Artigo: Memória e Esquecimento - A História Da Estrada Do Congo No Morro Grande
Artigo: Memória e Esquecimento - A História Da Estrada Do Congo No Morro Grande
Artigo: Memória e Esquecimento - A História Da Estrada Do Congo No Morro Grande
Introdução
Em São Paulo, uma extensa via conhecida na zona noroeste tem um passado que remete a uma
nomenclatura intrigante: Estrada do Congo. Este texto explora o mistério em torno da origem
desse nome e sua relevância histórica para a região. Rastreando as raízes do "Congo",
examinamos relatos orais, registros históricos e símbolos culturais que resistem ao apagamento
e se destacam como vestígios significativos de uma memória que se recusa a desvanecer.
Um longo trajeto que liga a Vila São Vicente, no distrito da Freguesia do Ó, à Parada de Taipas, no
distrito do Jaraguá, é a Avenida Elísio Teixeira Leite, um trajeto sinuoso que em sua totalidade
leva uma caminhada de 2h a pé. Até 19591 este trecho era denominado como Estrada do Congo,
e antes disso, como Estrada de Rodagem que ligava Freguesia do Ó a Juqueri2. Pouco se tem
registro sobre a história desta grande avenida, mas uma indagação sempre vem à tona quando
nos referimos à ela: por que se chamava Estrada do Congo? Bom, pela ausência de fontes
documentais sobre a região, principalmente quando nos referimos ao Morro Grande, recorremos
sempre aos relatos orais. Um deles é o registro que realizei de Benedito Camargo, importante
memorialista e fundador do Portal do Ó:
“[...] o local era, digamos, feito o loteamento. As ruas não tinham asfalto e a rua principal
era a antiga Estrada do Congo, atual Elísio Teixeira Leite. A Estrada do Congo já recebeu
esse nome porque os trabalhadores escravos na época, no início aqui da Freguesia do Ó,
eles fugiam pr’um local lá pro lado da Parada de Taipas que eles se escondiam, que era
chamado o Quilombo do Congo. Então ganhou esse nome. E essa estrada passava
exatamente ali entre o cafezal, aonde situa atualmente o prédio antigo da capela [Santa
Clara de Assis], e aonde existia essa olaria [de Manoel Alves de Oliveira, tio de Camargo]
que ali então se formou a Vila Iara” (CAMARGO, 2022).
1
Oficializado através do Decreto nº 4.568, de 15 de janeiro de 1960.
2
Escritura de Instituição de Servidão, lavrada em 17/9/1948, nas notas do 11º Tabelião, Livro 4B, Folha 156.
1
O relato, que ainda carece de mais fontes documentais sobre a nomenclatura da via, se
complementa com a história da Freguesia de Nossa Senhora do Ó, contada por Máximo Barro
(1977) em sua monografia, e que narra a fuga de escravizados para os quilombos em regiões
próximas como algo recorrente: “Os escravos de que conseguiam ludibriar a vigilância,
refugiavam-se a princípio nas cercanias da cidade” que complementa que “Em grupos podiam
oferecer maior resistência aos captadores. Os quilombos solidificavam-se na clandestinidade que
chega até ao século XIX”.
Agora temos dois pontos de análise: a Estrada do Congo e o Córrego do Congo. Qual seria a
relação entre eles? Essa nomenclatura mimética se iniciou por qual?
De uma forma tímida, temos o Córrego do Congo persistindo no Morro Grande, com sua
nascente que se inicia na área da antiga Pedreira do Vega, se estende canalizado ao longo da Rua
Xavier da Silva Ferrão, se encontra com o Ribeirão Verde, na Avenida Fuad Lutfalla, até desaguar
no Rio Tietê. Uma citação importante que sugere uma explicação sobre a denominação deste
córrego está contida na publicação de Allan da Rosa (2021), em “Águas de Homens Pretos”:
Ainda na Brasilândia também ressoa o glorioso Samba do Congo, no Jardim Vista Alegre,
em homenagem ao Rio Congo que cortava a fazenda também assim intitulada e escoava
por onde hoje é a avenida Elísio Teixeira Leite. Que mistério se chamar assim… e como
um nome vibra e mantém fundamentos (ROSA, 2021)
A referida fazenda é o Sítio do Congo, propriedade de José Alves de Oliveira, um dos sítios
responsáveis pela produção da famosa aguardente Caninha do Ó, símbolo da Freguesia do Ó3,
além de produzirem tijolos com a marcação “J. ALVES”. A partir de uma série de loteamentos que
se deu do final de 1940 a 1970, este sítio, em conjunto do Sítio Morro Grande, deu origem à
região do Morro Grande, conhecida por ter sediado na região a Pedreira Morro Grande, cujo
3
Rótulo da Caninha do Ó produzido pelo Sítio do Congo. Disponível em:
https://www.facebook.com/photo?fbid=1082894038400098&set=basw.Abr48lXHbqD1KMzWnELdcN51cIvndrqE2EK
OOP5u7Txoyq1SC_8fUux02Eou0WXdCOjOFOOQ8GjqGqpKMOMNfroA_RWTVzrZ1dsDrLOd1REsq6Kug2IfjT5HUCrfj4z2
9r-bymsGeu-hAPbM6UEN6AKv2ZK924juxa-lxDqlzaC8RQ&opaqueCursor=AbrGpxez_KwLshvQdHhR3k_S-WAKIZYcItw
x4-BGLfekPjX5vpcvGCR82gZNcdU6Q5_87cY5evpMrC4uwx46xTKk6EOnXjTQdfGZ8uqmdONrfvpmAbDGBnm8RqSEsjg
QtrbiJCW26TkTkyIU9t5JqHIXYohv9Te2y1wiEBrN8Up4G0WwUre6SuW0P7orQnPJUqHOrgLzTlvM9UrtJJE5QaSkgs4L7
SSgQlaX-1nuUhw-tkVhdbfjuLsB6zTh2nG80f7YmYex9-2Jc0ISHVinuWgi4xUViztKA60mx6GtHCGT4PRUze9r65v-RBQmr
_sSvG3uYMLcvExpgROjrR-crrf6FKpgcQd1rECENaUhf7BdE-UCtVhF-xHLebpQq8xg9Jrg4qlGYCzMYa1Dh9C_nttqvfjluvQ
dKM0ssgko--FTEWeOoBL-V_ZT9QasClN-nqSfGKAxNFfRwoAZMIy99eyQEO8HwrCg6VBQSkqZRqBrEaHYH20NFe7X4d
WcN-titIimyqv83schKw5zOJT58AbfsKkws5dXmfYKg0-QBnXb6dK1qHYVJ8BV1fEtSlUk-PYmXU6-AcwW7ZYkJyVxXVIEn
Y89cBjMPMCouYzJhDqTEAtUArtr1HF-93bY5PeLKAJSrKNPDymQWxkxb2bF2fLCaIaDuGRuYo1IzIpIfuO_1POmdBbu33P
388JXpXTZjpBA0jTihb89qMx9qhS0uNIrUBhezCvJLISbYjjZwfNq0UYbehfGPm0dWaiA5ozUgvE. Acesso em: 14 out.
2023.
2
primeiro proprietário foi o serrano Elysio Teixeira Leite, e um dos responsáveis pelo
parcelamento de solo das glebas de Antonio Morais Pinto.
De todas as tentativas de justificar o surgimento do “Congo” nos nomes que compõem o nosso
território, talvez a mais assertiva é a do Samba do Congo, levando em consideração sua
simbologia: “Para chegar ao local naquela época, havia apenas um caminho: a Estrada do Congo.
Foi ao descobrir a história da região e entender que o samba de raiz é, também, um caminho
único, nós chegamos ao nome Samba do Congo” (FORTE, 2016)4. O Samba do Congo é um samba
de roda que acontece religiosamente toda às terças, dando voz a compositores e cantores da
região, cultivando a cultura do samba não apenas no território, mas em toda a cidade.
A Praça da Macumba recebeu seu nome devido à sua localização estratégica em uma
encruzilhada que, por muito tempo, serviu como um espaço para a realização de práticas, rituais
e cerimônias relacionadas a religiões afro-brasileiras. Embora tenha experimentado mudanças
ao longo dos anos, tanto em sua morfologia quanto em seus usos, a praça continua a ser um
local central e essencial na formação do bairro. No entanto, sua antiga nomenclatura foi
sistematicamente ignorada, o que reflete o desafio de preservar e valorizar as práticas e as
representações sociais que moldaram a região antes dos loteamentos, um período que
frequentemente carece de documentação e reconhecimento, apesar de sua importância para a
comunidade local.
4
Samba do Congo reúne gerações em defesa do samba de São Paulo. Disponível em:
https://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2016/06/07/samba-do-congo-reune-geracoes-em-defesa-do-samba-de
-sao-paulo.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 14 out. 2023.
5
Oficializada pelo Decreto nº 7.903 de 15/01/1969.
3
Considerando estas reflexões, fica evidente que os símbolos de resistência na região têm um
valor profundo, preservando aspectos vitais de sua história e cultura, como um pequeno trecho
da Estrada do Congo, situado na extremidade da região da Parada da Taipas, que continua como
um vestígio resiliente desse passado, um lembrete tangível da importância geográfica e
simbólica que essa estrada já teve para a comunidade.
Além disso, a preservação de uma nascente e de uma área não canalizada do Córrego do Congo,
contida na área do futuro Parque Municipal Morro Grande, é outro exemplo fundamental da
herança da região. Esses recursos naturais, alterados parcialmente pela urbanização,
representam um elo precioso com o passado, uma fonte de vida que ecoa a vitalidade das
culturas que se desenvolveram em torno deles.
Além disso, a procissão de Exu, que ocorre há trinta anos durante o feriado de Corpus Christi,
liderada pelo Pai Armando, oferece um contraponto interessante à narrativa da mudança. Este
evento, que termina de forma simbólica em frente à Capela Santa Clara de Assis, abandonada
pela pedreira há cerca de 40 anos, é um exemplo poderoso de ocupação e ressignificação. A
capela, outrora esquecida, agora é um local de celebração e espiritualidade, lembrando-nos da
resiliente espiritualidade das comunidades que habitam a região. Juntas, essas manifestações
de resistência e preservação se entrelaçam para criar uma tapeçaria rica de memória e
identidade na região do Morro Grande.
Considerações Finais
Descobrimos que, apesar das tentativas de apagamento e da mudança de nomes ao longo dos
anos, símbolos como o pequeno trecho preservado da Estrada do Congo, o Córrego do Congo, o
Samba do Congo e a procissão de Exu continuam a preservar a rica herança e a identidade da
região. Esses vestígios de memória servem como lembretes tangíveis de um passado que
moldou profundamente a comunidade e que resiste tenazmente ao esquecimento.
Essa busca por compreensão e preservação da história do Morro Grande ilustra a importância de
honrar as raízes culturais e as narrativas que moldam nossas comunidades. À medida que
4
exploramos o passado, também lançamos um olhar para o futuro, reconhecendo o poder das
memórias compartilhadas na construção de uma identidade coletiva forte e resiliente.
Referências Bibliográficas
BARRO, Máximo. Nossa Senhora do Ó. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo,
Secretaria Municipal de Cultura, 1977.
CAMARGO, Benedito. Vila Iara, a Pedreira e as pedras do caminho. São Paulo: Portal do Ó, 14
out. 2023. Disponível em: http://www.portaldoo.com.br/album/alb002/galeria011.html. Acesso
em: 14 out. 2023.
FORTE, Bárbara. Samba do Congo reúne gerações em defesa do samba de São Paulo. São
Paulo: BOL, 7 jun. 2016. Disponível em:
https://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2016/06/07/samba-do-congo-reune-geracoes-em-d
efesa-do-samba-de-sao-paulo.htm. Acesso em: 14 out. 2023.
ROSA, Allan. Água de Homens Pretos: Imaginário, Cisma e Cotidiano Ancestral (São Paulo,
séculos 19 ao 21). Orientador: Marcos Ferreira-Santos. 2021. Tese (Doutorado em Cultura e
Educação), São Paulo, 2021. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-30112021-115755/publico/ALLAN_SA
NTOS_DA_ROSA_rev.pdf. Acesso em: 14 out. 2023.
STALMANN, Vitor. Centro de Artes Urbanas: Reabilitação do Antigo Cinema do Morro Grande.
Orientador: Márcio Vinicius Reis. 2023. Trabalho Final de Graduação. Bacharelado em
Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, 2023. Disponível em:
https://repositorio.animaeducacao.com.br/handle/ANIMA/36451. Acesso em: 14 out. 2023.
STALMANN, Vitor. Entrevista com Benedito Camargo. Histórias Morro Grande, São Paulo, 25
ago. 2022. Disponível em:
https://drive.google.com/drive/folders/1-sN6HbtXpd8ZcDfgrorCS_QFWkk4LI13?usp=drive_link.
Acesso em: 14 out. 2023.