandonaria. A despeito
do caráter retificante invariavelmente presente nas transações entendidas sob o repertório do
mercado - aquilo que Larissa Pelúcio (2018) chamou de “mercado-lógicas” -, os usos que Renan
faz dos aplicativos apontam para um entendimento em que o caráter de fruição e lazer parecem
predominantes em relação à objetificação.
Plataformas digitais codificam e acoplam novas condições técnicas e sociais às
capacidades de que os sujeitos dispõem para perseguir um objetivo central que, nesse caso, é o
de encontrar alguém. Assim, a programação visual, a concepção física e funcional de uma
interface codifica um conjunto de práticas sociais que atua orientando os usuários no mundo
regulando a sua ação. Mas como a infraestrutura dos aplicativos geossociais se relaciona com
os usos que os sujeitos fazem dela?
36 Trabalhos como os de Eva Illouz (2017), Larissa Pelúcio (2018) e Iara Beleli (2015) mostram, a partir de
diferentes contextos, como o sexo sem compromisso não caracteriza apenas o comportamento sexual de
homossexuais, mas também é um elemento que guia as interações entre heterossexuais nas plataformas digitais.
Interfaces são produzidas a partir de códigos. A codificação, ou seja, a tarefa de
produção desempenhada pelos desenvolvedores, em termos sociológicos, pode ser entendida
como a tarefa de inscrever atos sociais e culturais em linguagem de máquina.
Em poucas palavras, a função básica de uma plataforma é permitir o tráfego de dados
entre os usuários inseridos no interior de um sistema. Assim, em linguagem informática, é
chamado dado qualquer tipo de informação armazenada em um formato apto para sua utilização
por parte de um computador.
Na linguagem das ciências da informação, é chamado dado qualquer tipo de
informação armazenável. Por conseguinte, a estrutura de dados diz respeito àqueles que
administram a armazenagem.
Entretanto, toda informação tem uma origem contextual que guarda relações internas
com outros elementos, com percursos interdependentes e com a maneira como a informação é
produzida. Trata-se de um conjunto de dados sobre dados ou informações sobre como
informações são produzidas. Assim, os chamados metadados correspondem à informação
estruturada capaz de descrever, explicar e localizar determinados recursos informacionais.
Em geral, metadados podem ser caracterizados a partir de dois tipos: i) descritivos,
isto é, informações sobre conteúdos e dados estruturais - como é o caso das informações sobre
idade, sexo e localização geográfica; ou ii) administrativos, que se referem à informação técnica
como, por exemplo, determinados tipos de arquivos (VAN DIJCK, 2016).
Desse modo, torna-se visível como serviços comerciais de busca por parceiros online
são delineados por códigos e regulados por termos de uso, que definem os limites e as maneiras
possíveis de interagir no interior de um aplicativo.
Quando construímos um perfil online para nos representar invariavelmente temos que
fazê-lo escolhendo entre uma série limitada de possibilidades pré-formatadas que resultam de
decisões tomadas durante a implementação do código. Programas computacionais precisam ser
escritos em alguma linguagem de programação e é por meio dessa linguagem que
“conversarmos” com o computador atribuindo comandos específicos.
A linguagem computacional assume a forma de um código de modo que o processo
de codificação resulta num algoritmo, isto é, “uma fórmula matemática criada por seres
humanos para conduzir decisões automatizadas” (NOBLE, p.36., 2018) que serão executados
por um computador. Como uma sequência de passos lógicos para resolver algum problema ou
alcançar alguma finalidade, o algoritmo diz o que deve ser feito pela máquina.
Por sua vez, a implementação de um algoritmo ocorre através de programas de
computador e consiste na definição de como os passos serão executados. A codificação
algorítmica diz aquilo que deve ser feito, enquanto a implementação mostra como o comando
deve ser executado, considerando uma aplicação a um tipo de informação.
De acordo com Van Dijck (2016, p. 57), um algoritmo
consiste em uma lista finita de instruções definidas para calcular uma função, um
comando passo a passo que permite um processamento ou raciocínio automático que
ordena à máquina produzir certo output a partir de determinado input. [...] os
algoritmos infiltram uma (trans)ação social por meio da análise de dados
computacionais, a partir da qual o resultado se traduz numa tática sociocomercial.
“No entanto, no caminho, é obrigado a parar nos sinais vermelhos, ficar entre as linhas
brancas, seguir um itinerário razoavelmente direto e assim por diante. Essas regras
convencionais que governam o conjunto de possíveis padrões de comportamento
dentro de um sistema heterogêneo constitui o que os cientistas da computação
chamam de protocolo. Assim, o protocolo é uma técnica para alcançar a regulação
voluntária dentro de um ambiente contingente” (GALLOWAY, 2004, p.7).
O protocolo molda os caminhos por onde os usuários poderão se guiar, de acordo com
as preferências da plataforma. Van Dijck (2016, p. 58) sintetiza o protocolo como um conjunto
de “descrições formais de formatos de mensagens digitais complementadas por regras que
guiam a circulação dessas mensagens dentro de um sistema computacional”.
Enquanto uma forma de administração tecnológica, o protocolo pode ser sintetizado
como o princípio organizacional de computadores conectados em redes distribuídas (cf.
GALLOWAY, 2004, p. 3). Trata-se de “um tipo de lógica de controle, que opera fora do poder
institucional, governamental e corporativo, embora mantenha laços importantes com todos os
três” (p. 122).
Protocolos, portanto, resultam de aparatos formais que compõem uma totalidade de
técnicas e convenções, cuja expressão se dá não apenas em um nível técnico, mas também
social. Entretanto, nem todos os protocolos estão visíveis e ao alcance do usuário.
Segundo Galloway (2004, cf. p. 55), compreender o papel dos protocolos na internet
exige um deslocamento do olhar por entre os aspectos físicos - enquadrados sob o ponto de
vista do administrador de sistemas - e formais da tecnologia - situados no ponto de vista do
administrador de websites. Por conseguinte, protocolos não podem ser definidos como se
fossem completamente abstratos. E não são. Eles apenas se tornam visíveis ao usuário de acordo
com as demandas que servem aos interesses da plataforma. Em parte, isso explica a percepção
dos usuários - entre os quais me incluo - de que aplicativos como Grindr mudaram muito pouco
desde que foram criados.
Diariamente nos deparamos com protocolos obrigatórios, chamados “termo de uso”,
que estabelecem um conjunto de normas as quais estamos sujeitos a obedecer. Confirmar a
adesão às normas é uma condição incontornável se desejamos ingressar em uma rede.
Conforme Van Dijck (2014, p. 59) observa, “interfaces, tanto internas quanto visíveis,
são uma área de controle na qual o sentido da informação codificada se traduz em diretivas que
impõem ações específicas aos usuários”. As chamadas “configurações default”, como são
qualificadas em linguagem informática as configurações padronizadas de um software,
correspondem aos recursos disponibilizados pelos programadores e que permitem, por
exemplo, que num processador de textos o usuário possa escolher o tamanho e tipo da fonte
que irá usar a partir de um conjunto de opções predefinidas conformadas num leiaute.
A socióloga holandesa (2016, p. 59) argumenta que as configurações de uma
plataforma expressam um “regulamento que busca impor uma lógica hegemônica sobre uma
prática mediada socialmente”. Segundo a autora,
estes padrões supõem não apenas manobras técnicas, mas também ideológicas; se
mudar a configuração default exige certo esforço, é mais provável que os usuários se
conformem com a arquitetura predeterminada por uma plataforma. (2016, p.59).
Desse modo, pode-se dizer que o usuário está livre para, de acordo com aquilo que foi
predeterminado, fazer escolhas no interior de um conjunto de opções pré-formatadas. O App é
um sistema operacional que gera um procedimento para as interações.
Mas, quais são as ferramentas disponíveis para que o usuário construa um perfil em
um serviço comercial de busca de parceiro?
Porte físico: Não mostrar; Torneado; Comum; Grande; Musculoso; Magro; Parrudo.
Minhas tribos: Urso; Elegante; Papai; Discreto; Nerd; Barbie; Couro; Malhadinho;
Soropositivo; Cafuçu; Trans; Garotos.
O contexto do Grindr é tão agressivo e violento que, diante das queixas dos clientes, o
App criou uma campanha chamada A Kindr Grindr. Ao analisar esta campanha, Mowlabocus
observa que o App aloca todos em um mercado sexual e depois transfere aos usuários a
necessidade de moderar a competição com a “gentileza” (kindness).
Jody Ahlm (2016) comenta que as taxonomias raciais presentes em plataformas de
relacionamento contribuem para a criação de um espaço confortável para que pessoas racistas
não precisem expressar de antemão a rejeição mediante a identificação de pistas e sinais raciais.
Para este autor, trata-se de um recurso liberal, que busca amortizar as tensões encerrando as
problemáticas em torno do racismo. Ao permitir que os usuários construam uma autodescrição
em termos raciais, o aplicativo atua mediando as interações na medida em que passa a retirar
de cena expressões de racismo. Entretanto, por outro lado, essa estratégia de mediação também
inviabiliza qualquer possibilidade de debate público sobre o tema.
A variedade de formas para descrever o tipo de “relacionamento atual” pode ser
vista como um indicativo de como o App consolida – entre as homossexualidades – a
naturalização das relações sem compromisso/abertas priorizando o sexo recreativo em relação
ao compromisso. O quadro classificatório para as relações sugere uma maior flexibilidade entre
os parceiros, sobretudo, em torno da exclusividade sexual. Em um nível empírico, essa
percepção pode ser confirmada pelo número significativo de perfis de casais buscando por uma
terceira pessoa, seja para um encontro sexual ou para viver uma relação poliamorosa.
Não binário: Não binário; Não conformista; Queer; Travesti; Não binário
personalizado.
37 As informações sobre valores foram divulgadas pelo jornal britânico The Independent e estão disponíveis no
site: <https://www.independent.co.uk/life-style/gadgets-and-tech/grindr-users-china-data-privacy-app-
beijing-kunlun-tech-a8521786.html>
plataforma. Em alguns casos, alguns chegaram a questionar em que medida a introdução de
mulheres poderia refletir uma estratégia empregada com o objetivo de minimizar o fato do
aplicativo ter se popularizado como uma mídia abertamente voltada ao público gay.
Ainda que seja relativamente comum a presença de travestis, mulheres e homens
transgêneros nos aplicativos no interior paulista, trata-se de um público proporcionalmente
ínfimo se comparado ao contingente majoritário de homens gays cisgêneros. Cabe ressaltar que,
durante a pesquisa, não encontrei nenhum perfil que se declarasse abertamente como sendo de
uma mulher cisgênero38.
As mudanças na interface do aplicativo também incluíram a introdução do campo
abrindo espaço para pessoas que não se reconhecem a partir de performances e identidades de
gênero fixas. De modo complementar, também foi inserido um campo específico para a
indicação do pronome de tratamento pelo qual o usuário deseja ser tratado (dele ou dela). Essas
categorias entram na plataforma a partir de uma absorção comercial e voltada ao lucro
decorrente de possíveis usuários/as presentes/futuro usuários
Acompanhando as mudanças ocorridas no âmbito das políticas de prevenção de
Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’s), os aplicativos ampliaram o sistema
classificatório dos tipos sorológicos e dos métodos de prevenção do HIV. Assim, o antigo
binômio positivo ou negativo cedeu lugar a um espectro composto por 5 tipos sorológicos. Além
disso, foram acrescentadas informações sobre a data do último exame e a possibilidade de
programar um lembrete com a data do próximo.
Exame de HIV: Não mostrar; Negativo; Negativo, usando PrEP; Positivo; Positivo não
detectável.
38 Apenas a título de curiosidade e para ilustrar a variedade de propósitos - por vezes contraditórios - que podem
orientar o uso de plataformas de relacionamento online, durante a pesquisa, tive contato com duas jovens
amigas lésbicas, que assumiram compartilhar entre si a manutenção de um perfil falso num dos aplicativos.
Elas reconheciam o caráter antiético da atividade e também os riscos legais envolvidos no vazamento de
imagens e conteúdos das conversas. Por isso, segundo elas, os conteúdos das interações jamais foram
divulgados. Questionadas sobre as razões, uma delas respondeu-me que era uma “brincadeira”, que essa era
uma oportunidade para conhecer de perto a forma como homens gays se relacionam, além de considerar
também uma maneira divertida de ter acesso à pornografia.
Data do último Dia; mês; ano.
exame:
Nos últimos anos, o tema dos aplicativos relacionados à sexualidade e ao risco de IST’s
tem ganhado relevância para os estudos produzidos na área saúde. A relação direta entre uso
dos apps e IST’s também seria melhor explicada considerando que, um meio facilitador de
relações sexuais também leva, por conseguinte, à maior exposição a infecções.
Respondendo a resultados como os apontados por este estudo, em março de 2018, a
interface do aplicativo Grindr foi remodelada no que diz respeito às formas de tratamento e
prevenção de IST’s39. As mudanças repercutem os resultados alcançados pelos medicamentos
antirretrovirais no controle do HIV. Entre eles, vale mencionar a consolidação das evidências
demonstrando a eficácia no tratamento antirretroviral na redução da transmissão do HIV e a
39 Notícia publicada pelo site Canal Tech, em 28/03/2018: “Grindr lança ferramenta para que usuários se lembrem
de fazer o teste do HIV”. Disponível em: <https://canaltech.com.br/saude/grindr-lanca-ferramenta-para-que-
usuarios-se-lembrem-de-fazer-o-teste-do-hiv-110832/>. Acesso em: 03 jan. 2019.
evidência de que pessoas vivendo com uma carga viral indetectável não transmite o vírus em
relações sexuais40.
Esse contexto também se refletiu na inclusão de informações sobre datas do último
exame nos perfis, assim como os diferentes métodos de prevenção adotados pelos usuários. A
empresa também assumiu o compromisso público de ceder um espaço de publicidade gratuito
para divulgação de informações sobre locais de testagem, métodos preventivos e formas de
tratamento. Além disso, a interface passou a dar ênfase a necessidade da realização de testes
sorológicos periódicos como uma prática comum.
O crescimento exponencial no número de plataformas para a busca por parceiros
corrobora com o argumento de que o sexo sem compromisso tem sido cada vez mais encarado
como uma prática socialmente aceitável e amplamente difundida não apenas entre gays, mas
também entre heterossexuais. Entretanto, ainda assim, o que se verifica na prática é que,
predominantemente, os aplicativos para homens gays continuam a compor o público alvo das
pesquisas da saúde, sobretudo, para aquelas enfatizam a questão da prevenção de IST’s como
algo relevante para a vida de pessoas sexualmente ativas.
Ao que tudo indica, o público homossexual ainda segue sob escrutínio dos
equipamentos de prevenção e saúde pública, mais do que o heterossexual. No universo das
plataformas de relacionamento, faz-se notável a ausência de ferramentas similares para partilha
do status sorológico em aplicativos como Tinder, predominantemente voltado para pessoas
heterossexuais.
A esse respeito, Miskolci explica que:
Aplicativos mais recentes como Tinder e Happn vendem-se como voltados mais à
busca amorosa ao - ao menos - uma que encontre compatibilidade entre os usuários,
por isso associam-se à rede social Facebook para comprovar a identidade e recolher
informações sobre gostos comuns. Suas interfaces também buscam ser menos
sexualizadas, daí não oferecerem dados corporais como altura, peso, priorizando
informações como idade, profissão e nível educacional. Essa nova linha de aplicativos
popularizou a busca por parceiros por mídias digitais entre heterossexuais, além de
aceitar todo tipo de busca - de homens, mulheres ou ambos -, apagando as fronteiras
sexuais. (MISKOLCI, 2017, p. 114).
40 Nota explicativa da UNAIDS. Indetectável = Intransmissível: saúde pública e supressão da carga viral do HIV.
Disponível em: <https://unaids.org.br/wp-content/uploads/2018/07/Indetectável-
intransmiss%C3%ADvel_pt.pdf>. Acesso em: 03 jan. 2019.
informações e debates sobre diferentes métodos de prevenção em páginas e fóruns voltados
especificamente à comunidade LGBTQ+, em especial, para homens gays e profissionais do
sexo, do que em páginas predominantemente voltadas para pessoas heterossexuais.
No site do Tinder, por exemplo, não existe nenhuma menção a métodos de prevenção
ou IST’s. Em que pese o argumento apresentado por Miskolci a respeito da dessexualização,
vale destacar que, mesmo em plataformas para heterossexuais que são abertamente voltadas ao
sexo, como é o caso do Sexlog destinada a casais adeptos do swing41, as informações sobre
saúde sexual não têm destaque e, a depender do caso, sequer existem. É como se o sexo hetero
não apresentasse risco e o hiv não atingisse heteros. Tampouco é sublinhado o risco de gravidez,
portanto não são marcados tão radicalmente pela moralidade hetero é refletem uma
naturalização do sexo sem compromisso/não reprodutivo.
Ainda que à primeira vista a prática de declarar o status sorológico possa parecer pouco
invasiva, uma vez que cabe a cada usuário decidir que tipo de informação irá ou não expor ao
público, a introdução do status sorológico responde ao contexto estadunidense. Dependendo do
Estado norte-americano, “disclosure” sobre o status de HIV passa a ser obrigatório e a pessoa
pode ser processada caso não tenha informado o/a parceiro. A relação depende de onde a pessoa
está ao preencher o perfil e não é escolha pessoal para todos.
Além disso, quando se trata de informações digitais as coisas podem se tornar mais
complicadas. Recentemente, a partilha de informações sobre o status sorológico dos usuários
gerou uma série de problemas, inclusive, sobre o destino dado a essas informações no contexto
da venda de dados digitais. Assim como ocorreu com diferentes equipamentos de mídia social
em todo o mundo, em abril de 201842, o aplicativo Grindr ocupou o centro do debate sobre
possíveis violações de privacidade em decorrência da comercialização de dados digitais dos
usuários.
Na ocasião, organização norueguesa SINTEF, em parceria com o site estadunidense
de notícias BuzzFeed43, vieram a público relatar um conjunto de violações das leis de proteção
de dados por parte do Grindr. Segundo a reportagem publicada pelo site, o aplicativo teria
deixado informações sigilosas sobre os exames de HIV de seus usuários expostas às empresas
41 Swing refere-se a prática uma sexual baseada troca consentida de parceiros entre casais que possuem uma
relação estável. Esta modalidade de sexo é predominantemente reconhecida entre heterossexuais.
42 Notícia publicada no jornal Estadão, em 02/04/2018: Apps de relacionamentos Grindr compartilha dados
sensíveis de usuários com terceiros. Disponível em: <https://link.estadao.com.br/noticias/empresas,app-de-
relacionamentos-grindr-compartilha-dados-sensiveis-de-usuarios-com-terceiros,70002251831>
43 Notícia publicada pelo site BuzzFeed News, em 02/04/2018. Grindr is letting other companies see user HIV
status and location data. Disponível em: <https://www.buzzfeednews.com/article/azeenghorayshi/grindr-hiv-
status-privacy>
Apptimize e Localytcs, especializadas na otimização de aplicativos. Assim, segundo o relato, as
empresas tinham acesso a dados como a localização precisa de GPS e o status sorológico,
informações essas sobre os quais os usuários não haviam dado o consentimento prévio para o
compartilhamento com outras plataformas fora do aplicativo.
Vale destacar que, no Brasil, há lei específica para a divulgação do diagnóstico das
pessoas soropositivas, que inclusive prevê prisão. A Lei 12.984, de 2 de junho de 2014, em seu
artigo 1º, inciso V, determina que “Constitui crime punível com reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro)
anos, e multa, as seguintes condutas discriminatórias contra o portador do HIV e o doente de
AIDS, em razão da sua condição de portador ou de doente: divulgar a condição do portador do
HIV ou de doente de AIDS, com intuito de ofender-lhe a dignidade”. Além disso, expor uma
pessoa soropositiva, segundo a Lei 12.984/2014, está sujeito a uma Ação Penal Pública
Incondicionada, sendo o titular o Ministério Público, e não as possíveis vítimas.
Mas, além disso, a análise da SINTEF também mostrou indícios de que o aplicativo
compartilhava informações sobre as “tribos”, sexualidade, etnia, status de relacionamento, o
número do ID do telefone, sem a permissão dos usuários, com empresas especializadas em
ações publicitárias online.
Na época, em resposta, o Grindr afirmou que o compartilhamento de dados constitui
uma prática padrão e que havia um conjunto de políticas em vigor para proteger a privacidade
de seus usuários. Sobre as empresas Apptimize e Localytics terem acesso aos dados, a
justificativa apresentada publicamente pelos responsáveis pelo Grindr foi que os serviços
prestados por essas empresas ajudam a tornar o aplicativo melhor.
Vale destacar que, para os usuários, os riscos envolvendo os vazamentos de dados não
incluem apenas a possibilidade de ser hackeado, o que corresponde a uma maior exposição a
uma ação digital criminosa. Em muitas situações, como no caso de pessoas que vivem em
comunidades homofóbicas ou em países com restrições e punições legais sobre a
homossexualidade, os riscos podem incluir a violação da integridade física dos sujeitos ou, no
limite, o risco de morte.
Além das opções predefinidas, a interface do Grindr também reserva um espaço de até
250 caracteres para que o usuário, se assim desejar, construa uma breve textualização falando
de si ou do parceiro almejado.
Indicando uma consolidação da tendência de convergência entre diferentes
plataformas, o usuário pode disponibilizar um link de acesso para páginas pessoais nas redes
sociais Facebook, Twitter e Instagram. Estabelecer ou não vinculações entre redes sociais,
assim como oferecer ou não alguma descrição sobre si é estritamente uma decisão do usuário.
Do ponto de vista dos sujeitos, a possibilidade de convergência entre diferentes
permite que estratégias sejam mobilizadas para driblar os termos de uso que regulam cada
plataforma de maneira específica. Por exemplo, para um usuário que busca sexo nos aplicativos
e, ao mesmo tempo, também produz conteúdos pornográfico para uma página no Twitter, o
vínculo entre o aplicativo e a rede social permite acesso rápido às postagens deixando expostas
suas intenções. Para um usuário preocupado em manter uma continuidade coerente entre as
relações on e offline afirmando sua identidade, a convergência por meio de links entre o
aplicativo e o Facebook torna-se uma oportunidade para que outro reconheça afinidades, como
gostos e amizades em comum.
É importante observar que não se trata apenas de uma estratégia que simplesmente
busca integrar entre diferentes plataformas. A estratégia das empresas é também fundada na
consolidação de oligopólios e, por isso, convergir de maneira integrada com outras plataformas,
além de ampliar o escopo da base de dados sobre os usuários, permite que os aplicativos
confirmem a identidade dos usuários se valendo dos dados de outras plataformas.
Por fim, embora não seja obrigatória, cabe ao usuário adicionar uma imagem do perfil.
Vale destacar que, de acordo com as diretrizes da comunidade, são expressamente proibidas
imagens contendo:
● Nudez e pornografia (cortes importam — se parecer que você está sem roupas, a foto
não será aprovada).
● Brinquedos eróticos e atos sexuais (reais ou gesticulados).
● Fotos de roupas íntimas.
● Formas ou silhuetas que tornam genitálias visíveis através da roupa Fotos da virilha
de qualquer ângulo (frente, trás e lado).
● Textos gráficos e emojis sobre atos sexuais
Plataformas de busca por parceiros são um dos variados gêneros midiáticos que
atualmente compõem o mercado de entretenimento adulto. Estão, portanto, ao lado de filmes,
séries, livros, espaços de lazer, brinquedos e artefatos exclusivamente produzidos, direcionados
e consumidos por esse público.
Uma mídia geoconectiva para busca por parceiros pode ser entendida como um híbrido
tecnológico, quer dizer, como uma síntese técnica formulada em resposta a um conjunto de
propósitos situados no mundo. Essa postura implica no reconhecimento de que a tecnologia dos
aplicativos hoje disponível não foi determinada pelo avanço tecnológico, mas foi buscada
diretamente, com propósitos já em mente, em resposta a problemáticas socioculturais, políticas
e econômicas então emergentes.
Entender a forma cultural (WILLIAMNS, 2016) dos serviços comerciais de busca por
parceiros demanda uma análise sobre a experiência fusional, que combina o desenvolvimento
de formas anteriores ao mesmo tempo em que produz formas e mistas e novas. Dito de outro
modo, mídias geoconectivas destinadas a busca por parceiros fundem eventos antes
experienciados separadamente pelos sujeitos, moldados por normas sociais específicas, e os
(re)contextualiza em uma interface de mídia criando uma continuidade entre eles.
Por exemplo, num mundo anterior à internet, conhecer alguém implicava em um
roteiro cultural apoiado em formas de interação específicas: a primeira aproximação, a troca de
olhares, as primeiras palavras, tudo isso mediado por ambiente social. Por meio de uma
interface, esse roteiro de interação é recontextualizado por uma rede de mediações audiovisuais,
que tem ressonância sobre as outras relações sociais. O antigo código-território de Perlongher,
agora recusado pelos jovens até nas baladas, onde mesmo estando no mesmo local trocam
mensagens ao invés de olhares.
Illouz (2011) explica que, na internet,
44 Fonte: Site do Grindr. Artigo “O que são Taps (ou essas chamas e pequenos demônios que aparecem)?”.
Disponível em: <https://help.grindr.com/hc/pt/articles/115008730267-O-que-são-Taps-ou-essas-chamas-e-
pequenos-demônios-que-aparecem->
FIGURA 4 - BOTÕES DE TAPS
45 Em minha dissertação de mestrado faço uma recuperação detalhada sobre o processo de construção do Grindr
a partir de entrevistas e declarações feitas de Simkhai em jornais, blogs e sites. Ver: Padilha 2015, Capítulo 2.
Tribos do Grindr (2015) Tribos do Grindr (2017)
Bear Urso
Clean-cut Elegante
Daddy Papai
Discreet Discreto
Geek Nerd
Jock Malhadinho
Leather Couro
Otter Barbie
Poz/HIV+ Soropositivo
Rugged Cafuçu
Twink Garotos
Trans Trans
FONTE: Interface do aplicativo Grindr.
*Nota: Dados organizados pelo pesquisador.
Se não respondi é porque não curti. Tenha bom senso para entender
que o silêncio também é uma resposta!
Tiago, 22 anos, autodeclarado branco, estudante de graduação, em seu
perfil no Grindr.
Curto o “lobo mau” porque têm tudo grande e, ainda com bônus, come.
Estou disposto a omitir para seus pais como nos conhecemos!
Alisson, 21 anos, autodeclarado branco, estudante de graduação, em
seu perfil no Grindr.
Tranquilo, sem muitas expectativas. Sou “macaco velho”, por isso, não
vou perguntar se você é afeminado, eu vou perceber. Nada contra,
questão de gosto.
Armando, 30 anos, autodeclarado branco, profissional liberal, em seu
perfil no Grindr.
Aguardando um motivo para sair daqui. Não busco por apenas sexo.
Não estou e não entro no cio como um animal. Se deseja sexo casual
sugiro que siga para o próximo perfil.
Eduardo, 24 anos, autodeclarado branco, gerente administrativo, em
seu perfil no Hornet.
Direta ou indiretamente todo mundo busca por sexo. Mas pra quê ter
esse app se todo mundo fica de moralismo a essa altura do
campeonato?
Marcos, 31 anos, autodeclarado branco, advogado, em seu perfil no
Grindr.
As frases acima foram extraídas dos perfis de usuários com quem mantive contato
pelos aplicativos Grindr, Hornet e Scruff. Assim como a metáfora do açougue colocada por
Renan, as frases de apresentações nos perfis são reveladoras a respeito de como, online, as
compreensões sobre interação, autenticidade e a própria experiência subjetiva são atravessadas
por noções de eficiência.
Serviços comerciais de busca por parceiros são parte de um universo cultural de
consumo que contribui ativamente para consolidar a incorporação subjetiva das relações
comerciais mediante a articulação entre mídias digitais e tecnologias corporais. Nesse sentido,
não são apenas artefatos tecnológicos que oferecem novas oportunidades para as relações
sociais, mas são máquinas de fazer sentido, equipamentos sociotécnicos que promovem uma
pedagogia midiática da subjetividade, da corporalidade e da sexualidade. Os Apps são também
dispositivos de midiatização dos sujeitos.
Diferentes abordagens sobre as relações mediadas pela tecnologia analisam como a
pornografia gay masculina se converteu em parte integrante das autorrepresentações gays em
plataformas online, especialmente nos serviços comerciais de busca por parceiros
(MOWLABOCUS, 2010; LIGHT, 2013; LEAL-GUERRERO, 2013; PADILHA, 2015;
MELHADO, 2018; MISKOLCI, 2017).
Mowlabocus (2010) argumentou sobre a construção do perfil online como uma
operação complexa, que envolve vários níveis e inclui tanto uma dimensão subjetiva - que
obriga o sujeito a refletir sobre como quer ser visto - quanto uma dimensão objetiva - que
implica em conhecer as funcionalidades da tecnologia. Corroborando com o argumento deste
autor, sustentei que “olhar um perfil é também avaliar o outro sob o seu próprio ponto de vista
e essa relação converte o perfil num ponto de mediação da autopercepção do sujeito com a
realidade externa” (PADILHA, 2015, p. 46).
Analisando a busca por parceiros nos Pampas Argentinos, Leal-Guerreiro (2013)
destaca a dimensão de recreação erótica-visual implícita ao compartilhamento de imagens de
nudez e pornografia amadora online como parte das práticas presentes nas plataformas de
relacionamento que estudou.
Com maior ênfase na dimensão do gênero, Ben Light (2013) pontua a forma como,
organizadas em rede, não apenas a sexualidade, mas também as masculinidades passaram a ser
complexificadas e agenciadas por noções e práticas de conectividade, mobilidade, classificação
e convergência.
Um exemplo dessa complexidade pode ser observado a partir da análise de Rodrigo
Melhado (2018) sobre a circulação de mensagens sociais de masculinidade a partir de um grupo
mantido no Facebook, identificado pela sigla BIV. Segundo Melhado (2018, p. 58),
o que eles [os entrevistados] definem como beleza e sex appeal e os atrai em perfis
online são retratos de homens modelares socialmente, reconhecíveis como masculinos
e heterossexuais a despeito de se relacionarem sexualmente com outros homens. A
busca de parceiro por meio de plataformas digitais reforça imagens midiatizadas
idealizadas, incentivando não só a busca por tais homens que ‘passam por hétero’,
como também a corporificação desse modelo hegemônico. (MISKOLCI, 2017, p. 49).
Diferente dos jovens estudados por Melhado que encontram nas mídias um espaço
confortável para compartilhar maneiras de como ser gay, os homens apresentados no estudo de
Miskolci buscam afastar-se da homossexualidade e dos estigmas que convencionalmente
associam a ela. A diferenças nas perspectivas sobre a homossexualidade indicam um coorte
geracional que se reflete tanto nas práticas, quanto nas maneiras de compreender e viver a
própria sexualidade.
Durante a pesquisa de campo no contexto do interior paulista, mantive contato com
uma rede de homens predominantemente formada por sujeitos jovens, com idade entre 20 e 40
anos, brancos, universitários ou empregados em funções para as quais é exigida formação em
nível superior. Assim, vivendo em cidades universitárias ou de maneira relativamente
independente da família muitos deles podiam buscar abertamente por encontros sexuais
descompromissados.
Isso não quer dizer que, nas conversas e entrevistas, não fosse comum ouvir relatos
sobre estratégias para driblar as pressões e expectativas familiares. Entretanto, para a maioria
deles, as mídias digitais permitiam a manutenção de redes de contatos entre pessoas com
interesses similares de uma maneira que até então seria impossível sem a mediação digital.
Diante da ausência de espaços que permitam sociabilidade do público gay, como bares e boates,
no interior, “as mídias digitais constituem uma saída tecnológica e provisória que possibilita o
arranjo estratégico de relações homoeróticas ao abrigo do olhar público” (PADILHA, 2015, p.
12).
Entre meus interlocutores, a possibilidade de aventuras sexuais emerge
frequentemente associada ao consumo de lugares, experiências e coisas 46 , mas também à
46 O mesmo aspecto de vinculação entre experiências sexuais e consumo foi enfatizado por Larissa Pelúcio (2018)
em sua pesquisa sobre masculinidades heterossexuais e as negociações de afetos nas mídias digitais.
fruição e ao ócio. O conjunto de frases de apresentação extraídas dos perfis e acima
apresentadas exprime a relação - ou a ausência dela - entre hábitos de consumo, práticas sociais
e sexualidade. Daí o sentido do trocadilho empregado por Roberto sobre o adágio popular:
quem não tem cão, caça com Grindr47.
Plataformas de relacionamento convidam os usuários se juntar a uma comunidade
baseada na afinidade e em códigos culturalmente compartilhados. Na versão digitalmente
mediada, a sexualidade passou a ser organizada no interior do chamado “mercado de
entretenimento adulto”, caracterizado principalmente pela presença de uma variedade de
mercadorias, produtos, equipamentos, serviços, artefatos e tecnologias voltadas ao sexo, mas
também por falar da pornografia de um modo sutil e bem-comportado.
Serviços comerciais para busca por parceiros voltado ao público gay constituem um
dos nichos no interior desse mercado. Plataformas abertamente voltadas ao sexo, como é o caso
desses aplicativos, tendem a incorporar a pornografia de maneira mais evidente, conforme
mostram as categorias autodescritivas oferecidas na interface do Grindr.
Pesquisas feministas no campo da Ciência e Tecnologia há quase três décadas
argumentam sobre as diferentes maneiras pelas quais identidades de gênero e discursos são
produzidos simultaneamente com as tecnologias. Nessa vertente de estudos, Wajcman (2010)
demonstra que artefatos materiais são parte do tecido social e, por isso, são fundamentais para
a manutenção dos vínculos sociais. Assim, desde uma perspectiva sociológica, objetos,
artefatos, equipamentos e coisas não podem ser vistos como sendo exclusivamente técnicos ou
sociais, daí a expressão “sociotécnico”.
Da perspectiva de quem as usa, conforme já mencionei, plataformas de busca por
parceiros convidam as pessoas a se descreverem de forma objetiva operando uma
decomposição de si em categorias pré-estabelecidas. Analisando a produção de perfis online, a
socióloga marroquina Illouz (2011, p. 113) observa que essas tecnologias de interativas incitam
que os sujeitos produzam uma “textualização da sua subjetividade” e essa operação requer do
sujeito, simultaneamente, um refinamento de suas fantasias e de seus ideais.
Para Illouz, a interação online cria um paradoxo que posiciona os sujeitos de maneira
contraditória em um processo que representa, ao mesmo tempo, a conjunção de um
“subjetivismo intenso” – que se expressa na descrição de características psicológicas – e a
intensiva objetificação do encontro – “como é a pessoa que desejo?” – mediada pela tecnologia
(ILLOUZ, 2011, p. 114).
47 O ditado popular adaptado por Roberto originalmente diz: “quem não tem cão, caça com gato”.
Em diferentes momentos ao longo de sua obra, Illouz (2007) oferece algumas pistas
para pensar sobre como mudanças tecnológicas estão profundamente vinculadas a mudanças
subjetivas. Para essa autora, tecnologias digitais não constituem apenas parte do nosso aparato
de comunicação, mas também passam a integrar nosso aparato emocional. Nesse marco
interpretativo, os apps podem ser entendidos como tecnologias projetadas para produzir a
socialidade entrelaçando emoções, tecnologia e ação econômica. É verdade que o período
compreendido pelo estudo de Illouz diz responde a um primeiro momento da internet, marcada
mais por textos do que pela profusão de imagens, tal como experimentamos atualmente.
Pelúcio (2018, p. 16) nota que “as buscas permanentes, propiciadas pelo mecanismo
de descartes de perfis, colaboram com a ideia de que há́ um campo inesgotável de possibilidades
de prazer e de experimentações”. Além disso, o estudo de Pelúcio também mostra como, mesmo
nas plataformas predominantemente voltadas para heterossexuais, “o sexo como parte do lazer
e este como um imperativo contemporâneo capaz de indicar o domínio sobre o tempo e os
prazeres, bem como na busca por excitação permanente” (p. 20) estabelecem os contornos das
aventuras sexuais.
No estudo de Pelúcio, esses elementos estão profundamente vinculados à esfera das
masculinidades. Nesse sentido, tanto homens hetero como homo partilham de valores
“comuns” de masculinidade que valorizam a predação sexual, a excitação permanente e
sexualidade serial controlando envolvimento emocional com as parceiras.
De outro modo, autoras como Van Dijck (2016), tem problematizado a posição do
sujeito em relação à tecnologia argumentando que, uma vez conectado, agência do usuário deve
ser entendida como um constructo tecnocultural. Isto porque, para a autora, não se trata de uma
via de mão única, pois “a tecnologia influi tanto na socialidade quanto a socialidade influi na
tecnologia, conforme um processo que é possível de ser rastreado nas relações dos usuários”
(p. 59). Assim, agência dos usuários está situada entre a dimensão implícita do programador e
a dimensão explícita do uso.
Entretanto, no caso dos Apps para homens gays, tratamos de tecnologias baseadas em
experiências sociais e que portanto foram pensadas como“facilitadoras” de formas relacionais
sociais e históricas pré-existentes, que se materializam em plataformas digitais. Os usuários
dessas redes interferem com muito menor poder no “aperfeiçoamento” e na modificação, daí a
impressão de que o Grindr mudou pouco. Assim, pode ser, que os apps tenham sido criados por
classes-médias profissionais que tinham a prática do hookup e buscaram um meio para facilitá-
la. Ao materializar tal facilitador em Apps, as startups disseminaram sua forma de se relacionar
para outros segmentos sociais cujo uso dialoga, mas muda pouco as plataformas. As mudanças
que ocorrem nas suas interfaces não afetam a sua lógica de uso socialmente cristalizada.
Entretanto, esse conjunto de práticas não atua apenas orientando os usuários no mundo
- quer dizer, no nível do app, viabilizando contatos, interações sincrônicas e como um canal
para a expressão de fantasias e desejos -, mas também estão ativamente comprometidas na
regulação de corpos. Murray e Ankerson sublinham como, no limite, o design das interfaces de
relacionamento online atua regulando corpos sexualizados e racializados. As formas que as
interfaces assumem representam uma oportunidade valiosa para questionar as maneiras pelas
quais domínios, práticas de governo, moralidades e a socialidade passam a ser arregimentadas
pelos desenvolvedores. Mais do que a visualidade, a interface carrega em si formas de
racionalidade política subjacentes a projetos que são simultaneamente tecnológicos e
ideológicos.
Vaucelle (2008) argumenta que o design de software e hardware das plataformas de
relacionamento não são pensados apenas como ferramentas passivas para a troca de
informações, tampouco se projetam para simplesmente estimular os sentidos. Para Vaucelle,
“serviços de conexão em rede buscam ativamente construir no nível individual uma relação
entre o corpo digital e físico” (p.167).
Boyd (2014) sustenta que criar um perfil é também produzir uma performance da
identidade no interior de uma plataforma, ou melhor, no interior de uma arquitetura
computacional programada por códigos orientados para uma finalidade. Entretanto, considero
que o uso das mídias digitais opera como um “treino” que passa a modificar os sujeitos, seus
corpos e sociabilidade fora da plataforma também. São dispositivos que mudam os sujeitos e
suas relações no contínuo on-offline.
Quer sejam físicas ou digitais, infraestruturas são redes construídas para facilitar o
fluxo de bens, pessoas ou ideias e também para permitir a troca de informações sobre o espaço.
Em sua dimensão física, essas redes moldam a natureza de uma rede de relações e modulam a
velocidade e a direção de seu movimento, suas temporalidades e sua vulnerabilidade à quebra.
Elas integram o aparato arquitetural que viabiliza, dificulta ou impede a circulação de pessoas,
coisas e informações.
Em termos históricos, a produção de infraestruturas configura o ambiente da vida
cotidiana, sendo uma das bases fundacionais das sociedades modernas. Analisando as políticas
e poéticas da infraestrutura, o antropólogo Brian Larkin (2013, p. 329) argumenta que:
As plataformas de busca por parceiros sugerem uma compreensão do uso como uma
prática individualizada, organizada a partir de uma experiência privada e intimamente ligada
aos interesses de quem usa, como se fosse apenas uma ferramenta para entretenimento. Essa
percepção é reiterada pelo ambiente de mídia atual, no qual as pessoas dispõem de inúmeros
canais para a comunicação pessoal e podem fazer escolhas selecionando entre diversas opções
de acordo com os próprios interesses. O sujeito sente que está no controle.
A partir dos usos que meus interlocutores fazem dos serviços comerciais de busca por
parceiros para homens gays pretendo tensionar e complexificar essa compreensão
individualista. Para tanto, irei contrapor um entendimento sociológico do uso, levando em
consideração as relações subjacentes a esse tipo de serviço comercial.
Este capítulo contextualiza os usos sociais de um segmento específico das mídias
geoconectivas para questionar quais são os interesses dos sujeitos que usam e, também, para
analisar em que condições esse uso se dá. Minha intenção é operar na interface entre questões
que se situam no plano do conhecimento - aquilo que as pessoas falam - e as que estão no
terreno das práticas - aquilo que as pessoas fazem.
A hipótese sugerida a essa relação é que a interface gera um procedimento para as
interações sociais com base em elementos histórico-culturais que moldam a busca por parceiros,
o que contribui para legitimar o seu uso. Em sua versão online, as condições da busca se
deslocam e esse deslocamento produz efeitos nas formas de interação, com impactos nas
relações intersubjetivas e, por conseguinte, com efeitos para o reconhecimento. Os achados de
pesquisa apontam para os elementos que compõem a gramática moral do sexo online nas redes
digitais de buscas de parceiros para homens gays.
Vale reiterar que os sujeitos não se movem apenas dentro dos limites da plataforma.
Conectados ao universo difuso da internet, as relações que meus interlocutores estabelecem
extrapolam os aplicativos e incluem lugares, pessoas, outras tecnologias e plataformas de
relacionamento. Nesse sentido, a metáfora da rede é uma representação gráfica que busca
atribuir uma morfologia para os contatos e os vínculos sociais e, portanto, deve ser
compreendida como um constructo produzido a partir de um recorte das relações.
Meu enfoque mira os usos e os contextos, de modo que não tenho a pretensão
reconstruir a totalidade de relações presentes na rede, mas analisar um conjunto de práticas
específicas que se configuram na interatividade entre usuários (sujeitos situados em contextos)
e uma interface específica: a dos aplicativos geolocativos de busca por parceiros para homens
gays.
O capítulo está estruturado em duas partes. Na primeira parte, analiso os repertórios
culturais acionados pelos meus interlocutores ao classificar as identidades. Na segunda parte,
analiso os repertórios sobre o corpo a partir das percepções dos interlocutores e o contexto
sociocultural, em diálogo com Axel Honneth, discuto a gramática moral dos corpos e do desejo
assimilados ao conceito central de reificação.
É domingo e o mês é maio. Estou na casa dos meus pais, na pequena comunidade rural
onde cresci, formada por aproximadamente 3 mil habitantes, localizada a menos de 10
quilômetros de distância do centro da cidade de São Carlos. Por volta das 8 horas da manhã,
um amigo de infância envia uma mensagem perguntando se eu gostaria de acompanhá-lo a uma
festa comunitária que aconteceria em outra comunidade rural, situada a aproximadamente 30
quilômetros dali. Aceito o convite.
Festas assim são organizadas pelas paróquias e ocorrem uma vez ao ano. São eventos
que integram o calendário anual das comunidades, de modo que esses momentos são esperados
e, quando acontecem, costumam ser prestigiados pelos moradores locais. A festa do padroeiro,
como é chamada, ocupa todo o final de semana atraindo moradores de outros municípios e
pessoas que vivem em fazendas, sítios ou nas incontáveis pequenas chácaras que se espraiam
pela região.
Convencionalmente, cada comunidade tem uma paróquia e cada paróquia escolhe um
domingo para render homenagens ao santo padroeiro do local. Na zona rural, o número de
eventos públicos e oportunidades de lazer nesses espaços é limitado em contraste com as
cidades médias e menores da região. Em comunidades como a que cresci, a sociabilidade no
espaço público é predominantemente organizada em torno das praças, das igrejas católicas e
neopentecostais e dos bares. Sendo assim, ocasiões desse tipo são experimentadas como um
acontecimento relevante para a comunidade porque representam um momento de deslocamento
na rotina local.
Durante as festas paroquiais, sagrado e profano confluem gerando novas
oportunidades de negócios para muitos moradores da comunidade. As festividades cumprem
um roteiro. Na noite de sábado, por volta das 23 horas, no salão de festas da paróquia, acontece
o “baile” embalado pela música caipira alternado com hits do sertanejo universitário. Esta é
uma valiosa oportunidade para as bandas locais se apresentarem ao público.
No domingo, as atividades se desenrolam intercalando a programação religiosa e
atividades profanas. Pela manhã, as atividades se concentram em torno da cavalgada, como é
chamado o desfile de cavaleiros e amazonas que levam seus animais pelas ruas do centro, onde
fica a igreja, para receberem as bênçãos concedidas pelo padre. Entusiasmados com a festa,
muitos jovens seguem direto do baile para o desfile. Após o almoço, o período da tarde é
ocupado pela missa que se desenrola com a procissão, quando todas as imagens de santos e
santas da igreja são expostas e desfilam pelas ruas sobre andores enfeitados com flores naturais
coloridas cuidadosamente encaixadas entre tecidos de cetim recobertos com tule. As famílias
de moradores locais se organizam e dividem a responsabilidade pela preparação das imagens e
pelos enfeites que irão adornar os andores de cada santo, tal atividade é predominantemente
atribuída às mulheres.
Durante o final de semana, enquanto acontecem os festejos, as ruas são preenchidas
por pequenas barracas especializadas na venda de comidas, bebidas e artefatos de todos os tipos:
artesanatos, enfeites e presentes em meio a uma incalculável variedade de souvenires fabricados
na China. O espaço das barracas é locado pela igreja e, ao que tudo indica, os rendimentos
financeiros obtidos com o evento é destinado à manutenção do prédio, à implementação e às
melhorias na infraestrutura da própria festa, o que garante os meios necessários para a sua
realização no ano seguinte.
Nos meses que antecedem o evento, parte significativa da comunidade católica local
está, de alguma maneira, envolvida com esse dia. Segundo as normas de gênero que regulam
as atividades, enquanto as mulheres cozinham, limpam e enfeitam, os homens cuidam dos
negócios que envolvem o dinheiro, o que equivale a assumir os compromissos em torno da
organização da estrutura da festa
Há vários sentidos em jogo no contexto da festa do padroeiro. Para as famílias de fiéis
envolvidas com as comemorações, a festa é mais uma oportunidade para reafirmar a fé e para
fortalecer os vínculos de solidariedade que nutrem a comunidade. Para o comércio, pequenos
biscateiros locais, e para a igreja é uma valiosa oportunidade de aumentar os lucros. Para os
moradores em geral, especialmente para os mais jovens desprovidos de recursos financeiro que
lhes garantam mobilidade de maneira relativamente autônoma, a festa representa uma das raras
oportunidades de diversão no espaço público, agora movimentado e repleto de pessoas
“desconhecidas”. Por algumas horas, a paisagem local destoa da rotina pacata da comunidade
em que todos se conhecem.
Ao cair da noite, a praça em frente à igreja matriz fica mais movimentada à medida
que passa a contar com a animação de modestas apresentações musicais. Por vezes, os pequenos
shows se revezam com discursos proferidos por políticos locais em busca de votos e pelo pároco
local, que se desdobra em agradecimentos aos apoiadores do evento. Em geral, essa é uma
oportunidade de visibilidade não apenas para líderes político, mas, sobretudo, para as duplas de
música caipira e pequenos grupos sertanejos formados por moradores da região, que ganham a
vida se apresentando em eventos do mesmo tipo. Para esses artistas, assim como para os
barraqueiros e biscateiros locais, as festividades dos padroeiros formam um circuito de eventos
que se sucedem e lhes garante sustento durante o ano todo.
Em termos ocupacionais, a população local está predominantemente organizada em
torno do agronegócio, cuja principal face é a indústria sucroalcooleira. Também há um número
significativo de pessoas que tiram sustento da agricultura familiar praticada em pequenas
fazendas e sítios dispersos pela região, além de um número menor de residentes alocados no
funcionalismo público, no comércio ou em algum setor dos serviços privados prestados na
região. Nas pequenas comunidades da zona rural também não é incomum encontrar muitas
pessoas que sobrevivem tirando sustento de ocupações temporárias e perenes, conhecidos como
“diaristas”. Em termos educacionais, a população local é formada predominantemente por
pessoas com ensino fundamental completo que se soma a uma pequena parcela de pessoas, em
geral jovens, com grau de especialização técnica ou superior.
Existem algumas dezenas de pequenas comunidades rurais semelhantes espraiadas por
essa região do interior paulista. Muitas são formadas por descendentes de imigrantes espanhóis,
italianos e japoneses e por migrantes das regiões Norte e Nordeste que vieram em busca de
novas oportunidades de trabalho. No contexto local, a relevância da festa paroquial não pode
ser desprezada. As pessoas se preparam para no dia da festa vestirem suas melhores roupas e,
revelando as dinâmicas de gênero locais, as garotas se enfeitam e vão ao cabeleireiro. Enquanto
elas cuidam dos cabelos e da maquiagem, os rapazes preparam os chapéus, botas e cintos
ornamentados que usarão durante o evento.
As atividades do domingo começam bem cedo. Pouco depois das 7 horas da manhã já
é possível ver um grande número de pessoas que se aglomeram pelas as ruas estreitas.
Moradores locais esperam o desfile em frente de casa enquanto conversam com parentes ou
conhecidos que se deslocaram para participar do evento. Cerca de 300 cavalos e seus donos se
espraiam por todas as ruas por onde os pedestres se espremem e disputam o espaço. Todos estão
à espera da cavalgada. Além de cavalos, também é possível ver, em menor quantidade, alguns
homens e mulheres montados em búfalos e touros domesticados.
Assim que chegamos, meu amigo me explicou que antes de irmos ao local da festa
passaríamos na casa de Alan, um conhecido dele, para que pudéssemos nos juntar a um grupo
que estava lá se aprontando para o evento.
Em pequenas comunidades rurais como a que cresci e como esta - formadas por menos
de 10 mil moradores - não é um exagero afirmar que todos se conhecem. Famílias que vivem a
mais tempo na região são conhecidas pelo sobrenome de tal modo que não é incomum que
alguém explique sobre o contexto local dizendo apenas: “aqui são todos parentes”. A
proximidade entre parentes também pode ser entendida como indicativo a respeito de como o
número reduzido de pessoas se reflete no mercado matrimonial local.
Torna-se também compreensível as razões pelas quais as redes de relações podem ser
continuamente usadas pelas pessoas para posicionar conhecidos e desconhecidos - tal como
fazia Graziela - a dona do bar localizado na cidade de Rafael -, de quem falei anteriormente.
Em comunidades menores, alguém sempre é casado com o primo ou o primo da prima de
alguém conhecido. Alguém é sempre parente de alguém e esse dado situa os sujeitos na rede de
relações sociais.
Chegando à casa de Alan, nove pessoas conversavam e tomavam café enquanto se
preparavam para sair. Logo que entrei, percebi que quatro rapazes eram pessoas com quem eu
já havia conversado pelos aplicativos e de pronto notei que também fui reconhecido. Devo
explicar que, embora tenha crescido em uma dessas comunidades rurais, há mais de uma década
moro em outras cidades, o que resulta em certa dificuldade para posicionar de pronto as pessoas
nas redes de relações, sobretudo, as mais jovens. Ainda assim, uma vez que sou nativo, muitos
me reconhecem a partir da minha família, formada por mãe e tias professoras que lecionam na
região, mas também porque, ao longo do mestrado, durante um curto período, eu mesmo
trabalhei como professor de sociologia em escolas localizadas áreas rurais.
Enquanto caminhávamos em direção à igreja matriz, Pedro, um dos rapazes que
estavam na casa de Alan, puxando assunto comigo, perguntou-me se eu havia parado de dar
aulas na escola local. Respondi que sim, que desde que havia conseguido a bolsa de estudos, há
cerca de três anos, passei a me dedicar exclusivamente aos estudos e, por isso, tive que deixar
as aulas. Perguntei se nos conhecíamos da escola, afinal, considerando que ele tinha 22 anos,
poderia perfeitamente ter sido um dos meus alunos. Ele me respondeu que não, mas que já
havíamos conversado algumas vezes pelo aplicativo. Pedro demonstrou interesse em conversar
comigo e, mais tarde, informado sob as condições da pesquisa, aceitou colaborar com meu
estudo.
Pedro trabalha como cabeleireiro, ofício que aprendeu aos 16 anos quando foi
contratado pela cabeleireira da rua onde morava para, aos finais de semana, ajudá-la cuidando
de preparar os cabelos das clientes para o corte. Incentivado pela avó materna, com quem viveu
dos 12 aos 20 anos, o trabalho começou como uma ocupação para obter uma renda extra. Pedro
diz que logo foi pegando jeito e gosto pela coisa. Aprimorando seus conhecimentos, mais tarde
ele conseguiu um emprego em um grande salão da “cidade”, como os moradores locais
costumam se referir ao maior município próximo da comunidade.
Morando em São Carlos, com frequência, Pedro retorna a antiga comunidade para
rever os avós e os amigos de infância, com quem mantém uma relação bastante próxima.
Percebendo que falávamos sobre os aplicativos e sobre as particularidades de viver em
uma comunidade pequena, Sávio, um dos amigos de Pedro, deu sua opinião explicando que
também crescera ali, mas que, naquele momento, estava desempregado e vendo o fim de suas
economias teve como única opção retornar para a casa dos pais como uma alternativa para
sobreviver até que conseguisse um novo emprego.
Sávio tem 25 anos. Ele contou que em seu último emprego trabalhava como estoquista,
mas que antes disso já havia passado por diversos postos de trabalho, como office boy, moto-
taxi e, também, durante 2 anos, trabalhou como motorista em uma das usinas de cana-de-açúcar
da região, função mais estável e na qual permaneceu mais tempo dentre as experiência de
emprego.
Assim como Pedro, Sávio também prontamente reconheceu minha imagem,
associando-me aos aplicativos. Ele me explicou que, diferente do que se passa em uma grande
cidade como a que vivia antes, nas comunidades menores são poucos os usuários presentes nos
aplicativos e que, por isso, acaba sendo mais fácil que as pessoas se encontrem e se reconheçam.
Na pequena comunidade rural poucos rapazes são, como meus colegas, abertamente
homossexuais. Em contextos rurais, marcados pela moral familista e religiosa, assumir-se gay
quase sempre implica na possibilidade de ruptura com os vínculos familiares, o que permite
entender as razões pelas quais, enquanto caminhávamos até a praça da matriz, Alan me
perguntou se eu sabia que andando com eles, todos saberiam que eu também era gay. Respondi
que provavelmente poderia acontecer, mas que isso não representava um problema para mim.
Como Sávio, nem todos dispõem dos meios necessários (materiais e psicológicos) para
arcar com as consequências decorrentes de uma ruptura familiar e isso explica as razões pelas
quais, desde que voltou a morar com os pais, ele diz ter procurado “segurar a onda”. Menor
ainda é o número dos que, como Pedro, podem contar com o apoio dos avós para sobreviver às
tensões presentes no ambiente da família nuclear.
Pergunto porque Pedro passou a viver com os avós. Meu interlocutor explica que a
decisão se deu quando ele, então na puberdade, passou a ser vítima das investidas críticas do
pai sobre sua aparência, seus maneirismos e sua personalidade, considerados excessivamente
femininos. Uma vez acolhido pela avó, o afastamento emocional entre Pedro e o pai se
aprofundou. Ao falar sobre a relação dos dois, ele pondera dizendo que muitas coisas mudaram
com o tempo e que ter paciência foi fundamental para assistir a uma mudança de postura por
parte do pai, que se tornou menos agressivo e autoritário. Assim, nas palavras dele, atualmente
os dois conseguem manter “uma relação de cordialidade e respeito mantida a uma distância
segura”.
Perguntei para Pedro o que então havia motivado a sua mudança da casa dos avós para
a cidade. Ele me explicou que depois de adulto, já com alguma estabilidade financeira, sentiu
que precisava aproveitar mais a vida, viver com mais liberdade e ter novas experiências.
Embora considerasse boa a vida com os avós, Pedro diz que acha a vida na cidade melhor, mas
não apenas por questões salariais, haja vista que a cidade oferece uma série de oportunidades
que são inacessíveis para quem vive na zona rural. Perguntei então a quais oportunidades ele
se referia. Ele me respondeu que tinha a ver com um maior número de opções de trabalho,
consumo e lazer, além da possibilidade de encontrar alguém para uma simples diversão
momentânea ou até mesmo para um namoro.
Para rapazes como Pedro, Alan e Sávio a mudança de cidade em busca de novas
oportunidades de trabalho representa também ter maiores condições de autonomia e liberdade.
Mudar-se também significa abrir uma janela de oportunidade para constituição de novos laços
de amizade e de afeto baseados mais em afinidades do que no local de moradia. Além disso,
ser homossexual e viver em uma pequena comunidade rural implica em lidar com a escassez
de um mercado amoroso e sexual no interior de um mercado moldado pela escassez de
parceiros. Em outras palavras, o número reduzido de pessoas se torna ainda mais restrito quando
se considera apenas as pessoas que vivem abertamente homossexualidade e isso diminui ainda
mais as chances de que as pessoas possam consolidar uma relação estável.
Minhas observações permitem sugerir que, entre casais formados por pessoas do
mesmo sexo, é mais comum que a relação se estabeleça entre duas pessoas assumidas ou entre
duas pessoas “no armário”. Logo, são mais raros os relatos de relacionamentos estáveis entre
uma pessoa assumida e outra que não é assumida. Essa característica dos relacionamentos pode
ser compreendida levando em consideração o fato de que pessoas que vivenciam experiências
homoeróticas em segredo temem a exposição pública e, por isso, acabam evitando se associar
a pessoas reconhecidamente homossexuais.
É possível aventar que o baixo número de experiências afetivas e amorosas
consideradas bem-sucedidas apontadas pelos meus três interlocutores opera como parte da
gramática afetiva que operam se molda às restrições presentes nos contextos onde cresceram.
Enquanto conversávamos sentados em uma barraca próxima à entrada da igreja,
perguntei aos meus interlocutores se a distância funcionava como um impeditivo para conhecer
pessoas por meio dos aplicativos. Minha pergunta foi elaborada considerando que, nos apps, a
distância é um elemento fundamental para as interações. Sendo assim, distâncias mais longas,
como a que separa a comunidade rural das cidades mais próximas, poderia funcionar como um
impeditivo para o contato, uma vez que exigiria alguma mobilização para um encontro face a
face.
Alan me respondeu que, geralmente, usava o aplicativo buscando rapazes nas cidades
próximas, onde também têm outros amigos e parentes e para as quais acabava viajando com
relativa frequência. Sávio disse que, quando estava na casa dos pais na zona rural, buscava
contatos com rapazes que estavam em Ribeirão Preto, cidade onde morava antes, sendo que os
encontros aconteciam apenas quando ele retornava para lá. Pedro brincou dizendo que, quando
não estava conversando com os “meninos” - seus amigos Alan e Sávio - pelo aplicativo,
também buscava rapazes das cidades mais próximas e os encontrava depois.
Em comum, sob o ponto de vista dos três amigos, a internet emerge como uma
ferramenta para conhecer “caras interessantes”. Diante da afirmação reiterada, perguntei a eles
quais características atribuíam a um “cara interessante” e, em contrapartida, quais seriam
aquelas capazes de tipificar um “cara desinteressante”. Nas palavras de Pedro:
Aqui você vai encontrar um monte de peão, que é um tipo de cara mais rustico, chucro.
Mas tem seu valor. Isso não quer dizer que eles não deixem as coisas rolarem, eles
deixam. Mas é aquele negócio: são caras que vão transar e acabou. Não é uma figura
com quem vai rolar você trocar uma ideia depois do sexo e nem ter um momento de
carinho. É sexo e pronto, acabou. Se é só pra se divertir, tudo bem, não tem problema.
Não quer dizer que os caras não sejam gostosos, não é isso. É que é sempre mais do
mesmo, não tem nada novo, nada de interessante. A gente costuma brincar dizendo
que o mundo dos cowboys é a coisa boa daqui, mas tem a coisa ruim, que é você ter
de disputar eles com as cowgirls e com as outras cowbichas para ver quem pega
primeiro. (Diário de campo do pesquisador).
A fala de Pedro chamou minha atenção por diferentes motivos. Em primeiro lugar,
porque ela explica como, nesse contexto, os aplicativos se tornam ferramentas poderosas que
permitem a esses jovens - ao menos tese - driblar as restrições espaciais garantindo que
conheçam pessoas que consideram “interessantes”. Em segundo lugar, porque aqueles
considerados os caras interessantes parecem ser com quem se pode ter uma relação mediada
por expressões de afeto e carinho.
Além disso, há outro elemento que revela uma linha conectando a sociabilidade dos
jovens gays (cowbichas) à sociabilidade dos cowboys, que até então pareciam se tratar de
universos configurados como se fossem radicalmente apartados. Nesse sentido, Pedro chamou
minha atenção para como, embora aparentemente não mantivessem relações sexuais com outros
homens, os cowboys mantinham realações com as “cowbichas”.
Ao falar sobre cowboys e cowbichas, Pedro estava sendo irônico. Embora conheça os
códigos da cultura local, ele não é reconhecido como um cowboy e nem se identifica dessa
maneira. Entretanto, ele sabe que na região há outros rapazes gays que se vinculam à estética e
aos elementos culturais da zona rural. Diferente do que ocorre com meus colegas, esses rapazes,
que também estão pela festa, guardam uma profunda identificação com o universo dos cowboys
e aderem ao estilo country transitando entre acessórios e normas de gênero. Além do mais, é
preciso entender um pouco das dinâmicas locais: as comunidades rurais são marcadas pelos
fluxos e deslocamentos dos moradores, mas também por rivalidades e disputas.
Embora sejam muito parecidas em termos sociológicos, os moradores locais
expressam considerações diferentes sobre cada uma das pequenas comunidades rurais. Essas
considerações expressam noções sobre a paisagem geográfica e social. Assim, algumas são
rotuladas pelos meus interlocutores como sendo “mais rurais”, “mais pobres”, “com menos
infraestrutura”, “um mar de cana” a partir de associações estigmáticas com a “roça”, como local
do esquecimento e do tédio, em contraposição à cidade, ambiente frequentemente adjetivado a
partir de associações simbólicas mais positivas. Assim, a cidade é percebida como local do
movimento, da fruição, das possibilidades, mas também das incertezas. Os rótulos evocados
pelos rapazes acionam compreensões sobre o espaço, a tecnologia, classe e gênero situados sob
a perspectiva da cultura local. São temas nos quais estou interessado.
Prossigo a conversa perguntando mais sobre como seriam as cowbichas. Alan me
explica que esse é o modo como eles ironicamente se referem às “bichas novinhas que usam
chapéus, botas e camisas xadrez, roupas usadas pelos machos, mas dão pinta, usam
maquiagem e amarram as camisas xadrez na cintura deixando o umbigo aparecer”. Pergunto
porque não seríamos também cowbichas, já que também somos abertamente homossexuais.
Alan responde dizendo que “nessa lógica, a gente tá mais pra queerpira, porque somos as
bichas que fugiram para a cidade”. Todos caem na risada.
Em termos culturais, tanto as noções que regem a compreensão sobre o “cara
interessante” quanto as que delimitam as fronteiras entre “cowbichas” e “queerpiras”
exacerbam as propriedades das convenções de gênero e das distâncias geográficas, simbólicas,
e socioeconômicas a partir das quais ocorre a estratificação dos sujeitos em termos locais. Mas
a fala de Alan também pode ser compreendida como a exibição do que Humphreys chamou de
“super propriedade”, um tipo de apresentação de si que é respeitável mesmo sendo apoiada em
uma falha.
Em seu estudo sobre a gramática social das identidades gays em um subúrbio de
Chicago, Wayne Brekhus (2003) também constatou que os sujeitos se valiam de um tipo de
apresentação baseado em “super propriedades” para minimizar o estigma. Este autor mostra,
por exemplo, como alguns imigrantes podem se apresentar como “americanos” ao extremo, e
alguns membros de subculturas criminosas podem se apresentar como piedosos e moralmente
irretocáveis em outras áreas de suas vidas.
Em sua análise sobre as dinâmicas de gênero e identidades entre jovens participantes
da “cultura campeira” do sul do Brasil e sua relação com as novas discursividades veiculadas
pela internet e as redes sociais, Mirian Adelman argumenta que na medida em que criam
condições para a inserção desses jovens em “numa malha de circulação discursiva mais ampla,
oferecem canais para novas reflexões que interrompem, mesmo que parcialmente, formas
hierárquicas “tradicionais” (2015, p. 142), até então disponíveis para a autocompreensão dos
sujeitos.
Meus achados de pesquisa corroboram com o argumento de Adelman, pois
Entre uma conversa e outra, Sávio é apontado pelos amigos como o mais “discreto”
entre os três. Também é ele, entre os três, o que possui um histórico de ocupações em áreas
predominantemente masculinas.
Segundo Sávio, quando pensa em alguém interessante imagina:
um cara mais parecido com a gente, gay mesmo e sem essas frescuras de ficar posando
de macho com as garotas e, depois, tarde da noite, sair à caça pela rua pra ver se
encontra a gente para curtir uns minutinhos. Mas também não precisa ser muito bicha.
É alguém com quem dá pra pensar em ter uma relação, um lance mais sério. Eu sempre
vejo os caras daqui e me pergunto: pra quê eu vou querer me apaixonar por um cara
assim? Eu não vejo nenhum futuro além de problemas. Então é só sexo. (Fala extraída
de anotações feitas no diário de campo do pesquisador)
É possível questionar em que medida “caras mais interessantes” são de fora porque
imaginados sob outros contextos socioculturais. São imagens alimentadas pelas fantasias e
pelas expectativas que os rapazes nutrem de conseguir encontrar pessoas com as quais possam
se relacionar. Pessoas com uma “outra mentalidade”.
Consequentemente, “ser mais interessante” não reúne apenas uma compreensão em
torno de semelhanças em termos de um perfil sociobiográfico, mas, sobretudo, em torno da
possibilidade de partilhar uma relação romântica. Mas como relações impessoais e, por vezes,
explicitamente hierarquizadas convivem com a busca por relações estáveis embebidas em ideais
igualitários?
A história da homossexualidade é também marcada por interações moldadas pela
impessoalidade, geridas em meio aos silêncios e descontinuidades (HUMPHREYS, 2008). São
interações íntimas, mas que devem conservar seu caráter efêmero. Isso explica porque, em
contrapartida, dos caras considerados “desinteressantes” não se espera nada além de sexo,
menos ainda carinho, afeto e cumplicidade. “Interessante” pode ser entendido como uma senha
para se referir a alguém idealizado a partir de semelhanças, sendo a principal delas o objetivo
em comum de estabelecer e nutrir uma relação estável baseada no afeto, algo que parece
improvável em meio aos contatos exclusivamente sexuais, mas também é um meio para falar
sobre com quem se pode ou não trocar carinho e afeto.
Uma forma possível de descrever a condição romântica vivida pelos meus
interlocutores é que, no mundo contemporâneo, “a autonomização da sexualidade em face ao
reino das interações emocionais resulta incerto, permeado de ambivalências sobre as regras para
negociar o compromisso, o amor e o desejo. Na linguagem dos sociólogos, tornou-se
indeterminado” (ILLOUZ, 2014, p. 94). Por isso, ainda que mantenham vínculos profundos
com a comunidade de origem, os rapazes estão mais submetidos aos ditames precários e
indeterminações que caracterizam o mundo do trabalho nas cidades do que às normas que
caracterizam a vida nas pequenas comunidades. Mas, “à medida que os indivíduos se tornam
cada vez mais social e geograficamente móveis (isto é, individualizados), regras e estratégias
sociais (novas) são necessárias para ajudar a moldar os objetivos individuais” (ILLOUZ, 2014,
p. 39).
Parafraseando a socióloga marroquina, pode-se afirmar que as relações para esses
rapazes oscilam entre a determinação e a indeterminação: a indeterminação das relações
românticas e as determinações das práticas do sexo casual; a indeterminação do trabalho
precário na cidade e as determinações resultantes de viver próximo da família em uma pequena
comunidade.
Para os meus interlocutores, a projeção em torno do nível de pessoalidade, entendida
como sinônimo de proximidade nas relações, é o que separa os caras interessantes daqueles que
são por eles considerados desinteressantes. Compreender esse jogo é fundamental para um
entendimento sociológico sobre a impessoalidade. A proximidade social é definida a partir de
“códigos de experiência social” (ILLOUZ, 2014), isto é, a partir de mapas cognitivos que
incorporam e refletem as condições concretas de práticas, esquemas, sinais e significados com
sentidos que ora aproximam ora distanciam as pessoas em relação umas às outras. Assim, é
possível conhecer alguém e manter com essa pessoa uma relação estritamente impessoal, basta
pensar no número de relações profissionais que se encerram no ambiente de trabalho.
A impessoalidade introduz um elemento de racionalização, que a partir de finalidades
específicas, estabelece uma distância entre os sujeitos. Desse modo, pessoalidade e
impessoalidade podem ser melhor compreendidas como noções definidas na interação social e,
portanto, de maneira relacional. Pessoal e impessoal não são de modo alguns princípios
mutuamente excludentes, mas um conjunto de posturas. Aliás, os rapazes conhecem os outros
rapazes e homens com quem eventualmente fazem sexo casual.
Ao definir o que consideram como um “cara interessante” meus interlocutores o fazem
separando e agrupando semelhanças e diferenças. As semelhanças indicam valores e objetivos
que poderiam ser partilhados: afeto, carinho e ideias. A similaridade é o ingresso para as
fantasias sobre a possibilidade de uma vida a dois informada por repertórios culturais sobre
como devem ser as relações românticas igualitárias. As aspirações dos rapazes em torno de
relações estáveis e mais duradouras, por outro lado, também podem ser explicadas
considerando inexperiência afetiva, resultado de pouquíssimos relacionamentos curtos, e o
desejo explícito de viver essas relações abertamente.
Enquanto conversávamos à mesa, Alan permanecia o tempo todo no celular. Rodrigo,
um dos rapazes que estava conosco, brincou dizendo que Alan não deixava o telefone porque
desde o dia anterior estava conversando com um rapaz que morava em uma comunidade
vizinha. Perguntei para Alan se era verdade. Ele confirmou sorrindo e contou que havia
combinado um encontro mais tarde, ainda durante a festa, mas confessou que estava um pouco
aflito porque, embora soubesse que o rapaz estava nas proximidades, dependia do telefone para
o contato, mas o sinal da operadora de telefones que havia contratado apresentava
intermitências naquela região.
A internet banda larga chegou às comunidades rurais da região após o ano de 2015.
Antes disso, alguns poucos moradores dispunham de conexões via rádio, com menor
capacidade de tráfego e mais sujeita à intermitência. Apenas uma operadora de telefonia móvel
apresenta sinal na região, de modo que todos os moradores locais precisam se adequar a uma
única opção de serviço disponível. Nesse dia, fiquei sem telefone e entendi que, em um contexto
comercial, no qual a disponibilidade de conectividade se orienta pelo mercado, as condições da
conectividade são moldadas pela geografia e pela densidade populacional (BURREL, 2018).
Enquanto estávamos à mesa, um rapaz desceu do cavalo que montava e caminhou até
nós. Aproximando-se de onde estávamos perguntou aos meus interlocutores: “e aí, garotas, já
acharam algum macho hoje?”. Pedro prontamente assume a dianteira e responde: “Ainda não,
mas se você estiver à disposição podemos resolver isso agora!”. O rapaz sorriu, deu uma
piscadela e respondeu que só poderá mais tarde. Depois disso saiu caminhando em direção a
um grupo de garotas que estava próximo dali. Os rapazes à mesa se entreolharam e começaram
a rir.
Ao observar a cena, lembrei das descrições de Humphreys (2008), em seu clássico
estudo sobre as salas de chá, caracterizando os sujeitos que vestem a “couraça da justiça”, o
que mostra como as atitudes superficiais não necessariamente estão relacionadas com o
comportamento real. Para o sociólogo da Escola de Chicago, “desviantes ocultos” vestem a
“armadura da justiça” para retratar uma imagem de super propriedade moral para mascarar seu
desvio, usando a moral como um escudo defensivo: “esses homens não estão apenas
preocupados em evitar problemas, mas também estão envolvidos na criação de uma imagem
social, apresentando-se como membros respeitáveis da sociedade” (HUMPHREYS, 2008, p.
558). Esta abordagem contribui para entender as maneiras pelas quais sujeitos que se engajam
em atividades desviantes podem contribuir ativamente para estigmatizar as mesmas atividades
das quais participam.
Em seguida, com alguma insistência, Alan diz aos amigos que conseguiu fazer contato
com o rapaz com quem estava conversando pelo aplicativo. Temendo uma nova queda de sinal,
os dois haviam combinado o local do encontro. Alan se levanta, diz que logo estará de volta, e
segue em direção ao local combinado. Cerca de meia hora depois ele retorna. Os rapazes que o
esperavam à mesa começam a rir e logo perguntam o que aconteceu para que o encontro tivesse
acabado tão rápido. Alan apenas responde que “o rapaz desconfigurou” e solta uma gargalhada.
Pergunto para Alan o que ele quis dizer com isso e ele me responde que pessoalmente o rapaz
não era como nas fotografias. Ele explica que nas fotografias que enviou o rapaz parecia ser
mais atraente do face a face, razão pela qual preferiu não dar prosseguimento ao encontro.
Online, a fotografia acentua uma tendência paradoxal de ser ao mesmo tempo uma
descrição melhorada do sujeito, mas que precisa manter-se fiel à realidade empírica. Ainda que
o uso de filtros de imagem ofereça a possibilidade do sujeito alcançar uma imagem modelar, a
fotografia precisa resistir ao confronto com a materialidade do encontro face a face. A
experiência do meu interlocutor também evidencia como as interfaces operam encurtamento
das distâncias sociais que separam a auto exposição da propaganda.
Assim como Lara Facioli, em diferentes ocasiões pude notar
A forma cultural dos serviços comerciais de busca por parceiros enreda fantasias sobre
o “eu” em movimento e em ação ao mesmo tempo que oferecem os instrumentos necessários
para controlar e modificar a vida cotidiana. De maneira aporética, para os meus interlocutores,
parece que ser mais provável ter uma relação de maior intimidade com quem está fisicamente
mais distante, porém simbolicamente próximo do que com as pessoas que estão
geograficamente perto, mas culturalmente distantes. Em contrapartida, caras menos
interessantes - e, portanto, “locais” -, embora não sejam dispensáveis quando se trata de resolver
as carências sexuais, o fazem mediante uma relação marcada pela impessoalidade e por
hierarquias de gênero. Esse contexto revela um jogo no qual pessoalidade e impessoalidade
podem ser estabelecidas a partir de relações inversamente proporcionais.
Em seu estudo sobre como os adolescentes usam as mídias digitais em suas práticas
cotidianas, Danah Boyd (2011) oferece um exemplo instigante sobre como os adolescentes
usam a mídia para lidar com restrições. A socióloga argumenta que o atrativo para os
adolescentes na mídia não é o fato de simplesmente se tratar de uma tecnologia, mas a vida
pública que essa tecnologia permite. Analisando os usos que adolescentes estadunidenses fazem
de serviços de redes sociais, como Facebook, esta autora explica que os jovens estão presos à
tecnologia por motivações sociais, entre as quais estão as sensações de privacidade e autonomia
que elas proporcionam. Apoiada em uma etnografia extensa, Boyd desconfia da afirmação de
que as redes digitais constituem “novos espaços públicos”. Em sentido contrário, Boyd
argumenta que, em muitos casos, as redes digitais constituem o local onde está o “público” com
o qual os adolescentes se reúnem, ainda que estejam fisicamente em casa.
Como ocorre com o espaço público, as plataformas de relacionamento são usadas para
práticas sociais e atividades fundadas no intercâmbio entre pares. Entretanto, Boyd observa
que, uma vez redes digitais não possuem propriedades idênticas ao espaço público, ainda em
alguns casos a interface possa sustentar práticas análogas àquelas que se desempenham sem
mediação, em outros, a tecnologia estabelece condições para a produção de novas práticas.
Desse modo, a autora propõe uma compreensão das redes digitais como “espaços públicos em
rede”, compreendidos como resultado do entrelaçamento entre pessoas, tecnologias e práticas
sociais.
Boyd identifica que, no caso dos adolescentes, as problemáticas que “complicam” as
atividades com os quais estão envolvidos se exprimem em torno de três práticas: a
autorrepresentação; a socialização entre pares e a negociação com a sociedade dos adultos. Os
adolescentes usam as plataformas de relacionamento principalmente para desempenhar práticas
habituais, quer dizer, convencionalmente desempenhadas por eles fora das redes digitais,
entretanto, as propriedades dessas redes reconfiguram essas práticas de tal modo que os sujeitos
são forçados a lidar com as dinâmicas resultantes. Sendo assim, ao mesmo tempo que
aprenderam a usar as mídias digitais, os adolescentes passaram a produzir estratégias poderosas
para lidar a complexidade e os inconvenientes sociais inerentes a essas redes.
O enquadramento que Boyd confere às mídias conectivas enreda uma compreensão
sobre como as mídias digitais oferecem novas oportunidades de participação na vida pública.
Uma vez que acentuam o caráter de reunião entre pares, a autora também observa que as redes
digitais também propiciam um ambiente que se adequa de maneira formidável à formação de
comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008).
Estabelecendo um paralelo com os argumentos apresentados pela autora posso dizer
que, para muitos dos meus interlocutores, sobretudo aqueles que vivem em zonas rurais e em
cidades menores, as plataformas de busca por parceiros são usadas principalmente para
desempenhar práticas que não seriam convencionalmente desempenhadas fora das interfaces.
E, uma vez que as propriedades dessas redes reconfiguram as práticas e as interações sociais de
uma maneira diferente do que ocorre nas relações face a face, esses sujeitos agenciam seus
desejos em meio às dinâmicas resultantes da relação com a tecnologia.
Ao mesmo tempo que aprenderam a usar as mídias digitais, esses sujeitos passaram a
desenvolver estratégias poderosas para lidar complexidade e os inconvenientes sociais inerentes
a essas redes - como ser identificado e ter a sua imagem associada à homossexualidade de
maneira estigmática. Por caminhos diferentes, as relações apontam para outro conjunto de
condições pelas quais as novas tecnologias redefinem a vida pública, mas também a vida
privada.
Para esses interlocutores, sujeitos que são confrontados com restrições na participação
da vida pública, o espaço reticular dos aplicativos permite o contato com o público com qual
eles desejam estar, mas não conseguem. Dessa maneira, os aplicativos também permitem que
eles se sintam simbolicamente integrados a uma comunidade imaginada. Diferente do que se
passa com os adolescentes, meus interlocutores não precisam lidar com a “sociedade dos
adultos”, mas com as normas sociais que embora os ameacem também conferem
inteligibilidade ao contexto que habitam. Sobretudo para os homens que vivem suas
experiências sexuais com outros homens em segredo, as interfaces digitais podem ser lidas
como um ambiente privado e seguro, mas que exige do sujeito uma postura de controle ativo
sobre a situação social.
A intensificação das relações é um elemento que no contexto de cidades menores tende
a ser lida como uma aproximação com a vida social das metrópoles. Diversidade de escolhas,
diferentes localidades, fora do “seio familiar” que as relações de uma cidade pequena propõem,
a impessoalidade do aplicativo se contrapõe a realidade cotidiana vivida, também criando um
espectro de fantasia em torno das relações afetivo-sexuais.
Dessa forma, seja enquanto fantasia, enquanto impessoalidade, enquanto sexo, amor
ou desejo, analiso que há um encurtamento das distâncias sociais e das distâncias simbólicas,
que são basilares ao pensarmos nas expectativas em torno dos aplicativos. Dessa forma, a
realidade do interior não é mais um mundo inteiro de distância de um cowboy inatingível por
aquele queerpira que foi até a cidade grande, mas continua com seus laços no pequeno espaço
familiar e conhecido. O segredo, também, é parte do negócio (PADILHA, 2015), que mobiliza
as distâncias, aproximando os assumidos, os não assumidos, os cowboys, os queerpira e os
cowbichas em universos pequenos da prática, mas que se ampliam com as próprias plataformas
propostas pelos Apps.
A mobilidade, ou seja, as condições de locomoção, acaba se traduzindo como
reconhecimento. Sendo que, como já vimos em Honneth, envolve predicados atravessados por
classe, raça, nível educacional, entre outros, além dos marcadores clássicos do amor, dinheiro
e eticidade. Para os mais jovens existe um número maior de relações e conexões disponíveis
em relação às gerações anteriores. É uma experiência coletiva menos presa aos tropos da
patologia e da vergonha. Dessa forma, as expressões de reconhecimento se dão de forma
contextual e social, envolvidas em alargamentos de distância etárias, por exemplo, mas também
pelo encurtamento de distâncias identitárias.
As mídias digitais alteram as experiências sociais - com reflexos nos horizontes de
aspiração, como bem relatado por Facioli (2017). Há muito de perspectivas individuais que são
colocadas em jogo na dinâmica de mobilização de fantasias e realidades em torno das relações
afetivas:
A fantasia, desse modo, não é oposta ao real, mas é parte constituinte dele. Assim, no
mundo contemporâneo tecnologicamente mediado, aquilo que compõe nossa fantasia
integra o espaço em que vivemos e passa pelo que é veiculado pelos meios de
comunicação como TV, cinema e também via internet. A fantasia é indissociável da
propaganda e pode ser pensada, inclusive, como o motor do uso das mídias sociais,
em especial, de serviços de redes sociais como o Facebook, onde pessoas comuns
performatizam sucesso, consciência política, reconhecimento familiar, no trabalho,
sucesso afetivo e amoroso. (FACIOLI, 2017, p. 196-197).
Na pequena comunidade rural em que vivem meus interlocutores, a festa é dos raros
momentos em que o espaço público, repleto de desconhecidos, se abre para a deriva e para a
fruição. Minha escolha por retratar essas relações se deve ao fato do ambiente da festa permitir
uma construção eloquente para apresentar a dinâmica das relações sociais nesse contexto locais
entrelaçando a vida local, as condições precárias de reconhecimento e a forma como os sujeitos
as consomem.
Pra ser bem sincero, normalmente eu não ligo muito pra esse negócio de rosto sabe?
Conforme a conversa vai andando eu vou acompanhando. Mas é lógico que tem que
ter o mínimo de noção. Por exemplo, quer coisa mais sem noção que os caras
escreverem no perfil “envie foto de rosto antes”, sem mostrar o rosto? E ainda tem
os caras com a cara de pau de escrever “foto de rosto visível”. O cara exige rosto,
mas daí quando você clica no perfil, não tem foto de rosto dele. (risos). Tem que se
achar muito pra fazer um negócio desse ou o cara não tá buscando alguém para
encontrar na real... O pior é que com certeza deve ter gente que escreve enviando a
foto, senão o cara não colocaria isso no perfil, né?
Ronaldo, 22 anos, autodeclarado branco, estudante universitário.
Trecho transcrito a partir de mensagem de áudio enviada por WhatsApp.
Eu sempre mando foto de rosto porque eu entendo assim: se o cara tá ali é porque
tem o mesmo objetivo que eu. Então, se a gente vai conversar, o mínimo é saber com
quem tá conversando. Eu sou assumido, não tenho problema com isso, sou
independente, tenho minhas coisas, não vou ficar me escondendo porque no
aplicativo tem gente mal resolvida. Isso é o que mais tem.
Elder, 25 anos, autodeclarado branco, vendedor.
Trecho transcrito a partir de mensagem de texto enviada por WhatsApp.
Você sabe, eu não mando o rosto de jeito nenhum porque acabei de me separar [da
ex-mulher]. Então pra mim essa coisa de mandar foto de rosto fica mais complicada.
Eu sempre mando algumas fotos porque a pessoa do outro lado precisa ter alguma
noção de como sou pra saber se vai rolar interesse. A galera costuma dizer que sou
bonito de corpo, então aproveito isso. Normalmente eu mando nudes e dai a pessoa
já vê se tem interesse ou não. Se vejo que não vai rolar eu já saio fora.
Emerson, 42 anos, autodeclarado negro, representante comercial.
Trecho extraído do caderno de campo do pesquisador.
Eu não envio ‘nude’ de jeito nenhum. Não adianta, o cara pode me pedir, implorar,
falar que retribui e os cambau… O cara pode falar o que quiser, que eu não mando.
Não mando, primeiro, porque é perigoso. Eu lá sei o que o cara vai fazer com a minha
foto? Já vi tanta gente louca nesse aplicativo que, sei lá, eu fico com o pé atrás. A
internet é foda. E eu também acho um negócio muito promíscuo, tá ligado? Você
começa a conversar com alguém que você ainda nem sabe como é o rosto, mas já viu
como é pelado, o tamanho do seu pau e tudo mais. Tô de boa disso. Acho embaçado.
Marcos, 30 anos, autodeclarado branco, gerente comercial.
Trecho transcrito a partir de mensagem de texto enviada por WhatsApp.
Cara, eu saí do App. Dei um tempo porque não tava dando certo. Ultimamente eu
ando muito ocupado com o trabalho, cheio de compromissos numa correria do
caramba e por isso eu saí um pouco. Esse negócio vicia. A gente fica procurando,
conversa com um aqui, com outro ali, se distrai e, quando vê, já passou um tempão.
Isso tava me atrapalhando e daí eu resolvi sair por um tempo. (Trecho de conversa
transcrita no caderno de campo do pesquisador).
Pra chegar no corpo que eu quero, eu me cuido pra caramba, faço dieta, me privo de
um monte de coisas, deixo de comer coisas gostosas, mas porque eu sei que meu
objetivo é manter minha saúde e também definir o meu corpo. Ter um corpo sarado
depende de disciplina nos exercícios e cuidados com a alimentação. Não adianta o
cara achar que vai na academia duas vezes por semana e tá tudo certo. [...] Às vezes,
eu to no aplicativo e vem uns caras nada a ver puxando assunto querendo ver se rola
alguma coisa. Se o cara não se cuida também eu dispenso logo de cara. (Trecho
transcrito a partir de mensagem de texto enviada por Whatsapp).
[As] práticas, narrativas e espaços do Fitness induzem modos de olhar, agir e ser, mas
devemos notar que para os sujeitos se tornarem visíveis e terem existência social
nesses cenários espetaculares e corporais devem se inscrever sob as normas e regras
prescritivas contidas nessas tecnologias textuais, espaciais e subjetivas que pertencem
a este universo moral. E, nesse sentido, essas tecnologias trabalham em relação a duas
figuras: o desviante e o normal (como modelo, estereótipo e encarnação de todas as
prescrições). O desviante, finalmente, todos nós podemos ser (o flácido, o obeso, o
velho, o feio, o “muito” magro) (LANDA, 2009; s.p.).
Arrisco-me a dizer que as plataformas online de busca por parceiros para homens gays
possuem outras especificidades. Com base em fontes sociológicas, históricas e culturais, pode-
se afirmar que a busca por estranhos dispostos a se engajar em uma atividade sexual, chamada
de paquera ou cruising, se constitui como uma prática estratégica para homens que buscam
parceiros do mesmo sexo produzida em resposta às condições estigmáticas que os cercam
(MISSE, 2007, PERLONGHER, 2008; HUMPHREYS, 2008; MOWLABOCUS, 2009,
MISKOLCI, 2017).
As plataformas de busca por parceiros para homens gays encarnam parte dessa história
e, por isso, são marcadas por um tipo de busca abertamente guiada em torno do sexo sem
compromisso e pela busca por encontros casuais. Produzida fora dos marcos culturais do ideal
romântico, nessas redes são centradas nos atributos corporais. O corpo é o primeiro elemento
apreendido e, apenas depois, as pessoas gradativamente apreendem a presença subjetiva do
outro. O aplicativo cria um ambiente amigável que oferecem os procedimentos culturais e
técnicos necessários para legitimar essas práticas.
Em contraste com as plataformas online para homens gays, sites e aplicativos de
relacionamento predominantemente voltados para pessoas heterossexuais enfatizam mais o
repertório cultural do amor romântico do que o da sexualidade. Conforme mostram as pesquisas
de Beleli (2015) e de Pelúcio (2018), plataformas de relacionamentos predominantemente
voltadas para heterossexuais tendem a ser apresentados pela publicidade e reconhecido pelos
sujeitos como “sites de namoro”. Em contrapartida, entre meus interlocutores, os Apps são
frequentemente descritos como “Apps de pegação”. Esta observação é reiterada por descrições
e análises produzidas por outros pesquisadores que se debruçaram sobre o uso dos mesmos apps
em diferentes contextos (GADELHA, 2015; ROSA, 2017).
De modo algum quero afirmar que atos sexuais e o ideário da cultura romântica estão
completamente dissociados no contexto dos Apps para homens gays. Aliás, em sua análise
sobre o estatuto da narrativa romântica na modernidade contemporânea, Illouz resume bem essa
questão ao afirmar que “o sexo é o papel cor-de-rosa que envolve a história de amor” (2014, p.
50). Para a socióloga marroquina, sob a nova cultura de autonomia sexual, é a fantasia do amor
total que se produz sem ser mencionada e não as fantasias sexuais.
Os usos sociais dos Apps se apoiam em visões de mundo específicas que sustentam as
formas culturais pelas quais o uso se estabelece. Essas visões de mundo, que podemos também
chamar de cultura, endossam os usos sociais que os sujeitos fazem de uma mídia específica.
Dito de outro modo, não é apenas porque o aplicativo enfatiza a dimensão sexual que os sujeitos
buscam sexo, aliás, muitos buscam se esforçam para se desligar dessa imagem sexualizada.
Entretanto, à medida em que buscam se desvincular do sexo os sujeitos também reiteram a
presença do sexo como um tropo importante sob o qual as interações estão organizadas.
Abrigar redes digitais formadas por pares reunidos em torno de afinidades em comum
é a principal característica de uma plataforma de relacionamento online.
Os protocolos guiam os caminhos dos usuários que a rede prefere, impõe uma lógica
hegemônica sobre uma prática mediada socialmente. No entanto, os usuários também
podem subverter e resistir a essa lógica. [...] O controle protocológico dos
proprietários da plataforma muitas vezes enfrenta resistência protocológica por parte
de alguns usuários que a desafiam (VAN DIJCK, 2016, p. 58).
Embora as empresas se esforcem para manter controle sobre as interações dos usuários
não é raro que os usuários encontrem meios para driblar as restrições que os cercam. Um
exemplo dessa operação pode ser extraído observando o percurso de um grupo no Facebook.
Formado exclusivamente por jovens, em sua maioria jovens, este grupo se especializou em
torno do envio de imagens de nudez dos próprios integrantes, as chamadas “nudes”. Com
algumas dezenas de milhares de integrantes, todos os dias, um incontável número de pessoas
postava imagens retratando a própria nudez, prática que viola os termos de uso da plataforma.
Para driblar as restrições impostas pelo Facebook em torno da circulação de
pornografia, em vez de carregar as fotografias na plataforma, o que permitiria a identificação
do conteúdo pornográfico por algoritmos especializados no reconhecimento de imagens, os
usuários compartilhava no grupo apenas um link que dava acesso ao conteúdo a partir de outra
plataforma de armazenamento de imagens, com normas mais brandas em relação à pornografia.
Em 2019, após o aperfeiçoamento de algoritmos especializados na detecção de conteúdos
considerados impróprios, o Facebook identificou as práticas que ocorriam no grupo, que
prontamente foi bloqueado.
Embora os aplicativos para homens gays não permitam a exibição de imagens
contendo nudez na parte pública do perfil, não existem restrições sobre a troca conteúdos desse
tipo nas interações entre os usuários. Desse modo, os apps consolidam a imagem que os associa
como um local seguro para interações sexuais e para a troca desses conteúdos relacionados a
esse propósito. As interações que ocorrem entre os sujeitos nas interfaces do aplicativo parecem
seguir um roteiro, conforme Ronaldo explica:
Tem sempre aquele roteiro que você já sabe: o cara começa com um “oi” ou “e ai,
blza?” [beleza], “quer trocar uma ideia” e tal. Daí ele vai te perguntar do quê você tá
a fim ou o que tá procurando. E quando é você quem pergunta o outro diz: “tô vendo
o que rola”. As pessoas ficam se testando. Mas o lance é a foto. Se você mandar o
rosto o cara vai pedir nude e se você mandar nude logo de cara a pessoa te vai pedir
foto de rosto. Eu acho que dependendo da foto que você manda a conversa muda, tá
ligado? (Trecho transcrito a partir de mensagem de texto enviada por Whatsapp).
Na medida em que em nossos atos cognitivos nós perdemos de vista o fato de que
estes atos devem sua existência à nossa tomada anterior de uma instância de
reconhecimento, desenvolvemos uma tendência a perceber outras pessoas como
meros objetos insensíveis. Ao falar aqui de meros objetos ou “coisas”, eu digo que
neste tipo de amnésia nós perdemos a habilidade para entender imediatamente as
expressões comportamentais de outras pessoas como demandas que nos são
apresentadas. (HONNETH, 2008a, p. 57-58).
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