CADILHO, Carine Da Costa. O Negro e o Mestiço Na Pintura de Candido Portinari Na Década de 1930
CADILHO, Carine Da Costa. O Negro e o Mestiço Na Pintura de Candido Portinari Na Década de 1930
CADILHO, Carine Da Costa. O Negro e o Mestiço Na Pintura de Candido Portinari Na Década de 1930
1930
Orientadora:
Rio de Janeiro
Dezembro de 2015
ii
Aprovada por:
_______________________________________________________
Presidente, Prof.ª Camila Carneiro Dazzi, Doutora (orientadora)
_______________________________________________________
Prof. Alvaro de Oliveira Senra, Doutor
_______________________________________________________
Prof.ª Tarcila Soares Formiga, Doutora – CEFET/ RJ Nova Friburgo
Rio de Janeiro
Dezembro de 2015
iii
iv
Agradecimentos
IDENTIDADE
Jorge Aragão
vii
RESUMO
Orientadora:
Camila Carneiro Dazzi
Esta pesquisa tem por finalidade problematizar como o discurso racial se apresenta nas
pinturas de Candido Portinari, aquelas classificadas como de cunho social e produzidas
durante a década de 1930. Objetivou-se, também, discutir as possíveis reverberações da
leitura das obras selecionadas para esta pesquisa na contemporaneidade, especialmente, no
que tange as relações étnico-raciais no Brasil. Foram escolhidas, como norteadoras para o
debate, nove obras do artista em que figuram o negro e o mestiço como personagens centrais,
as quais relacionamos com os conceitos mestiçagem e trabalho. A pesquisa objetiva também
verificar como o discurso racial da década de 1930 auxilia na manutenção do racismo na
contemporaneidade, a partir da aparente valorização do negro e do mestiço no contexto
político e social. Candido Portinari foi o artista que intelectuais como Mário de Andrade, Oswald
de Andrade e Mário Pedrosa consideraram o representante do “espírito” do Modernismo
Brasileiro, pois estudou na Escola Nacional de Belas Artes e, após estada na Europa, optou em
desenvolver sua obra com traços modernos, em que a “deformação” não significaria o
desconhecimento do desenho, mas uma expressividade estética e social. Portinari também foi
exaltado por ter sido um artista de reconhecimento internacional pela trajetória artística
inovadora que realizou. Assim, as obras escolhidas do artista nortearam o debate sobre a
representação do negro e do mestiço no contexto do modernismo brasileiro e do governo de
Getúlio Vargas, e as indagações sobre a manutenção do racismo. Trabalhamos com autores
que traçam uma perspectiva histórica e artística de Candido Portinari, como Annateresa Fabris
e Carlos Zilio, e relacionamos seus apontamentos com questões do pensamento social
brasileiro, cultura brasileira, identidade nacional e racismo com o que debatem Lilia Schwarcz,
Kabengele Munanga, Renato Ortiz, Antonio Sergio Alfredo Guimarães, além de outros.
Palavras-chave:
Rio de Janeiro
Dezembro de 2015
viii
ABSTRACT
Advisor:
This research aims to question how the racial discourse is presented in paintings by
Candido Portinari classified as socially oriented and produced during the 1930s. It also aims at
discussing possible reverberations in contemporaneity from reading the works selected for this
research, especially regarding the ethnic-racial relations in Brazil. Nine works with black and
mixed race people as central characters were chosen, as guiding the debate, and are related to
racial mixing concepts and work. The research also aims to check how the racial discourse in
the 1930s helps in the maintenance of racism in contemporary times, from the apparent
enhancement of the black and mixed race people in the political and social context. Candido
Portinari was the artist that intellectuals such as Mário de Andrade, Oswald de Andrade and
Mário Pedrosa considered the representative of the "spirit" of the Brazilian Modernism, since he
studied in the National School of Fine Arts. After staying in Europe, he chose to develop his
work with modern traits, in which the "deformation" does not mean the lack of design, but a
social and aesthetic expressiveness. Portinari was also elated to have been an internationally
recognized artist who conducted innovative artistic career. Thus, the works chosen guided the
debate on the representation of black and mixed race people in the context of Brazilian
modernism and the Getúlio Vargas government, and inquiries about maintaining racism. We
work with authors who draw a historical and artistic perspective of Candido Portinari, as
Annateresa Fabris and Carlos Zilio, and relate their notes with issues of Brazilian social thought,
Brazilian culture, national identity and racism with which Lilia Schwarcz, Kabengele Munanga,
Renato Ortiz, Antonio Sergio Alfredo Guimarães, among others, debate.
Keywords:
Rio de Janeiro
2015, December
ix
Sumário
Introdução ................................................................................................................................. 1
Conclusões .............................................................................................................................. 90
Lista de Figuras
INTRODUÇÃO
1
Lei 10.639 de 09/01/2003. Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir currículo oficial da Educação
Básica a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e da África. In: BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada. Instrumentos Normativos Federais Relacionados ao Preconceito e às Desigualdades Raciais (1950 a 2003), s/d.
2
Na hierarquia da Umbanda, o Pai de santo é a referência máxima do terreiro, não só para seus Filhos de santo, como também
para a espiritualidade.
3
Rancho carnavalesco era um tipo de agremiação anterior às Escolas de Samba.
2
ajudavam a confeccionar, sobre os desfiles e vitórias, sobre as festas para angariar fundos,
sobre a boêmia, permeiam o imaginário da minha família. Daí herdo o gosto pelas Artes e pela
cultura negra, explícitas no samba e na religiosidade.
No entanto, quando ingressei na Universidade, num curso que me habilitava em História
da Arte, um enorme conflito se instalou, mesmo que inconsciente. Antes, ainda na pré-escola,
surpreendia as professoras com desenhos elaborados para minha idade. Aos oito anos
desenhava e pintava formalmente num ateliê em Niterói. Essa prática se estendeu até o
encontro com a História da Arte na Faculdade, principalmente, a europeia, colocada como a
Arte legítima por ser erudita, a qual eu nunca havia ouvido falar, nem no colégio. Mas havia um
certo encanto, com ares de superioridade. Tudo que sentia e produzia até então foi “abafado” e
paralisado.
Porém, já formada e trabalhando como docente efetiva na Prefeitura de Macaé, onde
lecionei de 2004 até 2010, longe das discussões sobre ações afirmativas e reparatórias, pude
trabalhar com professores engajados, que fizeram da minha estada na rede municipal de
educação daquela cidade um espaço de multiplicação desses conhecimentos. Três
professores sociólogos propuseram um grupo de estudos no horário de planejamento semanal,
no qual lemos textos sobre a história da África, exclusão, juventude negra e genocídio,
movimento negro. Um primeiro sopro de consciência. Depois, em 2009, uma pós-graduação
lato-sensu em que tive a honra de conhecer e estudar com importantes pesquisadores e
militantes dos movimentos negros. Toda essa trajetória me fez perceber a importância da
conscientização sobre a negritude e, consequentemente, o combate ao racismo, mesmo
fenotipicamente não ter a pele escura, pois me identifico culturalmente com estas questões.
Assistindo a uma aula, em 2010, ministrada pelo Prof. Dr. Amauri Mendes Pereira, na
qual tratava sobre a Eugenia no Brasil nas primeiras décadas do século XX, abordando a
preocupação então existente com o tipo nacional homogêneo, o risco de degeneração racial e
o projeto político de “branqueamento” da população para aprimoramento racial, me questionei
sobre como se desenvolveu a Arte naquele momento e como essas questões poderiam ter
influenciado a produção artística, principalmente nas Artes Visuais, e especificamente na Arte
Moderna Brasileira. Esta questão tornou-se trabalho monográfico de final de curso, e
posteriormente, se transformou em anteprojeto para a seleção do curso de pós-graduação
stricto-sensu em Relações Étnico-raciais do CEFET/RJ, campus Maracanã, no qual fui
aprovada e ingressei no terceiro trimestre de 2013.
No início, o projeto tomava como base uma série de pinturas dos artistas modernistas
brasileiros Di Cavalcanti (1897-1976), Tarsila do Amaral (1886-1973) e Candido Portinari
(1903-1962) para desenvolver uma análise sobre a representação do negro e do mestiço nas
duas primeiras décadas do século XX, os quais ganharam determinada importância na
construção da identidade nacional. Porém, para viabilizar a pesquisa era preciso delimitar
3
melhor o objeto a ser estudado. Foi, então, que, dentre os três artistas inicialmente elencados,
decidi pesquisar nove obras de Candido Portinari produzidas durante os anos de 1930, em que
são representadas pessoas negras e mestiças, e analisá-las sob o contexto político, social e
econômico da época. Julguei interessante tal escolha porque além de debater a relevância de
Portinari como artista moderno no contexto da era Vargas, era possível analisar suas obras
pelo viés étnico-racial verificando o pensamento social brasileiro daquele período, e a sua
confluência com o contexto político e econômico.
Portinari seria o artista que intelectuais como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e
Mário Pedrosa consideravam o representante do “espírito” do Modernismo, pois estudou na
Escola Nacional de Belas Artes e optou em desenvolver sua obra com traços modernos, em
que a “deformação” não significaria o desconhecimento do desenho, mas uma escolha estética
(FABRIS, 1990).
A escolha por Portinari, para mim, foi consolidada depois que realizei uma atividade em
sala de aula com alunos do ensino fundamental do 6º ano de escolaridade, na qual apresentei
uma reprodução da tela “Morro” (1933). A fim de desenvolver a habilidade dos alunos na leitura
de imagens, pedi que interpretassem e contassem o que viam. Muitos viram escravos. Nesse
momento, muitas indagações me ocorreram e a nítida percepção de que precisávamos debater
mais sobre o assunto, sobre a época em que foi realizada a obra, sobre a representação do
negro, o imaginário e o caráter simbólico que aquelas observações suscitaram. Além da
posição do artista diante das questões raciais naquela época.
Observando uma nova possibilidade de leitura da obra, acredito ser importante revisitar
o Modernismo Brasileiro com olhar atento aos debates étnico-raciais, assim como afirmou
Annateresa Fabris:
Dessa maneira, acredito ser imprescindível para o debate das relações raciais na
sociedade brasileira um outro olhar, distanciado, contemporâneo, que discuta sobre a
visibilização do negro e do mestiço nas Artes, e especificamente, no Modernismo Brasileiro a
fim de construir um discurso atualizado acerca da sua representação. E me aproprio da
produção de Candido Portinari da década de 1930, que aborda esta temática, como
instrumento para tal.
De maneira geral, o Movimento Modernista Brasileiro buscou inspiração nas fontes do
que acreditava ser as mais autênticas da cultura e da realidade brasileiras. Na pintura
4
4
Fontes: PROJETO CULTURAL ARTISTAS DO MERCOSUL. Candido Portinari. São Paulo: Fundação Finambrás, 1997, e
PROJETO PORTINARI, disponível em: <http://www.portinari.org.br/> .
5
Quando a figura do negro aparece, geralmente, está envolto de uma leitura racial de
submissão, ou a do necessário branqueamento para civilizar-se (ORTIZ, 2006), a exemplo a
7
obra “Redenção de Cam” (1895) (Figura II.4), do artista da Escola de Belas Artes do Rio de
Janeiro Modesto Brocos, apresentada pelo então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro,
João Batista de Lacerda no I Congresso Internacional das Raças, em 1911, em Londres. A
obra exemplificou o pensamento social brasileiro do início do século XX, em que são
apresentadas as conclusões teóricas do branqueamento de forma sintética: “no decorrer de
uma século o país seria branco, como a criança retratada” (SCHWARCZ, 1993, p.12).
Somente nos inícios do século XX, o negro e o mestiço serão representados como
figuras nacionais, certamente, valorizados e visibilizados como sujeitos. Entretanto, como são
apresentados esses personagens? Na década de 1930, os negros e mestiços continuam
figurando como sujeitos, mas de que forma? Como que o conceito de “raça” é compreendido
no recorte temporal da pesquisa? De que maneira Candido Portinari está alinhado a essa
ideia?
Estas questões foram discutidas a partir da análise das pesquisas realizadas por
Annateresa Fabris sobre a obra de Candido Portinari cruzando-as com a obra de pensadores
das questões étnico-raciais contemporâneos tais como Lilia Moritz Schwarcz no estudo “O
espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930” (1993), no
qual mapeia e contextualiza as teorias racialistas do período. Outro autor relevante para o
debate racial foi Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (1999), em que apresenta diversas
definições de raça ao longo do tempo, a noção e os desdobramentos do racismo, seu processo
de naturalização.
Renato Ortiz, com “Cultura brasileira e identidade nacional” (2006), faz uma reflexão
sobre o que consiste o “nacional” e a ligação profunda da identidade nacional com uma
reinterpretação da cultura popular e a construção do Estado brasileiro.
Foi fundamental, também, explicitar os motivos que levaram o Modernismo Brasileiro a
ter interesse pela representação do negro e do mestiço e como esta representação se realiza
para justificar a escolha das obras que abordam a temática étnico-racial de Candido Portinari
da década de 1930. Dessa forma, utilizamos a produção de Carlos Zílio, autor de “A querela do
Brasil. A questão da identidade da arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari/
1922-1945” (1982), que, como o título, aborda a questão da identidade cultural brasileira
utilizando o recorte do Modernismo pelo viés dos três artistas. E, finalmente, o livro de
Annateresa Fabris, “Portinari, o pintor social” (1990), que explana e problematiza a trajetória
artística de Candido Portinari, utilizado como fio condutor da pesquisa sobre o artista.
A análise do discurso contido nas pinturas “Morro” (1933), “Índia e Mulata” (1934), “Mestiço”
(1934), “Lavrador de Café” (1934), “Cabeça de Preto” (1934), “Café” (1935), “Mulher e criança”
(1936), “Café” (1938), “Cacau” (1938), de Candido Portinari, todas produzidas durante os anos
de 1930 foi realizada com a orientação da obra “Discurso e leitura” (2008), de Eni Orlandi.
Segundo Orlandi, a leitura pode ser múltipla, vários sentidos podem ser atribuídos a ela, e o
8
que delimita esses sentidos são a ideia de intepretação e compreensão. Dessa maneira, a
autora afirma que:
Dessa maneira, desloquei a noção de leitura para a praticada com imagens, acerca da
linguagem visual e me posicionei da atualidade, com a preocupação de interpretar e
compreender o passado histórico quando as imagens aqui escolhidas foram produzidas. E,
mesmo partindo da percepção de outrem, sem a investigação mais aprofundada sobre seus
imaginários a respeito do negro e do mestiço, me apropriei da colocação dos meus alunos para
desenvolver minhas próprias indagações.
Para detalhar a estrutura do texto da pesquisa, iniciei o capítulo I com uma
sistematização sobre o conceito de “raça” e “etnia” em finais do século XIX e início do século
XX a partir da leitura de Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (1999). Seguida da relação desse
conceito com a do branqueamento, da mestiçagem e destes com os inícios da construção da
identidade nacional a partir, basicamente, do texto de Renato Ortiz (2006) e desta construção
da nacionalidade na arte.
O segundo capítulo inicia com debate sobre a visibilização do negro e do mestiço nas
artes visuais em finais do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, momento
que antecede a obra de Candido Portinari. Analisamos quatro telas produzidas em períodos
diferentes e que tem a imagem do negro e do mestiço como temática principal, levando em
consideração o contexto em que eles aparecem. As telas são, “Retrato do intrépido marinheiro
Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana” (1853), de José Correia de Lima, “Príncipe Obá”
(1886), de Belmiro de Almeida, a “Redenção de Cam” (1893), de Modestos Brocos, todos
pintores acadêmicos, e “A Negra” (1923), de Tarsila do Amaral, pintora ícone do Modernismo
Brasileiro da década de 1920.
No terceiro capítulo, dedicado à análise das obras selecionadas para a pesquisa,
começamos com um breve panorama da trajetória artística inicial de Candido Portinari. No
9
Antes de adquirir uma conotação biológica, “raça” significava “um grupo ou categoria de
pessoas conectadas por uma origem comum” (Banton, 1994 apud Guimarães, 1999, p. 23).
Esse sentido literário foi aplicado na maioria das línguas europeias a partir do século XVI.
Já as teorias biológicas sobre “raças” datam do século XIX. Banton afirma que a palavra
“raça passou a ser usada no sentido de tipo, designando espécies de seres humanos distintas
tanto fisicamente quanto em termos de capacidade mental” (GUIMARÃES, 1999, p. 23). Mais à
frente no tempo a palavra foi ressignificada, passando para “subdivisões da espécie humana
distintas apenas porque seus membros estão isolados dos outros indivíduos pertencentes à
mesma espécie” (GUIMARÃES, 1999, p. 23).
Depois da Segunda Guerra Mundial, o conceito foi recusado pela Biologia. A partir de
então, após encontros promovidos pela UNESCO de biólogos, geneticistas e cientistas sociais,
dois aspectos foram considerados relevantes sobre o assunto, sumariados por John Rex a
partir de texto-resumo dos encontros feitos por Hiernaux (GUIMARÃES, 1999), que definem o
conceito de “raça” como sendo taxionômico, podendo ser substituído pelo termo “população”.
Um dos aspectos considera o termo “raça” como “grupos humanos que apresentam diferenças
físicas bem marcadas e primordialmente hereditárias”, e “população” como “grupos cujos
membros casam-se com outros membros do grupo mais frequentemente que com pessoas de
fora do grupo e, desse modo, apresentam um leque de características genéticas relativamente
limitado” (GUIMARÃES, 1999, p. 23, 24).
O outro aspecto, nomeando os grupos tanto como raciais quanto populacionais, não
percebe diferenças genéticas significativas no interior dos mesmos, concluindo que nenhum
padrão sistemático de traços humanos, excetuando-se os grupos sanguíneos, pode ser
atribuídos às diferenças biológicas. Inclusive, o grupo sanguíneo não coincide com os grupos
chamados de “raças”. Dessa maneira, características fenotípicas assim como diferenças
intelectuais, morais e culturais devem ser atribuídas a construções socioculturais e a
condicionantes ambientais, e não biológicas.
Neste período do pós-guerra, para ser coerente com a genética pós-darwiniana, os
cientistas sociais, então, passam a considerar a “raça” como um grupo de pessoas com
características fenotípicas diferentes de outros grupos, sendo estas físicas reais ou supostas,
que ganham sentido social apenas por meio de valores, crenças e atitudes. Na falta de
diferenças físicas entre os grupos, alguns autores atribuem a nomenclatura de étnicos. John
Rex teoriza que os grupos raciais têm uma base genética ou outra determinante, e os grupos
étnicos são os que supõe-se ter comportamento susceptível de mudança (GUIMARÃES, 1999).
Antonio Sérgio Guimarães põe em discussão esta distinção, pois lhe parece que esta
diferenciação não dá conta da “racialização” e da “naturalização” da cultura dos grupos
subalternos conhecidos como “imigrantes” na Europa de hoje, referidos como novos grupos
raciais e étnicos, mantendo com eles um “diferencialismo” cultural, transformando o conceito de
12
cultura como algo fixo, imutável e natural. Afirma que “a distinção entre formas de
discriminação e preconceito, baseadas em identidades sociais, parece, portanto, ser mais de
ordem ideológica que de ordem processual”. Outros sociólogos, como Thomas Eriksen,
rejeitam o conceito de “raça” pois o consideram carregado de ideologia, preferindo falar apenas
em “etnia” (GUIMARÃES, 1999, p. 25).
No entanto, Guimarães assegura que o conceito de “etnia” é mais amplo do que o de
“raça”, sendo a etnicidade um aspecto de grupos que se consideram culturalmente distintos de
outros, que mantêm um mínimo de interação e identidade social de parentesco ou inventada.
Os grupos raciais estariam, de certa forma, contidos nos grupos étnicos, pois a ideia de “raça”
gerou uma certa etnicidade, ou, se esta já existia, sedimentou-a.
Ainda acerca de uma definição mais precisa de “raça”, a partir da análise do
pensamento de John Rex sobre todas hierarquias sociais, em que tal autor sistematiza duas
condições gerais que as fundamentam, inclusive aquela em que justifica-se a utilização do
conceito sociológico de “raça”, uma refere-se a “uma desigualdade estrutural entre grupos
humanos convivendo num mesmo Estado” e a outra a “uma ideologia ou teoria que justifica ou
respalda tais desigualdades”, Guimarães acrescenta uma terceira condição geral, em que
“estas formas de desigualdades são justificadas em termos do pretenso caráter natural da
ordem social” (GUIMARÃES, 1999, p. 28).
Dessa forma, tais condições podem ser aplicadas em todos os campos de
hierarquização social, como classe, raças, etnias, gêneros, grupos religiosos, etc., avançando
em direção a uma generalização em que, no processo de naturalização, ao produzir uma
síntese, esta ameaçou diluir sua capacidade de análise. “Por isso mesmo, deve-se fazer um
esforço no sentido de obter maior precisão dos tipos particulares de discriminação, ligados a
diferentes formas de identidades sociais” (GUIMARÃES, 1999, p. 28).
Assim, apesar do fato de todos os grupos considerarem “naturais” as particularidades
que os distinguem uns dos outros, e ainda estarem em situações de desigualdades de poder,
de direitos e de cidadania, o fato é que as teorias e os critérios utilizados para distinguir os
grupos humanos não são sempre os mesmos, não têm os mesmos fundamentos e
consequências.
Dessa maneira, para estabelecer um campo de estudos das relações raciais e do
racismo é necessário definir o campo ideológico e teórico em que o conceito de “raça” se
aplica. Guimarães utiliza o termo “racialismo” tal como Kwame Anthony Appiah o utilizou para
referir-se ao preceito em que:
Para Guimarães essa “essência” é definida pela cultura, a qual depende de contexto
histórico, demográfico e social, e utiliza diferentes regras de filiação e pertença grupal. E,
portanto, é necessário que se mude dois pontos na definição de Appiah:
Para resumir o debate até aqui, Guimarães afirma que o conceito de “raça” não faz
sentido se não for no âmbito da ideologia ou teoria taxonômica, à qual chamou de racialismo,
conceito inteiramente sociológico.
Sobre o conceito de “naturalização”, o termo “natural” reduz a ideia de natureza a uma
noção biológica. Dessa maneira, para Guimarães tal termo, em sentido amplo:
Hall reflete no artigo intitulado “Raça, o significante flutuante” (2013) sobre a fluidez
dessa noção e de que modo a palavra “raça” pode adquirir diversos contornos. Sua primeira
colocação é afirmar que “raça”, um dos principais conceitos classificatórios da diferença que
intervém nas sociedades humanas, pode ser entendida como uma “construção discursiva, um
significante flutuante” (HALL, 2013, p. 1), pois assemelha-se mais à linguagem do que à nossa
biologia. Os significantes se referem a “sistemas e conceitos da classificação de cultura, a suas
práticas de sentido” (HALL, 2013, p. 1). Eni Puccinelli Orlandi (1994) nos esclarece que se
pensarmos o discurso como resultado da produção de sentido entre locutores, devemos
considerar a linguagem necessariamente em relação aos sujeitos e ao efeito de sentidos, isso
quer dizer que:
Certamente, Orlandi complementa o texto de Hall, o qual afirma que a cultura e seus
processos de produção de sentido ganham significado devido às relações de diferença
mutáveis que estabelecem com outras ideias e conceitos num âmbito de significação. E por ser
relacional, não seria possível fixar um sentido, pois está sujeito à apropriações e redefinições.
Dessa forma, a “raça”, e o “racismo”, receberam ao longo do tempo diversas
significações, que se inicia na religião, quando acreditava-se que Deus havia criado dois tipo
de homens, duas espécies distintas, sendo uma mais civilizada e localizada no Velho Mundo e
outra mais “selvagem”, encontrada no Novo Mundo. Transforma-se em pensamento
antropológico, quando comprovada a existência de apenas um raça, a raça humana,
descendente de primatas, aos quais o homem diferente do europeu se aproxima ao macaco. E
depois, em ciência biológica para justificar as diferenças visíveis, os fatos físicos como cor,
cabelo e osso, apoia-se na genética, à qual não temos acesso, apenas os geneticistas. Mesmo
sendo comprovada a insustentabilidade pela ciência biológica ou genética da diferença de raça
entre os seres humanos, este conceito foi substituído pela definição sócio-histórica ou cultural.
No entanto, os discursos do senso comum e até mesmo os de cientistas se baseiam em
premissas da identidade racial, por exemplo, para explicar fenômenos sociais, políticos ou
culturais (HALL, 2013). Dessa forma:
Desde fins do século XIX e início do XX, a relação da questão racial no Brasil com a da
identidade nacional fundamenta o pensamento da nossa intelectualidade. A partir de teorias
importadas, a intelligentsia brasileira formulou fundamentos, que percorrendo várias trajetórias,
chegam a uma mesma conclusão, a necessidade do branqueamento da sociedade para
civilizar-se.
Essa perspectiva descende das diversas teorias absorvidas pelos pensadores da
época, encabeçados por nomes ícones como Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da
Cunha, ditos precursores das Ciências Sociais do Brasil (ORTIZ, 2006).
Sílvio Romero explica o declínio do Romantismo de Gonçalves Dias e José de Alencar
por meio de tais teorias, como o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo
de Spencer. Todas são diferentes entre si, no entanto, são consideradas sob o aspecto da
evolução histórica dos povos.
O evolucionismo tenta encontrar o vínculo entre as sociedades humanas, considerando
que as mais “simples”, ditas povos primitivos, evoluem naturalmente para as mais complexas,
as sociedades ocidentais. Procura-se estabelecer as leis que presidiriam o progresso das
civilizações. Politicamente, o evolucionismo vai fazer com que a elite europeia perceba o seu
16
poderio para expandir mundialmente o capitalismo e se consolidar como modelo. Para Renato
Ortiz:
Aceitar tal teoria para analisar a sociedade brasileira é reconhecer que, dentro de uma
história natural da humanidade, o país encontrava-se em estágio civilizatório “inferior” ao
alcançado pelos países europeus. Dessa forma, torna-se necessário explicar o “atraso”
brasileiro e “apontar para o futuro próximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir
como povo, isto é, como nação” (ORTIZ, 2006, p. 15). A grande celeuma dos intelectuais da
época era compreender a discrepância entre a teoria e a realidade, o que se traduzia na
construção da identidade nacional, daí a ênfase no estudo do “caráter nacional”.
Na medida em que a realidade da sociedade brasileira se distingue da europeia, a
teoria do evolucionismo adquire novos formatos e particularidades. A explicação dessa
dissonância se dará pela combinação com outros conceitos que, então, permitirão considerar o
porquê o “atraso” do país. O evolucionismo possibilita a compreensão mais geral das
sociedades humanas, no entanto, torna-se necessária sua complementação com outros
argumentos para a compreensão da peculiaridade da sociedade brasileira.
Sob a perspectiva do evolucionismo, a “raça” e o “meio” foram dois elementos
fundamentais para embasamento dos sistemas de pensamento dos intelectuais brasileiros do
final do século XIX e início do século XX. A exemplo disso, o livro “Os Sertões”, de Euclides da
Cunha, tratou, em seus dois primeiros capítulos, da relação do Homem com a Terra, assim
como Sílvio Romero, em seus estudos iniciais sobre o folclore, setorizou a população brasileira
em habitantes da mata, das margens dos rios, das praias, dos sertões e das cidades, e Nina
Rodrigues, que, em suas análises do direito penal brasileiro, considerou a vinculação das
características psíquicas do homem a sua dependência ao meio ambiente.
De fato, o “meio” e a “raça” tornaram-se categorias do conhecimento para interpretação
da realidade brasileira, pois a compreensão da natureza, dos acidentes geográficos explicavam
a situação econômica e política do país. Chegou-se a considerar o meio como fator que
influenciou a legislação industrial e a cobrança de impostos e, ainda, teria sido determinante
para uma economia escravagista. Renato Ortiz complementa:
Em finais do século XIX, o Brasil era visto, tanto dentro quanto fora do país, como um
lugar de extrema miscigenação racial. Desde o início e durante todo este século, o Brasil
recebeu vários naturalistas, em busca de espécimes raros da fauna e da flora brasileiras, além
de artistas viajantes, que acompanhavam as expedições científicas, os quais se depararam
com tipos de homens e mulheres resultantes da mistura racial. Com título de “país mestiço”,
estes difundiram essa ideia no exterior. Ideia à época negativa, pois a miscigenação racial
significava deterioração das raças, tanto a branca, quanto a negra e a indígena, restando um
tipo indefinido, híbrido, carente em energia física e mental. Dessa maneira, a mestiçagem de
então simbolizava o atraso da nação ou até a sua inviabilidade. Tal discurso de cunho liberal
tomava força em fins do século XIX com dados quantitativos recolhidos nos censos e
divulgados nos jornais (SCHWARCZ, 1993). Para a autora:
A representação do país como uma terra mestiça levada pelos artistas e naturalistas
estrangeiros para a Europa e para os Estados Unidos, assim como a preocupação da elite local
com o cruzamento de raças foi a questão central para a compreensão do que eles acreditavam
que seria o destino da nação.
A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil sofre profundas mudanças com o
processo de industrialização mais acelerado em consequência das dificuldades externas com a
Primeira Guerra Mundial, e com a urbanização, principalmente de São Paulo, pelo
enriquecimento dos grandes fazendeiros de café que queriam fazer frente ao poder político do
Rio de Janeiro. O desenvolvimento de uma classe média e de um proletariado urbano somam-
se a esta transformação.
Nesse ambiente de inovações, a nova geração de artistas e intelectuais, filhos dos
“barões” do café, frequentadores da Europa e importadores das suas modas, tinham a
necessidade de um rompimento com as artes plásticas desenvolvidas nas Academias de Belas
Artes, pois esta representava, para eles, de maneira geral, um atraso no sentido de não
constituir uma arte genuinamente brasileira. Na década de 1920, o Modernismo como
movimento artístico e cultural era considerado por muitos o ponto de referência para a
consolidação da identidade nacional, pois traz consigo uma consciência histórica, que é
esparsa em outros momentos.
Tal identidade a ser construída vai buscar no que chamaram de “as raízes nacionais” as
figuras, os tipos, as cores, as paisagens a serem representados. Nesse momento, os negros e
os mestiços, visibilizados positivamente, são a representação da brasilidade, associados ao
trabalho, à pobreza, às memórias da infância na fazenda em convivência com escravos
libertos, ligados também à sensualidade, à malemolência. É importante ressaltar que a busca
pela nacionalidade através da representação do homem rural, o “caipira” foi tema do artista
Almeida Júnior, formado pela Academia, mas por não estar ligado diretamente a ela,
aventurou-se na temática regionalista, experimentando, satisfatoriamente, a cor e a luz local.
Anterior a ele, pintores românticos traduziram a questão do nacional na temática indianista, em
que representavam os personagens indígenas dos contos de, por exemplo, José de Alencar,
como essência da nossa brasilidade.
A década de 1920 foi para os artistas o período de descobertas, de enfrentamento e de
conquistas profundas e revolucionárias para a Histó;ria da Arte brasileira.
21
II
PINTURAS DE NEGROS ANTES DE PORTINARI
No período colonial, por volta do século XVII, diversos artistas viajantes, integrantes de
missões científicas, produziram imagens referentes aos tipos e costumes existentes no Brasil.
Artistas como Albert Eckhout e Frans Post integraram a comitiva de Maurício de Nassau e
registraram as paisagens os e tipos humanos que aqui encontraram, assim como as riquezas
da fauna e da flora, de maneira alegórica 5numa época em que arte e ciência encontravam-se
imbricadas. No século XVIII houve o impedimento da entrada desses viajantes estrangeiros na
colônia pelo governo ultramarino para evitar o contrabando de ouro e diamante e,
consequentemente, essas pinturas sofreram alterações. Nesse período, os registros
encontrados foram feitos por estrangeiros que trabalhavam para a Corte, como Carlos Julião,
um militar a serviço da Coroa portuguesa, que reconhecia a sua falta de apuro técnico
(MOURA, 2012).
No século XIX, artistas vindos com a Missão Artística Francesa, em 1816,
encomendada por Dom João VI para a criação e construção da Academia Real de Belas Artes
aos moldes da Francesa, fizeram diversos registros da cidade do Rio de Janeiro. Além da sua
função principal de instituir e sistematizar o ensino das Belas Artes no Brasil, estes artistas
também documentaram o cotidiano na cidade enquanto aguardavam a construção do edifício
da Academia. Dessa leva de artistas, destaca-se Jean-Baptiste Debret, que representou a vida
dos escravos na cidade em aquarelas, que reuniu no seu famoso livro “Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil”. No mesmo período, outros artistas, denominados viajantes, trataram de
representar o cotidiano durante suas estadas na América. Nome expressivo da arte nesse
período e popular atualmente pela representação da escravidão é Johann Moritz Rugendas.
Dessa forma, a representação pictórica de negros, desde a chegada dos primeiros
escravizados com o tráfico negreiro, e das misturas raciais entre brancos, índios e negros entre
si foi realizada por artistas europeus (CONDURU, 2007).
Na segunda metade do século XIX, num contexto em que os processos abolicionistas
ganham volume, e início do século XX, com a abolição da escravatura efetivada há uma
década, a representação de pessoas negras ruma em outra direção. A então Academia
Imperial de Belas Artes, de 1826, que se tornou na República a Escola Nacional de Belas
Artes, mesmo preocupada em reproduzir os padrões europeus de ensino e produzir obras para
atender aos anseios de uma clientela desejosa de sua representação como sinônimo de status
social, tiveram como seus integrantes, artistas que desenvolveram, mesmo que fugaz, a
temática do negro, indicadora de uma modernização na arte (MOURA, 2012).
5
Compreendemos alegoria como obra de arte, seja pintura ou escultura, que representa uma ideia abstrata por meio de formas
que a tornam compreensível.
22
Neste capítulo, a análise das obras de arte será problematizada com a história e o
pensamento social brasileiro da época a fim de auxiliar a percepção da posição do negro na
sociedade e principalmente, na pintura, e verificar os possíveis desdobramentos na pintura de
Candido Portinari.
Ao analisar o quadro, verificamos que o pintor pretendia transmitir a ideia de que Simão
era um homem forte, com peito à mostra e braço musculoso. Sua cabeça, proporcionalmente
menor que o tronco, revela um rosto com muitos detalhes, feição que não demonstra nenhum
sentimento ou ação, traço do estilo Neoclássico, reproduzindo os ensinamentos do gênero
retrato da Academia.
Apenas a partir do título da obra e da ciência de sua história, o quadro nos desvela um
homem digno pelo seu feito, merecedor de uma pintura a óleo, fugindo à representação em
que o negro costumeiramente aparece. Ao denotar valentia, virilidade de maneira dignificante
ao intrépido marinheiro, Correia de Lima atesta os pressupostos pedagógicos acadêmicos de
ensinar valores éticos e afasta-se da representação que se fazia dos negros no Brasil até
meados do século XIX. Segundo Eneida Sela (2008) a palavra “negro” tinha a mesma
conotação de “africano” e “escravo”, assim, a maior parte dessas representações
apresentavam os negros no mundo do trabalho. Esta conotação de trabalho, não digno de
homem branco, representante da elite, da nobreza, que não se vestiria com a simplicidade que
Simão foi representado. Nem seria retratado sem as insígnias que caracterizavam a sua
posição na sociedade, como Simão o foi, sem nenhuma paisagem ao fundo que fizesse
referência ao seu feito ou justificasse sua estada no Salão. Os elementos que fazem alusão a
sua função e posição social são a corda que segura, suas roupas e o título.
O naufrágio e a bravura do marinheiro africano ficaram no imaginário popular durante
alguns anos, principalmente pela ação de Francisco de Paula Brito, um dos nomes mais
importantes dos grupos editoriais do Brasil em meados do século XIX. Paula Brito publicou um
artigo intitulado “Preto Simão” em seu principal jornal, o Marmota Fluminense em 8 de
novembro de 1853, apenas quatro dias após a primeira notícia publicada no Jornal do
Commercio. Em seu texto, Paula Brito reconta a história do naufrágio e do heroísmo de Simão
com riqueza de detalhes e enfatizava as implicações ideológicas de tal feito. Rafael Cardoso
(2008) transcreve um trecho em que Paula Brito destacava que era “tanto mais louvável
quanto, sendo ele Preto, todos aqueles a quem salvava eram Brancos, entrando neste número
senhoras casadas, moças donzelas, e crianças, a quem ele respeitava e animava cheio de
confiança em si” (BRITO apud CARDOSO, 2008, p. 49).
Francisco de Paula Brito também era negro e foi um militante pela abolição da
escravatura e pela extinção do preconceito de cor no Brasil. Era editor do jornal Homem de cor
(1833), primeiro periódico engajado no combate ao racismo. Ficou tão interessado na história
de Simão que dedicou-se a imortalizar sua imagem. Ao final do primeiro artigo publicado sobre
o marinheiro africano, Paula Brito anunciou que iria apresentar o retrato deste Herói. E assim o
fez, em 11 de novembro de 1853, publicou uma estampa no jornal e distribuiu para seus
assinantes e acionistas um retrato litográfico a fim de que sua imagem circulasse (Figura II.2).
Comparando-se as duas imagens, é perceptível a semelhança no enquadramento e nas
feições do rosto de Simão. O que difere é posição do braço e suas vestimentas, pois aqui é
apresentado de casaca, camisa e gravata, como um senhor fino, com cabeleira penteada e
proporções corporais mais condizentes. Não se sabe se a litografia foi realizada a partir da
pintura de José Correia de Lima, já que o procedimento para confecção de uma litografia era
exatamente a cópia de uma imagem existente, como pintura, desenho ou fotografia
25
(CARDOSO, 2008), ou teria sido o contrário, pois também há especulações de que o quadro
pintado poderia ainda estar inacabado (MARINO, 2013). De fato, a pintura de Correia de Lima
tem contornos definidos e realistas apenas no rosto de Simão, enquanto que o torso, o braço e
o fundo foram pintados com pinceladas fluidas, sem precisão. Além disso, não existe
assinatura. Para análise de especialistas em Arte Acadêmica a pintura a óleo seria considerada
mal realizada ou o artista teria sido influenciado por tendências europeias de renovação das
artes plásticas (CARDOSO, 2008).
Contudo, antes mesmo da exposição do quadro de José Correia de Lima num Salão
Oficial, a atitude de Francisco de Paula Brito, que fortaleceu a divulgação e a permanência do
26
feito e das honrarias a Simão no imaginário das pessoas à época, teve, possivelmente, um
cunho racial, já que Paula Brito militava contra o preconceito de cor. Fortuitamente, a influência
que as potências editoriais exerciam e ainda exercem sobre a população, neste caso, foi
extremamente positiva para a discussão atual sobre o combate ao racismo e a defesa da
negritude.
Para a História da Arte Brasileira é inegável a contribuição do quadro em questão para
o debate sobre o racismo nas Artes. O negro, que até então era representado apenas como um
“espécime”, que tem variações de tipos étnicos, de características, de vestimentas, de
costumes (SELA, 2006), no entanto, neste quadro, o negro é apreciado, mostrado com sua
individualidade, com sua humanidade valorizada.
Outro exemplar pictórico sujeito à análise nesse sentido é o quadro “Príncipe Obá”
(1886) (Figura II.3), de Belmiro de Almeida. A tela é um retrato de um homem negro,
personagem ilustre das ruas do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX conhecido
como Príncipe Obá II d’África. Nascido no sertão da Bahia, Cândido da Fonseca Galvão, era
filho de africanos forros e neto do poderoso rei Alafin Abiodun, o unificador do Império Oyó, o
povo ioruba de África (SILVA, 2003).
Após a morte de seu avô, seu reino entrou em decadência, sofrendo várias invasões e
perdendo os seus para o comércio de escravizados que os enviava para a Bahia. Numa
dessas batalhas ou vítima de traição no Palácio, um dos 660 filhos de Abiodun foi capturado e
enviado para o Brasil como escravo, onde recebeu o nome cristão de Benvindo. Aqui,
utilizando-se de sua descendência e autoridade de príncipe, provavelmente, envolveu a
comunidade ioruba em cotização para a compra de sua alforria, que aconteceu com grande
rapidez. Seu filho, então, nasceu no Brasil já livre, na Vila dos Lençóis, no sertão da Bahia
(SILVA, 2003).
O príncipe d’África, em ocasião da Guerra do Paraguai, apresentou-se na Corte do
Império no Rio de Janeiro como Voluntário da Pátria para lutar, de onde saiu oficial honorário
do Exército brasileiro por bravura. Auto intitulou-se Príncipe Obá II d’África6 e viveu como um
nobre na “Pequena África”, a região Portuária do Valongo, onde muitos africanos residiam. Era
reconhecido pelo povo negro como um príncipe real, porém era visto como “meio amalucado”
pela elite, mesmo tornando-se amigo pessoal de Dom Pedro II (SILVA, 2003). Tornou-se um
defensor da abolição dos escravos, principalmente depois de findada a Guerra do Paraguai,
pois naquele lugar, seus governantes efetivaram a abolição da escravatura e garantiram a
liberdade a quem permanecesse em seu território.
6
Obá significa Rei em ioruba.
27
Dom Obá II era ferrenho defensor da monarquia, liderou um movimento negro na época,
que o auxiliava nos custos da publicação de seus artigos nos periódicos sempre voltados para
dignificação dos negros. Eduardo Silva, em seu artigo, expõe o que o príncipe Obá pensava
sobre as relações raciais:
“No tocante às relações raciais, por exemplo, o príncipe Obá
pensava completamente diferente de seus contemporâneos da
elite, que viam as raças diferentes. Para Dom Obá, ao
contrário, as raças pareciam essencialmente iguais. Por isso, o
combate ao racismo, a defesa da igualdade fundamental entre
homens, era um dos pontos centrais de seu pensamento e
prática política. Defendia Dom Obá, naquele Brasil senhorial e
escravista, que o valor dos homens não estava na cor da pele,
como muitos ainda pensavam, mas no mérito, no valor
guerreiro e humano de cada um.” (SILVA, 2003, p. 51)
7
Pince nez é uma palavra francesa que foi transformada em pincenê em nossos dicionários. Significa óculos sem haste que
prende no nariz.
29
desapareceu na margem esquerda do quadro. Isto poderia significar um passado não tão
distante, no entanto, desconhecido.
Nas duas obras analisadas até aqui, o contexto em que foram constituídas foi
fundamental para a compreensão da representação de pessoas negras. Ambos tiveram função
social destacável em sua época na problematização da questão racial e, por isso, podem ser
encaradas também como um fato histórico. No debate das relações raciais de meados do
século XIX, podemos observar uma movimentação de setores da sociedade, composta de
negros, buscando meios para divulgar a necessidade de valorizar o “homem de cor”, de
conquistar igualdade de direitos e de banir a escravidão da Pátria.
Essa, por conseguinte, realiza o cruzamento entre ela, mestiça, e um homem branco,
provavelmente europeu, em referência a imigração de italianos, alemães, portugueses que
foram financiados pelo governo para, além de integrarem a lavoura como mão de obra
assalariada, promoverem o branqueamento da população e a extraordinária possibilidade de
civilizá-la. Desejo que no quadro foi conquistado. A mulher negra agradece a Deus pela
“benção” de ter branqueado sua família, enquanto o homem olha o bebê com cara de
31
De acordo com a análise de Rafael Cardoso (2008), a obra não tem nenhuma
referência do Impressionismo ou de alguma outra corrente estilística, não há nenhuma
inovação na linguagem pictórica. Pelo contrário, foi realizada absolutamente dentro dos
padrões acadêmicos de inspiração neoclássica. O que a torna relevante à época é a sua
temática.
Do ponto de vista do tema, este está em conformidade com a expressão da época
“daquilo que havia de mais ‘científico’ no pensamento brasileiro: isto é, a antropologia física de
matriz etnográfica e o sociologismo evolucionista vagamente inspirado nas ideias de Herbert
Spencer” (CARDOSO, 2008, p. 103). Aqui, as visões científicas e artísticas coincidem,
identificando a imagem com os setores mais avançados da ideologia de progresso e saber
científico republicanos para reformar a nação.
Outro elemento interessantíssimo para o debate é a associação de uma passagem
bíblica do velho testamento enunciado no título da obra e a cena que se apresenta. Cam (ou
Cã e Cão) foi um dos três filhos de Noé, amaldiçoado por ele após ter zombado do pai bêbado
e nu. Seus descendentes, que foram se refugiar em regiões da África, também foram
amaldiçoados. Daí reforça-se a ideia de que os africanos eram amaldiçoados, inferiores.
Segundo Rodrigues, esta ideia foi uma estratégia da Igreja Católica contra o avanço do Islã na
África e que favoreceu a colonização de Portugal (RODRIGUES, 2013). Na cena de Brocos a
maldição é superada.
Indubitavelmente, esta obra traduz o pensamento da sociedade brasileira de transição
do século XIX para o XX em relação aos negros. O discurso contido na tela nos afirma que os
próprios negros reconheciam sua inferioridade e logravam ao branqueamento, sinônimo de
ascensão, de melhoria, de felicidade. Decerto, quando se pintava negros no âmbito da
Academia, instituição oficial das Artes Visuais no Brasil de então, algo de revelador nos salta
aos olhos.
Nos dois primeiros quadros, a valorização do retratado, apesar da sua “raça”, é o tema.
A representação de negros importantes na história do país certamente contribuiu para extinção
dos maiores horrores praticados pela humanidade, a escravidão. Já no terceiro, a situação é
inversa, o branqueamento é que contém valor. Em outro momento histórico, ainda sob
influência dos resquícios da escravidão, pode-se perceber que todo esforço em prol da
abolição da escravatura não teve um desfecho satisfatório no quadro de Brocos, pois o racismo
de antes explícito na perseguição física e psicológica passa a ser também ideológica quando
se nega a negritude e é legitimado pelas políticas públicas de branqueamento.
33
Esta corrente de cunho nacionalista, que lutava pela vinda de imigrantes europeus e via
nas más condições sanitárias em que se encontravam as cidades brasileiras um entrave para a
modernização, acabou contribuindo para o progresso do movimento de saúde pública. A
miscigenação com o imigrante, para um grupo considerável de profissionais da saúde pública,
era bem visto, deixando claro a influência do racismo “científico”.
Outros intelectuais sanitaristas vão se aproximar da crítica às teses do determinismo
racial na medida em que reconhecem que a apatia, a incapacidade física e mental, e o atraso
do povo brasileiro são provocados pela doença e pelo descaso dos governantes que
abandonaram a população rural e a das periferias das cidades. Nesse sentido, Belisário Penna,
aponta determinantes de natureza social e política: “a abolição abrupta do trabalho escravo, a
extensão relativamente rápida das redes ferroviárias e a ausência de incentivo à atividade
rural” (PENNA apud LIMA; HOCHMAN, 1996, p. 31). Para Penna,
denotam força e fragilidade, pois é forte, e ao mesmo tempo, rude e carente de civilização
(LIMA; HOCHMAN, 1996). Esta obra tornou-se um marco de referência para os intelectuais da
campanha de saneamento, associando a situação do sertanejo ao abandono dos governantes.
Os centros urbanos e o interior rural eram realidades completamente díspares na virada
do século XIX para o XX. Enquanto a população do interior vivia no sertão longínquo, onde
viviam libertos, indígenas, mulatos, todos à margem das transformações impostas pelo
progresso, ao lado do passado escravocrata, esquecido e alijado da memória da época. Na
cidade, novos cenários urbanos surgem, “com seus senhores e senhoras vestidos à última
moda de Paris, automóveis, edifícios, restaurantes, teatros, lojas variadas e todo tipo de
traquitana adequada a esses novos tempos que pareciam ter pressa” (SCHWARCZ, 2012, p.
39).
A atmosfera nas cidades era de euforia, de certeza das elites emergentes na República,
de que a nova ordem do capitalismo, do progresso e da civilização caminha com o Brasil e com
a globalização mundial. O cenário histórico brasileiro nas primeiras décadas do século XX era
um dinamismo real da urbanização nas cidades confrontado com um Brasil inerte do interior.
“Modernização e tradição eram conceitos fortes nesse momento que previa mudanças, mas
experimentava continuidades de toda ordem” (SCHWARCZ, 2012, p. 41).
No campo artístico, os debates acerca do nacionalismo implicaram numa ruptura com a
tradição a fim de responder aos desafios do cenário histórico brasileiro no pós-guerra sobre o
que significaria ser moderno e como atingir a modernidade. Segundo Elias Thomé Saliba, dois
caminhos davam acesso ao mundo moderno, o primeiro via a modernidade como “uma espécie
de ordem universal à qual teria acesso de forma imediata pela simples adoção de
procedimentos considerados modernos” (SALIBA, 2012, p. 276). Tais procedimentos seriam a
conexão com os temas, as linguagens e as técnicas dos movimentos artísticos de vanguarda
desenvolvidos na Europa.
O segundo caminho supunha que o acesso ao mundo moderno se daria por meio de
uma “entidade nacional”, singular, original e originário da profunda realidade do país. “Por essa
outra ótica, o Brasil era apenas uma parte do concerto internacional e, portanto, precisava
descobrir sua própria identidade, especificidade e singularidade.” (SALIBA, 2012, p. 277).
Em 1922, ano da Semana de Arte Moderna Brasileira, foi um momento em que jovens
artistas e intelectuais nacionais promovem uma atualização na Arte, incutindo o imaginário do
Brasil como um país novo, uma civilização jovem, em comparação à Europa, velha e
decadente no pós-guerra.
Além de estarem comprometidos com a modernização das Artes, os intelectuais e
artistas dos anos de 1920 se opuseram à imagem de Brasil expressa pela estética passadista.
Estavam interessados na “reinvenção” ou “redescoberta” do país, encarando-o como parte de
36
“minha meninice foram as correrias e as brincadeiras de uma pedra a outra” (AMARAL, 2003,
p. 31), que conviveu com escravos, que teve ama de leite negra e professora belga para o
ensino do francês, além de consumir diariamente produtos franceses, como tecidos, água,
literatura, música. Foi esta dualidade que possibilitou a originalidade na obra de Tarsila, visto
que sob as referências das vanguardas europeias, como o cubismo e o surrealismo, utiliza-se
de suas memórias de criança para levar a temática da brasilidade a termo.
Em 19 de abril de 1923, Tarsila escreve uma carta aos familiares em que se mostra em
conformidade com a corrente que busca na “entidade nacional” a brasilidade:
Em 1923, Tarsila já havia conhecido Brancusi e sua obra “La négresse”. Os cubistas,
tanto Brancusi quanto Picasso, se interessaram pela escultura negra africana e seu sistema de
produção plástica de geometrização. Em suas obras, a arte africana é incorporada como uma
sugestão plástica. Na obra de Tarsila, a figura da negra não refere-se à arte negra, mas sim às
imagens de sua infância (ZILIO, 1982, p. 49).
A geometrização do plano de fundo, com planos horizontais, Tarsila retira do Cubismo,
que nega a profundidade do espaço pictórico renascentista, no entanto, esse fundo horizontal é
39
complementado com o que parece uma folha de bananeira em diagonal, nos aludindo à
paisagem brasileira.
Com a ausência de paisagem ao fundo podemos fazer um paralelo com a pintura de
Simão, que foi retratado sem a cena da sua história que justificaria a estada do quadro no
Salão. O único elemento referente, a corda, se compara com a folha de bananeira,
componentes históricos, o primeiro à história pessoal, e o segundo, em referência à história do
Brasil, a um ambiente rural no qual esta negra se localizaria.
Não representando uma personalidade definida, assim como Simão e Dom Obá II, “A
Negra” de Tarsila pode aludir a todas as negras brasileiras. Sua aparição, certamente nua, com
um grande seio à mostra nos apresenta outras indagações a cerca da maternidade, do ganho a
partir de seu próprio leite e da sensualidade atribuída às mulheres negras desde a escravidão,
justificativa para sua violação.
40
III
CAMINHOS DE CANDIDO PORTINARI
8
No spolvero, um desenho é feito em um molde, sendo esse desenho todo perfurado em seus contornos. Aplica-se o gesso na
parede que receberá o afresco, e sobre o gesso ainda molhado coloca-se o molde, batendo-se nele com uma boneca de tinta em
pó. Com isso o desenho fica impresso, e a partir daí realiza-se a pintura. Trata-se de uma das técnicas mais simples utilizadas em
pintura, especialmente difundida entre os pintores-decoradores do início do século XX.
41
A tela apresenta elementos antiacadêmicos como cores que realçam os tons mais
vibrantes, uma pincelada fluida como a dos impressionistas, tema do cotidiano e ruptura com a
centralidade do eixo. De fato, o júri desaprovou e o quadro foi recusado no Salão de 1924.
Apenas em 1928, com a pintura intitulada “Retrato de Mariano Olegário” (Figura III.3)
Candido Portinari vence a disputa no Salão de Belas-Artes, ganha o Prêmio de Viagem9 e vai
para Paris em 1929 com a intenção de aperfeiçoar-se.
9
O Prêmio de Viagem era concedido aos alunos da Escola Nacional de Belas Artes após receber a medalha de ouro nas
Exposições anuais das Belas Artes para aperfeiçoar seus estudos na Europa.
43
Segundo Fabris (1990), em artigo, Manuel Bandeira testemunhou que Portinari fez
concessões ao espírito da Escola e apresentou trabalhos inferiores a sua tendência
modernizante, que resultaram no Prêmio de Viagem à Europa.
Ao chegar em Paris, Portinari visita diversos museus com o objetivo de estudar, agora
em contato direto com obras importantes de artistas renascentistas como Giotto, Piero della
Francesca, Fra Angelico, e dos pintores da Escola de Paris, como Modigliani, Matisse e
Picasso. A viagem foi “uma forma de atualização, de contato direto com as grandes realizações
do passado e com as propostas do presente” (FABRIS, 1996, p. 18), diferentemente da maior
parte dos outros bolsistas que fizeram do prêmio um prolongamento do seu ateliê.
Ao contrário deles, Portinari quase não pintou, voltou ao Brasil em 1930 com apenas
três naturezas-mortas. Quadros que mostram os primeiros sinais de choque com a pintura
acadêmica por apresentar uma série de elementos modernos, sobretudo a espacialidade de
Cézanne, mesmo parecendo ainda produção do seu tempo de estudante da Escola Nacional
de Belas Artes. Ainda que o contato com a pintura francesa possa ter proporcionado uma
sensível mudança no trabalho de Portinari, essa teria ocorrido mais no âmbito da subjetividade
(ZILIO, 1982).
Em “Natureza-Morta” (Figura III.4), uma das obras que o artista trouxe da sua estada
em Paris, há uma considerável mudança em relação aos rígidos padrões da Escola de Belas
Artes, sobretudo no que tange à quebra da concepção do espaço renascentista. Nessa tela, a
cor foi trabalhada do modo a não mais figurar comprometida com a representação da
realidade, ganhando autonomia e passando a ser tratada pelas suas qualidades visuais. Essa
dinâmica na obra do artista foi ressaltada na sua produção realizada já no Brasil, em que
começou-se verificar uma simplificação na forma e na cor e um diálogo mais estreito com as
questões simbólicas da pintura moderna brasileira (ZILIO, 1982).
No Brasil, Candido Portinari encontrou a Arte Moderna razoavelmente integrada à vida
cultural brasileira. Obras importantes já haviam sido produzidas e o reconhecimento por parte
de teóricos como Mário Pedrosa já tinha conferido ao Modernismo Brasileiro um lugar de
destaque na cena artística nacional. Além do mais, algumas instituições culturais começaram a
ser ocupadas por modernistas, como Lúcio Costa à frente da Escola Nacional de Belas Artes e
Manuel Bandeira como diretor do Salão Nacional (FABRIS, 1990). Mesmo tendo apenas um
pequeno público aderido à Arte Moderna, Portinari encontrou um ambiente artístico menos
tenso do que haviam encontrado artistas como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Di
Cavalcanti, no período em que Carlos Zilio (1982) define como primeira fase do Movimento
Modernista Brasileiro.
Em 1931, Candido Portinari participou do novo Salão de Belas-Artes e recebeu críticas
positivas de Mário de Andrade. A partir daí, foi notado por um pequeno número de intelectuais
44
jovens, que o viram como o representante plástico do Modernismo Brasileiro (FABRIS, 1990),
pois estudou na Academia, mas a transgrediu quando desenvolveu uma estética fora dos seus
padrões.
Nesse primeiro momento, após a sua chegada de Paris, em que realiza uma exposição
no Rio de Janeiro em 1932 e outra em São Paulo em 1934, Candido Portinari apresentou
novos quadros e aquarelas que representam as reminiscências de Brodowski, as memórias da
sua infância no interior, das brincadeiras, do circo, das corridas atrás do palhaço, das festas,
45
bailes, procissões e banda de música, do pequeno cemitério e da ligação com a terra roxa,
através da grande espacialidade construída nas suas composições.
Annateresa Fabris (1990) destaca que Portinari recebeu, de quase todos os críticos
paulistas, apreciações entusiasmadas do seu trabalho, os quais encontraram em sua
linguagem um elemento expressivo único, a heterogeneidade. Para Mário de Andrade, ela não
era um defeito, nem um amadorismo, e sim o dilema do artista de sua época, que é ao mesmo
tempo artista pesquisador de uma linguagem e homem social. “É o drama ainda do estudioso
de uma curiosidade insaciável, que de tanto estudar, virou virtuose. Porque Portinari, além do
mais, é um virtuose” (ANDRADE apud FABRIS, 1990, p. 8).
Sobre Mário de Andrade caracterizar Portinari como um virtuose, Tarcila Soares
Formiga (2014) complementa que por ocasião da primeira exposição desse artista em São
Paulo, no Clube dos Artistas Modernos em 1934, o autor escreveu um texto intitulado Portinari,
em que busca traçar as influências do pintor em De Chirico, Picasso e Brueghel, ao mesmo
tempo, o diferenciando deles. Além dessa identificação, Mário de Andrade enfatiza o
virtuosismo de Portinari pela maestria com que domina as técnicas de pintura de cavalete e
pela sua expressividade, que é sobrepujada pelo uso do material e pela composição do
quadro, uma vez que ele abandona o que denomina de “valor social do quadro” (FORMIGA,
2014, p. 90). Mário de Andrade não enxerga tal abandono como algo negativo, mas como
ênfase da origem do virtuosismo de Portinari nos problemas da própria pintura (FORMIGA,
2014).
Candido Portinari produziu trabalhos com temática religiosa, além dos retratos da elite
(Figura III.5), como o de José Joaquim Seabra10, e das pinturas de cunho social, compondo
uma vastíssima produção. Experimentou diversos materiais, e ao longo de sua trajetória
artística esteve atento aos problemas técnicos. E na procura pela sua linguagem, vai buscar
nas suas memórias as imagens que representassem o Brasil que interessava aos modernos.
Primeiro, encontrou nas lembranças de sua infância a temática, as cores, as formas na
“atmosfera” que representaria a modernização da sua linguagem, como exemplo a tela “Circo”,
de 1933 (Figura III.6).
Como relatou Mário Pedrosa, após satisfeitas as reminiscências infantis, o artista
emigrou para a cidade onde começou a observar a vida nos morros, e com eles os diversos
agentes sociais que emergiriam na sua obra a partir de então.
10
José Joaquim Seabra (1855-1942) foi político baiano de grande projeção, além de diversos cargos parlamentares e executivos,
foi Ministro da Viação, do Interior e da Justiça, e presidente da Bahia em duas gestões. O seu retrato foi encomendado pelos
diretores da Academia Brasileira de Letras a Candido Portinari, em homenagem ao seu benfeitor que colaborou para expansão e
consolidação da instituição (MICELI, 1996).
46
Candido Portinari esgotou sua série de pinturas em que mergulha nas suas memórias
para buscar sua referência de brasilidade e passou a ser um observador mais atendo à sua
época, buscando o símbolo da nacionalidade. Neste momento, descobre os morros cariocas e,
ao analisá-los, Portinari percebeu as pessoas negras e mestiças como símbolo desse novo
Brasil que se apresenta aos artistas e intelectuais da época, configurando e estruturando uma
visão nacionalista. Em 1933, pintou a tela “Morro” (Figura III.7), o ponto de partida para a
presente pesquisa.
Analisando as figuras humanas apresentadas neste quadro verificamos a representação
de pessoas negras e, ao termo da época, mulatas. Observamos, especificamente, um homem,
sete mulheres e cinco crianças num morro. Este lugar que intitula a obra faz referência às
48
intensas ocupações nos morros cariocas após a abolição da escravidão, que se somou à
grande imigração de europeus pobres que chegavam ao Brasil nas primeiras décadas do
século XX, ocupando essas regiões mais baratas e mais precárias em urbanização
(Magalhães, 2010).
As roupas simples evidenciam a posição social que ocupam. Verifica-se que a maioria
das pessoas está descalça, fato que, segundo Mary Karasch (2000), caracterizava a distinção
entre o escravo liberto de outro ainda em situação de cativeiro. Segundo a autora, os cativos
não utilizavam calçados, o que servia, sobretudo, para distinguir as diversas categorias e tipos
sociais presentes na população negra brasileira até o século XIX. No entanto, esta obra foi
produzida quarenta e dois anos depois da abolição da escravatura, o que nos leva a indagar
sobre a possibilidade dessa representação traçar, propositalmente ou não, uma aproximação
com o período da escravidão.
49
Figura III.8 Jean-Baptiste Debret. Uma brasileira mulata indo passar as festas de Natal no campo, 1826.
Aquarela sobre papel, 15,3 x 23,6 cm
Rio de Janeiro. Coleção Museus Castro Maya
11
Jean-Baptiste Debret (1868-1848) foi um dos artistas franceses que integraram a Missão Artística Francesa, encomendada por
D. João VI para fundar o que ficou conhecida como Academia Imperial de Belas Artes (1826), e sistematizar o ensino das Belas
Artes aos moldes do Neoclassicismo francês.
50
Com exceção da criada de quarto da mãe das crianças, indicando o status social dessa
mulher mulata, as pessoas negras não estão usando sapatos. A fila indica o local social que
cada uma delas ocupa, assim, as crianças negras em última posição informam ao observador
que na organização da população escrava os mais jovens seriam os menos úteis devido ao
fato de lhes faltar a força física necessária ao trabalho servil, além do escravo novo, pouco
adaptado à condição de subserviência e ainda pouco conhecedor das estruturas hierárquicas
do grupo ao qual foi inserido (BANDEIRA; LAGO, 2013).
Dialogando com estas aquarelas de Jean-Baptiste Debret, a obra “Morro” (Figura III.7)
de Candido Portinari, pintada em 1933, - quase meio século após a abolição da escravatura,
em 1888 - ainda apresenta pessoas, mesmo não sendo escravas, ocupando espaço social e
simbólico semelhante ao indicado nas referidas aquarelas, produzidas cerca de cem anos
antes. A separação entre o espaço urbano do fundo e o morro, de condições de saneamento,
distribuição de água e urbanização precárias, informa ao espectador que a imagem trata de
pessoas que ocupam um lugar subalterno na hierarquia daquela cidade.
52
Maria
Lava roupa lá no alto
Lutando
Pelo pão de cada dia
Sonhando
Com a vida do asfalto
Que acaba
Onde o morro principia.
12
Casebre significa casinhola, casa pobre e pequena no Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 7.0.
13
Título “Lata d'água” (1952) samba interpretado por Marlene, de composição de Luís Antônio e Jota Jr. Disponível em:
<http://www.vagalume.com.br/marlene/lata-dagua.html#ixzz3oJBAxDrW> Acesso em: 11 out. 2015.
14
Germano Mathias (1934) é sambista paulista e relata como era o malandro há quarenta anos atrás, numa entrevista em áudio.
Disponível em: <http://culturabrasil.cmais.com.br/playlists/se-segura-malandro-2> Acesso em: 07 nov. 2015.
53
O malandro tem sua imagem difundida pelo cinema, com filmes sobre os carnavais
cariocas dos anos 40 e 50 (ROCHA, 2011), e internacionalmente com os filmes de Zé Carioca,
que mostram a harmonia e o exotismo do país de norte a sul. Era o olhar do estrangeiro que
reconhecia no malandro uma síntese local, isto é, “a mestiçagem, a ojeriza ao trabalho regular,
a valorização da intimidade das relações sociais” (SCHWARCZ, 1998, p.199).
Bem ilustrado em letras de sambas, na década de 1930, uma nova figura se impunha, a
do malandro como valor positivo, “como malandragem fina”, como na música de “O que será
de mim” de Francisco Alves, Ismael Silva e Nilton Bastos, datada de 1931 (SCHWARCZ, 1998,
p.199).
“Se eu precisar algum dia
De ir pro batente
Não sei o que será
Pois vivo na malandragem
E vida melhor não há
Minha malandragem é fina
Não desfazendo de ninguém
Deus é quem nos dá a sina
E o valor dá-se a quem tem
Também dou a minha bola
Golpe errado ainda não dei
Eu vou chamar Chico Viola
Que no samba ele é rei
Dá licença seu Mário
Nos anos 50, com postura bem-humorada, bom de samba e bom de bola, o malandro é
mestre no “jeitinho brasileiro”, que “longe dos expedientes oficiais usava da intimidade para o
seu sucesso” (SCHWARCZ, 1998, p. 200).
54
Até os dias atuais, a figura desse malandro é reiterada em letras de samba como na
música “Malandro é malandro e mané e mané” (2000) de Bezerra da Silva 15 no trecho abaixo:
“E malandro é malandro
Mané é mané
Podes crer que é
Malandro é malandro
E mané é mané
Diz aí!
Podes crer que é...
Malandro é o cara
Que sabe das coisas
Malandro é aquele
Que sabe o que quer
Malandro é o cara
Que tá com dinheiro
E não se compara
Com um Zé Mané
Malandro de fato
É um cara maneiro
Que não se amarra
Em uma só mulher...”
No entanto, no final da década de 1930, uma série de medidas foram tomadas pelo
Estado para inibir a influência dessa personagem. Em 1938, o Departamento Nacional de
Propaganda (DNP) procurou alterar a representação do trabalho e do trabalhador, proibindo a
partir de uma portaria oficial em 1939 a exaltação da malandragem e, em 1940, recomendando
aos compositores sambistas a adotar temas que exaltassem o trabalho e condenassem a
boemia. Segundo Schwarcz:
15
Bezerra da Silva (1927-2005), era cantor, compositor, percussionista, violonista. Nasceu no Recife, mas ficou popular através de
seus sambas que tratavam dos problemas sociais das comunidades. Disponível em: <
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bezerra_da_Silva> Acesso em: 07 nov. 2015.
55
característica atávica, inata à “raça”. No entanto, na década de 1930, essa questão passou a
ser vista como uma característica cultural.
Nesta perspectiva, a pintura social de Portinari nos apresenta, diferentemente dos
artistas modernos anteriores a ele, um dado de realismo, ou seja, busca retratar situações
concretas, imediatas. As figuras de sua tela são personagens da vida real, representadas num
espaço configurado com elementos da pintura moderna, estruturados na noção de arte social e
de nacionalismo. Carlos Zilio coloca que:
16
“Águas” aqui refere-se às duas partes do telhado que formam um triângulo.
56
intensificando a ação pela abolição da escravidão. Os libertos exerciam diversos ofícios, como
sapateiro, barbeiro, sangradores, lavadeiras, vendedores de rua (quitanda) e carregadores
(cangalha). Além da possibilidade legal da libertação, a cidade permitia uma chance maior de
anonimato para os escravos fugidos das fazendas. Dessa maneira, nessas “cidades negras foi
se tecendo uma rede de socialização e sobrevivência paralela à escravidão que cada vez mais
representava uma alternativa concreta à senzala” (ROLNIK, 2007, p. 77). Da fuga surge o
quilombo, lugar liberto da escravidão. Havia também quilombos nas cidades assim como no
meio rural, porém esses quilombos urbanos podiam ser cômodos ou casas coletivas e roças de
periferias. Outros territórios negros urbanos foram as irmandades religiosas negras e os
mercados.
Com o fim da escravidão e a substituição da mão-de-obra negra escrava pela do
imigrante europeu, a densidade demográfica na cidade do Rio de Janeiro, assim como também
em São Paulo, cresceu enormemente. A abolição também representou o deslocamento do
regime escravocrata para o trabalho livre e assalariado, a redefinição territorial e o processo de
embranquecimento. Segundo Rolnik:
Desta maneira, menos que São Paulo, o Rio de Janeiro também embranqueceu após a
abolição, no entanto, mesmo assim, permaneceu a cidade com maior concentração de negros
no Sudeste, provavelmente, pela menor entrada de imigrantes europeus e pela migração de
libertos do campo para a cidade devido à decadência da produção de café na província
fluminense no final do século XIX.
De fato, as duas cidades sofreram mudanças na virada do século XIX para o XX,
transformações profundas no que tange o crescimento da população e o aumento da
densidade demográfica, que significaram também o embranquecimento e a reconfiguração
territorial. A transição de um regime senhorial-escravista para a capitalista refletiu na
reestruturação da cidade através da urbanização, “uma espécie de ‘limpeza’ da cidade,
baseado na construção de um modelo urbanístico e de sua imposição através da intervenção
de um poder municipal recém-criado” (ROLNIK, 2007, p. 80). Assim, tanto em São Paulo
quanto no Rio de Janeiro, o foco dessa intervenção urbana foi o território dos negros. A
58
violência dessa transformação foi mais intensa no Rio do que em São Paulo porque era a
cidade maior, mais importante e que ainda preservava muito da presença negra.
A virada do século XIX ficou conhecida como a “era do bota-abaixo” no Rio de Janeiro
de tão drástica que foi a reforma urbana. No final do século XIX, os casarões da classe
dominante abandonados do Centro deram abrigo aos pretos e pardos, que em grande parte
não tinham nenhuma profissão. Além de local predominante de moradia, o Centro também era
o lugar de onde tiravam o seu sustento como ambulantes, pedintes, quituteiras, vendedores,
prostitutas etc. “Era no Campo de Santana (hoje Praça da República) e nos pátios e avenidas
dos cortiços, que se transformavam em terreiros de samba, jongo ou macumba, que o território
negro do Rio de Janeiro se estruturava na virada do século” (ROLNIK, 2007, p. 82).
As obras de reformulação urbana, iniciadas em 1904 pelo engenheiro e então Prefeito
Pereira Passos até a inauguração da Avenida Central por Rodrigues Alves em 1935,
promoveram grandes transformações no Centro e na área portuária da cidade, local de
concentração da ocupação dos negros, atingindo quilombos na região da Saúde e Gamboa, e
cortiços e habitações coletivas da Cidade Nova (Sacramento, Santa Rita, Santana e Santo
Antônio). Segundo Raquel Rolnik essas reformas ocorreram:
É interessante colocar que estes espaços não eram habitados exclusivamente por
pessoas negras. Desde a escravidão, se misturavam a essas pessoas indivíduos excluídos do
processo de transformação da sociedade brasileira numa sociedade de classes, fazendo surgir
17
O compound, como é denominado nos países africanos de língua inglesa, seria uma série de cômodos unidos que dão para um
pátio ou quintal comum. Geralmente, habitado por família extensa.
59
um grupo que ocupa uma posição subalterna fruto das desigualdades surgidas na má
distribuição da riqueza produzida. Entretanto, simbolicamente esses territórios estavam
permeados pela presença negra que fixou ali sua cultura.
Portanto, analisando o quadro (Figura III.6), observamos a tradução da realidade
descrita por Raquel Rolnik, em que o território destinado às pessoas negras é o espaço do
morro, apresentado nos primeiros planos da composição pictórica, distante e alijado da cidade
com prédios altos à beira do mar, longe da tecnologia e do poder econômico representados
pelo barco e pelo avião.
A cidade impõe sua verticalidade. Os arranha-céus apontam para o alto e para o
progresso. O avião passando no céu indica que a sociedade das máquinas chegou e com ela o
progresso, restrito ao espaço urbano, deixando de fora desse processo boa parte da população
brasileira, que neste momento, além de formada por ex-escravos, agrega os excluídos da
sociedade de classes.
Da mesma forma que a reforma urbanística da cidade do Rio de Janeiro expulsa do
Centro para mais longe boa parte da população negra do desenvolvimento e do conforto da
vida urbana, a sociedade industrial cria seus espaços de exclusão. Em sua tela, Portinari revela
essa desigual relação, deixando clara a distância econômica e simbólica dessas duas
realidades.
Outra obra em que Candido Portinari nos faz refletir sobre as desigualdades oriundas
da sociedade urbana/industrial/republicana é a “Mulher e criança” (1936) (Figura III.10). O
quadro apresenta uma mulher e um menino em primeiro plano com o morro e o mar ao fundo.
As personagens em primeiro plano seguem o formato corporal apresentados em “Café”
(Figura III.19), obra produzida um ano antes e que será analisada mais adiante. Com corpos
volumosos, pés e mãos avantajados, a mulher e o menino apresentam a “deformação”
característica da linguagem que Portinari busca consolidar nesse período, a qual uma das
vertentes trata os volumes de forma escultórica e simplificada (FABRIS, 1990). A simplificação
se dá por meio das linhas que delimitam olhos, nariz, boca, unhas das personagens. Um
contorno de cor escura em algumas partes do corpo da mulher e do menino criam uma
separação entre eles e o fundo, enfatizando a profundidade, na mesma medida que afirma uma
expressão plástica.
A mulher segura um lenço na mão direita, que parece enxugar o suor de sua testa. O
volume de seus seios, da barriga e da perna é ressaltado pelo jogo de luz e sombra em sua
pele e mais ainda em seu vestido. Sua fisionomia não apresenta expressão de sentimento. A
outra mão da mulher está apoiada na cabeça do menino que, voltado ¾ para a esquerda, tem
o rosto numa penumbra, sem muitos detalhes. Sua figura também é trabalhada com a luz e a
sombra para atribuir-lhe volume escultórico. As duas personagens, juntamente com o que
parece uma moringa de cerâmica, da mesma cor que os corpos formam uma pirâmide em
60
A questão racial que se impõe neste relato não é debatida pela autora quando o cita, no
entanto, nos é evidente um determinismo da posição do negro na sociedade brasileira, quando
Portinari disse “que não emergirá nunca do subsolo social”, quando se refere a sua condição
de humano “ingênuo”, “alegre” com limitações, “humilhado” no seu íntimo, que ninguém se
importa, e ao imaginário sobre esse negro, arraigado na escravidão e distante da alegria do
progresso. Assim, Candido Portinari nos esclarece sob a sua visão a respeito do “negro”,
justificando como executa a temática articulada com o tratamento das pinceladas, da cor,
enfim, dos elementos visuais da composição.
Em “Cabeça de Negro” (Figura III.11), a figura humana recebe tratamento realista, com
perfeitas proporções e volumes que realçam os detalhes de toda a sua face e busto. O
tratamento de traços caricaturais se aplica ao fundo. Aqui, Candido Portinari passeia pelas
suas vertentes pictóricas.
Mesclando as linguagens, o artista pinta com minuciosos detalhes. O rosto apresenta
feições características negras como lábios carnudos, nariz largo, cabelos crespos. A luz e a
sombra produzem um volume que delimita a anatomia facial do homem tornando sua figura
muito próxima da de um homem real. O contraste da pele negra com a camisa branca enfatiza
seu rosto, assim como o fundo em cor clara. A correta proporção da cabeça em relação ao
corpo confirma sua escolha pelo gênero de pintura retrato.
Ao fundo, em linhas mais despojadas e pinceladas mais fluidas, Portinari nos apresenta
uma paisagem de periferia, distante da cidade de ruas calçadas, de prédios, de carros, na qual
se vê, à direita, parte de uma casa com portão azul com quintal que é a base de um morro de
terra e pouca vegetação. Vê também um caminho com perspectiva evidenciada pela cerca e
pelos altos postes de luz, que levam a uma planície de cor clara, seguido de um morro alto com
vegetação abundante e um horizonte azul. Do outro lado, um morro verde e florido, com uma
igrejinha no alto e, no céu, voam urubus em um dia claro.
Portanto, a espacialidade aqui não se trata de um morro, pois se vê o horizonte no
mesmo nível do caminho que aparece atrás deste homem. E neste lugar, há luz elétrica,
elemento que caracteriza uma tímida urbanização em relação ao morro das obras anteriores
64
(Figuras III.7 e III.10). No entanto, se trata ainda de um território negro, pois, como visto
anteriormente, as periferias das cidades também foram ocupadas pelos desalojados das
reformas urbanísticas dos centros.
A tela “Índia e Mulata” (Figura III.12), de 1934, foi apresentada na exposição que
Candido Portinari realizou em São Paulo em 1934, na qual também foi exposta a obra “Café”.
Tal evento foi registrado pelo crítico de arte e literatura Mário Pedrosa, que prenunciou ali o
encerramento do “ciclo brodosquiano” de Portinari.
Antes mesmo da análise da imagem em si, interessante se faz a apreciação do título.
“Índia e Mulata” se refere diretamente ao debate sobre “raça” e “etnia” desenvolvido no primeiro
capítulo desta pesquisa e à noção de mestiçagem que perpassa toda a discussão sobre “raça”
e toma um sentido positivo com a ideia de democracia racial surgido na década de 1930 com
os escritos de Gilberto Freyre.
Atendendo a uma nova demanda social, em que a ideia da “degenerescência do
mestiço” ainda representava um obstáculo para o desenvolvimento da sociedade brasileira,
Freyre retoma a temática racial, deslocando o conceito de “raça” para o de cultura, afastando o
caráter biológico e eliminando uma série de dificuldades provenientes da herança atávica do
mestiço (MUNANGA, 2008).
Na sua obra clássica “Casa-Grande e Senzala”, Gilberto Freyre explica a aproximação
sexual dos senhores brancos, latifundiários de monocultura da cana-de-açúcar, com mulheres
índias e negras escravizadas devido ao desequilíbrio provocado pela falta de mulheres
brancas. Essa aproximação deu origem à história da mestiçagem no contexto social agrário e
escravista do nordeste do Brasil nos séculos XVI e XVII, que, segundo Freyre, só foi possível
pela flexibilidade natural do português.
Na contramão do que afirmavam os teóricos da virada do século XIX para o XX, Freyre
aponta as contribuições positivas que negros e índios tiveram na cultura brasileira no que diz
respeito à culinária, à indumentária e ao sexo. “Freyre consolida o mito originário da sociedade
brasileira configurada num triângulo cujos vértices são as raças negra, branca e índia. Foi
assim que surgiram as misturas” (MUNANGA, 2008, p. 76). Paralelamente aos cruzamentos,
as três “raças” trouxeram com si suas heranças culturais, originando outra mestiçagem no
campo cultural, fazendo surgir, então, a ideia de democracia racial. Conforme Kabengele
Munanga, a dupla mestiçagem, biológica e cultural...
Como aponta Thomas E. Skidmore, Freyre não analisa a democracia racial do ponto de
vista da relação de poder assimétrica entre os senhores e seus escravos, do qual surgiram os
primeiros mestiços. Dessa maneira, sua análise reforçava o ideal de branqueamento, em que a
elite primitivamente branca assimilava traços culturais no íntimo contato com o africano e com
o índio, em menor escala. (SKIDMORE, 2012).
Na análise do quadro (Figura III.12), verificamos que as mulheres que intitulam a obra
são as figuras principais da composição. Elas ocupam o centro da tela, circundadas por uma
paisagem que se configura numa ilusão de profundidade, em que o artista utiliza a perspectiva
nas linhas da plantação à esquerda que se direcionam à linha do horizonte e sobem o pequeno
morro. Essa noção de profundidade em perspectiva marca uma espacialidade renascentista
italiana.
Outra perspectiva é traçada com o curso do rio, enfatizada pelo tronco apontado na
mesma direção. A leitura possível de fazer sobre a presença de um rio nessa paisagem é a
que Lilia Schwarcz comenta, em que “a mestiçagem era comparada a um grande e caudaloso
rio em que se misturavam – harmoniosamente – as três raças formadoras” (SCHWARCZ,
1998, p. 177). Assim, a mulata e a índia ali personificadas são produtos da mistura com o
branco, presente na paisagem, no latifúndio que se ergue ao seu redor. Como os quadros
anteriores de Portinari aqui analisados, o artista contextualiza suas personagens em ambientes
ao qual pertencem, assim, inscreve as mulheres, de diferentes origens étnicas, num contexto
67
rural e “branco”. Nessa perspectiva, podemos vislumbrar a alegoria da triangulação das três
raças que formam a ideia de democracia racial.
Além de usar um vestido, elemento que caracterizaria sua mistura com o homem
branco, a índia aparenta estar grávida, com um volume na altura da barriga. Ela mostra as
árvores cortadas com a mão estendida, numa postura mais ativa que a da mulata, que parece
se entristecer com tal situação. No enquadramento da tela, observamos que pelo menos três
árvores foram cortadas e as personagens encontram-se sentadas nos tocos de duas.
Seus pés e mãos apresentam a “deformação” característica da linguagem de Portinari,
o que Mário Pedrosa chama de “monumentalidade escultórica”. Para Annateresa Fabris:
Com uma abordagem muito próxima, Candido Portinari desenvolve sua linguagem
estética, deixando clara a influência da obra de Picasso, no entanto, tratando de temas de sua
época. A mestiçagem como algo positivo para a civilização e progresso da nação brasileira se
18
Clement Greenberg (Nova Iorque, 16 de janeiro de 1909 – Nova Iorque, 7 de maio de 1994) foi um influente crítico de arte dos
Estados Unidos, ligado ao Modernismo. Greenberg utilizou, posteriormente, o termo Pós-Cubismo Sintético (ZILIO, 1982).
69
Assim, tanto a tela “Mestiço” quanto “Cabeça de Negro” (Figura III.11) dialogam com os
retratos das figuras da elite brasileira, conforme afirmação de Sergio Miceli, na medida em que
“são modelados como personagens neoclássicos de talhe escultóricos” e a relação do
personagem com a paisagem de fundo aparece nos quadros de tema social e também nos
retratos.
71
Figura III.15 Sandro Botticelli. Retrato de um homem com a medalha de Cosme de Médici, c.1474-75.
Têmpera sobre madeira, 57,5 x 44 cm
Coleção Galleria degli Uffizi, Florença
19
Este quadro é uma dos mais famosos do mundo produzido por Sandro Botticelli. Supõe-se que seja um retrato de um criado de
Cosme de Médici, ou um amigo da família, ou afilhado ou ainda quem gravou a medalha.
72
dos anos 1920, e depois nos anos 1930, passaram a ser positivados. Lilia Schwarcz traça um
panorama dessa questão:
Dessa maneira, Candido Portinari visibiliza o negro e o mestiço, juntamente com sua
crítica social, porém, conforme Schwarcz, essa visibilização não passa de uma retórica, não
transforma efetivamente a vida dessas pessoas. Para os críticos e para a elite, o realismo
social da obra de Portinari transita no âmbito da temática, da expressão plástica. Para o artista,
sua crítica vai um pouco além disso.
Para Candido Portinari o negro é sinônimo de trabalho. No campo ele representa o
camponês e na cidade associa o negro ao operário proletário, tendência marxista que vai se
consolidar na sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro anos mais tarde. Para Annateresa
Fabris:
Annateresa Fabris (1990) compreende o negro em Portinari como uma figura ideológica.
Centrados num contexto de recrudescimento de ideias racistas respaldadas cientificamente
pelo debate eugênico instaurado desde 1920, o “negro” e o “mestiço” eram, para esse
segmento da sociedade brasileira, as razões “naturais” que explicavam os desajustes
econômicos e políticos na República. A miscigenação da raça biologicamente superior, o
“branco”, com as raças inferiores, “negro” e “índio”, produziu um povo indolente, indisciplinado
e pouco inteligente. Dessa maneira, para resolver tal questão e garantir a democracia na nova
ordem era necessário que a República controlasse a miscigenação e implantasse política
pública para o branqueamento da população e, consequente, eliminação das raças inferiores.
Este ideal tinha aprovação da elite intelectual e do pensamento psiquiátrico que acreditava que
assim resolveria o problema surgido com a abolição de representação da nacionalidade, ou
seja, qual dessas raças representaria a nacionalidade brasileira.
Certamente, a realidade apontava para uma sociedade multirracial, que a elite se
encarregou de desconstruir com recurso ideológico, tendente à “nação branca”, em que o
“negro” e o “mestiço” desapareceriam em determinado espaço de tempo. Era preciso limpar a
75
mestiços que não continuaram no campo buscavam a sua inserção no trabalho que, na maioria
das vezes, continuava a realizar como os ofícios que exerciam no tempo da escravidão, como
por exemplo sapateiro, barbeiro, sangrador, ambulantes (FERNANDES, 2008a). Essa
conjuntura se deu pelo preconceito e discriminação advindos do racismo científico sofridos
pelos negros e mulatos, o qual observamos suas nuances ainda hoje . A crítica social de
Portinari se presentifica na medida em que, já na década de 1930, positiva o negro e o mulato.
Para Schwarcz:
No entanto, como o imaginário da escravidão ainda é muito presente, o que seria uma
crítica toma o rumo contrário e reafirma o preconceito, pois atualiza a associação de pessoas
negras a escravos. Esta afirmação pode ser verificada com a apresentação de uma releitura
“Sem título” da obra “Lavrador de Café”, de Ibacache, feita de relevo em placa de metal sobre
madeira e exposto no Museu Afro Brasil, em São Paulo, na exposição permanente “Arte,
adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão” (Figuras III. 17 e 18).
Figura III.17 Fotografia de parte do ambiente da exposição “Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da
escravidão” em que a imagem está exposta. Museu Afro Brasil, São Paulo.
77
Em 1934, Candido Portinari fez uma exposição no Palace Hotel, no Rio de Janeiro, e outra
individual em São Paulo, nas quais apresentou uma série de retratos da elite dirigente
brasileira e quadros com abordagem social, como “Mestiço”, “Lavrador de Café”, na época com
o título “Preto da Enxada”, “Índia e Mulata” e “Morro”. Foi comentada pelos críticos de arte
brasileiros a heterogeneidade da sua expressão artística, vista por Mário de Andrade não como
um defeito, mas como um drama intenso do homem e do artista, que ao mesmo tempo em que
se sente homem social, não abandona os direitos desinteressados da arte pura.
Mário de Andrade se interessou pela obra de Portinari por ocasião da sua primeira
exposição no Salão Modernista do Salão Nacional de Belas Artes, em 1931, e iniciou a crítica
da sua arte a partir da exposição de 1934, no Clube dos Artistas Modernos, em São Paulo.
Interessou-se porque Candido Portinari realizava na pintura o que o escritor realizava no
campo da crítica, da literatura e da poesia, ou seja, a produção de uma arte nacional e
78
Essa ideia está em consonância com o pensamento social brasileiro da época, que
visava a modernização e tinha a cidade como o espaço da modernidade por excelência.
Mário Pedrosa também escreveu seu primeiro artigo dedicado às obras de Portinari
referente à exposição de 1934. Na ocasião, Pedrosa atuava na formação de uma frente única
para combater o fascismo e não na crítica de arte sistematicamente. No entanto, a hipótese
que Reinheimer aponta é a de que Pedrosa considerou essa produção afinada com seu
posicionamento político (FORMIGA, 2014).
79
Pedrosa percebe, no que ele define como fase ascendente, a separação daquilo que
considerava equilibrado pelo rigor formal da representação do conteúdo. “Se, inicialmente, ele
parece estar mais preocupado com a mensagem social, destacando que ela não pode se
perder em um contexto de experimentações estéticas, na década de 1940 o tom se modifica, e
a forma é valorizada em detrimento do conteúdo” (FORMIGA, 2014, p 99).
Em 193420, Portinari produziu a obra “Café” (Figura III.19), no ano seguinte que ganha a
Segunda Menção Honrosa na Exposição do Instituto Carnegie de Pittsburg, nos Estados
Unidos, com esta tela. O Brasil e alguns países da América Latina, como Chile, México e
20
Existe uma controvérsia quanto à data de produção da tela “Café”. Annateresa Fabris (1990) e Carlos Zilio (1982) afirmam que a
obra foi produzida em 1934 e exposta em São Paulo no mesmo ano. No entanto, Patrícia Reinheimer (2013) afirma que a obra a
qual Mário Pedrosa se refere em 1934 é outra, homônima à “Café”, pintada em 1935 e apresentada no Carnegie Institute,
Pittsbugh. Construímos a reflexão do nosso texto baseando-nos na informação de Fabris e Zilio.
80
Argentina, participaram pela primeira vez da exposição. Alguns artistas brasileiros como Vittorio
Gobbis, Paulo Rosi Osir, Eliseu Visconti, Guignard, Lasar Segall, Lucílio de Albuquerque,
Henrique Cavalleiro e, provavelmente, Anita Malfatti também participaram (FABRIS, 1990).
Porém, apenas Portinari teve sua linguagem expressiva aceita pela crítica como algo
inovador e expoente de uma arte brasileira, pois percebe na “deformação” uma estética
particular, original, “independente dos moldes de Paris”, que aponta para a pintura mural. De
maneira consagradora, embora anunciada desde 1934, o artista Candido Portinari se
estabelece no cenário artístico e político brasileiro.
Na tela “Café”, Mario Pedrosa verifica que Candido Portinari atinge a unidade estrutural,
o “auge como pintor de cavalete, aproximando-se cada vez mais da pintura mural e de uma
arte de caráter monumental” (FORMIGA, 2014, p. 100). E ao se aproximar da pintura mural,
Portinari sintetiza e equilibra dois aspectos, o rigor formal e a expressividade, a forma e o
conteúdo social. Da mesma forma, para Mário de Andrade essa obra é o ponto de partida para
uma arte social, que se acentua com a pintura mural.
desumaniza o trabalho, muito semelhante àquele das fazendas que utilizavam mão-de-obra
escravizada. A figura do homem à esquerda, que aponta para o cafezal, alude ao capataz que
tomava conta dos escravos na lavoura.
Mais do que o negro ou o mestiço como representação, o tema que sobressai em “Café”
é o trabalho. Dessa maneira, Portinari induz a uma associação da figura do negro e do mestiço
diretamente ao trabalhador assalariado.
No entanto, assim como verificamos na tela “Morro” (Figura III.7), quando observamos a
imagem sem a sua contextualização histórica, sem a ciência de todo discurso elaborado pela
crítica da época e somamos à leitura atual, ao capital cultural do espectador e os
acontecimentos dos tempos atuais, tal imagem nos transporta para o período em que havia
escravidão no Brasil.
Ao observar outra imagem de Jean-Baptiste Debret, “Carregadores de café a caminho
da cidade” (Figura III.20), em que representa escravos carregadores de sacas de grãos de
café, como as que são apresentadas na referida obra de Portinari, essa aproximação nos
instiga. Nos estimula a refletir sobre a escolha de representar negros e mestiços na lavoura de
forma tão realista e preterir a representação de colonos brancos, imigrantes que ocuparam as
lavouras após a abolição.
pesadas de café e debulham o cafezal, ainda sim parecem posar para o artista, numa tensão
parada.
A partir de “Café”, Candido Portinari deu maior realce à representação do homem
brasileiro, histórico e social, e tratou do tema captando a sua realidade física e psicológica, na
busca para desenvolver uma “imagística nacional” alicerçada nas suas próprias raízes rurais,
encaminhando-se para o exemplo do muralismo mexicano (FABRIS, 1990). É a partir dessa
obra que seu engajamento na busca de expressão de caráter nacional, tem na realidade social
do homem brasileiro, do trabalhador, o seu foco.
Para Fabris, o trabalhador da sua pintura mural é o encontro com o dos pintores muralistas
mexicanos, no entanto, seu ponto de partida difere do deles. Enquanto Diego Rivera, José
Clemente Orozco e David Alfaro Siqueiros desenvolvem uma expressão política e panfletária
referente à Revolução Mexicana, Portinari “revela muito mais traços dos primitivos italianos”,
sendo seus afrescos proveniente de uma realidade diferente da dos mexicanos (FABRIS, 1990.
p. 50).
O muralismo mexicano se relacionou às circunstâncias históricas, sobretudo da
necessidade de mudanças sociais. O contexto anterior à Revolução era de ditadura, em que o
general Porfírio Diaz, que liderou o México por 34 anos através de um regime ditatorial
corrupto, privilegiava a classe dirigente e oprimia o povo. O crescimento econômico que o país
obteve no início do século XX, se deu pela espoliação das camadas menos favorecidas da
88
população e da repressão aos seus opositores políticos. Durante a primeira década do século
XX, várias crises eclodiram em diferentes esferas da sociedade mexicana, um reflexo do
descontentamento com o “Porfiriato”. Nesse contexto, Francisco Madero liderou uma rebelião
que contou com apoio popular, que se transformou na Revolução Mexicana. No entanto,
segundo Jorge José B. de Souza, líderes indígenas e camponeses, como Emiliano Zapata e
Francisco Doroteo Arango, o “Pancho Villa”, atuaram também nos vários embates políticos e se
consagraram na história mexicana (SOUZA, 2012).
Nas artes, “Los Três Grandes”, como ficaram conhecidos os artistas Rivera, Orozco e
Siqueiros formaram a primeira geração de muralistas que procuraram retratar a importância
das classes menos favorecidas de então, os índios, os camponeses e os operários (ADES,
89
1997). Houve a necessidade da construção de uma nova identidade, em que não se negasse o
passado colonial e pré-hispânico, mas o integrasse através de obras monumentais de domínio
público para socializar a arte, em contraposição à pintura de cavalete burguesa.
Enquanto a pintura mural realizada por Rivera, Orozco e Siqueiros tem caráter de
propaganda dos novos ideais, fruto da revolução nacional, “caindo frequentemente no
esquemático e no didático” para atingir às massas, a pintura de Portinari, embora busque as
raízes nacionais, é a síntese do estético e do social “que Mário de Andrade chama de plástica”
(FABRIS, 1990. p. 50).
A arte mural de Candido Portinari tem sido frequentemente comparada à produção dos
muralistas mexicanos, no entanto, além do suporte21, a semelhança estilística está nas fontes
comuns, isto é, no Renascimento e nas vanguardas europeias. Para Fabris, “o que parece ter
havido, em certos momentos, é muito mais uma semelhança de concepção, vinda de uma
mesma ideologia política (que Portinari, entretanto, não experimenta de forma direta no seio de
uma revolução” (FABRIS, 1990, p. 79).
21
Para suporte entende-se a base, o material sobre o qual a pintura foi feita. No caso da pintura mural, o suporte são paredes.
90
CONCLUSÕES
“Cabeça de Negro” (Figura III.11), Portinari visibiliza essa população salientando o seu
território, que é diferente da do “branco”, assim como a hierarquia social polarizada entre
brancos, mulatos e negros. A paisagem que circunda as personagens aponta para a
diferenciação das suas condições de sobrevivência e da ausência da atuação do Estado.
É possível verificar também em “Morro” (Figura III.7) a estagnação em relação à
modernização e a falta de acesso dos moradores do morro aos bens duráveis e de consumo. O
quadro nos revela a dicotomia das possibilidades das pessoas negras em relação às das
brancas, pois os prédios, o barco e o avião estão distantes, longe daquela realidade de chão
de terra, casebres “canhestros” e sem saneamento de água e esgoto. Essa composição, de
maneira geral, consolida a visão de inferioridade de Candido Portinari conferiu aos negros e
mestiços. Com as análises comparativas de outros pintores foi possível identificar resquícios da
distinção pela “raça”, que se arrasta desde tempos coloniais.
Outra questão relaciona-se à representação do trabalho. Observando os quadros
“Mestiço” (Figura III.14), “Lavrador de Café” (Figura III.16) e “Café” (Figura III.19) verificamos
que na produção de Portinari a qual se refere ao trabalho no campo, as imagens que ele
constrói também remontam às representações de trabalho escravo. O argumento aqui é o
mesmo desenvolvido para a análise de “Morro”, pois sem a contextualização da obra, sem as
reflexões sobre as relações das questões étnico-raciais os espectadores poderão as confundir
com a escravidão. Isto ficou evidente quando uma releitura de “Lavrador de Café” (Figura
III.17) foi exposta numa exposição sobre a escravidão no Museu Afro Brasil, em São Paulo,
para ilustrar o trabalho escravo.
Na tela “Café” (Figura III.19), a produção que elevou Candido Portinari a artista
internacional, apesar de grande repercussão acerca da sua expressão e que seria síntese da
sua heterogeneidade, verificamos a reconstituição do discurso que visibiliza o negro e o
mestiço, mas, ao mesmo tempo, o desvaloriza, reafirma a existência de lugares diferenciados
na sociedade brasileira. Essa é a realidade que vivenciamos ainda hoje, em que são
necessárias políticas públicas reparatórias como a adoção de cotas das vagas para estudantes
negros e pobres nas universidades.
Enfim, o negro na obra de Candido Portinari não é sujeito, mas objeto subjetivado de
sua investigação plástica, que aparece como símbolo de força, de trabalho, trabalhador
equivalente ao proletariado situado numa luta de classes contra o branco, a ordem vigente. De
fato, a representação de pessoas negras e mestiças e mais do que isso, o reconhecimento que
o artista renomado agrega a essas imagens foi e ainda é importante para a visibilização delas.
No entanto, segundo Hall (2013), na modernidade, a cultura popular negra foi colocada no
mainstream, e apropriada pelo dominante cultural de forma estereotipada. Da mesma forma, na
obra de Portinari, a imagem do negro aparece de maneira estratégica para o discurso
ideológico de sua integração na sociedade sem, de fato, proporcioná-la. Os corpos do homem
93
e da mulher negros e mestiços foram “utilizados” como o único capital cultural, pois além das
formas curvas e volumosas, aptas ao trabalho, tanto no campo quanto na cidade, são
destituídas de sentimentos e, em geral, destituídas de individualidade. Mesmo os retratos, que
teriam o pressuposto da individualidade - como os que fez da elite nos quais as identidades
foram evidenciadas nos títulos - nos de negros, Portinari pintou seu imaginário, sem se referir a
uma pessoa específica, quando em outros nem mesmo as feições eram bem definidas.
Porém, é fundamental a conscientização sobre as relações étnico-raciais na história e
na contemporaneidade brasileiras. A análise de pinturas, como foi realizada nesta pesquisa,
auxilia no combate ao racismo estrutural que assola a sociedade brasileira. Ao fazer uma
leitura contextualizada e de posse do conhecimento da história e da cultura afro-brasileira,
assim como das lutas do movimento negro e das relações étnico-raciais nas escolas, nos
museus e nos espaços de discussão e exposição de arte, acredita-se na possibilidade de
mudança da ordem das coisas e promover a equidade de direitos entre as pessoas, sendo elas
negras, brancas ou mestiças.
94
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