Sem Tempo A Perder - Ursula K. Le Guin
Sem Tempo A Perder - Ursula K. Le Guin
Sem Tempo A Perder - Ursula K. Le Guin
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Para Vonda N. McIntyre, com carinho
Sumário
Capa
Folha de rosto
Dedicatória
Introdução
Uma nota no início
OS ANAIS DE PARD
Escolhendo um gato
Escolhida por um gato
OS ANAIS DE PARD
A confusão
Pard e a máquina do tempo
OS ANAIS DE PARD
Uma educação incompleta
Uma educação incompleta, continuada
Versos mal escritos para meu gato
Boquilinguabertamente,
KAREN JOY FOWLER
Uma nota no início
Outubro de 2010
2. Le Guin faz vários trocadilhos aqui: com log, um tronco caído; bog,
pântano ou brejo; blob, uma gota de algo denso ou viscoso; e,
possivelmente, bogey, um termo coloquial para meleca. [N. de T.]
Parte um
Ultrapassando os 80
No seu tempo extra
Outubro de 2010
Novembro de 2010
Maio de 2013
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***
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Outubro de 2014
Janeiro de 2012
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1. Le Guin faz aqui um jogo de palavras entre o nome escolhido para o gato,
Pard, e o termo partner, que significa “parceiro” em inglês. [N. de E.]
Escolhida por um gato
Abril de 2012
Março de 2011
Outubro de 2011
Dezembro de 2013
1. Disponíveis em
http://www.ursulakleguinarchive.com/Catwings5/index.html e
http://www.ursulakleguinarchive.com/Catwings6/index.html. [N. de T.]
Ter meu bolo
Abril de 2012
Ah!
Entendi!
É um bom provérbio!
E eu não sou uma esquizofrênica paranoica!
Mas parecia curioso que eu não tivesse chegado antes
ao significado de “manter” do verbo ter. Isso também
intrigou-me por um tempo e finalmente cheguei a este
ponto:
Para começar, parece que os verbos estão na ordem
errada. Afinal de contas, você precisa ter o bolo antes de
comer. Eu poderia ter entendido o ditado caso ele fosse
“Você não pode comer o bolo e também tê-lo”.
E então, outro tipo de confusão, também ligada a ter.
No dialeto inglês da Costa Oeste dos Estados Unidos com
o qual cresci, “tive bolo na festa” era o modo como
dizíamos “comi bolo na festa”. Então, “você não pode ter
o bolo e também comê-lo” tentava dizer que eu não
podia comer meu bolo e comê-lo também…
E ao ouvir isso dessa forma quando criança, pensei:
“Ahn?”, mas não disse nada, porque não há maneira,
nenhuma maneira possível, de uma criança perguntar
sobre tudo que os adultos falam que a faz pensar “Ahn?”.
Então só tentei descobrir. E quando fiquei presa ao
ilógico bolo que você tem sendo o bolo que você não
pode comer, nunca me ocorreu que se tratava de
acumular versus devorar, ou da necessidade de escolha
quando não há meio-termo.
Suponho que você já tenha tido bolo o bastante. Sinto
muito.
Mas, veja, esse é o tipo de coisa em que penso muito.
Substantivos (bolo), verbos (ter), palavras, e os usos e
maus usos das palavras, e os significados das palavras, e
como as palavras e seus significados mudam com o
tempo e com o lugar, e as derivações das palavras a
partir de palavras mais antigas ou de outras línguas – as
palavras me fascinam como os besouros Boisea trivittata
fascinam meu amigo Pard. Pard, a essa altura, não tem
permissão para sair, então tem que caçar dentro de casa.
Dentro de casa não temos, a essa altura, ratos. Mas
temos besouros. Ah, sim, meu Deus, temos besouros. E
se Pard ouve, cheira ou vê um besouro, aquele besouro
instantaneamente ocupa seu universo. Ele não vai parar
por nada – vai revirar cestos de lixo, derrubar e destruir
pequenos objetos frágeis, empurrar grandes dicionários
pesados para o lado, saltar de modo selvagem no ar ou
no alto da parede, olhar fixamente sem se mover por dez
minutos para a inatingível lâmpada na qual um besouro é
visível como uma minúscula silhueta em movimento… E
quando ele pega o besouro, e ele sempre pega, sabe que
não se pode ter um besouro e comê-lo também. Por isso,
ele o come. Instantaneamente.
Eu sei, embora não goste muito de saber, que não há
muita gente que compartilhe desse fascínio ou obsessão
particular. Com palavras, no meu caso, não com
besouros. Contudo, eu queria ressaltar que Charles
Darwin era quase tão profundamente fascinado por
besouros quanto Pard, embora com um objetivo um
pouco diferente. Darwin até colocou um na boca uma
vez, em uma tentativa malsucedida de mantê-lo
comendo-o. Não funcionou.1 De qualquer forma, muitas
pessoas se comprazem em ler sobre o significado e a
história de palavras e frases pitorescas, mas não são
muitas as que gostam de remoer durante anos uma
sombra de significado do verbo ter em um ditado banal.
Mesmo entre os escritores, nem todos parecem
compartilhar do meu prazer em buscar uma palavra ou
um uso nos dicionários e nos cestos de lixo. Se começo a
fazer isso em voz alta em público, alguns me olham com
horror ou pena, ou tentam sair de fininho. Por essa razão,
nem tenho certeza de que isso tenha algo a ver com o
fato de eu ser escritora.
Mas acho que tem. Não com ser escritora em si, mas
com o meu ser escritora, minha maneira de ser escritora.
Quando requisitada a falar sobre o que faço, muitas
vezes comparo a escrita com o artesanato – tecelagem,
confecção de panelas, marcenaria. Vejo meu fascínio
pela palavra de modo muito parecido com, digamos, o
fascínio pela madeira comum a entalhadores,
carpinteiros, ebanistas – pessoas que encontram uma
bela peça de madeira de castanheira velha com deleite e
a estudam, aprendem seu grão e a manuseiam com
prazer sensual, e consideram o que foi feito com a
madeira de castanheira e o que se pode fazer com ela,
amando a própria madeira, o mero material, a matéria de
seu ofício.
Porém, quando comparo meu ofício com o deles, me
sinto um pouco presunçosa. Marceneiros, ceramistas e
tecelões mexem com materiais reais, e a beleza de seu
trabalho é profunda e esplendidamente corpórea. A
escrita é uma atividade tão imaterial, tão mental! Em sua
origem, é meramente discurso com arte, e a palavra
falada não é mais do que respiração. Escrever ou gravar
a palavra de alguma forma, é incorporá-la, torná-la
durável; e a caligrafia e a composição tipográfica são
ofícios materiais que alcançam grande beleza. Eu os
aprecio. Mas, na verdade, eles têm pouco mais a ver com
o que eu faço do que tecer, fazer vasos ou trabalhar com
madeira. É grandioso ver seu poema lindamente
impresso, mas o importante para o poeta, ou em todo
caso para esta poeta, é meramente vê-lo impresso, do
modo que for, onde quer que seja – a fim de que os
leitores possam ler. Para que o poema possa caminhar de
mente em mente.
Eu trabalho em minha mente. O que faço é feito em
minha mente. E o que minhas mãos fazem com isso ao
escrever não é o mesmo que o que as mãos do tecelão
fazem com o fio, ou as mãos do ceramista com o barro,
ou as do ebanista com a madeira. Se o que faço, o que
fabrico, é bonito, não é uma beleza física. É imaginária,
tem lugar na mente – em minha mente e na do meu
leitor.
Você poderia dizer que ouço vozes e acredito que as
vozes são reais (o que significaria que sou
esquizofrênica, mas o teste do provérbio prova que não
sou – eu entendo, eu o entendo, doutor!). E que, então,
ao escrever o que ouço, eu induzo ou estimulo os leitores
a acreditarem que as vozes também são reais… Essa não
é uma boa descrição, no entanto. Não sinto que seja
assim. Não sei realmente o que fiz durante toda a minha
vida, essa vernaculanaria.
Mas sei que para mim as palavras são coisas quase
imateriais, mas atuais e reais, e que gosto delas.
Gosto do aspecto mais material delas: do som, ouvido
na mente ou falado pela voz.
E, somado a isso, inesperadamente, gosto das danças
de significado que as palavras fazem umas com as
outras, das infinitas mudanças e complexidades de suas
inter-relações no período ou no texto, pelas quais os
mundos imaginários são construídos e compartilhados. A
escrita me envolve nesses dois aspectos das palavras,
em um jogo inesgotável que é o trabalho da minha vida.
As palavras são a minha matéria – minha coisa. As
palavras são meu novelo de lã, meu pedaço de barro
molhado, meu bloco de madeira não entalhado. As
palavras são o meu bolo mágico e antiproverbial. Eu o
como e ainda o tenho.
Junho de 2013
Quanto à Jornada:
As partes reais da viagem da Odisseia são
aparentadas ou ancestrais de todos os nossos contos de
fantasia em que alguém parte por mar ou terra,
encontrando maravilhas, horrores, tentações e
aventuras, possivelmente amadurecendo ao longo do
caminho e talvez voltando para casa no final.
Junguianos como Joseph Campbell generalizaram tais
jornadas em um conjunto de eventos e imagens
arquetípicas. Embora essas generalidades possam ser
úteis na crítica, desconfio delas como fatalmente
redutoras. “Ah, a Viagem Noturna ao Mar!”, bradamos,
sentindo que compreendemos algo importante – mas
estamos apenas reproduzindo. Até que estejamos de fato
nessa viagem, não compreendemos nada.
As viagens de Ulisses envolvem um conjunto de
aventuras tão estupendo que tendo a esquecer quanto
do livro é de fato sobre a esposa e o filho – o que
acontece em casa enquanto ele viaja, como o filho vai à
sua procura e todas as complicações de seu retorno ao
lar. Uma das coisas que amo em O senhor dos anéis é a
compreensão de Tolkien sobre a importância do que
acontece na fazenda enquanto o herói está levando suas
Mil Faces ao redor do mundo. Mas até você voltar para a
fazenda com Frodo e os outros, Tolkien nunca o leva de
volta para casa. Homero leva. Durante toda a viagem de
dez anos, o leitor alterna entre ser Ulisses tentando
desesperadamente chegar a Penélope e ser Penélope
esperando desesperadamente por Ulisses – tanto o
viajante quanto o objetivo – uma peça tremenda de
tecedura narrativa temporal e espacial.
Homero e Tolkien também são notavelmente honestos
sobre a dificuldade de ser um herói que viajou para muito
longe e agora volta para casa. Nem Ulisses nem Frodo
são capazes de permanecer em casa por muito tempo.
Gostaria que Homero tivesse escrito algo sobre como foi
para o rei Menelau quando ele chegou em casa, junto
com sua esposa Helena, por quem ele e o resto dos
gregos haviam lutado por dez anos para reconquistar,
enquanto ela, segura dentro das muralhas de Troia,
desfilava com o belo príncipe Páris (e depois, quando ele
foi atacado, ela casou-se com o irmão do príncipe).
Aparentemente, nunca passou pela cabeça dela enviar
ao Maridinho N.1, Menelau, lá embaixo na praia, na
chuva, um e-mail ou mesmo uma mensagem de texto.
Mas também, a família de Menelau, durante uma ou duas
gerações, tinha sido bastante desafortunada ou, como
diríamos, disfuncional.
Talvez não seja apenas a fantasia que se pode rastrear
até Homero?
Um prêmio literário muito
necessário
Janeiro de 2013
Setembro de 2011
Novembro de 2013
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2. Nos anos 1920, em uma grande hacienda peruana com uma praça de
touros particular, meus pais assistiram a toureiros em formação enfrentando
vacas. O ritual completo era realizado, exceto que o ferimento no animal era
evitado e não terminava em morte. Era o melhor treinamento, meus pais
foram informados: após las vacas bravas, touros eram fáceis. Um touro com
raiva dirige-se à bandeira vermelha; uma vaca com raiva, ao toureiro.
O dom narrativo como enigma
moral
Maio de 2012
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Junho de 2011
O teste da terra das fadas [é que] não se pode imaginar dois mais um
não somando três, mas pode-se facilmente imaginar árvores que não
produzem frutos; pode-se imaginá-las produzindo candelabros dourados
ou tigres pendurados pela cauda.
***
“Por que as coisas são como são? Devem ser como são?
Como poderiam ser se não fossem de outro modo?”
Fazer essas perguntas é admitir a contingência da
realidade, ou, pelo menos, reconhecer que nossa
percepção da realidade pode ser incompleta; e nossa
interpretação dela, arbitrária ou equivocada.
Sei que para os filósofos o que estou dizendo é de uma
ingenuidade pueril, mas minha mente não pode ou não
vai seguir um argumento filosófico, portanto devo
permanecer ingênua. Para uma mente comum não
treinada em filosofia, a questão – as coisas têm de ser do
jeito que são como são aqui e agora/ como me disseram
que são? – pode ser importante. Abrir uma porta que
tenha sido mantida fechada é um ato importante.
Aqueles que mantêm e defendem um status quo, seja
ele político, seja social, econômico, religioso ou literário,
podem conspurcar, demonizar ou desprezar a literatura
imaginativa, porque ela é – mais do que qualquer outro
tipo de escrita – subversiva por natureza. Ela provou, ao
longo de muitos séculos, ser um instrumento útil de
resistência à opressão.
No entanto, como Chesterton apontou, a fantasia
cessa antes da violência niilista, da destruição de todas
as leis e da queima de todas as embarcações. (Como
Tolkien, Chesterton foi um escritor imaginativo e um
católico praticante e, talvez por isso, particularmente
consciente de tensões e limites). Dois e um fazem três.
Dois dos irmãos fracassam na busca, o terceiro a leva
adiante. A ação é recebida pela reação. O destino, a
sorte e a necessidade são tão inexoráveis na Terra Média
como em Colono ou na Dakota do Sul. O conto de
fantasia começa aqui e termina lá (ou de volta aqui),
onde as sutis e inelutáveis obrigações e
responsabilidades da arte narrativa o assumiram. Na
base, as coisas são como têm de ser. Apenas na parte
acima da base é que nada tem de ser do jeito que é.
Não há realmente nada a temer na fantasia, a menos
que se tenha medo da liberdade da incerteza. É por isso
que para mim é difícil imaginar que qualquer um que
goste de ciência possa desgostar de fantasia. Ambas
baseiam-se muito profundamente na admissão da
incerteza, na aceitação acolhedora de perguntas não
respondidas. É claro que o cientista procura perguntar
como as coisas são do jeito que são, em vez de imaginar
como poderiam ser de outra forma. Mas as duas
operações são opostas ou relacionadas? Não podemos
questionar a realidade diretamente apenas questionando
nossas convenções, nossa crença, nossa ortodoxia, nossa
construção da realidade. Tudo o que Galileu disse, tudo o
que Darwin disse foi: “Não tem que ser do jeito que
pensávamos que era”.
Utopyin, Utopyang
Abril de 2015
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Janeiro de 2013
Maio de 2014
Novembro de 2010
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Novembro de 2010
Fevereiro de 2011
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Setembro de 2011
Outubro de 2012
Outubro de 2014
MEU QUERIDO,
O adulto criativo é a criança que sobreviveu.
O adulto criativo é a criança que sobreviveu depois que o mundo tentou
matá-la fazendo-a “crescer”. O adulto criativo é a criança que sobreviveu
à insipidez da escola, às palavras inúteis dos maus professores e aos
modos negativos do mundo.
O adulto criativo é, em essência, simplesmente isso, uma criança.
Falsamente sua,
URSULA LEGUIN
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Junho de 2012
Fevereiro de 2014
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Outubro de 2014
I. SAEVA INDIGNATIO
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Percebo, na vida das pessoas que conheço, o quanto a
raiva é incapacitante quando é profundamente suprimida
e intensa. Ela vem da dor e causa dor.
Talvez o prolongado “festival de crueldade” presente
em nossa literatura e em nosso cinema seja uma
tentativa de livrar-se da raiva reprimida exprimindo-a,
realizando-a simbolicamente. Dê um chute no traseiro de
todos o tempo todo! Torture o torturador! Descreva cada
agonia! Exploda tudo de novo e outra vez!
Essa orgia de violência simulada ou “virtual” alivia a
raiva ou aumenta o peso da carga de medo e dor que a
causa? Para mim, aumenta, o que me deixa doente e me
assusta. A raiva que tem tudo e todos
indiscriminadamente como alvo é a raiva fútil, infantil e
psicótica do homem com um rifle automático atirando
em crianças nas creches e pré-escolas. Não consigo
enxergar isso como um modo de vida, nem mesmo de
vida simulada.
Você percebe a raiva no meu tom? A indulgência com
raiva desperta raiva.
Contudo, a raiva reprimida gera raiva.
Qual é a maneira de usar a raiva para alimentar algo
além da mágoa, para afastá-la do ódio, da vingança, da
certeza moral e fazê-la servir à criação e à compaixão?
Julho de 2015
Janeiro de 2015
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Abril de 2014
Abril de 2013
Outubro de 2010
Julho de 2011
Outubro de 2011
Janeiro de 2011
Janeiro de 2011
***
Eu mencionei Papai Noel por uma razão. Sempre me
senti pouco à vontade com a maneira como lidamos com
ele. Tivemos Papai Noel em minha família (na verdade,
minha mãe escreveu um livro infantil adorável sobre
Papai Noel na Califórnia, deixando suas renas pastarem
nos trevos que nascem no inverno). Quando era criança,
líamos “The Night Before Christmas” e colocávamos leite
e biscoitos junto à lareira, e eles desapareciam pela
manhã, e todos nós gostávamos. As pessoas adoram a
fantasia, adoram o ritual e precisam de ambos. Nenhum
dos dois é contrafactual. Papai Noel é um mito esquisito,
peculiar, geralmente benigno – um verdadeiro mito,
profundamente envolvido nos comportamentos rituais do
único grande feriado que ainda nos resta. Como tal, eu o
honro.
Muito cedo em minha vida, como a maioria das
crianças, acho, eu podia distinguir “Fantasia” de
“Realidade”, o que significa que eu sabia que mito e fato
eram coisas diferentes e tinha alguma noção da terra de
ninguém que fica entre os dois. Em qualquer idade que
consiga me lembrar, se alguém me perguntasse: “Papai
Noel é real?”, eu teria, penso, ficado confusa e
envergonhada, ruborizado caso fosse a resposta errada e
dito não.
Não acho que perdi nada ao não pensar que Papai
Noel era real da maneira que meus pais eram reais. Eu
era capaz de ouvir cascos de renas tão bem quanto
qualquer um.
Nossos filhos tiveram Papai Noel; nós lemos o poema e
deixamos leite e biscoitos para ele; e os filhos deles
também. Para mim, isso é o que importa. Que o ritual de
união seja honrado, que o mito seja reencenado e levado
adiante no tempo.
Quando eu era pequena e outras crianças começaram
a falar de “quando descobriram sobre Papai Noel”,
mantive meu bico fechado. A incredulidade é inamável.
Estou abrindo a boca agora porque estou velha demais
para ser amável, mas ainda assim incrédula quando ouço
pessoas – adultas! – lamentando o terrível dia em que
descobriram que o Papai Noel não era real.
Para mim, o terrível não é – como geralmente é
apresentado – a “perda da crença”. O que é horrível é a
exigência de que as crianças acreditem ou finjam
acreditar em uma falsidade, e o curto-circuito da mente
carregado de sentimentos de culpa que acontece quando
o fato é deliberadamente confundido com o mito, a
atualidade com o símbolo ritual.
Será que aquilo por que as pessoas sofrem não é a dor
de perder uma crença, mas de perceber que alguém em
quem confiavam esperava que elas acreditassem em
algo em que a própria pessoa não acreditava? Ou será
que, ao perder a crença literal em nosso gordinho São
Nicolau, elas também perdem o amor e o respeito por ele
e pelo que ele representa? Mas por quê?
Eu poderia continuar a partir daqui em várias direções,
uma delas política. Assim como alguns pais manipulam
as crenças de seus filhos, por mais bem-intencionados
que sejam, alguns políticos jogam de modo mais ou
menos consciente com a confiança das pessoas,
persuadindo-as a aceitar uma confusão deliberadamente
fomentada da realidade com o pensamento ilusório e do
fato com o símbolo. Como, digamos, o Terceiro Reich. Ou
o Desabrochar de Cem Flores. Ou a Missão Cumprida.
Mas não quero entrar nisso. Quero apenas meditar
sobre os cavalos em cima das escadas.
A crença não tem nenhum valor em si que eu possa
ver. Seu valor aumenta à medida que é útil, diminui à
medida que é substituída pelo conhecimento, e fica
negativo quando é nociva. Na vida cotidiana, sua
necessidade diminui à medida que a quantidade e a
qualidade do conhecimento aumentam.
Há áreas em que não temos conhecimento, em que
precisamos da crença, porque é tudo que temos para
agir. Em toda a área que chamamos de religião ou reino
do espírito, podemos agir somente pela crença. Aí, a
crença pode ser chamada de conhecimento pelo crente:
“Eu sei que meu Redentor vive”. Isso é justo, desde que
seja justo também manter e insistir na diferença, fora da
religião, entre as duas coisas. No reino da ciência, o valor
da crença é nulo ou negativo; apenas o conhecimento é
valioso. Portanto, não digo que acredito que dois mais
dois são quatro ou que a Terra gira em torno do Sol, mas
que eu o sei. Como a evolução é uma teoria sempre em
desenvolvimento, prefiro dizer que a aceito, em vez de
que a sei ser verdadeira. A aceitação, nesse sentido, é,
suponho eu, o equivalente secular da crença. Ela pode
certamente proporcionar nutrição e prazer infinitos para
mente e alma.
Estou disposta a acreditar naqueles que dizem que
não poderiam viver se perdessem sua crença religiosa.
Espero que acreditem em mim quando digo que se meu
intelecto se for, se eu for deixada tateando o nada em
confusão, incapaz de distinguir o real do imaginado, se
perder o que sei e a capacidade de aprender, espero
morrer.
Ver uma pessoa que viveu apenas dois anos neste
mundo procurando e encontrando seu caminho nele,
confiando perfeitamente, tendo sua confiança
recompensada com a verdade e a aceitando – isso foi
uma coisa adorável de ver. O que isso me levou a pensar,
acima de tudo, foi sobre a quantidade inacreditável de
coisas que aprendemos entre o dia em que nascemos e o
último – de onde os cavalinhos vivem até a origem das
estrelas. Como somos ricos em conhecimento e em tudo
o que jaz ao nosso redor ainda por aprender. Bilionários,
todos nós.
Primeiro contato
Maio de 2011
Novembro de 2010
***
Agosto de 2013
NO PRIMEIRO DIA
Cinco andorinhas assentam o fio próximo.
NA SEGUNDA NOITE
NO TERCEIRO DIA
Elas o guardam.
Na muda
O pavão afasta-se
em ritmo cerimonial: passo e pausa:
passo e pausa:
um rei à coroação ou decapitação.
O único resquício de sua glória
arrancado até o talo,
rastros atrás no chão.
NA QUINTA TARDE
Centenas de melros reuniram-se nos pastos ao sul da
casa, desaparecendo completamente na grama alta,
depois emergindo dela em ondinhas e vagalhões, ou
fluindo e correndo para cima de uma única árvore sob a
cumeada até que seus galhos mais baixos estivessem
mais pretos com pássaros do que verdes com folhas,
depois escoando para baixo e longe dela na direção dos
juncos e para fora pelo ar em uma única onda, cintilante
e particular. O que é entidade?
SEM TEMPO A PERDER
TÍTULO ORIGINAL:
No Time to Spare
COPIDESQUE:
Hebe Ester Lucas
REVISÃO:
Caroline Bigaiski
Renato Ritto
CAPA:
Tereza Bettinardi
DIREÇÃO EXECUTIVA:
Betty Fromer
DIREÇÃO EDITORIAL:
Adriano Fromer Piazzi
PUBLISHER:
Luara França
EDITORIAL:
Andréa Bergamaschi
Caíque Gomes
Débora Dutra Vieira
Juliana Brandt
Luiza Araujo
COMUNICAÇÃO:
Giovanna de Lima Cunha
Júlia Forbes
Maria Clara Villas
COMERCIAL:
Giovani das Graças
Gustavo Mendonça
Lidiana Pessoa
Roberta Saraiva
FINANCEIRO:
Adriana Martins
Helena Telesca
1. Autobiografia 920
2. Autobiografia 929