Slavoj Žižek - A Marioneta e o Anão - O Cristianismo Entre A Perversão e A Subversão - 17

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A Marioneta e o Anão 17

• Depois, no final do capítulo sobre a Razão, na passagem para o Es­


pirito como Historia, em que encontramos a tríade formada pela «Razão
administradora de leis», pela «Razão que as testa» e pela «Razão que
aceita o seu insondável fundamento». Só ao aceitarmos a positividade da
lei como seu supremo paño de fundo é que passamos para a Historia pro-
priamente dita. Esta passagem ocorre quando assumimos o fracasso da
Razão para fundar reflectidamente as leis que regulam a vida de um po­
vo [ibid., pp. 305-312],
E as três modalidades da religião presentes em Glauben und Wissen e
outros escritos teológicos dos primeiros anos [G. W. F. Hegel, Glauben
und Wissen, Hamburgo, Felix Meiner Verlag, 1987], parecem tratar a
mesma tríade:
• A religião do povo (Volksreligion) — na antiga Grécia, a religião es­
tava intrinsecamente limitada a um povo particular, à sua vida e aos seus
costumes. Não exigia nenhum acto de fé especial e reflexivo: era sim­
plesmente aceite.
• A religião positiva — impunha dogmas, rituais, regras, que deviam
ser aceites por serem prescritos por uma autoridade terrestre e/ou divina
(judaísmo, cristianismo).
• A religião da Razão — o que resta da religião quando a religião po­
sitiva é submetida à crítica racional das Luzes. Há duas modalidades: Ra­
zão ou Coração — a posição da obediente moral kantiana ou a religião
do sentimento puramente interior (Jacobi, etc.). Ambas rejeitam a reli­
gião positiva (rituais, dogmas) como lastros superficiais historicamente
condicionados. Crucial, neste caso, é a inversão da posição de Kant para
a de Jacobi, do moralismo universalista para uma coabstergência do sen­
timento puramente irracional, ou seja, esta coincidência imediata dos
opostos, esta inversão directa da razão numa crença irracional.
Mais uma vez, a passagem de uma etapa para outra é clara. Primeiro, a
religião (do povo) perde a sua orgânica Naturwuechsigkeit, transforma-se
num conjunto de regras «alienadas» — contingentes e impostas pelo exte­
rior; depois, a autoridade dessas regras é logicamente interrogada pela nos­
sa Razão... Contudo, qual seria o passo em frente que permitiria quebrar o
impasse da conversão directa, um no outro, do moralismo universalista e
do sentimento interior? Não há uma solução clara. Porque precisamos ain­
da de religião nos tempos modernos? A resposta clássica é: o racionalismo
da filosofia ou da ciência é esotérico, restringido a um pequeno círculo, não
podendo substituir a religião na sua função de capturar a imaginação das
massas, servindo desse modo as finalidades da ordem moral e política. Mas
esta solução é problemática nos próprios termos hegelianos: o problema é
que, nos tempos modernos da Razão, a religião já não pode desempenhar
essa função de força orgânica de elo de ligação da substância social — ho­
je, a religião perdeu irremediavelmente o seu poder, não só para os cien­
tistas e para os filósofos, como para o mais vasto círculo das pessoas «co­
muns». Nas suas Lições sobre Estética, Hegel diz-nos que, na Idade

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