2011 PauloSergiodeProenca
2011 PauloSergiodeProenca
2011 PauloSergiodeProenca
São Paulo
2011
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SEMIÓTICA
E LINGÜÍSTICA GERAL
São Paulo
2011
A meus pais
(in memoriam)
Com eles aprendi
a descobrir a Bíblia.
AGRADECIMENTOS
Esta página não é mera formalidade. Ela carrega a emoção do reconhecimento de que
muitas pessoas, de perto e de longe, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização
deste trabalho.
Agradeço muito especialmente ao Prof. Dr. Izidoro Blikstein, meu orientador, que já
acompanhou uma geração de pesquisadores, muitos dos quais ocupam posição de destaque no
panorama da pesquisa linguística no Brasil. A confiança a mim dedicada, o apoio e a
orientação foram decisivos para a conclusão da pesquisa.
Minha gratidão é extensiva aos professores Dr. José Luiz Fiorin e Dr. Dilson Ferreira
da Cruz Júnior, pelas oportunas observações e sugestões feitas por ocasião do Exame de
Qualificação.
Aos funcionários, alunos, ex-alunos, professores e ex-professores da Faculdade de
Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, pelo companheirismo e incentivo.
A gratidão não é menor à Profa. Dra. Alice Yoko Horikawa, pela amizade e pela
competente revisão deste trabalho.
Sou também particularmente grato a todos os meus familiares, principalmente aos mais
chegados Shirley, Paula e Rodrigo.
Registro minha gratidão a amigos e amigas, companheiros de estudos e da jornada da
vida, anônimos tantos, mas nem por isso menos importantes.
NOTAS
Este trabalho fará muitas remissões à Bíblia. Uma dificuldade inicial diz respeito a
edições e traduções; há muitas, com diferenças significativas entre elas, inclusive com
segmentação de nichos1. Infelizmente não dispomos da edição utilizada por Machado, como
seria o ideal em casos nos quais a colação com o original seria decisiva para elucidação de
eventuais dúvidas ou curiosidades; felizmente não é o nosso caso, em que a presença da Bíblia
pode ser atestada por outras traduções e por outros meios. Usaremos a tradução de João
Ferreira de Almeida, revista e atualizada, por ser de boa aceitação entre estudiosos e por
tender à literalidade. Quando for utilizada outra tradução ou edição, o fato será indicado.
Remissões à Bíblia contam com falta de uniformidade. Por questão de conveniência,
será seguido o padrão da Sociedade Bíblica do Brasil, a seguir exemplificado:
Gn 1.1 (Gênesis, capítulo 1º., versículo 1º.);
Gn 1.1, 4 (Gênesis, capítulo 1º., versículos 1º. e 4º.);
Gn 1.1-4 (Gênesis, capítulo 1 º, versículos 1º. ao 4º.);
Gn 1.1-4, 11 (Gênesis, capítulo 1º., versículos 1º. ao 4º. e versículo 11);
Gn 1.1-4; 11.6-8 (Gênesis, capítulo 1º., versículos 1º. ao 4º. e Gênesis, capítulo
11, versículos 6º. a 8º.).
O padrão separa por ponto a indicação de capítulo e versículo; vírgula e hífen são
usados para separação de versículos; ponto e vírgula separam passagens diferentes.
A abreviatura de livros bíblicos deve ser considerada, para facilitar a identificação.
Será utilizado, da mesma forma, o padrão da Sociedade Bíblica do Brasil, para os livros em
comum com a Bíblia católica2. Embora nem todos os livros bíblicos possam vir a ser citados, a
1
Há edições da Bíblia para diversos públicos: Bíblia da mulher, Bíblia da criança, Bíblia do jovem. Proliferam,
também, Bíblias de estudo, que inserem no texto bíblico comentários diversos. Aqui reside outra dificuldade, de
maior alcance, porque tais comentários tendem a guiar a interpretação do leitor, que nem sempre tem
discernimento para identificar notas de valor objetivo e notas de cunho interpretativo.
2
Para os livros exclusivos da Bíblia católica, adotamos a convenção de A Bíblia de Jerusalém (1981). No Novo
Testamento não há diferenças de abreviaturas entre as Bíblias católicas e protestantes.
seguir estão listadas as abreviações de todos os livros, na ordem em que se encontram nas
Bíblias cristãs, já incluídos os deuterocanônicos católicos:
RESUMO ....................................................................................................................................................3
ABSTRACT ................................................................................................................................................4
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................5
CAPÍTULO 4: “NADA COMO UMA SENTENÇA PARA MUDAR A CARA AOS CONCEITOS” .129
2
RESUMO
3
ABSTRACT
It is intended, in this work, to investigate the role that the biblical writings play both in
the constructions and in the support of the main emphasis of Machado de Assis’s work.
Two principles constitute the theoretical guide of this investigation. The first is
Bakhtin’s notion of polyphony and its unfoldings, constant in the terms intertextuality
and interdiscursivity. The notion of semiotics contract (Fiorin, 2003) is the second.
Other auxiliary concepts will be punctually used, such as the Menippus’s satire, which
will have grounds in authors like Griffin (2005), Sá Rego (1989) and Óliver (2008).
Machado’s youth was characterized by a liberal activity of reasonable capacity. Charles
Ribeiyrolles and Renan were decisive influences for the consolidation of these
convictions. This tendency highlights the presence of the Bible, evoked as the source of
principles that he defended.
The prodigious work of fiction, since its first manifestations, bears witness to his great
fascination towards the Scriptures, in several ways; one of them was the recapture of
biblical myths, which acts as a link for the closeness between the native events and the
plain day-to-day occurrences in which the resignificance of the mythical narratives take
place. This look towards the past, guided by the Bible, suits well with the machadian
emphasis in the eternal monotony of the human drama. Sapiential themes appear
invariably diluted in the machadian writings. Wisdom has its place of prominence, with
Ecclesiastes and Job. Also the biblical writings are applied to the reinterpretation of
dear subjects to the human beings. This is done with the freedom of one who has a great
fictional tact. Machado plays with words and expressions. He twists, contorts and
distorts linguistics sequences and narratives, giving them a different brightness thus
projecting new and relevant meanings.
Machado, besides biblical themes, makes use of characters and several events, in a free
way, to resignify them, almost always in dissonance with the religious and theological
tradition. The bakhtinian theoretical support and the notion of semiotic contract fits with
the analysis of this fruitful dialogue with the biblical sources, under the esthetical
motivation of the crisis of the representation which is present in the machadian writings.
4
INTRODUÇÃO
1
Citamos como exemplos Eric Fromm e Freud, no campo da Psicanálise; Rabelais e Sterne, no domínio
da Literatura. Aliás, este último, pastor protestante, ofereceu elementos de técnica narrativa ficcional que
foram adotados e aperfeiçoados pela criativa pena de Machado.
2
Não é somente nas camadas ilustradas que a Bíblia é lida a ponto de provocar impactos. Na segunda
metade do século XIX, no Brasil ocorreu um expressivo movimento, de contornos populares, também
motivado por um jeito próprio de interpretar e de aplicar a Bíblia a uma realidade específica. Referimo-
nos ao movimento messiânico de Antônio Conselheiro. Machado menciona-o em algumas de suas
crônicas, sem reforçar o sumário julgamento negativo, quase unânime, com que o líder de Canudos foi
apreciado. Vasconcelos (2010) empreende pesquisa que põe à luz novas questões sobre Conselheiro e sua
gente e re-escreve a história deles, sob a perspectiva das motivações bíblicas que a isso se atrelam.
5
Em virtude dessa lacuna, pretende-se, neste trabalho, estudar, na obra
machadiana, os empréstimos bíblicos. Além do levantamento das ocorrências, devem
ser feitas análises de algumas delas, as mais significativas, com o objetivo de analisar o
papel da Bíblia no conjunto dos escritos machadianos.
Como Machado tem extensa obra de ficção, fica difícil esgotar a tarefa e
impossível cobrir todo conjunto. Portanto, uma razoável delimitação desse corpus é
mais do que necessária, também por questões de método. Propõe-se, então, considerar
somente a prosa de ficção – crônica, conto e romance. Como ainda esse conjunto é
monumental, serão escolhidos exemplares de cada gênero, desde que seja de razoável
representatividade. E isso não é fator impeditivo para uma eventual incorporação de
fragmentos da obra poética do autor carioca. A delimitação vai pagar o preço de ser
seletiva. Com isso, incontáveis amostras que poderiam aqui figurar estarão ausentes,
pelo simples fato de que a inclusão de todos os exemplares de utilização da Bíblia é um
empreendimento impossível para os limites deste trabalho.
Crônicas foram incluídas no estudo. Em primeiro lugar porque são
significativas, nelas, as remissões à Bíblia. Em segundo, porque há entre os especialistas
esforço para estudá-las. Por fim, ainda são desconhecidas, em relação ao maior prestígio
dos contos e romances. Elas não são apêndice da obra de Machado nem de importância
menor.
3
A comemoração do centenário da morte de Machado motivou reedições diversas de obras de e sobre
Machado. A ocasião festiva demonstrou que há ainda muito interesse em estudá-lo, a julgar pelo número
copioso dos títulos e eventos diversos, incluindo muitos de natureza artística, embora os textos de
Machado não sejam facilmente adaptáveis à linguagem plástica do teatro ou do cinema.
6
de sua morte, ele continua a motivar e a seduzir leitores e pesquisadores, que sobre sua
obra se debruçam, esmiuçando-a de diversos pontos de vista e por princípios analíticos
e temáticos diferentes – quando não divergentes. A maioria dos títulos recentes
relaciona-se à comemoração do centenário de sua morte. Pode-se dizer que a Bíblia,
como tema e fonte literária, esteve praticamente ausente desses trabalhos. Essa lacuna
não está passando incógnita, contudo.
A academia tem alimentado nos últimos anos permanente interesse por Machado
de Assis. Aspectos ainda não suficientemente estudados estão sendo revisados4. Outros
tantos estão sendo descobertos. Isso é evidência de que a obra machadiana se renova
com o passar dos anos, sem envelhecer, indicando nisso o pleno sentido de
imortalidade.
4
Menção a alguns trabalhos acadêmicos será feita a seguir, poucos dos quais já circulam em forma
impressa. A dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Dilson Ferreira da Cruz Júnior, defendidas
na Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Izidoro Blikstein, já foram publicadas. O
primeiro trabalho estuda as crônicas de Machado de Assis e as estratégias de construção da ambiguidade;
o segundo, o éthos dos narradores dos romances (critério que não segue a tradicional divisão da produção
literária de Machado em duas fases). Eduardo Calbucci, sob orientação do professor Dr. José Luiz Fiorin,
defendeu, em 2007, sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo; sua pesquisa analisa o
fenômeno da enunciação em romances com narrador-personagem, com aplicação especial ao romance
Memórias póstumas de Brás Cubas. Esses trabalhos, de excelência acadêmica, têm, contudo, outros
objetivos, diferentes dos aqui propostos.
7
sólidos conhecimentos bíblicos e argúcia analítica para perceber certas sutilezas que
escapariam ao leitor não familiarizado com os escritos bíblicos.
5
BRUM, Fernando Machado. Literatura e religião. Estudo das referências religiosas na obra de
Machado de Assis. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2009. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle. Acesso em: 15 de setembro de 2010.
6
Em blog específico, o pesquisador apresenta-se da seguinte forma: “Sou aluno do Doutorado em
Filosofia da UNICAMP, onde realizo pesquisa sobre a presença e a relevância das Escrituras na
argumentação de Thomas Hobbes, sob a orientação do Prof. Dr. João Carlos K. Quartim de Moraes. Sou
Mestre em Filosofia pela mesma instituição [...]”. Disponível em http://estadohobbesiano.
blogspot.com/2010/11/pedro-o-papado-e-soberania-civil-partir.html. Acesso em 26 de novembro de 2010.
8
fator inibidor entre os pesquisadores e críticos para o estudo dessa aproximação: a
religião.
Pelo fato de ser a Bíblia a fonte escrita de duas religiões monoteístas, sem contar
a influência da Bíblia no Alcorão, pode-se supor que este trabalho de investigação
contemple, de alguma forma, o valor religioso a ela associado. Não é o caso. Este
projeto não pretende avaliar a importância da religião na obra de Machado, embora esse
elemento também seja recorrente na sua obra, para diversa finalidade7.
Não se quer negar o valor de revelação das Escrituras, sobretudo porque
gerações de fiéis do cristianismo, do judaísmo e de outras religiões têm vínculos
existenciais expressivos e norteadores da vida religiosa orientada pela Bíblia.
Reconhecer isso é necessário e interessante, entretanto não é o objetivo deste trabalho.
A religião em Machado já mereceu estudo de religiosos e acadêmicos. O
primeiro, escrito por ocasião do centenário do nascimento de Machado, tem autoria do
religioso Dom Hugo Bressane de Araújo, para quem a ignorância religiosa de Machado
é obstáculo intelectual à conquista da fé, pois “paralisa, na sua origem, o movimento da
alma para a fé [...] e sem o lume da fé, a obra de Machado de Assis, profundamente
humana, não é cristã” (Araújo, 1939, p. 38, 39). Se não é cristã, conclui o autor, não tem
valor. Segundo Araújo, para Machado, a Bíblia não tem valor religioso, o que é de se
lamentar. As citações bíblicas machadianas, apesar de “inúmeras e frequentes, parecem
açaimadas e não nos falam de cousas do céu. Nota-se vácuo profundo nessas páginas
que nos trepanam a cabeça e fazem que vejamos representar verdadeiras tragédias”
(Araújo, 1939, p 39). O autor termina o trabalho, acenando com “raios de esperança”,
vislumbrados na possível aceitação da fé cristã, no final da vida do autor carioca
(Araújo, 1939, p 62):
Teria, nos derradeiros instantes, ouvido dos lábios sacrossantos do Senhor esta
consoladora palavra: “Na casa de meu Pai há muitas moradas?
Teria, num ato de adoração fervente e amorável, proferido no imo do peito: “Meu
Senhor e meu Deus?
7
O discurso religioso tem tipologia diferente do texto literário; estatui verdades perenes sobre o passado,
o presente e o futuro; tem respostas para todas as angústias humanas; não admite a dúvida e se assume
como verdadeiro; por isso, impõe-se pela negação de outros discursos que, de forma polêmica, circulam
entre nós; daí a intolerância. Esse fenômeno foi estudado por Rubem Alves, com aplicação específica à
tradição protestante, em sua tese de livre-docência na Universidade Estadual de Campinas (ALVES,
Rubem A. Protestantismo e repressão. São Paulo: Ática, 1979). À mesma linha pertence a obra
Dogmatismo e tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982 (do mesmo autor).
9
Compreenderia Machado de Assis que o “nada” é nada e que Jesus é o alfa e o
ômega de nossa existência?
8
Essa parcialidade não tem natureza religiosa, apenas. Otávio Brandão (1958) diz que a obra machadiana
tem pouca ou nenhuma grandeza, porque não se alinha aos princípios políticos e ideológicos do
marxismo.
9
Estamos diante da distinção semiótica entre triagem e mistura. Para Machado, o ser humano é
misturado, impuro, complexo e carrega consigo o diabo que a igreja quer exorcizar. A triagem pode ser
elitista, exclusivista; a religião é, normalmente, operadora da triagem, pois separa e condena os pecadores
ao inferno.
10
seguinte passagem, a propósito da importância do Eclesiastes na obra de Machado (p.
20):
Outra obra sobre o tema merece menção. Em 2008, Maria Eli Queiroz publicou
Machado de Assis e a religião: considerações acerca da alma machadiana. Produzida
especialmente para o ano do centenário da morte de Machado de Assis, a obra
apresenta, logo no início, uma crítica – pertinente – à obra de Dom Hugo Bressane.
Queiroz valoriza as primeiras produções poéticas, ainda adolescentes, de Machado.
Feitos numa época em que era forte a influência religiosa sob a qual o escritor fora
formado, os poemas ressaltam a saudade e o sentimento de perda, da irmã e da mãe.
Nos primeiros escritos, há emprego significativo de temas e termos religiosos.
Para a autora, há evolução em Machado no uso da Bíblia. A relação inicial com a
religião verificada no adolescente modifica-se e o escritor passa, em algum momento, a
se debater entre o bem e o mal. Divergindo de Araújo, Queiroz ressalta a importância da
Bíblia em Machado (Queiroz, 2008, p. 115)10:
[...] além de o homem Joaquim Maria Machado de Assis ter vivido dentro dos
princípios cristãos (não os estamos referindo aos princípios católicos, vejam bem!) –
funcionário exemplar, marido exemplar, acadêmico exemplar, amigo exemplar – o
escritor Machado de Assis encarregou-se de sua missão apostólica acima de
qualquer outro escritor laico que tenhamos em nossa terra.
10
È apresentada pela autora uma relação de crônicas de Machado em que se fala da Bíblia. A mais
recuada data de 1859.
11
Essa pretensa missão apostólica é retomada, nos seguintes termos (Queiroz,
2008, p 189):
É sabido que a religião tem valor modelar para a vida, isso não se nega. Todavia,
o lugar de onde se pretende analisar a presença da Bíblia em Machado não é a sacristia
nem o púlpito. O interesse reside em considerá-la fonte de natureza literária que produz
ecos consistentes na civilização ocidental. Patrimônio cultural-literário da humanidade,
a Bíblia tem sido inspiração para fiéis de diversas tradições e também para a construção
de formas de relação com a vida e ideais que pairam acima das divergências
confessionais. Portanto, é o valor literário-cultural da Bíblia o nosso fator de interesse.
Em nenhuma hipótese - deve ser registrado - pretende-se atacar ou defender princípios
religiosos ou tradições teológicas de qualquer natureza.
O uso religioso da Bíblia a considera revelação e tende a enfatizar a literalidade.
O literário, a literariedade. A publicação do Guia literário da Bíblia11 é um indício de
renovação dos estudos bíblicos, agora motivados pelo encontro entre crítica literária e
crítica literária bíblica, conforme indica a “Introdução Geral” à obra:
11
ALTER, Robert e KERMODE, Franck (org.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da
Unesp, 1997 (original de 1987).
12
A consideração do valor literário da Bíblia é, por assim dizer, um apoio
epistemológico que norteia este trabalho, em combinação com dois princípios teóricos.
O primeiro refere-se ao conceito de polifonia, de Bakhtin, desdobrado nos termos
intertextualidade e interdiscursividade. O conceito de contrato semiótico, elaborado por
Fiorin, é o segundo, que se ajusta com pertinência teórico-analítica ao material extraído
das fontes machadianas, em especial quanto às motivações estéticas da representação
literária. Outros pontos teóricos afins às ciências da linguagem serão utilizados
pontualmente, em caráter subsidiário.
13
considerado um homem desinteressado, apático, sisudo, avesso à convivência, recolhido
em complexo de inferioridade social – um misantropo incorrigível12.
É certo que Machado foi, ainda em vida, vítima de preconceitos e
incompreensões. Sílvio Romero, declarado inimigo, elabora apreciação crítica da vida e
da obra machadianas marcada pela parcialidade (Romero, 1992, p. 122):
Vê-se que apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da
palavra. Sente-se o esforço, a luta [...] Machado de Assis repisa, repete, torce retorce
tanto suas ideias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão dum eterno
tartamudear. Esse vezo, esse sestro, para muito espírito subserviente tomado por
uma coisa conscientemente praticada, elevado a uma manifestação de graça e
humor, é apenas, repito, o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da fala.
12
Pereira repete à exaustão a seguinte ideia: “Para compreendê-lo, é preciso não esquecer precisamente
daquilo que procurou ocultar: da origem obscura, da mulatice, da feiúra, da doença – do seu drama
enfim” (1988, p. 26). Isso é reflexo de uma forma específica de socialmente tratar certas diferenças,
conforme atesta Yacubian (2010, p.3): “A vida e a obra de Machado de Assis [...] é o retrato da sociedade
de sua época e dos conceitos científicos de seu século e nelas é possível desvendar o enorme estigma
relacionado à raça, à pobreza e à epilepsia no Rio de Janeiro do século XIX, quando as ideias positivistas
[...] permeavam a nascente neuropsiquiatria brasileira”.
13
Entrevista publicada em Tereza: revista de literatura brasileira. Programa de Pós-Graduação da Área de
Literatura Brasileira. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo: Editora 34. Imprensa Oficial. N. 6/7,
2004/2005, p. 457-466.
14
Magalhães Júnior concorda com o fato de que a juventude de Machado foi
marcada por um movimento de abertura para o mundo social, para o convívio com os
amigos, para a fruição da vida artística e cultural oferecida pela corte. Daí o seu
interesse pelo teatro, entre outras coisas. Uma marca desse período de juventude foi a
sua atividade liberal, decorrência de leituras, de inicial influência de algumas amizades
que cultivou e de propensão pessoal para uma visão crítica da sociedade do seu tempo.
Por causa dessa militância liberal14, Machado viu-se envolvido em polêmicas com
autoridades políticas, militares e religiosas, tendo por isso angariado antipatias.
Defendeu a justiça, os direitos de liberdade e de igualdade e condenou a guerra;
reivindicou a democratização do ensino; olhou com simpatia a inserção da mulher nos
espaços dominados pela presença masculina; defendeu com coragem suas convicções
políticas, filosóficas e literárias.
A postura militante parece contrariar a tese de Lúcia Miguel Pereira, no sentido
de ter havido em Machado disposição para combater as mazelas sociais de forma muito
mais acentuada e mais forte do que serviria à conveniência de um oportunismo
inconsequente. Nesses movimentos todos, nota-se a presença da Bíblia, que serve ora
para sustentar um princípio de justiça social, ora para atacar as estruturas viciadas da
ordenação do mundo social daquele tempo. Assim, o capítulo segundo foi desenvolvido
para a finalidade de averiguar o papel da Bíblia nessa militância.
Outro interessante aspecto dessa relação com a Bíblia se configura na frequência
considerável com que são feitas remissões às origens míticas de nossa civilização. Os
eventos originários ocupam destaque em suas crônicas, contos e romances. Adão e Eva,
a criação, a serpente, as origens da nação hebraica, os patriarcas, tudo interessa. A esses
personagens e eventos se dirigem evocações as quais aproximam os tempos, os espaços
e as características do ontem e do hoje, numa justaposição que anula as distâncias. O
remoto no tempo e no espaço é a moldura dentro da qual o presente é interpretado. Esse
fenômeno será analisado no capítulo terceiro.
Essa volta ao mito ocorre sob perspectivas filosóficas e estéticas definidas, sem a
coerção da tradição religiosa. A liberdade com que o material bíblico é tratado é fruto de
14
Pode haver certo anacronismo na expressão militância liberal, aplicada a Machado. Nem havia
militância no sentido partidário ou sindical, como hoje, nem o liberalismo era marcado por um arranjo
ideológico que visa à manutenção dos privilégios econômicos das grandes organizações e dos interesses
econômicos, em sua versão atual denominada neoliberalismo.
15
uma consciente e autônoma incorporação da tradição cultural. É por isso que há
acréscimos e supressões ao cânon e paródias que livremente recriam e ressignificam
conteúdos os quais a piedade religiosa ingênua projeta para o território do intocável.
Essa liberdade na recepção da tradição tem precedentes históricos e literários na sátira
menipeia, sendo Luciano de Samósata o principal representante. Dele, Machado tinha
em sua biblioteca as obras completas em francês. Com efeito, a sátira oferece recursos
de criação literária que desafiam o senso comum, pelo fato de oferecer mecanismos de
investigação não convencionais e de admitir ferramentas como a provocação, a
investigação e a anatomia, que se tornam poderosos recursos na pena de um escritor
com pleno domínio das técnicas da ficção. As paródias, as citações truncadas, as
alterações na matéria linguística do material bíblico são estudadas no capítulo quarto.
Em decorrência da incorporação de técnicas da sátira para a ressignificação do
mundo dos homens, podem ser reconhecidas expressivas passagens em Machado
destinadas à avaliação do impacto que o dinheiro provoca nos seres humanos. O seu
papel central e escravizador aparece de forma frequente na obra do escritor brasileiro. E
há expressiva evocação de trechos bíblicos a isso relacionados, principalmente do
“Sermão do Monte”, do Evangelho de Mateus. Pode haver um substrato comum entre a
tradição do movimento de Jesus, configurada nessa parte de Mateus, e a filosofia cínica,
cujas principais ideias se baseiam no desprezo às convenções sociais com o necessário
desapego aos bens materiais. Os temas do dinheiro e da força de sedução das riquezas e
bens materiais em geral está retratado no capítulo quinto.
Essa possível partilha de alguns elementos tradicionais relativos ao dinheiro
repercute no livro de Eclesiastes. Por isso também o capítulo seguinte, o sexto, tem por
objetivo expandir considerações sobre a importância da sabedoria bíblica na obra de
Machado, com ênfase em Jó e Eclesiastes. Sabe-se que é antigo o reconhecimento da
influência decisiva deste último livro bíblico sobre o escritor brasileiro. Ele mesmo o
diz e, ainda que não dissesse, a considerável recorrência a esse livro bíblico justificaria
tal afirmação. O Eclesiastes foi fonte de motivação filosófica; a vaidade da vida e a
mesmice da eternidade do nada indicam que nele Machado sorveu o suco de seu
reconhecido pessimismo.
16
forma que tomam. Essas outras ocorrências merecem um capítulo, breve que seja,
porque testemunham de forma eloquente a primazia dos escritos bíblicos na criação
ficcional machadiana. Por isso, o último capítulo vai apresentar uma seleção dessas
ocorrências, entre as quais há um fio de unificação de prestígio literário que é a
remissão à Bíblia. O capítulo pretende reforçar a conexão com as demais partes do
trabalho, complementando-as.
17
CAPÍTULO 1: APOIO TEÓRICO
INTERTEXTUALIDADE, INTERDISCURSIVIDADE E
CONTRATO SEMIÓTICO
Intertextualidade e interdiscursividade
18
“entronizada a noção de intertextualidade como procedimento real de constituição do
texto”.
Texto, por sua vez, passa a ser entendido como prática significante para a qual
devem ser consideradas as respectivas dimensões extratextuais, porque a língua não é
abstração. A relação com o outro se faz num permanente trabalho de construção e
reconstrução de significados (Fiorin, 2006, p. 164).
Os homens não têm acesso direto à realidade, pois nossa relação com ela é sempre
mediada pela linguagem [...] o real se apresenta para nós semioticamente [...] nosso
discurso não se relaciona diretamente com as coisas, mas com outros discursos, que
semiotizam o mundo. Essa relação entre discursos é o dialogismo. Como se vê, não
19
temos relação com as coisas, mas com os discursos que lhes dão sentido, o
dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem.
Bakhtin situa essa apreensão do discurso de outrem não nos processos subjetivos
no interior da alma do receptor, mas nos processos sociais. Os mecanismos desse
processo, situados na sociedade, vinculam discurso citado e contexto narrativo, que se
unem por “relações dinâmicas, complexas e tensas” (Bakhtin, 1979, p.134).
20
integridade e autenticidade, pela delimitação nítida de suas fronteiras em relação às do
falante. Nesse caso, o discurso de outrem, como um bloco de comportamento social,
tem seus limites conservados e respeitados. Essa é a característica do estilo linear: criar
contornos exteriores nítidos à volta do discurso citado. Nesse caso, tende-se a conservar
na íntegra o discurso do outro, distinto do discurso em que é retomado, caso no qual há
a intenção de “isolar mais clara e mais estritamente o discurso citado, de protegê-lo [...]”
(Bakhtin, 1979, p.136). Em relação a esse tipo de incorporação, o autor salienta que
interfere nesse tipo a posição hierárquica que um discurso ocupa na grade social de
valores: “Quanto mais forte for o sentimento de eminência hierárquica na enunciação de
outrem, mais claramente definidas serão as sua fronteiras [...]” (Bakhtin, 1979, p.139).
21
com uso de paródia, estilização, polêmica. Contudo, os princípios teóricos por ela
desenvolvidos já se encontravam em Bakhtin (2000, p. 318):
O discurso do outro possui uma expressão dupla: a sua própria, ou seja, a do outro, e
a do enunciado que o acolhe. Observam-se esses fatos acima de tudo nos casos em
que o discurso do outro (ainda que se reduza a uma única palavra, que terá valor de
enunciado completo) é abertamente citado e nitidamente separado (entre aspas) e em
que a alternância dos sujeitos falantes e de sua inter-relação dialógica repercute
claramente. Mas em todo enunciado, contanto que o examinemos com apuro,
levando em conta as condições concretas da comunicação verbal, descobriremos as
palavras do outro ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes de alteridade.
O enunciado está voltado não só para o seu objeto, mas também para o discurso do
outro acerca desse objeto [...] o enunciado é um elo na cadeia da comunicação
verbal e não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam, por fora e por
dentro, e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica
[...] o enunciado está ligado não só aos elos que o precedem, mas também aos que
lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal.
Todo texto tem o suporte de um sistema - uma língua, ainda que seja a da arte. A
repetição é da ordem da língua; o texto é único, tem autor, é irrepetível e tem sentido
somente na perspectiva dialógica. Seria sinônimo de enunciado? Segundo Fiorin, isso
depende, pois o texto pode ser e pode não ser enunciado. Se considerado fora da relação
dialógica, ele só tem realidade como texto: “O enunciado é da ordem do sentido; o texto
é do domínio da manifestação. O sentido não pode se construir senão nas relações
dialógicas. Sua manifestação é o texto e este pode ser considerado como uma entidade
em si” (Fiorin, 2006, p. 180).
Há, então, distinção entre enunciados e textos. Para Fiorin, qualquer relação
dialógica, na medida em que é uma relação de sentido, é interdiscursiva. “O termo
intertextualidade fica reservado apenas para os casos em que a relação discursiva é
22
materializada em textos”15 (Fiorin, 2006, p. 181). Assim, pode-se admitir que
intertextualidade pressupõe sempre uma interdiscursividade; todavia, o contrário não é
verdadeiro16. Essa diferença ocorre, também, no campo de estudos de exegese bíblica,
particularmente o Novo Testamento, com diferente terminologia17.
a análise histórica de um texto deixa de ser a descrição da época em que o texto foi
produzido e passa a ser uma fina e sutil análise semântica, que leva em conta confrontos
sêmicos, deslizamentos de sentido, apagamentos de significados, interincompreensões18,
etc. Em síntese, em Bakhtin, a História não é algo exterior ao discurso, mas é interior a
ele, pois o sentido é histórico (Fiorin, 2006, p. 192).
15
Por “materialidade textual” deve-se entender “um texto em sentido estrito ou um conjunto de fatos
linguísticos, que configura um estilo, um jargão, uma variante linguística, etc.” (Fiorin, 2006, p. 191).
16
Essa diferença apontada por Fiorin é objetiva, além de dar conta do fenômeno que procura explicar. O
Dicionário de análise do discurso expõe desta forma as noções de interdiscurso e intertexto: “pode-se
explorar a distinção entre intertexto e interdiscurso. Assim, fala-se de intertexto para “os ecos livres de
um (ou de vários) texto(s) em outro texto”, independentemente de gênero, e de interdiscurso para o
conjunto dos gêneros que interagem em uma conjuntura dada. Charaudeau vê no interdiscurso um jogo de
re-envios entre discursos que tiveram um suporte textual, mas de cuja configuração não se tem memória”
(2004, p. 286). Introduzir a noção de gênero ou de memória de suporte textual para explicar interdiscurso
é desnecessário; discursos sempre precisam de suporte genérico e podem ser trocados socialmente sem
que haja necessariamente fontes escritas de que possam proceder.
17
A noção importante que distingue “intertextualidade” e “interdiscursividade” pode ser aproximada,
mutatis mutandis, à tradição crítica dos estudos exegéticos do Novo Testamento. De fato, o método
histórico-crítico preconiza duas etapas metodológicas com objetivos afins, mas igualmente distintos: a
“Crítica das Fontes” e “Crítica das Tradições”, ambas de natureza diacrônica. A primeira pode ser
homologada à intertextualidade; a segunda, à interdiscursividade. A primeira se refere ao uso de fontes
pelos escritores bíblicos: “os autores bíblicos podem usar as suas fontes de forma literal, parcial ou livre...
as fontes literárias usadas pelos escritores neotestamentários podem ser extrabíblicas ou bíblicas”
(Wegner, 2005, p. 106). Já a Crítica das Tradições tem por objetivo “analisar o conjunto de imagens,
conceitos, ideias, símbolos, motivos e representações tradicionais existentes dentro de um texto e aclarar
sua origem e evolução no AT [Antigo Testamento], judaísmo contemporâneo a Jesus ou helenismo”
(Wegner, 2005, p. 245).
18
Maingueneau (2007, p. 22) fala da interincompreensão como elemento constitutivo dos discursos; trata-
se da segunda – de sete – hipótese de seu livro Gênese dos discursos: “O caráter constitutivo da relação
interdiscursiva faz aparecer a interação semântica entre os discursos como um processo de tradução, de
interincompreensão regrada. Cada um introduz o Outro em seu fechamento, traduzindo seus enunciados
nas categorias do Mesmo e, assim, sua relação com esse Outro se dá sempre sob a forma do ‘simulacro’
que dele constroi”.
23
valores já anteriormente dados, então, sob o ponto de vista discursivo, nenhum discurso
é, segundo Blikstein (1994, p. 45), único, inédito, desconectado dos outros:
[...] o discurso, seja qual for, nunca é totalmente autônomo. Suportado por toda uma
intertextualidade, o discurso não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes,
geradoras de muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço.
24
[...] a identidade de um discurso coincide com a rede de interincompreensão na qual
ela é capturada (Maingueneau, 2007, p. 22).
Outro apoio teórico de que nos serviremos diz respeito ao estudo das formas de
representação no romance, sob a perspectiva da concepção semiótica de contrato de
veridicção, elaborada por Fiorin (2003), cujos principais elementos são a seguir
sintetizados.
25
Essa teoria se apóia na relação entre referência e referente; este é um ente do
mundo designado por palavras, aquela é resultado de uma relação que vai de uma
grandeza semiótica a uma não semiótica (referente); isso depende sempre do contexto
linguístico (Greimas & Courtés, 1983, p. 376-377). O referente é composto por objetos
do mundo real designados pelas palavras. Assim, a linguagem convém às coisas, é um
espelho da realidade, é semelhante a elas. Nessa concepção, não existe a noção de
arbitrariedade do signo; ela reproduz “os fundamentos da linguagem adâmica [...] A
linguagem é considerada transparente, as palavras são análogas ao mundo, há uma
identidade entre a ordem do mundo e a ordem da linguagem. Assim, a significação não
apresenta qualquer problema, pois ela é a própria coisa” (Fiorin, 2003, p. 138).
No caso das artes em geral, é preciso notar que o artista torna a realidade mais
expressiva, por meio de linguagem própria: “assim, mesmo que pretenda representar
rigorosamente, na obra de arte, a realidade, a obra é um signo e seu sentido não são as
coisas. Por conseguinte, o trabalho artístico mantém sempre uma relação arbitrária e
deformante com a realidade” (Fiorin, 2003, p.139).
19
Fiorin cita Cândido (1975, p. 12) para fundamentar sua argumentação e ampliar essa noção teórica,
adaptando-a ao tema em discussão.
26
Na estética realista o processo enunciativo deve ser ocultado, mas se toda
representação é poiese, o texto não é idêntico ao mundo; daí que a realidade retratada
pelo realismo não passa de ilusão de realidade. A obra realista apenas pretende não
guardar qualquer traço do processo de produção. Como reflexo da realidade, apresenta
objetos reconhecíveis no mundo. “Não exibindo seu processo de produção, a obra é
congelada no estado de identidade com o real” (Fiorin, 2003, p. 138).
27
caracteriza: “nas descrições é preciso que a mimese do real não seja tingida pelos afetos
do narrador. Daí, o fato de haver, nas descrições, poucas comparações com elementos
humanos e de seu léxico ser muito preciso e concreto” (Fiorin, 2003, p.142- 143).
28
O contrato semiótico pressupõe que a ordem da linguagem e a ordem do mundo
não são homólogas. Para ele, a linguagem não representa de forma transparente a
realidade, mas é apenas criação de diferentes realidades. Como tal, não é “a” criação da
realidade, mas explicitação de um de diversos pontos de vista possíveis sobre o real. Por
isso, expõe a relatividade da verdade e a possibilidade de que a realidade seja outra;
nada há fixo nem verdadeiro per se. A verossimilhança deixa de ser adequação ao
referente para se mostrar uma construção interna à obra.
Não há heróis nem vilões, muito menos homens subjugados por qualquer
determinismo. Por isso, afirma Fiorin (2003, p. 147) que “o modo básico de organização
argumentativa não é a causalidade, mas a concessão. É um discurso do mas, do embora,
do talvez”. Assim, não há super-homens nem autômatos; as personagens resvalam
sempre para o pântano da ambiguidade.
29
Os discursos são simples discursos e não expressão fiel de uma verdade que está
fora deles. Pode-se incorporar o discurso do outro, alterá-lo livremente; a ironia é usada
para revelar o absurdo do que parece normal. A paródia é outro mecanismo muito
propício a esse tipo de contrato veridictório. A imitação do discurso do outro é feita para
subvertê-lo no próprio mecanismo da imitação. Em combinação com outros elementos,
os enredos relativizam a verdade, com a consequente instabilidade, própria das ações
humanas. Além disso, as categorias bipolares não são fixas. O espaço e o tempo podem
ser retratados com muitas minúcias e precisão, mas isso não é necessário nem decisivo.
O processo de figurativização foge aos cânones da semiótica do mundo natural. É
comum combinarem-se figuras que normalmente não apareceriam juntas. Paradoxos
aparecem com frequência razoável; mudanças nos provérbios rompem os lugares
comuns, as ideias feitas, com a quebra da estabilidade da sabedoria popular. O trabalho
com a linguagem é levado até o máximo de suas possibilidades: “Como, nesse contrato,
a linguagem é o elemento determinante na relação entre o homem e o mundo, muitas
vezes as metáforas linguísticas são utilizadas para falar dos homens e das coisas”
(Fiorin, 203, p. 150).
30
como produto arbitrário, sem relação necessária com o que se entendia por
“verdadeiro” (Hansen, 2006, p. 76 ).
31
CAPÍTULO 2: BÍBLIA, ATIVIDADE LIBERAL,
PSEUDÔNIMOS E ESCRAVIDÃO
32
conheceu o primeiro pessoalmente; do segundo leu A vida de Jesus, obra que seria
decisiva para a formação do Machado liberal leitor da Bíblia.
Charles Ribeyrolles
20
Visconde de Taunay, que prefacia a obra, diz dela: “suas páginas constituem precioso documento para
o estudo da época da opulência cafeeira fluminense [...] E nelas se expressou com grande liberdade de
opiniões e isenção de ânimo, embora delicadamente, acerca do problema servil brasileiro, então assunto
melindroso, como nenhum outro” (Ribeyrolles, 1980, vol. 1, p. 16).
21
Tradução própria:
Ele aceitou o exílio, ele amou o direito de opinião;
Intrépido, ele desejou todas as formas de libertação;
Ele serviu todos os direitos por todas as virtudes
Porque a idéia é uma espada e a Alma é uma força
E a pena de Wilberforce
Sai da mesma bainha que a espadada de Brutus.
William Wilberforce (1759-1833), um político britânico, destacou-se como líder abolicionista, tendo
também se envolvido na reforma evangélica da Inglaterra. No parlamento inglês, liderou a campanha que
extinguiu o tráfico negreiro; em 1807, foi firmado um ato contra o comércio de escravos.
33
acendeu um fogo que só pedia para queimar [...] Machado de Assis encontrou um ideal
à altura de seu temperamento. Imediatamente o expôs e o defendeu com paixão”
(Massa, 2009, p.189)22. O jornalista estrangeiro, que gozava de reconhecimento entre
seus compatriotas e entre seus colegas do Brasil, influenciou Machado decisivamente.
Conforme Magalhães Jr. (2008, vol. 2, p. 95, 96):
A identificação de Machado com os exilados Charles Ribeyrolles e Victor Frond foi
decisiva para a formação de sua mentalidade liberal [...] Seu livro ia, logo no
primeiro volume, dar início a uma coisa que poderíamos chamar de tiradentismo,
isto é, a glorificação de um herói nacional, que fora levado à forca e esquartejado,
por aspirar à independência [...].
22
Por essa época surgiu um novo núcleo de amizades para Machado, composto por “camaradas” com a
mesma ideologia e dispostos ao mesmo combate, do qual Ribeyrolles era o fermento do ideal democrático
e liberal. Do grupo participavam Manuel Antonio de Almeida, Quintino Bocaiúva, Emílio Zaluar, mais os
portugueses Reinaldo Carlos Montoro, Francisco Ramos Paz, Remígio de Sena Pereira (Massa, 2009, p.
192).
23
Dos mestiços, o Brasil Pitoresco diz: “É um forte e numeroso exército, rico de energias, adequado ao
clima, apto aos trabalhos rudes, que deve à sua origem as duas qualidades essenciais em todo o país velho
ou novo: a inteligência e o vigor [...] Os mestiços, porém, híbridos quanto à cor, têm o espírito ativo e
forte o músculo. Natureza complexa maravilhosamente dotada, filha do trabalho, ela apresenta o germe de
todas as forças; congênere superior, está aberta a todas as culturas” (Ribeyrolles, 1980, vol. 2, p. 92-3).
34
Machado tinha então vinte anos; estava experimentando uma mudança
significativa: “mudou de alma, renegou-se a si mesmo e, num nobre movimento de
sacrifício, queimou tudo aquilo que adorara [...] Machado de Assis encontrou seu
caminho de Damasco” (Massa, 2009, p.194). Passou a viver um período de euforia
intelectual.
Ernest Renan
35
mito de Jesus, forjado pela mentalidade dos tempos apostólicos, o que não era
compatível com a ciência moderna. Esse ponto de vista crítico seria adotado
posteriormente por Ernest Renan na célebre obra homônima. Strauss e Renan adotaram
os princípios de crítica histórica para a interpretação dos escritos bíblicos24. Aplicada de
forma radical ao estudo do Novo Testamento, esses preceitos resultaram na adoção da
ideia de que os milagres de Jesus seriam criações míticas. Renan afirma, por exemplo,
na “Introdução” da sua obra, que “os Evangelhos são em parte lendários, isso é
evidente, porque estão cheios de milagres e de sobrenatural”. Acrescenta, ainda: “muitas
narrações, mormente de Lucas, são inventadas para darem vivo realce a certos traços da
fisionomia de Jesus. E mesmo essa fisionomia sofria alterações de dia para dia” (Renan,
s/d, p. XVII; XLIV).
24
O autor tem disso consciência, pois, conforme registra na “Introdução” de A vida de Jesus, “o dever do
historiador é interpretá-la e averiguar qual é a parte de verdade e qual a parte de erro que ela pode conter”.
25
Renan procura defender Strauss das críticas que lhe foram dirigidas: “Quase inútil nos parece o lembrar
que não há uma palavra, no livro de M. Strauss, que abone a estranha e absurda calúnia com que se tem
querido mostrar aos homens superficiais que não há mérito num livro tão cômodo, exato, engenhoso e
consciencioso. Não só M. Strauss nunca contradiz a existência de Jesus, mas até cada página do seu livro
envolve em si essa existência” (Renan, s/d, p. XI).
36
afirma ser obra “de um homem que escolhe, suprime e combina” (Renan, s/d, p. XVIII).
Quanto à crítica textual, são várias as ocasiões em que dá mostras de sua erudição. Ao
comentar Mt 9.16s, assinala: “eu leio ergon, como está no manuscrito B do Vaticano, e
não tekhnon” (sic) (Renan, s/d, p. 173). Já em relação a Jo 4.21-23, diz que o verso 22
“parece ter sido interpolado. Não se deve insistir muito na realidade histórica dessa
conversação...” (Renan, s/d, p. 213).
26
Nabuco tomou parte na campanha maçônica de 1873 contra os bispos e contra a Igreja. Defendia,
então, uma Igreja nacional, independente da romana; atuava ativamente em conferências, artigos e
folhetos. Dizia, daqueles episódios: “Não quisera mesmo hoje retirar uma só palavra do que disse então,
advogando a liberdade religiosa mais perfeita” (Nabuco, 1963, p. 30)
27
Francisco Gomes Brandão (1794-1870) estudou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Abandona o nome de batismo, passando a chamar-se Francisco Gê Acayaba de Montezuma. Ingressa na
política em 1823. Foi Ministro da Justiça e dos Estrangeiros em 1837 e fundador e primeiro Presidente do
Instituto dos Advogados do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_G%C3%AA_Acaiaba_de_Montezuma. Acesso em 27 de fevereiro
de 2010.
37
Strauss e Renan, com cujas ideias formava sua “lenda pessoal de Jesus” (Nabuco, 1963,
p. 59). Nabuco não esconde a admiração pelo francês (Nabuco, 1963, p. 11):
Posso dizer que não tinha idéia alguma, porque tinha todas. Quando entrei para a
Academia, levava a minha fé católica virgem; sempre me recordarei do espanto, do
desprezo, da comoção com que ouvi pela primeira vez tratar a Virgem Maria em
tom libertino; em pouco tempo, porém, não me restava daquela imaginação senão o
pó dourado da saudade... Ao catolicismo só vinte e tantos anos mais tarde me será
dado voltar por largos circuitos de que ainda um dia, se Deus me der vida, tentarei
reconstruir o complicado roteiro. Basta-me dizer, por enquanto, que a grande
influência literária que experimentei na vida, a embriaguez de espírito mais perfeita
que se podia dar, pelo narcótico de um estilo de timbre sem igual em nenhuma
literatura, o meu coup de foudre intelectual, foi a influência de Renan.
Para se ter uma ideia do furor que a obra de Renan causou nas hostes
eclesiásticas, basta ler a crônica de 8 de novembro de 1864, em que Machado publica
uma carta do monsenhor Pinto de Campos, em resposta a uma consulta do Gabinete
Português de Leitura, sobre a conveniência de a obra de Renan figurar no acervo da
biblioteca do Gabinete. Uma parte da carta é transcrita a seguir:
Podia ir longe na demonstração dos erros heréticos de Renan, se me permitissem os
estreitos limites de uma carta escrita sob a pressão da urgência. Insisto, porém, em
estabelecer como uma verdade, de consciência, que a leitura e o apreço do livro de
Renan é um tributo involuntário, se não sincero, ao príncipe das trevas, que aliás,
mais lógico que Renan, reconhece, ainda que a seu pesar, a divindade de Jesus
Cristo, o melhor, e o mais extremoso amigo e benfeitor dos homens (Assis, 2008,
vol. 4, p. 220-1).
28
Machado alude à expressão extra ecclesiam nulla salus, invertendo-a de forma irônica.
38
[...] podemos crer que os homens, como os livros, têm os seus destinos. Recordo-me
do efeito, que foi universal; a audácia produziu escândalo, e a punição foi pronta. O
professor desceu da cadeira para o gabinete. Passaram-se muitos anos, as
instituições políticas tombaram, outras vieram, e o professor morre professor, após
uma obra vasta e luminosa, universalmente aclamado como sábio e como artista. Os
seus próprios adversários não lhe negam admiração, e porventura lhe farão justiça.
“J'ai tout critiqué (diz ele em um dos seus prefácios) et quoi qu'on en dise, y j'ai tout
maintenu.” O século que está a chegar criticará ainda uma vez a crítica, e dirá que o
ilustre exegeta definiu bem a sua ação (Assis, 2008, vol. 4, p. 925).
Afirmação no jornalismo
39
Sangra os olhos no chorar,
Nova Agar – no teu deserto,
Que eu agora, audaz liberto,
Nem sei, nem te posso amar!
[...]
Tu, caminha – vai jornada
Da vaidade e perdição;
E batiza a alma danada
Em lutulento Jordão29.
O poema mostra mudanças que, para Massa, devem ser creditadas à liberdade da
criação poética ou à inconstância e à irreflexão de um jovem, em cuja mente e
coração se acusavam os efeitos de arroubos poéticos.
29
Agar era serva de Abrão, de quem, a conselho de Sarai (que era a esposa estéril), teve um filho, Ismael.
Depois da concepção, Sarai desprezou Agar, que fugiu para o deserto (Gn 16.1-15).
40
Cansei, perdi aquela fé robusta
Que como a ti, nos sonhos me sorriu;
Na identidade do Calvário, Augusta,
Bem vês como o destino nos mediu! (Assis, 2008, vol. 3, p. 761).
Em O Espelho, Machado refletia, aos poucos, sua evolução intelectual. Por isso
Quintino Bocaiúva propôs que ele se juntasse à redação do Diário do Rio de Janeiro30.
Isso ocorreu no início de 1860 e a entrada para o Diário foi decisiva31. Em “O Velho
Senado”, texto de reminiscências, diz Machado, referindo-se àquele ano, que suas idéias
“não as teria fixas nem determinadas”. O certo é que suas convicções políticas estavam
em evolução. A partir de 1860, passou para a oposição.
30
“Suas ideias sobre o teatro, a sociedade, a vida eram, em suma, as de um pequeno grupo de homens
decididos a fazer entrar seu ideal no plano da realidade” (Massa, 2009, p. 238).
31
O Diário do Rio de Janeiro foi fundado em 1821. José de Alencar foi seu redator-gerente por algum
tempo. Em 1859 o Diário não circulou, para reaparecer em março de 1860 (Massa, 2009, p.243).
41
Em outubro de 1861, Machado recebeu a incumbência de produzir crônicas de
forma permanente32. Mas, em razão de sua combatividade e de divergência com a linha
política do jornal, parece que sofreu sanção. De sua atividade jornalística, sobretudo
nessa época - entre 1861 e 1862 -, não se pode falar de absenteísmo. Pelo menos no que
diz respeito a esse momento, é preciso desfazer um mito elaborado pelos biógrafos e
críticos, segundo o qual Machado, “amargurado, teria conservado, sem interrupção,
distância em relação aos seres e às coisas. Esse mito é ilusório, porque deixa de lado um
período essencial – a juventude de Machado de Assis” (Massa, 2009, p. 257). Ele era,
ao contrário, um homem marcado “por grande generosidade, calor, amor e uma
fraternidade, se não franciscanos, pelo menos humanos” (Massa, 2009, p. 257).
Os ataques eram diretos e irônicos, como este: “O Sr. Senador Pena, que ali
ejaculou alguns discursos notáveis” (Assis, 2008, vol. 4, p. 21). Em outra ocasião,
critica a ‘adjetivite’ dos discursos proferidos por ocasião da inauguração da estátua de
D. Pedro I no largo do Rossio, hoje Praça Tiradentes: “Na censura, o adjetivo foi, por
assim dizer, o suco venenoso com que aqueles bugres ungiram a ponta das suas flechas”
(Assis, 2008, vol. 4, p. 69).
32
Segundo Massa (2009, p. 249), a atividade de jornalista-cronista deu a Machado o gosto pela digressão
teórica e “já constituía um aspecto de sua forma de espírito e de sua inteligência”. Granja (2000, p. 12)
propõe que o exercício da crônica foi um laboratório de ficção, que propiciou o ensaio de técnicas
narrativas e o desenvolvimento da literariedade. Para a autora, as convenções próprias do gênero
contribuíram para depurar práticas estilísticas, que seriam incorporadas em narrativas posteriores em
prosa. Já Cruz Jr. (2002) entende que a prática do jornalismo não foi responsável, necessariamente, pela
evolução técnica e ideológica do escritor; o que houve foi um amadurecimento de sua visão de mundo.
42
O escritor investiu de maneira irreverente contra outras grandes figuras políticas
do seu tempo, como é o caso do senador baiano Barão de São Lourenço, que criticou a
nomeação de jovens recém-saídos da Faculdade de Direito de São Paulo para
presidências de províncias. E, pior se fossem poetas, pois o senador considerava
incompatíveis a política e a poesia. Depois de citar vários exemplos da história, como
Dante, Chateaubriand, Lamartine, Garret (Assis, 2008, vol. 4, p.118-9), Machado
defende os jovens, enumerando casos em que poetas serviram seus países na política. A
polêmica se arrastou por alguns números. A certa altura, o senador pede desculpas,
admitindo o erro. O cronista aceita, dizendo que “explicar um erro é sempre honroso”,
acrescentando que o senador tinha algum “estro”, embora lhe faltasse o talento da rima;
em todo caso, as musas não deveriam “pensar mal de s. ex.”: “Pode ficar certo o ilustre
senador que há mais alegria no Parnaso por um pecador que se arrepende do que por um
justo que nunca pecou” (Assis, 2008, vol. 4, p. 122). Trata-se da evocação de um trecho
bíblico - Evangelho de Lucas, capítulo 15.7-10 -, adaptado àquela circunstância:
Digo-vos que, assim, haverá maior júbilo no céu por um pecador que se arrepende
do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento. Ou qual é a
mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma, não acende a candeia, varre a casa e
a procura diligentemente até encontrá-la? E, tendo-a achado, reúne as amigas e
vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha perdido.
Eu vos afirmo que, de igual modo, há júbilo diante dos anjos de Deus por um
pecador que se arrepende.
A citação de Machado faz corresponder céu a parnaso. Isso sugere pecador não
ser o poeta que se aventurava na política, mas o político que não aceitava isso. A
política deveria ser não um território demarcado e controlado pelos caciques e coronéis,
mas aberto à renovação dos jovens e aos sonhos dos poetas. Para alegria dos anjos do
Parnaso, haveria perdão ao pecador arrependido, reconhecedor do lugar da Poesia e de
sua compatibilidade com as funções públicas. Machado era, “aos 25 anos, um
observador sagaz e um comentador malicioso, a quem não escapavam os ridículos dos
nossos homens públicos e a mediocridade da vida política brasileira do Segundo
Reinado” (Magalhães Jr., vol. 1, p. 345).
43
diante dos poderosos: “pode o atual ministério ter a pretensão de dirigir seriamente os
negócios do Estado?” (Assis, 2008, vol. 4, p. 175). Evocam-se personagens do
evangelho. Pilatos, governador romano da Judeia, ficou famoso pelo fato de lavar as
mãos por ocasião do julgamento de Jesus, não encontrando culpa nele. Herodes é o
político ávido de poder e, para mantê-lo, era capaz de tudo. Tais figuras bíblicas são
sugestivas. Ambas são negativas: Herodes pela sede de poder e pelo emprego de todos
os meios para consegui-lo e mantê-lo; Pilatos, por não exercê-lo de forma plena, pela
falta de coragem. O cronista aplica ao mundo e aos atores políticos de sua época a
tradicional herança dessas figuras bíblicas pelo que elas têm de negativo.
Por esses exemplos, pode-se admitir, com razoável tranquilidade, que houve
uma fase combativa do jovem Machado, na qual ele se envolveu em diversas polêmicas
com autoridades políticas, militares e religiosas. Atuou sempre na defesa da liberdade,
da justiça - inclusive social - liberal que era.
44
não com um instrumento das tradições revolucionárias (Assis, 2008, vol. 4, p.
139).
33
Militar francês que atuou na conquista da Argélia, foi também comandante em chefe na Guerra da
Crimeia. Tomou parte, em 1839, na campanha contra o emirado de Mascara, Abdelkader, o que lhe deu
notoriedade; ele matou uma população local inteira, por intoxicação com gás, em cavernas, o que não era
permitido. Disponível em: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/449225/Aimable-Jean-Jacques-
Pelissier-duc-de-Malakoff. Acesso em 26 de março de 2010.
34
Na crônica de 1º. de janeiro de 1878 há uma profissão de fé contra a guerra: “[...] lavro daqui o meu
protesto, diante das potências deste e do outro mundo (o velho) e declaro, alto e bom som, à posteridade,
que não creio nos armamentos, ou pelo menos na eficácia deles” (Assis, 2008, p. 396).
35
Este é o texto referido: “Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os
hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles
já receberam a recompensa. Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão
direita; para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”.
36
Em 3 de outubro de 1864, a propósito da mudança de nome do jornal, diz o cronista: “terminarei
anunciando uma transmigração; morreu A Cruz, mas a alma passou para O Cruzeiro do Brasil,
45
movimentos daquele tipo, reprovando ação do governo, favorável ao protestante.
Machado, novamente, sai em defesa da liberdade da palavra: “Mas, a Constituição
garante a liberdade religiosa, e não há liberdade religiosa como bem lembra a Imprensa
Evangélica37, sem proselitismo – de outro modo fora burlar o princípio” (Assis, 2008,
vol. 4, p. 229). O jornal católico queria que o governo proibisse a atividade dos
metodistas:
O procedimento de uma religião que é a verdade devia ser outro; em vez de apelar
para a força do governo, deveria apelar para a palavra do clero, a quem incumbe
combater as doutrinas que se vão propagando. Serão estas o erro? Tanto melhor para
os que defendem a verdade [...].
continuando assim a mesma Cruz” (Assis, 2008, vol. 4, p. 200). Trata-se de alusão ao espiritismo, que
mereceu comentários e críticas em algumas crônicas.
37
A Imprensa Evangélica, fundada em 5 de novembro de 1864, sobrevive, ainda, sob o nome O
Estandarte (fundado em 7 de janeiro de 1893), órgão de comunicação oficial e mensal da Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil.
38
Há uma ligeira, mas importante variante textual na sequência: “É porém líquido que o autor de
semelhante aranzel não é mais nem menos do que o Bíblia que por ali anda a amotinar o povo”. A última
edição da obra completa do autor, da Editora Nova Aguilar (2008, p. 233) traz “a Bíblia [...]”. O portal da
ABL não apresenta a crônica digitalizada. A versão eletrônica do portal do MEC (domínio público) traz
“o Bíblia [...]”. Disponível em http://machado.mec.govol.br/arquivos/html/cronica/macr04.htm. Acesso
em 28 de fevereiro de 2010. A mudança do artigo faz grande diferença.
46
Bíblia e realidade: inspiração profética?
Machado fez uso da Bíblia para apoio de seus argumentos e ideias, como leitor
moderno, alinhado às conquistas da exegese européia39.
Nesse sentido, envolveu-se em alguns episódios, nos quais pôde demonstrar sua
convicção liberal. Destaca-se o seu envolvimento, de forma arrebatada, na crítica contra
a invasão do México, com apoio e interesse de Napoleão III, representado por um
príncipe austríaco. O pretexto foi a suspensão do pagamento dos juros e da amortização
da dívida externa do México, aprovada pelo Congresso. Com isso, forças armadas
estrangeiras - inicialmente da França, Espanha e Inglaterra - apoderaram-se das
alfândegas mexicanas e embolsaram impostos. Em abril de 1862, retiraram-se Inglaterra
e Espanha. A França decidiu criar no México um império sob sua proteção. Em 12 de
junho, Maximiliano e sua esposa Carlota foram coroados imperadores do México. A
reação de Machado não tardaria:
Em casos tais, não se escolhem expressões, nem se dissimulam sentimentos; fala-se
franca e rudemente, como o permitem a dor e a irritação [...] É a comoção do
momento que domina tudo, como no cântico dos hebreus, ao escaparem das hostes
do Faraó; a um tempo e tumultuariamente celebra Israel o poder do Senhor e a
submersão do inimigo:
Quem dentre os heróis é semelhante a ti, Senhor?
Estendeste a tua mão e o mar os devorou... 40
Ah! Que não pudesse o poeta repetir as mesmas palavras de Israel! Não se abriu o
mar; antes, cúmplice da violação, deu livre caminho às naus dos invasores [...]
(Magalhães Jr., vol. 1, p.296).
As mesmas palavras de Israel não puderam ser repetidas. Nesse caso, a Bíblia inspira
justiça e indignação contra a opressão. Alude-se ao cântico de Moisés (Ex. 15), que
exalta Deus pelo livramento concedido. O júbilo pelo êxodo dos hebreus transforma-
se, agora, em lamento. O mar não se abriu para engolir os opressores. O livramento
bíblico não se repetiu; a opressão triunfou.
39
A historicidade dos textos bíblicos, por exemplo, não era assumida como dado prévio, simplesmente
pelo fato de serem bíblicos; procedia-se a uma crítica histórica. Outro elemento importante era a
comparação entre os textos, recurso que atribui à interferência do narrador pontos de vista distintos, com
ênfases teológicas próprias a cada um deles, inscritas nas narrativas e delas depreensíveis.
40
Tudo indica que se trata de Ex 15.11-12, embora haja a mudança de “terra” para “mar”; alterações de
citação são comuns em Machado.
47
Houve outro episódio de natureza semelhante, em que Machado se destacou: a
questão Christie. Entre 7 e 8 de junho de 1861, a barca inglesa Prince of Wales
naufragou perto de Romeiro, a 16 léguas do porto do Rio Grande. O navio foi saqueado
por habitantes do local - foram encontrados 10 mortos por afogamento. O caso se
agravou com um incidente na Tijuca entre policiais brasileiros e três oficias ingleses. O
ministro Christie ameaçou o governo brasileiro. Em 31 de dezembro de 1862 houve
bloqueio do porto do Rio de Janeiro, que durou até 6 de janeiro de 1863. Navios
ingleses apresaram embarcações brasileiras. Porque medidas foram tomadas para
impedir acesso a nossos portos, houve represálias contra os comerciantes ingleses. Na
imprensa houve protestos. A reação dos brasileiros foi de causar orgulho. Veementes
foram os protestos de Atualidades, dirigido por jovens jornalistas liberais. Machado de
Assis escreveu um hino patriótico, na Semana Ilustrada de 18 de janeiro 1863.
Magalhães Jr. (2008, vol. 1, p. 212) registra a participação do jovem liberal:
41
Uma das principais características da atuação dos profetas clássicos bíblicos era a invectiva, a coragem
para denunciar a corrupção e para reivindicar justiça. Os profetas inspiraram a Teologia da Libertação
também por isso.
48
hebreus que, por sua vez, preconizava a justiça social, o direito, a liberdade, a proteção
aos desamparados – temas muito caros a um jovem liberal-democrata.
Machado de Assis, nessa fase juvenil, marcada por arroubos de atividade liberal,
pode ser comparado – guardadas as devidas proporções, por certo - aos profetas
clássicos da Bíblia. Principalmente pelo uso da denúncia como meio de intervenção,
denúncia que reivindica reforma e justiça a seus ouvintes ou leitores, sobretudo às
autoridades políticas ou religiosas sobre quem recaem tais responsabilidades. A
denúncia era a estratégica dos profetas clássicos bíblicos, como Isaías, Amós e
Jeremias, por exemplo, para citarmos apenas três. Era, igualmente, a forma utilizada
pelo jovem Machado, que fez de sua pena um meio de defesa de seus ideais liberais.
49
Baal e andais após outros deuses que não conheceis, e depois vindes, e vos pondes
diante de mim nesta casa que se chama pelo meu nome, e dizeis: Estamos salvos;
sim, só para continuardes a praticar estas abominações! Será esta casa que se chama
pelo meu nome um covil de salteadores aos vossos olhos? Eis que eu, eu mesmo, vi
isto, diz o SENHOR.
42
Profeta não está sendo entendido no sentido comum de alguém que prediz o futuro. O profeta clássico
bíblico é um porta-voz de Deus. Ele enxerga o que é mau na realidade social e atua para mudá-la. Na
tradição bíblica posterior aos profetas clássicos, pode-se falar em apocalípticos que, como os profetas,
enxergam a realidade má, mas não acreditam que os homens podem se regenerar para mudá-la, pois há
poderes demoníacos que atuam no mundo. Somente as forças divinas podem vencê-los; daí a necessidade
de um combate de amplitude cósmica dessas esferas supra-humanas (Ehrman, 2000, p. 227).
50
consciente de que a intervenção militante tinha como meta mudanças estruturais e de
comportamento, como se pode ver neste trecho: “O que é certo é que eu tenho a vaidade
de supor que já vou melhorando A Cruz; a respeitável folha da Candelária já não
apresenta aquelas notícias e observações com que eu procurei distrair muitas vezes os
meus leitores” (Assis, 2008, vol. 4, p. 178). A diferença a ser notada é que Machado
não tinha nenhuma motivação de ordem religiosa para essa atuação liberal. É razoável
supor, contudo, que o jovem escritor tinha, ainda, alguma aceitação de que a atividade
jornalística seria produtiva em algum sentido e provocaria as mudanças almejadas.
Manassés
43
José teve dois filhos no Egito, Efraim e Manassés. Conforme Gn 41.50-52: “José ao primogênito
chamou de Manassés, pois disse: Deus me fez esquecer de todos os meus trabalhos e de toda a casa de
meu pai. Ao segundo, chamou-lhe Efraim, pois disse: Deus me fez próspero na terra da minha aflição”. O
pai de José, Jacó - que recebeu o nome de Israel -, por ocasião de sua morte, abençoa José e seus dois
filhos. Contudo, troca as mãos: a direita, que deveria repousar sobre Manassés, o primogênito, é colocada
sobre a cabeça de seus irmão mais novo, Efraim (Gn 48.13-4: “Depois, tomou José a ambos, a Efraim na
sua mão direita, à esquerda de Israel, e a Manassés na sua esquerda, à direita de Israel, e fê-los chegar a
ele. Mas Israel estendeu a mão direita e a pôs sobre a cabeça de Efraim, que era o mais novo, e a sua
esquerda sobre a cabeça de Manassés, cruzando assim as mãos, não obstante ser Manassés o
primogênito”. Jacó tinha consciência de seu ato, alegando que “o irmão menor será maior” (Gn 48.19).
De igual forma, de seu pai Isaque Jacó tinha recebido a benção trocada que pertencia a seu irmão Esaú
(Gn 27).
51
esse pseudônimo, Machado, embora com ar risonho, por vezes dizia verdades duras.
Como, por exemplo, quando criticou o descaso do Governo pela educação popular, na
crônica de 15 de agosto de 1876
A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler;
desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância [...] 70%
dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque nem o quê.
Votam como vão à festa da Penha - por divertimento. A Constituição é para eles
uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou
um golpe de Estado (Assis, vol. 4, p. 315)44.
44
A indignação do cronista corresponde ao pendor liberal do jovem Machado. Guimarães (2004) diverge
do percentual indicado pelo cronista, afirmando que não há exatidão nos percentuais indicados, se
confrontadas as estatísticas da época.
52
como as libras esterlinas; talvez tanto...” (Assis, 2008, vol. 4, p. 460). Em outras
ocasiões, sangue voltaria a figurar em narradores de Machado.
Eleazar
Manassés, utilizado até abril de 1878 na Ilustração Brasileira, foi sucedido por
Eleazar em O Cruzeiro, ainda no mesmo ano. Também de inspiração bíblica, o nome
hebraico significa “a quem Deus ajuda” ou “o protegido de Deus”. Há dois personagens
bíblicos com o nome. Um é o sacerdote Eleazar, filho de Aarão, que, juntamente com
Moisés, fala com Deus (Nm 25.1-2). O outro, provavelmente o que mais teria
impressionado Machado, segundo Magalhães Júnior, era um patriota judeu da família
macabeia, irmão de Judas Macabeu. Teve morte heroica, quando o rei da Síria, Antíoco
V, empreendeu a conquista da Judeia. Segundo o primeiro livro deuterocanônico de
Macabeus, Eleazar, vendo um elefante que sobressaía, julgara que o rei Antíoco o
montava. E, então, precipitou-se em sua direção, colocou-se por baixo do paquiderme e
o feriu mortalmente com sua arma. Mas o animal, ao tombar morto, se abateu sobre ele,
esmagando-o. O trecho de 1 Macabeus (1Mc 6.43-46) narra assim o heroísmo de
Eleazar45:
Então Eleazar [...] viu um dos elefantes todo encouraçado com as armas do rei; e era
mais alto que todos os outros; e pareceu-lhe que o rei iria sobre ele; e expõe a sua
vida por livrar o seu povo, e adquirir para si um nome imortal. E correu a ele
animosamente pelo meio da legião, matando da direita e da esquerda, e caíram de
uma e de outra parte, à força dos seus golpes, todos que se lhe punham diante; e
chegou até os pés do elefante, e se meteu debaixo dele e o matou: e caiu em terra
sobre ele mesmo, e morreu ali.
Com o pseudônimo Eleazar, Machado assina o conto “Na Arca: três capítulos
inéditos de Gênesis”. Também sob esse pseudônimo, em 16 abril de 1878, em O
Cruzeiro, Machado publica sua famosa critica sobre O primo Basílio, na qual se pode
notar sua relutância contra o realismo. Houve reações à crítica rigorosa de Eleazar.
45
Tradução de Antonio Pereira de Figueiredo, edição de 1962.
53
Henrique Chaves foi o primeiro a se manifestar: “Poucas vezes tenho visto exercer tão
severamente a crítica como o fez Eleazar, distinto e erudito folhetinista d’O Cruzeiro, a
propósito do último livro de Eça de Queiroz” (Magalhães Jr., vol. 2, p. 309). Em 24 de
abril de1878, Ataliba de Gomensoro também reage, brincando com o significado do
nome: “Eleazar (que não parece ser protegido de Deus)” (Magalhães Jr., vol. 2, p.311-
312).
Houve um rei com esse nome, mas parece que a etimologia (Javé tem julgado) é
preponderante46. O cronista realça a importância do ajuntamento considerável de
pessoas; entretanto, à ideia de grande concentração de pessoas deve ser acrescido outro
elemento presente no texto do profeta bíblico, o julgamento de Deus.
46
Javé é resultado de vocalização do tetragrama da Bíblia Hebraica (IHVH); uma vocalização alternativa
é Jeová. A divergência resulta do fato de que o nome de Deus representado pelo tetragrama hebraico não
era pronunciado e nem havia notação gráfica para as vogais. Adotaremos a primeira vocalização, por ser
já consagrada entre os especialistas; na tradução de Almeida é grafado SENHOR. Outro termo bíblico
para referência a Deus é Elohim, normalmente traduzido por Deus (Bíblia Sagrada, 1993, p. viii).
54
As escrituras já são apresentadas, ostensivamente, como resultado do labor
humano, na linha teológico-literária de Renan, além da indicação da complexidade da
vida e do homem, tempero que cada vez estava mais disponível em sua obra, como em
23 de junho de 1878 (Assis, 2008, vol. 4, p. 421):
O vulgar, o reles, o ramerrão, ameaçava-nos da pior das mortes, que é a vida sem
peripécias, sem novidade, sem esse relâmpago do inesperado, com que a fortuna
sabe quebrar a monotonia de um céu pasmadamente azul. Dir-se-á que também nos
cerca o monstro e o aleijão? Mas o aleijão é necessário à harmonia das coisas, o
monstro é o complemento da beleza. Os antigos, que entendiam do riscado, casaram
Vênus a Vulcano; e a lenda cristã reuniu a beleza física à fealdade moral, na pessoa
do anjo réprobo.
47
Novamente é citado o trecho do Evangelho de Lucas, capítulo 15, anteriormente utilizado na polêmica
com o Barão de São Lourenço.
55
reconhecê-la na paródia “O sermão do Diabo”, por exemplo, e praticamente em todos os
seus romances.
Job
Como Job, publica também os seguintes contos, no Jornal das Famílias: “Linha
reta e linha curva”, entre outubro de 1865 e janeiro de 1866; “A parasita azul”, entre
junho e setembro de 1872; “Ernesto de Tal”, entre março e abril de 1872; e “O relógio
de ouro”, entre abril e maio de 1873.
48
Massa (2008, p. 530) desconfia que ainda são insuficientes as informações de que dispomos sobre os
pseudônimos, cujos estudos são “muito fragmentários ou não bastante seguros”. Parece que ainda não
houve disposição para esse estudo.
56
Cham
Por outro lado, o pseudônimo deve ser entendido sob perspectiva literária. Nesse
sentido, o recurso cria uma instância, um ente ficcional. Conforme Maingueneau (2001,
p. 87):
É revelador do corte que o discurso literário estabelece entre a instância produtora e
a instância que assume a enunciação. Assinar por pseudônimo é construir ao lado do
“eu” biográfico a identidade de um sujeito que só tem existência na e pela instituição
literária. O recurso ao pseudônimo implica a possibilidade de isolar, no conjunto
ilimitado das propriedades que definem o escritor, uma propriedade particular, a de
escrever literatura, e de fazer dela o suporte de um nome próprio.
57
ao longo da trajetória e da maturação do jovem escritor. Veremos a seguir a
permanência da defesa dos direitos da mulher e da causa abolicionista, no que diz
respeito à incorporação de elementos bíblicos, tomados como itens de força na defesa e
na busca de um ideal.
Direitos da mulher
Sobre as mulheres Machado tem convicções avançadas para a época. Em 21 de
novembro de 1861, no Diário do Rio de Janeiro, alude à opinião favorável de Pelletan
ao exercício de altas funções públicas por mulheres:
Pretende Eugênio Pelletan que a mulher, com o andar dos tempos, há de vir a
exercer no mundo um papel político. Sem entrar na investigação filosófica da
profecia, a que dá uma tal ou qual razão a existência de certas mulheres da sociedade
grega e da sociedade francesa, eu direi que é esse um fato que eu desejava ver
realizado, em maior plenitude do que pensa o autor da “Profession de foi” (Assis,
2008, vol. 4, p. 28).
Vinte anos mais tarde, em 1881, para a ocasião da inauguração das aulas de
educação profissional para jovens do sexo feminino, até então voltada apenas para
homens, Machado escreveu um soneto, em que evoca o trecho bíblico das irmãs Marta e
Maria, registrado em Lc 10.38-42 (Assis, 2008, vol. 3, p. 843):
Dai à obra de Marta um pouco de Maria,
Dai um beijo de sol ao descuidado arbusto;
Vereis neste florir o tronco ereto e adusto,
E mais gosto achareis naquela e mais valia.
58
A alusão ao episódio bíblico sugere que ao papel tradicional atribuído à mulher -
figurativizado em Marta - deveria ser acrescido o de instrução (Maria), visto que a
mulher tem em si um potencial não aproveitado (“descuidado arbusto”).
Dessas quatro mulheres modelares, Ruth é personagem bíblica (sua história está
registrada no livro bíblico homônimo); a esposa de Boaz é exemplo de fidelidade e
piedade filial.
59
A ascensão de um neto de escravos que se destacou na imprensa, na literatura e
na máquina governamental é considerada um processo de adesão ao mundo burguês.
Alguns ainda notam que a ausência de heróis negros em seus escritos fundamenta “em
grande medida a tese do propalado absenteísmo machadiano quanto à escravidão e às
relações interétnicas existentes no Brasil do século XIX” (Duarte, 2007, p. 8-9).
60
[...] convém não esquecer o espírito da lei. Cautelosa, equitativa, correta, em relação
à propriedade dos senhores, ela é, não obstante, uma lei de liberdade, cujo interesse
ampara em todas as suas partes e disposições. É ocioso apontar o que está no ânimo
de quantos a têm à sua disposição máxima, sua alma e fundamento, a lei de 28 de
setembro quis, primeiro que tudo, proclamar, promover e resguardar o interesse da
liberdade. Sendo este o espírito da lei [...] o objeto superior e essencial é a liberdade
do escravo, não podia o legislador consentir que esta perecesse, sem aplicar em seu
favor a preciosa garantia indicada no artigo 7º da Lei49.
Uma das dificuldades para as matrículas era a falta de dados confiáveis sobre a
população escrava. O prazo não foi respeitado. As informações eram vagas e
imprecisas. As opiniões e pareceres de Machado, como chefe da 2ª Seção do Ministério
da Agricultura, eram solicitados. Em caso de ausência ou de irregularidades no processo
de matrículas, os pareceres de Machado sempre defendiam o espírito da lei de 1871: a
liberdade e não a propriedade. Por isso, Chalhoub (2003, p. 226, 227) considera
importante a resistência em postos-chave da burocracia governamental:
No interior da própria administração, havia aqueles dispostos a esgarçar significados
e ampliar continuamente as prerrogativas do poder público. Em meados dos anos
1870, acreditavam sinceramente que valia a pena o esforço de lutar pela
emancipação dos escravos, através de uma aplicação rigorosa e abrangente da lei de
1871.
Outro meio adotado para fomentar a libertação dos escravos foi a criação do
Fundo de Emancipação. Instituído pela lei de 1871, o fundo promovia anualmente a
libertação de escravos, tantos quanto possível. O cronista Manassés fazia pilhéria
(“Histórias de 15 dias”, 1º. de outubro de 1876): escravos não corriam mais da polícia,
mas para a polícia, conscientes das possibilidades políticas abertas pela lei. O cronista
ironizava os lamentos dos senhores; que chorassem na cama, que é lugar mais quente.
Em 1876, depois de cinco anos, a lei só tinha libertado 230 escravos, numa população
49
Depois de intensos debates, em 28 de setembro de 1871 foi aprovada pela Câmara pelo Senado a lei nº
2040. Assim diz o artigo 7º: “Nas causas em favor da liberdade: §1º: O processo será sumário. §2º:
Haverá apelações ex-oficio quando as decisões forem contrárias à liberdade”. Disponível em:
http://www.paragonbrasil.com.br/conteudo.php?item=1119. Acesso em 18 de março de 2009.
61
de 1.500.00 - as matrículas tinham sido recentemente concluídas. Vejamos um trecho da
aludida crônica:
De interesse geral é o fundo da emancipação, pelo qual se acham libertados em
alguns municípios 230 escravos. Só em alguns municípios!
Esperemos que o número será grande quando a libertação estiver feita em todo o
império.
A lei de 28 de setembro fez agora cinco anos. Deus lhe dê vida e saúde! Esta lei foi
um grande passo na nossa vida. Se tivesse vindo uns trinta anos antes estávamos em
outras condições.
Mas há 30 anos, não veio a lei, mas vinham ainda escravos, por contrabando, e
vendiam-se às escancaras no Valongo. Além da venda, havia o calabouço. Um
homem do meu conhecimento suspira pelo azorrague.
— Hoje os escravos estão altanados, costuma ele dizer. Se a gente dá uma sova num,
há logo quem intervenha e até chame a polícia. Bons tempos os que lá vão!
Eu ainda me lembro quando a gente via passar um preto escorrendo em sangue, e
dizia: "Anda diabo, não estás assim pelo que eu fiz!"
— Hoje...
E o homem solta um suspiro, tão de dentro, tão do coração... que faz cortar o dito.
Le pauvre homme! (Assis. 2008, vol. 4, p. 325-6)50.
50
“Valongo” e “preto escorrendo sangue” ocorrem em Memórias Póstumas. No capítulo LXVIII, “O
vergalho” é a cena para as peripécias de Prudêncio - espancamento público de um escravo. No capítulo
“O verdadeiro Cotrim”, há alusão a sangue: “Como era muito seco de maneiras, tinha inimigos, que
chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência
escravos ao calabouço donde eles desciam a escorrer sangue” (Assis, 2008. vol. 1, p. 737).
62
A crônica de 15 de junho de 1877, que apresenta vínculos com a Bíblia e a
escravidão, faz uma observação irônica, já na abertura. Evocando Diógenes, o cronista
diz que tinha achado um homem, um que tinha feito doação de quantia considerável,
sem dar o nome; daí o espanto do cronista: “E quando digo que o achei, erro; porque
não o achei, não o vi, não o conheço, achei-o sem achar. Parece um enigma e é decerto
enigma, mas dos que eu quisera ver-te fazer, leitor, se tens queda por tais ocupações”. O
narrador ironicamente evoca a caridade evangélica, admirado com o ‘anonimato’ do
benfeitor, que age em consonância com a “caridade nas gazetilhas”. O benfeitor era um
digno homem do Evangelho; inspirou um amigo do cronista
Tinha ele uma escrava de 65 anos, que já lhe havia dado a ganhar sete ou oito vezes
o custo. Fez anos e lembrou-se de libertar a escrava... de graça. De graça! Já isto é
gentil. Ora, como só a mão direita soube do caso (a esquerda ignorou-o), travou da
pena, molhou-a no tinteiro e escreveu uma notícia singela para os jornais indicando
o fato, o nome da preta, o seu nome, o motivo do benefício, e este único comentário:
“Ações desta merecem todo o louvor das almas bem formadas”.
Coisas da mão direita! (Assis, 2008, vol. 4, p. 367):
51
A caridade evangélica já tinha sido motivo de polêmica acirrada com o jornal católico A Cruz. Quincas
Borba, no capítulo CXLIX das Memórias Póstumas, intitulado “Teoria do benefício”, sob os princípios
do Humanitismo, amplia considerações sobre as motivações para as ações beneméritas. Diz o filósofo
machadiano que “o prazer do beneficiador é sempre maior que o do beneficiado”. As boas ações de que
os seres humanos são capazes provocam “uma convicção de superioridade sobre outra criatura,
superioridade no estado e nos meios; e esta é uma das cousas mais legitimamente agradáveis, segundo as
melhores opiniões, ao organismo humano”. É por isso que, como uma mulher bonita se olha muitas vezes
no espelho para reforço de sua beleza e superioridade sobre as feias, assim também a “consciência é a
mesma cousa; remira-se a miúdo, quando se acha bela”. É por isso que “o benefício e seus efeitos são
fenômenos perfeitamente admiráveis” (Assis, 2008, vol. 1. p. 751-752).
63
as estatísticas diziam que continuava a ser mais provável a um escravo morrer no
cativeiro do que conseguir a liberdade. “Já isto não era gentil”, pensava o cronista”.
52
Esse desvelamento, operado pela moldura do texto bíblico da mão direita tem consequências
ponderáveis na obra machadiana. Candido (2004, p. 23), em ensaio famoso sobre Machado de Assis,
chama atenção para o fato de que um dos problemas fundamentais é a identidade. “Quem sou eu? O que
sou eu? Em que medida eu só existo por meio dos outros?” (grifos nossos). Está posto o problema da
64
O escravo Prudêncio protagoniza uma cena, impressionante sob diversos
aspectos. Quando criança, tinha sido vítima de Brás Cubas, também criança, sem poder
reagir. Adulto, alforriado pelo pai de Brás, é flagrado, em lugar público, aplicando as
mesmas sevícias físicas e verbais a outro escravo que comprara53, reproduzindo
exatamente a forma de tratamento recebida do próprio Brás na infância.
No Evangelho de Mateus há uma passagem que pode ter vínculos literários com
o capítulo “O vergalho” das Memórias Póstumas. Um empregado devia uma fortuna ao
patrão, que ameaçou vender o empregado, esposa e filhos para pagamento da dívida. O
empregado pediu e o patrão perdoou a dívida. Vai senão quando o empregado encontra
um companheiro de trabalho que lhe devia valor infinitamente menor, para o qual não
houve perdão. A dívida foi executada, embora tivesse havido igual pedido de clemência.
A parábola foi apresentada depois que os discípulos de Jesus tinham perguntado quantas
vezes se deve perdoar alguém. Os discípulos pensavam que o limite era sete vezes. Mas
Jesus diz que não, pois deveriam perdoar setenta vezes sete aos devedores. Então, o
evangelho apresenta a parábola, na sequência. Vale a pena reproduzir o trecho (Mt
18.23-35):
Por isso, o reino dos céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os
seus servos. E, passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos.
Não tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a
mulher, os filhos e tudo quanto possuía e que a dívida fosse paga. Então, o servo,
prostrando-se reverente, rogou: Sê paciente comigo, e tudo te pagarei. E o senhor
daquele servo, compadecendo-se, mandou-o embora e perdoou-lhe a dívida. Saindo,
porém, aquele servo encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários;
e, agarrando-o, o sufocava, dizendo: Paga-me o que me deves. Então, o seu
conservo, caindo-lhe aos pés, lhe implorava: Sê paciente comigo, e te pagarei. Ele,
entretanto, não quis; antes, indo-se, o lançou na prisão, até que saldasse a dívida54.
divisão do ser e do desdobramento da personalidade (A. Meyer), além dos limites entre razão e loucura. O
fato de o outro ser a medida da existência do eu exige esforços que estão além das possibilidades da mão
direita. Afinal, a gente vale somente pela opinião dos outros; daí a “sede de nomeada”, que fulminou Brás
Cubas. O tema é explorado especialmente em “O espelho”, mas não somente nesse conto.
53
O ex-escravo podia adquirir escravos para si. Talvez a motivação onomástica para Prudêncio tenha
algo a ver com o episódio.
54
A proporção das dívidas é espantosa. Um denário era o salário de um dia de trabalho e unidade de
referência monetária; um talento era a unidade maior: valia seis mil denários. Dez mil talentos valiam
sessenta milhões de denários. Assim, a dívida maior era seiscentas mil vezes a dívida menor (Bíblia
Sagrada, tradução de João Ferreira de Almeida, 1993, “Auxílios para o leitor”, p. 27).
65
social. Aquela sociedade estava em débito com ele, que não tardou em encontrar meios
para diminuir o déficit. Ele, “Prudêncio”, conhecendo o funcionamento da sociedade,
baseado na hierarquia, tomou precauções e providências, segundo as regras em vigor.
Seria anacrônico exigir que o ex-escravo devesse repudiar a escravidão e demonstrar
consciência de classe. Foram apenas reproduzidos comportamentos e valores vigentes,
que davam, a quem tinha direitos e prestígio naquele meio social55.
Com isso, o episódio machadiano, de forma enviesada, serve para igualar o preto
e o branco. São eles iguais porque podem apreender e aplicar as regras do convívio
social - sabem jogar o bilhar social, são iguais porque escravos podem ascender da
condição de objeto para a condição de cidadãos57; são iguais porque aspiram aos
mesmos bens sociais que a sociedade pode oferecer; enfim, são iguais porque têm,
assim, na sua constituição psicológica (universal) o mesmo barro com que se formam os
seres humanos. Eis a interpretação de Faoro (1976, p. 337):
A liberdade [...] não emancipa o escravo. Mas há grande diferença entre o escravo e
o liberto. O liberto adquire a condição, embora mínima e limitada, de transferir os
agravos recebidos, as pancadas sofridas, a outrem. A alforria significa uma ascensão
social: galgado o primeiro degrau, o homem sai da condição de saco de afrontas,
para o qual não há a possibilidade de reação. A liberdade se identifica com o status
na sociedade, acrescido do arbítrio de castigar, repreender e punir. O liberto adquire
a faculdade de ser mau – faculdade que a escravidão lhe negava.
55
A teoria do jogo do bilhar das Memórias Póstumas (capítulo XLII “Que escapou a Aristóteles”) pode
lançar alguma luz sobre o episódio. Uma bola provida de movimento encontra outra, a que transmite o
impulso e que passa a rolar e pode encontrar uma terceira, que nada tem a ver com a primeira, mas sofre o
impacto do movimento. No capítulo mencionado, as bolas são nomeadas: Marcela, Virgília, Brás Cubas.
Uma das bolas pode ser Prudêncio. A isso o narrador chama “solidariedade do aborrecimento humano”.
56
No caso bíblico, não houve a aplicação da teoria do jogo de bilhar - solidariedade do perdão -; no caso
machadiano houve, sim, mas a reprodução do jogo da solidariedade do aborrecimento.
57
É interessante notar que essa ascensão se processa pelo exercício da violência, que, no caso, é a
principal regra do jogo social. É a teoria em que se fundamenta o Humanitismo de Quincas Borba,
também. Sem essa faculdade, o escravo não é plenamente histórico, permanecendo na dimensão da
natureza.
66
A capacidade e a possibilidade de ser violento e mau - é isso que iguala pretos e
brancos, enfim. É esse o cimento da humanidade de ambos.
As duas crônicas de maio de 1888 têm em comum não apenas o tema vinculado
à escravidão, mas também a remissão à Bíblia. Aí há um potencial encontro em que,
tudo indica, o uso por Machado dos escritos bíblicos aponta, de forma convincente, suas
convicções sobre a escravidão.
67
conhecimento profundo da Bíblia serviriam como indicação de autoria” (Gledson, 1986,
p. 129). Assim ela começa (Assis, 2008, vol. 4, p. 812-814):
BONS DIAS!
Algumas pessoas pediram-me a tradução do evangelho que se leu na grande missa
campal do dia 17. Estes meus escritos não admitem· traduções, menos ainda serviços
particulares; são palestras com os leitores e especialmente com os leitores que não
têm que fazer. Não obstante, em vista do momento, e por exceção, darei aqui o
evangelho [...].
58
São citados na crônica, principalmente, políticos favoráveis à abolição; significativamente são sete: 1)
João Alfredo, Presidente do Conselho no governo a que coube decretar a completa Abolição; 2) Antônio
da Silva Prado, político paulista, que, depois de ser contrário à Abolição, reconheceu a sua necessidade;
3) José Maria da Silva Paranhos foi o Visconde do Rio Branco, em cujo governo foi aprovada a Lei do
Ventre Livre, a mais importante medida em favor da Abolição, antes de 1888; 4) Antônio Ferreira Viana,
Ministro da Justiça no Gabinete João Alfredo, era conhecido adepto do clericalismo e caricaturado como
um religioso; 5) Luís Antônio Vieira da Silva, Visconde de Vieira da Silva, foi Ministro da Marinha e
importante membro da maçonaria; 6) Rodrigo Augusto da Silva foi Ministro de Relações Exteriores
(“gentios”); 7) José Fernandes da Costa Pereira era Presidente de São Paulo em 1871 (“esteve comigo em
1871"). Trata-se de dados extraídos das “Notas” esclarecedoras que Gledson acrescentou à crônica (1986,
p. 132-134).
68
tinham para Machado; além dos aspectos temáticos e figurativos, os de natureza formal
são emprestados e utilizados de formas variadas.
Do conjunto pode ser deduzido que a Abolição, afinal, foi resultado de um tenso
processo político, de lutas entre interesses opostos. Mas, Machado não apenas enumera
personagens e eventos, de forma asséptica. Os versículos iniciais (“1. No princípio era
Cotegipe, e Cotegipe estava com a Regente, e Cotegipe foi a Regente. 2. Nele estava a
vida,com ele viviam a Câmara e o Senado”) indicam não só o perverso conúbio político
de interesses, mas o “endeusamento” dos donos do poder, no sentido em que
determinam o destino59 das pessoas – no caso, a liberdade ou a ausência dela. O início
do Evangelho de João - trecho parodiado - fala da preexistência do verbo encarnado.
Esse detalhe sugere vínculos com a constante remissão aos tempos míticos, expressivos
em Machado, quase sempre associados ao mal (parece não ser assim neste caso). Esses
tempos míticos são revividos, pois têm retorno eterno60, reconhecido em cada nova
ocorrência.
59
Destino, no caso, não está tomado no sentido fatalista, segundo o qual forças extra-humanas conduzem
os passos dos homens; trata-se do lugar e do papel que todo cidadão deve ter em determinado meio social.
60
Conforme indica Eliade (1981), os atos humanos remontam a um ato primordial, a um protótipo mítico,
ocorrido na origem (in illo tempore, ab origine). Para o homem primitivo, “o gesto só adquire significado,
realidade, na medida em que retoma uma ação primordial” (Eliade, 1981, p. 19).
61
Gledson (1986, p. 132) lembra que Cotegipe era antiabolicionista convicto, tendo sido forçado a se
demitir dois meses antes da Lei Áurea.
69
crer por intermédio dele.
15. João testemunha a respeito dele e exclama: 4. E disse Antônio Prado: O que há de vir depois de
Este é o de quem eu disse: o que vem depois de mim é o preferido, porque era antes de mim.
mim tem, contudo, a primazia, porquanto já existia
antes de mim.
19. Este foi o testemunho de João, quando os 5. E, ouvindo isto, saíram alguns sacerdotes e
judeus lhe enviaram de Jerusalém sacerdotes e levitas e perguntaram-lhe: Quem és tu? 6. És tu,
levitas para lhe perguntarem: Quem és tu? 20. Ele Rio-Branco? E ele respondeu: Não o sou. És tu
confessou e não negou; confessou: Eu não sou o profeta? E ele respondeu: Não.
Cristo. 21. Então, lhe perguntaram: Quem és, pois?
És tu Elias? Ele disse: Não sou. És tu o profeta?
Respondeu: Não.
23. Então, ele respondeu: Eu sou a voz do que 7. Disse-lhes: Eu sou a voz do que clama no
clama no deserto. Endireitai o caminho do Senhor, deserto. Endireitai o caminho do poder, porque aí
como disse o profeta Isaías. vem o João Alfredo.
28. Estas coisas se passaram em Betânia, do outro 8. Estas coisas passaram-se no senado, da banda de
lado do Jordão, onde João estava batizando. além do campo da Aclamação, esquina da rua do
Areal.
29. No dia seguinte, viu João a Jesus, que vinha 9. No dia seguinte, viu Antônio Prado a João
para ele, e disse: Eis o Cordeiro de Deus, que tira o Alfredo, que vinha para ele, depois de guardar o
pecado do mundo! 30. É este a favor de quem eu chapéu no cabide dos senadores, e disse: Eis aqui o
disse: após mim vem um varão que tem a primazia, que há de tirar os escravos do mundo. Este é o
porque já existia antes de mim. mesmo de quem eu disse: Depois de mim virá um
homem que me será preferido, por que era antes de
mim.
32. E João testemunhou, dizendo: Vi o Espírito 10. Passados meses, aconteceu que o espírito da
descer do céu como pomba e pousar sobre ele. Regente veio pairar sobre a cabeça de João
Alfredo, e Cotegipe deixou o poder executivo e o
poder executivo passou a João Alfredo.
A primeira parte da peça machadiana vai até o verso décimo e tem por fonte o
Evangelho de João, como se pôde verificar acima. A combinação de projeções -
temporais, espaciais e actoriais - aproxima os tempos do passado mítico e do presente
então vivido. Dos versículos onze ao dezesseis, Antonio Prado, abolicionista, é
comparado a João Batista62, e João Alfredo, ao próprio Jesus. Alude-se, então, ao trecho
bíblico da “vocação dos discípulos” e, na crônica, o grupo dos discípulos abolicionistas
é composto por semelhante “vocação”. Tudo indica que a fonte para essa parte não é
62
João Batista foi o precursor, papel desempenhado por Antonio Prado, nos bastidores da política que
resultou na Abolição.
70
mais o Evangelho de João, mas o Evangelho de Mateus, inclusive pela menção a
igreja63, registrada somente naquele evangelho.
63
A referência encontra-se em Mt 16.18.
64
Conforme Gledson (1986, p. 33), “Galileia é um famoso engenho de Pernambuco, província pela qual
João Alfredo foi Senador (o irônico significado religioso é suficientemente claro)”.
65
Perna associa-se a pé e calcanhar. Pode indicar fragilidade, conforme a expressão calcanhar de
Aquiles. Há também gigante de pés de barro, provavelmente ligada ao livro bíblico de Daniel. Não se
deve esquecer que Eugênia, nas Memórias Póstumas, é a Vênus manca. A perna, o pé e o calcanhar
sustentam o corpo, daí se associarem à ideia de base, fundamento. A sociedade carioca (brasileira) tinha,
então, seus fundamentos doentes. Há outro valor simbólico: “Como a parte mais baixa do homem e sua
ligação com a terra, o pé goza de antiquíssimo significado mágico que se manifesta especialmente em sua
desnudação ritual [...] O sacrificador desnuda os pés a fim de representar a dupla relação com o céu e a
terra” (Heinz-Mohr, 1994, p. 279).
66
Elle Haddebarim é o nome hebraico do livro Deuteronômio. Os nomes dos livros da Bíblia cristã são
tirados da tradução grega dos setenta, a Septuaginta. A tradição hebraica nomeia os livros a partir das
71
A Lei (Torah) dos hebreus contém preceitos importantes para minimizar os
efeitos da escravidão, prática comum na Antiguidade. O apelo à lembrança do passado
de escravidão no Egito era recurso frequente dos narradores e profetas bíblicos, usado
para a devida valorização da liberdade, associado a um providencial ato salvífico de
Deus em favor do povo escolhido. O Deus dos hebreus era promotor da liberdade
humana. O trecho a que se faz alusão acima está em Dt 15.12-15:
Quando um de teus irmãos, hebreu ou hebreia, te for vendido, seis anos servir-te-á,
mas, no sétimo, o despedirás forro. E, quando de ti o despedires forro, não o
deixarás ir vazio. Liberalmente, lhe fornecerás do teu rebanho, da tua eira e do teu
lagar; daquilo com que o SENHOR, teu Deus, te houver abençoado, lhe darás.
Lembrar-te-ás de que foste servo na terra do Egito e de que o SENHOR, teu Deus, te
remiu [...].
Como a úlcera não podia esperar e, com a bênção da Regente a João e seus
discípulos, “foram para as câmaras, onde apresentaram o projeto”. Aqui reside a chave
de interpretação da parábola: o unguento era o projeto da libertação dos escravos67. No
entanto, o remédio era ineficaz, porque viciado pela falta do alforje e dos seis anos -
amparo indispensável à sobrevivência dos libertos, segundo a tradição bíblica, que não
estava sendo observado. Assim, o evangelho da crônica é insuficiente. Por isso, o
unguento não curaria a úlcera. A úlcera corromperia o sangue. É o que se deduz da
sequência da crônica. No Maranhão, por exemplo, escravos inocentes foram castigados
por causa da lei - por eles, aliás, desconhecida:
27. Menos no Bacabal, província do Maranhão, onde alguns homens declararam que
a lei não valia nada, e, pegando no azorrague, castigaram os seus escravos cujo
crime nessa ocasião era unicamente haver sido votado uma lei, de que eles não
sabiam nada; e a própria autoridade se ligou com esses homens rebeldes.
De fato, o unguento tinha vícios em sua composição: não havia alforje, mas
havia muita violência. Rebeldes senhores recusavam-se a aceitar e a cumprir a lei, no
que eram apoiados por autoridades governamentais. Por isso, também, o unguento
corrompeu a úlcera. E corromperia mais. Vejamos o final da crônica:
primeiras palavras do livro. O exemplar que Machado possuía da Bíblia registrava também os nomes
hebraicos dos livros.
67
O unguento do Evangelho era a boa-nova pregada por Jesus. Nas injunções políticas sugeridas pela
crônica, à parte o idealismo dos abolicionistas, a libertação dos escravos foi concessão dos donos do
poder para evitar o mal maior; era preferível perder uma perna a perder o corpo todo.
72
28. Vendo isto, disse um sisudo de Babilônia, por outro nome Carioca: Ah! Se
estivessem no Maranhão alguns ex-escravos daqui, que depois de livres, compraram
também escravos, quão menor seria a melancolia, desses que são agora duas coisas
ao mesmo tempo, ex-escravos e ex-senhores. Bem diz o Eclesiastes: Algumas vezes
tem o homem domínio sobre outro homem para desgraça sua. O melhor de tudo,
acrescento eu, é possuir-se a gente a si mesmo.
Não se pode dizer que, a partir dessa breve paródia, Machado de Assis foi
indiferente à escravidão. O domínio de um homem sobre outro(s) é fonte de desgraça. E
que desgraça, quando os senhores não cumprem leis e, ao contrário, aliam-se a
autoridades para perpetrarem violência contra escravos que deveriam libertar.
Também voltada ao tema da escravidão, a crônica é toda permeada por uma fina
ironia. O narrador, dono de escravos, assume um tom ambíguo e contraditório,
revelador da postura da classe senhorial. A senha está já na abertura: “Eu pertenço a
uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto [...] toda a
história desta Lei de 13 de Maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira,
antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote” (Assis, 2008, vol. 4, p. 811).
68
Babilônia é aqui. Babilônia indica não somente a confusão de línguas, mas, principalmente, o exílio e
escravidão. Esse pode ser o efeito da expressão “Babilônica carioca”.
69
A ideia em foco não seria uma alusão a um estado de loucura?
73
Essa caracterização inicial, feita pelo próprio cronista, desmascara-o, porque a
libertação dos escravos, se já tinha sido prevista pouco antes, era favas contadas.
Querendo tirar vantagens da situação, organiza um jantar (banquete, segundo amigos)
para tornar pública a decisão. Cinco pessoas compareceram, mas noticiou-se que foram
trinta e três (alusão à idade de Cristo), para dar ao evento um aspecto simbólico70.
70
Sabe-se que Jesus morreu aos 33 anos. Este aspecto simbólico é significativo, pois sugere que o
narrador, com seu ato, estava sendo fiel aos ensinos de Cristo, quando o que ocorria era justamente o
contrário.
74
Depois de alforriado, Pancrácio71 foi contratado por um salário72. A mudança na
relação econômica não acabava com a dependência nem com a exploração; foi
historicamente necessária para a manutenção dos privilégios da classe senhorial.
Conforme Gledson (1986, p. 124):
(...) a Abolição é relativa: libertando os escravos, não se faz mais do que libertá-los
para o mercado de trabalho, no qual serão contratados e demitidos e, sem dúvida,
receberão salários miseráveis – numa situação dessas em que a liberdade conduz a
outra forma de submissão dos fracos aos fortes [...] Machado, entre ironias e
“pilhérias”, traz à atenção do leitor algo essencial. A abolição não é um movimento
da escuridão para a luz, mas a simples passagem de um relacionamento econômico e
social opressivo para outro.
71
Pancrácio tem origem grega e, ironicamente, significa detentor de todos os poderes. Alguns nomes de
personagens machadianos têm a mesma característica, como Eugênia e Dona Plácida, por exemplo.
72
Para se ter uma referência do valor desse salário mensal, Gledson (2008, p. 111) indica que uma camisa
normal custa uns 3 mil reis. Pancrácio, livre, poderia comprar duas camisas, depois de trabalhar um mês.
73
Era o tratamento que Brás Cubas dava a Prudêncio, na infância: “[...] era o meu cavalo de todos os dias:
punha a mão no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma
varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo
– mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um ‘ai, nhonhô!’, ao que eu retorquia: ‘Cala a boca,
besta’” (Assis, 2008, vol. 1, p. 638). Esse tratamento é característico da violência física e simbólica a que
o escravo estava sujeito. Segundo Duarte (2007, p. 276), “o tratamento dado ao afrodescendente passa
pelo suplício e pela animalização, revestindo a cena de forte sentido alegórico: o negro é posto de quatro,
é o animal sobre o qual o branco monta. O jogo infantil nada tem de inocente e mimetiza a posição de
cada um na estrutura vigente na sociedade”.
74
Nisso reside a contradição do narrador, pois a crônica começa assim: “Eu pertenço a uma família de
profetas après coup, post factum, depois do gato morto [...]”.
75
satisfação do Céu” (Assis, 2008, vol. 4, p. 812). Essa ambiguidade político-ideológica
da classe senhorial é universalizada em outras crônicas, contos e romances de Machado.
Por exemplo, na crônica de 26 de junho de 1888 (Assis, 2008, vol. 4, p. 821-3), a
inspiração vem do romance Almas mortas, de Gogol, em que é criticado, de novo, o
oportunismo dos escravocratas, que urdiam fraudes em compra de escravos para serem
depois indenizados pelo poder público. No começo, o narrador esconde-se na pele de
um burguês espertalhão que quer tirar proveito da situação. Para Duarte (2007, p. 249),
“Machado universaliza o drama dos escravizados ao compará-los aos servos russos”.
Isso já tinha sido percebido por Magalhães Júnior75, na década de 1950, quando
começou a cair por terra a tese do absenteísmo machadiano. Depois, outros autores,
como Brito Broca, Astrojildo Pereira, Raimundo Faoro, Roberto Schwarz e, mais
recentemente, Chalhoub contribuíram para reconhecer que há em Machado consciência
dos dilemas de seu tempo. Schwarz, por exemplo, “analisa a inserção histórica da obra,
75
Magalhães Júnior, Raimundo. Machado de Assis desconhecido. 2ª Edição. São Paulo: Lisa Livros
Irradiantes, 1971. Na obra há um capítulo intitulado “Machado de Assis e a abolição”.
76
a partir de seus vínculos estruturais com o modo e organização da sociedade brasileira
no Segundo Reinado” (Duarte, 2007, p. 263). Gledson (1986, p. 14), por sua vez, aponta
a relação da obra com os principais fatos históricos da época, para o caráter enganoso do
realismo machadiano, que exige leitura atenta das entrelinhas.
Machado não apoiou a escravidão. Não há, segundo Duarte (2007, p. 242-243),
evidência em sua obra que permita afirmar esse apoio: “nos escritos machadianos não se
vê em nenhum momento palavras de apoio, mesmo que implícito ou subtendido, à
escravidão. Nem se encontram os estereótipos recorrentes cujo foco é a desumanização
dos afrodescendentes”.
Por que não há heróis negros nos escritos machadianos? Não seria isso indício
de que não foi simpático à escravidão e aos escravos? A ausência não pode ser
argumento para dar suporte a suposta indiferença. Afinal, para não comprometer a
verossimilhança do universo burguês, o procedimento impôs-se sem, entretanto, fazer
com que o tema fosse apagado ou indiferente. Conforme Nascimento (2002, p. 53),
Machado fala de seus irmãos de cor como sujeitos marcados por traços indeléveis de
humanidade e por um perfil que quase sempre os dignifica, apesar da posição
secundária que ocupam nos enredos. Impõe-se destacar que essa ausência de
protagonismo está em homologia com o papel social por eles desempenhado,
caracterizado pela subalternidade da condição e pela redução a mera força de
trabalho.
77
Enfim, pode-se assumir que o autor carioca trata do tema da escravidão como
trata de outros temas, sem o ativismo da militância política nem excesso panfletário.
Não se submete às exigências do discurso ideológico. Machado serve-se da força de sua
ficção, com a projeção do tema na dimensão da universalidade de sua obra (Duarte,
2007, p. 272-273):
Deste modo, persiste nos romances o emprego dos procedimentos esquivos, que, em
seu conjunto, compõem toda uma poética da dissimulação: o tratamento enviesado,
indireto; os negaceios verbais e as alfinetadas ligeiras, mas cortantes; o discurso
irônico substituindo a fala explícita ou peremptória; o enfoque universalizante de
questões nacionais; a paródia de mitos e narrativas fundadoras de hegemonias; o
desmascaramento da classe senhorial pela sátira dos detentores do poder; e tudo isso
vazado numa linguagem marcada por disfarces de toda ordem [...].
Nesse quadro, o uso e a presença da Bíblia, como portadora dos elementos que
sustentam a hegemonia cristã-católica, participam da ambiguidade da tensão ser x
parecer, própria da tradição política brasileira. A elite senhorial parecia seguir os
preceitos bíblicos.
78
Quanto ao “Evangelho da missa campal”, pode haver duas possibilidades de
avaliação. Uma primeira, negativa: a elite política (sacerdotes e levitas), em lance de
oportunismo, decreta a libertação dos escravos, para preservar o corpo, ainda que com
perda da perna. Revelam-se o perverso conúbio político de interesses e o endeusamento
dos donos do poder. A segunda possibilidade é positiva: a libertação dos escravos,
plena, era, de fato, a concretização da mensagem do evangelho: os abolicionistas eram
verdadeiros “discípulos”; a abolição era a versão moderna do verdadeiro Evangelho. A
posse de outra pessoa é o grande pecado que corrompe o sangue; o remédio contra a
melancolia era não ser ex-escravo nem ex-senhor. Seria possível conciliar as duas
leituras? Em todo caso, Machado não foi um omisso quanto ao tema da escravidão.
A leitura de Renan despertou interesse e atenção. Por meio dela, Machado teve
contato com princípios básicos da exegese moderna: crítica histórica e literária e noções
de crítica textual. Detectaram-se elementos míticos das narrativas bíblicas,
particularmente no que diz respeito aos evangelhos, mas esse princípio pode ser
aplicado ao conjunto dos escritos bíblicos.
79
Se defendeu a abolição dos escravos de forma convicta, nas injunções históricas
em que ocorreu, Machado não acreditava numa Abolição como ideal e utopia, porque
na história humana nada há novo sob o sol, conforme o conhecido refrão do Eclesiastes.
O pessimismo em relação ao futuro deve-se, em grande parte, ao olhar para o começo
mítico, fonte de desencontros, de lágrimas, de logro. Esse começo mítico em suas
vinculações com os registros bíblicos vai ocupar o capítulo seguinte.
80
CAPÍTULO 3: “O PARAÍSO TERRESTRE, PRINCÍPIO DA
FALÊNCIA UNIVERSAL”
A volta às origens míticas de nossa civilização tem nos relatos bíblicos fontes
privilegiadas. Eles foram visitados com regularidade por Machado. Neste capítulo
algumas ocorrências serão registradas, com o propósito de verificar quais são as
motivações e quais os efeitos que produzem.
81
e seus filhos, pelo fato de a arca de Noé ser um novo começo para a humanidade. Serão
também considerados nessa rubrica relatos sobre Jacó e Isaque, que, por fazerem parte
do início do povo hebreu, não deixam de configurar uma origem. Não se fará distinção
rigorosa entre mito e história bíblica, uma vez que esse não é nosso objetivo.
76
A escola das formas, da tradição exegética protestante, usa o termo lenda para caracterizar sequências
em que aparecem elementos do mundo sobrenatural, miraculoso e maravilhoso, como o nascimento, o
batismo e a transfiguração de Jesus.
82
dos personagens históricos, que têm “uma pletora de motivos contraditórios, [...] uma
vacilação e um tatear ambíguo” (Auerbach, 2004, p. 16).
Auerbach admite que não é fácil escrever história e por isso a maioria dos
historiadores faz concessões à técnica do lendário. É por isso que há, nas narrativas
bíblicas, entrelaçamento com estruturas históricas. O crítico (2004, p. 17-18) interessa-
se em saber como se dá a transposição do lendário para o histórico:
[...] como, já no lendário, se apreende apaixonadamente o problema da ordem e da
interpretação do acontecer humano, um problema que, mais tarde, explode os limites
da Historiografia, sufocando-a por inteiro na profecia. Assim, o Velho Testamento,
enquanto se ocupa do acontecer humano, domina todos os três âmbitos: lenda, relato
histórico e teologia histórica exegética.
83
desenvolvimento da apresentação do devir histórico e aprofundamento do
problemático” (Auerbach, 2004, p. 20).
Alter (2007) indica que essas narrativas se cruzam em diversos textos da Bíblia
e nem sempre é possível estabelecer limites nítidos entre eles. Esse material será aqui
genericamente admitido como mito, sem que a ele se negue certa dimensão histórica77.
Por outro lado, Machado evoca outros eventos bíblicos, não diretamente relacionados à
origem, seja do mundo, seja dos seres humanos; é o caso do êxodo dos hebreus, de
Josué, de Esdras e de outros personagens e eventos a que se fará menção.
77
O monoteísmo da Bíblia Hebraica tem como uma de suas principais características a valorização da
história, em contraposição a outras religiões não monoteístas do Oriente, que faziam da natureza o eixo
central de suas produções míticas animistas.
78
A passagem indicada encontra-se em Ex 14.10-29.
79
O sonho de Jacó é narrado em Gn 28.10-15. Ele vê uma escada, apoiada na terra, cujo topo tocava o
céu e por ela anjos subiam e desciam. Os extremos (terra e céu) revestem-se de importância e, na crônica,
são explorados os aspectos positivos (subirem para o céu) e negativos ou baixos (descerem ao necrotério).
84
Os eventos bíblicos evocados são peripécias grandiosas e contrastam com os
acontecimentos triviais que nas crônicas são comentados. A escada de Jacó confirma as
bênçãos de Deus ao povo hebreu, representado por um patriarca, que deveria dar
continuidade à linhagem - a irrupção do divino na história, conforme interpretação dos
teólogos. A passagem do Mar vermelho também é significativa; é um ato que
materializa a proteção de Deus, prometida aos patriarcas.
80
Note-se a expressão “ignoras a vida dos burros desde o começo do mundo” que, além de apontar para o
começo, indica que a vida dos burros permanece a mesma. Outro dado interessante é a evocação do
nascimento do “salvador dos homens”, que honrou a humildade dos burros com a dele, sem que isso
impedisse a pancadaria cristã, sequer no dia de Natal.
81
Balaão resolveu ir aonde Deus lhe havia proibido, por isso apareceu um anjo do Senhor no caminho. O
mensageiro sobrenatural não foi visto por Balaão, mas por sua jumenta, que desvia o caminho. Balaão a
espanca, forçando-a a voltar. Na terceira vez que isso aconteceu, o Senhor fez a jumenta falar (Nm 22.22-
30).
85
nossa raça é essencialmente filosófica”. Quando a viagem chega ao fim, o narrador
murmura entre os dois burros: “Houyhnhnms!”.
Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de
Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano,
e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas
razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não
havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao
naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas
circunstâncias do primeiro homem. (Assis, 2008, vol. 4, p. 385)
82
A passagem bíblica encontra-se em Mt 9.16: “Ninguém põe remendo de pano novo em veste velha;
porque o remendo tira parte da veste, e fica maior a rotura”.
83
Fato ocorrido por ocasião da morte de Jesus (Mt 27.35).
84
No ensaio crítico “Instinto de nacionalidade”, de 1873, Machado desenvolve suas ideias sobre as
relações entre local e universal. Essas categorias têm desdobramento posterior de grande relevância para a
tradição crítica machadiana.
85
Esdras - além de Neemias - foi líder da reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém, na volta do
exílio babilônico, conforme registros dos livros bíblicos homônimos da Bíblia.
86
perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e
agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o
cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano”. Notem-se os termos
degradação e cortejo de males, entre outros, indicativos da forma com que o passado e
o presente se superpõem.
[...] era um modo de persuadir ao homem a alta linhagem de seu nariz. Sem aquele
texto, nunca o homem atribuiria ao Criador, nem a sua gaforinha, nem a sua fraude.
É certo que a fraude, e, a rigor, a gaforinha são obras do Diabo, segundo as melhores
interpretações; mas não é menos certo que essa opinião é só dos homens bons; os
maus crêem-se filhos do Céu — tudo por causa do versículo da Escritura.
86
Na ocasião, José do Patrocínio também fez discurso inflamado: “Peço a palavra! Não... tomo a palavra,
com o direito que me dá a minha raça, depois de mais de três séculos do opróbrio e de opressão”
(Magalhães Jr., 2008, vol. 3, p.148).
87
produção textual, de um discurso: “Sem aquele texto […] segundo as melhores
interpretações [...] tudo por causa do versículo da Escritura”.
[...] este mundo em que a senhora supõe viver, não passa talvez de um simples
boato. Os anjos, para matar o imortal tempo, fizeram correr pelo infinito o boato da
criação, e nós, que imaginamos existir, não passamos das próprias palavras do boato,
que rolam por todos os séculos dos séculos.
— Palavras apenas?
— Palavras, frases. A senhora é uma linda frase de artista. Tem nas formas um
magnífico substantivo: os adjetivos são da casa de Madame Guimarães. A boca é um
verbo. Et verbo caro facta est (Assis, 2008, vol. 4, p. 1026).
87
É comum esse recurso em Machado. Um exemplo conhecido encontra-se no capítulo XVII de
Memórias Póstumas: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de reis” (Assis, 2008, vol.
1, p. 648).
88
mas criada pela linguagem e pela Arte. O final do trecho apresenta esta sequência,
também sugestiva, por evocar um trecho do evangelho: “A boca é um verbo. Et verbo
caro facta est”. Joga-se com o termo verbo, no caso associado a boca e a carne, que
retoma, em tom jocoso, o começo do Evangelho de João: “No princípio era o verbo
[...]”. Joga-se, também, com o verso 14 do primeiro capítulo do mesmo evangelho, que
diz “E o verbo se fez carne”. O cronista cita a passagem em latim.
89
Em 26 de março de 1893, o cronista comenta a temporada de espetáculos entre o
outono e o inverno. A Arte faz aquilo de que a paz não pode fazer; a Arte, ao cantar a
guerra, produz o mistério:
Paz na terra aos homens de boa vontade — é a prece cristã; mas nem sempre o céu a
escuta, e, apesar da boa vontade, a paz não alcança os homens e as paixões os
dilaceram. Para este efeito, a arte vale mais que o Céu. A própria guerra, cantada por
ela, dá-nos a serenidade que não achamos na vida. Venha a arte, a grande arte, entre
o fim do outono e o princípio do inverno (Assis, 2008, vol. 4, p.970-971).
A mesma crônica comenta um livro sobre economia que anunciava uma moeda
única, universal. Aproveita o cronista para associar moeda a rebanho e pastor, religião a
economia: “Um só rebanho e um só pastor, é o ideal da Igreja Católica. Uma só moeda
deve ser o ideal da igreja do Diabo, porque há uma igreja do Diabo, no sentir de um
grande padre”88.
88
Santo Agostinho é retomado no conto “A igreja do diabo”, no qual também se desenvolvem ao extremo
as relações entre religião e dinheiro. Aqui, a concepção de arte é instigante, como a noção de linguagem,
sugerida na crônica de 5 de abril de 1888. O Santo era um de seus autores prediletos, conforme Coutinho
(1940, p. 136-137).
89
O termo céu é tomado aqui não na acepção cósmico-espacial, que denuncia uma organização
topográfica já semiotizada em alto x baixo, mas no sentido que a escatologia cristã o emprega. O episódio
90
buscado, para alívio da vida agitada, não é o céu, mas é o Hospício dos Alienados. Faz-
se menção a Renan, em cujos escritos se confirma a ideia da guerra permanente entre os
seres humanos: “Não nego que o dever comum é padecer comumente, e atacarem-se uns
aos outros, para dar razão ao bom Renan, que pôs esta sentença na boca de um latino:
‘O mundo não anda senão pelo ódio de dois irmãos inimigos’ [...] este mundo é feito
para desconcertar o cérebro humano”. O cronista estava se referindo a uma exposição de
artesanato feito por “desconcertados” do hospício; para lá ia, “antes que me
desconcertem a mim”.
Leitor, Deus gastou seis dias em fazer este mundo, e repousou no sétimo. Ora, Deus
podia muito bem não repousar, mas quis deixar um exemplo aos homens. Daí o
nosso velho descanso de um dia, que os cristãos chamaram do Senhor. Eu não sou
Deus, leitor; não criei este mundo, tanto que lhe acho algumas imperfeições, como a
de nascerem as uvas verdes, para engano das raposas. Eu as faria nascer maduras e
talvez já engarrafadas. Mas criticar obra feita não custa; Deus não podia prever que
os homens não se limitassem a falsificar eleições e fizessem o mesmo ao vinho
(Assis, 2008, vol. 4, p. 1374).
da rebelião no céu aparece também em Dom Casmurro, no capítulo “A Ópera”. Algumas passagens
bíblicas que falam do céu como lugar de redenção para os cristãos: Lc 9.51, 12.33; Jo 3.13; 1Co 15.47.
2Co 5.1 sintetiza a noção cristã de céu: “Sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se
desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna, nos céus”.
91
inferi que as cataratas do céu e as fontes do abismo continuavam escancaradas” (Assis,
2008, vol. 4, p. 1082). Depois de desejar que as águas haveriam de acabar algum dia, o
cronista suspira por um tempo, depois “deste dilúvio” em que “a gente possa descer e
palmear a Rua do Ouvidor e outros becos”; um tempo em que se verá “o céu azul como
a alma da gente nova. O sol, deitando fora a carapuça, espalhará outra vez os grandes
cabelos louros. Brotarão as ervas. As flores deitarão aromas capitosos” (Assis, 2008,
vol. 4, p. 1082). Entretanto, como o fim da chuva não chegava, estabelece-se, na
crônica, um diálogo com os animais, a quem o cronista diz: “viveis em paz, ainda os
que sois inimigos, lobos e cordeiros, gatos e ratos”. Os animais procuram contrariar
essa ideia de “viver em paz”. Um espadarte retruca, externando insatisfação por estar
longe do mar, onde os peixes “comem uns aos outros, com grande alma”. O galo “que
bateu as asas, e, depois de cantar três vezes, como nos dias de Pedro”, interrompe a
conversa, alegando que sete galos e sete galinhas são demais; se estavam em trégua, não
era por falta de casus belli: “Há aqui seis galos de mais. Se os mandássemos procurar o
corvo?”. O crocodilo, a propósito de seus avós, arrematou: “eles foram os mais belos
crocodilos do mundo, o que pode provar com papiros antiquíssimos e autênticos...”. A
isso, a lagartixa reage: “tendo nascido na mais humilde fenda de parede, como eu...
Crocodilo de bobagem!”. Quando a pomba voltou definitivamente, soltaram-se todos os
animais. “Viva o dilúvio! e viva o sol!”.
Essa prosopopeia, que recupera elementos da fábula, não tem fins apenas
humorísticos. Se verificarmos bem, “as cataratas do céu e as fontes do abismo
continuavam escancaradas”. Não que ainda tenhamos de suportar chuvas diluvianas.
Não temos falta de casus belli, o que impede os seres humanos de viverem em paz. A
menção ao desejo de “palmear a Rua do Ouvidor” é significativa. Em outros tantos
contos, Machado de Assis registra esse cruzamento entre peripécias do mundo mítico e
a Rua do Ouvidor, que confirma a configuração em que o mundo mítico emoldura, por
assim dizer, o mundo presente: o cronista sai da Arca e entra na Rua do Ouvidor.
E, por falar em Rua o Ouvidor, o conto “Tempo de Crise”, curiosamente
de 1873, mesmo ano de “Instinto de Nacionalidade”, superpõe a humanidade e a
Rua do Ouvidor. Novamente ocorre a relação local/ universal:
92
A Rua do Ouvidor resume o Rio de Janeiro. A certas horas do dia, pode a fúria
celeste destruir a cidade; se conservar a Rua do Ouvidor, conserva Noé, a família e o
mais (Assis, 2008, vol. 3, p. 1179).
Na mesma crônica, o narrador se diz rabugento, porque sofre com o calor: “se
estou doente, que me meta na cama. Que me meta na cova, se estou morto. Não, a cova
há de ser quente como trinta mil diabos”. O cronista diz que, se ele fosse digno de
algum mérito, Deus diria: “Vai, estio, faze arder a tudo e a todos, menos o meu fiel
servo, o semanista da Gazeta, não tanto pelas virtudes que o adornam e são dignas de
apreço particular, como porque lhe dói suar e bufar, e os seus padecimentos afligiriam
ao próprio céu”. Contudo, Deus não diz nada, porque “gosta de parecer” injusto. No
final da crônica há uma ligação com o capítulo “O delírio” de Memórias Póstumas,
mais precisamente com a referência à mãe Natureza-Pandora, mãe e inimiga. O narrador
se consola com o fato de que em outros lugares estão morrendo de frio90:
A certeza de que, quando eu bufo aqui e corro a comprar gelo, morre alguém na
Noruega, por havê-lo de graça, ajuda a suportar o calor [...]. Expirai às mãos de
vossa mãe, filhos da neve, enquanto os filhos do sol aqui morremos às mãos do
nosso grande pai.
90
O frio é o começo da Natureza, no delírio de Brás Cubas; o começo do mundo é o gelo. A Natureza é
fria e indiferente, como o Cruzeiro em relação aos dramas humanos, conforme indica Quincas Borba.
93
Realmente, se tanto se morre ao frio como ao sol, não vale a pena deixar este clima;
tudo é morrer, poupemos a viagem.
Esse tom lúgubre percorre toda a crônica, que assim termina: “tornemos à morte,
às febres, à dinamite; tornemos aos cemitérios, aos epitáfios” (Assis, 2008, vol. 4, p.
1049):
91
O episódio está narrado em Gn 30.27-43.
94
O conto do vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor, pode
crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi o
texto primitivo do conto. Mas, se há dúvida sobre isso, não a pode haver quanto ao
caso de Jacó e seu sogro. Sabe-se que Jacó propôs a Labão que lhe desse todos os
filhos das cabras que nascessem malhados. Labão concordou [...] O nosso Labão
desta semana foi um honesto fazendeiro do Chiador [...] (Assis, 2008, vol. 4, p.
1159).
Pode ser que a percepção da existência de uma razoável tensão dialética entre as
contradições do desígnio divino e as condutas desordenadas dos homens na história
tenha sido usada como critério implícito para a decisão sobre quais narrativas
deviam ser consideradas canônicas.
95
17 de janeiro de 1890) autorizava a tirar as vantagens e prêmios do capital realizado,
e não dos lucros líquidos.
Adão e Eva recusaram crer, a princípio; achavam o texto claro. Não desanimou a
serpente, e provou-lhes: 1.º que as publicações do Senhor eram incorretas pela
ausência obrigada da imprensa; 2.° que muitas outras companhias se tinham
organizado, de acordo com a explicação que ela dava, a das abelhas, a dos castores,
a das pombas, a dos elefantes, e a dos lobos e cordeiros; estes fizeram uma
sociedade juntos, assaz engenhosa, porque não havia dividendos, mas divididos.
Adão e Eva cederam à evidencia. Não faço, ao cristão que me lê, a injustiça de supor
que não conhece as palavras do Senhor a Adão: “Pois que comeste da árvore que eu
te havia ordenado que não comeces (o art. 3° § 3°), a terra te produzirá espinhos e
abrolhos.” Daí as calamidades deste mundo [...]uma desunião, lutas, capotes
rasgados, capotes cerzidos, capotes outra vez rasgados, o diabo! (Assis, 2008,
vol. 4, p. 942).
92
Data de 17 de janeiro de 1890 o decreto da reforma econômica conhecida como Encilhamento, política
que pretendia incentivar a atividade econômica. Provocou efeitos contrários aos pretendidos, por causa de
desajustes tais que permitiram lucros enormes, mas de fundo apenas especulativo.
93
Esse termo final pode ser lido como uma espécie de interjeição ou como um aposto resumitivo da
enumeração, projetando sobre eles uma constatação.
96
O final retoma a crônica anterior. O recuo temporal é ainda maior, mais incisivo,
chegando ao Fiat Lux, anterior a Adão e Eva. Esse momento é retratado como o
“princípio da falência universal”.
Quem me parece que renuncia, sem admitir que comete um crime, é o Senhor Deus
Sabbaoth, três vezes santo, criador do céu e da terra. Consta-me que abandonou
completamente este mundo, desgostoso da obra, e que o passou ao diabo pelo custo.
O diabo pretende organizar uma sociedade anônima, dividindo a propriedade em
infinitas ações e prazo eterno. As ações, que ele dirá nos anúncios serem excelentes,
mas que não podem deixar de ser execráveis, conta vendê-las com grande ágio. Há
quem presuma que ele fuja com a caixa para outro planeta, deixando o nosso sem
diabo nem Deus. Outros pensam que ele reformará o mundo, contraindo um
empréstimo com Deus, sem lhe pagar um ceitil95 (Assis, 2008, vol. 4, p. 949).
94
O final do trecho tem inspiração profética, de juízo e condenação, utilizada algumas vezes por Jesus.
Um exemplo está em Mt 17.17: “Jesus exclamou: Ó geração incrédula e perversa! [...]”.
95
Sabbaoth é, no Antigo Testamento, epíteto atribuído a Deus, que normalmente acompanha a
designação Ihvh Sabbaoth, expressão que significa Senhor dos Exércitos. A sequência “o Senhor Deus
Sabbaoth, três vezes santo, criador do céu e da terra” foi retirada do profeta Isaías (6.3).
97
A volta a mitos em contos
Passemos agora a contos em que está em foco a origem mítica: “Adão e Eva” e
“Na Arca: Três contos inéditos do Gênesis” (outros contos serão mencionados no
último capítulo, sob diferentes enfoques). Neles há, respectivamente, recriação dos
eventos dos primeiros capítulos de Gênesis, o começo do começo, e estilização da
narrativa bíblica, com desfechos diferentes, inesperados, de tempero trágico.
O lugar de Adão e Eva é o céu, porque não são seres históricos, não pecaram. A
terra é o lugar dos animais ferozes, das plantas peçonhentas, do ar impuro, dos
pântanos, da serpente que rasteja, babuja e morde; aqui é o lugar onde tanta abominação
há em correspondência com a falta da esperança e da piedade96.
96
O termo babuja (baba) reaparece em Memórias Póstumas, associado a Caim, no capítulo VI.
98
universo do discurso religioso, de que derivam modos característicos de presença no
mundo. O primeiro aspecto da polêmica procura neutralizar o discurso que situa no
pecado original a fonte dos males do mundo. Por que sofremos? Por que o mal existe?
A resposta da religião cristã é exatamente esta: porque Adão e Eva pecaram. Entretanto,
o conto mostra outra possibilidade: Adão e Eva não pecaram. E, apesar disso, os males
existem. Eles existem porque existem – daí a falibilidade da resposta religiosa.
Fracassará qualquer tentativa de explicá-los. Deriva desse princípio a segunda parte da
polêmica, segundo a qual a mulher é a culpada pelo pecado original. Ela foi a primeira a
comer o fruto proibido, segundo a narrativa bíblica. Foi ela que ofereceu o fruto a Adão.
Portanto, é culpada.
97
Este trecho faz parte do processo de tentação que Eva não aceitou: “Néscia! Para que recusas o
resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo, e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás
Cleópatra, Dido, Semíramis; darás herois do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás
Débora; cantarás e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e
chamar-te-ás Maria de Nazaré. Que mais queres tu? Realeza, poesia, divindade, tudo trocas por uma
estulta obediência. Nem será só isso. Toda a natureza te fará bela e mais bela. Cores das folhas verdes,
cores do céu azul, vivas ou pálidas, cores da noite, hão de refletir nos teus olhos. A mesma noite, de
porfia com o sol, virá brincar nos teus cabelos. Os filhos do teu seio tecerão para ti as melhores
vestiduras, comporão os mais finos aromas, e as aves te darão as suas plumas, e a terra as suas flores,
tudo, tudo, tudo...” (Assis, 2008, vol. 2, p. 490-1).
99
Alegando ver “um conjunto de regras diabólicas” e lembrando que “a desgraça
humana começou por causa da mulher”, um juiz de Sete Lagoas (MG) considerou
inconstitucional a Lei Maria da Penha e rejeitou pedidos de medidas contra homens
que agrediram e ameaçaram suas companheiras. A lei é considerada um marco na
defesa da mulher contra a violência doméstica.
“Ora, a desgraça humana começou no Éden: por causa da mulher, todos nós
sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade
emocional do homem [...]. O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é
masculina! Jesus foi homem!” [...] Ele chama a lei de ‘monstrengo tinhoso’ 98.
98
Tinhoso é termo utilizado em “Adão e Eva”, para designar o Diabo.
100
para a evolução da humanidade. Com as teorias científicas surgidas no final do século
XIX, passaram-se a valorizar os métodos de demonstração racional e a acreditar apenas
no que podia ser medido objetivamente. Assumindo postura cientificista, Eça propõe a
desconstrução das verdades bíblicas. A origem do mundo e do homem pode ter sido
diferente do que a religião ensina.
101
Embora Eça e Machado tenham se servido da mesma fonte, o resultado é
diverso. Isso pode ser notado no estilo - derivado de escola literária, por exemplo. O de
Machado é conciso; o de Eça é prolixo, com infinitas descrições e detalhes que
prolongam a narrativa. Outra diferença, de fundo ideológico: apesar de ambos olharem
para o passado com pessimismo, Eça vê nesse mau começo germens de um futuro
promissor. Para Machado, se o começo foi mau, o que esperar do futuro?
99
O nosso popular “Vai plantar batatas” é devidamente adaptado a outro contexto.
100
As remissões ao conto serão feitas pela indicação dos versículos, como no caso (B.13: capítulo B,
versículo 13). A fonte do conto é a seguinte: Assis, 2008, p. 283-287.
102
porque são violentos e brigam por alguns côvados de terra, sendo oito pessoas os únicos
habitantes dela? Homo homini lupus.
101
Por causa do Gênesis, Cam é normalmente associado aos negros; pela tradição, porque viu o pai
bêbado e seminu, é amaldiçoado por Noé. No conto, Cam tenta apaziguar os irmãos, junto com as
cunhadas.
103
com isso, nada se acrescenta nem se tira dele. Os capítulos inéditos são, então, uma
provocação: pode, sim, ser acrescentado (ou suprimido, por extensão) conteúdo ao
conjunto canônico, com o que fica suspensa a idéia de completude da matéria. Para
Corrêa (2008, p.142), os capítulos A, B e C encaixam-se perfeitamente entre os
capítulos sétimo e oitavo do Gênesis. Essa sugestão se apoia no reconhecimento de que
Machado se serve de vazios da narrativa bíblica. “Na arca” pode se situar
imediatamente após o versículo terceiro do capítulo oitavo de Gênesis102. A
canonicidade da Bíblia, com ou sem acréscimos, não impediu a violência entre os
irmãos103.
102
O mesmo capítulo diz, a propósito, que “os homens são inclinados para o mal, desde a sua mocidade”
(Gn 8.21). O conto radicaliza a tendência, ao sugerir que a maldade acompanha os homens desde sempre.
103
Há uma ambiguidade decorrente da combinação dessa polêmica interdiscursiva com a estilização
intertextual: rebaixa-se a Escritura; rebaixada, eleva-se.
104
O côvado é medida bíblica que corresponde a 44 cm.
104
renúncia nem doação. Então, a violência se tornou necessária, com a instauração de uma
estrutura contratual polêmica (Greimas & Courtés, s/d, p. 341).
105
O recurso desencadeia novo nó intratextual, cujo efeito é evocar, para o contexto do conto, o caos
cósmico a que o termo se refere no primeiro registro bíblico, a narrativa da criação, abertura do Gênesis.
106
Essa volta ao tempo mítico não é motivada pela integração a um tempo primordial, em que nem a
maldade nem a violência existiam, a idade do ouro, assim descrita por Ovídio: “A idade do ouro foi a
primeira, a qual, sem repressão, cultivava a lealdade e a justiça, por sua própria vontade, sem leis. O
castigo e o temor não existiam; nem as palavras ameaçadoras da lei eram lidas no fixo bronze nem a
turba suplicante temia o semblante do seu julgador, mas estavam seguros sem protetor [...]” (Spalding,
1965, p. 130). Assim como a volta ao passado mítico não revela a idade do ouro, a projeção para o futuro
da História não contempla a regeneração, mas a progressão da violência. O ser humano, condenado a
viver e a realizar a história, tem a violência como aliada idônea.
105
segundo a qual, pela maldição de Noé, se Caim107 seria vingado sete vezes e Lameque
sete vezes setenta, a violência dos irmãos seria vingada setecentas vezes setenta108.
107
“O enfermeiro” (Assis, 2008, vol. 2, p. 495) conserva a dimensão trágica que Caim. Ele vê o cadáver
com os “olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: ‘Caim,
que fizeste de teu irmão?’” (Gn 4. 9-10.)
108
O número setenta remete também aos evangelhos; em certa ocasião, os discípulos perguntam se se
devia perdoar sete vezes. Jesus responde devemos perdoar setenta vezes sete (Mt 18.22). O evangelho
receita o perdão; o conto, a violência.
109
Corrêa (2008, p. 146-147) fala de “herança pecaminosa de Caim”. Diz o autor que “a humanidade
descende da família de Noé, portanto, segundo “na Arca”, todos nós carregamos a herança pecaminosa de
Caim”. Poderíamos evitar o termo pecaminosa, porque carrega conotação de julgamento, motivado por
princípios religiosos. Machado sugere, sim, que a humanidade descende de Noé e seus filhos, mas a eles
associa a origem mítica de marcas constitutivas do comportamento humano, sem indicar se são ou se
devem ser consideradas pecado.
106
Há, então, uma ambiguidade em relação a Caim. A errância a que é castigado
instala a contradição com a figura de benfeitor. Um aspecto significativo associado à
figura do herói cultural é o caráter furioso e obstinado que ele possui. Trata-se de um
traço arquetípico (Meletínski, 1998, p. 67) e ambíguo por Machado explorado com
pertinência. Conforme Leonard-Roques (1998, p.18):
Com relação à marca de Caim, é possível que seja de natureza clânica: “este
sinal sobre cuja materialidade o texto apresenta um mistério pode ser aproximado da
tatuagem tribal dos quenitas cujo ancestral [...] seria um Qayn aparentado à família de
Moisés” (Leonard-Roques, 1998, p. 28). Em todo caso, o sinal o expõe a uma relação de
proteção e não de maldição, como supõem alguns. No conto de Machado, pode-se
considerar que o sinal identificador dos irmãos em litígio é o sangue, o qual jorrava
copiosamente por causa da violência de ambos.
110
O termo é frequente no livro de Eclesiastes, que ocupa destaque na obra de Machado.
107
entre mortalidade física e imortalidade espiritual; 2) marca de pertença a uma divindade:
separação da sociedade e da moralidade convencional; 3) sacrifício: mediação entre os
reinos humano e divino; 4) paradoxo mítico de criação e destruição: há semelhanças
com o conhecido tema do trickster.
111
Mary Douglas escreve famoso livro sobre as abominações do Levítico, em que analisa a categoria de
pureza em seus desdobramentos antropológicos e sociais: DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo:
Perspectiva, 1976.
108
normal da comunidade, para facilitar a comunicação entre a vida humana e a
sobrenatural. O estigmatizado é percebido como habitante da interface de oposições:
pureza e poluição, vida e morte, limitação e criatividade, este mundo e outro mundo. O
ciclo do sacrifício de Jesus pode ser assim entendido. Ele é igualado a um cordeiro
sacrificial e morre como mediador físico e espiritual. No momento da morte de Jesus, a
cortina do templo que separava o espaço santíssimo dos demais (o humano do divino)
rasga-se, conforme indica Mt 27.51. A cruz é sinal de mortalidade física e imortalidade
espiritual112. A moralidade transcendente que Jesus representa é enfatizada por alguns
aspectos de ruptura com a comunidade. O caso Caim, sob o ponto de vista sacrifical,
tem o elemento adicional da presença do irmão Abel113.
112
Paulo, o apóstolo, desenvolve essa ambiguidade - a fraqueza e a força da cruz - sob a perspectiva de
um missionário, no capítulo primeiro de 1 Coríntios.
113
Aycock sugere que, para entender Caim-Abel, o mito dos gêmeos circunscreve qualidades de um
mesmo heroi (1985, p. 124).
109
bíblico. Deus é vingador, mas também é preservador e criador da ordem, que não
abandona o culpado e com ele estabelece relação de proteção.
Para longe ou para perto, Caim sai sem rumo pelo mundo. Chega a Nod, terra da
fuga ou terra dos errantes. Lá, querendo esconder-se, diz que se chama Abel
114
Philippe Sellier historia, de forma breve, a presença do mito de Caim na literatura ocidental, no verbete
“Caim”. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro; Brasília: José Olympio
Editora; Editora UNB, 2000, p. 138-144.
115
A frase poderia figurar em qualquer escrito machadiano. Além disso, há o parentesco do truncamento
satírico do qual Machado se serviu para inúmeras frases construídas com a expressão sinônima “bem-
aventurados”.
110
(confundem-se na mesma pessoa). Lá também encontra trabalho como pisador de barro
e conhece Noah e sua esposa Lilith. Caim com ela tem filhos. Mas não se demora no
lugar. Recebe de Lilith um belo jumento e parte. Em caminho, topa com Abrão e
Isaque, a ponto de ser consumado o sacrifício. O narrador acrescenta que “o senhor não
é pessoa em quem se possa confiar” (Saramago, 2009, p. 78-9). A reação natural e
humana de Abraão seria mandar “o senhor à merda, mas não foi assim” (Saramago,
2009, p. 9). E, quando Abraão estava prestes a consumar o sacrifício, Caim segura-lhe o
braço, impedindo o golpe. Nisso, um anjo aparece dizendo as palavras bíblicas. Mas o
anjo tinha chegado tarde: Caim, ele mesmo, tinha já impedido o sacrifício.
111
A itinerância de Caim é marcada pela superposição do tempo e do espaço. E,
assim, ele deixa o Sinai com Moisés e os seus mortos, para entrar em Jericó, onde não
demonstra nenhum interesse pela prostituta Raabe, que de heroína passara a vilã, porque
ele “não podia suportar gente traiçoeira” (Saramago, 2009, p. 111). Caim se mostra tão
humano, no meio da guerra: “Vou-me embora [...] já não suporto ver tantos mortos à
minha volta, tanto sangue derramado, tantos choros e tantos gritos” (Saramago, 2009, p.
116).
Depois de algumas andanças, Caim volta à terra de Nod116 e descobre que Lilith
lhe tinha dado um filho, Enoch. Lilith diz: “Nem parece o homem que eu conheci, é
como se fossem duas pessoas, Ninguém é uma só pessoa, tu, caim, és também abel, E
tu, Eu sou todas as mulheres [...]” (Saramago, 2009, p. 126). Caim faz um relato do que
viu, e o que tinha visto era somente vingança, morte, guerra e destruição. Então diz:
“Que o nosso deus, o criador do céu e data terra, está rematadamente louco”. O narrador
completa afirmando que, se não era loucura, era maldade.
O senhor não ouve, o senhor é surdo, por toda a parte se lhe levantam súplicas, são
pobres, infelizes, desgraçados, todos a implorar o remédio que o mundo lhes negou,
e o senhor vira-lhes as costas, começou por fazer uma aliança com o os hebreus e
agora fez um pacto com o diabo (Saramago, 2009. p.136).
A contemplação da dor lancinante de Jó faz pensar que satã tinha muito mais
poder para interferir no mundo dos homens, ou entre ele e Deus haveria uma espécie de
cumplicidade, o que não deixava de ser algo gravíssimo. Conclui o narrador dizendo: “o
116
Lá, Caim tinha trabalhado como pisador de barro; daí que o livro registra a seguinte expressão: “terra
que tornou à terra, pó que tornou ao pó” (Saramago, 2009, p. 123). Faz-se um trocadilho com este
topônimo: “quem diz terra de nod, diz terras de nada”.
112
mais certo é que satã não seja mais que um instrumento do senhor, o encarregado de
levar a cabo os trabalhos sujos que deus não pode assinar com seu nome” (Saramago,
2009, p. 140).
se realmente pensavam que, exterminada esta humanidade, aquela que lhe suceder
não virá a cair nos mesmos erros, nas mesmas tentações, nos mesmos desvarios e
crimes, e eles responderiam, Nós somos apenas anjos, pouco sabemos dessa charada
indecifrável que vocês chama natureza humana, mas, falando com franqueza, não
vemos como irá resultar satisfatória a segunda experiência quando a primeira acabou
no estendal de misérias que temos diante dos olhos, em nossa sincera opinião de
anjos, para resumir, e considerando as provas dadas, os seres humanos não merecem
a vida (Saramago, 2009, p. 157).
117
Essa frase final de Caim combina bem com os versículos finais de cada capítulo de “Na arca”.
113
sobretudo, pela forma com que lê e interpreta a Bíblia, um manual de maus costumes,
um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana. Basta reparar nos episódios de
violência relatados na Bíblia, como o sacrifício de Isaac, a destruição de Sodoma ou a
vida de Job, por exemplo, todos citados em Caim118. O escritor foi acusado de herege.
Talvez por isso, ainda que de forma inusitada, Saramago tenha proposto a inserção de
acréscimos inéditos à “Declaração Universal dos Direitos Humanos”: o direito à
dissidência e à heresia119.
Caim é aqui referido não apenas pela ressignificação do mito bíblico. Verificam-
se aproximações significativas em relação ao conto de Machado, pela presença de temas
comuns, embora motivados, talvez, por elementos distintos. Em Machado, seriam mais
fortes os motivos estético-filosóficos; em Saramago, os de ordem ideológica e teológica.
Pode-se até pensar na hipótese de alguma influência machadiana no escritor português.
Entre os temas comuns, destacamos o pessimismo, a insuficiência da explicação bíblica
para a complexidade das contradições humanas, a não aceitação da regeneração da
humanidade.
118
Saramago reconhece, contudo, que a Bíblia traz preciosidades; ela “tem coisas admiráveis do ponto de
vista literário”. Entre elas, estão os Salmos e o Cântico dos Cânticos. Disponível em: http://publico.pt/
Sociedade/saramago-ha-muita-coisa-na-biblia-que-vale-a-pena-ler_1406198. Acesso em 10 de outubro
de 2010.
119
Disponível em: http://tsf.sapo.pt/PaginaInicial/Vida/Interior.aspx?content_id=1399865. Acesso em 10
de outubro de 2010.
114
A liberdade de manipulação da materialidade de trechos bíblicos é outra
característica observável nos dois narradores. Por exemplo, “nem só de pão vive o
homem [...]” (Saramago, 2009, p. 90); ou ainda esta outra: “tão certo com eu me chamar
Caim [...]” (Saramago, 2009, p. 94).
Essa comparação poderia ser ampliada; contudo seria um desvio maior neste
trabalho.
Num dos momentos de tédio absoluto, pura melancolia, provocada pela ausência
de pessoas que o podiam distinguir, Jacobina se sentiu incomodado pelo tic-tac da
pêndula do relógio, cujas horas batiam de
século a século, no velho relógio da sala, cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a
alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos
depois, li uma poesia americana, creio que de Lonfellow e topei com este famoso
estribilho: Never, for ever! – for ever, never! Confesso-lhes que tive um calafrio:
recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia
Marcolina: Never, for ever! – For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um
diálogo do abismo, um cochicho do nada (Assis, 1985, vol. II, p. 349)121.
120
Corrêa (2008, p.143) também nota o retorno ao mito no conto e em outros escritos de Machado. Diz
que “alguns contos da maturidade machadiana adquiriram o tom de narrativas míticas, que procuram
explicar a origem de determinados comportamentos do ser humano”.
121
É importante notar o termo abismo, que dialoga intertextualmente com a narrativa a criação do
Gênesis.
115
Jacobina se rende: “Achei-me dois” (Assis, 1985, vol. II, p. 350). Pasta Jr.
(2003) indica que o tema do duplo é onipresente na literatura universal, com expressivas
ocorrências na literatura brasileira e em Machado de Assis, particularmente em alguns
contos e romances da maturidade, sobretudo “em Esaú e Jacó, romance em que tudo é
cisão e ambivalência” (Pasta Jr., 2003, p. 38). Associado à literatura romântica européia,
o duplo encorpa-se, principalmente no movimento de constituição do sujeito mantido
principalmente pela reflexão, por ocasião da ascensão da burguesia e do liberalismo. A
autonomia do sujeito burguês passa pelo processo de reflexão e provoca uma
contradição no caso brasileiro pelo par modernidade-atraso, que punha às escâncaras os
desajustes entre liberalismo e escravidão e impedia a autonomia necessária para a
reflexão. O eu não retorna a si para completar o movimento de reflexão: o outro se
confunde com “o mesmo”:
122
Para o crítico, o narrador de Memórias póstumas caracteriza-se pela arbitrariedade (volubilidade),
própria da classe social por ele representada. Em todo caso, o duplo está presente: “o ritmo é estritamente
binário, marcado por alternativas, paralelismos, antíteses, simetrias [...]” (Schwarz, 2000, p. 26).
116
espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da
morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples saudade.
Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela
uma gota da baba de Caim (Assis, 2008, vol. 1, p. 630).
O episódio citado é narrado duas vezes na Bíblia: uma no segundo livro dos Reis
(2 Rs 20) e outra no profeta Isaías (Is 38) (são contemporâneos). Ezequias, rei de Judá, a
quem coube a tarefa de resistência a investidas dos assírios, no quartel final do século
VIII a.E.C., tinha adoecido gravemente. Ele pede a Deus que o cure. O profeta Isaías
comunica-lhe que Deus, ouvindo a prece, acrescentaria quinze anos à vida do rei. A
sequência da narrativa bíblica termina com a menção ao fato de que o sol haveria de
recuar dez graus123 no relógio de Acaz.124 No contexto machadiano, o tempo para,
também. O recurso de ver a mulher tal qual fora e não tal qual era funciona como uma
estratégia para vencer a ação do tempo. Os termos usados pelo narrador são dramáticos,
mas sintetizam visão de mundo atestada em outras partes da obra machadiana. A
intertextualidade serve para enquadrar a reflexão que segue, não prevista na passagem
bíblica: “Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte ia
espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da morte”
(Assis, 2008, vol. 1, p. 630). Esse “pôde mais que o tempo” é literário ou, em outros
termos, semiótico, um tempo psicológico. Trata-se de uma trama engendrada como
forma de vencer o tempo (ainda que apenas “temporariamente”) porque o tempo é o
pedagogo, principalmente no sentido etimológico do termo. De novo, a morte em
evidência, agora associada ao nada da existência: pó, eternidade do nada. O presente
atesta a ação do tempo que corroi todas as coisas, o Verme invencível. Ainda que haja,
nesse processo de fazer recuar o sol, de parar o tempo, qualquer ilusão de felicidade,
cuidado: “há nela uma gota da baba de Caim”. É a felicidade presente ilusória,
passageira e contraditória. A marca de Caim é permanente.
123
Em outra ocasião, o sol também para, mas sob Josué, que detém o sol e a lua, para o tempo parar e o
povo assegurar vitórias militares, na campanha de conquista da terra prometida, conforme Js 10.12-13:
“No dia em que o SENHOR deu a vitória aos israelitas na luta contra os amorreus, Josué falou com ele. E,
na presença dos israelitas, disse: ‘Sol, fique parado sobre Gibeão! Lua, pare sobre o vale de Aijalom!’. O
sol ficou parado, e a lua também parou, até que o povo se vingou dos seus inimigos”.
124
“Escavações feitas em Jerusalém parecem indicar que essa escadaria (relógio de sol) havia sido
construída especialmente para marcar as horas. Dez graus seria o equivalente a dez horas” (Bíblia
Sagrada. Nova Tradução na Linguagem de Hoje, 2005, p. 689).
117
Esaú e Jacó tematiza a saga de dois gêmeos que dramatizam a disputa por
hegemonia. A inspiração bíblica motiva o desdobramento da discórdia, da disputa e da
impossível conciliação125. Isso se ajusta bem ao projeto literário de Machado: focar
caracteres universais, o que motiva a volta a mitos.
Pedro e Paulo são irmãos em perene disputa, lutando por afirmação pessoal, pela
anulação do outro. Novamente ocorre a relação especular. Esse fio condutor evoca as
epopeias gregas, quando o Conselheiro menciona a Ilíada e a Odisséia para associar
Aquiles e Ulisses aos gêmeos que tutela. Entram em foco a ira de um e a astúcia de
outro. No capítulo XLV, intitulado “Musa, canta...” (Assis, 1985, vol. I, p. 1002), são
evocados aqueles heróis gregos126. A Paulo coube a Ilíada: “Musa, canta a cólera de
Aquiles, filho de Peleu, cólera funesta aos gregos, que precipitou à estância de Plutão
tantas almas válidas de heróis, entregues os corpos às aves e aos cães [...]”. A Pedro, a
Odisséia: “Musa, canta aquele herói astuto, que errou por tantos tempos, depois de
destruída a santa Ílion [...]”. Segundo o narrador, esse “era um modo adequado de
definir o caráter de ambos”.
125
O livro foca o mito dos gêmeos, especificamente bíblicos; como um tópos literário fértil, recorrente em
outras tradições culturais; o tema se liga à tensão da luta de morte, ao ingresso na cultura, a ambiguidades.
126
Machado estudou grego, na fase final de sua vida (Piza, 2008, p.163). Em Esaú e Jacó há uma
passagem sobre isso, no mesmo capítulo citado: “Era um modo de definir o caráter de ambos, e nenhum
deles levou a mal a aplicação. Ao contrário, a citação poética valia por um diploma particular [...] Que
ele, o conselheiro, depois de os citar em prosa nossa, repetiu-os no próprio texto grego e os dous gêmeos
sentiram-se ainda mais épicos, tão certo é que traduções não valem originais. O que eles fizeram foi dar
um sentido deprimente ao que era aplicável ao irmão [...]” (Assis, 2008, vol. 1, p. 1131).
118
O capítulo IX, “A ópera”, de Dom Casmurro, segundo Maia Neto (2007), pode
ser comparado ao capítulo “O delírio”, de Memórias Póstumas. Ambos têm o mesmo
efeito estrutural para a obra de que fazem parte; ambos apontam para o início. Há outros
capítulos significativos, dos quais mencionaremos os seguintes: VIII “É tempo!”; IX “A
ópera”; e X “Aceito a teoria” (de Dom Casmurro), que remetem a um começo mítico.
No curto capítulo VIII, “É tempo!”, o narrador iria começar a sua ópera, ou seja,
começar, de fato, a narrar o que era importante na sua história: “‘A vida é uma ópera’,
dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu [...] E explicou-me um dia a
definição, em tal maneira que me fez crer nela. Talvez valha a pena dá-la; é só um
capítulo” (Assis, 2008, vol. 1, p. 938). Segue-se o capítulo IX, “A ópera”, que poderia
ser apartado do livro e considerado um conto, um conto-teoria, que expõe a história da
criação da seguinte forma:
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência
prévia e a colaboração amiga teriam evitado com efeito, há lugares em que o verso
vai para a direita e a música, para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo
está além da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden,
a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos
lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de
repetição. Também há obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo
muita vez o sentido por um modo confuso (Assis, 2008, vol. 1, p. 940).
119
Interessante é que essa composição e execução teatral não poderiam deixar
escapar Shakespeare, mencionado no capítulo127. No capítulo X, “Aceito a teoria”, o
narrador (Assis, 2008, vol. 1, p. 941) aplica a si, da seguinte forma: “Eu, leitor amigo,
aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez
toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo
terníssimo, depois um trio, depois um quatro [...]”. Note-se o superlativo (à moda José
Dias) ligado a “duo”. Em todo caso, o mundo é um teatro no qual são executadas peças
criadas por Deus e por Satanás, não ensaiadas previamente. Ou, em outras palavras: um
desconcerto geral.
127
Para os satanistas, apesar de Shakespeare não pertencer àquele tempo, teve o gênio de “transcrever a
letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece ele próprio o autor da composição; mas,
evidentemente, é um plagiário”. Ser um plagiário, para o narrador, é uma virtude literária, pois exige certa
conformidade com a mimese do drama inicial.
120
Machado tenha amalgamado e combinado essas fontes de forma livre, conforme admite
Meyer (2008, p. 154):
Entretanto, a Bíblia não é reconhecida pelo crítico como uma das fontes
utilizadas, na enumeração que faz das fontes machadianas para o capítulo. “O delírio”
aborda temas e figuras bíblicas como Balaão, Abraão, Éden, pão (da dor), vinho (da
miséria), Jó e o cativeiro dos Hebreus. Isso não é desprezível. Além desses eloquentes
vínculos bíblicos, interessa-nos verificar a curiosidade que tomou Brás Cubas em saber
onde ficava a “a origem dos séculos”.
Alguns aspectos céticos da dimensão reflexiva apontados por Maia Neto (2008,
p. 101-105), reconhecíveis no capítulo machadiano, são: 1) a razão é impotente nas
128
Essa figurativização simbólica é frequente em Rabelais, conforme indica Bakhtin (1987, p. 23), por
exemplo.
121
questões metafísicas, é incapaz de compreender o significado último da condição
humana: no delírio, a razão cede seu lugar à sandice; o limite da razão humana é tema
caro na tradição cética129; 2) o objeto cético expressa-se numa personagem feminina.
“Estabelece-se entre Brás Cubas e Pandora uma relação cognitiva cética”; 3) Brás
Cubas tem consciência de sua própria fragilidade e da condição humana; há um
significado epistemológico no delírio: “Os olhos do delírio são os olhos com que Brás
Cubas reinterpreta a sua vida [...] Brás Cubas identifica em si próprio todos estes
flagelos que agitam a humanidade”.
Rubião fitava a enseada, - eram oito horas da manhã. Quem o visse, com os
polegares metidos no cordão do chambre, à janela de uma grande casa de Botafogo,
cuidaria que ele admirava aquele pedaço de água quieta; mas, em verdade, vos digo
que pensava em outra cousa. Cortejava o passado com o presente. Que era, há um
129
Maia Neto (2008, p. 101) assinala a necessidade de suspensão da verdade, processo no qual a sandice
assume estatuto epistemológico.
130
A figura do abismo aparece em outros contextos, por exemplo, no conto “Evolução”, de 1906: “Não se
fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus abyssum invocat, expressão
tirada da Vulgata (Sl 41.8), que pode ser assim traduzida: abismo chama abismo.
122
ano? Professor. Que é agora? Capitalista. Olha para si, para as chinelas (umas
chinelas de Túnis, que lhe deu recente amigo, Cristiano Palha), para a casa, para o
jardim, para a enseada, para os morros e para o céu; e tudo, desde as chinelas até o
céu, tudo entra na mesma sensação de propriedade (Assis, 2008, vol. 1, p.
761).
131
A delimitação em uma obra de arte é importante porque constitui um argumento de reflexão sobre ela
mesma, sobre sua estruturação formal ou temática. Daí a importância de se analisarem esses elementos. O
começo e o fim, como limites do romance, constituem lugares privilegiados, por serem estratégicos.
123
O começo de um romance pode ser considerado uma tomada de posição, um
momento decisivo, a explicitude primeira de um ato criador; ele serve para “orientar e
legitimar o texto, [...] construir um universo ficcional, fornecer informações sobre o
enredo; ou seja, dirigir a leitura” (Del Lungo, 2003, p. 14).
124
As crônicas retratam o olhar de um observador arguto, que tira das coisas
simples e fortuitas do cotidiano inspiração para seus comentários e avaliação, sob o
crivo da tradição literária e da História. Com frequência considerável, esses
acontecimentos remetem a um começo mítico que tem nas narrativas bíblicas a moldura
principal. Fatos do aqui-agora são ressignificados nessa moldura do lá-então. Ocorre
uma diminuição da distância espacial e temporal; com isso, superpõem-se o presente e o
passado, o que tem o efeito de perenizar o modo de presença do ser humano no mundo.
Para Eliade, a relação com a história é mediada pelo mito do eterno retorno,
típico do ser humano, principalmente do primitivo, que só conhecia “os atos
anteriormente vividos por um outro que não era um homem [...] O gesto só adquire
significado, realidade, na medida em que retoma uma ação primordial” (Eliade, 1981, p.
132
Detalhes desse projeto, também inspirado em Shakespeare, estão no ensaio (na verdade, um programa
literário) “Instintos de nacionalidade. Notícia da atual literatura brasileira” (Assis, 1985, vol. 3, p. 801-9).
O ensaio de Junqueira (2008, p. 153-182) apresenta um estudo sobre esse projeto literário de Machado.
133
O geral é confirmado pelo particular; o local participa do universal e vice-versa. Esses horizontes estão
presentes na técnica do cronista Machado de Assis, em que um acontecimento banal passa pelo escrutínio
do universal, representado pela tradição literária ou pela História. É o caso do “punhal de Martinha”:
“Bem sei que Roma não é a Cachoeira [...] Martinha não é certamente Lucrécia [...]” diz o narrador,
indignado com os contrastes entre realidade e ficção, alegando que a ficção sobrepuja a realidade: “A
mentira usurpa assim a coroa da verdade, e o punhal de Martinha, que existiu e existe, não logrará ocupar
um lugarzinho ao pé do de Lucrécia, pura ficção” (Assis, 1985, vol. 3, p. 615). O punhal de Martinha se
imortalizou pela pena do narrador. A ficção permanece.
125
19). O autor explica o fenômeno a partir de três elementos: 1) a realidade é imitação de
um arquétipo celeste; 2) a realidade é participação no simbolismo do centro; 3) rituais e
gestos profanos são significativos porque repetem atos praticados ab origine pelos
deuses, heróis ou antepassados134. Daí a correspondência entre o mudo terreno e o
celestial, em que símbolos da realidade imediata encontram-se no Centro - a criação,
por exemplo. Esse aspecto é significativo em Machado, porque o “Centro”, no caso, não
evoca inspiração ufanista. Assim, o passado é prefiguração do futuro, pois nada existe
de novo135:
De certo modo, podemos até afirmar que no mundo não se produz nada de novo,
pois tudo consiste na repetição dos mesmos arquétipos primordiais; essa repetição,
ao atualizar o momento mítico em que o gesto arquetípico foi revelado, mantém
continuamente o mundo no mesmo instante autoral do princípio. O tempo apenas
possibilita o aparecimento e a existência das coisas; não tem qualquer influência
decisiva sobre essa existência – dado que ele próprio se regenera constantemente
(Eliade, 1981, p. 104).
O mito da idade do ouro instaura uma nostalgia cujo produto é a utopia. Nela se
modela um futuro que é a exata recriação do passado de ouro: o futuro pode ser bom,
porque houve um passado excelente. Para o autor carioca, não há utopias, porque não há
idade de ouro em que se inspirar: se o passado foi péssimo, o que esperar do futuro?
134
Arquétipos profanos existem, como a justiça humana, que reproduz a divina, assim também a guerra:
“o guerreiro, seja ele qual for, imita um 'heroi' e procura aproximar-se o mais possível desse modelo
arquetípico” (Eliade, 1981, p. 51).
135
Sabe-se que Machado usou à exaustão a expressão “Nada de novo sob o sol”, recorrente no
Eclesiastes.
126
Machado utiliza o mito da queda, com razoável frequência. Entretanto, há
ausência significativa do mito da ressurreição-redenção, de que a Bíblia fala com não
pouca ênfase. Por quê? A causa deveria ser atribuída ao seu característico pessimismo?
Algumas citações remetem a um pessimismo ostensivo, normalmente projetado para o
início dos tempos, para o começo de tudo. A degeneração existe ab ovo.
à recente geração, que qualquer que seja o caminho da nova poesia, convém não
perder de vista o que há essencial e eterno nessa expressão da alma humana [...] há
alguma coisa que liga, através dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma coisa
inalterável, universal e comum, que fala a todos os homens e a todos os tempos
(Assis, 2008, vol. 3, p. 1257-1258).
José Aderaldo Castelo (2008, p. 36) avalia essa proposta da seguinte forma: “[...]
é indispensável que o escritor traduza algo da substância universal da natureza humana,
em qualquer situação enfrentada [...] saiba ser de seu povo e de sua época sem que este
compromisso sobrepuje ou restrinja aquela universalidade da criação artística”. Nesse
sentido, já no ensaio crítico “A nova geração”, Machado reforçava a dissonância de
escola em relação ao Realismo, ao alfinetar: “O realismo não conhece relações
necessárias, nem acessórias, sua estética é o inventário [...] a realidade é boa, o realismo
é que não presta para nada” (Assis, 2008, vol. 3, p. 1179). Ao Realismo falta a
“expressão da alma humana”.
Essa divergência estética diz respeito ao que propõe Fiorin (2003). Nem o
romantismo nem o realismo propõem modelos estéticos que possam retratar de forma
ficcional a complexidade de fatos e sensações. Já o contrato semiótico, vinculado à crise
de representação, constitui-se em referência teórica mais compatível com a
representação da crise. Assim, voltar às origens míticas, em Machado, não é encontrar o
firme fundamento religioso ou histórico de nossa civilização, ao contrário, é mergulhar
na areia movediça da dúvida, no pântano das incertezas, na eterna contradição da
natureza humana.
127
Finalmente, pode-se observar que Machado dá à Bíblia e a seus mitos o mesmo
valor atribuído a outras fontes literárias por ele utilizadas. No entanto, deve ser
considerado que, dada a influência formadora dos escritos canônicos na civilização
ocidental e na religião, isso toma ares de movimento intencional: trata-se de consciente
iconoclastia.
128
CAPÍTULO 4: “NADA COMO UMA SENTENÇA PARA MUDAR A
CARA AOS CONCEITOS”
Contribuições da sátira
Para a teoria convencional, vigente até os anos 1960, a sátira sustentava-se num
mundo de padrões e limites claros, para o qual havia, ainda, certeza moral. Nesse
sentido, a sátira “se ocupa em insistir na nítida diferença entre vício e virtude, entre bem
e mal, entre o que o homem é e o que ele deve ser” (Griffin, 1994, p. 36). Contudo, esse
ponto de vista se desfez, porque, entre outras coisas, o modelo louvor-injúria foi
reconhecido como sendo a essência da sátira.
129
O autor satírico acredita que sua retórica persuadirá seus leitores para amar a
virtude e evitar o vício? Inúmeros autores contemporâneos são céticos quanto a isso.
Em diálogo com essa questão, Griffin indica três elementos componentes da sátira:
exploração (anatomia), provocação e ironia instável. Eles serão abaixo indicados, em
combinação com outros autores. Procurar-se-á exemplificar os princípios teóricos com
escritos de Machado em que estejam presentes, direta ou indiretamente, vínculos
intertextuais com a Bíblia.
136
É muito provável que o grande modelo tenham sido os diálogos socráticos, imortalizados por Platão,
nos quais Sócrates era, de fato, um anatomista das ideias de seus interlocutores.
137
Na Velha retórica prevalece a comunicação do que se sabe (transferência de conhecimento). Já na
Nova retórica importa mais a exploração (descoberta da verdade). Isso tem eco em Bakhtin, no que diz
respeito à diferença entre monologia (posse da verdade acabada) e polifonia/dialogia (busca da verdade).
130
históricas relacionadas à medicina e a viagens de exploração geográfica. Isso indica que
há um fundo histórico que emoldura a narrativa, pois Herófilo foi médico famoso, o
primeiro a dissecar corpos humanos para fins científicos. Assim a anatomia pode ser
entendida como metáfora para “análise minuciosa da alma humana, em busca não da
descrição de ‘situações’, mas sim do estudo de ‘caracteres’” (Sá Rego, 1989, p. 109)138.
138
Contraste de caracteres é o que Machado propõe fazer quando publica seu primeiro romance,
Ressurreição, conforme ele indica na “Advertência” à obra: “Não quis fazer romance de costumes: tentei
o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres” (Assis, 2008, vol. 1, p. 236).
131
Um exemplo significativo, mais diretamente ligado a fontes bíblicas, é o conto
“A Igreja do Diabo”, para cuja construção a intertextualidade bíblica é generosa e
essencial139. A moldura bíblica é explorada pela técnica da anatomia satírica.
Comecemos por apontar o título do capítulo III: “A boa nova aos homens”.
“Boa- nova” é expressão que normalmente explica o sentido do termo evangelho. O
capítulo III ocupa-se da pregação do Diabo, da exposição do seu “evangelho”.
Evangelho contra Evangelho. É justamente disso que deriva a segunda ocorrência, na
pregação e na técnica de manipulação usada pelo Diabo, descrita nos seguintes termos:
Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias da terra, todas as glórias, os
deleites mais íntimos...
— Sim, sou o Diabo, repetia ele. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro
pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um
troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... (Assis,
1985, vol. 2, p. 349).
O Diabo apresentado pelo conto é a negação da tradição, que lhe atribui aspecto
amedrontador. Ao contrário, ele se assume como o verdadeiro Pai da humanidade, não o
pai castrador, mas o provedor de delícias: “Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso
verdadeiro pai”140.
139
Há outros desdobramentos intertextuais, não menos relevantes - na moldura da peça, porque se
combinam com os elementos bíblicos, como Goethe, Homero, Rabelais, Antonio Diniz, autor do poema
“Hissope”, e Luculo. A maioria desses autores e obras está ligada aos pecados capitais - virtudes da igreja
do Diabo. A exceção é Goethe, que tem conexões com a moldura do conto (duelo entre Deus e o Diabo),
cuja inspiração reside em Jó. Como em “Adão e Eva”, autores e obras literárias são vinculados à história,
com o pecado, sofrimento e a contingência própria dos seres humanos.
140
A anatomia, no caso, pode ser resultado não só de rigor metodológico, mas também de uma
constatação, o que projeta o resultado sugerido para o campo das relações entre ser e parecer. Hipótese
132
Ainda, o apólogo, narrado no final da terceira parte do conto, tem motivação
bíblica:
— Cem pessoas tomam ações de um banco, para as operações comuns; mas cada
acionista não cuida realmente senão nos seus dividendos: é o que acontece aos
adúlteros. Este apólogo foi incluído no livro da sabedoria (Assis, 2008, vol. 2, p.
351).
No apólogo, o amor é virtude que precisa ser combatida, segundo o Diabo, ou,
pelo menos, transformada: o amor ideal não é o do evangelho bíblico, mas o do diabo;
de altruísta, passa a egoísta:
Com efeito, o amor do próximo era um obstáculo grave à nova instituição. Ele
mostrou que essa regra era uma simples invenção de parasitas e negociantes
insolváveis; não se devia dar ao próximo senão indiferença; em alguns casos, ódio
ou desprezo. Chegou mesmo à demonstração de que a noção de próximo era errada,
e citava esta frase de um padre de Nápoles, aquele fino e letrado Galiani, que
escrevia a uma das marquesas do antigo regime: “Leve a breca o próximo! Não há
próximo!” (Assis, 2008, vol. 2, p. 350-351).
Por fim, apontamos a alusão a Jó, que serve de moldura ao conto. Em comum, o
diálogo-disputa entre Deus e o Diabo e as consequências vividas pelos seres humanos.
O Diabo é também um espírito de negação, para quem a piedade de Jó é motivada
apenas pelo interesse. Jó é temente a Deus porque recebe copiosa recompensa. O Diabo
por hipótese, aplicando a esse raciocínio a técnica apresentada, bem pode ser o contrário. Assim, topamos
com a possibilidade efetiva de que as coisas podem ser diferentes.
133
propõe que Deus o exponha a situações adversas, para testá-lo, no que Deus consente141.
Então Jó sofre privações, misérias, dores extremas. Deduz-se, das ocorrências acima,
que as remissões a trechos da Bíblia são feitas de forma independente, com a finalidade
de negá-las. O Diabo apresenta interpretação própria, para realçar a sua versão.
Ao falar da ira, o conto evoca Aquiles, motivo da Ilíada. A ira, de pecado capital
passa a virtude; daí o realce intertextual. Em Esaú e Jacó, o conselheiro Aires compara
os gêmeos Pedro e Paulo aos heróis Aquiles e Ulisses. Um tem a astúcia; outro, a força.
São opostas no romance indicado, mas, se se combinam em uma pessoa, melhor, como
se pode perceber no seguinte trecho, sobre a definição de fraude: “Chamava-lhe o braço
esquerdo do homem; o braço direito era a força; e concluía: Muitos homens são
canhotos, eis tudo” (Assis, 1985, vol. 2, p. 350). Ora, como a fraude é filha da astúcia,
os dois trechos se complementam.
141
Na prática, ocorre uma anatomia, no livro de Jó, operada pelo Diabo. Em termos semióticos, o Diabo é
o destinador de Deus, que aceita o contrato proposto. Por outro lado, essa aceitação pode ser entendida
como uma contramanipulação, sustentada na confiança do destinador na competência do sujeito e na
segura adesão ao contrato original - o proposto por Deus. Esse jogo de manipulação e contramanipulação
entre Deus e o Diabo provoca trágicas consequências nos seres humanos, que pagam alto preço por tudo.
Esse é o pano de fundo trágico que é percebido e explorado por Machado.
134
quatrocentos contos; tinha a probidade tão exemplar, que chegava a ser miúda e
cansativa. Um dia, como nos achássemos, a sós, em casa dele, em boa palestra,
vieram dizer que o procurava o Dr. B., um sujeito enfadonho. Jacó mandou dizer
que não estava em casa.
-- Não pega, bradou uma voz do corredor; cá estou de dentro (Assis, 2008, vol.
1, p. 711).
Jacó desculpou-se afirmando que pensava ser outra pessoa, que tinha prazer com
a visita. Quando o Dr. B. sai, Brás Cubas observa que Jacó, o homem mais probo que
ele conhecia, mentira quatro vezes. Jacó conclui que, sem embaçadelas recíprocas, a
vida seria insuportável142:
Jacó refletiu um instante, depois confessou a justeza da minha observação, mas
desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompatível com um estado
social adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas
recíprocas... 143 (Assis, 2008, vol. 1, p. 711).
142
Jacó é conhecido nome bíblico, ligado a engano; é irmão gêmeo de Esaú, a quem engana para obter a
bênção do pai e o direito de primogenitura, no que foi ajudado pela mãe.
143
O “Sermão do Diabo” tem um de seus versículos que proclama a bem-aventurança dos que enganam:
“Bem-aventurados os que embaçam, porque eles não serão embaçados” (Assis, 2008, vol. 2, p. 620). Essa
paródia foi inserida na crônica de 4 de setembro de 1892 e incluída na coletânea Páginas recolhidas, de
1899.
135
o Diabo não se demorou em expor as vantagens de ordem temporal ou pecuniária;
depois, mostrou ainda que, à vista do preconceito social, conviria dissimular o
exercício de um direito tão legítimo, o que era exercer ao mesmo tempo a
venalidade e a hipocrisia, isto é, merecer duplicadamente (Assis, 2008, vol. 2, p.
350).
144
No capítulo XIII das Memórias, o narrador fala de Quincas Borba e de sua propensão a obter
supremacia, desde pequeno: “Uma flor, o Quincas Borba. Nunca em minha infância, nunca em toda a
minha vida, achei um menino mais gracioso, inventivo e travesso. Era a flor, e não já da escola, senão de
toda a cidade [...] Era um gosto ver o Quincas Borba fazer de imperador nas festas do Espírito Santo. De
resto, nos nossos jogos pueris, ele escolhia sempre um papel de rei, ministro, general, uma supremacia,
qualquer que fosse [...]” (Assis, 2008, vol. 2, p. 644).
136
de vingança”. Como Quincas Borba, o Diabo queria também a sua supremacia, a de
uma igreja única.
Em Memórias Póstumas, pelo menos cinco capítulos (de XXII a XXXVI) giram
em torno de pernas e de botas. O pano de fundo é um virtual relacionamento amoroso
entre Brás e Eugênia, a Vênus manca. As pernas são imortalizadas em novo capítulo, o
145
Na tragédia (grega) ocorre o mesmo fenômeno: a destinação dupla causa a tragédia, pois adesão a um
destinador implica punição pelo outro.
137
LXVI. A distribuição de um tema por diversos capítulos, quando operada pela técnica
da anatomia e da intenção satíricas, tem o efeito de prolongar, na mente do leitor, pela
insistência, as reflexões do narrador. O efeito disso é captar a atenção para o processo
de anatomização, pela continuidade da exposição do leitor às considerações em foco.
Em Dom Casmurro ocorre o mesmo; três capítulos sequenciais exploram a teoria da
ópera, com a evocação da disputa primordial entre Deus e o Diabo146.
146
A teoria da ópera é uma alegoria inspirada em Luciano, segundo a qual o mundo é concebido como
resultado de dois princípios, ordem e desordem. O tema da queda do paraíso não é luciânico; é judeu-
cristão. Contudo, em Icaromenipo, Menipo menciona coro e cantores que querem impor sua melodia, de
que resulta uma “cacofonia”. A diferença em relação a Machado é que este menciona a criação, Deus,
Diabo; há uma volta à mitologia cristã – a desordem, porém, permanece a mesma.
147
Luciano de Samósata (115[120?]-181?) escreveu quase uma centena de obras. Inspirou muitos
escritores, entre os quais Rabelais, Swift e Machado. Defendia o riso filosófico de natureza satírica.
Escreveu o Diálogo dos Mortos, em que reis e nobres, depois de mortos, viram mendigos. Na obra
Acusado duas vezes, ele, Luciano é o autor e o réu, acusado pela Retórica e pelo Diálogo. Este, acusando,
diz que Luciano “lhe arrancou a máscara trágica e respeitável, aplicando-lhe uma outra, grotesca, cômica,
satírica, quase ridícula, trazendo-lhe as anedotas, o cinismo [...] que ridicularizavam tudo o que é sério e
honesto [...] Luciano se defende dizendo que [...] o reformou, limpou-o da poeira acumulada e o forçou a
sorrir, a ser agradável de ser visto; a seguir juntou-lhe a comédia, o que o fez ser apreciado pelo grande
público” (Luciano, 1996, p. 17-18). Um personagem frequente nos Diálogos dos Mortos é Menipo,
discípulo de Diógenes, que viveu no século IV a.E.C. em Gadara (Síria). Ele criou a “sátira menipeia” e
fez da religião e da filosofia epicurista os principais alvos de suas sátiras.
138
ou pelo ridículo, mas como questionamento de atitudes e opiniões, como instauração da
dúvida e da descrença.
148
A aporia dos diálogos socráticos deve ser considerada. O filósofo insere-se na tradição cínica. Além
disso, se não inaugura, com suas aporias, a exploração do paradoxo, consolida um procedimento que veio
a ser essencial aos satiristas. Para Griffin (1994, p. 54), “o paradoxo é provocativo porque parece absurdo
ou porque desafia a opinião recebida”. É exatamente isso o que ocorre na aporia socrática.
149
Para parte da crítica, Machado seria um escritor que, de forma servil, apenas copiou modelos e
tradições literárias estrangeiras. É o caso de Sílvio Romero (1992, p. 14), para quem “Machado de Assis
se fez o mais perfeito exemplo de ‘arianização’ e de civilização da nossa gente. Na língua. No estilo. E na
sua concepção estético-filosófica escolhendo o tipo literário inglês, que às vezes rastreou por demais,
principalmente [...] Sterne. Nisto, aliás, escapou a Machado de Assis que, de alguma forma, ele estava
‘mulatizando’”.
150
Maia Neto (2007) estuda o ceticismo como visão de mundo filosófica de Machado.
139
Em crônicas de maio de 1888, os narradores projetam luz para o paradoxo
existente entre as ações particulares e as opiniões públicas dos senhores de escravos e as
ações políticas em que estavam empenhados, além das vantagens, políticas e
pecuniárias, que tinham intenção de auferir com a (falta de) liberdade dos escravos.
Claro que há provocação embutida nelas, pelas evidentes contradições que elas
portavam. Note-se que o paradoxo é mais do que um recurso que serve à provocação; é,
de fato, uma consequência natural da exploração anatômica.
151
Isso é comum em memórias, nas quais há considerável hiato temporal entre os fatos narrados e o
momento da narração.
140
E o riso é a manifestação de algo mais intenso, de natureza filosófica. É preciso
“raspar a casca do riso” para penetrar nos seus mistérios, como propõe o cronista
machadiano, em 26 de janeiro de 1885:
Há pessoas que não sabem, ou não se lembram de raspar a casca do riso para ver o
que há dentro. Daí a acusação que me fazia ultimamente um amigo, a propósito de
alguns destes artigos, em que a frase sai assim um pouco mais alegre. Você ri de
tudo, dizia-me ele. E eu respondi que sim, que ria de tudo [...] (Assis, 2008, vol.
4, p. 580).
Bakhtin (1987) reconhece que na cultura da Idade Média o riso carnavalesco era
um patrimônio universal e ambivalente, pois nega e afirma, amortalha e ressuscita
simultaneamente152. Tudo que era terrível e espantoso no mundo habitual transforma-se,
no mundo carnavalesco, em alegres espantalhos cômicos e serve para atenuar o impacto
do medo, que é expressão de uma seriedade unilateral (Bakhtin, 1987, p. 41).
Acrescenta o teórico russo que o riso tem uma força criadora, conforme atestam mitos
antigos:
A idéia da força criadora do riso pertencia também aos primeiros tempos da
Antiguidade. Num papiro alquímico [...] que data do III século da nossa era, lê-se
uma narrativa onde a criação e o próprio nascimento do mundo são atribuídos ao
riso divino: ‘Quando Deus riu, nasceram o sete deuses que governam o mundo [...]
Quando ele começou a rir, apareceu a luz [...] Ele começou a rir pela segunda vez,
tudo era água [...] Na sétima vez (que ele riu, apareceu) a alma” (Bakhtin, 1987,
p. 61).
152
Discini (2006), em interessante ensaio sobre carnavalização, aponta as principais características da
cultura do grotesco medieval (dentre elas o riso regenerador), associando a isso a noção de polifonia
bakhtiniana.
141
A cultura do riso desenvolveu-se fora da esfera oficial da ideologia e da
literatura elevada, embora nela se faça presente, ainda que de forma mitigada. Conforme
Bakhtin (1987, p. 62), “o riso [...] universal e alegre [...] penetrou decisivamente no seio
da grande literatura e da ideologia ‘superior’, contribuindo assim para a criação de obras
de arte mundiais, como o Decameron de Boccaccio, o livro de Rabelais, o romance de
Cervantes, os dramas e comédias de Shakespeare [...]” (Bakhtin, 1987, p. 62)
142
4º Bem-aventurados os afoitos, porque eles possuirão a terra.
5º Bem-aventurados os limpos das algibeiras, porque eles andarão mais leves.
6º Bem-aventurados os que nascem finos, porque eles morrerão grossos.
7º Bem-aventurados sois, quando vos injuriarem e disserem todo o mal, por meu
respeito.
8º Folgai e exultai, porque o vosso galardão é copioso na terra.
9º Vós sois o sal do money market. E se o sal perder a força, com que outra coisa se
há de salgar? [...] (Assis, 2008, vol. 2, p. 620).
Citações truncadas
Outro tipo de influência menipeia refere-se a recriações livres das fontes
incorporadas, que resultam quase sempre em modificações, seja na forma, seja no
conteúdo. Com isso, são frequentes as citações truncadas em Machado. Sá Rego (1989,
153
Bakhtin (1987, p. 82) alerta que os autores das paródias dos textos sagrados e do culto religioso
aceitavam com sinceridade esse culto e o serviam com fidelidade. Acrescenta que não havia nenhum
texto ou sentença da Bíblia de que não se tirava uma alusão ou uma ambiguidade suscetível de ser
traduzida na linguagem do baixo material e corporal (Bakhtin, 1987, p. 74).
143
p. 74) filia essa característica à tradição luciânica, acrescentando que o uso consciente
de uma citação truncada pode agregar um valor de autoridade. O autor reconhece que
Machado se remete à tradição literária, “através de citações truncadas, criando obras em
que o jogo intertextual é característico da linhagem parodística do lucianismo” (Sá
Rego, 1989, p. 11).
154
Na crônica de 10 de julho de 1892, que começa mencionando são Pedro e São Paulo, o cronista diz
querer trazer à tona a arraia miúda, a facada anônima: “Eu sou justo [...] Tenho horror a toda
superioridade. Eu é que vou enfeitar os fatos [...]. Quando a gente lê por olhos estranhos, entende mal as
coisas” (Assis, 2008, p. 903)
155
É intencional. A intencionalidade decorre de um princípio estético mais do que de uma necessidade
eventual de um cronista preencher um espaço de folhetim, que precisa sair às ruas sob a pressão da
urgência, embora a isso possam ser creditadas muitas ocorrências.
156
Magalhães Jr. estuda também as repetições em Machado, que intrigaram seus críticos. Peregrino Jr.
(1938, p. 116) vê nelas a manifestação de patologias e traços psicológicos - personalidade mórbida - e de
outros distúrbios orgânicos: “O sestro da repetição – de temas, de imagens, de palavras – não o abandona
em nenhum livro. É a iteratividade verbal e ideativa do gliscroide”. Para esse autor, as repetições são
traços de bipolaridade afeto-instintiva sadomasoquista e característica de personalidades pessimista e
narcísica (Peregrino Jr., 1938, p. 43). Fruto de uma fase crítica que avaliou a obra machadiana por
critérios médicos e psicológicos, essa conclusão é comprometedora sob o ponto de vista literário, para a
qual as repetições são intencionais e projetam ênfase ao que é repetido. A repetição é recurso de
144
Marta de Senna (2008) estuda aspectos intertextuais da obra de Machado. Ela
também considera que há cochilos nas citações e alusões do autor157. Um deles, em A
mão e a luva, liga-se à Bíblia e à personagem Mrs. Oswald, inglesa, protestante, que
“tinha a Escritura na ponta dos dedos”. No capítulo sétimo, em conversa com Guiomar,
menciona o personagem bíblico José:
– Já sei, gosta de uma adoração como a do Dr. Estêvão, silenciosa e resignada, uma
adoração... E Mrs. Oswald, que, como boa protestante que era, tinha a Escritura na
ponta dos dedos, continuou por este modo, acentuando as palavras:
– Uma adoração como a que devia inspirar José, filho de Jacó, que era belo como a
senhora: “por ele as moças andavam por cima da cerca...”
– Da cerca? perguntou Guiomar, tornando-se séria.
– Do muro, diz a Escritura, mas eu digo da cerca, porque... nem eu sei por quê. Não
core! Olhe que se denuncia (Assis, 2008, vol. 1, p. 340)
A referência encontra-se em Gn 49.22. Mrs. Oswald muda o texto, para
adaptação às circunstâncias da narrativa e para produzir efeitos próprios: “mas eu
digo...”. Marta de Senna reproduz a tradução da versão portuguesa da Vulgata acessível
a Machado de Assis: “José, filho que cresce, filho que se augmenta, fermoso de aspecto:
as moças andárão por cima do muro”, pouco diferente da King James Version, que Mrs.
Oswald deveria conhecer. À parte a diferença de traduções, fica reforçada a liberdade
com que os narradores machadianos citavam trechos bíblicos. Para Senna, trata-se de
um cochilo de Machado.
expressividade. Assim entendeu Mário Matos (apud Peregrino Jr., 1938, p. 185), para quem “a iteração
encontra-se em quase todos os escritores: eles repetem-se na imagem, na comparação, no pensamento, em
formas de construção da frase [...] Machado de Assis, como acontece quase sempre com todo artista, era
iterativo. Assim, na leitura de sua obra, deparamos contos que são desenvolvimentos de trechos de
crônicas ou de romances, como também a repetição de ideias e de frases, já ditas e reditas em alguma
parte por ele próprio”.
157
SENNA, Marta de. A Bíblia de Mrs. Oswald ou os cochilos do bruxo. In: Em linha, número 1, junho/
2008 (revista eletrônica). Disponível em: www.machadodeassis.net.
145
É copiosa em Machado a utilização de frases, citações livres e combinação de
diferentes trechos bíblicos, em novo contexto158. Na impossibilidade de exaustão,
apenas alguns poucos exemplos são aqui registrados - poucos, mas significativos da
argúcia no trato linguístico e da sensibilidade artística que projeta para o conjunto final
novos significados.
158
Esse truncamento pode ser formal ou temático. É formal quando incide sobre a consistência material
de uma sequência linguística; é temática quando entram em foco os temas e os sentidos a ele atrelados.
159
Outro trecho bíblico é evocado, agora Mateus, 6.26. A Bíblia que Machado tinha em sua biblioteca
diz: “Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem fazem provimentos nos celeiros; e,
contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura não sois vós muito mais do que elas?”.
160
Trechos diferentes são amalgamados. A primeira parte corresponde ao Evangelho de João, 2.4: “Mas
Jesus lhe disse: Mulher, que tenho eu contigo? Ainda não é chegada a minha hora”. A segunda, ao
Evangelho de Mateus, 6.30: “Perguntou-lhes, então, Jesus: Por que sois tímidos, homens de pequena fé?
Pequenas diferenças terminológicas devem ser creditadas a diferentes traduções.
146
voz “subiu da terra” para “pregar o homem”. Esse contraste indica a forma com que
deve ser lida a incorporação textual. De fato, ainda que o trecho bíblico deva ser lido às
avessas, é dele que se serve o leitor para construir sua interpretação do contexto do
conto.
“Último capítulo” (Assis, 2008, vol.2, p. 358-363) tem passagem que pode ser
lida de forma invertida, em relação à fonte bíblica evocada: “[...], e esperei, esperei,
pronto a bailar diante dele, como Davi diante da arca... Ai, caipora! a arca entrou vazia
em Jerusalém; o pequeno nasceu morto”. O rei Davi, quando conquistou Jerusalém,
para lá levou a Arca da Aliança, então recentemente resgatada dos inimigos. Ela
simbolizava a presença de Deus (2 Sm 6.14). Naquela ocasião, o rei dança alegremente.
O desfecho, no texto machadiano, é exatamente o oposto, embora a evocação do
personagem Davi sugira uma situação de conquista, de alegria, de celebração. Isso
exagera a frustração.
147
Um meteoro aparecido na cidade de Bendegó ocupa a maior parte da crônica de
27 de maio de 1888 e, como não poderia deixar de ser, menção à escravidão
recentemente abolida ocupa o cronista. Ele diz que o rumor da república, ou coisa que o
valha, está no ar...
- Noire? Aussi blanche qu’une outre,
- Tien ! Vous faites de calembours ?161
O final da frase anterior fala sobre a adoção da República, que anda “no ar”; o
meteorito, que conversa com o cronista, entende a sequência como negra/ noire, e faz,
com isso, uma alusão aos termos de uma revolta de libertos inspirada na Republique
Noire, do Haiti.
161
- Negra? Tão branca quanto outra qualquer,
- Ora essa! Você faz trocadilhos?
O original menciona o termo calembour, específico recurso retórico.
162
Alterações no suporte formal de enunciados linguísticos foram estudadas por Freud sob o ponto de
vista psicanalítico em Os chistes e sua relação com o inconsciente. Quanto mais leve for a modificação
formal, melhor será o chiste. O deleite dos chistes pode estar, entre outras coisas, no jogo de palavras, o
que libera prazer psíquico. Também as rimas, aliterações, refrões e as outras repetições de sons
semelhantes que ocorrem em versos poéticos utilizam a mesma fonte de prazer. Citamos, em adição, o
seguinte exemplo, da crônica de 17 de julho de 1864: “Tenho sempre medo quando escrevo a palavra
parlamento ou a palavra parlamentar. Um descuido tipográfico pode levar-me a um trocadilho
involuntário. Sistema parlamentar, composto às pressas, pode ficar um sistema para lamentar [...]” (Assis,
2008, vol. 4, p. 142). Outro interessante exemplo é a explicação do calor do verão tropical: “Tu e eu,
leitor agarrado à capital, tu e eu sabemos o que foi o demônio do Ferveiro, mês inventado pelo diabo [...]”
(Assis, 2008, vol. 4. p. 402). A edição eletrônica do portal do MEC, contudo, não registra esse jogo de
palavras, embora haja grifo no termo: “Tu e eu, leitor agarrado à capital, tu e eu sabemos o que foi o
demônio do Fevereiro, mês inventado pelo diabo [...]”. Disponível em http://machado.mec.govol.br/
arquivos/html/cronica/macr08.htm. Acesso em 15 de outubro de 2010.
148
muralhas de Jericó (Js 6). Na guerra de conquista contra os nativos, Josué, por ordem
divina, orientou o povo a dar voltas em torno da cidade, tocando trombetas; na sétima
volta, as muralhas caíram. O episódio é utilizado pelo pai de Janjão: “E tu triunfarás,
crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas”. A história
bíblica é usada como apoio aos argumentos para que Janjão fosse persuadido da
validade deles.
163
A narrativa das pragas do Egito está registrada em Êxodo (Ex 7-12).
164
Genealogias são descritas em várias partes; algumas estão em Gn 5; 11.10-26; Rt 4: 18-22; Mt 1; Lc 3.
Em Memórias póstumas, no capítulo terceiro, intitulado “Genealogia”, sob perspectiva diversa, é recriada,
com outros recursos, a genealogia de Brás, para criar origem nobre à família.
149
O romance Memórias póstumas de Brás Cubas contém rico repertório de trechos
truncados, em virtude não só das características inovadoras do livro, mas também da
liberdade de composição, que incorporou elementos expressivos da tradição da sátira
menipeia.
165
O tipo de construção é frequente nas narrativas bíblicas, tanto da conjunção ‘ora’ quanto do verbo
‘aconteceu’ (talvez por influência da Bíblia Hebraica), como se pode ver em Lc 9.28 “E aconteceu que,
passados quase oito dias depois que disse estas palavras [...]”.
150
Senhor: Levanta-te e entra na cidade, e lá te será dito o que te convém fazer” (At 9.6)166.
No caso de Paulo, o trecho marca uma conversão, uma mudança. Aplicada a Brás
Cubas, pode significar a mesma coisa: voltar à cidade é romper com a situação -
Eugênia - e tornar-se um novo homem, com uma carreira de deputado e uma noiva.
Brás Cubas é o apóstolo de uma nova vida, que exclui a piedade (que ele alegava ter) e
a candura (que ele reconhecia) de uma mulher coxa. Aqui, a Bíblia autentica um
procedimento. Contudo, entrar na cidade não é mudança para Brás Cubas, ao contrário,
é assunção do que ele sempre tinha sido; daí o temor de amar uma mulher coxa, de
origem não nobre. Os defeitos físico e social, se aceitos por Brás Cubas, seriam a
conversão verdadeira.
A expressão “em verdade vos digo” serve para projetar ênfase a algo que se diz,
por ser muito importante e digno de fé. E, de fato, o mesmo ocorre no texto de
Machado, pois há alguns capítulos que se desenvolvem em torno do campo semântico
do pé: botas, calos etc., em ampliação ao fato de Eugênia ser coxa. Tais capítulos
podem ser uma espécie de alívio, uma expressão de felicidade por não ter ele se casado
com ela.
166
Há uma divergência textual entre as edições usadas por Machado e a de Almeida, usada neste trabalho.
Ao versículo sétimo citado por Machado corresponde o sexto, conforme indicado. Isso se deve a fontes
manuscritas diferentes. Há inserção de material na tradução mais antiga, utilizada por Machado - final do
versículo quinto e o versículo sexto - que não está presente em manuscritos mais antigos e apreciados pela
crítica textual, que muito evoluiu nos últimos séculos e descobriu manuscritos então desconhecidos
quando a tradução utilizada por Machado estava em circulação.
151
por virtude de uma necessidade natural, ou preferi-lo, para obedecer a uma exaltação
religiosa, isto é, modificável, ao passo que a fome é eterna, como a vida e como a
morte (Assis, 2008, vol. 1, p. 747).
152
de Dom Casmurro é um menino leproso e possui apenas um nome. É interessante frisar
que manducare (latim) significa comer; no livro machadiano é dito que “a doença ia-lhe
comendo parte das carnes” (Assis, 2008, vol. 1, p. 1022). Manuel é, também, forma
abreviada de “Emmanuel”, palavra hebraica que significa “Deus conosco”. Em Mt 1.23
é um epíteto aplicado a Cristo.
Caldwell (2008, p. 90) lembra que o rei “Venturoso” foi chamado “Manuel”
porque nasceu no dia de Corpus Christi, data religiosa comemorativa do sacramento
cristão: “Até mesmo o apelido diminutivo “Manduca” aponta para esta interpretação de
‘Manuel’”. Vejamos a transcrição do trecho de Jo 6.55, 57, da Vulgata167:
Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem habet vitam aeternam [...]
Qui manducat meam carnem et bibit meum sanguinem in me manet et ego in illo.
167
Trechos em latim são citados, às vezes, por Machado e não apenas da Bíblia. Tradução própria:
“Quem come minha carne e bebe meu sangue tem vida eterna [...] Quem come minha carne e bebe meu
sangue em mim permanece e eu nele”.
168
Na genealogia de Jesus, conforme o evangelista Mateus (1. 16), José, o “pai” de Jesus, é descendente
do rei Davi.
153
conteúdo. Primeiro, porque realça oposições: torre (alto) e igreja (baixo): dançar e rezar.
Segundo, porque essas oposições promovem um inesperado cruzamento: no alto (torre)
moram as rosas “deste mundo”; na igreja (baixo), mora a oração (que conduz ao alto).
Por fim, oração e valsa são empregadas de forma polêmica, são representativas da
contradição humana; a oração faz esquecer a valsa, faz murchar as rosas do mundo.
De fato, essa é uma vertente importante, reforçada por estudos recentes da crítica
machadiana. Oliver, por exemplo, estuda a obra de Joyce e Rabelais sob esse ponto de
154
vista169. Particularmente no que tange à paródia de motivação satírica, ela acrescenta: “a
paródia menos rebaixa que distancia [...] Ela envolve uma crítica cuidadosa que inclui
tanto o fator linguístico como o fator social e histórico” (Oliver, 2008, p. 156). A
paródia converte uma estrutura fechada em outra, aberta e permeável, dando ao texto-
fonte outra dimensão em que há, em algum grau, um jogo de deformação e de ironia.
Oliver (2008, p. 165-166) acrescenta que a paródia é uma
[...] forma de solapar o mito em sua credibilidade. Vista sob o ponto de vista da
sátira menipeia, a mitologia greco-romana ou judaico-cristã constituiu um
repositório de idéias recebidas e preservadas de forma intocável. No caso da
mitologia judaico-cristã, esse repositório é, além do mais, inquestionável, pois seus
mantenedores são religiosos.
Não deixa de ter razão o crítico por essas considerações, nem elas invalidam a
perspectiva teórica adotada neste capítulo, pois não se pretende reduzir a obra
machadiana a apenas um aspecto, o da tradição menipeia. A obra machadiana não se
esgota por esse nem por outro único prisma de análise. A filiação, ainda que
independente, a essa tradição menipeia, combina-se bem com a liberdade de que sempre
Machado se serviu, diante das escolas literárias que conheceu e estudou. Aliás, essa
liberdade (não alinhamento incondicional a qualquer bandeira) é próprio do movimento
menipeu.
169
No geral, o que a autora diz sobre as características da sátira menipeia observáveis em Joyce e
Rabelais pode ser aplicado a Machado, por ela estudado, também. É claro que há especificidades,
algumas das quais estão sendo observadas aqui. Machado não reproduz simplesmente uma tradição. Ele a
recria, incorporando elementos próprios de suacosmovisão.
170
Souza refuta, com argumentos convincentes, a proposta teórica de Roberto Schwarz de caracterizar o
narrador machadiano, particularmente Brás Cubas, de volúvel e, nisso, representar, sob o ponto de vista
literário, a elite da época. Para Souza, as voltas do narrador merecem outra abordagem, inspirada ao
teatro, que possibilita a representação de múltiplos papeis, na recuperação etimológica de mimesis.
155
Machado tinha em sua biblioteca as Oeuvres Complètes de Luciano e as cita
diversas vezes. As técnicas de anatomia, de citações truncadas e de paródias foram
aplicadas aos empréstimos bíblicos com fertilidade, com recriação, reinterpretação e
modificação que situam as sequências bíblicas em novo contexto no qual adquirem
significados inesperados e, por isso mesmo, são elas revitalizadas. O escritor brasileiro
percebeu e viveu o que poderíamos chamar de crise da representação; tinha consciência
da precariedade que então havia no que diz respeito a métodos de composição literária
vigentes. Fischer (1998, p. 161) atesta o fenômeno com propriedade:
No Ocidente como no Brasil, acabara o tempo da formulação romântica, acabara o
tempo em que fazia sentido para o autor de relatos fabular sobre a identidade
nacional segundo a regra mimética (romântica) e sobre heróis que atuavam
positivamente no mundo, o tempo em que fazia sentido para o leitor o dispor-se à
leitura de tais fábulas e o aceitar o desempenho daquele personagem. Acabara o
tempo, portanto, em que a posição da voz enunciadora do relato podia manter-se em
posição serena, inquestionada, a partir da qual todo um mundo era criado.
Esse fenômeno pode ser notado nos narradores machadianos que passaram da
terceira pessoa, com os recursos da onisciência, para primeira. Já em “Instinto de
nacionalidade”, Machado indicava as limitações do projeto narrativo romântico e,
posteriormente, na famosa crítica a “O primo Basílio”, de 1878, diz que o realismo “só
chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe
um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha [...] Voltemos os olhos para a
realidade, mas excluamos o realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética”
(Assis, 1985, vol. 3, p. 904)171.
171
Conforme realça Hansen (2006, p. 73) “a ficção não é a vida empírica” nem a reprodução dela; essa
confusão realista-naturalista não se deu conta de que a “ficção imita outra coisa, os discursos que regulam
a vida”.
156
citado ensaio “A nova geração” (Assis, 2008, vol. 3, p. 1259) não vê na ciência fator de
humanização:
[...] a nossa mocidade manifesta certamente o desejo de ver alguma coisa por terra,
uma instituição, um credo, algum uso, algum abuso; mas a ordem geral do universo
parece-lhe a perfeição mesma. A humanidade que ela canta em seus versos está bem
longe de ser aquele monde avorté de Vigny — é mais sublime, é um deus [...] A
justiça, cujo advento nos é anunciado em versos subidos de entusiasmo, a justiça
quase não chega a ser um complemento, mas um suplemento; e assim como a teoria
da seleção natural dá a vitória aos mais aptos, assim outra lei, a que se poderá
chamar seleção social, entregará a palma aos mais puros. É o inverso da tradição
bíblica; é o paraíso no fim.
157
CAPÍTULO 5: “BEM-AVENTURADOS OS QUE POSSUEM,
PORQUE ELES SERÃO CONSOLADOS”
Merece destaque a forma com que o dinheiro é tratado nas obras de Machado de
Assis. Vive-se e morre-se por ele. O dinheiro é o deus deste mundo, como afirmou certa
vez: “O dinheiro é um termômetro; cumpre ter os olhos nele, a ver se valemos deveras
alguma coisa. E se ele é o deus do nosso tempo, e Rothschild seu profeta [...] alegremo-
nos com a confiança do profeta; é o caminho da graça divina” (Assis, 2008, vol. 4, p.
444).
172
A economia em Machado de Assis. O olhar oblíquo do acionista, de Gustavo H. B. Franco; ex-
presidente do Banco Central do Brasil, ele analisa a presença de elementos econômicos em crônicas
produzidas entre 1883 e 1900. Essa perspectiva oferece oportunidades ao autor de fazer considerações
sobre fatos da história e da política econômica da época, coberta pelas crônicas selecionadas - cuja
maioria, aliás, apresenta intertextualidade bíblica. O livro tem seu interesse, inclusive pelo recorte
analítico, apesar de o autor querer fazer de Machado um investidor engajado, como se disso dependessem
o vigor e o valor da obra.
158
XIX experimentou, sobretudo no período inicial da República, uma forte onda de
especulação financeira e complexificação das relações econômicas, com reflexos
significativos no comportamento dos indivíduos. Observava-se paulatino aumento da
laicização da cidadania, com o abandono de escrúpulos religiosos quanto ao dinheiro, se
é que os havia na prática. O mundo moderno da República era laico, como sublinha
Faoro (1976, p. 398):
Machado de Assis percebeu bem essas oscilações e tudo retrata em seus escritos.
O acionista, por exemplo, esse novo elemento do mundo econômico, está presente em
algumas peças. Ele é “uma bela concepção [...] é próprio capital, é o fundo, é super hanc
petram. Sem ele não há casa nem obra...” (Assis, 2008, vol. 4, p. 856)173.
Nos romances há também farto exemplário dessa relação. Basta ler o capítulo
LXXXIX, “In extremis”, das Memórias Póstumas. Um rico tio de Virgília, Viegas, de
cuja herança ela esperava ser beneficiária, estava à beira da morte, negociando a venda
de uma propriedade, no intervalo de acessos de tosse. Viegas exigia quarenta contos;
recusou sucessivas ofertas de trinta, trinta e dois, trinta e cinco contos. Ficou impedido
173
A expressão super hanc petram (“sobre esta pedra”) é frequente em Machado, é parte do que Jesus
disse para Pedro: “sobre esta pedra edificarei minha igreja” (Mt 16.18). Nisso se apoia a tradição católica,
para reivindicar a autoridade eclesiástica e o governo episcopal, além da sucessão apostólica. A citação é
da crônica de 23 de fevereiro de 1889.
159
pela tosse de falar por quinze minutos, no fim dos quais o comprador ofereceu trinta e
seis contos: “Nunca! gemeu o enfermo”. A descrição do doente é repugnante:
Não haverá finanças, naturalmente, não haverá tesouro, nem impostos, nem
alfândegas secas ou molhadas. Extinguem-se os desfalques que, por serem comuns,
fazem com que o cronista se pergunte “se isto de levar dinheiro das gavetas do
Estado ou do patrão é verdadeiramente delito ou reivindicação necessária” (Assis,
2008, vol. 4, p. 1.303).
160
Retomando Shakespeare, diz-se que há perdas psicológicas e poéticas com o fim
do dinheiro, pois no futuro seria difícil compreender o conselho de Iago a Rodrigo:
“Mete dinheiro na bolsa, — ou no bolso, diremos hoje, e anda, para diante, firme,
confiança na alma, ainda que tenhas feito algum negócio escuro [...] Make money. E
depressa, depressa” (Assis, 2008, vol. 4, p. 1304).
[...] Ah! meu caro, dinheiro é mais forte que amor. Veja o negócio do chocolate.
Chocolate parece que não convida à falsificação; tem menos uso que o café. Pois o
chocolate é hoje tão duvidoso como o café. Entretanto, ninguém dirá que os
falsificadores sejam homens desonestos nem inimigos públicos. O que os leva a
falsificar a bebida não é o ódio ao homem. Como odiar o homem, se no homem está
o freguês? É o amor da pecúnia (Assis, 2008, vol. 4, p. 945)
São Paulo o interrompeu, dizendo que os homens sonham com dinheiro, mas os
tesouros que se guardam no céu, onde a ferrugem os não come, são mais valiosos. O
cronista replica que não era o dinheiro, mas o mistério que o fascinava: “O mistério,
sempre o mistério”174. É retomado trecho do Sermão do Monte, do Evangelho de Mateus,
mas precisamente o que fala em não ajuntar tesouros na terra (Mt 6.19-21), porque nem
só de pão vive o homem (Mt 4.4).
174
Em Esaú e Jacó, o Morro do Castelo, logo no início do romance, está associado ao mistério, agora do
futuro.
161
Em 23 de agosto de 1896, a pena do cronista pinta a instabilidade da economia,
em que as pessoas se preocupam com o câmbio, responsável pela carestia. A crônica
começa com esta expressão: “Contrastes da vida, que são as obras de imaginação ao pé
de vós!” (Assis, 2008, vol. 4, p. 1.309). O cronista, que tinha saído de um banco,
passeava por algumas ruas da cidade e encontrava-se na igreja da Cruz dos Militares
(indicadores espaciais motivados?), quando notou a presença de três pombas no nicho de
São João. O narrador observa o contraste delas com os humanos – e daí a expressão
inicial da crônica. Elas voavam, despreocupadas, de um lugar a outro; não pensavam no
câmbio, nem nas baixas, nem no que deveriam vestir ou comer. Eram “a verdadeira gente
cristã [...] o sermão da montanha, a dois passos dos bancos, às próprias barbas destas
casas de cambistas que me enchem de inveja”. Trecho do sermão bíblico, em Mt 6.25-34,
é reproduzido na crônica:
Não andeis cuidadosos da vossa vida, que comereis, nem para o vosso corpo, que
vestireis... Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem fazem
provimentos nos celeiros; e contudo, vosso pai celestial as sustenta... E por que
andais vós solícitos pelo vestido? Considerai como crescem os lírios do campo; eles
não trabalham nem fiam... Não andeis inquietos pelo dia de amanhã. Porque o dia de
amanhã a si mesmo trará o seu cuidado; ao de hoje basta a sua própria aflição (São
Mateus) (Assis, 2008, vol. 4, p. 1.311).
175
A expressão diz respeito ao suposto autor do livro do Apocalipse, João, que esteve exilado na ilha de
Patmos, no mar Egeu (Ap 1.9).
176
Tradução do Padre Figueiredo (1962, p. 223).
177
Essa tradução é a usada pelos protestantes, de João Ferreira de Almeida. Será que Machado a
conhecia?
162
Ocorre novo cruzamento de dois pequenos e conhecidos trechos bíblicos, com
trocadilhos, a propósito de leilão, relatado na crônica de 11 de novembro de 1897. Diz o
narrador que gostava de buscar coisas mínimas e escondidas, por curiosidade, coisa de
míope, cuja vantagem é ver coisas miúdas, “onde as grandes vistas não pegam”. Na casa
de um leiloeiro, foi “ver o martelo bater no prego”, um trocadilho “evangélico”.
Sentindo-se autorizado por Jesus, o cronista diz: “Portanto, edificarei a crônica sobre
aquele prego, no som daquele martelo”. O cruzamento isotópico - venda de objetos num
leilão e morte de Jesus produz um sentido dúbio, de confusão entre a leitura religiosa e a
comercial. Esse comentário foi motivado por um livro de missa, elegantemente
guarnecido de prata: “[...] além do valor espiritual, tinha aquele que propriamente o levou
ao prego”. Ela, a proprietária
[...] abriu mão da salvação da alma, para salvar o corpo [...] mas também quem é que
lhe mandou comprar um livro de tartaruga com ornamentações de prata? Deus não
pede tanto; bastava uma encadernação simples e forte, que durasse, e feia para não
tentar a ninguém. Deus veria a beleza dela (Assis, 1985, vol. 3, p. 773).
178
O trecho bíblico em questão esteve em pauta nas polêmicas que Machado travou com o jornal católico
A Cruz, que tinha por costume publicar suas boas ações. O trecho bíblico está no capítulo 6.2-4 de
Mateus.
163
Um trecho da crônica diz, a respeito da Companhia Promotora das Batatas
Econômicas, pela boca de Horácio: “Meu senhor, as batatas desta companhia foram
prósperas enquanto os portadores dos títulos não as foram plantar. A economia da nobre
instituição consistia justamente em não plantar o precioso tubérculo; uma vez que o
plantassem, era indício certo da decadência e da morte”. Apregoavam-se títulos de
vários bancos: Banco Único, do Banco Eterno, do Banco dos Bancos, Banco Pronto
Alívio, Banco Pontual, que “foi realmente pontual até o dia em que passou do ponto à
reticência”. Havia também títulos da Companhia Exploradora de Além-Tumulo, para
indicação da febre de especulação econômica da época.
É interessante notar, ainda, que há partes específicas de Mateus que têm destaque
com recorrências diversas. É o caso do “Sermão do Monte” (capítulos 5-7)179, em que há
predominância da isotopia econômica. É nessa parte, por exemplo, que são registradas as
bem-aventuranças, das quais o próprio Diabo machadiano se apropria, no “Sermão do
Diabo”. Note-se que, igualmente, a expressão bem-aventurados é objeto de inúmeros
truncamentos. Interessante é comparar as duas peças. O primeiro versículo do “Sermão
do Diabo” usa o dêitico espacial Corcovado, que contamina as noções de espaço e de
tempo a ele associadas. No v. 8º, em lugar de céu aparece terra: “Folgai e exultai, porque
o vosso galardão é copioso na terra”. No v. 21, banco de Londres substitui céu: “Mas
remetei os vossos tesouros para algum banco de Londres, onde a ferrugem, nem a traça
os consomem, nem os ladrões o roubam [...]”. Os respectivos versículos da fonte
parodiada indicam céu para as duas ocorrências (Mt 5.12; 6.20).
179
O próprio Machado confessaria isso na crônica de 14 de abril de 1895: “[...] se eu admiro o belo
sermão da Montanha, as parábolas de Jesus [...] se tudo isso me faz sentir e pasmar [...]” (Assis, 2008,
vol. 4, p. 1164).
164
O tema central da bem-aventurança é alterado. Na paródia machadiana, é
consequência da posse do dinheiro, obtido pela violência e pelo logro. Os temas, no
sermão do Diabo, têm função e valores invertidos180 em relação ao sermão bíblico.
Nasce uma tensão da necessidade de conjunção com o dinheiro, como se percebe neste
excerto (v. 14): “Também foi dito aos homens: Não matareis a vosso irmão, nem a
vosso inimigo, para que não sejais castigados. Eu digo-vos que não é preciso matar a
vosso irmão para ganhardes o reino da terra; basta arrancar-lhe a última camisa” (Assis,
2008, vol. 2, p. 620). Isso de deve ao tipo de arranjo social em que se projeta o texto,
com o predomínio da luta polêmica por bens e a consequente falta de solidariedade.
Nessa perspectiva, podemos apontar a tensão entre o ser e o parecer. Há uma
aparente adesão ao contrato social sancionado pela religião oficial. No plano do parecer,
há sinais de adesão à religião (Evangelho de Mateus), mas, no plano do ser, os sinais
indicam o contrário (adesão ao “Sermão do Diabo”). Assim, o contrato bíblico, por
constrangedores exigências de renúncia que nem todos estão dispostos a acatar, sofre
um arranjo que permite a instalação da ambiguidade no pacto social. Essa ideia é
reforçada pelo v. 29 de “O Sermão do Diabo” que admite, excepcionalmente, o amor,
desde que renda alguma vantagem – o amor-interesse: "Podeis excepcionalmente amar a
um homem que vos arranjou um bom negócio; mas não até o ponto de o não deixar com
as cartas na mão, se jogardes juntos”. Mateus propõe sistema oposto de valores, ao
exigir que os discípulos amem os inimigos: “Ouvistes que foi dito aos homens: Amai-
vos uns aos outros [...]”, para o qual importam o amor e a solidariedade, não o dinheiro
(v. 13); já “O sermão do Diabo” propõe a exploração e o amor-interesse. Justapomos
dois versículos, um de cada sermão, que servirão para sustentar essa diferente
axiologização (os grifos são nossos):
180
A reiteração de temas e figuras combina-se com o que Barros (2001, p. 65) chama de
“homogeneização de sentido”, construída pelo recurso de isotopias espaciais, temporais e actoriais e
responsável pela coerência global do estilo.
181
Há alterações significativas: altar e oferta tornam-se contas; a reconciliação inicial transforma-se em
nova oportunidade para expropriação. Há, por força dessa correlação, uma contaminação entre os
discursos, cujo efeito sugere que a religião do Diabo é exploração e oferta é roubo-exploração.
165
e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e, depois teu irmão na rua, restitui-lhe a confiança, e tira-lhe o
virás fazer a tua oferta. que ele ainda levar consigo.
Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de
comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida
mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes? Observai as aves do céu:
não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as
sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves?
182
Notam-se recursos poéticos no texto, alguns colados ao original parodiado, outros acrescentados pelo
narrador. No primeiro caso, temos paralelismos, sintéticos e antitéticos. No segundo, podem ser
reconhecidas metáforas, comparações, antíteses, aliterações e repetições; por exemplo, no v. 27: “Não
deis conta das contas passadas, porque passadas são as contas contadas, e perpétuas as contas que se não
contam”.
166
gregas, além das judaicas. Embora tais paralelos não sejam suficientes para explicar por
completo o movimento de Jesus, Finkelstein nota que alguns ditos de sabedoria têm
similaridades com aforismas cínicos.
[...] viviam sempre nas ruas, não tomavam banho, mendigavam para viver, faziam
suas necessidades fisiológicas em lugares públicos e passavam os dias arengando
(nas ruas) a fim de que as pessoas adotassem o ponto de vista filosófico deles. Eram
especialmente conhecidos por injuriarem as pessoas nas esquinas e mercados, onde
eles castigavam os que pensavam que o sentido da vida poderia estar na riqueza ou
em outro qualquer valor da sociedade.
183
Talvez Diógenes tenha sido o primeiro a adotar o termo cão para autodefinir-se, vangloriando-se desse
epíteto: “Faço festas aos que me dão alguma coisa, lato contra os que não me dão nada e mordo os
celerados”. Disponível em: http://igualdadedeimprensa.blogspot.com/2007/12/o-ponto-comum-sarcasmo
-x-ironia-x.html. Acesso em 21 de julho de 2010. Um cão tem papel central em Quincas Borba.
184
Cão tem rica simbologia. Associa-se à morte em inúmeras tradições, caso em que se torna guia nas
trevas após a morte, como é o caso de Cérbero, da tradição grega, que figurativiza a passagem da luz às
trevas, da vida à morte, diante da qual indica a igualdade de todos os seres humanos (Normand, 2007, p.
38-41).
185
Tradução própria do original: “[…] often lived on the streets, rarely bathed, begged for a living,
performed private bodily functions in public places, and spent their days haranguing people to adopt their
philosophical views. They were especially renowned for abusing people on street corners and in
marketplaces, where they castigated those who thought that the meaning of life could be found in wealth
or in any of the other trappings of society”.
186
Paulo foi o caso mais evidente de um missionário itinerante. Ele tinha os seus auxiliares que eram
também itinerantes. As primeiras instruções missionárias de Jesus aos discípulos tinham como principal
característica a itinerância (Mc 6.7-13).
187
Alguns especialistas que se ocuparam da questão foram Burton Mack, para quem Jesus não lutava para
a reforma da sociedade; Leif Vaag, que procura caracterizar a comunidade dos ditos como semelhante
167
Ehrman (2000, p. 236) aponta semelhanças adicionais: os seguidores de Jesus
deviam renunciar suas posses (Mt 6.19-21, Mc 11.21-2); não deviam se preocupar com
roupas ou comida (Mt 6.25-33); deviam viver com simplicidade e aceitar o que era dado
pelos outros (Mc 6.6-13; Lc 10.1-12); condenar os que rejeitavam a mensagem (Lc 10.1-
12); e esperar a incompreensão e o mau-trato (Mt 5.11-12) 188.
Os estudiosos da formação dos evangelhos dizem que Marcos foi o primeiro a ser
escrito e que teria servido de fonte para Mateus e Lucas - os três formam o que se
conhece por evangelhos sinóticos, por terem a mesma disposição estrutural e conteúdo
aproximado. Mateus e Lucas têm mais material do que Marcos, porque se serviram de
outras fontes, provavelmente desconhecidas por este último. A maior parte desse material
adicional contém ditos de Jesus189. Por isso, os estudiosos formularam a hipótese de que
houve uma compilação desses ditos, da qual não há vestígios, além das semelhanças
literárias de Mateus e Lucas190. É justamente nessa coleção de ditos que ocorrem as
semelhanças com os princípios cínicos. Daí a desconfiança de partilhas e influências
entre os movimentos.
aos cínicos; Crossan afirma que Jesus era um camponês judeu cínico. Ronald Hock foi um dos pioneiros;
ele estudou possíveis influências dos cínicos não sobre Jesus, mas sobre Paulo, em quem observou as
seguintes características cínicas: a itinerância, o desapego à família, o sentido de liberdade (Silva, 2001,
p. 12).
188
Ehrman (2000, p. 236) recomenda um pouco de cautela, porque, apesar de elementos comuns, há
diferenças decisivas. Por exemplo, Jesus cita somente as escrituras judaicas para sustentar suas ideias e
nunca instou seus seguidores a adotarem outros ensinos. Sua ênfase não se resume em viver de acordo
com a natureza; ao contrário, recai sobre o Deus de Israel, a verdadeira interpretação de sua Lei, o
julgamento iminente contra os que não se arrependessem. Embora seja verdade que os seguidores de
Jesus não deveriam se preocupar com a saúde nem com os encargos da sociedade, isso não era motivado
pela autossuficiência, porque este mundo estava passando a uma nova era, estava prestes a ser
inaugurada. Apesar de semelhanças evidentes, Jesus tinha em sua mensagem, de fato, elementos de
diversa natureza.
189
Essa fonte é conhecida como Fonte Q (inicial da palavra alemã Quelle). Constituída por material
comum de Mateus e Lucas que não está em Marcos, a fonte Q deve ter sido compilação dos ditos de
Jesus, exceto a narrativa completa da tentação (Mt 4.1-11; Lc 4.1-13) e a cura do servo do centurião (Mt
8.5-10; Lc 7.1-10). Provavelmente foi um documento escrito, o que explica as concordâncias entre Mt e
Lc, embora não seja certo se eles tiveram acesso à mesma forma escrita da fonte. Lucas deve ter
conservado a sequência original do material, pois Mateus organizou seções, como bem-aventuranças,
oração do Senhor, parábolas, milagres, etc (Proença, 2008b, p. 413-414).
190
Um argumento favorável à existência escrita da Fonte dos Ditos é o Evangelho de Tomé, cujos
manuscritos foram descobertos no século passado. Esse evangelho, diferentemente dos canônicos,
dispostos em forma narrativa, é constituído por sentenças. Isso pode ser evidência de que, para alguns
círculos cristãos primitivos, Jesus tenha sido considerado um sábio, mais do que um profeta ou messias.
168
com líderes religiosos: “a crítica social, os valores, o estilo literário e o modo de vida do
movimento de Jesus, na Fonte dos Ditos, estão mais próximos dos filósofos cínicos”.
Coleções de ditos eram comuns entre as escolas filosóficas191.
Um povo composto de várias etnias, sem a presença forte do judaísmo e seus líderes,
rodeado de cidades com tradição na cultura grega, poderia ser um espaço aberto para
a aproximação, não somente do movimento de Jesus com a cultura grega, mas
também de toda a população. É nesse pano de fundo que vai florescer o movimento
de Jesus e especialmente seus ditos.
Havia influência helenística nas cidades galileias, como se atesta pela presença,
nelas, de ginásios, teatros e escolas. Os cínicos Menipo, Meleagro e outros eram de
Gadara, cidade que ficava numa região conhecida como Decápolis, de influência grega,
onde também se situavam Damasco e Gerasa. Jesus esteve na Decápole e nos evangelhos
há menção a Gadara e a Gerasa193.
191
Foi fértil o encontro da teologia com a filosofia, conforme pode ser visto nos escritos dos pais da igreja
e mesmo em Filo, que promoveu interessante aproximação da sabedoria grega à tradição judaica.
192
Natureza, aqui, não deve ser entendida como foi abordada no capítulo terceiro deste trabalho; ali foi
feita uma oposição de base com Cultura (História), para realçar que Machado entende o ser humano
como alguém exclusivamente histórico, de que procedem as contradições respectivas. Aqui, Natureza tem
outra base de oposição: convenções sociais.
193
Gadara era “uma das cidades da região de dez cidades, onde Jesus curou dois endemoninhados (Mt
8.28). Marcos (5.1) e Lucas (8.26) dizem que o milagre aconteceu em Gerasa. E há outros nomes em
vários manuscritos gregos. Provavelmente, Gadara era a cidade mais importante da região” (Bíblia
Sagrada. Nova Tradução na Linguagem de Hoje, 2005, p. 1342).
169
A tradição sapiencial normalmente considera a sabedoria superior ao dinheiro (Pr
3.13-15). O mesmo ocorre em Jó (28.12,15-19). Silva (1996, p. 39-40) reforça que “[...]
os cínicos defendiam uma comunidade de bens onde tudo fosse comum e onde não
houvesse o acúmulo de bens e riquezas”. Para muitos filósofos, a riqueza é a principal
fonte das misérias humanas194. O ideal de juntar tesouro no céu - viver de forma virtuosa
- era princípio comum a escolas filosóficas, principalmente as de tradição socráticas.
Vigora a lógica segundo a qual o maior bem é o ser humano. Quando esse princípio é
desconsiderado, o dinheiro passa a ocupar o lugar de Deus, conforme indica Mt 6,24:
“Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao
outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às
riquezas”. Em suma, quem não se preocupa com o mal da riqueza é um bem-aventurado.
194
A Primeira Epístola a Timóteo (6.10) confirma essa ênfase: “Porque o amor do dinheiro é raiz de
todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas
dores”.
195
Disponível em http://portalveritas.blogspot.com/2009/07/diogenes-e-radicalizacao-do-cinismo.html.
Acesso em 15 julho de 2010.
196
Disponível em http://portalveritas.blogspot.com/2009/07/diogenes-e-radicalizacao-do-cinismo.html;
acesso em 15 de julho de 2010.
170
Os atenienses riram-se muito um dia ao ver Diógenes, um doido que vivia em um
tonel, saíra com uma lanterna na mão, à cata de um homem. Era para rir. E aquele
povo não deu o cavaco, porque via no ato do velho filósofo com visos de desdém
pelos contemporâneos.
Não vos direi daqui, ó fluminenses, aquilo que dizia o cínico Diógenes, no dia em
que se lembrou de clamar em plena rua de Atenas:
— Ó homens! ó homens!
E como os atenienses que passavam se reuniam em torno do filósofo, e lhe
perguntavam o que queria, ele lhes respondeu com a mordacidade do costume:
— Não é a vocês que eu chamo; eu chamo os homens.
Não vos direi isso, ó fluminenses, mas confesso que nos primeiros dias da semana
tive vontade de dizê-lo [...] (Assis, 2008, vol. 4, p. 183).
Achei um homem; vou apagar a lanterna. Lá nos Campos Elísios do teu paganismo,
enforca-te, Diógenes, filósofo sem préstimo nem fortuna, arruador caipora,
procurador de impossíveis. Eu, sim, eu achei um homem. E sabes por que,
desastrado filósofo? Porque o não procurava, porque estava a tomar tranquilamente
a minha xícara de café, à janela, a dividir os olhos entre as folhas do dia e o sol que
se desembuçava. Quando menos esperava, ei-lo ante mim. (Assis, 2008, vol. 4,
p. 366).
O cronista, em tom de galhofa, observa que achou o homem sem achá-lo, porque
o doador era anônimo. Um enigma, pois, apesar de anônima, a doação foi parar nos
diários: “Sem dar o seu nome! Este simples fato conquista a nossa admiração. Não que
171
ela esteja acima das forças humanas, é essa justamente a condição da caridade
evangélica, em nome da qual os filhos do Evangelho inventaram a caridade nas
gazetilhas” (Assis, 2008, vol. 4, p. 366). Esse verdadeiro homem Evangelho desdenha os
clarins da Fama. Continua o cronista afirmando que esse ato inspirou um amigo, que
libertara uma escrava de 65 anos, Clarimunda [...] Coisas da mão direita!
Esse mesmo recurso seria repetido em 26 de julho de 1896. O cronista diz que a
famosa lanterna de Diógenes poderia ser apagada, porque ele tinha achado um homem.
Um barbeiro, que estava vendendo sua barbearia por não entender do ofício. Esse homem
era único, daí sua grandeza: “Essa nobre confissão de ignorância é um modelo único de
lealdade, de veracidade, de humanidade”. Se o gesto fosse adotado por outros
profissionais, ocorreria a a retificação da sociedade.
O cinismo e seu potencial crítico aos valores sociais então vigentes eram
conhecidos por Machado. É muito provável que ele tivesse percebido esse mesmo
potencial nas páginas do Evangelho de Mateus. Sabemos que outro livro bíblico que
gozava da predileção do autor carioca foi o Eclesiastes. Não por acaso, há quem
reconheça elementos comuns na filosofia de vida desse livro de sabedoria bíblica com o
cinismo197. Isso é mais um reforço à ideia de que, em algum grau, a obra machadiana
propõe princípios cínicos no que diz respeito à relação com o dinheiro e, se isso pode ser
sustentado, com os demais valores sociais que tolhem a liberdade dos cidadãos.
197
Silva (1996; 2001), em suas pesquisas acadêmicas, admite a hipótese aventada, com razoável
convicção. Segundo Conceição (2003, p. 71), Octávio Brandão, crítico marxista de Machado (1958), teria
classificado o autor de Eclesiastes de filósofo cínico, contudo essa observação deve-se a uma leitura
desatenta, embora a relação apontada seja instigante e postulada por outros teóricos. Observemos o
seguinte trecho, a propósito do conteúdo e do autor do Eclesiastes: “[...] depois de ter sugado os mais
belos frutos, bebido os vinhos mais capitosos e gozado as mulheres mais deliciosas, esse charlatão
choramingou: - Vaidade das vaidades! É tudo vaidade! Como se pode levar a sério uma filosofia tão
cínica?”. Parece que cínica, no caso, não se refere à escola filosófica aqui considerada.
172
leituras prediletas; agora, vimos que Mateus também parecia ser; o cinismo, se não era
uma fonte preferencial, pelo menos, não era dele desconhecido.
Embora não se possa afirmar que o Eclesiastes seja um livro de promoção dos
princípios filosóficos cínicos, devem-se reconhecer aproximações com essa escola,
sobretudo no que diz respeito ao dinheiro. Isso é compreensível se for considerado um
mundo cultural de trocas e influências recíprocas, próprio do helenismo dos primeiros
séculos imediatamente anteriores ao cristianismo. É um estribilho a expressão vaidade de
vaidades no Eclesiastes. Em algumas ocorrências, é aplicada ao dinheiro; em outras, são
questionados os benefícios que o trabalho pode oferecer aos homens: “[...] Para quem
trabalho eu, se nego à minha alma os bens da vida? Também isto é vaidade e enfadonho
trabalho” (Ec 4.8). Os ricos nunca se satisfazem com a riqueza que têm; quanto mais
preocupação, mais pesadelos: “a fartura do rico não o deixa dormir” (Ec 5.12). Riqueza e
vontade estão em descompasso: “Quem ama o dinheiro jamais dele se farta; e quem ama
a abundância nunca se farta da renda; também isto é vaidade” (Ec 5.10). Há um grave
mal debaixo do sol: “as riquezas que seus donos guardam para o próprio dano” (Ec 5.13).
173
Seria a vitória da esperança, numa recaída machadiana repentina? Não nos
esqueçamos do cantochão e do incenso, registrados no início da crônica...
174
CAPÍTULO 6: “SE EU NÃO TIVESSE OS OLHOS
ADOENTADOS DAVA-ME A COMPOR OUTRO ECLESIASTES”
198
Peregrino Jr. (1938, p. 20), para quem obra e vida estão em direta correspondência, em consonância
com pressupostos teórico-críticos de sua época, sustenta que qualidades e defeitos (de organização da
escrita) estão no sangue e não são adquiridos pela cultura individual. Não consideramos que
manifestações decorrentes de distúrbios somáticos tenham interferido diretamente na construção
linguístico-formal de Machado. Ele era um escultor da linguagem, alguém que sabia o que estava fazendo
com a pena. Como poucos, soube fazer coincidir, com rara maestria, a beleza, a clareza e a objetividade
do pensamento com a expressão linguística.
175
- Ah! o senhor acredita nos provérbios?
- É a sabedoria das nações, disse José Lemos. (Assis, 2008, vol. 2, p.183)
A sequência desse diálogo propõe já certa resistência aos provérbios, pelo fato
de, nem sempre, serem eles expressão fidedigna dos fatos e das emoções:
- Não [...] Repare que para cada provérbio afirmando uma coisa, há outro provérbio
afirmando a coisa contrária. Os provérbios mentem.
A sabedoria é evocada também por outros meios. Um termo frequente nos livros
sapienciais - usado para designar a pessoa que não é sábia nem busca a sabedoria como
néscia, que ocorre em “Adão e Eva”. Não seria disparate reconhecer nesse termo outro
elemento de intertextualidade com a sabedoria bíblica:
— Néscia! Para que recusas o resplendor dos tempos? Escuta-me, faze o que te digo,
e serás legião, fundarás cidades, e chamar-te-ás Cleópatra, Dido, Semíramis; darás
heróis do teu ventre, e serás Cornélia; ouvirás a voz do céu, e serás Débora; cantarás
e serás Safo. E um dia, se Deus quiser descer à terra, escolherá as tuas entranhas, e
chamar-te-ás Maria de Nazaré (Assis, 2008, vol. 2, p. 490-1)199.
199
O uso do termo néscio para o sentido oposto de sábio pode indicar que Machado conheceu a tradução
de João Ferreira de Almeida, utilizada pelos protestantes, embora não figure na relação de livros de sua
biblioteca.
176
Esse trecho aponta o caminho para a felicidade, tarefa da sabedoria, na
identificação daquilo que recebe maior investimento de desejos. Assim, são nomeadas
sob figuras e temas literários o que mais as mulheres valorizam, em termos culturais:
poder, beleza, maternidade, vestes ricas e bonitas, aromas, etc. Tudo isso como reforço
à sedução empregada pela serpente, para fazer Eva comer o fruto proibido.
Não é tão simples formular uma definição para a sabedoria bíblica. Devem-se
considerar suas diversas manifestações literárias, que variaram no tempo e são próprias
de uma tradição milenar que influenciou e sofreu influências de outras culturas com as
quais manteve contato.
200
Para Rad, a sabedoria define-se por uma dimensão prática, entendida a partir da necessária
correspondência entre a ordem humana e a cósmica: “O que constitui a sabedoria é esta decisão de
esclarecimento racional e de ordenação do mundo” (Rad, 1973, p. 400). Concepção muito pertinente de
sabedoria está presente no capítulo CXXVII das Memórias Póstumas, no qual Brás se considera um
sábio: “Grande cousa é haver recebido do Céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as relações das
cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir! Eu tive essa distinção psíquica, eu a agradeço
ainda agora do fundo do meu sepulcro” (Assis, 2008, vol. 1, p. 739).
177
Para Morla Asensio (2008, p 33), os termos hebraicos hakam (sábio) e hokmanh
(sabedoria), na maioria das ocorrências, relacionam-se com a inteligência prática201:
“destreza e habilidade; astúcia e engenho [...] sobretudo no cume da vida, quando o ser
humano é capaz de mover-se com segurança entre os escolhos da vida, distinguindo
entre o bem e o mal, para chegar o mais incólume possível à meta desejada”.
[...] se exprime uma humanidade sabedora de que está intimamente ligada, em sua
vida pessoal, aos acontecimentos do mundo exterior [...] o homem judeu se sentia
em estreita relação pessoal com o mundo. As leis que dirigiam o mundo lhe diziam
respeito, eram abertas, caminhavam em sua direção. O acontecimento em que o
homem se achava envolvido tinha um aspecto que lhe cabia e se relacionava com
seu comportamento. O mundo podia voltar-se para o homem, numa ação benéfica e
favorável, ou se voltar contra ele, como castigo.
201
Thalemberg (2005, p. 248) indica que a sabedoria bíblica tem uma dimensão utilitária: “Ela diz às
pessoas como se comportar, como se relacionar aos problemas existentes, para que possam melhor gozar
de suas vidas. Outra característica desta literatura é que ela é secular; não fala em nome de Deus e sim da
sabedoria e da experiência”.
202
Proença (2008a) apresenta breves considerações sobre a influência da sabedoria bíblica no movimento
de Jesus e na apropriação dela pela Teologia da Prosperidade, tão em moda atualmente em círculos
neopentecostais.
178
Conforme Morla Asensio (2008.p. 43), Jó “percebeu com agudeza e
dramaticidade a ingenuidade da doutrina da retribuição”. Além de Jó, Eclesiastes alia-se
a esse estranhamento, à falta de correspondência entre ação e resultado203. Acrescenta
ainda esse autor que “impõe-se não só uma inseparável crise epistemológica, mas uma
falta de confiança na cognoscibilidade de Deus [...]. A falta de fundamento da empresa
sapiencial não conta com que Deus criou um mundo capaz de recompensar a virtude e
castigar o mal” (Morla Asensio, 2008, p. 74). Nesse sentido, Williams (1997, p. 286)
aponta três elementos decisivos que contribuíram para a crise da sabedoria:
[...] Mas a antiga sabedoria israelita de ordem tornou-se inadequada para alguns
pensadores e foi transformada em seus escritos em uma “sabedoria da contra-
ordem”. Essa mudança ocorreu quando os efeitos desorientadores de três condições
relacionadas abalaram a tradição. (1) As generalizações da Sabedoria acerca de
situações e indivíduos típicos pareciam contestadas pela experiência individual e
situações particulares. (2) A tradição consequentemente perdeu o poder de moldar o
sentimento e o pensamento, e de exercer o controle social. (3) A função de
representação da linguagem foi subvertida por novas questões saídas de uma
estrutura mental cética ou paradoxal no período do fim do Antigo Testamento, desde
o exílio babilônico (586 a.E.C.) até o período helenístico e a diáspora (a partir de
cerca de 330 a.E.C.).
203
Nem sempre virtude gera virtudes, como conclui o filósofo Brás Cubas, a propósito de Dona Plácida:
“Se não fossem os meus amores, provavelmente D. Plácida acabaria como tantas outras criaturas
humanas; donde se poderia deduzir que o vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que não impede
que a virtude seja uma flor cheirosa e sã” (Assis, 2008, vol. 1, p. 701).
179
Sabedoria como sagacidade
Ocorre manifestação da tradição sapiencial no Antigo Testamento fora dos livros
sapienciais204- estamos diante da tradição e não da literatura sapiencial. José (do Egito)
é considerado sábio (hakam), pois tem sagacidade, perspicácia, impulso para a
autoconservação. Assim, é sábio quem tem a astúcia e a usa para atingir um objetivo,
como é o caso de Jacó, para ser beneficiário da primogenitura que cabia a Esaú. Morla
Asensio (2008, p. 59-60) comenta:
204
Thalemberg (2005, p. 248) sustenta que o livro apócrifo Eclesiástico, de Jesus Ben Sirac, é um
exemplo típico de sabedoria extracanônica. Na Mishná encontramos o livro de Pirkei avot.
205
Exemplos podem ser vistos nas seguintes passagens: em 2Sm 13, Jonadabe, homem “mui sagaz”
(2Sm 13.3), dá conselhos a Amnon, que estava enamorado de sua irmã Tamar e queria possuí-la; 2Sm
20.16-22 relata a intervenção de uma mulher sábia, anônima, que livra a cidade em que morava de uma
invasão.
180
uma superioridade e não lutar abertamente. Usava os mesmos recursos das heroínas
bíblicas, acima apontados. Essa sagacidade tem dupla demanda para acomodação às
regras da boa convivência social. De um lado, o respeito às prerrogativas de alguém
socialmente superior; de outro, a busca de meios para atendimento aos próprios
interesses e necessidades.
- Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; façam que lhe digo. Dona
Glória pode ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra cousa, mete-se
então o Padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao teatro pela primeira vez
há dous meses? D. Glória não queria e bastava isso para que José Dias não teimasse;
mas ele queria ir, e fez um discurso, lembra-se?
- Lembra-me; disse que o teatro era uma escola de costumes.
- Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos dous...
Ande, peça, mande. Olhe, diga-lhe que está pronto a ir estudar leis em São Paulo
(Assis, 2008, vol. 1, p. 952).
A figura do sábio
O sábio fazia-se presente no âmbito privado e no público, que parece ter sido a
sua sede privilegiada. A corte é lugar de cultivo de sabedoria, beneficiada por incentivos
181
reais206, a que se vincula a figura do conselheiro. Afinal, os reis tinham, nos sábios,
privilegiados conselheiros políticos e militares.
Aires está na idade da razão, mais de sessenta, assim como Machado de Assis à
época da escrita do livro: há nele um certo ar de desistência. Memorial pode ser
comparado ao Eclesiastes, também este, um livro de renúncia, escrito ao tempo da
velhice do autor, o rei Salomão, encerrando a mensagem da nulidade da vida, como
uma carta-testamento para as gerações futuras. E Aires cita Eclesiastes a seu modo:
“Se eu não tivesse os olhos adoentados dava-me a compor outro Eclesiastes, à
moderna, posto nada deva haver moderno depois daquele livro. Já dizia ele que nada
era novo debaixo do sol, e se o não era então, não o foi nem será nunca mais. Tudo é
207
assim contraditório e vago também” .
O livro de Jó
É muito provável que Jó pertença ao período do pós-exílio, embora haja
elementos patriarcais acentuados e a religião e o ambiente geral descrito no livro seja
primitivo. Acredita-se que tenha alcançado sua forma final por volta do ano 200 a.E.C.
Nesse livro, a construção sequencial dos diálogos entre Jó, seus amigos e Javé
parece não prover coordenação entre os discursos, mas isso pode ser explicado pela
lógica oriental, “que prefere abordar os temas no seu conjunto, mediante uma espécie de
raciocínio cíclico, saltando de uma questão para outra, e dando assim impressão de
profundidade” (Morla Asensio, 2008, p. 130). O autor desse livro bíblico é um poeta
que usa diversos recursos retóricos para criar ambiguidades e equívocos que fazem dele
um livro único.
Morla Asensio (2008, p. 133) sustenta que Jó tem uma estrutura de três partes,
que se aproximam de contos populares: “exposição (Javé aflige Jó), complicação (Jó
desafia Javé; Javé desafia Jó), e desenlace (Javé abençoa Jó). O desenlace tem lugar
206
Além da corte, o templo foi importante centro de cultivo da sabedoria, comprometida com as tradições
religiosas e a prática litúrgica. Também na escola e no círculo familiar a sabedoria era praticada.
207
Disponível em: http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a86.htm. Acesso em 30 de setembro de 2010.
A fonte do trecho citado do Memorial é a seguinte: Assis, 2008, vol. 1, p. 1.274.
182
depois que Jó, supostamente acusado em falso por Javé, retira a denúncia contra este
(42.2-6)”.
Por isso, concordam os especialistas que Jó tem por intenção discutir o destino
do mau e a justiça de Deus, sob o impacto da crise da sabedoria. Os discursos dos
amigos de Jó confirmam a tese da tradição segundo a qual os justos não perecem. Elifaz
apresenta duas ideias contraditórias: exposição tradicional do destino do justo e do mau.
Bildade confirma as ideias de Elifaz. Sofar vai pelo mesmo caminho: os maus são
inimigos pessoais de Javé. Essas proposições da sabedoria tradicional, sustentadas pelos
três amigos, contudo, são refutadas por Jó, de que nasce um litígio entre ele e Javé, que
assume a palavra e ridiculariza Jó (conforme capítulos 38-39). Na resposta que segue,
Jó reconhece o poder de Deus e as limitações humanas para se conhecer Javé208. Apesar
de a ordem humana ser caótica, ele vê que a sabedoria de Javé ordena e guia os
mistérios do cosmo (Jó 38. 36-37). Passa-se a reconhecer que a vida é uma gratuidade,
sob perspectiva de que não pode ser vivida pela perspectiva da doutrina da retribuição.
A sabedoria passa a ser entendida como o temor de Deus, sem a espera de recompensa.
208
Eclesiastes expressa a mesma ideia (8.17): “então, contemplei toda a obra de Deus e vi que o homem
não pode compreender a obra que se faz debaixo do sol; por mais que trabalhe o homem para a descobrir,
não a entenderá; e, ainda que diga o sábio que a virá a conhecer, nem por isso a poderá achar”.
183
Isso pode ser percebido logo no início do livro. Em 2.10 há esta pergunta retórica: “Se
aceitarmos de Deus os bens, não vamos aceitar os males?” (Jó 2.10).
Depois disto, passou Jó a falar e amaldiçoou o seu dia natalício. Disse Jó: Pereça o
dia em que nasci e a noite em que se disse: Foi concebido um homem! Converta-se
aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele, nem resplandeça
sobre ele a luz. Reclamem-no as trevas e a sombra de morte; habitem sobre ele
nuvens; espante-o tudo o que pode enegrecer o dia.
Eclesiastes tem princípio que, se não é semelhante, pelo menos reforça essa
visão negativa do dia do nascimento: “Melhor é a boa fama do que o unguento precioso,
e o dia da morte, melhor do que o dia do nascimento” (Ec 7.1). Essa ideia é repetida no
mesmo capítulo, de forma mais genérica: “Melhor é o fim das coisas do que o seu
princípio” (Ec 7.8).
184
Jó tem parentesco com Eclesiastes. Mais do que paralelos, ambos podem ser
considerados como tentativas de resposta à falência da doutrina da retribuição, que não
dispõe, de forma satisfatória, de explicações convincentes sobre a ordem do mundo
observada pelo sábio. O justo perece e o mal triunfa. A representação literário-teológica
entra em crise.
O livro de Eclesiastes
Afrânio Coutinho (1940, p. 40) assinala que a Bíblia era leitura predileta de
Machado e que o Eclesiastes influenciou sua filosofia e concepção de mundo. Além de
Coutinho, outros críticos reconheceram nesse livro bíblico uma das fontes importantes
que podem explicar, de forma convincente, o pessimismo e talvez o niilismo de
Machado. Maia Neto (2007, p. 21) realça que Eclesiastes era um dos livros preferidos
pelos fideístas céticos (Montaigne e Pascal citam-no inúmeras vezes), na medida em
que ressalta a vaidade do saber humano. É possível que o livro bíblico tenha sido
diretamente influenciado pelo ceticismo grego. Machado é consciente da conexão com
Montaigne e Pascal209.
O nome do livro tem origem no termo grego ekklesiastes, que traduz o hebraico
Qohelet razoavelmente bem210. Ekklesiastes é aquele que se senta ou fala na assembléia
(ekklesia). Como nome do livro, o termo pode indicar a “função do mestre de sabedoria
de ‘convocar/ reunir’ gente em sua escola” (Morla Asensio, 2008, p. 157). Na Bíblia
Hebraica, o livro faz parte do conjunto denominado ketubim (escritos). É lido na festa
dos Tabernáculos.
209
Maya cita Stapfer, para quem é possível haver aliança entre temperamento alegre e vazio da
existência: “O perfeito humorista [...] como o Eclesiastes, pensa que tudo é vaidade sob o sol; porém não
o diz chorando e sim a rir” (apud Maya, 2007, p. 15). A afirmação é sugestiva para o caso de Machado.
210
Williams (1997, p. 299) informa que Qohelet vem de uma raiz hebraica que significa reunir ou
agrupar, derivada ao substantivo qahal, cujo sentido básico é assembleia ou congregação.
211
Houve uma espécie de patronato salomônico da sabedoria. Três livros são atribuídos a ele, pela
tradição: Provérbios, Eclesiastes e Sabedoria - além de Salmos e Cântico dos Cânticos, incluídos por
alguns nesse rol. Esse procedimento explica-se pelo fenômeno da pseudepigrafia - atribuição de autoria a
185
século III a.E.C. O hebraico tem traços tardios, aproximando-se da linguagem da
Mishná e tem muitos aramaísmos212.
Qohelet é um sábio que coleciona provérbios com os quais procura articular uma
possível síntese sapiencial. É primariamente um observador (Ec 4.1-3); demonstra-se
emocionado ao falar de aspectos econômicos extremos; considera principalmente os
sofrimentos da experiência humana em seus limites, usando, para isso, as formas
próprias da sabedoria (provérbio, poema didático, etc.). Conforme Miller (2002, p. 162),
não é mais jovem: “suas investigações, incluindo aspectos mais apropriados aos mais
velhos, são elaboradas por um ponto de vista retrospectivo [...]”. Esse estudioso nota
ainda que, de acordo com a própria autoapresentação do autor bíblico, no livro, há a
indicação de que Qohelet possa ter sido uma pessoa educada, de meios moderados e
meia idade - pelo menos213. É oportuno recordar que o perfil do Conselheiro Aires tem
o figurino do sábio de Eclesiastes.
algum personagem famoso do passado. Assim, Moisés é o autor do Pentateuco; Davi, dos Salmos;
Salomão, dos livros de Sabedoria. Esse rei deve ter sido um mecenas e foi visto por gerações posteriores
como alguém em quem a própria sabedoria de Deus havia se encarnado (Morla Asensio, 2008, p. 29).
Interpretação judaica antiga via o livro como uma espécie de confissão de pecados do rei Salomão. A
figura do rei, contudo, desaparece a partir do capítulo segundo (Miller, 2002, p. 169).
212
No período persa, o aramaico tinha se tornado uma espécie de língua franca no Oriente próximo. Foi
escrito após Daniel, representando um estágio tardio na tradição sapiencial.
213
Sob o ponto de vista da importância literária, essas informações são acessórias; elas podem não
corresponder às condições de vida do autor ou do compilador da obra. São importantes, contudo, para a
produção dos efeitos de sentido desejados.
186
recurso o conjunto de pensamentos originais do livro, de ruptura com a tradição judaica
e internacional, num período de crise de ideias não só entre os judeus, mas também em
culturas vizinhas, com as quais há algum ponto em comum, como a distância de Deus e
críticas à teodiceia vigente, comuns a outras manifestações não israelitas da época.
Assim, faz sentido “pensar que o autor viveu, ensinou e escreveu em pleno período
helenista. O impacto negativo dessa cultura em Israel percebe-se com toda clareza nos
livros de Macabeus” (Morla Asensio, 2008, p. 162). Com isso concorda Williams
(1997, p. 299):
214
Machado, na crônica de 10 de julho de 1892, diz que iria trazer à tona a arraia miúda, a facada
anônima: “Eu sou justo [...] Tenho horror a toda superioridade. Eu é que vou enfeitar os fatos [...] Os
187
Alguns aspectos literários de Eclesiastes
Geração vai e geração vem; mas a terra permanece para sempre. Levanta-se o sol, e
põe-se o sol, e volta ao seu lugar, onde nasce de novo. O vento vai para o sul e faz o
seu giro para o norte; volve-se, e revolve-se, na sua carreira, e retorna aos seus
circuitos. Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche; ao lugar para onde
correm os rios, para lá tornam eles a correr. Todas as coisas são canseiras tais, que
ninguém as pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem se enchem os ouvidos
de ouvir. O que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há,
pois, novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo?
Não! Já foi nos séculos que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que
precederam; e das coisas posteriores também não haverá memória entre os que hão
de vir depois delas (Ec 1.4-11).
Esse poema sobre a existência humana menciona homem, geração, sol e vento.
O ser humano e a ordem do cosmos são contrastados. Num procedimento próprio da
fatos, eu é que os hei de declarar transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários
[...] Quando a gente lê por olhos estranhos, entende mal as coisas” (Assis, 2008, vol. 4, p. 903). Estamos
diante de um livre-pensador, como Qohelet.
188
técnica sapiencial, a existência humana é interpretada sob a perspectiva de suas
implicações sociais e cósmicas.
“Tudo é vaidade”
215
Caldwell (2008, p. 57) sugere que a motivação onomástica do personagem Palha, de Quincas Borba
tem origem no Eclesiastes, justamente por ter o sentido de nada, vazio, oco, embora possa também
significar: “homem sem entidade, sem nenhum dos sentimentos mais sutis”.
189
de que “[...] Qohelet emprega hebel como um símbolo, uma imagem que suporta um
conjunto de sentidos ou ‘referentes’, que não podem nem ser exaustiva nem
adequadamente expressos por nenhum sentido particular” (Miller, 2002, p. 8).
Para Miller, há três aspectos de hebel que são base para ampliação metafórica:
transitoriedade, insubstancialidade e loucura. O sentido material de hebel é vapor,
fumaça, respiração - isso envolve um suave movimento de ar. O metafórico é brevidade.
Para o sentido de insubstancialidade, algumas passagens podem servir de apoio. No
sofrimento, Jó pede que Deus permita a sua morte. “Deixe-me só, porque meus dias são
vapor” (Jó 7.16). Em Pv 21.6, obter riquezas com língua falsa é hebel. Jó (35.16) no
vapor (hebel) abre sua boca sem conhecimento. Jó (27.12) faz vapor de vapor. Jó (9.29)
pergunta-se por que ele trabalha em vão216.
216
D. Plácida, das Memórias Póstumas, é a figurativização desse desalento, conforme nota Faoro (1976,
p. 325): “Amanheceu morta; saiu da vida às escondidas. Para que servira tanto trabalho, tantas amarguras
e tantas dores?”.
190
a persuasão do leitor. Salomão, como símbolo de tudo o que de positivo sobre sabedoria
existia, torna-se símbolo do que é mais central no livro: hebel (Miller, 2003, p. 165).
Qualquer que seja a intenção do autor do livro, não se pode negar a Qohelet a
função de crítico da sabedoria. Ao retratar a vida naquilo que ela tem de bizarro e
trágico, o livro desafia as tradicionais explicações da sabedoria: reflete-se nele a crise da
sabedoria israelita. O sábio não difere do tolo, não tem garantia de sucesso; o sábio
sente dor e confusão, apesar de seus esforços. A sabedoria propriamente dita traz
vexame e dor (Ec 1.18); é inatingível (Ec 7.23-24; 8.1).
217
Tradução própria do original: “He has identified the problems, contradictions, and frustrations of his
audience’s world, and has an alternative to offer […] He wants his audience to accept the things they
cannot control, but to change their own way of being and doing over which they do have some control”.
191
Essa apreciação crítica da sabedoria não foi um ineditismo de Eclesiastes. Ele
não foi o primeiro a fazer isso, mas talvez tenha sido o mais incisivo na tradição judaica,
emulado apenas por Jó.
Em Esaú e Jacó, há uma passagem sutil que tem parentesco muito próximo com
a perspectiva niilista do Eclesiastes. No capítulo XXII, intitulado “Agora um salto
escuro”, há uma interpolação em forma de comentário, a propósito da então recente
aquisição do título de barão, pelo banqueiro Santos, pai dos gêmeos. Nessa glosa, para
justificar um salto temporal, o narrador filosofa:
Que os dous gêmeos participassem da lua-de-mel nobiliária dos pais não é cousa que
se precise escrever [...] Os estados de alma que daqui nasceram davam matéria a um
capítulo especial, se eu não preferisse agora um salto, e ir a 1886. O salto é grande,
mas o tempo é um tecido invisível em que se pode bordar tudo, uma flor, um
pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em
192
cima de invisível é a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro (Assis, 2008,
vol. 1, p. 1104).
“Nada em cima do invisível” bem pode ser uma síntese adequada do niilismo
machadiano, que, se não é diretamente inspirado pelo Eclesiastes, com ele mantém
afinidades inegáveis.
193
Em reação à crítica, particularmente a Capistrano de Abreu, que tinha
perguntado se as Memórias eram um romance, Machado escreve um prólogo para a
quarta edição do livro, em que faz referência às “rabugens de pessimismo”,
expressando-se da seguinte forma:
194
CAPÍTULO 7: RELÍQUIAS RECOLHIDAS
195
acontecera, não a abandona e procura meios de assegurar-lhe subsistência. Aposenta-se
e muda de casa. É então que conhecem o vizinho, o poeta Davi, vivendo isoladamente.
Passado algum tempo, Vicente recebe uma carta do vizinho, em que dizia ser necessário
empreender uma viagem urgente, mas voltaria em dois meses. Nesse ínterim, Vicente
fica doente e é assistido por Elói, o criado de Davi. Quase à beira da morte, Vicente
recebe outra carta do poeta Davi, pela qual se sabe o motivo da ausência dele: estava em
busca de um filho que o abandonara. Esse filho era Valentim. Voltam ambos, o filho
regenerado torna-se exemplar marido e filho.
218
Além disso, havia o imperativo da subsistência: “[...] Machado vivia, na verdade, mais das
colaborações para o Jornal das Famílias e das traduções teatrais vendidas [...] do que mesmo do salário
irregularmente pago pelo Diário do rio de Janeiro” (Magalhães Jr., vol. 2, p. 13).
219
O trecho citado na transcrção é Sl 119.176, em que há incentivo a que se sigam os mandamentos de
Deus; também afirma que Deus pode buscar e resgatar a ovelha perdida.
220
Jesus cita o Salmo 22.1. Os primeiros cristãos interpretaram as Escrituras hebraicas sob o esquema
promessa-cumprimento. Para os evangelistas, essa repetição seria índice de que as promessas das antigas
Escrituras estavam se cumprindo em Jesus.
196
forma a trindade com o cão Diógenes. Esse cão e seu nome são, na verdade,
antecipações de algumas crônicas, contos e romances em que as figuras do cão e do
filósofo cínico se revestem de singular importância.
Segundo Magalhães Jr. (2008, vol. 1, p. 47), quando “Pai” foi publicado,
Machado era um “romântico, cheio de preocupações de ordem moral” apesar de ser
“também um progressista”. Aparentemente contraditória, essa afirmação não deixa de
ter sentido. É possível que o conto tenha algum vínculo ideológico com a intenção de,
por parte de Machado, valorizar em particular o teatro como forma de civilizar os
povos. Ainda que esse afã fosse uma tendência, não deveria hiperbolizar as virtudes
nem esconder os defeitos dos seres humanos. Escrevia ele em “Idéias vagas” (de 1856):
“[...] Ao teatro [para] ver a sociedade por todas as faces: frívola, filosófica, casquilha,
avara, interesseira, exaltada, cheia de flores e espinhos, dores e prazeres, sorrisos e
lágrimas! Ao teatro vício em contato com a virtude” (Assis, 2008, vol. 3, p. 993). Ainda
que moralizador, nada se devia esconder do teatro; a sociedade devia ser vista por
“todas as suas faces”. “O pai” é indício seguro de que, desde cedo, as fontes bíblicas
serviram de inspiração, inclusive para elaboração de núcleos dramáticos dos contos.
197
Ao comentar um lançamento editorial, na crônica de 1º de abril de 1863, o
cronista diz dos poetas que não transigem em relação “às vistas burguesamente estreitas
da sociedade”. Completa o pensamento com um trecho bíblico, dizendo que eles
preferem “dar a César o que é de César, tomando para Deus o que é de Deus”. Tomada
ao Evangelho, quando Jesus foi interpelado se era correto pagar tributos, a expressão
indica que a piedade não desobriga ninguém dos deveres civis221. O apoio bíblico
reforça a convicção de que o poeta não faz, ou não deveria fazer, concessões à ordem
burguesa da sociedade.
221
No contexto religioso do cristianismo do primeiro século, há complicadores, aqui não considerados.
Segmentos politizados pregavam o não pagamento de tributos a uma potência estrangeira cuja autoridade
não era reconhecida.
222
Refere-se o narrador ao conhecido episódio bíblico de Esaú e Jacó, narrado em Gênesis 25:31-34.
223
As narrativas do Êxodo sobre o Egito têm razoável frequência. “Silvestre”, assinado pelo pseudônimo
Vitor de Paula, publicado em 1877 no Jornal das Famílias, lembra o episódio bíblico de José do Egito. O
conto trata da história de uma vocação contrariada. O pai não aceita ver o filho pintor e o entrega ao
advogado Luís Borges, morador da Gamboa, diante do mar. O advogado o estimula a pintar. O jovem de
15 anos toma à revelia a mulher bela do advogado como modelo do quadro “Vênus expulsa do céu”.
Camila, ao ver o quadro, envaidecida, atira-se ao jovem para beijá-lo. Ele recua, cai do sobrado e morre.
198
839). Neste trecho podem ser notadas manifestações de reconhecimento das
contradições humanas: “Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se
crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes” (Assis, 2008, vol. 2, p. 839).
Outro conto, “O lapso”, começa com uma epígrafe bíblica do profeta Jeremias;
foi publicado em 1883 e incluído na coletânea Histórias sem data:
199
Dr. Jeremias é, não o mediador, mas a própria tábua de salvação dos credores
impacientes em reaver seus capitais. O paciente acometido pelo lapso chama-se Tomé, o
discípulo associado à descrença, à falta de fé; ele precisa ver para crer que Jesus tinha
ressuscitado. Parece que o Tomé do conto suscitava a descrença dos credores.
Essas palavras não foram trocadas por amantes em êxtase, mas por adjetivos e
substantivos, na cabeça do Cônego Matias, que preparava um sermão. O narrador alega
que “as palavras têm sexo”. Ao casamento das palavras chamava estilo. Essa
sexualização das palavras justifica a evocação do Cântico, que percorre todo o conto.
Sílvio procura Sílvia, nos labirintos cerebrais do Cônego:
Quando estão para se encontrar, “todo o Cântico passa pelos lábios deles”. Ao se
encontrarem, caem nos braços um do outro:
Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?”, pergunta Sílvio,
como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que “é o selo do
seu coração”, e que “o amor é tão valente como a própria morte.
200
Outro conto em que há uma evocação bíblica para a composição de uma
moldura que guia o sentido da narração é “Suje-se, gordo!”, que envolve julgamento,
réu, condenação. Daí que o trecho bíblico escolhido é do “Sermão do Monte” (Mt 7.1):
“Não queirais julgar para que não sejais julgados”. O narrador, entre dois atos de uma
peça de teatro intitulada “A Sentença ou o Tribunal do Júri”, registra acontecimentos
singulares que tinha vivido, relacionados à peça teatral. Um amigo que o acompanhava
disse que era contrário ao júri por causa do preceito do Evangelho sobre os perigos do
julgamento. O narrador acrescenta que tinha atuado duas vezes num tribunal, como
presidente do Conselho. Na primeira atuação, absolveu os réus, exceto dois, o primeiro
dos quais tinha sido acusado de ter furtado pequena quantia, por meio de falsificação.
Era réu confesso e tinha agido por instrução de outra pessoa, que sugeriu o recurso por
causa de uma emergência, o que se configurava em atenuantes ao crime.
Anos depois, houve nova convocação para o narrador. A princípio não queria
atuar, por causa do preceito evangélico. Mas, como era um dever de cidadão, o chamado
foi atendido. Um dos três crimes que julgou foi cometido por um caixa do Banco do
Trabalho Honrado, responsável por um desvio de cento e dez contos de réis. O acusado
era Lopes, o mesmo colega que participara do julgamento anterior e que condenara um
réu por desvio de módica quantia. O crime, agora, estava mais do que provado pelos
documentos, por uma tentativa de fuga, por testemunhas e outros agravantes; além
disso, uma carta do réu o incriminava de forma indubitável. A fatalidade agora era
Lopes estar no banco dos réus; ele que tinha condenado outro pelo mesmo delito. A
situação fez voltar à mente do narrador o texto evangélico: “Não queirais julgar, para
que não sejais julgados”. O que antes julgava, agora era julgado.
201
condenação, mas, no fim, Lopes foi absolvido por nove votos a três. Assim termina o
conto: “O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se
gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém...”.
202
“Linha reta e linha curva” sugere um momento filosófico, inspirado em Gn
3.19224, a propósito do charuto. Diz o narrador que “o charuto é um verdadeiro memento
homo” (Assis, 2008, vol. 2, p.110). Convertendo-se pouco a pouco em cinzas, o charuto
vai lembrando ao homem o fim real e infalível de todas as coisas; é o princípio
filosófico, a sentença fúnebre que nos acompanha em toda parte.
Nascimento (2008, p. 53-63) faz coro aos que constatam que Machado foi
frequentador assíduo das Sagradas Escrituras, a propósito de um ensaio que faz sobre a
“Advertência” a Papéis Avulsos, que menciona pequeno trecho do Apocalipse em
combinação com Diderot:
Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos, e outras que o não
são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar
nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com São João e Diderot. O
evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): "E
aqui há sentido, que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me com aquela
palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns
deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão
do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo
escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso (Assis, 2008, vol. 2,
p.236).
224
Machado usa trecho da tradução latina (Vulgata latina): “Memento, homo [...]”. A tradução do
versículo é: “Lembra-te, homem, de que tu és pó, e ao pó te hás de tornar”.
203
que Machado foi um “enciclopedista do não-saber, ou seja, um arquiteto de um outro
saber, monstruoso, quando admitido em sua forma híbrida, múltipla e incontrolável, na
sua produção desmedida de sentido que é a literatura” (Nascimento, 2008, p. 62).
Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia
todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma
coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do
Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico (Assis, 2008, vol. 4, p.
320).
204
Relíquias recolhidas em romances
Nos romances é igualmente copiosa a utilização da Bíblia, como já foi frisado.
Ressurreição menciona o jogo de sedução, assunto ortodoxo, entre Betsabé e Davi
(Assis, 1985, vol. 1, p. 182; 1 Sm 11), com o devido realce à beleza da mulher.
[...] a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos
caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu,
aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funéreo, tudo isso é a dor
225
Salvador é personagem inspirado no papel bíblico-vicário de Jesus. Ele sacrifica-se em favor da filha,
renunciando ao papel de pai e à companhia dela: “de todos os sacrifícios que o coração humano pode
fazer, aceitei o maior e mais doloroso: eliminei a minha paternidade, desisti da única herança que tinha na
terra, força da minha juventude, consolo de minha miséria, coroa da minha velhice, e voltei à solidão mais
abatido que nunca” (Assis, 2008, vol. 1, p. 493) .
226
Segundo os evangelhos, Jesus morreu na hora nona, em que havia oração no templo de Jerusalém. Pelo
sistema de contagem das horas então utilizado, a hora nona correspondia a três horas da tarde.
205
crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um sublime
louvor ao nosso ilustre finado (Assis, 2008, vol. 1, p. 626).
Mais ainda, Brás tem traços que, de alguma forma, aproximam-no de Cristo: ele
tem a sua ressurreição simbólica na narração que empreende. Podemos ver nesse jogo
fantástico do post morte, um índice de reforço da condição assumida pelo narrador.
Como, depois da morte, continua ainda a falar, Brás é dotado de características divinas,
o que o torna mais parecido com Jesus.
Brás Cubas sente-se mais engenhoso do que Moisés, por narrar a morte no
começo do livro: “Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas
no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco”: a Bíblia autoriza alguém a
contar a própria morte. Schwarz (2000) vê nisso a manifestação de arbitrariedade e de
desfaçatez. Isso não deixa de ter sua razão de ser, pois comparar-se a Moisés é, no
contexto, isso mesmo, ainda mais porque há a diferença, propositalmente marcada pelo
narrador, de pô-la no começo. Brás Cubas eleva-se, ao igualar-se ao prestígio canônico
de Moisés228.
227
Dos onze, apenas um esteve presente no Calvário; trata-se do discípulo João (Jo 19.26).
228
A condição do defunto-autor não é tão simples. A dedicatória do livro é um epitáfio, o livro é um
sepulcro. Com efeito, nos primeiros capítulos já há doença, agonia, morte, enterro, decomposição. Por
que Brás é um defunto-autor? Trata-se de narrador muito sincero, coisa que o próprio Brás diz, mas,
pode-se acreditar nele? Quando ele se critica, não estaria se vangloriando? De qualquer modo, o defunto-
autor asseguraria a universalidade, por meio de uma esfera filosófico-metafísica assegurada pela presença
da morte, de Deus etc. Trata-se, contudo, de metafísica apalhaçada (Pasta Jr, 2003). Schwarz (2000) vê
nisso a indicação de uma referência principal, o enraizamento histórico do Brasil. Para esse crítico, o
defunto-autor é uma provocação. Deve-se considerar que esse ar fúnebre está no incipit, que delineia o
ponto de vista do narrador.
206
é concedida a fala (Nm 22-24). Quando o animal que conduz Brás Cubas pede para
pararem na tenda de Abraão, porque já tinham passado o Éden, o narrador menciona Jó,
o personagem bíblico que amaldiçoou o dia de seu nascimento, pois já tinha ele
experimentado tanto sofrimento: a tenda de Abraão é o sofrimento de Jó. Na
superposição de gerações e de eventos históricos, o cativeiro dos hebreus é considerado
um evento triste; em todo caso, tristes ou alegres, as gerações foram pontuais na
sepultura.
Ao falar da escola, no capítulo XIII, o narrador Brás Cubas cita uma expressão
bíblica em latim:
Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola [...] Ó palmatória, terror
dos meus dias pueris, tu que foste o compelle intrare com que um velho mestre,
ossudo e calvo, me incutiu no cérebro o alfabeto, a prosódia, a sintaxe, e o mais que
ele sabia, benta palmatória, tão praguejada dos modernos [...] (Assis, 2008, vol. 4, p.
643).
No encontro que Brás teve com Quincas Borba, narrado no capítulo LIX, há
menção ao cativeiro da Babilônia: “Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta
anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro
de Babilônia [...]”. Quincas, depois de receber uma nota de cinco mil-réis, a menos
limpa que Brás Cubas tinha, diz: “In hoc signo vinces!”. Aqui a menção reforça a
pobreza de Quincas Borba, confirmada pela descrição de sua situação. O mais
interessante, contudo, é a associação da situação de pobreza ao reconhecimento de que o
dinheiro é meio indispensável para a vitória, conforme diz Quincas Borba, numa
modificação significativa da expressão latina in hoc signo vinces, que tinha a cruz por
207
referente original. A desfaçatez atinge alto grau quando Brás Cubas diz ao companheiro
que poderia ganhar mais dinheiro... trabalhando!
Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão
com o suor do meu rosto [...] achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira
negativa deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não transmiti a nenhuma
criatura o legado da nossa miséria (Assis, 2008, vol. 1, p. 758).
[...] um traço da modernidade lançada pelo autor sobre as Escrituras: Brás Cubas lê a
Bíblia com um olhar puramente existencial, imanente, despojado de implicações
religiosas, ou mesmo morais; limita-se a citá-la quando corrobora uma sua opinião,
uma vivência, uma analogia. A autoridade que a Bíblia possa ter para ele é a que
deriva das passagens onde encontra ressonância de visão de mundo, ou as que lhe
proporcionam matéria para a criação narrativa.
208
Motivações bíblicas em Dom Casmurro
O nome Ezequiel
A glória de Deus
229
Antonio Escobar y Mendonza foi jesuíta e casuísta espanhol, atacado por Pascal (Lettres provinciales).
Machado pode ter se inspirado nele para nomear seu personagem. Magalhães Jr. (2008, vol. 1, p. 147)
acrescenta que há itens lexicais em francês ligados a esse nome: “como escobar, no sentido de
reticencioso ou cheio de restrições mentais; escobarderie, equivoco, restrição mental, interpretação
maliciosa; e escobarder, agir com dobrez ou com malícia”.
230
A descrição suscitou posteriores desdobramentos na tradição mística judaica que, por meio de ascese
qualificada, procura ver a glória de Deus, sobretudo a imagem do veículo em que Deus está (Ez 1.15-24);
também tem realce a shekinah, termo hebraico para a designação de glória. Jonas Machado (2009) diz a
respeito: “Mercavá [...] uma palavra hebraica que significa ‘carruagem’, aludindo a uma experiência
visionária da glória de Deus numa espécie de ‘trono-carruagem’ [...] foi bem cedo ligada às visões de
Ezequiel [...] O termo está geralmente ligado a um tipo de misticismo que tem na visão de Ez 1 uma fonte
primária como seu texto mais importante, mas que recebeu desenvolvimento na literatura mística judaica
posterior, de modo especial na apocalíptica”.
209
monte que está ao oriente da cidade. Depois, o Espírito de Deus me levantou e me levou
na sua visão à Caldéia, para os do cativeiro [...] (Ez 11.23-24)”. Esse abandono se deve
ao pecado do povo, a idolatria. No final do livro, a glória do Senhor volta ao seu
santuário (Ez 43.2, 4, 7). Glória é o nome da mãe de Bentinho. A personagem
relaciona-se com a manutenção dos valores da religião, por ela prezada, sendo devota
guardiã das tradições que garantem ao clã familiar a manutenção da glória de que
gozam. A condição social da família é, de certa forma, gloriosa e, no arranjo social,
sacralizada pela religião. A piedade religiosa é um importante elemento do romance.
Tanto assim que Dona Glória promete consagrar o filho a Deus.
210
apontar para a dimensão de humanidade nela contida, aciona-se o jogo de indagações e
incertezas que daí se desencadeia231.
231
Ainda como parte de jogo com a intertextualidade bíblica, José Dias diz, parodiando o Evangelho de
João, no capítulo XCIX “O filho é a cara do pai”: “Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!”
(Assis, 2008, vol. 1, p. 1.032).
232
Ezequiel (23) fala de duas meretrizes irmãs; Oolá, a mais velha (Samaria) e Oolibá, a mais nova
(Jerusalém). Interessante também é o caso de Oseias (capítulo 1). Ele se casa com uma prostituta, que
simboliza o povo. A prostituta representa os pecados do povo, associados à idolatria; daí a associação à
infidelidade.
233
Isso foi apropriado pelo cristianismo, também; no Novo Testamento, a relação entre Deus e a Igreja é
descrita em termos de casamento; essa aliança conjugal, embora espiritualizada, interferiu na história da
interpretação do Cântico dos Cânticos, que passa a ser entendido de forma alegórica.
211
Assim, foste ornada de ouro e prata; o teu vestido era de linho fino, de seda e de
bordados; nutriste-te de flor de farinha, de mel e azeite; eras formosa em extremo e
chegaste a ser rainha. Mas confiaste na tua formosura e te entregaste à lascívia,
graças à tua fama; e te ofereceste a todo o que passava, para seres dele. Tomaste dos
teus vestidos e fizeste lugares altos adornados de diversas cores, nos quais te
prostituíste; tais coisas nunca se deram e jamais se darão. Tomaste as tuas jóias de
enfeite, que eu te dei do meu ouro e da minha prata, fizeste estátuas de homens e te
prostituíste com elas234 (Ez 16.13-17).
Dom Casmurro mostra algo parecido. Capitu era pobre e, quando se casou com
Bento Santiago, foi coberta de joias e roupas; conforme o capítulo CII “No céu”,
quando se casaram e chegaram ao “ninho de noivos”, menciona-se a primeira epístola
de Pedro235. No final do capítulo, Bento Santiago diz que a esposa dele “teria sempre as
mais finas rendas deste mundo”.
O exílio
234
O poema “Tragédia brasileira”, de Manuel Bandeira, apresenta similaridades com uma relação
amorosa desse tipo. Misael “funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade”, conheceu Maria Elvira,
“prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e o dentes em petição de miséria”. O
namorado, então, “instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura [...] Dava tudo
quanto ela queria”. Ocorre que “Maria Elvira se apanhou de boca bonita” e arranjava sempre novos
namorados. Misael, que “não queria escândalo” mudava de casa, vivendo assim por três anos, até que a
tragédia se consuma: “Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros” (Bandeira,
1974, p. 108-109). Os cuidados amorosos do amante para com a amada tornam-na atraente para olhos de
outros amantes, dão a ela competência para a sedução de outros amantes.
235
“As mulheres sejam sujeitas a seus maridos [...] Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos riçados
ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração [...] Do mesmo modo, vós, maridos,
coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da
vida [...]”. Esse trecho reforça a submissão feminina, condicionada, inclusive, à inferioridade econômica,
uma importante isotopia temática do livro.
236
Sob o ponto de vista estrutural, o papel de Dom Casmurro é o mesmo de Deus. Ele sanciona
inapelavelmente a esposa, como juiz soberano, sem dar a ela oportunidade de defesa.
212
espada”. Essa sanção ocorre, quase de idêntica forma, em Dom Casmurro. O capítulo
CXLI, “A solução”, narra o exílio a que Capitu foi submetida. Conforme Petit (2005, p.
150), “a Suíça, terra do Protestantismo, é o lugar ideal para acolher a mulher perjura”.
A sedução física
213
argumento, para o narrador, o que reforça a convicção de suposto adultério e dos
vínculos com Ezequiel.
A infância
Juramos novamente que havíamos de casar um com outro, e não foi só o aperto de
mão que selou o contrato, como no quintal, foi a conjunção das nossas bocas
amorosas... [...] Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro
fiquei, e puro entrei na aula de S. José, a buscar de aparência a investidura
sacerdotal, e antes dela a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu
(Assis, 2008, vol. 1, p. 985).
Capitu esqueceu-se de uma canção de infância, certa vez. Petit (2005, p. 155)
indica que até isso pode ser lido em Ezequiel. O episódio está narrado no capítulo CX,
“Rasgos da infância”, em que Bento pede para Capitu tocar ao piano a toada da
infância; ela diz que não se lembrava, nem da música nem das palavras. As palavras
estão narradas no capítulo XVIII,“Um plano”:
214
A casa nova, mandada construir por Bento Santiago, pode ter relação com o
templo novo do livro bíblico, que é purificado, no final, com o retorno a ele da glória de
Deus. O profeta dá indicações de que o modelo devia ser medido; a reprodução devia
ser acompanhada de uma nova disposição de fidelidade:
Tu, pois, ó filho do homem, mostra à casa de Israel este templo, para que ela se
envergonhe das suas iniquidades; e meça o modelo [...] faze-lhes saber a planta desta
casa e o seu arranjo, as suas saídas, as suas entradas e todas as suas formas; todos os
seus estatutos, todos os seus dispositivos e todas as suas leis; escreve isto na sua
presença para que observem todas as suas instituições e todos os seus estatutos e os
cumpram (Ez 43.10-11).
O modelo não é apenas espacial, mas espiritual. Em todo caso, ao que tudo
indica, esse novo templo tem vinculação com a reprodução da casa promovida por
Bentinho. Até as pinturas que havia na casa de Bento foram reproduzidas. Pinturas
havia na parede do templo, também vinculadas à idolatria: “Entrei e vi; eis toda forma
de répteis e de animais abomináveis e de todos os ídolos da casa de Israel, pintados na
parede em todo o redor. Setenta homens dos anciãos da casa de Israel [...] estavam em
pé diante das pinturas, tendo cada um na mão o seu incensário” (Ez 8.7-12). Deve-se
notar que, na casa nova, depois do exílio de Capitu, é Bento Santiago quem a profana,
sob o ponto de vista religioso, pois é lá que ele recebe mulheres.
215
da arquitetura. Dom Casmurro, além de ter mandado construir uma nova casa, com
figuras ao sabor clássico, tem essa semelhança. Conforme Costa (1995, p. 20),
“Augusto, que muito desejou um filho homem para sucedê-lo, não o conseguiu e sofreu
muito buscando encontrar alguém; Dom Casmurro que teve um filho homem, rejeitou-
o, afastou-o e desejou sua morte, mesmo com Escobar morto”.
Nero foi órfão de pai muito cedo como Dom Casmurro. Passou à História como
assassino e suicida, instintos que assaltaram o narrador machadiano.
Costa (1995, p. 23) avalia que a evocação desses quatro personagens provoca
uma relação de tensão paródica com o discurso histórico: “A dualidade instável, sério-
cômica de seu perfil moral e emocional, abala, questiona e põe em dúvida toda uma
tradição de valores heróicos”. Essa relação interdiscursiva com a História indica uma
forma particular de apreensão da tradição em geral, e pode ser ampliada para a
incorporação de outras fontes, conforme aponta Costa (1995, p. 40), nestas
considerações:
[...] Machado de Assis mimetiza, de forma dessacralizadora, todo um referencial de
cultura do Ocidente, atingindo também a literatura, sobretudo com Otelo, de
Shakespeare. A apropriação desses discursos não é feita com a intenção de uma
verossimilhança que os faça reconhecer pela simples reduplicação, mas, ao
contrário, a combinação e as transformações por que passam tais textos originais ao
de tal teor deformante e estético totalmente novo, singular e estranho às “verdades”
dos intertextos nele concentrados. Cruzamento paródico de uma série de referências
externas, o narrador da obra é uma soma complexa de nomes e marcas heterogêneas
múltiplas que sobressaem nas ações de cada uma das etapas de sua vida.
A cidade de Tiro
216
A próspera cidade marítima de Tiro sugere vínculos temáticos com Escobar,
pelos seguintes elementos: mar, comércio, formosura e esplendor. Dos capítulos 26 a 28
de Ezequiel há uma série de profecias contra Tiro e contra o seu rei. Em 27.32, diz-se
que Tiro seria reduzida ao silêncio no meio do mar: “Levantarão lamentações sobre ti
no seu pranto, lamentarão sobre ti, dizendo: Quem foi como Tiro, como a que está
reduzida ao silêncio no meio do mar?”. A queda é associada ao sucesso
desacompanhado da fidelidade a Deus: “Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em
que foste criado até que se achou iniquidade em ti. Na multiplicação do teu comércio, se
encheu o teu interior de violência, e pecaste [...]” (28.15-16). Escobar era formoso, tinha
no comércio a vocação e profissão e gostava do mar. Foi no mar que morreu, desafiando
o perigo. No capítulo CXVIII, “A mão de Sancha”, tudo se precipita quando o narrador
topa com a palavra invencível. Trava-se o seguinte diálogo:
Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas
imediações de Jerusalém, onde os dous amigos da universidade lhe levantaram um
túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego: “Tu eras perfeito
nos teus caminhos”. Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da
sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que ele levava; pagaria o triplo
para não tornar a vê-lo (Assis, 2008, vol. 1, p. 1071).
217
Ciúmes
Há, ainda, outro elo de aproximação entre Dom Casmurro e Ezequiel: o ciúme, a
principal motivação passional do narrador do romance. Em Ezequiel é dito que o ciúme
divino desencadeia a sanção correspondente237. Deus tem ciúme de outros deuses, seus
rivais, como um marido (Bento Santiago) tem de supostos rivais (Escobar). Ezequiel
(8.3) confirma essa afirmação: “[...] o Espírito me levantou entre a terra e o céu e me
levou a Jerusalém em visões de Deus, até à entrada da porta do pátio de dentro, que olha
para o norte, onde estava colocada a imagem dos ciúmes, que provoca o ciúme de
Deus”. As consequências desse ciúme são, no início, o castigo; posteriormente,
contudo, ele seria aplacado, conforme promessa do próprio Deus: “Desse modo,
satisfarei em ti o meu furor, os meus ciúmes se apartarão de ti, aquietar-me-ei e jamais
me indignarei” (Ez 16.42).
Saindo da sepultura
237
A paixão do ciúme, atribuída a Deus, é uma maneira peculiar de descrever com atributos humanos a
divindade, fenômeno chamado de antropomorfismo. Desdobramentos teológicos à parte, interessa a
relação que existe entre o ciúme de Deus e o de Bento, em combinação com os demais pontos indicados.
218
desconhecido da literatura bíblica. Podemos citar o caso de Ana, a mãe de Samuel.
Estéril, ela pede um filho, prometendo devolvê-lo a Deus: “E fez um voto, dizendo:
SENHOR dos Exércitos, se benignamente atentares para a aflição da tua serva [...] e lhe
deres um filho varão, ao SENHOR o darei por todos os dias da sua vida [...]” (1Sm
1.11). Ana foi atendida e teve um filho a quem chamou de Samuel.
O capítulo IX, central para a economia da narrativa, tem, no final, sutis alusões.
A propósito da divisão dos direitos autorais da ópera da vida, que recebem
pontualmente o poeta e o músico, há injustiça ou proporção inadequada. Para justificá-
la, um trecho bíblico serve de apoio: “‘Muitos são os chamados, poucos os escolhidos’.
Deus recebe em ouro, Satanás em papel”. Na continuação do diálogo de Bento com o
tenor italiano, à música se recorre para rematar a explicação sobre a teoria da ópera:
“Tudo é música, meu amigo. No princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc. Este cálix (e
enchia-o novamente), este cálix é um breve estribilho. Não se ouve? Também não se
ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma ópera [...]”. A sequência “No
princípio era o dó, e do dó fez-se ré, etc” é decalcada no começo do Evangelho de João:
“No princípio era o verbo [...] e o verbo se fez carne”. Também cálix tem grande
densidade bíblica, devido à narrativa da paixão, em que Jesus pede para o Pai afastar o
cálice da morte (Mt 26.3; Mc 14.36). Esse é o tom com que o capítulo termina.
219
narrativo que antecipa a punição de Capitu. Mas falta a cura: ou será a punição a própria
cura? O capítulo seguinte, “Os vermes”, é intrigante, por causa do título. Trata-se de
uma expansão das ideias de punição e cura, agora com referência a Aquiles, que
também feriu e curou. A experiência se repetiria na vida de Bento, de forma invertida:
ele se sentiria ferido; ele prescreveria a cura.
O capítulo CXXXIII, intitulado “Um ideia”, narra eventos que ocorrem numa
sexta-feira: “O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas também pode ter sido propósito;
fui educado no terror daquele dia; ouvi cantar baladas, em casa, vindas da roça e da
antiga metrópole, nas quais a sexta-feira era o dia de agouro” (Assis, 2008, vol. 1, p.
1061). Nesse capítulo, de forma esquiva, fala-se em “morte”, por acaso ou
propositadamente. O desdobramento do capítulo seria o impulso para o suicídio ou
220
homicídio não praticado, porque Bento Santiago, como o jovem Bentinho, tinha ideias
sem pernas e sem braços238.
No Capítulo XXXVI, “Idéias sem Pernas e Idéia sem Braços”, há duas citações
do Cântico dos Cânticos, no mesmo parágrafo. Casmurro descreve uma intenção
frustrada de abraçar e beijar a namorada. O livro bíblico é referido como um manual de
sedução, com indicações, inclusive, de como usar os lábios e as mãos:
Era ocasião de pegá-la, puxá-la e beijá-la... Ideia só! ideia sem braços! Os meus
ficaram caídos e mortos. Não conhecia nada da Escritura. Se conhecesse, é provável
que o espírito de Satanás me fizesse dar à língua mística do Cântico um sentido
direto e natural. Então obedeceria ao primeiro versículo: “Aplique ele os lábios,
dando-me o ósculo da sua boca”. E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes,
bastaria cumprir o vers. 6.° do cap. II: “A sua mão esquerda se pôs já debaixo da
minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois”. Vedes aí a cronologia dos
gestos. Era só executá-la; mas ainda que eu conhecesse o texto, as atitudes de Capitu
eram agora tão retraídas, que não sei se não continuaria parado (Assis, 2008, vol.
1, p. 971).
São citados os versículos 1.2 e 2-6, nesse trecho do Cântico, que aparece
novamente no capítulo CI, “Céu”:
Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho, nada mais natural a um ex-seminarista
que ouvir por toda a parte latim e Escritura. A verdade que Capitu, que não sabia
Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: “Sentei-
me à sombra daquele que tanto havia desejado”. Quanto às de S. Pedro, disse-me no
dia seguinte que estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que
jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais
finas rendas deste mundo (Assis, 2008, vol. 1, p. 1.034).
Trata-se, agora de Ct 2.3, que serve para reforçar não só a realização do desejo
de Capitu, mas também, principalmente, a superioridade social do marido e a força do
mundo patriarcal, por causa do complemento da Primeira Epistola de Pedro, citado
imediatamente antes. As portas do céu eram agora a antecâmara do gozo conjugal239:
238
Já foi observado que tanto a morte de Brás Cubas quanto a de Jesus ocorreram numa sexta-feira (dia
aziago).
239
A sequência do capítulo diz que vieram os Cânticos: “Depois, visitamos uma parte daquele lugar
infinito. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para
tanto”. Parece que Cântico dos Cânticos é utilizado pelos narradores machadianos como metáfora para
indicação da conjunção sexual. No trecho citado, pode haver uma alusão a 1 Co 13, pelo uso desta frase
221
S. Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois
de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: “As
mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos
cabelos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração...
Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a
vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida...” (Assis, 2008, vol. 1,
p. 1034).
“nem a língua humana possui formas idôneas para tanto”. O capítulo CI “No céu” diz que chovia no dia
do casamento de Bentinho. Também chovia no enterro de Brás Cubas.
240
Conforme Romanos 4 e Hebreus 11.8-19
222
tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que
aprender de ti’. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da
Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro
da casca” (Assis, 2008, vol. 1, p. 1.072). O argumento final, contudo, nega que os
ciúmes sejam a causa da tragédia; a narração é finalizada com o argumento construído
ao longo do livro: “se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma
estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. “Mas eu creio que não” é uma
expressão que põe em xeque o preceito bíblico citado, porque indica a responsabilidade
do marido; o narrador machadiano desvia a responsabilidade da tragédia para a mulher,
daí a necessidade de escrever o livro.
No fim do livro, o filho arqueólogo viaja por terras bíblicas (Grécia, Egito,
Jerusalém), experimentando a sua diáspora e por lá morre241. O pai deseja a lepra ao
filho. Até isso tem motivação bíblica, pois a lepra é uma doença que aparece com
razoável destaque nos escritos bíblicos.
A lâmpada acendida
Sobre a mesa do velho, as largas folhas
Alumia de um livro. O máximo era
241
É sugestiva a ocupação, principalmente pelo valor etimológico; as coisas antigas, as primeiras coisas, o
começo. E no começo está a morte, experimentada no centro do mundo, nas terras sagradas das
Escrituras.
223
Dos livros todos. A escolhida lauda
Era a do canto dos cativos que iam
Pela ribas do Eufrates, relembrando
As desgraças da pátria. A sós, com eles,
Suspira o velho aquele salmo antigo: (Assis, 2008, vol. 3, p. 525)
224
Filha de Babilônia, que pecaste,
Abençoado o que se houver contigo
Com a mesma opressão que nos mostraste!
Essa tradução em forma poética é mais uma evidência do fascínio que a Bíblia
em geral, e alguns trechos em particular, exerceram em Machado, para composição de
seus escritos, em diversos gêneros, com intenção e efeitos diversificados.
225
CONCLUSÃO
A Bíblia foi inspiração para Machado. Antes de fornecer temas, figuras e valores
com os quais recheou sua criação ficcional, serviu ela também para motivar o autor a
criticar o capricho dos poderosos, denunciar a injustiça, defender a liberdade religiosa.
Ele combateu o imperialismo, inspirado nos profetas e no Êxodo. Embora com algumas
diferenças, esse procedimento lembra bem a atuação dos profetas clássicos da Bíblia
Hebraica.
Renan foi importante para indicar princípios críticos de leitura bíblica. O uso de
pseudônimos biblicamente motivados é indício de que alguns personagens da história
bíblica foram inspiração para a atividade liberal do escritor. Muitos escritos assinados
por pseudônimos bíblicos, adotados em anos anteriores à Abolição, versam sobre a
escravidão. A liberdade, direito fundamental e inalienável de todo ser humano, pode ser
lida na Bíblia. Essa militância abolicionista não teve arroubos de explícito engajamento
político ou partidário, talvez pela descrença em utopias. Se defendeu a abolição dos
escravos de forma convicta, nas injunções históricas em que ocorreu, Machado não
acreditava numa Abolição como ideal. Esse pessimismo em relação ao futuro se deve,
em grande parte, a esse olhar para o começo mítico, fonte de desencontros, de lágrimas,
de logro. Há nessa volta o encontro com o desencanto que bem se vincula ao
Eclesiastes, no que diz respeito à eterna mesmice: nada há de novo sob o sol. Voltar às
origens míticas, em Machado, não é encontrar o firme fundamento religioso ou histórico
de nossa civilização; ao contrário, é mergulhar na areia movediça da dúvida, no pântano
das incertezas, na eterna contradição da natureza humana.
226
dizem algo dos personagens e dos narradores a que se ligam, quase sempre, no caso de
Machado, de forma enviesada. Os de origem bíblica recuperam características
relevantes em novo contexto, como é o caso destes: Eloi, Salvador, Jeremias, Davi,
Esaú, Jacó, Manduca, Ezequiel, etc. Isso vale também para as nuances onomásticas de
outros personagens não diretamente vinculados à Bíblia: Capitu, Bento Santiago,
Escobar, Plácida, Prudêncio, dentre outros.
227
normalmente projetado para o início dos tempos, a projeção ufanista de perfeição dos
seres humanos não encontra eco nos escritos machadianos.
228
de presença polifônica, acentuada no exemplário apresentado. Quanto à configuração
das citações bíblicas de Machado, servindo-nos de Bakhtin, podemos dizer que são do
tipo em que o discurso citado se dissolve no contexto em que é retomado. Esse é o caso
em que o narrador se despoja de autoritarismo, assumindo uma posição fluida. Está
presente a tendência para mesclar o discurso citado com as réplicas e os comentários do
autor (Bakhtin, 1979, p.139).
229
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