Além Da Superfície - Duda Razzera

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Agradecimentos

Quero começar esses agradecimentos


dizendo que meus leitores, colegas e parceiros me
fazem a pessoa mais feliz do mundo pelas suas
avaliações, palavras de incentivo e por me mostrar
que a cada dia toco mais corações e mais pessoas
com minhas criações. Foram mais de 10 mil
leituras no Wattpad, e a história ficou entre as
cinco finalistas do concurso SweekStars na
categoria Young Adult. Por isso já sou muito grata
a tudo que Alice me ajudou a conquistar.
Alice tem muito de mim. Assim como
ela, sei o que é sofrer Transtorno de Ansiedade
Generalizada, mas também sei que é possível ter

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uma vida plena, diferente do que muitas pessoas


nos fazem querer acreditar. Por isso nunca desista!
Alice tem muito de todos vocês também.
E Além da Superfície não seria possível se vocês
não me deixassem enxergá-los sob a pele, se não
compartilhassem segredos e pensamentos comigo.
Vocês sabem quem são, por isso obrigada!
Agradeço à Francine Porfirio por ser mais
que uma revisora, mas uma amiga e conselheira, e
por ter tanto carinho com a minha obra quanto eu.
Agradeço às minhas leitoras-beta, Beatriz
Cortes, Isabella Cloudie, Carol Serra, Kátia
Schittine e Ingrid Mello Stoffelli Novaes, por
serem tão prestativas e me ajudarem a dar o toque
final que esse livro precisava. Vocês são demais!
Agradeço à minha maior inspiração, meu
pai, que mesmo lá do Céu está sempre ao meu lado,
me incentivando a continuar em busca do meu
sonho.
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Agradeço a Deus. Sem Ele, nada seria


possível.
Por fim, só tenho a agradecer à minha
família (minha mãe Margareth, minha irmã Aline,
meu marido Wesley e minha sogra Lucimara) por
todo o apoio que me dão em minha carreira e na
minha vida.
Com meu terceiro livro publicado, posso
dizer que a cada dia só tenho ainda mais certeza de
que o meu caminho é esse: ser escritora.

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Prefácio
Somos um universo sob a pele. Guardamos
dentro de nós planos, expectativas, frustrações,
medos e amores sem que muitas pessoas saibam ou
percebam. Enfrentamos desafios diários que nos
fazem sentir derrotados ou capazes, a depender do
resultado. Depois voltamos para nossos lares,
nossos refúgios, e ninguém além de nós mesmos
poderia imaginar o que vivemos.
A não ser que falemos.
E falar não é fácil. Deixar o outro acessar o
que de mais íntimo carregamos é, também, deixá-lo
ver nossas fraquezas. É deixá-lo perceber que, sob
um sorriso, escondemos segredos difíceis de
expressar ou pensamentos difíceis de controlar.
Alice, a protagonista dessa história, é muito
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mais do que aparenta. Dentro dela existe um


conflito, uma tempestade de sentimentos. Algo ruiu
quando percebeu seus sonhos despedaçados,
quando a vida se mostrou dura. Ao conhecer a
decepção e a perda, Alice sentiu o pânico de se ver
sozinha no mundo.
Seus amigos seguiam em frente. Seu ex-
namorado seguia em frente. Sua família seguia em
frente. E ela continuava no mesmo lugar, no
mesmo ciclo. Quão árduo é reconhecer a
necessidade de mudar, mas não ter forças para fazê-
lo?
Esse é um romance sobre como a vida pode
nos quebrar, mas também pode nos fazer crescer ao
reunir nossos pedaços de novo. Alice, enfrentando
esse momento difícil, perde o controle de si mesma.
Seus pensamentos desenfreados, como uma
corredeira a construir seu próprio caminho, roubam
o fôlego, agitam o coração, fazem tremer seu corpo
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e suas convicções. Alice sofre de Transtorno de


Ansiedade Generalizada, mas este é apenas um
nome técnico para as dores que a atingem.
Duda Razzera é uma autora e pessoa de
imensa sensibilidade. Conhece intimamente as
crises de ansiedade que Alice vive e, sobretudo, a
coragem de quem persiste e investe na superação
dos seus limites. Ousando abordar temas paralelos
de importante reflexão, como o relacionamento
abusivo e a autoaceitação, Duda teceu um enredo
que nos convida a ver aos outros e a nós mesmos
além da superfície.

Desejo que você, acolhendo esse convite,


possa abraçar a mensagem dessa agradável leitura!

Francine Porfirio
Psicóloga, revisora textual e escritora

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Prólogo

O sorriso dele. Foi o que chamou minha


atenção quando o conheci naquela festa da
faculdade. Ele era mais velho, vestia uma camiseta
escrito “Hakuna Matata” e o achei fofo. Ele sorriu
quando reparou que eu estava observando sua
roupa.
Foi na casa dele que toda a merda aconteceu. A
vida é muito melhor sem sorrisos. São expressões
gentis como essas que fazem a gente esquecer de
tudo e se deixar levar pelo sentimento. Naquele
momento, achei que estava certa e que deveríamos
ficar juntos. Ficamos... por muito tempo. Tempo
suficiente para eu me apaixonar, perder minha
virgindade e começar a pensar em casamento.
Os lábios dele agora tocam os meus com
carinho e, depois, com sofreguidão. O seu olhar é
penetrante e o seu corpo se cola ao meu de uma
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maneira perfeita.
– Você sabe que nunca será assim com mais
ninguém, não sabe? – sussurra ao meu ouvido
enquanto fazemos amor. Tremo de angústia porque
não compreendo o motivo de dizer isso justamente
em meio a tamanha intimidade.
Gustavo sorri mostrando os dentes e
investe contra mim novamente. Eu esqueço das
suas palavras quando estou prestes a atingir o
orgasmo. Feliz e saciada, aconchego-me em seus
braços, mas ele me empurra delicadamente.

– Preciso ir, os caras estão me esperando...


– diz sério, vestindo-se apressadamente.
– Mas é final de semana!
– E o que combinamos?
Bufo. Odeio quando ele me trata como se eu
fosse infantil, sustentando esse ar de superioridade
apenas por ser mais velho.
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– Combinamos que não nos veríamos nas


sextas-feiras – repito o que tantas vezes o ouvi
dizer. – Caso contrário, você enjoaria de mim e o
namoro não daria certo. Gustavo, hoje é sábado,
nós podíamos... – argumento depressa, não gosto da
ideia de ser abandonada.
– E nos vimos ontem e hoje, ou seja, já abri
uma exceção para você...
– Era o aniversário da sua prima... – resmungo.
Ele revira os olhos, impaciente.
– Será que eu vou ter que explicar de novo,
Alice? – Trinca os dentes. – Você não me deixa
respirar, credo! Eu preciso de um tempo para mim.
– Nós não nos vimos a semana inteira, e ontem
você mal me deu atenção... – reclamo com lágrimas
prestes a transbordar.
Ele se aproxima e me abraça, acariciando
minha bochecha direita.
– Não chora, minha gatinha. – Beija-me
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carinhoso e me faz cócegas. – Minha gatinha


birrenta.
Tento sorrir. Se ele percebe ser um sorriso
amarelo, não diz nada.
– Amanhã vamos caminhar no parque de
Coqueiros. Te busco no fim da tarde, você vai
adorar! – ele propõe, beijando meu pescoço em
seguida.
– Só no final da tarde? – questiono amuada.
Ele bufa. Está irritado outra vez.
– Você tem muita sorte por eu ser seu
namorado, Alice – resmunga. – Acho que você
deveria dar mais valor ao que tem, ao invés de ficar
reclamando toda hora.
Assinto com a cabeça, mas não concordo.
Tenho medo de expor minha opinião e, em silêncio,
me arrumo também. Ele não vai me levar para casa,
terei que pegar um táxi.

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Capítulo 1

Dois anos depois...

“Quero terminar.”
É assim que termina minha conversa por
telefone com, até então, meu namorado Gustavo.
Estávamos despretensiosamente comentando sobre
a minha formatura e os acontecimentos da semana
anterior quando ele largou a bomba. Assim, sem
mais nem menos, Gustavo terminou nosso
relacionamento de três anos.

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– Tudo bem – respondo contida. Então


desligo o telefone e pego as chaves do carro na
escrivaninha.
Passo por meu irmão, que está sentado em
frente à televisão, e meu pai que, para variar, está
aqui em casa. Eu sempre soube que a ideia de ele
comprar um apartamento a duas quadras do nosso
não era muito boa.
Vou até a garagem do prédio, abro o meu
melãozinho (como carinhosamente chamo o meu
Picanto amarelo), sento atrás do volante e espero o
choro vir. Ele não vem. Talvez por choque ou por
eu achar que é desnecessário, não sei dizer.
Tiro a chave da ignição e volto para o
apartamento. Sem ninguém perceber, entro em meu
quarto e tranco a porta. Tento, mas não consigo
evitar os questionamentos que me vêm à mente.
Será que foi alguma coisa que eu disse ou fiz? Ou
então é porque ele não gosta mais de mim como
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antes? Será que o meu corpo, o meu cabelo ruivo e


as minhas sardas já não o atraem? São tantas as
possibilidades que, eu sei, é inútil pensar a respeito
delas. Não faz diferença. Relacionamentos
terminam e quanto menos pensarmos sobre isso,
melhor. Infelizmente, meu coração não concorda
com minha razão. Quando dou por mim, estou
ruminando o fato de que nunca pensei que
terminaria minha primeira graduação com sete
quilos a mais do que gostaria, chutada pelo meu
namorado, sem emprego e (ainda) morando com
minha mãe.
Deitada em minha cama, de barriga para
cima, fito o teto estrelado do meu quarto e relembro
os tempos de faculdade.
Quando eu estava no terceiro período de
Administração conheci Gustavo. Ele também era
estudante do mesmo curso, mas de uma turma
prestes a se formar. Nunca imaginei que ele se
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interessaria por alguém como eu e, talvez, esse


tenha sido meu erro (um de muitos, na verdade). Eu
era a garota calada que tirava boas notas, de quem
os resumos eram fotocopiados e com quem todos
queriam fazer os trabalhos. Gustavo, por sua vez,
era presidente do Diretório Acadêmico, participava
dos jogos interestaduais de futebol e basquete e
fazia parte do ranking dos caras mais gostosos do
campus.
Nunca me importei por não ser notada.
Esse era o papel da minha melhor amiga desde o
sétimo ano, Malu. Entretanto, quando comecei a
sentir o gostinho de ser alvo dos olhares e sorrisos
dele, mudei de ideia. Gustavo fazia-me sentir
desejada, digna de ser considerada.
Ele me chamou para sair quando estávamos
numa festa da faculdade. Eu estava parada no
estacionamento e aguardava Malu se despedir do
seu “ficante” para pegar uma carona. Depois de
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tanto flertamos a distância, ele finalmente se


aproximou. Não demorou para começarmos a
namorar e, ao longo dos nossos três anos juntos, eu
sonhava com meu pequeno apartamento de jovem
solteira da classe média com direito à decoração e
mobília no estilo da TOK&STOK. Aquelas
fofinhas para pequenos ambientes, sabe? Além
disso, pensava que até me formar já teria conhecido
a Europa, feito uma visita rápida ao continente
asiático e algum trabalho voluntário na África.
Nessa época otimista, ainda namorando o Gustavo
(meu amor desde os dezenove anos), sonhava
também que escolheríamos nossas pós-graduações
na mesma instituição. Então, ele compraria um
apartamento perto do meu ou até moraria comigo.
Eu, com certeza, tinha muitas expectativas.
Infelizmente nenhuma delas se concretizou. Fico
até pensando se não aprendi a “lei da atração” ao
contrário ou se estou só “pedindo errado” mesmo,
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como minha tia costuma dizer. Ainda não decidi


qual alternativa é verdadeira.
Antes de o Gustavo terminar nosso
relacionamento, eu estava até conformada. Afinal,
apesar de não morar em meu próprio apartamento,
não ter viajado nem escolhido minha pós-
graduação, eu ainda o tinha ao meu lado. Só não
sabia que, além de mim, ele também estava ao lado
da Cláudia, da Janaína e da Letícia que, aliás, agora
é a namorada oficial dele. Fico me perguntando se
ela está ciente das outras ou mesmo de mim...
Mês passado meus pais não me enchiam
tanto o saco para arranjar um emprego. Eu ainda
era considerada uma universitária, e eles apoiaram
minha decisão de largar o estágio na concessionária
do meu tio para me dedicar aos estudos. Pode ser
impressão, mas aparentemente uma mandinga
acontece após a entrega do diploma e, de repente, a
gente passa de “filhinha querida do papai e da
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mamãe” para o “estorvo que virou adulto e quer


brincar de Peter Pan”.
Quando minha prima querida e perfeita,
Bruna, suspirava dizendo “a primeira vez a gente
nunca esquece”, confesso, morria de vontade de
experimentar também, mesmo tendo apenas quinze
anos. Só que eu não contava que essa expressão
valia para todos os tipos de primeiras vezes, até
mesmo as indesejadas.
Quatro semanas após a minha formatura, e
poucos dias depois da última ligação de Gustavo,
num domingo chuvoso, estou outra vez no meu
melãozinho. Bato com a cabeça na buzina e
começo a chorar convulsivamente sem nenhum
motivo específico. De repente não consigo respirar
direito, meu peito se aperta e um calorão me sobe
ao rosto. Aperto uma mão contra a outra e sinto a
pior sensação da minha vida: era como se algo
muito ruim estivesse prestes a acontecer e nada
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pudesse ser feito. Eu estou sem (e fora de) controle.


A primeira crise de pânico a gente também
nunca esquece! Imediatamente percebo que posso
sofrer essa experiência de novo e fico aterrorizada,
só que não tenho coragem de contar isso para
ninguém. Então, quando enfim consigo respirar
normalmente, apenas volto para o apartamento sem
mencionar o ocorrido.
Volto mais precisamente para meu quarto,
o meu santuário nos últimos tempos, onde decido
colocar um short para dar uma caminhada e
espairecer. A peça, entretanto, não passa nem pelas
minhas coxas. Desde que engordei por causa do
estresse e da ansiedade incontrolável dos meses de
encerramento da faculdade, essa experiência vem
se tornando frequente.
Começo a pensar em todas as porcarias que
comi devido à minha desilusão amorosa e na minha
desilusão amorosa em si. Não sei o que acontece,
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mas ao pensar em alguma coisa ruim parece que


puxo todas as outras coisas ruins junto. Quando dou
por mim, já estou afundando em uma maré de
pensamentos negativos. Minha amiga Malu diz que
faço uma salada de frutas mental: coloco tudo em
uma tigela até quase transbordar.
O pior é reconhecer que tive uma crise de
pânico por causa de um homem. Sinto-me
pateticamente fraca e pensar sobre isso é como um
soco na cara. A expressão de decepção da minha
mãe ao notar meu sofrimento não ajuda nem um
pouco, e as tentativas de diálogo do meu pai são
frustrantes.
Acredito que todo mundo já passou – ou vai
passar – por essa fase em que nossos pais se tornam
completos estranhos. Parece que nada do que eles
dizem ou fazem consegue nos conectar. É como se
a única coisa que nos prendesse fosse o vínculo
familiar e nada mais. Sei que vai passar, ou assim
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espero.
Meu melhor amigo, Cristiano, enfrentou
momento parecido ano passado quando decidiu
largar a faculdade de Engenharia Mecânica e
começar Arquitetura. Ele me contou que sua mãe
fez um escândalo e seu pai ficou comparando-o
com o tal primo Roberto que, na mesma idade, já
estava entrando no mestrado e iniciando o próprio
negócio.
O problema é que, enquanto essa fase não
passa, me sinto completamente incompreendida e
parece que a minha casa não é meu lar, entende?
Sei que provavelmente meu pai está certo ao dizer
que não vale a pena chorar pelo Gustavo, alguém
que nunca lhe inspirou muita confiança mesmo. E
sei que minha mãe quer meu bem quando diz que
está na hora de eu trabalhar, nem que seja para
passar o tempo e superar essa minha “crise
existencial”, como ela gosta de chamar, até eu
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encontrar o meu caminho. Pais devem fazer isso:


dizer o que você precisa ouvir, mesmo quando você
não quer ouvir.
“Já passou um mês, filha”. É o que escuto
deles. Aparentemente, no mundo dos pais, um mês
é o limite para sofrer pelo término de um namoro e
arranjar um emprego pós-formatura.
Eu sei que é idiota, mas continuo comendo
Kit Kat atrás de Kit Kat enquanto fuço o álbum do
Gustavo com a nova namorada nas redes sociais e,
como se não bastasse, declaro o óbvio:
– Estou gorda! – Aperto minha indesejada
pochete em frente ao espelho da porta do meu
armário.
– Então fecha a boca! – retruca minha mãe,
sutil como sempre, passando pelo corredor.
Minha mãe é prática, assim como eu
costumava ser. Mas, no momento, parece que
“fechar a boca” não é uma opção viável para mim.
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O que está acontecendo comigo?


A única pessoa com quem consigo
desabafar sobre a minha desilusão e meu desejo de
perder peso dormindo é a Malu. Ela pode falar
horas sobre o mesmo assunto, criticar fulano junto
com você, fazer você rir e acreditar que não está na
merda.
– Que tipo de pessoa termina com alguém e
começa outro namoro uma semana depois? –
pergunto para Malu em uma das nossas milhões de
conversas no chat do Facebook.
– Alice Maria, o Gustavo é ridículo. Ele
sempre foi ridículo e vai continuar a ser! – A Malu
tem o dom de escrever exatamente o que quero ler,
e não o que preciso. Por isso, e por tantas outras
coisas, que eu amo tanto ela! Dou risada ao
perceber sua mania. Sempre que Malu quer se
fingir de séria, adiciona ao nome da pessoa a
alcunha Maria.
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Mas nada, nem a Malu falar mal do


Gustavo, consegue me fazer superar o fato de que
meu lindo short jeans, com aqueles rasgos
delicados nas laterais e spikes nos bolsos de trás,
não está servindo em mim.
Nota mental: preciso urgentemente tomar
vergonha na cara e voltar para a academia, além
de começar uma reeducação alimentar.
E então entro em crise, de novo. Eu perdi
minha virgindade com o Gustavo, ele foi o quinto
cara que beijei e com quem tive quase todas as
experiências mais emocionantes, como nossa
viagem aos Estados Unidos. E agora não tem
Gustavo, não tem emprego e não tem roupa que me
sirva.
A cada vez que essas circunstâncias invadem
minha mente, sinto o pavor crescer dentro de mim.
Meu coração dispara e não consigo pensar ou
respirar direito. Começo a suar feito uma porca
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gorda e a boca do meu estômago parece dar uma


fisgada. Não consigo explicar qual a pior parte, mas
sou tomada por uma sensação de desamparo. Eu
fico parada com o olhar preso em um ponto fixo
enquanto o mundo desaba dentro de mim. A
tremedeira, a transpiração, as mãos inquietas, o
coração acelerado, a respiração descompassada...
tudo fica fora de lugar. Sinto-me desequilibrada,
perdida e sem controle. Só consigo pensar: “agora
mesmo que o Gustavo não vai me querer, porque
estou gorda, desempregada e louca”. Ele, com seu
porte físico maravilhoso, olhos negros profundos e
o cabelo raspado pode ter qualquer mulher.
Quando foi que me tornei tão dependente
de uma pessoa, especialmente de uma que nem foi
tão boa assim na minha vida? Não nos últimos dois
anos em que estivemos juntos, pelo menos.
***
Acredito que morar na casa dos pais (da
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minha mãe, na verdade) quando se está com vinte e


um anos é algo poético (ou patético?). Essa idade,
na minha geração, equivale aos trinta anos da
geração do meu irmão. Hoje todo mundo espera
que aos vinte e três você esteja formada,
engatilhada em alguma pós-graduação ou mestrado,
trabalhando em algum lugar decente e planejando
quando irá casar e ter filhos, ou seja, devo resolver
minha vida em apenas dois anos. Além disso, você
já terá viajado metade do mundo e aproveitado
cada experiência loucamente. Não entendo se essa
é a minha visão equivocada por ficar stalkeando o
Facebook alheio ou se a vida realmente acontece
assim.
Sinto que estou empacada e não sei o que
fazer. Até agora, é como se seguisse um roteiro
escrito especialmente para mim e, de repente, o
escritor desistiu e me guardou na gaveta. Sou um
personagem desnecessário na trama da minha
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própria vida.
Uma administradora recém-formada, que
largou um emprego seguro e agora não sabe para
onde ir. A ideia do que “quero ser quando crescer”
acabou por interferir demais, pois cresci e esqueci
de escolher entre as opções que a Administração
me permite.
Meu padrinho, Tarcísio, disse que não
preciso me apressar para escolher, que não preciso
ter certeza de nada, que só preciso arriscar sem
medo de errar. Lembro-me de suas palavras: “Você
quer sempre ter o controle de tudo, Ali. Quer tudo
perfeito e não quer errar. Não tem como você
crescer sem cometer alguns erros. Até o seu pai e
eu cometemos”.
Tarcísio consegue dizer o que preciso ouvir
de um modo que faz parecer ser o que eu quero
ouvir, por isso gosto tanto dele. E acho que é por
isso que meu pai o escolheu para ser meu padrinho.
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Além de ser como um irmão para ele, é a pessoa


mais compreensiva e sensata que eu já conheci na
vida.
Por respeitá-lo, aceito quando neste
momento Tarcísio me pede para encontrar uma
psicóloga e conversar sobre essas minhas “crises”.
Assim que conto a ele sobre o pânico que sinto, e a
frequência cada vez mais alta dos episódios que me
atingem, arrependo-me instantaneamente, pois logo
em seguida chama meus pais para conversar e dar
sua opinião profissional.
– É para o seu bem – ele me diz, olhando-
me daquele jeito compadecido.
Minha mãe faz cara de horror e meu pai
não move um músculo ao ouvi-lo relatar meu
sofrimento. Meu irmão, por outro lado, ao chegar a
casa e descobrir a situação, me abraça apertado e
garante que “vai dar tudo certo”, seja lá o que
signifique “dar certo”.
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Será que eu realmente tento controlar tudo?


Será que eu preciso de uma dose de descontrole na
minha vida, sem planejar o depois? Será que é isso
o que meus pais estão tentando me dizer? Terá sido
por isso que Gustavo decidiu terminar? Será que
ele, um dia, realmente gostou de mim?
É, acho que estou precisando arrumar
alguma coisa para fazer (leia-se: um emprego).

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Capítulo 2
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“Pare de reclamar e sentir pena de si


mesma”. É o que meu reflexo me diz, mas não
consigo encará-lo por muito tempo. Minhas
olheiras me provocam no espelho, riem de mim e
me deixam com cada vez mais raiva do meu
destino.
Compro diversos livros de autoajuda na
esperança de me sentir melhor, mas nada acontece.
Ryan, a autora de A aventura de viver seus sonhos,
defende que realmente precisamos querer mudar
para que nossos sonhos se realizem. Ou melhor,
para que nós os façamos se realizarem. O problema
é que não decidi qual é o meu sonho. Sempre gostei
de tirar fotos, mas e daí? Não é como se publicar
minhas fotos no Instagram fosse uma profissão.
Minha mãe fica o dia inteiro atrás de mim
pela casa comentando o quanto minha prima Bruna
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é bem-sucedida, o quanto ela é feliz por persistir


nas coisas que quer. Até entendo por que fica me
dizendo essas coisas, mas alguém precisa avisá-la
que não está me ajudando em nada.
– Mãe, pelo amor de Deus, me deixa em
paz! – digo pela centésima vez. Ou talvez em todas
as outras vezes tenha apenas pensado em dizer,
porque ela me olha de uma maneira estranha.
– Você não pode simplesmente ficar
sentada esperando um emprego cair do céu! – ela
responde. – Você tem que fazer alguma coisa.
Pode ser pelo que minha mãe disse ou pelo
livro de Ryan, mas tomei uma decisão. Pesquisei
por vagas na internet, cadastrei meu currículo e me
candidatei a algumas oportunidades que
apresentavam um salário mais ou menos
compatível com o que eu ganhava na
concessionária do meu tio e com funções
remotamente interessantes.
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Eu quero ter uma vida melhor, mas acredito


que trabalhar pode não me ajudar como o esperado.
Mal consigo passar trinta minutos sem ter uma
crise de ansiedade, serei capaz de passar oito horas
trabalhando como uma pessoa normal? A epígrafe
no início da minha leitura de autoajuda, entretanto,
vem à minha cabeça: “Toda pessoa bem-sucedida
de quem já ouvi falar fez o melhor possível com as
condições de que dispunha no momento, em vez de
esperar que o ano seguinte fosse melhor” (E. W.
Howe).
Eu sei que estou dando desculpas e que não
posso fazer isso para sempre. A maioria dos meus
amigos tem emprego e também preciso de um.
Quem sabe a minha mãe esteja certa e eu me sentir
útil facilite o meu tratamento?
***
Pode não ser uma boa ideia, mas decido
sair com a Malu e o Cris mesmo assim. Eles
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defendem que preciso voltar a cultivar uma vida


social, se quero ter alguma chance de transar de
novo. Mal sabem que não estou me preocupando
com isso. A simples ideia de me relacionar com
alguém que não seja o Gustavo me deixa enjoada!
Estamos jogando sinuca no Meia-noite, o
bar universitário que costumávamos ir após as
provas ou noites estudando na biblioteca. O fato de
Cris ainda ser universitário lhe faz um assíduo
frequentador. No entanto não me sinto confortável.
Vim tantas vezes aqui e, agora, simplesmente
parece não fazer mais parte do meu habitat. As
jovens do primeiro período de Sociologia fumando,
os caras de Engenharia Mecânica bebendo cerveja e
conversando sobre a prova de Integrais, as
patricinhas da Arquitetura desdenhando de todos e
eu... deslocada.
A Malu parece uma borboleta que recém
saiu do casulo sassaricando por todos os cantos,
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conversando com os caras mais gatos e fingindo


não saber jogar sinuca quando, na verdade, é a
melhor jogadora que eu conheço. Ela tem essa
teoria de que os homens precisam achar que são os
mais fortes, os mais inteligentes e os com maior
sucesso. Se é verdade não importa, a questão é que
funciona. Ela sempre está envolvida com alguém
do seu interesse e só fica com a nata do Meia-noite.

– Tem cara olhando para você – fala Cris


aproximando-se com uma latinha de cerveja na
mão. Ele estava estudando para as provas, mas
decidiu dar um tempo e relaxar. Seguiu o conselho
da Malu: “se você não aprendeu até agora, não vai
aprender mais”. No caso dele, acho que só não
aguentou ter o pai no seu pé dentro de casa.
Assim que suas palavras fazem sentido,
sinto-me entrar em colapso. Bastou saber do
interesse de alguém para eu dar uma desculpa
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qualquer e correr para o banheiro. De repente, mil


fantasias vem tudo à tona: imagens do Gustavo e de
mulheres sem rosto rolando pelas cobertas da cama
dele como tantas vezes fizemos. Aquela atmosfera
de suor e cigarro parece me sufocar e coloco a mão
no meu peito. Mais uma vez meu coração está
acelerado e parece que vou enfartar, embora nem
saiba realmente quais seriam os sintomas neste
caso. Imediatamente percebo o que está
acontecendo: estou sofrendo outra crise de pânico.
Lembro-me da minha primeira sessão com
a psicóloga quando me orientou: “Você precisa
deixar a crise vir e ir. Não é preciso ter medo,
apenas deixa fluir, deixa passar”. Mas é fácil falar,
né? É como se meu corpo não me pertencesse e
sinto um descontrole tão grande que me dá pavor.
A essência mais pura do medo. Não suporto a ideia
de não ter o controle da situação.

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Sinto que se passaram horas até a Malu vir


me checar dentro do banheiro e flagrar meu
semblante pálido. Ela me tira dali e me leva até
uma cadeira no fundo do bar para não sermos vistas
pelas fofoqueiras de plantão. Nem sei por que nos
importamos se já estamos formadas, mas enfim.
Cris me traz um copo d’água.
– Amiga, respira e fica calma – ela diz, mas
não consigo processar direito.
– Você quer sair daqui? – pergunta Cris e
concordo com a cabeça.
***
Vamos parar no McDonald’s. Sei que não
devia, mas acho que estou precisando colocar mais
uns bons gramas de gordura para dentro. “Como se
eu já não tivesse o suficiente para hibernar por um
ano sem comida”, penso amarga.
A Malu e o Cris estão me olhando com
aquele jeito de “mãe preocupada”, algo que não
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gosto. Odeio me sentir fraca, vulnerável e ridícula.


Concentro-me nas minhas batatinhas fritas para não
ter que conversar sobre isso agora, mas
aparentemente Cris precisa abordar o assunto.
– O que aconteceu, Alice? – pergunta com
ar de irmão e melhor amigo protetor.
– Eu não sei. – Suspiro. É tudo o que
consigo dizer, realmente.
– No que você está pensando agora? –
indaga Malu.
– Lembrando de quando eu tinha treze anos
e gostava do Lucas Tavares. – A Malu estudou
comigo no oitavo ano e sabe de quem estou
falando, mas me encara como quem diz: “é, minha
amiga pirou de vez”.
Não sei por que estou pensando em Lucas,
mas acho que o meu dedo podre para namorados
deve ter começado cedo, com o meu primeiro
amor. E isso envolve, também, o meu primeiro
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beijo – que não foi com ele, por sinal.


Cris olha de uma para outra, curioso por
entender nossas expressões. Nós três nos ajeitamos
nos assentos, pois aquela seria uma longa
explicação.
***
Começo a rir só de pensar na tragédia que
estou contando para o Cris. É inevitável.
Acho que sempre existirá um cara desse
tipo. Um cara que a gente nota assim que entra em
algum lugar. Para mim, esse cara era o Lucas
Tavares. O Lucas era aquele moreno alto, de olhos
verdes, sorriso fácil e atitude arteira. Nada de bom
poderia sair de encarar por muito tempo sua beleza,
mas meninas de treze anos não pensam muito sobre
o futuro. Meninas de treze anos, na verdade, só
querem saber de uma coisa: dar o seu primeiro
beijo em alguém como ele.
O grande problema do primeiro beijo, no
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entanto, são as expectativas que criamos em torno


dele. Sinceramente, acho que criamos expectativas
demais para a vida em geral, mas essa já é outra
história. E, como se já não bastasse esse grande
conto de fadas que esperamos acontecer, eu estava
bem longe de ser uma bela princesa. Eu era (e ainda
sou, pois nada mudou) baixinha, gordinha e
“bonitinha” quando arrumada. Em outras palavras,
a única maneira de eu conseguir que meu primeiro
beijo fosse com o Lucas seria nascendo de novo.
A Malu, por outro lado, exibia proporções
físicas maravilhosas, mas nem ligava. A cabeça
dela vivia nas nuvens enquanto meus pés me
firmavam no chão. Ela acreditava piamente que eu
poderia, sim, ter meu primeiro beijo com o Lucas e,
para isso, bolou todo um plano especial em sua
agenda, meio ao estilo do filme “Como perder um
homem em dez dias”, mas ao contrário.
O plano era simples: ser convidada para a
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festa de aniversário da Isabel Cristina, fazer com


que minha mãe pagasse manicure, cabeleireiro e
vestido novo para mim, ler a revista Capricho até
decorar todas as táticas de sedução e arrumar um
jeito de me deixar a sós com o Lucas. Simples só
na cabeça dela porque, sinceramente, apenas a parte
de ficar sozinha com o Lucas seria
complicadíssima!
Infelizmente, sempre teimosa, minha
querida amiga me convenceu a ser cúmplice
daquele plano mais insano do que a prima de
segundo grau da minha mãe que decidiu raspar a
cabeça e viver de luz natural. Mas, por incrível que
pareça, consegui tudo o que queria. Ou melhor,
quase.
Fiz as unhas com minha manicure
preferida, a Neusa. A cabeleireira fez uma trança
nos meus fios lisos e loiros, o que me deixou com
ar um pouco mais maduro, e meu vestido era um
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pretinho básico lindo de morrer (ótimo para


enganar a pancinha). Mas, quando a Clarinha me
empurrou – nada discreta – para o lado do Lucas,
tudo o que ele disse para mim foi:
– Faz um esquema pra eu ficar com a
Isabel?
Minha vontade era de chorar até meus
olhos sangrarem. Com esforço, mantive minha
falsa postura de lady e respondi sorridente:
– Fala com a Simone, a melhor amiga da
Isa.
Passei o resto da festa sentada comendo
brigadeiro (aliás, acho que foi a partir desse
momento que passei a apelar para a gordice quando
me deprimo) e assistindo ao novo casal dançar
abraçadinho. De repente, o cara mais nerd da sala
foi jogado para cima de mim pelos amigos idiotas
do Lucas que julgaram ser interessante unir ambos
os excluídos do momento. Como se a tragédia não
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fosse suficiente, o Marcelo Bastos, nerd


desengonçado, caiu sentado na cadeira ao meu lado
no exato instante em que virei meu rosto e
acabamos dando um selinho.
Nem preciso dizer que nunca mais fui a
uma festa de aniversário da Isabel Cristina, né? E
foi depois daquele beijo que descobri: expectativas
são para idiotas, e a realidade não combina com os
adesivos ou as canetas coloridas que a Malu usa nas
agendas dela até hoje quando organiza um novo
plano. Eu, por outro lado, parei de colorir minhas
decepções naquele mesmo ano.
O pior é que voltei a acreditar em contos de
fadas aos dezenove anos, quando conheci o
Gustavo. Eu era magra (para o meu tipo de corpo,
pelo menos), tinha aprendido a domar meus
cabelos, continuava amiga da Malu, tinha
conhecido o Cris e vivia feliz com meu namorado
perfeito. Como eu queria não ter esquecido que a
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perfeição não existe!


***
Cris e Malu, meus melhores amigos, ficam
me encarando, talvez esperando a grande lição de
vida desse relato. Mas não sou capaz de encontrar
uma lição. Eu só consigo pensar no quanto fui
idiota... Como pude não perceber os sinais?
Todas as vezes que Gustavo me deixou
sozinha para ir à casa de um amigo fazer algum
“trabalho” da faculdade, todas as sextas-feiras nas
quais ele preferia jogar futebol com “os caras”,
todos os domingos em que ele não queria me ver
porque estava “muito cansado”, até mesmo alguns
sábados em que ele ia embora cedo porque
precisava “estudar”... Eu sempre achei suas atitudes
muito normais, nunca desconfiei de nada, nunca
pensei ser possível sofrer uma traição tão grande de
quem dizia me amar.
– Como o Gustavo foi capaz de fazer isso
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comigo? – Suspiro mais uma vez, inconformada.


– Não é sua culpa. – É incrível como Cris
sempre sabe o que estou pensando. – O Gustavo é
um covarde! Não foi homem o suficiente para
assumir seus erros ou mesmo para conversar
contigo. Eu sou mais macho do que ele!
Eu e a Malu rimos. Nós somos as únicas
que sabemos sobre a homossexualidade de Cris. A
família dele é muito católica, por isso entendemos
sua falta de coragem para se assumir. Eu nunca
nem sequer vi o Cris com outro rapaz, ele é muito
discreto e pouco conversa sobre o assunto. Foi até
uma surpresa quando decidiu nos contar, mas isso
não importa. Gay ou não, ele continua mais sério,
leal e corajoso do que o Gustavo. Só que ficar
pensando nas qualidades do Cris não vai me fazer
sentir melhor. Nem um pouco, na verdade. Eu me
sinto destruída por dentro e por fora, meu corpo
está gritando comigo, pedindo para que eu cuide
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dele. E o que eu faço? Levo mais uma batatinha


frita à boca.
Depois de algum tempo falando sobre
amenidades a fim de fazer minha mente parar de
trabalhar, decido ir ao banheiro para lavar minhas
mãos engorduradas. Fico encarando meu reflexo
enquanto limpo o sal entre os dedos. Estou um
caco.
“Parabéns, Alice, você conseguiu atingir o
fundo do poço”, penso ao sair do banheiro. Não
tenho muito tempo para sentir pena de mim mesma,
pois acabo esbarrando com alguém a caminho da
minha mesa.
– Alice? – A voz me pergunta. Era só o que
me faltava, encontrar alguém conhecido nesse
momento! – É mesmo você?
Levanto o olhar ao encontro de quem me
chama, mas não reconheço o rosto masculino à
minha frente.
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– Talvez você não se lembre de mim,


estudamos juntos no oitavo ano. Eu devo estar um
pouco diferente... – E ele sorri de maneira confiante
enquanto concluo: “diferente é pouco!”. Diante de
mim estava Marcelo Bastos. Que boca santa, hein?
Credo!
O Marcelo está mais alto do que me
lembrava (obviamente), mantém o mesmo sorriso e
parece mais maduro. Ele continua com os óculos,
mas não está nem um pouco desengonçado com
todos aqueles músculos nos braços. Não músculos
do tipo brutamontes, mas do tipo deliciosos.
Espera, pensei isso mesmo do Marcelo Bastos? Eu
devo estar pior do que imaginava.
– Oi – consigo finalmente dizer, sem
parecer uma destrambelhada. – Sou eu, sim. E é
claro que me lembro de você, Marcelo.
Como poderia esquecer o cara com quem
tive o meu primeiro beijo, afinal?
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– Eu achei mesmo que era você, mas a


esperei sair da mesa para cumprimentar. Não queria
atrapalhar a conversa. – Ele sorri novamente. Não
me lembro de ele ser tão sorridente antes. Pelo
contrário, estava sempre sério ou com uma
expressão assustada. – O que você anda
aprontando?
Uma pergunta tão simples que, para mim,
apresenta várias ramificações. Como explicar o que
me aconteceu nos últimos tempos? Como não
explicar o que me aconteceu nos últimos tempos?
Como parecer glamourosa e cheia de vida, bem-
sucedida e magra?
Fico observando-o como uma retardada
enquanto remexo as mãos uma contra a outra. O
movimento não passa despercebido por ele, que
desce o olhar até meus dedos agitados. Sigo seu
movimento e, quando levanto a cabeça, ele está me
fitando fixamente. Que olhar era aquele que parecia
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saber o que eu estava sentindo? Ou seria impressão


minha?
– Você está ótima – ele preenche meu
silêncio.
Suspiro pesadamente. Não consigo fazer
isso, não hoje. Não consigo jogar conversa fora
com alguém que não vejo há tantos anos e parecer
normal. Não consigo ser normal neste momento.
Nem sei se vou conseguir voltar a ser normal um
dia. Meu peito está comprimido de novo e sinto
toda aquela onda de sensações e pensamentos ruins
me invadir com força. “Agora não, por favor”. E
isso é tudo o que eu consigo pensar.
– Olha, Marcelo, ambos sabemos que isso
não é verdade, né? – Respiro fundo, buscando me
manter firme para continuar: – Desculpa, mas hoje
não dá, ‘tá bom?
Sei que estou sendo grossa e que a Alice
conhecida por todos não agiria assim. Sei também
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que Marcelo não é o culpado pelos meus problemas


e, muito menos, por aquele meu primeiro beijo
desajeitado.
Ele não responde e sorri novamente.
Conheço esse sorriso de quem não diz nada
querendo dizer tudo. Esse sorriso complacente que
ultimamente recebo até mesmo da moça da
floricultura próximo à minha casa. Quantas vezes o
Gustavo deve ter sido atendido por ela ao comprar
flores de última hora para mim? Quantas vezes
achei romântico esse gesto que era na verdade
motivado por culpa, e não amor? Fico enjoada só
de pensar.
Observo Marcelo voltar para sua mesa
junto aos seus amigos e amigas. É, quem diria que
o veria conseguir falar com uma mulher tão
naturalmente? O mundo dá voltas. Assim que ele
senta, retorno para a minha mesa onde, obviamente,
a Malu e o Cris me analisam à espera de
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explicações. A Malu é a primeira a falar:


– Eu podia jurar que aquele lá era o...
– Era. O próprio – respondo.
– Era quem, criatura? – pergunta Cris, sem
entender nada.
– O Marcelo Bastos – Malu explica.
– Você ‘tá de brincadeira comigo? – Cris
dá uma leve risada, desacreditado. – Que boca
santa, hein?
Foi exatamente o que pensei. Mas, se a
minha boca é tão santa assim, será que se eu falar
agora que quero acabar com todo esse sofrimento,
perder a memória, apagar o Gustavo da minha vida,
ficar magra ou qualquer outra coisa boa, isso irá
mesmo acontecer?
Observo a mesa do Marcelo, seus olhos
claros estão me encarando de volta. Por sua
expressão, eu sei, compartilhamos o mesmo
pensamento: estou completamente acabada.
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Capítulo 3

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Certa vez li uma frase do filósofo Sêneca:


“o homem que sofre antes de ser necessário, sofre
mais do que o necessário”. Queria poder ignorá-la,
mas sua verdade me incomoda.
Cris, como todo melhor amigo, sempre
apresenta um chavão pronto para qualquer
momento. Ultimamente, ele vem repetindo que “a
dor é inevitável, mas o sofrimento é opcional”. O
problema é que, se posso escolher não sofrer, por
que sempre escolho o contrário? A verdade é que
cansei de sofrer por antecipação e, por isso, estou
querendo colocar tudo para fora, exorcizar o que
me causa mal e está em mim. E realmente espero
conseguir!
Estou assistindo à série Numbers.
Apaixonei-me pelo personagem principal: um
matemático que resolve crimes identificando
padrões em todo lugar e em todas as pessoas. Nós
sempre vivemos com base em padrões, sejam eles
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morais, culturais, comportamentais… A cada


episódio percebo que meus padrões mentais afetam
minha vida mais do que eu gostaria.
Eu sempre me considerei uma pessoa
estressada. Minha mãe dizia que eu era estressada.
Meu pai dizia que eu era estressada. Até meu
irmão, sempre um anjo de pessoa, dizia que eu era
estressada. Eu dizia que era estressada. E, no meu
padrão mental, ser estressada é algo ruim que deve
ser aniquilado do meu comportamento.
Procurei entender o que era o estresse e de
quais maneiras poderia evitá-lo. Eu não conversava
muito sobre o que sentia, pois nunca gostei de falar
sobre o que não entendia. Ainda não gosto, aliás,
então fui pesquisar.
Em meio às minhas pesquisas, cheguei à
conclusão de que o estresse nada mais é do que
uma resposta biológica a situações novas. É a
maneira que o ser humano encontrou de adaptar-se
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às mudanças. Só que não tinha nenhuma mudança


acontecendo comigo ou ao meu redor. Na
realidade, entendi que estar ansioso não significa
necessariamente estar estressado. A ansiedade pode
gerar o estresse, mas está associada também aos
sentimentos de medo, incerteza e preocupação. Eu
nunca fui uma pessoa estressada, no fim das contas.
Meu interior sempre esteve recheado de medos e
incertezas que me geraram as mais variadas
preocupações. Por mais que tentasse, no entanto, na
minha ignorância infantil, não conseguia encontrar
padrões nas minhas preocupações, até mesmo
porque elas me pareciam muito aleatórias.
Noto, então, que ainda me deixo controlar
pelos meus padrões mentais. É algo difícil de
admitir, mas a ansiedade é uma doença mental. Não
da maneira pejorativa como conhecemos a palavra,
e sim de um jeito que esclarece a necessidade de
redobrarmos a atenção sobre nós mesmos. Seria,
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talvez, mais apropriado utilizar o termo condição


mental.
E não adianta eu querer me igualar ao
padrão mental imposto por meu pai, minha mãe,
meu irmão ou qualquer outra pessoa. Nunca
conseguirei ser o que esperam de mim, porque eu
sou ansiosa. Eu não apenas estou ansiosa. Nunca
conseguirei ser o que esperam de mim porque,
diferente do que minha terapeuta diz, eu sou
ansiosa. Eu não apenas estou ansiosa. Então, tudo
que tenho a dizer é que, enquanto não aceitar as
condições às quais fui exposta, não há como mudar
as coisas ao meu redor. É preciso aceitar a mim
mesma, e isso me irrita profundamente.
Meu processo de autoaceitação está sob a
influência da minha maior e mais recente desilusão.
Não importa para onde eu olhe, é como se o
Gustavo estivesse sempre à espreita. Não consigo
dar um passo sem ouvi-lo sussurrar em meu
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ouvido: “não mesmo, queridinha, você não vai a


lugar nenhum sem mim”. E eu admito, não vou
mesmo. Não fui. Passei anos na ignorância do que
me controlava. E então, nesses últimos dias, parece
que de repente as coisas começaram a ficar mais
claras.
Não vou ser tola e criar esperanças de que o
Gustavo vai sumir da minha mente como num
passe de mágica, porque não é assim que funciona.
Ainda não estou pronta. Ainda não me aceito
completamente. Ainda não aceito a nossa
separação, nem um pinguinho dela sequer!
Só que alguma coisa mudou. Alguma coisa
dentro de mim se reconheceu. E, quem sabe, esse
seja um pequeno passo para mais perto do meu
equilíbrio emocional e mais longe da lembrança do
Gustavo? Eu nunca fui estressada, no fim das
contas. E esse término de namoro só foi útil para eu
abrir os olhos quanto à minha ansiedade que
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precisa ser tratada. De resto, não vou nem falar!


Perder Gustavo só piorou o que já estava ruim em
minha vida, então o lado positivo ainda é pequeno
demais em comparação à solidão, ao remorso, ao
desamparo que estou sentindo.
Em meio às minhas divagações de uma
manhã de segunda-feira, minha mãe coloca a
cabeça para dentro do meu quarto e pergunta:
– E a procura de emprego, como anda?
Jogo uma almofada em direção à sua
cabeça e me sinto uma adolescente de novo. Ela
bufa e bate a porta. Por mais que eu não queira
admitir, ela está certa. Meu comportamento é
deplorável.
Meu celular apita avisando que tenho novas
notificações no Facebook. Quando desbloqueio a
tela me deparo com a seguinte mensagem: “Lucas
Tavares quer ser seu amigo”. Começo a rir comigo
mesma. É o universo conspirando contra mim ou o
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quê? Meu passado resolveu dar as caras por aqui?


Sem pensar muito, aceito o pedido.
Provavelmente apareci naquele cantinho que diz
“pessoas que talvez você conheça” e ele clicou.
Não consigo considerar outra razão, vai além do
meu entendimento. Passo alguns minutos olhando
para a tela do celular esperando alguma coisa
acontecer. Obviamente, nada de fato acontece.
Aproveito para procurar uma roupa que me
sirva ao mesmo tempo em que mando uma
mensagem para Malu: “Vou à caça de um emprego
hoje, quer tomar uma bebida mais tarde? Convide o
Cris, se você puder ir”. Quando termino de vestir
um conjunto de saia e blusa mais arrumadinho, meu
celular apita. Pisco algumas vezes, incrédula.

Lucas Tavares: Oi, Alice! Tudo bem? Falei


com o Marcelo esses dias, ele me disse que te
viu.
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Alice Barbosa: Não me lembro de você e o


Marcelo serem amigos.
Não sei por que digitei isso. Provavelmente
foi no automático e quero bater com a minha cara
no teclado depois. Que tipo de pessoa escreve essa
resposta para alguém com quem não fala há anos?
Lucas Tavares: Tudo bem comigo também.
Hahaha. Eu e ele trabalhamos juntos.
Alice Barbosa: Legal.
Lucas Tavares: Difícil você, hein?
Alice Barbosa: Estou só ocupada.
O que é uma tremenda mentira, mas ele não
precisa saber disso. Levar um fora uma vez na vida
é o suficiente.
Lucas Tavares: Ah, desculpa! Vou direto ao
ponto então: qual o seu WhatsApp?
Antes que eu pense sobre isso, passo meu
número para ele. Não entendo o por quê. Bom, na
verdade entendo... No fundo, acho que ainda tenho
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a fantasia de concretizar o meu primeiro beijo que


não aconteceu. Não é maluquice?
Lucas Tavares: Então tá. A gente se fala...
Alice Barbosa: Aham... Até!

Assim que termino de digitar, meu celular


toca e o visor revela ser a Malu.
– Acredita que o Lucas Tavares me
adicionou no Facebook?
– Isso é demais! – exclama ela, quase
estourando meus tímpanos.
– Não exatamente... Nem sei por que dei
meu telefone para ele.
– Obviamente porque você está interessada,
Alice! – ela diz no alto de sua sabedoria sobre
“namoros”.
– Não estou interessada. Eu não quero estar
interessada O Gustavo me estragou para qualquer
outro relacionamento.
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– E quem está falando de um


relacionamento?
Depois de conversar por, no mínimo, trinta
minutos com Malu tentando me convencer dos
benefícios da vida de solteira, decido que é hora de
ir à procura de um emprego. Do lado de fora, o
bafo quente de fevereiro faz meus pés dentro da
sapatilha fervilharem, mas não me importo. Preciso
sair de casa ou vou enlouquecer com minha mãe
me espreitando.
Perco a conta de quanto tempo passo batendo
de porta em porta e deixando o meu currículo.
“Não estamos contratando”, “seu perfil não se
encaixa”, “vamos deixar seu currículo aos cuidados
do nosso RH”, as respostas não são animadoras.
Enquanto caminho, checo o meu aplicativo no
celular e nenhuma das vagas para as quais me
candidatei teve retorno. Será que meu perfil
profissional é tão ruim assim? Sempre me
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considerei uma boa funcionária. Adoro cálculos e


planejamento financeiro. Sou eu quem controla as
finanças do meu irmão, até da minha prima
perfeita! Meu tio admirava como eu deixava as
contas em dia na concessionária, mas não me
permitia inovar... E isso me cansou. Não passei
quatro anos na faculdade para me limitar ao nível
operacional!
Desanimada com a vida e pensando nas minhas
possibilidades, entro em uma cafeteria. Peço um
suco de abacaxi com hortelã.
Recebo uma mensagem de Cris: “Como
anda a procura?”.
Digito em resposta: “Nem me fala, amigo!
:( Ninguém me quer!”.
Seu encorajamento não demora: “Calma!
=) Daqui a pouco você encontrará um emprego
bem legal”.
Não consigo pensar como retornar porque
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percebo que estou prestes a chorar. O que é, no


mínimo, estranho. Não sou de chorar, muito menos
em lugares públicos. Contudo algumas lágrimas
teimosas começam a rolar pela minha face e,
enquanto tento contê-las, sinto uma mão tocar meu
ombro de maneira suave.
– Oi, Alice! Nos encontramos de novo. Que
coincidência! A não ser que você esteja me
seguindo...
À minha frente ninguém mais, ninguém menos
do que Marcelo. Hora perfeita, não é mesmo?
Aparentemente, ele tem o dom de surgir nos meus
piores momentos.
Seu semblante passa de alegre para preocupado
ao me ver chorar e, sem pedir permissão, Marcelo
se senta na cadeira do outro lado da mesa.
– Oi, Marcelo – cumprimento fungando. Devo
estar vermelha como um pimentão.
– Olha, Alice, não é da minha conta, mas é a
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segunda vez que a encontro e, de novo, você não


parece estar bem. Sei que a gente nem se conhece
direito e nunca foi próximo, mas eu gostaria de
ajudá-la.
– Ajudar como?
– Conversando com você.
Encaro-o profundamente, tento decifrar por que
Marcelo me transmite segurança. É como se eu
sentisse que posso confiar nele. Não é loucura?
– Quer saber mesmo? – pergunto desconfiada.
– Quero.
– Meu namorado, agora ex, me traiu, estou
desempregada e com sete quilos acima do peso que
eu gostaria de ter. Sei que pode parecer ridículo
para você. Na verdade, eu sei que é ridículo. Mas,
no momento, parece o fim do mundo.
– Não acho que seja ridículo. Eu já fui traído
também e não foi nada legal.
– Sinto muito.
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– Bom, não posso ajudar quanto ao seu ex-


namorado, a não ser que você queira que eu
contrate alguém para fazê-lo desaparecer...
– Agradeço, mas passo.
Dou um leve sorriso e ele retribui.
– Você costumava trabalhar em qual ramo,
Alice?
Talvez seja pela gentileza dele ou por seu real
interesse em meu ouvir, mas conto sobre a
concessionária do meu tio, minha insatisfação por
limitarem o que sou capaz de fazer, minha paixão
por planejamento financeiro e minha odisseia de
entregar currículos.
– Olha, Alice, acho que nós estávamos
destinados a nos encontrar aqui.
– É mesmo? E por qual motivo?
– O escritório Lopes & Associados está à
procura de alguém para trabalhar na gestão
financeira. Você já deixou seu currículo lá?
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– Não conheço esse escritório. Onde fica?


– No edifício do outro lado da rua. – Ele aponta
através da janela. – Sétimo andar.
– Nossa, Marcelo, obrigada pela dica! Vou lá
agora mesmo.
– Se você for contratada, aproveite e entre na
aula de zumba naquela academia logo na esquina.
Não que eu ache que você está gorda, mas se isso a
fizer parar de chorar...
– Você é minha fada madrinha ou algo do tipo?
– Não, apenas tenho um carinho especial por
você. Pelo primeiro beijo e tal, você sabe... – Ele ri
e coloca a mão atrás da cabeça, tímido.
Ignoro o seu último comentário para não me
sentir mais desconfortável do que já estou por
despejar todos os meus problemas em cima dele.
Levanto-me da cadeira e aliso minha saia. Inclino-
me e dou um beijo em seu rosto, meio receosa.
– Obrigada, Marcelo, de verdade. Te vejo por
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aí!
– Você vai.
Não entendo sua resposta, mas não tenho
tempo para analisá-la. Pago a conta no caixa e
corro para o banheiro a fim de ficar apresentável de
novo. Quando saio, dez minutos depois, Marcelo
não está mais na cafeteria.

Capítulo 4

Ao entrar no escritório Lopes & Associados


minhas mãos ficam suadas e grudentas, tive que as
esfregar disfarçadamente contra a saia antes de
cumprimentar o doutor Lopes. Estive algum tempo
na sala de espera, um quadrado de vidro na entrada
do escritório. Senti-me um peixe em um aquário ao
ser observada por cada pessoa que entrava, o que

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aumentou ainda mais o meu nervosismo.


– Então, você é a Alice Barbosa.
O doutor Lopes, no auge de sua carreira
jurídica em seus cinquenta e poucos anos, apesar de
ser um homem simpático, exibiu um aperto de mão
intimidador. Sua expressão era enigmática e,
trajando terno e gravata, o sujeito era a imagem
típica de um advogado de sucesso. Ou talvez fosse
apenas minha impressão.
– É um prazer conhecê-lo, doutor Lopes –
cumprimento de forma educada. – Gostaria de dizer
que já ouvi falar muito do senhor, mas a realidade é
que conheci seu escritório há apenas meia hora.
De esguelha percebo a secretária, que até então
nos observava, prender a respiração. A piada não
foi minha melhor escolha. E se ele me mandar
embora agora mesmo, sem nem analisar meu
currículo? Ou me humilhar diante do escritório
inteiro como quem não tem tempo para
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brincadeiras?
Ao contrário das minhas preocupações, doutor
Lopes solta uma leve risada e dá tapinhas em meu
ombro.
– Gostei de você, garota! Espero que o seu jeito
com números seja tão afiado quanto o seu humor.
– É até melhor!
– O Marcelo me falou de você – comenta
enquanto arruma o nó da gravata. – E ele não
costuma falar de ninguém.
– O senhor conhece o Marcelo?
– Claro que conheço! O Marcelo e meu
sobrinho, Lucas, são os meus braços e pernas aqui
dentro.
Incapaz de pronunciar uma palavra sequer,
estendo o meu currículo com as mãos
trêmulas.
– Não preciso disso, querida. O Marcelo já
mostrou o seu LinkedIn.
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Não consigo deixar de pensar sobre o que mais


Marcelo teria dito ao meu respeito. E por qual
motivo, em primeiro lugar, estaria me ajudando
tanto.
– Notei que seu foco é o planejamento
financeiro. Há alguns cursos muito interessantes em
seu currículo, realmente impressionante! O que a
trouxe para essa área?
– Sim, este é o meu foco. Números são
previsíveis e podemos fazê-los trabalhar ao nosso
favor. Gosto de ter o controle da situação.
– Compreendo. – Doutor Lopes aquiesce. –
Não sei o que Marcelo lhe contou, mas a vaga que
temos requer muito trabalho e até mesmo horas
extras. Estamos precisando colocar nosso
financeiro em dia e diminuir custos. Para falar a
verdade, estamos bastante desorganizados nesta
questão e precisamos de um profissional para
colocar a casa em ordem. Por isso, procuro alguém
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com muita disposição para trabalhar e aprender.


Não consigo acreditar na minha sorte. Será que
finalmente a minha carreira tomaria o rumo que eu
sonhava? Sem mais funções que me limitassem?
Aquela vaga era adequada para mim.
– Quero alguém que realmente vista a camisa
da empresa, e não apenas espere por todo quinto
dia do mês. Você é essa pessoa?
– Tenho certeza absoluta de que sou, doutor
Lopes.
– Gostei da confiança, garota. Acho que você
vai se encaixar perfeitamente aqui!
– Então, quer dizer que a vaga é minha? –
questiono para garantir não estar entendendo
errado.
– Exatamente! Vou pedir para a Carla preparar
a documentação. – Vira-se para a secretária. –
Carla, providencie os documentos de entrada da
senhorita Alice no escritório. Ela começa na
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próxima segunda-feira.
– Nossa, muito obrigada, doutor Lopes! O
senhor não sabe o que essa oportunidade significa
para mim. Não tenho nem palavras para agradecer!
– Pois então agradeça ajeitando meu setor
financeiro. Darei a você três meses para aparecer
com algum resultado. Estamos entendidos?
– Perfeitamente!
Para não gerar dúvidas de que entendi, balanço
a cabeça efusivamente. Ele aperta minha mão
novamente e dirige-se para o interior do escritório.
Mas, antes de ir embora, vira-se para mim e diz:
– Alice? Agradeça ao Marcelo.
– Claro!
Peço à Carla o celular do Marcelo, porque
realmente preciso falar com ele. A moça faz uma
cara feia, pois está muito ocupada curtindo fotos no
Facebook, mas me informa os dígitos.
Mando uma mensagem de voz pelo WhatsApp
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assim que deixo o escritório e estou segura dentro


do elevador:
– Marcelo, consegui a vaga! Muito
obrigada por tudo! Fico lhe devendo um chope, ‘tá?
***
Eu me encontro com Malu e Cris no fim da
tarde, conforme o combinado. Os dois já estão em
uma mesa do bar quando chego. O astral parisiense
e as músicas ao estilo MPB me fazem sentir mais
leve, menos agitada, após as novidades do dia.
– Amiga! – Acena Malu assim que me avista.
– Oi, gente!
– E aí, criatura? Que história é essa de o
Marcelo arranjar um emprego pra você? –questiona
Cris curioso.
– Não sei – respondo sincera. – Esbarrei com
Marcelo em uma cafeteria, conversamos e ele
comentou sobre uma vaga comigo. Acabei
descobrindo que essa tal vaga é no escritório onde
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ele e, pasmem, o Lucas trabalham!


– Não acredito, Alice Maria! – Malu quase
grita, espalhafatosa como sempre. – Quer dizer que
o gatinho da nossa pré-adolescência, além de pedir
seu WhatsApp, trabalha no mesmo lugar que
você...?
– Como assim pedir o WhatsApp? – pergunta
Cris confuso. – Não estou sabendo de nada disso!
– Pois é, Cris, o Lucas pediu o WhatsApp da
Ali para manter contato... – responde Malu com um
sorriso malicioso. – Aí tem! Estou ou não estou
certa?
– Com certeza, Maluzinha! Acho que agora a
Ali desencana de vez do mala do Gustavo.
Eles fazem um high five muito felizes consigo
mesmos e eu reviro os olhos, incomodada. Não
quero falar sobre o Gustavo. Não hoje pelo menos,
quando tenho tantos motivos para comemorar.
– Eu vou ao banheiro e, quando voltar, não
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quero nem saber do Gustavo. Ouviram? – peço


enquanto me levanto da cadeira.
Entretanto, antes de chegar ao meu destino,
trombo com ninguém menos do que Gustavo, meu
excelentíssimo ex-namorado.
– Alice, quanto tempo! – exclama ele, todo
sorridente. – Que coincidência encontrar você aqui,
né?
Gustavo se inclina e me dá um beijo no rosto
como se fôssemos velhos amigos. Estou muito
abismada para impedi-lo. Sinto-me desconfortável
e olho para os lados, buscando uma saída
estratégica.
– Eu consegui uma vaga para o mestrado aqui
na Universidade Federal – comenta animado.
Quero dizer que não estou interessada, mas
respondo:
– Ah, é? Legal.
De repente, uma garota loira cuja saia mais
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parecia um cinto sai do banheiro e para ao lado do


Gustavo. Ela me confere de cima a baixo com uma
expressão de desdém, então agarra a mão esquerda
dele com força, bem possessiva.
– Estou pronta, Gu. Vamos?
Não sinto o menor sinal de constrangimento em
Gustavo, é como se toda aquela situação lhe fosse
corriqueira. Bom, talvez fosse. Sou a única que
demonstra algum desconforto, afinal.
– Alice, essa é a Letícia...
– Noiva dele – completa a loira aguada,
deixando-me completamente surpresa.
Poderia entender se a apresentasse como sua
namorada. Seria difícil, mas entenderia. Agora,
noiva? Minha vontade de fugir triplicou enquanto
Gustavo claramente se divertia com a situação.
– A Letícia é estudante de Psicologia e fizemos
uma cadeira juntos. Assim que nos conhecemos...
Não consigo escutar mais nenhuma palavra do
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que ele fala. Meus olhos estão fixos em seus lábios,


mas é como se não emitissem nenhum som. Sinto
meu peito comprimir e começo a tremer. Preciso
sair imediatamente daqui ou vou ter um surto
diante deles. Meu estômago revira, a única coisa
em que consigo pensar é nos dois se beijando e
rolando pelos lençóis da cama dele, suados e
satisfeitos.
– Alice? – A voz que soa atrás de mim é suave
e me embala de volta à realidade.
Nós três nos voltamos em direção a quem
estava me chamando. Mal posso crer quando vejo
Lucas Tavares posicionar-se ao meu lado com toda
a sua inesquecível beleza.
– Estava procurando você, amor. Demorou! –
Ele exibe um sorriso malicioso no rosto e passa seu
braço ao redor dos meus ombros. Sua atuação se
completa com um beijo em meu pescoço,
causando-me arrepios. – Vejo que encontrou alguns
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conhecidos...
– Ah, sim... – respondo confusa. – Estes são
Gustavo e Letícia.
– Noiva dele – esclarece ela, sorridente.
– E você é? – pergunta Gustavo erguendo uma
sobrancelha, sinal de que está se sentindo
ameaçado.
– Lucas.
Gosto da maneira como ele diz isso, sem
revelar mais nada. Não suporto ninguém se
metendo em minha vida e até mesmo sua mentira
precisa de limites.
Letícia o cumprimenta toda serelepe, mas
Gustavo apenas faz um aceno com a cabeça. Lucas
não se importa, simplesmente segura minha mãe e a
beija.
– Bom, foi ótimo conhecer vocês, mas
realmente precisamos ir. Nossos amigos estão
esperando, não é, amor?
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– É, sim, precisamos ir.


Giro meus calcanhares para longe daquele
casal, ainda de mãos dadas com Lucas. Passo pela
mesa dos meus amigos, que me observam sem
entender nada, e, antes que eu consiga ter alguma
reação, Lucas me conduz para a varanda do bar.

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Capítulo 5

Lucas se encosta na parede e me observa com


aquele sorriso de lado, como se estivesse
relembrando uma piada particular. Ainda estou
zonza devido aos últimos acontecimentos, mas
minha vontade de vomitar passou pelo menos. Olho
para ele tentando adivinhar o interesse por trás de
suas ações. Sua infame frase, expressada há tanto
tempo, me vem à mente: “faz um esquema pra eu
ficar com a Isabel?”.
– Por que você me ajudou? – questiono
ressabiada. – Como você sabia?
– Não tinha nada melhor para fazer. E o seu
olhar aterrorizado a denunciou... – responde dando

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de ombros, depois saca o maço de cigarros do bolso


traseiro da calça jeans. – Quer?
– Eu não fumo. E você também não deveria.
– Você sempre faz o que deve? – Ele me olha
dos pés à cabeça e sinto minha pele formigar. –
Achei que as ruivas eram mais rebeldes.
– E eu achei que advogados eram mais
sensatos.
– Direito não tem nada a ver com sensatez, e
sim com esperteza.
– É mesmo? Interessante.
– Também acho você interessante, ruiva.
– Eu não disse que o achava interessante,
Lucas. Não distorça as minhas palavras!
– Isso faz parte de ser um advogado. – Ele dá
uma risadinha e, então, me encara sério. – Aliás,
parabéns pelo novo trabalho!
– Ah, é mesmo... seu tio – respondo quando, na
verdade, estou falando comigo mesma. – Bom,
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obrigada mais uma vez, mas agora preciso voltar.


Meus amigos estão me esperando.
– É mesmo o que você quer fazer ou apenas
precisa?
Entendo as entrelinhas da sua pergunta. Ele
quer saber se desejo ficar ali, na sua companhia, ao
invés de voltar para a minha mesa.
– Nem tudo tem um motivo obscuro, Lucas. –
Eu suspiro cansada.
Ele está diferente de como eu me lembro.
Claro, faz anos que não o vejo! Aos treze era o
garoto popular, o mauricinho. Hoje, ele é o cara
que salva jovens do ex-namorado, fuma e exibe
tatuagens sob a camiseta. Contudo, não importa
quanto tempo passe, os olhos dele continuam
magnéticos e o seu sorriso ainda faz meu coração
pular.
Espirro por causa da fumaça de nicotina.
– Você realmente devia largar isso!
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– E você devia parar de se preocupar com o que


é politicamente correto e me dar um beijo! – retruca
ele, puxando-me pela blusa para mais perto. Nossos
corpos estão grudados e minha respiração se torna
ofegante.
– O quê? – pergunto sem entender sua atitude.
– Seu amiguinho está olhando. – Aponta de
maneira discreta na direção de Gustavo e sua loira
chata.
– Ele não é meu amigo – respondo entredentes.
– Mais um motivo para me beijar, ruiva.
Seus lábios estão muito próximos dos meus, é a
primeira vez que me sinto atraída por alguém além
de Gustavo. Pode ser porque tenho certeza de que
Gustavo está me observando, e isso atiça ainda
mais minha vontade, ou pode ser pelo desejo de
concretizar minha paixão platônica na
adolescência, mas, quando dou por mim, nossos
olhares de cruzam por uma fração de segundo antes
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de nos beijarmos.
Lucas agarra meus cabelos com força e traz
minha cabeça para mais perto. Estou quente em
cada ponto do meu corpo e, quando sua língua toca
na minha, sinto que perdi o juízo. Ofego quando ele
me solta. O que acabou de acontecer? Olho para os
lados e Gustavo não está mais ali. Mas, por incrível
que pareça, não me importo.
– Como eu disse, as ruivas são mais rebeldes –
sorri orgulhoso. – E, gata, você é quente!
Contraio-me quando Lucas usa o termo “gata”,
porém deixo passar. Não vou me tornar sua
namorada ou algo do tipo, foi apenas uma aventura.
Agora que o momento de luxúria passou, imponho
uma distância segura. Não sei onde colocar as mãos
e me sinto deslocada.
– Você não precisava voltar para os seus
amigos? – ele pergunta com ar provocativo.
– Precisava. Ou melhor, preciso.
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– ‘Tá bom, ruiva. Vejo você no trabalho! – Ele


sorri e se aproxima.
Fico tensa, mas Lucas apenas beija minha
bochecha.
– Vou cobrar este favor, hein?
– O quê?
– O beijo.
– Ah...
– Apesar de eu ter gostado, você sabe, um bom
advogado sempre mantém contato com quem lhe
deve.
Observo-o voltar para a mesa dos amigos dele e
me sinto meio idiota por ainda seguir seus
movimentos. No interior do bar, caminho o mais
rápido possível ao encontro das expressões
maliciosas e cheias de curiosidade de Malu e Cris.
– Meu Deus! – Malu exclama se abanando. – O
Lucas ficou gato demais, não acha? Jesus amado!
– Deixa de ser exagerada, Malu – retruca Cris
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torcendo o nariz.
– Você diz isso porque toda a sua atenção está
no garçom que nos atendeu.
– Que garçom? – pergunto já aproveitando a
deixa para fugir do assunto.
– Ele estuda Arquitetura com o Cris, mas em
outra turma. Só que nosso amiguinho aqui ainda
não teve coragem de se apresentar...
Cris fica emburrado e lança uma careta para
Malu.
– Você não está vendo que a Ali só quer nos
distrair para não perguntarmos o que aprontou?
– É verdade! Pode desembuchar, amiga! O que
aconteceu?
– Encontrei com o Gustavo e sua noiva loira
aguada na porta do banheiro. O Lucas apareceu e se
passou por meu... sei lá... namorado.
– O QUÊ? – os dois perguntam em uníssono.
– Noiva? – Malu está soltando fogo pelas
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ventas.
– ‘Tá, mas e aí? Pegou esse tal de Lucas? –
pergunta Cris desinteressado pela loira aguada,
óbvio.
– Peguei.
Os dois se entreolham e se voltam para mim de
novo. Malu fala primeiro:
– Como é?! Você pegou o sexy e bonitão mais
conhecido como Lucas Tavares?
– Sim.
– E você conta isso pra gente desse jeito
desanimado?
– Foi... esquisito – respondo, embora não seja
completamente verdade.
– Esquisito bom ou ruim? – questiona Cris.
– Isso importa?
– Muito!
– Bom, eu acho. Mas não faz muita diferença...
– Faz toda a diferença! – exclama Malu
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empolgada. Parece que estou vendo minha amiga


com treze anos novamente, planejando suas
conspirações amorosas.
– Nem tente!
– Querem mais alguma coisa? – interrompe o
garçom bonitinho que, segundo o crachá, chama-se
Daniel.
– O seu número de telefone! – responde Malu
para horror de Cris e minha diversão.
O garçom está balançando a cabeça em
negativa quando Malu esclarece:
– Não é pra mim, não. É pra ele. – E aponta
para Cris.
– Bom, nesse caso... – O tal Daniel escreve seu
número no bloco de anotações e arranca a pequena
folha. Ele sorri para Cris quando a coloca na mesa,
fazendo com que eu e Malu comecemos a rir
descontroladamente.
Cris abaixa a cabeça, embaraçado, e fica
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repetindo não acreditar que Malu fez isso. Ele é


realmente muito reservado sobre sua vida amorosa
e, embora deixe escapar uma coisa ou outra em
meio às nossas fofocas, não sabemos nem se já
chegou a beijar alguém.
– Notei a sua queda por esse tal de Daniel –
resmunga Malu olhando feio para o amigo. – Não
precisa ficar tão estressadinho!
– Eu não vou nem comentar... – retruca ele,
mas está sorrindo de leve, pois sabe que sua amiga
teve boas intenções. Malu sempre mete os pés pelas
mãos por causa do seu grande coração, o que a
acaba envolvendo em confusões.
No momento de irmos embora, meu olhar cruza
com o de Lucas outra vez. Tudo o que consigo
pensar é no jeito como meu corpo ficou em chamas
quando nos beijamos.
***
Quando se trata de Planejamento Financeiro, a
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maioria das empresas é igual. Ou trabalham com o


famoso caderninho, ou então com planilhas do
Excel, mas poucas querem saber de utilizar um
software decente. Na segunda-feira pela manhã,
iniciando na Lopes & Associados, descubro que a
realidade deste escritório não é muito diferente.
Não possui nenhum software, como já era de se
esperar, nem mesmo daqueles bem vagabundos
com poucas funcionalidades. Por isso, acho melhor
começar a utilizar o Excel.
Minha mesa localiza-se na pequena salinha
reservada ao departamento financeiro. Compartilho
o ambiente com Júlia, responsável pelo setor de
contas a pagar, e Cláudia, pelo setor de contas a
receber. A mim, cabe a função de equilibrar ambos
os setores e descobrir como melhorar a situação
financeira do escritório.
A Júlia é uma jovem com olhos claros e
cabelos castanhos. Tem, no máximo, vinte anos e
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provavelmente ainda cursa a faculdade. Ela é


baixinha e exibe uma expressão simpática. Já
Cláudia é alta, com a pele morena, cabelos lisos e
escorridos, pretos.
– Olha, Alice, vou ser sincera com você,
querida – começa Cláudia, a mais velha do grupo. –
Isso está uma bagunça e quem trabalhava aqui,
antes de você, só piorou as coisas...
– Ele praticamente só ficava nas redes sociais o
dia inteiro! – reclama Júlia.
– A gente não consegue fazer uma conciliação
bancária legal, o pessoal nunca traz as notas quando
pedimos. Não temos muita ideia de quanto cada
cliente gera de receita e despesa...
– Também não conseguimos fazer um fluxo de
caixa decente há bastante tempo, e fluxo projetado
então... – continua Júlia.
– É lenda dentro desse escritório! – completa
Cláudia, suspirando.
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Meu olhar vai de uma para a outra enquanto


tento acompanhar e guardar todas as informações.
Pelo visto, eu realmente terei muito trabalho pela
frente. O departamento financeiro está um caos.
Mas, ao contrário do desespero esperado, esse
cenário me deixa feliz e desperta a administradora
dentro de mim.
– Meninas, provavelmente vou precisar tirar
essa semana só para entender como vocês
trabalham e que tipo de informações chega para
nós. Então vou elaborar alguns relatórios
preliminares e ver como podemos seguir a partir
daí. O que acham?
Aguardo com grande expectativa a resposta
delas. Eu não estava prevendo entrar no escritório
em uma posição de liderança. Bom, não é uma
liderança formal, mas certamente essa posição
demanda grande responsabilidade. Por mais que o
setor financeiro da concessionária estivesse sob os
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meus cuidados, não é a mesma coisa. Eu não tinha


autonomia porque meu tio era muito centralizador e
minha principal função era lançar as notas.
– Pode contar com a gente, Alice – responde
Cláudia, a outra apenas concorda. – Enquanto se
estabelece, a Ju e eu vamos separar algumas
informações que achamos importantes para você
começar. Como estamos terminando o fechamento
de fevereiro, a semana que vem será ideal, você vai
pegar tudo do comecinho.
– Ótimo! – digo entusiasmada.
Estou imersa em papéis quando paro para
respirar. Olho para o relógio do computador, já é
meio-dia e meia. Nem vi o tempo passar! Lembro-
me vagamente de as minhas colegas me chamarem
para almoçar, mas recusei. Pelo vidro, vejo Lucas
passando e seguro a respiração por alguns instantes.
Contudo, ao invés de vir me cumprimentar, ele
apenas acena com a cabeça de leve.
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Fico incomodada e não sei explicar ao certo o


porquê. Se eu esperava um buquê de flores de boas-
vindas, estava plenamente enganada. Mas, é claro,
eu não estava aguardando nada disso. Apenas um
“oi” já me deixaria satisfeita. Em meio aos meus
devaneios, escuto três batidas na porta que já estava
aberta. É Marcelo.
– Estou atrapalhando?
– Não, Marcelo, imagina! – exclamo sorrindo.
– Na verdade, estou precisando mesmo de uma
pausa.
– Como está o seu primeiro dia? – pergunta
apontando para a minha mesa.
– Muito bom, na verdade. Gosto quando tenho
várias coisas para fazer!
Ele dá uma risadinha e se apoia no batente da
porta, cruzando os braços.
– Então acho que fiz uma boa recomendação.
– Você não vai se arrepender! E, aliás, estou
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esperando você me dizer o dia do chope.


– Chope?
– É. O chope que mencionei por mensagem na
semana passada, agradecendo pela oportunidade.
– Não recebi mensagem nenhuma. Você tem o
número certo?
Comparamos os dígitos e percebo que a
secretária Carla estava mais interessada na sua
timeline do que em passar informações corretas.
Suspiro indignada, mas não falo nada.
– Bom, se você quer me agradecer, podemos ir
almoçar juntos.
– Claro, podemos sim!
– Mas ainda vou cobrar o chope, hein!
Rimos juntos enquanto pego minha bolsa.
Recordo-me de quando eu não suportava nem ficar
ao lado de Marcelo na sala de aula. Ah, bons
tempos de oitavo ano! O mundo era tão menos
complexo.
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Capítulo 6

O movimento no restaurante localizado no


térreo do edifício em que estamos é intenso. Há
pessoas com os mais diversos uniformes e roupas
sociais, outras apenas de jeans e camiseta. Apesar
do grande fluxo, Marcelo encontra uma mesa cinco
minutos depois e nos sentamos um de frente para o
outro.
Observo-o abrir um refrigerante e tomar um
gole demorado, então volto meu olhar ao meu
modesto suco de laranja. Como estou com a
intenção de fazer dieta, calo a ideia de tomar uma

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Coca-Cola. A contragosto, enfio um pedaço de


alface na boca e suspiro. Marcelo solta uma
risadinha ao cortar o pedaço de picanha em seu
prato.
– Está se divertindo com a desgraça alheia? –
questiono erguendo uma sobrancelha.
– Você está ótima, Alice. Não sei por que essa
obsessão por emagrecer.
– Eu não quero emagrecer, só quero voltar ao
meu peso normal.
– E não é a mesma coisa? – questiona Marcelo,
confuso.
– Não, é completamente diferente! – exclamo
fingindo seriedade. – Olha, nem tenta entender, ‘tá?
Ele ri e ergue as mãos em sinal de rendição. O
resto da conversa flui de maneira divertida e
espontânea. Marcelo me conta sobre a faculdade,
seus planos de se especializar em Direito Tributário
depois de terminar a pós-graduação em Direito
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Financeiro. Acho fantástico, é claro, porque sou


apaixonada pela área. Comentamos sobre a
economia do país, aplicações financeiras e a minha
vontade de fazer um curso em coaching financeiro.
Comento quão curioso é conseguir conversar
sobre meus planos com ele. Normalmente minha
família, meus amigos e até mesmo Gustavo não
entendiam a importância desses anseios. Todos
acham cálculo um assunto chato.
– Você será uma ótima coach, Alice. – Marcelo
pousa sua mão sobre a minha. – Não desista dos
seus sonhos só porque não é compreendida.
Percebo que minhas bochechas estão coradas,
mas ao mesmo tempo fico contente com o elogio.
Sempre considerei Marcelo um cara muito
inteligente, apesar do trauma referente ao “episódio
beijo”. Ele era um dos mais nerds da sala e
ninguém nunca duvidou de que teria sucesso na
vida.
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– Você é sempre assim tão...


– Tão o quê?
– Maduro?
– Olha quem está falando!
– Eu não sou madura, apenas mantenho minha
vida sob controle.
– É por isso que gosta tanto de lidar com
números?
– Talvez – minto, não quero revelar todos os
meus segredos. Marcelo parece me ler com uma
facilidade espantosa
– Não precisa ser evasiva, não vou insistir em
assuntos que você não quer dividir comigo.
– Acho que você deveria ser psicólogo com
esse jeito tão perceptivo!
– Minha mãe é psicóloga.
Por um minuto sou invadida pela lembrança de
que a loira aguada do Gustavo é estudante de
Psicologia. Fiquei tão entretida com minha
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preparação para o novo trabalho que nem pensei


naquela noite no bar, não nesta parte da noite ao
menos. Não consigo evitar me sentir trocada, no
entanto. E o fato de ela ser o esteriótipo da beleza
não melhora em nada minha autoestima já
flagelada. Normalmente não pensaria assim, mas
algo vem me deixando mais emotiva. Minha
psicóloga diz ser meu corpo dando sinais de que
precisa desabafar. Resisto a aceitar essa afirmação,
embora deva ser verdadeira.
– ‘Tá explicado então, é uma herança! – volto à
conversa.
Sorrimos um para o outro quando somos
interrompidos por Lucas, que se senta ao meu lado
e coloca o braço no encosto da minha cadeira.
– Sobre o que os pombinhos estão
conversando? – questiona à vontade.
– Sobre aplicações financeiras. O que você
prefere: letras hipotecárias ou tesouro direto? –
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Marcelo rebate.
– Terei que fazer uma consultoria com a minha
ruivinha para saber. – E dizendo isso, inclina-se
lento até acariciar minha bochecha com seus lábios.
Eu fico chocada e Marcelo desvia o olhar,
constrangido. Lucas, no entanto, levanta-se
satisfeito e sai dando uma piscadinha para mim.
– Não sabia que vocês estavam juntos –
comenta Marcelo cauteloso.
– Não estamos – respondo rapidamente. A
última coisa que preciso é de uma fofoca correndo
pelo escritório sobre mim. – O Lucas é só... o
Lucas!
– Ele tem um jeito meio galã de novela das
nove mesmo. Quer dizer, ele acha que tem. –
Limitando-se a isso, dá uma garfada em sua torta
de limão.
Em minha opinião, Lucas não tinha só o jeito,
não. Era o conjunto de seu olhar, postura, cabelos,
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lábios, o corpo inteiro... E só de pensar nisso, sinto


meu rosto aquecer de novo. Agarro meu copo como
se minha vida dependesse dele e termino o suco em
goles seguidos.
Eu sei que o Lucas significa problemas à vista,
mas por que então sinto vontade de experimentar
seu beijo de novo?
Volto para casa tarde da noite no meu primeiro
dia, e mal comecei a organizar os documentos para
revê-los na manhã seguinte. Chego por volta das
22h e como só uma salada de frutas para enganar o
estômago. Meu cansaço é maior do que a fome.
Pela primeira vez desde o meu término com
Gustavo sinto-me tranquila. Adorei minhas novas
colegas de trabalho, tão prestativas. E ficar
debruçada sobre análises contábeis faz com que eu
me sinta viva. Revisei a lista de clientes, entendi
um pouco mais sobre a movimentação financeira
do escritório, peguei os acessos às contas bancárias
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e conversei bastante com a Cláudia. Obviamente


tenho consciência de que nem tudo serão flores e
que o departamento está muito bagunçado, contudo
estou feliz.
Meus pais já estão deitados quando entro no
banheiro para lavar o rosto e prefiro não os
incomodar. Aliás, prefiro não enfrentar esse drama
agora. Meu pai ultimamente anda cada vez mais
por aqui, e menos na casa dele. Desde que se
divorciaram e passaram a morar separadamente,
parecem estar se relacionando melhor um com o
outro. Não consigo nem quero entender essa
dinâmica. Eles brigavam muito quando casados,
agora lidam com essa nova configuração com uma
naturalidade incrível.
Tomo uma ducha rápida e vou direto para o
meu quarto. Ligo o ar-condicionado em dezessete
graus e me aconchego debaixo das cobertas. Para
passar o tempo, pego meu celular e navego na
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internet em busca de resenhas literárias, looks para


trabalhar e pessoas que estão on-line no Facebook
para bater um papo. Vejo que o ícone de Marcelo
está verde, mas, antes que eu possa escrever
alguma coisa, meu celular avisa a chegada de uma
mensagem. Quase caio da cama ao receber de
Gustavo: “Desculpa por aquele dia, Ali. Não queria
ter sido frio. É tão estranho ver você depois de
tanto tempo... Sinto saudades. Podíamos combinar
alguma coisa para relembrar os velhos tempos, né?
O que acha de vir aqui em casa?”.
Preciso ler e reler, no mínimo, umas cinco
vezes para ter a certeza de que realmente entendi.
Não acredito que o Gustavo me convidou para ir à
casa dele... Ele está noivo! Eu sei que não deveria
responder, mas, quando dou por mim, estou
digitando furiosamente: “E a sua noiva?”.
Ele não demora a escrever: “Viagem da
faculdade. Só volta no final de semana”.
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Contra a minha vontade, meu coração dá um


salto. Tenho saudades também, é claro. Foram três
anos de muita história, afinal, e uma grande parte
de mim quer uma oportunidade para esclarecer por
que não pôde me amar quando o amei como
ninguém. Gostaria de saber como um amor pode
acabar assim, da noite para o dia... Quase posso
ouvir a voz da Malu a me corrigir: “Isso não foi
amor, para início de conversa”. E ela
provavelmente estaria certa.
Enquanto penso no que responder, Marcelo
começa a conversar comigo no chat.

Marcelo Bastos: Ficou até que horas no


escritório?
Alice Barbosa: Perdi a hora. Acho que até
umas 20h30.
Marcelo Bastos: Não vai querer resolver
todos os problemas em uma semana, né?
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Alice Barbosa: Não, em duas semanas


acho que tá bom, né? Hahaha.
Marcelo Bastos: Engraçadinha! Mas,
sério, cuida da sua saúde também.
Alice Barbosa: Pode deixar, pai!
Marcelo Bastos: Ah, para, né! Só quero
ver você bem, isso não significa que estou agindo
como seu pai. Longe disso!
Alice Barbosa: Obrigada pela
preocupação, Marcelo. De verdade. ;)
Marcelo Bastos: Eu gosto de você.

Sinto um formigamento no peito. A sensação


de ter alguém preocupado comigo é gostosa.
Gustavo nunca foi tão atencioso assim quando era
meu namorado. Analisando melhor a situação, será
que me contentei com pouco? Que tipo de sujeito
me convida para uma rapidinha na calada da noite?
Ele não demonstrou respeito nenhum pelo nosso
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relacionamento, agora está fazendo o mesmo com


sua noiva. Isso me entristece.
Escuto passos no corredor e dou um pulo
quando a porta é escancarada pela minha delicada
mãe.
– Você chegou e nem para me avisar, filha?! –
Ela anda até a beirada da minha cama e se senta.
– Achei que você e o pai já estivessem
dormindo. – Não comento sobre o fato de meu pai
estar, outra vez, passando a noite com ela.
Minha mãe enrubesce quando menciono o fato,
o que acho engraçado e idiota ao mesmo tempo. Os
dois parecem adolescentes! Como esperam me dar
o exemplo de um relacionamento saudável dessa
maneira? Sei que já sou adulta e não preciso de
modelo nenhum, mas mesmo assim...
Interrompendo meus devaneios, ela continua o
assunto:
– Que nada! Queria esperar você chegar... Mas
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demorou, hein?
– Tem bastante coisa para fazer no escritório.
– E como são as pessoas, o ambiente...?
– Bem legais, mãe. Gostei bastante. E o fato de
ter muita coisa para fazer me deixou animada!
Minha mãe sorri, feliz. Sei que um dos seus
maiores desejos na vida é me ver bem,
principalmente porque minhas crises de ansiedade a
fazem sofrer. Ela está enfrentando alguma
dificuldade para lidar com todos esses meus
sentimentos aflorados, já que eu nunca precisei de
cuidados especiais.
– Que bom, filha. Não sabe como me deixa
satisfeita ver você assim, mais alto astral.
– Você sabe que isso não quer dizer que estou
cem por cento, né?
– Mas já é alguma coisa – ela responde
enquanto se levanta. Antes de sair, me dá um beijo
no rosto. – Eu te amo, filha. Você sabe disso, não
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sabe?
– Também te amo, mãe.
Eu me cubro com as cobertas e abro a
mensagem de Gustavo outra vez. Antes eu gostaria
de voltar ao tempo em que namorávamos, agora já
não tenho tanta certeza disso. Eu mereço alguém
melhor. Na verdade, eu mereço me divertir.
Namorei Gustavo por anos preciosos da minha
juventude... Acredito que nesse momento devo me
deixar curtir, sem preocupações. Eu sempre levei a
vida muito a sério.
Seriedade me faz pensar em Lucas, que é
totalmente o oposto disso. Será este um sinal de
que devo dar a sorte para o azar, ou seja, me
divertir com o cara errado sem me preocupar em
procurar o certo?
É com essas indagações em mente que
adormeço. Sonho com o Gustavo, com o Lucas e
até mesmo com o Marcelo. Que rolo está essa
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minha cabeça!

Na manhã seguinte, chego antes de começar o


expediente. Cláudia e Júlia também já estão lá para
colocar os atrasos em dia. As duas me
cumprimentam quando entro na sala e ligo meu
computador.
Ao verificar meu e-mail corporativo, encontro
uma mensagem do doutor Lopes enviada durante a
madrugada. Ele não dorme, não?

Boa noite, Alice.


Gostaria de marcar uma reunião para a sexta-feira
dessa semana, às 10h, em meu escritório. Quero
saber quais as suas ideias para o nosso
planejamento financeiro.
Atenciosamente,
Lopes
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Minha atenção não desgruda da tela do


computador. O que eu poderia dizer para o doutor
Lopes na primeira semana de trabalho? Ainda não
tenho ideia da situação do escritório. E se ele achar
que sou uma piada e me demitir imediatamente?
Sei que estou sendo idiota em pensar dessa
maneira, até porque, se eu considerar com calma, já
tenho várias coisas para tratar com ele, mas meu
coração começa a bater descompassadamente e
sinto dificuldade de respirar.
Olho para os lados e constato que minhas
colegas não estão reparando em mim. Fico aliviada
e corro para o banheiro discretamente. Abro a
torneira e, com as mãos trêmulas, jogo uma boa
quantidade de água em meu rosto. Fecho as
pálpebras com força e me agarro à pia, o ar parece
não preencher meus pulmões. Preciso me
controlar. Sinto as lágrimas se misturarem com a
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água fria, a vontade de gritar em desespero me


invade. Por que isso continua acontecendo comigo?
Eu consegui um trabalho legal, tenho plena
confiança de que sou capaz de realizá-lo. Não
entendo como um simples e-mail pode me
desestabilizar assim. Não faz sentido.
Dez minutos depois, sinto-me melhor. A crise
passa e me recomponho, apesar da palidez facial.
Abro a porta e, no corredor, dou de cara com
Lucas.
– E aí, ruiva! Tudo bem? – Ele me dá um beijo
no rosto, animado como sempre. Não parece
perceber meu estado.
Ainda meio zonza, apenas movo a cabeça
concordando.
– Tenho que sair agora – ele diz. – Um cliente
está me esperando para uma reunião!
Não consigo evitar pensar no quanto Lucas é
alheio às pessoas. Ele não é sensível como
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Marcelo, por exemplo. Não consegue perceber que


estou abalada por trás de meu sorriso simpático. E,
surpreendentemente, acho isso reconfortante. Lucas
não nota minhas crises e sinto-me aliviada. Para
ele, sou uma mulher normal.
– Boa reunião! – exclamo acenando.
Já prestes a virar o corredor, ele se vira e diz:
– Tenho uma ideia. Eu e você, sexta-feira à
noite. O que acha?
– Combinado!
– Ótimo. – Ele me oferece um de seus sorrisos
galanteadores e sai porta afora.
Aliso minha saia tentando assimilar o que
acabou de acontecer. Eu realmente terei um
encontro com Lucas Tavares? Enquanto penso
sobre isso, volto para a minha sala. Cláudia e Júlia
continuam concentradas em seus lugares, nem
levantam os olhos. Respiro devagar, preparando-me
para responder o e-mail ao doutor Lopes. Começo a
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digitar rapidamente para não pensar muito sobre


isso.

Bom dia, doutor Lopes.


Já marquei nossa reunião em minha agenda.
Tenho várias ideias interessantes para tratar com o
senhor.
Atenciosamente,
Alice Barbosa

Assim que clico em enviar, tenho vontade de


bater com a minha cara no teclado. Tanto escândalo
só para isso? Eu realmente não suporto não ter o
controle sobre o meu corpo. Minha psicóloga diz
que é humanamente impossível controlar tudo, e
exatamente por eu não suportar essa ideia é que
tenho crises de ansiedade. Por que não consigo
aceitar isso? Sei que parece drama da minha parte,
mas só queria ser uma pessoa normal.
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Capítulo 7

Passei o restante da semana trabalhando das 8h


às 21h em busca de respostas para a confusão de
números da Lopes & Associados. Ansiosa do jeito
que sou, tentei resolver neste curto tempo o fluxo
de caixa de mais de dez anos de escritório.
Obviamente não consegui. Mas, por outro lado, tive
uma ideia do montante de entradas e saídas, assim
como de onde estão os furos de organização e
controle.
Na sexta-feira cheguei cedo, pendurei minha
bolsa no encosto da cadeira e alonguei os dedos
antes de iniciar o dia. Revisei os arquivos que criei,
como o fluxo de caixa, as despesas fixas e variáveis
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do escritório, a lista de clientes e a receita


proveniente de cada um... Era um conjunto de
estimativas, é claro.
Depois de reunir as informações, percebi que o
maior problema são as divergências entre os
extratos bancários e o fluxo de caixa; não há uma
conciliação correta, o que dificulta saber quanto
entra e quanto sai efetivamente do escritório. O
terror de qualquer gestor financeiro. Para resolver
esse problema, a melhor coisa seria investir em um
software financeiro para automatizar o controle.
Precisarei convencer o doutor Lopes.
Com tais questões em mente, vou ao encontro
dele às 10h em ponto. Carla, a secretária, pede para
eu aguardar na sala de reuniões. Não vou mentir,
estou nervosa e o medo de enfrentar uma das
minhas crises neste momento é ainda maior.
Enquanto aguardo o doutor Lopes só consigo
imaginar que, se entrar em colapso diante dele, será
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terrível! Respiro pausadamente várias vezes até me


sentir mais calma. Apesar de as minhas mãos
começarem a suar, consigo me concentrar. Fixo
meu olhar no caderno com minhas anotações.
– Bom dia, Alice. Como vai você? – O
doutor Lopes entra e aperta minha mão com força.
Seu jeito efusivo praticamente me desconjuntou,
mas mantive a pose.
– Bom dia, doutor Lopes! Estou ótima, com
vários planos, e o senhor?
– Muito bem. Vamos começar então, sem
mais delongas. – Senta-se à minha frente e coloca
os cotovelos sobre a mesa, as mãos apoiadas no
queixo. – O que trouxe para mim?
– Bom, após avaliar as informações
financeiras durante essa semana e ver quais eram os
dados mais atualizados, percebi que os maiores
gargalos estão ligados diretamente ao controle de
processos e ao controle das entradas e saídas de
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caixa.
– E como você chegou a essa conclusão?
– No setor financeiro não estão claras as
rotinas necessárias nem como realizá-las. Não há
um controle de qualidade, entende? Os contratos
não estão guardados de um jeito prático e também
não sabemos ao certo quanto recebemos de cada
cliente devido às mais diversas formas de
pagamento, inclusive as informais. É necessário
criar uma padronização para isso.
– E qual a sua solução?
– Apesar de ser um custo a curto prazo, que
gostaria de chamar de investimento, a melhor
solução seria automatizar o setor financeiro através
da compra de um software de gestão. Conheço um
cujo custo não é exorbitante e a sede está em
Joinville. Percebi que muitos de nossos clientes têm
problemas jurídicos porque não controlam os
impostos corretamente, muito menos a questão da
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folha de pagamento, e um software resolveria esse


problema.
– Bom, Alice, você com certeza trouxe
ideias interessantes em pouco tempo. Sinceramente,
eu só esperava problemas.
– Pensar na solução para essas questões que
identifiquei faz parte do meu trabalho, senhor –
respondo contida. A verdade é que sou incapaz de
ver problemas sem pensar em mil maneiras de
resolvê-los. Só queria conseguir organizar minha
vida com a mesma facilidade.
– Nem todas as pessoas são assim
eficientes, a maioria dos meus funcionários só
deixa os problemas em minha mesa.
– O que estiver ao alcance do departamento
financeiro será feito, doutor Lopes. Minhas colegas
e eu estamos muito interessadas em melhor
organizar estes dados.
– Você é sábia, ninguém poderia fazer algo
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a respeito sem contar com uma boa equipe! –


Doutor Lopes sorri. – Bom, gostaria que você me
enviasse uma proposta sobre esse software
contendo os custos e qual a economia que teremos
a longo prazo, quais as funcionalidades, como seria
essa parceria com a empresa que o desenvolveu e
se ela concorda. Além disso, também quero que dê
prosseguimento ao controle de qualidade tanto dos
contratos quanto do setor financeiro em geral, conte
com o apoio das suas colegas para isso. Faremos
uma reunião semanal para acompanhar o progresso
toda sexta-feira, neste mesmo horário, ok?
– Perfeito! – exclamo, soltando a respiração
que nem percebi estar prendendo.
– Muito bem, então. Mãos à obra!
Saio da sala de reuniões aliviada. Os
músculos em meus ombros estão tensos, meu
pescoço parece uma pedra. Decido ir até a copa
para espairecer um pouco. Ao entrar no pequeno
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cômodo, encontro Marcelo sentado tomando um


iogurte.
– Bom dia, Alice. Tudo bem?
Jogo-me na cadeira e suspiro.
– O que aconteceu? – questiona com o
cenho franzido.
– Nada demais, na verdade. Apenas saí de
uma reunião com o doutor Lopes e me sinto
atropelada por um caminhão.
– Tão ruim assim?
– Não, eu é que estava quase subindo pelas
paredes de ansiedade.
– Sem necessidade. O doutor Lopes é
muito tranquilo!
– Não sei, não...
– Confie em mim!
– Prefiro formar minha opinião sobre o
assunto.
Marcelo solta um risinho, então segura
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minha mão que estava apoiada na mesa e dá um


aperto.
– Gosto de mulheres com personalidade
forte.
Não sei o porquê, mas sinto minha face
esquentar. Já sou ruiva, quando coro pareço um
pimentão ambulante!
– E como andam os negócios? – pergunto
em uma tentativa de mudar de assunto.
– Vão muito bem. Consegui fechar três
contratos bons nesse mês, o que vai gerar uma boa
entrada de caixa pra gente.
– Ai, que ótimo! Pelo que consegui
conciliar das contas, estamos mesmo precisando.
– É sério? Achei que estivéssemos indo
melhor...
– Não posso dizer nada com certeza ainda.
Não deveria nem ter comentado...
– Acho que deixo você nervosa. – Ele sorri
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de maneira zombeteira.
– E eu acho que você está sonhando. –
Mostro a língua para ele e me levanto de uma vez
só. – Melhor voltarmos ao trabalho.
– Nós? Está mandando em mim agora?
– Quer que eu deduza esses minutos de
folga do seu salário?
– Mal entrou e já está se achando a dona do
dinheiro!
– Bobo! Só estou brincando. – Dou um
soco em seu braço enquanto passamos pela porta.
Viro-me em direção à minha sala quando a
voz de Lucas me faz parar no meio do caminho.
– Tudo certo para hoje, ruiva?
Fico constrangida por ouvi-lo comentar
sobre nosso encontro na frente de Marcelo. Ele me
encara curioso e eu desvio. Lucas, por outro lado,
está alheio à nossa troca de olhares.
Aceno positivamente com a cabeça e
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continuo meu caminho, mas Marcelo segura braço.


– Não sabia que você e Lucas tinham um
lance. – Sua voz é séria e ele me observa
concentrado.
– Já disse que não temos. Somos só amigos
– respondo sem jeito, ansiosa por me esquivar de
mais comentários.
– E ele sabe disso?
– Claro que sim! – afirmo efusivamente. –
Chega de bobagens, Marcelo, tenho várias coisas
para fazer.
– Mas está na hora do almoço. Não vai
almoçar?
– Mais tarde.
– Quer que eu traga alguma coisa?
– Não, obrigada.
– Então, está bem. Vejo você depois.
Despeço-me com rapidez, mas Marcelo
acrescenta:
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– Não quis chatear você, Ali.


Gosto da maneira como meu apelido soa na
voz dele... Balanço a cabeça para afastar esse
pensamento.
– Não me chateou. Imagina! Só estou com
muitas coisas na cabeça, devo pensar em maneiras
de organizar o impossível.
– Está tão difícil assim?
– Alguns dados não fazem sentido, mas vão
fazer. Números sempre fazem sentido no final.
– Diferente de pessoas? – indaga com um
sorriso divertido no rosto.
– Exatamente... – Sorrio de volta, sinto-me
contagiar por seu humor.
– Acho que estou começando a entendê-la
melhor.
“Sim, você está”, quase respondo. Sua
capacidade de me compreender não apenas me
surpreende, mas apavora. Não consigo interpretar o
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motivo, mas a ideia de Marcelo me descobrir além


das camadas que eu deixo transparecer me deixa
angustiada. Gustavo nunca quis ir muito além das
aparências e Lucas, por sua vez, provavelmente não
está nem um pouco interessado em descobrir quem
sou sob a superfície. Mas por que fico comparando
Marcelo a eles, afinal? Somos só amigos.
– Tenho que ir, Marcelo. Os números me
chamam. – E dizendo isso, volto à minha sala onde
fico até o final do dia.
As palavras de Marcelo continuam comigo
e o que mais desejo é tirá-lo da minha cabeça. Não
consigo evitar pensar que meu encontro com Lucas
chegou em boa hora.
Chego a casa mais cedo do que de costume,
pois no fim do expediente comecei a ficar ansiosa
sobre esta noite. A lua encoberta por algumas
nuvens já aparece no céu e o apartamento está
vazio, deixando-me mais calma. Não quero dar
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explicações sobre a minha saída repentina.


Depois do banho, opto por um vestido rosa-
claro esvoaçante e uma maquiagem leve. Ajeito
meus cabelos em um coque frouxo e coloco um par
de sapatilhas cor de gelo com a ponta metálica.
Às 20h em ponto, Lucas me envia uma
mensagem informando já estar diante do prédio e
sinto meu estômago embrulhar. Ao mesmo tempo,
meu peito aquece e um sorriso invade meus lábios
sem ser convidado.
É engraçado, mas não pensei sobre nosso
encontro durante todo o dia e agora não consigo
parar de sorrir como uma boba para o espelho do
elevador. Sei que provavelmente o Lucas quer só
me levar para a cama, mas hoje à noite desejo
apenas um monte de cantadas baratas e alguém que
me chame de “gata”. Sou ou não sou confusa?
Mesmo assim, permaneço com esse estado de
espírito. Desço os degraus da entrada do prédio
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lentamente, para não parecer afobada, e coloco um


sorriso discreto no rosto. Respiro fundo e relaxo os
ombros, repetindo o mantra “não vou entrar em
pânico, não vou entrar em pânico, não vou entrar
em pânico” umas cinquenta vezes.
– Oi, linda – Lucas me cumprimenta
abrindo a porta, mesmo sentado ao volante. Ele não
desceu como um cavalheiro faria. Definitivamente,
em um conto de fadas, ele não seria o príncipe
encantado, mas um sedutor vilão. – Saudades de
você.
– Você me viu hoje. – Sinto meu rosto
corar e agradeço por estarmos sob a meia-luz da
lua.
– Não do jeito que eu queria. – Ele me dá
um beijo no rosto que faz todos os pelos do meu
corpo se eriçarem.
O som do carro toca “You shook me all
night long”, de AC/DC, e meus pés começam a
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balançar ao ritmo da música espontaneamente.


– Não a imaginava como uma garota que
gostasse de AC/DC.
– Eu não me imaginava como uma garota
que sai com caras tatuados, fumantes e que pilotam
motos, mas aqui estou eu – respondo me referindo
à bela moto com a qual o vejo ir até o trabalho
todos os dias.
– Pelo menos vim de carro hoje.
Lucas ri, gosto dos seus lábios assim. Não
temos nada a ver um com outro. Se na época do
colégio éramos completamente opostos, agora
somos ainda mais do que isso. Não importa, hoje
ele é o cara perfeito.
– Onde vamos?
– Pensei em bebermos uma cerveja na
Avenida Beira-mar.
– Eu não bebo.
– E eu não bebo sozinho.
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Lucas aperta minha coxa sem permissão,


mas não ouso reclamar. Meu corpo corresponde ao
seu toque, e ele sorri malicioso. Enquanto o carro
atravessa a Ponte Hercílio Luz e a Avenida Beira-
mar Norte conversamos sobre trivialidades, como
nossa paixão por American Horror Story e The
Walking Dead. Em seguida passamos a discutir
sobre a economia do país e, por último, quando
estamos estacionados de frente para a Beira-mar
Norte, ele me conta que acabou de terminar com a
ex-namorada com quem se relacionou por seis anos
e que não está à procura de um compromisso sério.
Tenho vontade de responder “e quem disse que eu
estou?”, mas fico quieta.
Ele desata o cinto e se vira para mim. Olha-
me por alguns instantes, puxa-me pelo pescoço e se
agarra em meus cabelos, sinto o calor subindo por
entre minhas pernas. O beijo dessa vez é mais
ardente, mais desesperado e bem mais gostoso.
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Sinto vontade de ir para a cama com ele e nunca


desejei sexo casual antes.
Quando nos afastamos, ofegantes, percebo
que AC/DC ainda nos embala com “Black in
Black”.
– Você é uma garota para casar.
– Por que todos me dizem isso?
– Porque você é toda fofa, linda e
inteligente.
Ergo a sobrancelha em dúvida.
– E muito gostosa.
Ao ouvir sua voz rouca expressar essas
palavras, quase me sinto gostosa. Sorrio de lado
tentando transparecer uma segurança que não tenho
e fingir que sou sedutora quando, na verdade, estou
longe disso. Eu minto, e ele finge que acredita, mas
está tudo bem. Aproximo-me outra vez e deito em
seu peito, então acaricio seu abdômen
completamente definido. O Gustavo não tinha um
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corpo nem parecido com esse!


Sinto Lucas se contorcer entre meus dedos
e percebo-o começar a ficar mais animado. Estou
orgulhosa de conseguir estar com um cara gato, que
pratica artes marciais e pilates. O resultado desses
exercícios é gostoso, muito gostoso.
É tão fácil conversar com Lucas, porque
posso fingir ser quem eu quiser. E nesse momento
sou a Alice descolada, escutando “Highway to
Hell” e fingindo que essa é a minha banda
preferida. Percebo que Lucas gosta de posar de
“burrinho” na frente dos outros para ser mais
“cool” e não me importo. Desde que ele continue
acariciando meus cabelos e dizendo que sou “linda
pra caramba”.
– Eu queria estar em outro lugar com você
agora.
– Onde?
– Na minha casa, na minha cama e você
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sem roupa comigo.


Engasgo. Não estava esperando por isso.
– Você é sempre tão direito assim?
– Eu sou objetivo com o que eu quero.
– Percebi.
– Quando vejo você no escritório, começo
a imaginar coisas... é difícil me controlar...
– Lucas, eu não sou de me entregar em um
primeiro encontro.
– Eu sei que não, mas posso ser bem
persuasivo.
– Eu também posso.
– Então vamos ver quem ganha esse jogo.
Nossos olhares se fixam um no outro e,
nesse momento, entendo que somos duas estrelas-
cadentes prestes a entrar em colisão, mas não tenho
nenhuma crise por causa disso. Quando ele me
beija, não sei dizer se é por desejo ou alívio, eu me
sinto uma pessoa normal de novo.
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Capítulo 8

O restante da noite passou voando e me


senti na pele de outra pessoa. Minhas ações, meus
pensamentos e minhas emoções não pertenciam a
mim, e sim à garota que fui um dia e à garota que
eu queria ser.
Perto da meia-noite, Lucas me deixou em
casa com um beijo demorado no pescoço e então se

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despediu. Subi a escadaria do prédio com as pernas


meio bambas, sem acreditar no que fiz. Eu
realmente acabei de ter um encontro com Lucas
Tavares?
Ainda zonza, abri a porta do apartamento e
entrei de fininho para não atrair a atenção de
ninguém, principalmente da minha mãe que adora
saber sobre a minha vida amorosa.
– Não se preocupe, eles já estão dormindo
– sussurrou Mateus, meu irmão.
Quase não consigo enxergá-lo, a não ser
pela luz do computador que ilumina seu rosto.
Ele está sentado no sofá da sala
provavelmente digitando algo relacionado ao seu
trabalho. Dei um pulo e quase derrubei o vaso em
cima do aparador. Suspirei pesadamente, relaxando
a postura assim que percebi que nenhum estrago foi
feito.
– O que você está fazendo aqui? – pergunto
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também cochichando.
– Estava muito cansado para dirigir até a
ilha e resolvi dormir por aqui mesmo – responde
ele, mas algo em sua voz me indica que está
escondendo alguma coisa.
Conheço meu irmão, e não é de hoje.
Sempre que precisa fugir dos seus problemas e
esfriar a cabeça ele volta para cá. Não sei por que,
já que nossa casa é um show de horrores com os
berros da minha mãe e as desculpas esfarrapadas do
meu pai.
– Está tudo bem com a Vanessa? –
questiono.
Vanessa é a atual namorada dele há pouco
menos de cinco meses. Já se pode considerar este
um longo tempo, uma vez que meu irmão não
costuma se relacionar muito com nenhuma garota.
– ‘Tá sim. E posso saber onde a senhorita
estava?
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Encolho-me com a pergunta. Não quero


contar sobre Lucas, não ainda. Na verdade
provavelmente nunca quererei, pois duvido que
esse “romance” ou o que quer que seja durará
tempo suficiente para merecer ser compartilhado.
– Saí – limito-me a responder.
– Não acha que é um pouco tarde para
chegar a casa em um dia de semana? – ele zomba,
desligando o computador.
Mostro a língua para Mateus e rolo os
olhos.
– Vou fingir que não ouvi isso, afinal, hoje
é sexta.
– Já que não tivemos regras decentes, não
custa eu tentar criar algumas, né?
– Acho que já estamos um pouco
grandinhos para você dar uma de patriarca, não?
Além do mais, nos viramos muito bem sem nossos
pais.
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– Você acha?
– Mateus, você foi um ótimo irmão mais
velho. Se não fosse por você, eu provavelmente
teria ficado louca com aqueles dois.
Meu irmão sabe ao que estou me referindo. Tão
loucos, apaixonados e inconsequentes nos termos
do amor, quando nossos pais eram casados, prometi
a mim mesma que nunca amaria assim.
Especialmente não se amar desse modo significava
perder as estribeiras, gritar e chorar todas as noites
para, então, fazer as pazes pela manhã. Esse
relacionamento era, ainda é, uma montanha-russa
de emoções que duas crianças como nós não
deviam ter presenciado. Infelizmente, meus pais
estavam muito preocupados com o próprio
casamento para entender isso. Não posso dizer que
não foram bons pais, longe disso! Sempre
forneceram o que precisávamos. Contudo, agora
que estou frequentando a psicoterapia, percebi que
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a única coisa que nunca tive foi a estrutura


emocional necessária para enfrentar a vida. Talvez
seja por isso que Mateus é tão sério, disciplinado e
concentrado enquanto eu tenha tantas camadas de
proteção, evitando que alguém chegue muito perto.
Será que tememos amar?
Balanço a cabeça para espantar meus
devaneios loucos da madrugada. Só então me dou
conta de que Mateus está de pé a me observar no
escuro.
– O que foi? – indago.
– Obrigado por isso.
– Pelo quê?
– Pelo que você disse.
– É a verdade.
Nos abraçamos e nos despedimos. Entro no
meu quarto e arranco minha roupa em segundos.
Toda essa análise da minha vida emocional me
deixou cansada. Visto uma camisola e, então, me
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enfio debaixo das cobertas.


A partir de segunda-feira terei uma longa
semana pela frente, pois começarei as providências
para implantar o software de gestão financeira.
Apago pensando em números, previsões, tabelas de
recebimento e nos lábios de Lucas na minha nuca.
***
Quando inicia a semana, ao entrar no
escritório, vejo Lucas caminhando pelo corredor
com uma moça peituda do setor de Direito
Trabalhista. Eles estão rindo e noto a camisa social
dela com os três botões abertos revelando um
ousado decote.
Eles param próximos à porta da minha sala.
Respiro fundo e ergo o pescoço para ter uma
postura mais elegante, como diria minha prima
Bruna. Ao passar pelo casal, Lucas mal desvia o
olhar por cinco segundos para me dizer um “bom
dia” preguiçoso.
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Tenho vontade de parar e exigir alguma


satisfação, mas então me dou conta de que Lucas
não me fez promessas e aceitei isso. É o que eu
quero, não é? Um relacionamento sem
compromisso. Ou melhor, sem relacionamento
algum. Apenas um casal de amigos que sai de vez
em quando... Mas, nossa, como é difícil bancar a
“Alice descolada” perto dessas torneadas pernas
que a moça revela sob a saia social. Aposto que
conheço a área de Direito Trabalhista melhor do
que ela!
Suspiro. Agora estou sendo ridícula.
Recupero o que resta da minha dignidade e sento
em frente ao computador. Como ainda faltam vinte
minutos para as 8h, aproveito para espairecer um
pouco no Facebook antes de bater meu ponto.
Assim que entro, a janelinha do meu grupo de
amigos pisca.

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Cris Santos: Por onde você andava,


criatura? Queremos saber tudo sobre seu encontro
com o bad boy sexy!
Alice Barbosa: Foi legal.
Malu Ferraz: Legal? Eu esperava algo
mais intenso, como uma noite de sexo selvagem!!!!
Alice Barbosa: Isso porque suas
expectativas estão muito acima da minha realidade.
Cris Santos: Deixa de se fazer, Alice! Não
esconde o jogo, não!
Alice Barbosa: Tá bom... Foi ótimo! Me
senti outra pessoa, como se o Gustavo tivesse
acontecido há dez mil anos...
Malu Ferraz: Ótimo! Qual o problema?
Alice Barbosa: Hoje o Lucas age como se
nada tivesse acontecido e não sei o que fazer. Essa
onda de “sem compromisso” é difícil de pegar.
Cris Santos: Claro que é, bobinha! Em
primeiro lugar, você não é nenhuma surfista...
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Malu Ferraz: E em segundo, faz tempo


que você vive em uma caverna. Bem-vinda ao
mundo dos solteiros!
Cris Santos: Bem-vinda às angústias de
não saber se o cara irá te ligar no dia seguinte ou,
pior, como agir quando voltar a vê-lo.
Malu Ferraz: Todos nós já passamos por
isso.
Cris Santos: Logo, logo você pega o jeito!
Alice Barbosa: Será? Não sei, não...
Malu Ferraz: A não ser que você esteja se
apaixonando por ele...
Cris Santos: Ou ainda esteja apaixonada
pelo Gustavo.
Alice Barbosa: Esse papo de paixão já está
me deixando enjoada. Vou voltar ao trabalho!
Beijos para vocês!
Cris Santos: Beijos!
Malu Ferraz: Essa conversa ainda não
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acabou, mocinha! Beijos!

Fecho o Facebook e bato meu ponto. Assim


que faço isso, Marcelo aparece sorridente em
minha sala.
– Bom dia! – cumprimenta sentando-se na
ponta da minha mesa. – Como você está?
– Um pouco nervosa, mas bem.
– O que aconteceu? – questiona com um
semblante preocupado.
– Hoje inicio os preparativos para a
implantação de um novo software.
– Tenho certeza de que você dá conta do
recado.
– E você, como está?
– Tudo bem. Ontem me encontrei com a
minha irmã.
– Não sabia que você tinha uma irmã... –
menciono mais para mim do que para ele, mas
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Marcelo obviamente escuta.


– Há muitas coisas que você não sabe sobre
mim, por mais clichê que isso soe. – Ele ri de si
mesmo. – Pareço um daqueles caras misteriosos do
cinema?
– Na verdade, não muito – rebato
brincando. – Qual o nome dela?
– Bianca. Ela é uma profissional de
Educação Física e vai começar a dar aulas de yoga
na academia que mencionei antes para você. Quer
fazer uma aula experimental comigo hoje, depois
do almoço?
– Yoga? Não era zumba?
– Você pode fazer zumba segundas, quartas
e sextas, deixando para fazer yoga terças e quintas
comigo.
– Você já tem meu cronograma de
exercícios programado? – pergunto erguendo uma
sobrancelha.
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– Não. Só estou esperando ter o prazer da


sua companhia no meu cronograma de exercícios.
– Não o imagino como alguém que faça
yoga.
– Não muito, mas quero apoiar minha irmã.
É o primeiro emprego dela aqui na cidade.
– Ah, ela não morava aqui?
– Ela estava em Curitiba, mas terminou um
namoro ruim e resolveu voltar para casa...
– Entendi. Bom, então yoga será!
– Venho buscar você no final do
expediente.
Tenho vontade de perguntar “e o almoço?”,
mas seguro minha língua.
– Ou melhor, venho na hora do almoço.
Sorrio e meu peito aquece um pouco. Por
que Lucas não pode fazer essas coisas também? E
por que eu gosto quando o Marcelo faz? Tantas
dúvidas em minha cabeça, mas o dever me chama.
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Capítulo 9

Depois que me despeço de Marcelo, afundo


minha mente em números e mais números. Posso
sentir os meus neurônios queimando de tantas
planilhas que tenho abertas para tentar conciliar as

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informações espalhadas pelos diversos setores do


escritório.
Suspiro longamente. Todos esses
problemas financeiros não existiriam se houvesse
controle. Controle e planejamento. Mas nem todo
mundo é igual a mim, com essa necessidade louca
de controlar tudo.
Detenho-me um pouco neste pensamento e
reflito sobre isso. Talvez, se eu conseguisse
canalizar minha ansiedade para as questões certas,
para o tal equilíbrio que tanta gente preza, meu
emocional não estivesse em frangalhos agora. Sou
interrompida ao escutar meu celular vibrar. É uma
mensagem do meu irmão: “Não aguento mais o pai
aqui em casa! Vou enlouquecer com essas músicas
do Lulu Santos que não param de tocar”.
Fico intrigada. Primeiro porque meu irmão
está na nossa casa ao invés da dele. Segundo
porque meu pai está na nossa casa ao invés da dele.
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Respondo: “O que você está fazendo aí?”.


Sua justificativa me faz rir: “Acabou o meu
vale e vim descolar alguma coisa para comer”. A
casa da Vanessa é a mais perto do trabalho dele,
mas algo me diz para não comentar sobre isso
agora. Decido mudar de assunto: “O pai está em
casa ainda? Faz quantos dias que ele não volta para
a casa dele?”. Antes mesmo da resposta, já consigo
prever não gostar dela: “Mais de uma semana”.
Eu e Mateus sabemos o que isso significa,
mas nenhum de nós quer dizer. Eu ainda era uma
pré-adolescente na última vez que papai ficou tanto
tempo assim lá em casa. Na ocasião eles decidiram
“tentar de novo” como uma família completa e,
obviamente, não deu muito certo. Na verdade, deu
muito errado e meu pai ficou um ano sem poder
passar pela porta logo quando estávamos nos
acostumando a tê-lo morando conosco novamente.
Massageio minhas têmporas, exausta. Não
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quero nem pensar no que pode acontecer se meus


pais decidirem fazer isso de novo.
Estou prestes a voltar ao trabalho quando
escuto batidas na porta.
– Sozinha de novo? – Marcelo questiona
apontando para as mesas vazias.
– Nem percebi que elas saíram – respondo
erguendo as sobrancelhas, surpresa.
– Já são quase 13h.
– Nossa! O tempo passou voando no meio
dessa desorganização em que estou...
– Você? Desorganizada desde quando? –
ele brinca.
– Eu não disse que sou desorganizada. Eu
disse que estou no meio de uma desorganização –
respondo e mostro a língua. – E o que vamos
almoçar?
– Pensei em algo leve para nos prepararmos
para mais tarde.
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Engulo a bola que se forma em minha


garganta. Sei que ele está apenas falando sobre
nossa aula juntos, mas mesmo assim sinto meus
pelos da nunca se eriçarem. Acho que, no fim, Cris
e Malu estão certos e estou há tempo demais na
seca. Por que outro motivo eu veria segundas
intenções nas atitudes de Marcelo? Pior: por que eu
estou pensando em sexo, em Marcelo e nestas duas
coisas juntas quando tenho tanto trabalho para
fazer? Deve ser por causa do encontro que
presenciei entre Lucas e a moça peituda que me
deixou nocauteada.
Balanço a cabeça para afastar os
pensamentos e pego minha bolsa. Descemos pelo
elevador e vamos até o restaurante na esquina da
rua em que trabalhamos, onde há lanches naturais.
O almoço é tranquilo e me faz esquecer de todos os
problemas com meus pais, com Lucas e comigo
mesma. Marcelo tem esse poder sobre mim:
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manter-me calma. Com ele, o riso é fácil e seu


rosto sereno me dá vontade de ser assim também,
equilibrada.
Ele pergunta sobre o trabalho, sobre minha
família e meus amigos. Seu interesse é genuíno e
me deixa animada. Conto para ele sobre minha
vida, mas escondo as partes mais obscuras. Não
quero que ele saiba das minhas crises de pânico.
Gosto da visão que ele tem de mim agora e a última
coisa que desejo é destruí-la ao parecer uma
perdedora.
– Chega! – exclamo quando termino de
contar mais uma das peripécias de Cris, Malu e eu.
– Vamos falar de você.
– Não há muito o que falar de mim.
– Ah, qual é?! Contei para você toda a
minha vida.
– Por que eu tenho a sensação de que isso
não é verdade?
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Mordo os lábios, insegura.


– Porque todos têm segredos, Marcelo. Mas
isso não quer dizer que eu não contei o que
importa.
– Tem certeza?
– Absoluta.
É como se seus olhos pudessem ver através
de mim e sinto uma pequena onda de pânico tomar
conta do meu corpo. Inspiro e expiro,
pausadamente, para que ele não perceba.
– Vou aceitar sua resposta. Por enquanto.
Suspiro aliviada. Não é como se eu
quisesse mentir para ele. Essa nem pode ser
considerada uma mentira, estou apenas protegendo
minha privacidade.
– Por enquanto?
– Ainda quero ir além.
– Do que você está falando?
– Você só me deixa ver a superfície, mas
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ainda irei além do que mostra.


– Você não acha isso um pouco intrusivo?
Ver o que os outros não querem compartilhar?
– Eu não acho que você não queira. Você
apenas não sabe como fazer isso sem se sentir
ameaçada.
– Desde quando você sabe tanto sobre
mim?
– Somos parecidos, eu e você. Você
conhece a expressão “takes one to know one”?
– Conheço, significa algo como: “só os
iguais se reconhecem”.
– É como me sinto em relação a você. Pode
ser que eu esteja completamente enganado e que as
minhas suposições sobre você não sejam
verdadeiras, mas acho que, por baixo de todas essas
suas camadas, eu te conheço. Consigo ver a
verdadeira Alice.
– E como é essa verdadeira Alice?
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– Uma sereia encantadora.


– Uma sereia?
– É, essas ondas vermelhas do seu cabelo
me fazem lembrar de uma sereia.
Fico ainda mais vermelha. Sempre tive
vergonha por chamar atenção com o meu cabelo
ruivo e as minhas sardas. Ruivas não estavam tão
na moda antes de aparecerem nas novelas
populares. E, mesmo depois de superar meu próprio
preconceito, ainda acho esquisito quando dizem
que ser ruiva é sexy. Ou, nesse caso, que pareço
com uma sereia.
– Mas ainda não sei o que ser uma sereia
quer dizer.
– Vai aprender com o tempo. – Ele sorri.
– Você, senhor Marcelo, é muito bom em
fugir do assunto! – comento. – Mas ainda não
esqueci: conte-me algo sobre você.
– Meu nome é Marcelo, eu gosto de tocar
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violão nas horas vagas, sou viciado em romances


policiais e tenho medo de ser abandonado. – Ele
suspira e continua: – Meu pai nos abandonou
quando eu tinha cinco anos, nem me lembro dele
direito. Sempre tive medo de me deixar envolver
demais, de me abrir e acabar me machucando. Com
isso virei um menino tímido, nerd e que preferia ser
invisível a chamar atenção e ser motivo de piada.
Franzo o cenho. Os garotos sempre
pegaram no pé dele e, por mais que eu não quisesse
beijá-lo, nunca o destratei de nenhuma forma. Eu
costumava cumprimentá-lo, várias vezes ficávamos
nos mesmos grupos de trabalho em equipe e ríamos
juntos. A mãe dele fazia um bolo de cenoura com
calda de chocolate fantástico, o qual ele dividia
comigo quando éramos parceiros. Nem sabia que
guardava essas memórias até esse momento. Deixo-
o continuar a falar:
– Já está com pena de mim o suficiente
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para me dar um beijo? – Ele ri e beija a ponta do


meu nariz.
Fico roxa. Eu quero bater nos garotos que
faziam qualquer maldade com ele.
– Não precisa ficar triste, não, Alice. Eu
tive uma ótima mãe, uma infância incrível e amigos
maravilhosos com quem, aliás, converso até hoje.
Fiz terapia, superei os traumas de infância e mudei.
– Mudou como?
– Não quero mais ser invisível – ele diz
olhando-me profundamente. E, por mais brega que
possa soar, sinto como se nossas almas estivessem
conectadas.
– Você não é invisível – sussurro, sem nem
me dar conta de que respondi.
– Para uma pessoa, acho que sou sim.
Tenho medo de essa pessoa ser eu. Tenho
medo de essa pessoa não ser eu. Não estou
preparada para o que Marcelo quer me oferecer. Na
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verdade, acho que nunca estarei. Ele faz eu me


sentir leve, mas ao mesmo tempo não me sinto no
controle. E eu não posso perder o controle. Nunca.
Por isso, respiro fundo e respondo:
– Então, ela não é a pessoa certa. – Quero
deixar claro que só seremos amigos e nada mais.
– Acho que ela é. O momento que não é o
certo... ainda.
– E o medo de ser abandonado? – indago,
forçando-o a perceber que ele não está pensando
com clareza. Não está sendo racional.
– Em algum momento todos nós
precisaremos superar nossos medos. Por que não
começar agora?
Marcelo envolve minha mão na sua.
– Acho que já está na hora de voltarmos –
corto o assunto.
Puxo minha mão com delicadeza e fico em
silêncio durante todo o caminho de volta. Quando
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chegamos ao escritório, tento sorrir da maneira


mais natural possível ao dizer:
– Obrigada pela companhia, Marcelo. Você
é um ótimo amigo.
Friso bem a palavra e sinto um peso em
meu coração, mas ignoro.
– Você também é uma ótima amiga, Alice.
Fico feliz por ter retomado o contato com você!
Marcelo sorri para mim também, como se a
notícia não o abalasse, e tenho vontade de bater
com a minha cabeça na parede. Eu sou uma anta!
Devo ter entendido tudo errado! Quando foi que
virei tão egocêntrica? Provavelmente ele estava
falando de outra pessoa, só se abriu comigo porque
viu que também passei por umas poucas e boas.
Talvez, depois de ele ter me ajudado tanto, queira
apenas que eu retribua sendo um ombro amigo, só
isso.
Definitivamente devo parar de fantasiar as
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entrelinhas...

Capítulo 10

Ao término do expediente, enfim, me


matriculo na aula de zumba na academia ao lado do
edifício em que trabalho. Só espero eliminar esses
quilos que estão me incomodando, afinal, a
propaganda permite a queima de 1.000 calorias por
aula.
– Para quando você quer marcar a aula
experimental? – a recepcionista pergunta.
Decido iniciar somente na noite seguinte,
pois já combinei de encontrar com Malu e Cris
após o trabalho. Sei que prometi fazer aula de yoga

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com o Marcelo hoje, mas fugi antes de lhe dar a


chance de cobrar-me por isso. Não sei por que o
fiz, apenas achei mais prudente. Olho para o
relógio e constato que estou atrasada. Acabo
chegando ao barzinho trinta minutos depois do
combinado.
– Por que você demorou? – Malu questiona
sem saber que, hoje, dei um pequeno passo
importante na minha guerra contra a balança.
Dou de ombros, ela não diz nada. Cris
aparece com nossas bebidas e senta
confortavelmente ao meu lado, esparramando-se
sobre o sofá.
Malu estreita o olhar como se tentasse me
decifrar. Acho que era mais fácil fazer isso quando
éramos novinhas e eu não tinha mudado tanto. O
meu relacionamento com o Gustavo me deixou
mais fria, mais centrada – se é que isso era
possível. Com o tempo, aprendi a esconder meus
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sentimentos e minhas verdadeiras vontades. Por


mais que sejamos amigas há anos, às vezes é difícil
enxergar além das máscaras que estamos
determinadas a usar. Eu, de “impenetrável”. Ela, de
“não se importa com o que os outros pensam”. Mas
nenhuma das duas realmente acredita nisso de
verdade.
– O que está acontecendo nessa briguinha
de olhares entre vocês? – pergunta Cris quando, de
fato, está mais interessado na própria bebida.
– Nada demais – respondo por nós duas. –
Só não quero falar sobre trabalho nem homens,
nem aulas de yoga.
– Resumindo, você não quer falar sobre
nada! – reclama ela, indignada.
– O que aulas de yoga têm a ver com isso?
– Cris nos observa confuso.
– Marcelo me convidou para fazer uma
aula com ele.
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– E por que não foi? – Mais uma vez, Malu


indigna-se. – Ainda está pensando no Gustavo?
Não vai me dizer que quer voltar com ele?
– Você não precisa ser tão estúpida, Malu...
– argumenta Cris.
– Isso, você sempre fica do lado dela! Por
isso que a Alice nunca se defende e sempre aceita
tudo!
Respiro fundo para segurar a revolta. De
onde Malu tirou tanta raiva? Não sei o que houve
com ela, mas minha amiga geralmente não é tão
esquentada assim. Algo aconteceu, mas,
conhecendo-a como conheço, sei que ainda não
está pronta para compartilhar. Contudo isso não me
impede de ficar chateada com seus ataques contra
mim.
– Em primeiro lugar, eu não falei com o
Gustavo e nós não vamos voltar. Isso não seria
possível nem se eu quisesse, já que ele namora
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alguém. E não, eu não vou ser a “outra”. Eu ainda


tenho amor próprio! Em segundo lugar, eu não
devo satisfações da minha vida nem para você, nem
para ninguém, Malu. E não entendo o motivo de
tanta hostilidade com seus melhores amigos. Sei
que algo deve estar acontecendo, mas você não
quer nos contar. E tudo bem, porque eu não obrigo
ninguém a falar sobre o que não quer.
– Pois talvez devesse! – retruca ela.
– Você quer que eu faça isso?
– Não.
– Deixa de ser criança, Malu! – intercede
Cris. – Eu gosto das duas igualmente. E, aliás, se
você não quer falar o motivo de estar se sentindo
um lixo, tudo bem.
– Como você sabe que estou me sentindo
um lixo?
– Você está usando batom cor nude hoje –
comento.
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Malu sempre gosta de utilizar batons iguais


ao seu humor. O nude só pode significar duas
coisas: ou ela está se sentindo elegante, ou um lixo
– com vontade de sumir. Pela sua expressão, fica
evidente qual destas opções é a mais provável.
– Ok! Ok! – diz levantando as mãos em
sinal de rendição. – Eu acho que estou interessada
em alguém.
Cris e eu ficamos pasmos. Malu nunca se
interessou por alguém. Se já foi apaixonada
também não ficamos sabendo, pois ela não se
importa com esse tipo de coisa. Malu não se apega
a ninguém. O que teria mudado agora?
– Qual o problema? – questiono.
– Logo você está me perguntando isso,
Alice? Não é o suficiente o que aconteceu com
você?
Sua réplica é quase como levar um soco na
boca do estômago. Sei que não sou exemplo para
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ninguém, ainda mais com o fiasco que está sendo


meu relacionamento com Lucas. Ou melhor, só de
eu chamar o que a gente tem – ou não tem – de
“relacionamento” já me torna motivo de piada. Não
estou procurando por um namorado. Não depois de
tudo. Mas, mesmo assim, não preciso que ninguém
esfregue isso na minha cara.
– Malu, você está uma chata! – avisa Cris.
– E muito ranzinza. Acho melhor calar a boca antes
que fale algo do qual se arrependerá depois.
– Ok, senhor diplomata. – bufa. –
Desculpa, amiga. Realmente estou resmungona
hoje e uma péssima companhia.
– E você, Cris? – mudo de assunto. –
Alguma novidade do garçom bonitinho?
Cris se remexe desconfortável na cadeira.
Será que todo mundo está sensível hoje, pelo amor
de Deus?
– Talvez eu o chame para sair.
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– E ‘tá esperando o quê, criatura? –


questiona Malu com sua delicadeza de sempre.
– Estou dependendo de algumas situações...
Franzo o cenho intrigada.
– Cris, sei que não é fácil com a sua
família, mas... você sabe que estamos aqui para te
apoiar, né?
– Eu sei. Acho que estou cansado de me
esconder, de morar lá e não poder ser quem eu sou,
entende? É sufocante.
– O que você pretende fazer sobre isso,
bonitão? – Malu nunca gosta de conversar
seriamente e suas brincadeiras servem para
amenizar o clima.
– Acho que vou morar sozinho.
– Sério? – questiono. Nunca imaginei Cris
saindo de sua zona de conforto, saindo do armário,
saindo de lugar algum...
– Nunca falei mais sério em toda a minha
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vida. Mas preciso de alguém para dividir o aluguel


comigo.
– Nem olha para mim! Estou perfeitamente
bem morando sozinha – afirma Malu.
– Eu não estava pensando em você, sua
cretina! – Ele brinca. – Um colega da faculdade de
Engenharia ‘tá querendo procurar um apê perto do
trabalho e, coincidentemente, fica perto da
faculdade e do meu estágio também...
– Acho que seria ótimo! – digo.
– É só um colega?
– Ele é hétero, Malu.
– Só estou perguntando. Esses engenheiros
sempre dão uma de machões, mas nunca se sabe...
Cris bate com a mão na testa em desespero.
Antes que eu possa perguntar qualquer outra coisa
sobre os novos planos deles, recebo uma mensagem
do meu irmão: “Você precisa vir pra casa agora!
Não vai acreditar no que acabou acontecer...”.
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Capítulo 11

Fico pensando no que levou meu irmão a


me enviar uma mensagem dessa. Começo a
hiperventilar. Não consigo respirar. Sim, eu esqueci
como se respira normalmente. O simples fato de
pensar em recuperar a calma inspirando e
expirando lentamente já me dá calafrios. Sinto-me
tonta, o ar parece insuficiente em meu fôlego
entrecortado.

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Respirar se tornou um martírio porque não


consigo me tranquilizar. É como se eu não fosse
digna de me recuperar. Não é ridículo pensar dessa
maneira? Também acho, mas aparentemente meu
corpo não.
Meu coração acelera enquanto me despeço
dos meus amigos e pego um táxi para casa. Seus
olhares são de preocupação, mas digo que deve ser
alguma bobagem do meu irmão, por mais que
milhões de situações passem pela minha cabeça.
Tento me consolar e pensar que, se fosse algo
muito sério, meu irmão teria me ligado ao invés de
me enviar uma mensagem de texto. Ou não?
Ao chegar a casa, meus pais estão calmos e
sentados no sofá assistindo ao jornal. Não encontro
meu irmão de imediato, mas logo ele aparece na
porta da cozinha com o cenho franzido, está
bufando.
– O que aconteceu, Mateus? – pergunto
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sem sequer cumprimentá-lo primeiro. – Você quase


me matou do coração!
– Desculpa, mana... Nem pensei nisso.
– Percebi – resmungo incomodada. Ainda
sinto a taquicardia e minhas mãos suam.
– Não acredito que você foi chamá-la,
filho! Nós poderíamos muito bem ter conversado
com sua irmã depois – diz minha mãe levantando-
se do sofá sob o olhar atento do meu pai.
– Conversar sobre o quê? – questiono ainda
mais intrigada.
– É, mãe. Conversar sobre o quê? – repete
Mateus. – Não vejo motivos para conversar, afinal,
já está tudo decidido, não é mesmo?
– O que está decidido? Vocês não estão
fazendo sentido algum e estão me deixando
ansiosa... – comento.
Normalmente não utilizo minha “condição”
para fazer as pessoas me ouvirem, mas, nesse
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momento, realmente me sinto prestes a entrar em


uma crise. Meu emocional está muito abalado.

– Mateus, pare de ser tão dramático! Não


está vendo o que fez com a sua irmã? Você sabe
que ela ainda não está muito bem...
– Deixa o menino em paz, Bárbara! –
exclama meu pai. – Sabíamos que não ia ser fácil...
– Não estou falando sobre isso, José. Estou
dizendo que ele não precisava afetar o tratamento
da Alice.
Fico encabulada. Não quero conversar
sobre o meu “tratamento”. Não quero discutir sobre
o que me afeta ou não, ainda mais com meu pai em
casa. Não temos muita intimidade, principalmente
depois que eles se separaram. Ou seja, nunca fomos
muito amigos e sua presença cada vez mais
constante me deixa incomodada... É como se
existisse uma barreira entre nós.
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– Ok, vamos parar por aqui – digo já


suspeitando sobre o conteúdo dessa conversa.
Aperto as mãos uma contra a outra na tentativa de
conter minhas emoções. – Qual é a grande notícia?
Minha mãe suspira, exasperada e
incomodada.
– Muito bem, não foi dessa maneira que
planejei lidar com a situação, mas... – diz ela,
encarando-me com um olhar profundo. – Eu e seu
pai decidimos morar juntos de novo.
Fico sem fala por um segundo, embora já
suspeitasse sobre isso. Meu irmão me analisa com
uma expressão de “eu não disse que ia dar merda?”.
E estou realmente sem saber o que fazer. A última
coisa de que preciso agora são de mais mudanças
na minha vida, mas não posso ser egoísta a ponto
de não deixar meus pais tomarem as próprias
decisões. Ambos já são adultos. Infelizmente, eu
ainda vivo nessa casa e não será nem um pouco
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fácil reviver momentos da minha infância e


adolescência com as brigas, os gritos e a
inconstância deles.
– Aqui? – consigo, enfim, formular a
pergunta.
– Onde mais seria? – rebate meu pai,
gracejando. Só mesmo ele para não perceber a
seriedade da questão.
– Concordo com Mateus. Acho que esse
assunto deveria ter sido discutido.
– Ele não mora mais aqui! – diz papai.
– Nem você! – exclamo em conjunto com
meu irmão.
– Agora eu moro.
– Pois eu não acho nem um pouco justo.
Vocês parecem duas crianças que resolveram
brincar de casinha de novo. Ficam sempre nesse vai
e volta sem pensar no que isso pode causar a nós,
seus filhos! – Mateus responde indignado.
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– Não seja egoísta – pede minha mãe com


um pouco de lágrimas nos olhos. – Nós temos o
direito de ser felizes.
– Não estou privando ninguém de buscar a
felicidade, mas será que você lembra como foi para
nós ao longo de todos esses anos, mãe? Quem era
seu ombro amigo em todas as vezes que não deu
certo?
Eu não sabia disso. Não sabia que meu
irmão sentia e pensava todas essas coisas. Não
consigo evitar de pensar o motivo de eu não
perceber esses pequenos detalhes e toda essa
dinâmica familiar que ocorre alheia a mim. Por que
não sou capaz de entender o que está bem diante
dos meus olhos? Será que Marcelo tem razão e eu
não mostro mais do que a minha superfície? E,
mais do que isso, será que não consigo ver além da
superfície das pessoas? Por que não consigo
aprofundar minhas relações, nem mesmo com meu
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irmão, a quem sempre considerei um amigo?


Mordo os lábios, mas é inevitável. A onda
de emoções me inunda, me afoga, passa por cima
de mim. Sinto-me à deriva no oceano de
sentimentos que me circundam. Nunca tive essas
preocupações, nunca precisei. Por que parece que,
de repente, todos estão expressando tantos
sentimentos, expondo seus pensamentos e
segredos? Por que todos estão com tanta pressa
para ajustar suas vidas, encontrar a felicidade,
enquanto persisto em um passo lento?
Eu me sinto perdida, sem identidade,
quando noto que há poucas horas minha única
preocupação era a matrícula na academia. Por que
ninguém resolve apenas um problema por vez ou
apenas evita pensar no que lhe faz mal, como eu?
Sei que talvez não seja a melhor das opções, mas, a
cada vez que encaro algo ruim, não consigo evitar
de pensar em todo o conjunto, em cada decisão
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errada que tomei, em cada traição, em cada fora,


em cada dia de cabelo ruim, em cada nota baixa,
em cada estado depressivo, em cada ansiolítico que
preciso tomar... Tudo de pior que tenho em mim
vem à tona.
O pânico traz o meu pior. De repente, o
apartamento é pequeno demais, as pessoas são
intimidantes demais, minhas roupas são apertadas
demais, sinto-me sufocada. Quero gritar, correr,
sumir. Ao mesmo tempo, quero apenas deitar em
minha cama e remover toda a minha negatividade,
pois é isso que eu faço de melhor. Reclamo, sou
dramática, tenho pena de mim mesma. Mas nunca,
em hipótese alguma, consigo resolver meus
problemas e impedir o reinício desse ciclo de
autoflagelação.
Será que algum dia conseguirei ser normal
de novo? Será que algum dia fui normal?
Meu pai e minha mãe me observam com
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olhos arregalados e meu irmão toca em meu ombro,


preocupado. Quando dou por mim, estou sentada
no chão da sala me balançando para frente e para
trás em um estado quase catatônico. Estou surtada
outra vez.
– Acho que já está decidido, então –
consigo dizer enquanto me levanto. – Vou para o
meu quarto.
– Filha, nós precisamos conversar sobre
isso, seu tratamento...
Ergo a mão trêmula para interrompê-la.
Meu coração volta ao ritmo normal, mas deixa no
corpo as marcas de uma descarga intensa de
cortisol. Estou fraca, porém, mais do que isso,
também estou farta.
– Não, não precisamos, mãe! – Minha voz
soa firme, apesar de a minha expressão
provavelmente demonstrar meu cansaço. – Tudo
bem o pai voltar a morar aqui, o apartamento é de
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vocês e, além do mais, não é como se eu fosse ficar


aqui para sempre, não é mesmo? Você tem todo o
direito de ser feliz e meus “surtos” não devem
impedir isso. E você realmente não mora mais aqui,
Mateus. Sei como você se sente, é estranho, mas
todos já tivemos que nos adaptar a tantas
situações... Faz parte da vida.
Mateus engole em seco, envergonhado.
– Tudo o que podemos esperar é que sejam
felizes e saibam tomar as decisões de vocês –
finalizo.
Não sei como consegui proferir alguma
palavra e parece que não sou eu quem falou, e sim
um alienígena devido à maneira como me olham.
Mas o que mais posso dizer? O casamento não foi
meu, o divórcio não foi meu. Os problemas
parecem grandes demais e me sinto tão pequena,
tão inútil, tão vulnerável. Odeio essa sensação.
Odeio sentir. Odeio quando não controlo meu
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corpo, meus pensamentos e, principalmente,


minhas emoções. Tudo o que quero depois de um
banho quente é esquecer que esse pânico vive
dentro de mim, como um monstro embaixo da
minha cama à espera do anoitecer para atormentar
meus sonhos.

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Capítulo 12

Após o banho, viro e me reviro na cama


tentando achar uma posição confortável e com a
qual eu me sinta segura. Não consigo, é impossível.
Todos os meus músculos estão tensos, minha
respiração é entrecortada e mordo o interior da
bochecha a fim de conter meu medo ingrato.
Desisto do sono e pego meu celular. Vejo

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que há uma mensagem de Marcelo não lida no


WhatsApp: “Fugiu da aula hoje?”.
Choramingo envergonhada. Talvez tivesse
sido melhor ir à aula de yoga ao invés de presenciar
essa reconciliação infantil dos meus pais. Respondo
sem muito hesitar: “Desculpe, tive um
compromisso. Acabei me esquecendo de avisar”.
Para a minha surpresa, Marcelo está on-line
e digita: “Não tem problema, só fiquei
preocupado... Achei que tinha acontecido alguma
coisa”.
Pode ser porque estou vulnerável, porque
sinto medo ou por ambas as opções, mas acabo por
narrar a minha noite através de mensagens
instantâneas para o Marcelo. “E essa foi a
conclusão da minha noite: um desastre”, concluo.
Deixo de fora a parte da minha crise de
pânico e o fato de que meu corpo ainda está frágil
enquanto digito. Ele não precisa saber disso.
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Ninguém precisa, aliás.


“Não foi tão ruim assim!”, ele responde.
“Seus pais já são grandinhos para tomar as próprias
decisões...”
“Você enfrenta esse tipo de problema em
sua família?”
“Não exatamente, mas toda família enfrenta
dificuldades. Depois que meu pai nos abandonou,
minha mãe foi quem educou a mim e à minha irmã.
Meu pai faleceu anos mais tarde, então não posso
comparar nada com o que você descreveu...”
“Desculpe, eu não sabia.”
“Tudo bem, eu era muito novo...
Infelizmente quase não me lembro dele devido ao
abandono. O que quero dizer é que poderia ser
muito pior, sabe? Além do mais, você também já
está grandinha para se preocupar com tudo isso.”
“O que quer dizer?”
“Que você deveria se preocupar consigo
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mesma.”
“Isso não é ser egoísta?”
“Isso é ser inteligente. Você tem o direito
de se preocupar consigo mesma de vez em quando
e seu irmão também deveria fazer o mesmo”.
Talvez Marcelo tenha razão. Mateus e eu
podemos estar exagerando em nossas reações.
Aliás, talvez nem seja certo reagirmos assim,
afinal, os pais aqui são eles. Mas como posso não
falar nada quando vivemos um inferno entre as
brigas dos dois? Como eles podem achar que dessa
vez será diferente?
Marcelo interpreta meu silêncio de maneira
equivocada.
“Eu não quis ser intrometido. Sei que a
família não é minha e, com certeza, vocês têm seus
motivos para se sentirem chateados... Acabo agindo
igual à minha mãe algumas vezes, como um
psicólogo.”
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“Não precisa se desculpar, só estava


pensando sobre o que você disse.”
“Faz algum sentido?”
“Talvez.”
Ele coloca um emoticon sorrindo e retribuo.
“É mais fácil falar com as pessoas por aqui
do que ao vivo”, escrevo sem pensar.
“Por que você acha isso?”
“Consigo dizer o que realmente penso.
Talvez, se eu tivesse usado o WhatsApp para falar
com meu ex toda vez que me senti diminuída, teria
terminado mais cedo e me poupado de mais
sofrimento.”
“Teria poupado a você o crescimento
também. Não devemos nos arrepender do que
fizemos, e sim tirar lições de tudo. Sei que não foi
bacana, eu a entendo completamente. Mas o pior é
ficar se lamentando por algo que não podemos
mudar.”
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Quero dizer que concordo com ele, mas


não consigo. Porque não serei sincera. Eu me sinto
culpada por tudo o que passei, por ter sido tão
idiota, tão trouxa... Devia ter percebido algum
sinal, não ter sido tão submissa, ter tido mais voz e
batido o pé. Quando me lembro de diversas
situações pelas quais passei com o Gustavo, tenho
vontade de sumir. Como pude deixá-lo agir como
um babaca? Como pude deixá-lo me tratar como
lixo? Eu sou digna de muito mais e, racionalmente,
sei disso. Mas, então, por que o deixei me tratar
como se eu não fosse muita coisa? Não me dei
valor.
Todas as vezes que encho a boca para falar
da Malu, do jeito distante que ela encara os
relacionamentos, de como ela age sedutora e
indiferente perto dos homens, de como ela é
“piriguete” e desbocada... fazem-me sentir
hipócrita, porque ela está certa. Malu não tenta se
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enquadrar em nenhum padrão e faz o que tem


vontade, quando tem vontade. Ela não espera por
ninguém, mas também não leva desaforo para casa.
Minha amiga pode ser uma rocha – que agora está
começando a se abalar –, mas pelo menos sabe se
cuidar sozinha. Já eu, em comparação, preciso de
remédios, psiquiatras, psicólogos e o cuidado
constante da minha família.
Supostamente era para eu ser uma adulta,
porém ainda me vejo como uma menina. Não me
sinto mulher, não me sinto empoderada, não me
sinto desejada.
Com esse misto de emoções dentro de
mim, saio do WhatsApp e ligo para o Lucas. Já é
quase meia-noite, mas ele atende ao segundo toque.
– Oi, ruiva.
– Quer fazer alguma coisa? – pergunto sem
sequer o cumprimentar. Talvez o jeito da Malu
funcione, pois o meu até agora não deu em nada.
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– Passo para pegar você em quinze


minutos.
Não me sinto feliz nem triste. É o
ansiolítico fazendo efeito, tenho certeza. Sinto-me
adormecida, entorpecida ou qualquer coisa do
gênero. E o que mais quero é sentir alguma coisa
que não seja medo, dor, vergonha ou culpa. Estou
de saco cheio de emoções negativas dentro de mim,
sou um poço de preocupações e negativismo. Não
sei quando me transformei nessa pessoa
amargurada e ranzinza, mas nem eu me aguento. É
pedir demais um pouco de adrenalina e emoção?
Sei que, com Lucas, é exatamente isso o que vou
conseguir.
Quando entro em seu carro, mal nos
olhamos e ele me agarra com força. Suas mãos
ásperas seguram meus cabelos e seus lábios grudam
nos meus de maneira apressada. Não me importo.
Durante o beijo, tento não pensar em mais nada.
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Entretanto a conversa com Marcelo não me sai da


cabeça. Por que ele não me chamou para fazer
alguma coisa quando viu que eu não estava bem?
“Pare”, censuro a mim mesma, “não espere que os
outros façam o que você deseja”.
Espera aí! Eu desejava isso? Aliás, ainda
desejo enquanto estou com o Lucas dentro de um
carro apertado dando uns amassos?
Puxo-o pela camisa e o beijo no pescoço.
Ele sorri daquele jeito safado e me conduz para o
seu colo empurrando o banco do motorista para
trás.
Ignoro meus pensamentos, porque minha
cabeça só está me pregando peças hoje e não quero
ter outra crise existencial ou, pior, de pânico. Não
quero pensar no quanto fui indelicada em não
perguntar sobre o pai de Marcelo, não quero pensar
sobre não ser correto usar o Lucas como um affair
para esquecer os problemas, ou melhor, para evitar
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resolvê-los. Eu só penso, mas não tomo nenhuma


atitude. E, quando ajo, o faço sem muito pensar.
Falo dos meus pais, mas não sou muito
diferente. Sou um reflexo deles. Quando é que eu
vou crescer?

Capítulo 13

As semanas passam e me jogo cada vez


mais no trabalho. Ficar em casa não é mais tão

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divertido quanto antes. Não quando seus pais


parecem um casal de adolescentes namorando, ou
brigando. Os velhos hábitos já voltaram e pequenas
discussões recomeçaram, mas prefiro não pensar ou
opinar sobre o assunto.
Foco em realizar as previsões
orçamentárias da Lopes & Associados, o fluxo de
caixa e também a implementação do novo software.
Todos estão trabalhando melhor, pois cada
departamento agora possui seu centro de custos e
sabe seu orçamento. As minhas colegas até
comentaram que estão otimizando os recursos e
economizando mais dinheiro do que antes. Fico
feliz. Ao menos alguma coisa eu faço direito.
Estou aprontando todos os dados para a
reunião da Diretoria quando o doutor Lopes entra
na sala.
– Bom dia! – Ele sorri e vira-se para mim.
– Alice, gostaria de falar com você em minha sala.
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Respiro fundo, nervosa. Talvez meu


trabalho não esteja indo tão bem quanto tenho
pensado. E se Cláudia e Júlia estiverem enganadas
sobre o escritório economizar? Sei que analiso as
contas todo santo dia, durante longos minutos, e
faço mil e uma previsões pensando em cada
possibilidade e manobra financeira mirabolante, no
entanto, de nada adiantaria se a minha concentração
não estiver realmente adequada depois das crises de
pânico. Nunca percebi, mas tudo pode acontecer...
Caminho a passos pequenos enquanto o
doutor Lopes anda a passos largos até sua sala. Ele
faz um meneio de cabeça para eu me sentar à sua
frente. Engulo com dificuldade e sinto falta de ar.
Suplico a mim mesma para não surtar diante do
meu chefe.
Tento organizar os papéis no meu colo para
me acalmar, mas acabo por derrubá-los no chão.
Recolho-os rapidamente, já com a dignidade ferida.
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Se vou ser demitida, poderia pelo menos sair com


classe. Minha falta de inteligência emocional,
contudo, me impede disso.
Fico pensando nos possíveis cenários e
planejo sumir rapidinho, assim que o doutor Lopes
terminar o discurso formal de demissão. Afinal, não
sou nem de longe a pessoa mais corajosa do
mundo. Quero, também, evitar ao máximo me
debulhar em lágrimas.
– Convoquei uma reunião com os outros
sócios, que você ainda não conhece, para deixá-los
a par do progresso que tem feito por aqui. – Então
discorre sobre a perda de alguns profissionais
devido aos recursos financeiros escassos por causa
da crise.
O antigo Gerente Financeiro não era lá
muito competente, segundo ele, mas era com quem
contavam para o momento. O sujeito, por fim,
acabou por aceitar a oportunidade de um conhecido
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em sua cidade natal e não pôde recusar voltar para


casa, para perto de sua família.
– Ele recebeu uma proposta que não pude
cobrir – doutor Lopes explicou, fitando-me com
seriedade. – Não tem como competir com a família,
não é mesmo? – sorri.
Aceno com a cabeça, sem saber mais o que
dizer. Ainda estou incerta sobre onde esta conversa
chegará, então prefiro não abrir a boca.
– O caso é que ele também não era muito
honesto. Não gosto de falar mal de funcionários ou
ex-funcionários, mas sei a fama que ele tinha por
aqui. Eu sempre fui honesto com todos na minha
forma de trabalhar e aprecio que você também seja
assim, Alice.
Mais uma vez concordo, sem dar um pio.
– Nossa carteira de clientes anda enxuta e o
faturamento recorrente cobre nossos custos fixos
por um fio, como você bem sabe. Aprecio o que
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você tem feito para otimizar nossos recursos e


parece que agora, depois de longos meses,
conseguimos respirar um pouco. A crise não está
fácil para ninguém e, com muito esforço, estamos
sobrevivendo até aqui. Mas o caso é que ainda não
chegamos lá! Alguns clientes também estão
passando por dificuldades financeiras e não
renovaram os contratos. Estão indecisos.
Precisamos batalhar por novos contratos, contudo,
não posso fazer novas admissões para o setor
comercial nem aumentar o salário dos advogados
atuais. Estamos em um momento crucial e preciso
da sua ajuda.
Percebo que não posso mais ficar calada,
pois ele espera uma resposta da minha parte. Ainda
não entendi com clareza suas palavras e me sinto
insegura, mas digo:
– Estou à disposição para ajudar, doutor
Lopes.
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– Eu sei que você está, Alice, e fico muito


contente com o seu esforço. Vou ser mais claro: de
agora em diante, preciso de pessoas que realmente
sejam como você, dispostas a vestir a camisa da
empresa e lutar pela nossa sobrevivência.
Precisamos inovar e progredir, se queremos passar
por essa crise com a cabeça erguida. Precisamos
nos manter até que os clientes renovem os contratos
e nosso faturamento melhore. Não vou mentir,
estou preocupado.
– Eu entendo, doutor Lopes, porém
acredito que vamos superar.
– Sim, é o que todos me dizem. Mas a
verdade é que as empresas estão reduzindo custos e
muitas começaram pelos advogados. Preferem
contratar pontualmente a pagar um valor mensal, o
que me quebra as pernas, Alice. Estou pensando em
outras possibilidades, mas talvez até mesmo nós
precisemos reduzir o quadro. Isso levará todos ao
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acúmulo de funções, principalmente agora que o


meu Diretor Comercial pediu demissão.
Fico chocada. O Alberto trabalha no
escritório há mais de dez anos.
– Foi levado pela concorrência – explica
ele. – Não pude cobrir a oferta. E, dessa vez, foi por
questão de valores mesmo. Não sei como a Ramos
& Lemos mantém tanto dinheiro em caixa.
– Talvez porque fizeram um melhor
provisionamento para emergências... – sussurro.
Eu sabia que o antigo Diretor Financeiro
não pensava nessas necessidades, por mais óbvias
que fossem. Doutor Lopes fitou-me profundamente,
como se me analisasse dos pés à cabeça, e então
disse:
– Você sabe que não sou de me prolongar,
e já fiz isso demais por hoje. Alice, quero promovê-
la a Diretora Financeira e Comercial. Sei que a área
comercial não é sua especialidade, mas realmente
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estou precisando de ajuda. Infelizmente, não vou


poder pagar a você o salário que merece por esse
acúmulo de funções. Ao menos não agora, mas
espero que, quando a situação melhorar, nós
possamos rever o acordo salarial. Por enquanto,
pediria para mantermos o salário de Diretora
Financeira. O que você acha?
Sei que é uma proposta indecente.
Acúmulo de funções, mais horas extras, maior
responsabilidade e um salário que não condiz com
esse conjunto. Mas quero esse emprego, preciso
dele e, sobretudo, devo manter minha mente
ocupada. Por isso, não hesito em responder:
– Sim, doutor Lopes. Eu entendo sua
situação e agradeço a confiança.
– Ótimo. Tinha esperança de que você
concordaria. Vou falar com o RH para preparar a
nova documentação.
Despeço-me dele contando cada minuto
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para chegar a casa e partilhar as boas novas com


meu irmão, que ainda permanece mais conosco do
que no seu próprio apartamento. Quando
finalmente retorno, meus pais não estão, mas
encontro Mateus como previsto.
– O que você está fazendo aqui? – pergunto
antes de contar as novidades.
– Estava muito tarde para eu dirigir e...
Rolo os olhos, indignada. Essa desculpa
não vai colar mais uma vez.
– Para de me enrolar! Não são nem oito
horas da noite.
– Eu e a Vanessa estamos morando juntos.
– O quê? Mas vocês não completaram nem
seis meses de namoro!
– Ela está grávida.

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Capítulo 14

Arregalo os olhos, sem conseguir me


conter. Abro a boca, mas me faltam palavras. Eu
esperava qualquer desculpa ou notícia, menos essa.
Meu irmão vai ser pai? Ele não tem idade nem
mentalidade para a paternidade! Ele nem mesmo
gosta da Vanessa, sei que não gosta. Pior, ele não a
ama.
Mateus não pode carregar essa
responsabilidade agora, mal terminou a faculdade e
começou a seguir seus sonhos. O que nossos pais
irão dizer? Vão ficar loucos da vida.
Respiro. Isso é minha ansiedade falando.
Não importa o que nossos pais vão pensar. Ao

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menos, não agora. O que importa é como meu


irmão está se sentindo e como posso ajudá-lo.
– Como isso foi acontecer, Mateus? –
questiono.
– Acho que você não precisa de uma aula
de educação sexual agora, né?
Bufo. Só ele para fazer piadinhas sem graça
nesse momento.
– Achei que você se cuidasse melhor...
– Aí é que está! Eu sempre me cuido, mas a
camisinha estourou e notei logo depois de usá-la.
Vanessa tomou a pílula do dia seguinte, ou melhor,
disse que tomou...
– Você acha que ela fez isso de propósito?
– Olha, não quero pensar desse jeito, mas
conheço a Vanessa. Ela não é santa.
– O que quer dizer com isso?
– Ela sabia que nosso relacionamento não
estava indo bem. Na verdade, eu pensava em
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terminar...
Eu sabia que todas essas noites aqui em
casa tinham uma explicação.
– Ela não sai de lá! ‘Tá pior que carrapato.
– Mateus, ela provavelmente precisa de
apoio agora...
Ele fica em silêncio e encara os próprios
sapatos.
– Você, sinceramente, acha que ela tentaria
lhe dar o golpe da barriga? Por que, se você acha
isso, não dá para continuar o namoro. Não assim,
pelo menos.
– O que você sugere?
– Que vocês dois conversem.
– Você acha que ela me diria se fez isso?
– Ela pode não dizer com todas as letras,
mas você será capaz de perceber alguma coisa.
Vocês estão juntos há meio ano, será que não a
conhece o suficiente para isso?
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– Honestamente, não. Nunca fomos muito


de conversar.
– Prefiro que você não se estenda nesse
tema...
Sentamos lado a lado, ambos com o queixo
entre as mãos. O que vamos fazer? Sei que o
problema não é realmente meu, mas Mateus é meu
irmão e não vou deixá-lo sozinho nessa.
– Eu não sei se quero assumir essa criança.
– Como você pode falar isso, Mateus?
– Olhe os nossos pais! Não teria sido
melhor se eles não se casassem? Agora temos dois
adolescentes em casa, e está mais do que óbvio que
a relação não dará certo de novo!
– E o que isso tem a ver com você assumir
a criança?
– Eu não quero casar com a Vanessa.
Sorrio, entendendo onde meu irmão quer
chegar. Ele quer que a criança tenha uma família, e
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não um lar desfeito. Infelizmente nem sempre as


coisas acontecem como planejamos.
– Mateus, você não precisa casar com a
Vanessa para ser um pai presente. Não precisa
passar pelo que nossos pais passaram. Mas você
deve saber que nem todo relacionamento é assim.

– Você também não é um exemplo, Ali.


– Eu escolhi errado. O Gustavo era um
canalha, eu apenas não queria ver. Isso não quer
dizer que não encontrarei alguém.
– Se refere ao Lucas? – A pergunta me fez
sentir certo arrependimento por ter lhe contado
sobre minha recente vida descolada com meu novo
affair.
– O Lucas não é o cara certo, mas desta vez
sei disso. Só estou me divertindo.
– Sabe mesmo?
Prefiro manter o silêncio. Na realidade, não
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sei o que dizer. Meu relacionamento –


provavelmente nem devo chamar assim – com o
Lucas é confuso. Algumas vezes só quero agarrar o
corpo dele e não pensar em nada. Outras vezes,
anseio por algo mais. Algo que ele não pode – e
não quer – me dar. Por mais que pareça que estou
me divertindo, em alguns momentos sinto que sigo
o mesmo caminho de novo. Escolho caras que são
errados para mim em todos os sentidos porque não
quero me envolver, caso contrário posso perder o
controle. Não quero passar pelo que minha mãe
vive com meu pai. De tanto evitar esse cenário,
acabo passando por mais drama que os dois juntos.
Por que os pais precisam influenciar tanto a
vida dos filhos? O casamento confuso, o lar
desfeito, as brigas e agora esse romance
adolescente deles só me confunde mais, me deixa
insegura. E não sou só eu. O Mateus também se
sente assim, mesmo sem expressar com frequência.
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Só que, ao mesmo tempo, somos adultos e meus


pais também. Não é justo que a maneira como nos
sentimos interfira no relacionamento dos dois. Ou
é? Talvez fosse quando éramos crianças, mas acho
que agora não mais.
– Por que a Vanessa está morando com
você?
– Os pais dela a expulsaram de casa. A
família dela é bastante tradicional e acha que sexo
deve acontecer só depois do casamento. O pai dela
sempre foi rígido e chegou a chamá-la de
vagabunda...
– Isso não é um problema seu, Mateus. Ela
não tem outros familiares?
– Ninguém quer lhe dar abrigo e ir contra o
patriarca da família. Só uma avó se dispôs a isso,
mas ela mora em outra cidade. E, assim, como eu
veria a criança?
– Então, você quer a criança.
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– Óbvio que quero, mas não desse jeito...


‘Tá tudo tão confuso.
No seu limite, Mateus começa a chorar. Ele
me abraça forte e deita a cabeça no meu colo. Não
sei o que dizer para consolá-lo. Isso realmente é um
problema de gente grande e não há como consertar.
Não existe jeito certo. A única coisa da qual temos
certeza é que essa criança precisa do pai e da mãe,
seja como for.
– Nós vamos dar um jeito, mano. O que
importa é que essa criança se sinta desejada e
receba todo o amor possível. Vamos resolver sua
história com a Vanessa, encontraremos um lugar
para ela... Vocês não podem morar juntos por falta
de escolha, isso não é saudável. Nem para ela, nem
para você, nem para ninguém.
– Mas como a gente vai fazer isso?
– A gente não, Mateus. Você precisa
conversar com ela. A Vanessa não pode
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simplesmente se mudar para a sua casa sem o seu


consentimento.
– Eu meio que dei meu consentimento.
– Olha, eu posso não a conhecer muito
bem, mas, pelo que você fala, ela sabe ser
manipuladora e conseguir o que quer. Você só foi
bobo e deixou! Por isso, desfaça o trato.
– Não posso simplesmente expulsá-la no
meio da noite.
– Você não vai para lá hoje. Pode dormir
aqui, afinal, a casa também é sua e não sou eu
quem deve lhe dar permissão. Amanhã vocês vão
conversar e ver se, até o bebê nascer, não seria
melhor que ela ficasse com a avó. Se ela não tem
dinheiro para bancar um aluguel, você pode ajudá-
la com as despesas.
– Eu mal tenho para cobrir as minhas...
– Você precisará pensar nisso agora,
Mateus. Arranjar um trabalho extra ou alguma
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coisa, porque filhos custam dinheiro...


Antes, porém, o ideal é você conversar com nossos
pais. Quem sabe eles não lhe dão uma força nesse
início?
Já nem sei do que estou falando. Essa
situação está mais enrolada do que nó cego. Não há
fórmula mágica ou receita. Não sei como ajudá-lo
ou se estou falando asneiras, mas continuo a dar
opções até que Mateus adormeça em meu colo,
cedendo ao peso das lágrimas.
Quando o vejo cair em sono profundo,
levanto delicadamente e trago um cobertor para
Mateus ficar no sofá. Deixo um bilhete em cima da
mesa para meus pais não o acordarem, pois ele teve
uma noite difícil sobre a qual depois explicaremos,
mas que não precisam se preocupar.
Vou para meu quarto e o sono não chega.
Não consegui contar sobre a promoção para o meu
irmão nem estou em clima de celebrar. Entro no
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Facebook e fico navegando pelas páginas que


gosto, sem muito destino.
Quando já se passou quase uma hora,
Marcelo vem falar comigo: “Um passarinho me
contou que você foi promovida. Parabéns! Pensei
em ligar, mas achei que seria muito intrometido”.
Sorrio ao digitar de volta: “Imagina! Podia
ligar! Muito obrigada pela lembrança”.
“E o que fez para comemorar?” – ele
pergunta.
“Sinceramente, nem tive tempo de contar a
alguém. Houve uns imprevistos familiares...”
“Está tudo bem?”
“Na verdade, não.”
“Quer conversar sobre isso?”
“Eu não deveria...”
“Não vou contar para ninguém.”
Sinto como se estivesse traindo meu irmão,
mas nem Malu ou Cris está on-line. Já passou das
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duas da manhã e preciso desabafar, preciso de


alguma orientação para ajudar Mateus.
Então, conto tudo para Marcelo.
“Nossa, que barra, Alice.”
“Nem me fala! Não sei o que dizer a ele. E
a Vanessa também não tem para onde ir... Obrigá-la
a mudar de cidade, e grávida ainda por cima, será a
melhor solução?”
“Talvez eles possam dividir o apê como
colegas de quarto. Seu irmão deixaria claro que é
pelo bem do bebê e dela também.”
“Talvez.”
“Ela trabalha?”
“Na verdade, não sei quase nada sobre a
vida dela. Meu irmão não me conta muito porque
os relacionamentos dele não duram o suficiente
para isso. A Vanessa foi a que mais durou, mas só
por ser bastante insistente. Ele estava pensando em
terminar e agora aconteceu isso.”
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“Quem sabe eles não se acertam?”


“Ele não gosta dela, Marcelo. Meu irmão
nunca amou alguém além da família. Não entendo
o motivo, mas ele não consegue se abrir. E não
acho que ela seja o perfil dele, por isso ele a
escolheu. Assim pode terminar sem maior
sofrimento.”
“Parece até alguém que eu conheço.”

A bateria do meu computador acaba e


decido não responder. Nem tenho o que responder.
Ele está certo. Mais do que certo, mas não quero
falar sobre isso com ele. Como consigo falar de
tantas coisas com Marcelo, mas sou incapaz de
falar sobre mim mesma? É assim com todo mundo,
menos com a Malu e com o Cris. Ou talvez até
mesmo com eles. Apenas por serem mais
insistentes que os outros e me conhecerem há mais
tempo têm um espaço reservado em minha vida,
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espaço esse que já não me vejo capaz de lhes negar.


Marcelo, entretanto, é um bom amigo e amanhã irei
agradecê-lo por tudo. Agora, finalmente, o sono
chegou e sinto que poderei dormir.

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Capítulo 15

Acordo para tomar café e noto que meu


irmão já saiu. Em meu celular encontro uma
mensagem dele: “Maninha, muito obrigado por
ontem. Ainda não contei para nossos pais, mas vou
contar. Antes preciso resolver as coisas com a
Vanessa e saber o que faremos daqui para a frente.
Te amo!”.

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Sinto-me feliz por, pelo menos, ajudá-lo a


ficar mais calmo e decidir conversar com a
namorada. Afinal, não há somente ele nessa
história. Por mais que Vanessa possa ser
manipuladora, o que me leva a não simpatizar
muito com ela mesmo antes de conhecê-la direito,
ficar grávida sem querer é uma barra. Entretanto
parte de mim ainda pensa: será que ela não quis
mesmo? Essa parte de mim ainda acha que meu
irmão pode estar certo e Vanessa planejou tudo.
“Esse problema não é meu”, preciso dizer a mim
mesma. Ao menos enquanto Mateus e ela não
estabelecerem seus termos, devo evitar me
intrometer. Então foco em tomar meu café, arrumar
minhas coisas e partir para o trabalho.
Chegando ao escritório, Júlia e Cláudia me
parabenizam pela promoção com um bolinho e me
abraçam, contentes.
– Acho que o doutor Lopes percebeu o
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quanto vamos economizar em impostos esse ano...


– diz Júlia faceira. – São mais de 30 mil!
– Você realmente está fazendo muita
diferença aqui, Alice. Muito obrigada por fazer
parte da equipe! – completa Cláudia abraçando-me.

Sorrimos felizes e voltamos às atividades,


pois o tempo não para no setor financeiro. Não com
a crise à espreita a todo o momento e contratos
podendo ser cancelados. Aliás, tanto o Lucas como
o Marcelo andam estressados com isso, ao menos é
o que escuto minhas colegas dizerem. Nossos
clientes principais estão receosos e murmúrios
rolam pelos corredores. Tudo o que posso fazer é
buscar maneiras de otimizar os recursos financeiros
e economizar em cada setor.
Júlia e Cláudia me convidam para
acompanhá-las no almoço, mas quero aproveitar a
deixa para atualizar Cris e Malu pelo WhatsApp,
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então recuso. Sei que estou errada e deveria me


enturmar mais, até porque ambas me tratam com
muito respeito, mas algo me trava. Depois da
enorme decepção que vivi com Gustavo, tenho
dificuldade em me relacionar com as pessoas,
deixá-las se aproximar e me permitir a incerteza de
confiar. Veja o que aconteceu com meu irmão! Sei
que estou misturando as situações sem qualquer
critério, mas não consigo evitar.
Sem perder tempo, ao ler minha
mensagem, Cris envia: “Parabéns, amiga! Hoje é
sexta e devemos sair para comemorar!!!!”. Malu
rapidamente completa: “Concordo plenamente! E
também quero saber qual é o bapho envolvendo seu
irmão”.
Eu apenas lhes enviei um relato simples
sobre a promoção e um problema com Mateus, mas
acabei não contando exatamente o que era. Bom,
logo a notícia vai estourar, então não vejo problema
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em revelar a situação durante nosso encontro à


noite. Primeiro, vou esperar o desenrolar dos fatos
com meus pais.
Digito em resposta: “Mais tarde conto para
vocês, gente. Agora vou almoçar! Beijo!”.
Quando chego à porta, Lucas aparece com
aquele sorriso malicioso. Será que ele desconhece
outro jeito de sorrir? Sem esforço, minhas pernas
estremecem um pouco.
– E aí, ruiva! Parabéns pela promoção.
Acho que deveríamos sair para comemorar...
– Na verdade, sairei para comemorar com
alguns amigos hoje. Se quiser aparecer...
– Estava pensando em algo mais íntimo, eu
e você... O que acha de a gente sair com seus
amigos e, depois, fazer algo só nós dois, no final de
semana?
Acho estranho o comportamento dele. Não
é alguém do estilo romântico. Ao mesmo tempo,
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porém, preciso parar de desconfiar de tudo.


Sorrio e lembro que tenho sessão com a
psicóloga no sábado pela manhã, então digo:
– O que acha de fazermos alguma coisa no
sábado à noite, então?
– Perfeito, passo para buscar você. E hoje
nos encontramos onde?
– Vou sair daqui direto para um barzinho.
– Eu precisarei ficar um pouco mais para
finalizar uns contratos, mas me manda o local por
WhatsApp que apareço lá.
– Tudo bem, combinado!
– Agora preciso ir, meu tio quer que eu
almoce com ele e uns possíveis clientes. – Lucas
me dá um selinho rápido e sai porta afora.
Meu almoço é breve e solitário. Aproveito
para colocar a leitura em dia e, quando percebo, já
devo voltar ao trabalho.
O resto da tarde passa rapidamente e logo
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recebo uma mensagem de Mateus: “Conversei com


o pai e a mãe. Não foi bonito nem fácil, mas agora
está tudo bem. A Vanessa continuará morando
comigo por algum tempo, até conseguir um lugar
para ficar... Está pensando em dividir o
apartamento com uma amiga, mas a colega de
quarto da tal amiga só sairá daqui a um mês e
pouco. Vamos esperar até lá”.
Respondo rapidamente: “Sei que não é o
melhor dos mundos, mano, mas você é um bom
homem e esse é o certo a fazer”.
“Eu só queria ter certeza de que esse filho é
meu, mana.”
“Você pode pedir um exame de
paternidade.”
“Não seria muito grosseiro da minha
parte?”
“Ela pode não gostar, mas você está no seu
direito, Mateus. Só espera a poeira baixar um
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pouco e pensamos em como você pode perguntar


isso a ela.”
“Obrigado, mana. Aliás, seus amigos me
contaram que você foi promovida e rolará uma
festinha hoje. Por que não me disse?”
“A gente estava ocupado com outras
coisas...”
“Bom, eu e a Vanessa iremos hoje.
Estamos precisando mesmo espairecer um pouco.”
“Combinado, vejo vocês lá!”
Quando saio do escritório, no término do
expediente, encontro Marcelo na porta do elevador.
– E então, qual a programação para o final
de semana?
Tenho vontade de não falar nada e seguir
meu rumo, mas Marcelo foi quem me ajudou a
chegar aqui. Eu nem teria essa promoção se não
fosse por ele, e acho que estou sendo mal-
agradecida com todo esse escudo que coloco em
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volta de mim.
– Na verdade, estava mesmo procurando
você – minto. – Vou para um barzinho com alguns
amigos e meu irmão. Ah, o Lucas também
estará lá. Se você quiser ir...
– Obrigado pelo convite, Alice. Queria que
tivesse me dito antes, pois agora já tenho um
compromisso com a minha prima.
Mordo os lábios, envergonhada.
– Foi meio que de última hora, por isso... –
Em uma tentativa de reduzir o desconforto,
acrescento: – Pode levá-la, se quiser. Será na
Cervejaria do Beto.
– Quem sabe aparecemos por lá, então. –
Ele sorri.
Entramos no elevador e permanecemos em
silêncio. Constrangedor. Quero agradecê-lo pela
nossa conversa na noite de ontem, mas não
consigo. Temo entrar na questão que ele trouxe em
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suas últimas palavras, temo lhe dizer que estava


certo. Ele se despede com um aceno e caminha ao
encontro de uma morena que o espera na entrada.
Ela é maravilhosa com sua pele jambo e cabelos
enrolados, vê-la faz meu estômago se contrair. O
motivo? Não tenho certeza e prefiro não pensar
sobre isso.

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Capítulo 16

Todos estamos em clima de comemoração.


Talvez por ser sexta-feira, algo que sempre atinge
os mais jovens e parece trazer promessas
libidinosas, divertidas e diferentes de um final de
semana prestes a começar.
Entro no barzinho e sento-me com Malu e
Cris, que já estão em seu segundo copo de cerveja.
– Hoje você terá de beber!!!! – diz Malu
mais empolgada do que o normal. Considerando
que bebeu apenas um copo, seu ânimo alterado
certamente não é por causa do álcool.
Ela está trajando um vestido vermelho que
marca suas curvas, o esmalte das unhas combina
com a cor. Um blazer branco por cima completa
seu visual. Sua maquiagem deve ter sido retocada,
pois o preto sobre as pálpebras está mais

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esfumaçado e não é o estilo de make que ela


costuma usar para o trabalho. Cris percebe meu
olhar e cochicha em meu ouvido, enquanto Malu se
levanta para pegar mais bebidas.
– Acho que tem um cara na parada! – Ele
sorri maroto.
– E quando não tem? – Ergo as
sobrancelhas em zombaria.
– Pois eu acho que esse é diferente e está
aqui em algum lugar...
A banda se posiciona para tocar, é noite de
Pop Rock nacional dos anos 1990. Malu volta ao
som da primeira estrofe de “Bem querer”, de
Maurício Manieri. Os músicos tocam fazendo
palhaçada, obviamente não se trata de uma canção
do repertório.
– Vem me dar seu, amor. Vem que eu
quero você, meu bem-querer...
Malu fica meio corada. Eu e Cris não
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deixamos isso passar despercebido. O vocalista se


aproxima da borda do palco e parece encarar minha
amiga sem nenhum pudor.
– É impressão minha ou isso é para você?
– Ele está tirando com a minha cara –
explica ela, empinando o nariz. – E isso é tudo o
que eu falarei sobre o assunto. – Malu vira-se para
mim e me dá um copo com um estranho líquido
fluorescente. – Agora bebe esse Diabo Verde e
vamos começar a festa!
Decido não pensar muito a respeito e viro-o
de uma vez.
– Nossa, a festa começou cedo! – diz meu
irmão chegando com Vanessa, que sorri sem graça.

Depois de todos se cumprimentarem,


fazemos alguns pedidos de porções e mais bebidas.
Conversamos, rimos e Vanessa parece mais à
vontade. Ela me agradece por ter convencido
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Mateus a conversar e deixá-la ficar lá por uns


tempos, embora eu não ache que tenha muito a ver
com isso. Ela tenta chamar a atenção dele durante a
noite inteira, mas ambos estão desconectados. Não
são mais um casal, se é que um dia chegaram a ser.
Quando Lucas chega, eu já estou zonza e
superalegre encostada em um canto ouvindo a
música. Malu exibe-se provocante para o vocalista
ao mesmo tempo que agarra outro cara. Vanessa
está sentada à mesa enquanto meu irmão e Cris
parecem discutir algo próximo ao bar à espera de
mais bebidas.
– Oi, ruiva!
– Onde você estava? – pergunto caindo um
pouco em cima dele ao ritmo de Engenheiros do
Hawaii.
– Eu precisei terminar algumas pendências,
mas agora estou aqui...
Lucas me prensa contra a parede e me
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beija. Seu hálito de cerveja se mistura ao meu de


vodka, Diabo Verde e não sei mais o que coloquei
para dentro. Não costumo beber, mas hoje queria
celebrar e... esquecer. Tenho a sensação de que
quero esquecer algo, suprimir alguma coisa que
quer vir para fora, mas não sei o que é.
Mesmo assim, agarro a gola de sua camisa
e posiciono uma coxa entre suas pernas. Estou de
calça jeans, então não me importo com a falta de
decoro. Sinto o seu sorriso safado no meio do beijo.
Meu corpo formiga e pede por mais. É só desejo.
Eu sei disso. Eu sinto falta de ter alguém. Puxo-o
para mais perto e minha língua enrosca à sua em
um movimento erótico.
Não estou certa de quanto tempo se passa.
Eu quero perder o controle, quero me perder
naqueles cabelos pretos, mas não consigo. Sinto-me
um pouco como a Malu, embora nunca vá dizer
isso a ela. Sinto-me vulgar. Onde eu estou com a
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cabeça? Meu mundo vira do avesso e meu


estômago embrulha.
– Eu... – começo, sem saber o que dizer.
– Eu já volto.
Entro no banheiro e vomito a vida. Lavo o
rosto e não reconheço a pessoa que vejo no reflexo:
manchada de batom, com o rímel borrado e os
olhos vermelhos de quem bebeu demais. Tento
achar meus amigos, mas parece que a multidão
aumentou ou a minha visão ficou mais turva. Não
consigo discar o número de ninguém no celular. Eu
não devia ter bebido tanto, agora todo o efeito está
vindo de uma vez só. Eu estava quietinha num
canto até inventar de andar. Minha cabeça dói.
– Alice, está tudo bem? – Uma voz
pergunta, mas não consigo distinguir de quem é.
– Não – sou capaz de responder.
– Onde estão seus amigos?
– Não sei.
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– Quer que eu procure por eles?


– Quero ir para casa.
– Onde você mora?
– Não sei.
– Não sabe?
– Não.
– Vem comigo, vou tirar você daqui...
– Quem é você?
– Alice, é o Marcelo. Vem, você não está
bem.
O resto da noite passa como um borrão.
Sinto a mão dele me puxar pelo braço, lembro-me
vagamente de passarmos pelo caixa e Marcelo
pegar meu celular para digitar alguma coisa.
– O nome da sua amiga é Malu, né? Avisei
a ela que estou levando você para a minha casa.

Aceno de leve com a cabeça, incapaz de


considerar a relevância de suas palavras.
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– Cadê a sua prima?


– Ela encontrou uns amigos aqui e ficou.
Pegamos um táxi e durmo.
***
Na manhã seguinte, acordo com uma
terrível dor de cabeça e uma vergonha sem
tamanho. Estou usando uma camiseta que não é
minha e me vejo só de calcinha na cama de um
estranho.
Marcelo.
– Bom dia, bela adormecida! – ele
cumprimenta entrando no quarto.
Olho para seu rosto, depois me cubro
rapidamente.
– Só para esclarecer, você fez isso sozinha.
– Aponta para a minha roupa. – Não sei como, mas
fez.
Respiro aliviada.
– Que horas são?
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– Fica tranquila, ainda são nove horas da


manhã!
– Eu tenho um compromisso às onze, não
posso me atrasar!
– Onde é o seu compromisso?
– Perto do escritório.
– Tudo bem, eu moro perto do escritório.
Então, você está com tempo de sobra.
– Marcelo, obrigada por ontem...
Normalmente não sou assim, eu...
– Tudo bem, Alice. Acho que foram muitas
emoções com o seu irmão, né? E deve ter mais
coisa guardada aí dentro.
– Como você sabe?
– Eu já disse, você não deixa ninguém ver
além da superfície. Eu já fui assim um dia.
– Por que você me trouxe para a sua casa?
Por que tomou conta de mim?
– Porque você precisava.
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– O Lucas viu que eu estava bêbada e não


fez nada disso.
Meu comentário é mais para mim mesma
do que para ele, mas o ouço responder:
– Então, talvez, ele não seja o cara para
você.
– Ele definitivamente não é o cara para
mim.
– Se sabe disso, por que estão juntos?
– Não estamos juntos. A gente fica de vez
em quando, é diferente.
– Mesmo assim.
– Ele é exatamente o que eu preciso agora.
– Tem certeza?
Prefiro não responder, ao invés disso,
pergunto:
– ‘Tô morrendo de sede. Você pode me dar
um copo d’água?
– Claro, vou trazer um copo para você.
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Enquanto isso, pode tomar um banho se quiser.


Deixei uma toalha para você no banheiro junto com
as suas roupas. Eu aproveitei para lavar e secar,
tirar o cheiro de cigarro e...
Eu seguro sua mão e o puxo para mais
perto. Por um momento tenho vontade de beijá-lo,
mas lembro que estávamos falando de Lucas há
alguns segundos e não faço isso. Apenas o abraço
apertado e dou um beijo em seu rosto, sendo
cuidadosa para que minha calcinha não apareça
enquanto me mexo.
– Obrigada mesmo, Marcelo. Você é um
ótimo amigo.
– É o que você vive me dizendo.
– Vivo?
– ‘Tô exagerando, mas já é a segunda vez
que você me diz isso.
No banheiro, vejo mensagens de Malu, Cris
e meu irmão em meu celular. Marcelo respondeu a
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todos, apresentou-se como um colega de trabalho


que me encontrou e levou para casa. Com exceção
do Cris, eles já o conheciam da época do colégio e
Malu ameaçou-o com dizeres horríveis caso eu não
voltasse inteira. Lucas nem me procurou. O que
não é nenhuma novidade.
Eu não me importo.
Ou me importo?

Capítulo 17

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Despeço-me de Marcelo e saio apressada


para a minha consulta com a psicóloga. Ainda
estamos no início, é nossa terceira sessão, e fico
constrangida sob seu olhar por trás dos óculos de
meia-lua enquanto me sento no sofá à sua frente.
Sinto-me em um filme no qual o paciente desataria
a falar, mas não sou assim.
Meço minhas palavras, analiso as reações
dela, ainda me sinto julgada. Por que tenho tanto
medo de ser condenada? Por que preciso ser tão
controlada, até mesmo com a minha psicóloga?
– Alice, deixe-me ajudar você. Eu preciso
entrar para poder auxiliá-la com suas questões de
controle e julgamento.
– Eu deixo.
– Você apenas me deixa ver o que você
quer. Eu preciso ir além da superfície.
Tenho vontade de rir. Será que ela andou
falando com o Marcelo? Por que todo mundo
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resolveu utilizar esse termo comigo agora? Ok,


estou sendo dramática, só os dois falaram isso.
Mas, sinceramente, não sei como ir além da
superfície. São sentimentos tão enraizados em mim
que não tenho certeza de como me conectar a eles.
Eu não tenho controle sobre isso. Nunca sei quando
vou entrar em contato com minha ansiedade, com
meus pensamentos negativos, com a onda de
tristeza sem fim. Falo isso para minha psicóloga.
– Essa situação ocorre porque você ainda
não sabe ao certo quais são seus gatilhos.
Entretanto, para trabalharmos essa questão,
precisamos ir mais a fundo. A terapia cognitivo-
comportamental é ótima para pessoas que sofrem
de ansiedade, mas preciso que você se empenhe
mais para isso.
– Em que sentido?
– Que tal começar me dizendo por que
você acha que precisa ficar com o Lucas?
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– Eu não acho que preciso ficar com o


Lucas.
– Você se sente mal quando está com ele,
mas mesmo assim continua. Você quer se punir
porque seu namoro com o Gustavo terminou? Você
acha que não merece ser feliz?
– Não é por isso que estou com o Lucas. Eu
só quero um tempo para respirar.
– E esse tempo você acha ser capaz de
obter em outro relacionamento?
– Eu quero experimentar, não ter um
relacionamento, eu quero... – Não consigo
completar.
– O que você quer?
– Me sentir no controle de novo.
– E ficar com Lucas a ajudará nisso?
– Não há complicações. Eu sei o que
esperar dele. Eu sei o que ele quer.
– Mas é isso o que você quer?
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Fico em silêncio por um tempo.


– Eu não sei o que quero – respondo, por
fim. – Na verdade, só estou procurando uma
maneira de me sentir bem de novo.
– Essa procura é muito importante e
corajosa de sua parte. Mas será que, para se sentir
bem de novo, precisa ser através de outra pessoa?
– Eu tenho medo de que, se eu ficar
sozinha, todos os meus medos vão me alcançar.
E a verdade é lançada. Eu não quero
trabalhar meus problemas, eu tenho medo deles. O
medo me paralisa e não consigo sair do lugar. Não
consigo ir “além da superfície” como tanto querem
que eu faça. Respiro fundo, sentindo uma crise se
aproximando.
– Não precisa ficar receosa, Alice. Pode
deixar a crise vir. Pense que a ansiedade é uma
emoção comum para todo ser humano e
está sempre presente no dia a dia. A diferença está
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em como nós lidamos com ela.


– Eu não sei lidar com ela e temo ficar
louca.
– Você já percebeu que sua ansiedade
apareceu porque se deparou com a falta de
controle? Além disso, sinto que também está ligada
com a possibilidade de sua não aceitação. Enquanto
não começarmos a pensar nesses gatilhos, sua
ansiedade irá aumentar em situações cotidianas,
entende?
– Como faço isso?
– Vou lhe ensinar alguns exercícios para
utilizar no momento da crise, mas recomendo que
continue se consultando com o psiquiatra sobre os
medicamentos. Na psicoterapia, nós também
iremos trabalhar ferramentas para que você entenda
melhor como a ansiedade funciona e aprenda
maneiras de administrá-la.
Fico em silêncio novamente. Ela tem razão,
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eu sei.
– Percebe que, ultimamente, você está se
limitando a fugir da ansiedade ao invés de tentar
administrá-la? Você precisa encará-la de frente, por
mais doloroso que seja. Você é forte, Alice. Mais
forte do que imagina.
Quero corrigi-la aos gritos! Quero dizer que
sou fraca. Que não tenho o controle de mim
mesma. Que tenho medo. Quero falar tantas coisas,
mas assinto levemente com a cabeça. A sessão
termina e saio de lá pensativa.
Preciso conversar com alguém. Alguém
que não seja o Marcelo, pois não me sinto
preparada para o modo como consegue me atingir
com suas palavras. Alguém que não seja a Malu ou
o Cris, porque eles vão apenas me consolar.
Alguém que não seja meu pai ou minha mãe, que
parecem um par de adolescentes, e tampouco meu
irmão prestes a ser pai.
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Pego o celular e envio uma mensagem para


o meu padrinho: “Podemos tomar um café?”.
***
Vinte minutos depois, estamos juntos em
uma cafeteria. Meu coração se aquece por ele estar
sempre presente para mim, até mesmo mais do que
meu pai. Meu padrinho realmente é alguém
incrível.
– Não sei, padrinho. Você disse que seria
bom eu fazer terapia, mas sinto estar andando em
círculos.
– Ali, você só teve três sessões até agora!
Aliás, já é a terceira psicóloga que você procura.

– Eu sei, mas nenhuma parecia a certa.


– Nenhuma parecia a certa porque você
sempre quer ter a razão. Já disse que não é possível
crescer sem cometer alguns erros.
– Você acha que a terapia cognitivo-
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comportamental é uma boa opção? Não tenho


certeza...
– É ótima, Ali, mas você sabe que é o seu
compromisso com a mudança que fará a diferença.
Você não precisa ter certeza de nada. Arrisque sem
medo de errar! Quantas vezes terei que repetir para
que não sofra com as decisões do passado?
– Eu não estou melhorando, não é?
– Eu acho que você se cobra demais e não
consegue comemorar as pequenas conquistas.

– Quais, por exemplo?


– Sair de um relacionamento tóxico, estar
trabalhando e conquistar reconhecimento...
– Estou levando um dia após o outro,
padrinho. Não estou certa se é isso que eu quero.

– Não precisa ter certeza, pelo menos você


está fazendo algo. O trabalho enobrece o homem! –
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graceja ele.
Sorrio, sentindo-me mais leve.
– Além disso, você foi promovida! – Ele
parece orgulhoso de mim. – Isso não conta? Você
tem amigos, tem um irmão maravilhoso, seus pais...
– Nem quero falar sobre meus pais!
– O que aconteceu?
– Você não sabe que eles voltaram a morar
juntos, por acaso?
Meu padrinho ri.
– Claro que sei! Você conhece seu pai...
– Eu achei que conhecia a minha mãe.
– Ela não tem o direito de ser feliz? Você
sabe que não deve se meter no relacionamento
deles...
– Sai pra lá com sua teoria de Constelações
Familiares! Eu sei que não devo me meter e não
vou, mas me cansa. Até quando dará certo?
– Por que você precisa saber o prazo?
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Silencio-me novamente.
– Acho que você só precisa da sua
liberdade, menina. Não culpe seus pais por seu
medo de cortar o cordão umbilical.
Como sempre, meu padrinho fala o que
preciso ouvir. Seu jeito é sutil como um elefante,
mas ainda o sinto doce. Ou talvez seja o sabor do
brigadeiro junto com meu chá gelado de pêssego
que tornam suas palavras menos cítricas.

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Capítulo 18

Depois de encontrar meu padrinho, sigo


para a casa da Malu. Não estou a fim de ir para a
minha casa ainda, não sei por qual motivo. Talvez
seja a necessidade de digerir minha recente
conversa ou apenas o fato de que não quero rever
meus pais agora.
Malu ainda está de pijama quando abre a
porta, sonolenta.
– Achei que tivesse sido sequestrada e
morrido. Estava me preparando para encontrá-la em
uma vala no centro da cidade – resmunga
brincalhona. Havia esquecido que seu humor
matinal é muito negro.
– Acabei passando um pouco do limite
ontem, admito.
– Um pouco?

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– Bastante.
– O que aconteceu?
– Não sei, eu apenas... – pondero o que
dizer, mas desisto.
Não quero falar sobre todos os sentimentos
que tive ontem à noite ao beijar Lucas, ou o quanto
me sinto estranha perto de Marcelo. Muito menos
quero conversar sobre a situação lá em casa com
esse novo arranjo ridículo dos meus pais.
– Entendi – ela responde, mesmo sem eu
dizer nada.
– E qual é a sua com o cantor do bar? –
questiono.
– Não tenho nada a dizer sobre o assunto.
– Ah, para!
– Eu já disse que ele tem zoado com a
minha cara, resolveu me pegar para Cristo quando
nem lhe fiz anda.
– Não fez?
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– Nada diferente do normal.


Leia-se que o normal de Malu é dar em
cima dos homens, usá-los e depois jogá-los fora
como brinquedinhos que não quer mais. Não sei
por que Malu é assim, mas, se eu usasse um pouco
de psicologia barata, diria ter algo a ver com o fato
de o pai dela não ser presente e de sua mãe já estar
no quarto casamento. Malu foge de compromissos
e não gosta de se apegar a ninguém.
– Mas, aparentemente, ele é imune ao meu
charme. – Ela ri, embora seus olhos não
demonstrem nenhuma diversão.
– E como isso é possível?
– Pelo que me disse, eu já sacaneei com o
primo dele...
– Entendi – afirmo mesmo sem detalhes.
Vejo que Malu não está disposta a compartilhar e
pretendo deixá-la falar sobre a situação quando
realmente quiser.
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Eu e meus amigos temos dessas. Somos


reservados, não falamos nada, mas conseguimos
saber o que importa uns dos outros sem muito
papo. Não por acaso, quando finalmente
conversamos, parece uma avalanche de emoções. E
quem sou eu para reclamar de avalanches? Sou
uma em pessoa.
Sinto-me uma bomba-relógio. Eu acordo
todos os dias pensando que esse será quando vou
explodir, mas nada acontece. E eu espero... espero
pelo próximo dia...
A verdade é que já estou cansada da minha
rotina, desse medo constante de que algo vai dar
errado, de que eu sou a errada, de que tudo está
errado em minha vida. A ansiedade me consome e
o medo me trava, mas não sei o que fazer para
melhorar. Lembro das palavras da psicóloga:
“Alice, deixe-me ajudar você. Eu preciso entrar
para poder auxiliá-la com suas questões de controle
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e julgamento”.
Não quero deixar ninguém entrar, por isso
tenho tanta dificuldade com o Marcelo e tanta
facilidade com o Lucas. Não é justo comparar um
ao outro, nossos relacionamentos não são da
mesma natureza, mas não me sinto pronta sequer
para amigos novos. Até mesmo amizades trazem
complicações. Admito, no entanto, que Lucas é
descomplicado por inteiro; descomplicado até
demais para o meu gosto.
O que eu estou esperando, afinal? Não
temos nada um com o outro...
Como se ouvisse meus pensamentos, Lucas
me manda uma mensagem: “Alice, gata, você
sumiu ontem... Fiquei com saudades. Não deu nem
tempo de convidar você para uma festa na praia que
vai rolar hoje à noite. Topa?”.
Talvez eu devesse negar e parar com essa
“complicação descomplicada” em minha vida.
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Talvez esteja na hora de me permitir ir de encontro


aos meus problemas, mas, ao invés disso, vejo-me
respondendo: “Claro. Posso levar alguns amigos?”.
Ele imediatamente retorna: “Suave, gata!
Te pego às 20h”.
Malu, que está esparramada em sua cama
rolando o dedo pela tela do celular, me questiona
com a sobrancelha.
– Temos uma festa na praia hoje à noite –
comento.
– Beleza! – ela diz interessada.
Malu é simples e desapegada. Eu também
gostaria de parar de encanar com qualquer coisa e
ser assim. Ao menos é com esse pensamento que
saio de sua casa e sigo até a minha, onde meus pais
estão sentados em um canto do sofá e Mateus no
outro.
– Oi, filha! – mamãe me recepciona vindo
me dar um beijo. – Como foi na casa da Malu?
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– Tudo bem. – Sinto-me um pouco culpada


por mentir onde dormi.
Ela nunca é assim tão calorosa e, ao
observar sua expressão tensa, imediatamente
entendo sua motivação.
– Seu irmão irresponsável nos contou algo
ontem... – papai vai direto ao ponto. Seu rosto é de
poucos amigos.
– Ela já sabe – Mateus se limita a dizer.
Assinto levemente com a cabeça, sinto
medo do que está por vir. Mamãe olha para meu pai
em repreensão.
– Combinamos que íamos conversar sobre
isso como pessoas civilizadas.
– É o que estou fazendo. Não tenho culpa
se o seu filho não sabe controlar o que leva no meio
das pernas!
– Agora ele é meu filho? Será que nem
quando você se muda para cá consegue arcar com
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os deveres paternos?
– Eu sou o que sou e você sempre soube
disso. E não venha me falar de deveres paternos,
pois os filhos que eu criei não ficariam na
vagabundagem fazendo bebês em garotas de vinte
anos!
– Cala a boca, você não sabe o que está
falando! – grita Mateus levantando-se.
Meu pai também se levanta e, por uma
fração de segundo, chego a pensar que vão sair no
tapa, mas minha mãe se põe entre os dois. Tocando
no ombro de meu pai, ela diz:
– Isso já é demais! Mateus é tudo, menos
vagabundo. E ele representa o mundo para mim. É
um homem trabalhador e cometeu um erro. Se é
que podemos chamar um filho de erro, porque não
gosto disso. Por mais que não tenha sido planejada,
essa criança será parte da família.
– Chega! – esbravejo nervosa.
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– Você não tem nada a ver com isso,


mocinha! – repreende meu pai.
– É tarde demais para querer agir como um
pai e ter alguma autoridade sobre nós! Não somos
mais adolescentes, somos todos adultos e
deveríamos começar a agir como tais – Mateus
impõe.
– Você não vai dizer nada, Samanta? –
papai questiona minha mãe.
– E o que direi, Carlos? O que direi quando
uma filha começa a agir como adulta da noite para
o dia e meu filho começa a agir feito criança?
– Crianças não fazem bebês – respondo, e
mordo minha língua.
– Pois, para mim, isso é atitude de criança,
Alice. Sem planejamento? Ele nem sequer estava
namorando a moça, pelo que entendi. O que vai ser
desses dois?
– Isso não é assunto de vocês – Mateus
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responde.
– Não é assunto nosso? – meu pai indaga. –
E como vai se sustentar? Como vai sustentar essa
família?
– Você nunca sustentou a nossa! Sempre
deixou tudo nas costas da mamãe, o que você sabe
sobre sustentar uma família?
– Mateus, você não está sendo justo com
seu pai.
Percebo que tudo vira uma enorme
confusão e, em poucos minutos, estamos magoados
uns com os outros.
– Não aguento mais vocês dois brigando e
esquecendo do mais importante: meu irmão vai ter
um filho. Ok, está fora do planejamento. E Deus
sabe o quanto ninguém aqui gosta de sair do
planejamento, não é? – Encaro minha mãe, que se
encolhe. – Mas nós também tivemos que acatar
essa decisão estúpida de vocês dois morarem juntos
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de novo! A vida não é um mar de rosas, não dá para


planejar tudo e tropeços vão acontecer. Parem de
ficar só apontando dedos uns aos outros e se
esforcem para arranjar uma solução, pelo amor de
Deus!
– Sua irmã está certa. – E isso é tudo o que
minha mãe diz sobre o assunto.
O silêncio em seguida nos faz perceber que
ninguém continuará remoendo as mágoas, pois isso
não é o que precisamos. Minha mãe tem lágrimas
nos olhos, mas as segura. Ela sempre precisou ser
forte, afinal de contas, não é? Essa é sua lógica e
fico pensando no quão parecidas somos.
– Vamos ajudar no que precisar, filho – ela
diz. – Sei que seu salário está bom para um homem
solteiro, mas é insuficiente para um pai de família.
Então, precisamos pensar juntos em uma solução.
Mateus, sendo apenas dois anos mais
velho, formou-se há pouco em Arquitetura. Não
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está nem mesmo há um ano na empresa onde atua.


Uma criança realmente vai bagunçar tudo.
– Eu conversei com um amigo ontem e
parece que ele tem um projeto que posso participar.
É um extra e vai durar por algum tempo. Ele ainda
é estudante e não pode fazer tudo, foi indicação do
pai...
Não consigo evitar pensar em Cris, pois o
ouvi contar uma história muito parecida há alguns
dias... Seria estranho, eles nem são próximos um do
outro. Mateus respeita que Cris seja homossexual,
mas nunca os vi conversarem mais do que
amenidades. Então nem teria motivos para o Cris
ajudá-lo. Ao mesmo tempo, porém, o bom coração
do meu amigo jamais negaria auxílio e, pensando
melhor, ontem eles estavam conversando no bar...
Decido averiguar isso mais tarde e focar na
situação.
– Se vocês tivessem prestado atenção na
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minha conversa, veriam que não quero ajuda. Eu


entendo que devo ter responsabilidade sobre
minhas atitudes, é o que estou fazendo do melhor
jeito que posso. Tudo o que eu queria era o apoio
da minha família. Não quero seus conselhos ou seu
dinheiro, mas parece que isso é a única coisa que
vocês desejam me dar...
– Conselho de mãe sempre vai acontecer –
digo para amenizar o clima. – E pais sempre vão
querer dar dinheiro aos filhos, sabe como é...
Meus pais sorriem, sem jeito. Sei que esse
não é o melhor meio de resolver os problemas,
afinal, várias coisas foram ditas hoje e muito não
seria remediado.
– Sim, meu filho. A notícia é inesperada e
peço desculpas se nossa reação não foi como você
esperava... Muitas coisas não são, não é mesmo? –
As palavras da minha mãe fazem Mateus
finalmente rir, tímido. – Mas nós te amamos e
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sempre estaremos aqui para você.


– Fico feliz que você tenha conseguido
fazer um arranjo... – meu pai se limita a dizer.
Normalmente ele é mais despreocupado, e
admito que esperava outra atitude dele, mas vai
saber? O nosso mundo está virado de pernas para o
ar.
– E a família da Vanessa? – questiono
mantendo a esperança de que ambos tenham o
apoio que precisam.
– Planejamos conversar com os parentes
dela, tentar amenizar a situação e mostrar que
sempre estarei presente na vida dessa criança. –
Mateus olha para nosso pai com amargura.
Meu pai foi tão presente quanto a separação
permitiu. O problema era que, mesmo em suas
visitas, as brigas continuavam constantes e isso
prejudicava seu tempo conosco. Ele ficava meio
aéreo e logo, logo fugia porque tinha alguma
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“história” imperdível para o jornal.


Sinto a onda chegando. Foi muita agitação
para um dia só. Sei que meu irmão quer me
perguntar como foi minha noite com Marcelo, pois
só ele sabe que não dormi na casa da Malu.
Infelizmente, a crise de pânico é sorrateira e chega
quando menos espero. Sem conseguir me conter, já
estou hiperventilando.
– Se resolvemos tudo por aqui, preciso ir
para meu quarto.
Saio em disparada e observo minha face
pálida no espelho do armário. Ninguém me segue,
contudo ouço os seus sussurros:
– Ela não está melhorando...
– Talvez devêssemos pensar em outros
remédios... outros médicos.
Eu quero dizer que, ao invés disso, eles
podem ignorar e apenas deixar essa crise passar,
mas não consigo. Enrolo-me no edredom em
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posição fetal e espero a onda de pânico ir...


Entrego-me momentaneamente ao desespero para
voltar a respirar de novo. As lágrimas se acumulam
e sou incapaz de segurá-las, diferente da minha
mãe.
Enquanto meu peito dói e o ar parece
escasso, começo a relembrar tudo de ruim que já
me aconteceu e como fui trouxa. Não consigo
evitar que meu pensamento pare em Gustavo.

Capítulo 19

Não sei dizer por quanto tempo permaneci


na mesma posição ou quando caí no sono.
Finalmente, ao abrir meus olhos, percebo pela
janela do meu quarto que o sol já está se pondo.
Decido me levantar e comer alguma coisa antes de

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começar a me arrumar.
A casa está silenciosa. Escuto o som baixo
da televisão vindo do quarto dos meus pais e
acredito que Mateus saiu, pois não o vejo em lugar
algum.
Quando já estou quase pronta para a tal
festa na praia, Malu e Cris aparecem. Cinco
minutos depois, Lucas me liga pedindo para
descermos. Nem dá tempo de fofocar sobre os
últimos acontecimentos em minha casa. Acho que
foi melhor assim. Pelo menos, conseguirei me
distrair um pouco mais.
– Oi, ruiva! – Lucas me dá um selinho. –
Pronta para se divertir?
– Claro. – Forço o sorriso, pois não estou
assim tão empolgada.
Meus amigos se sentam no banco de trás e
cumprimentam Lucas. Apresento-o formalmente ao
Cris, que mantém uma expressão simpática, e Malu
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logo me interrompe dizendo ter sido sua colega de


escola. É óbvio que Lucas lembrava-se dela.
Engatamos em um papo sobre de quem é a casa na
praia, que tipo de festa vai ser, que bebidas vão
rolar...
Descubro que a casa é de um dos
advogados do escritório – grandes chances de o
Marcelo estar por lá, então – e que vai rolar música
com voz e violão ao vivo. Lucas faz questão de
dizer que terão “amigos do amigo do amigo” na
festa, como é o caso da Malu e do Cris.
Malu fica empolgada por saber que
conhecerá vários advogados e começa a perguntar
para Lucas sobre os solteiros disponíveis.
– O pessoal não é muito de se apegar, não...
– comenta ele, meio sem jeito.
Será que ele quer fazer bonito na frente dos
meus amigos? Acho uma atitude estranha para o
Lucas. Mas vai saber, né? Todo mundo ao meu
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redor parece ser meio de lua...


– Perfeito. Eu também não sou do tipo que
se apega. – E Malu sorri mostrando todos os dentes.
A gente ri da minha amiga atirada, mas não
consigo deixar de pensar no tal carinha da banda
que parece ter mexido com ela. Quero tirar essa
história a limpo, mas sei que Malu ainda não me
contará nada. Esqueço o assunto e penso em falar
com o Cris sobre isso depois.
Na festa, ao chegarmos, o pessoal já está
com tudo pronto e a galera da voz e violão está se
preparando no palco improvisado. Malu sai
correndo atrás de bebidas – e de advogados gatos –
enquanto o Cris fica ao meu lado.
– Vou pegar umas bebidas para a gente
também – diz Lucas, dando um beijo em meu rosto.
– Quer alguma coisa, Cris?
– Daqui a pouco vou lá, obrigado.
Quando Lucas se afasta, Cris ergue uma
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sobrancelha para mim.


– O bofe gamou, então?
– Deixa de ser exagerado! – respondo
incomodada. – Não sei o que deu nele hoje...
– Vai ver quer fazer bonito aos seus
amigos.
– Só pode ser!
Como posso observar Lucas a distância,
cumprimentando os amigos, aproveito a deixa para
fofocar com Cris:
– Você está sabendo do lance da Malu?
– Que lance?
– É exatamente isso o que quero saber! ‘Tá
rolando um lance com o vocalista daquela banda
que tocou ontem, na noite da minha
“comemoração” – dramatizo as aspas.
– Não ‘tô sabendo de nada com detalhes,
mas também notei um clima estranho! Por que ela
não me contou? – questiona ultrajado.
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– Na verdade, ela também não me contou


nada. Estou apenas suspeitando...
– Vou tentar embebedá-la para descobrir
mais.
– A parte da bebida acho que ela fará
sozinha – digo apontando discretamente para uma
Malu toda felizinha no bar improvisado, já de papo
com uns três caras ao mesmo tempo. – Aliás,
enquanto estamos todos sóbrios – brinco –, queria
agradecê-lo por ter ajudado meu irmão.
Cris se remexe sem jeito. Nunca o vi assim
tão sem graça. Ainda mais por algo de que deve se
orgulhar, mas não demoro muito pensando nisso.
– Que isso, Alice. É o seu irmão...
– Mas você não tinha nenhuma obrigação
de ajudá-lo, ainda mais por não serem muito
amigos, então...
– Na verdade, estamos mais próximos
ultimamente... – diz como quem se desculpasse.
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– Isso é ótimo, Cris! Meu irmão precisa de


mais amigos como você. – Eu o abraço com
carinho. – E não me importo de dividir! – Pisco
com humor.
– Será que a Vanessa não se importa? – ele
questiona, mas parece ser mais para si do que para
mim.
– Era só o que faltava ela ter ciúme de um
amigo agora, né? – respondo.
Percebo que não a conheço de verdade para
estar segura disso. Acho que precisarei me
aproximar dela se a terei como minha cunhada ou,
pelo menos, como a mãe do meu futuro sobrinho.
Só de pensar nisso minha cabeça dá um nó.
Fico imaginando como está a cabeça do meu
irmão...
Lucas volta para o meu lado e Cris
aproveita a deixa para ir até o bar. A distância, vejo
que encontra ninguém mais, ninguém menos do
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que Marcelo. Noto quando engatam em um papo


antes de a boca do Lucas reivindicar minha
atenção.
Aproveito esse momento para tentar
esquecer todos os meus problemas e toda a
negatividade que vem me cercando. Como sempre,
Lucas não faz a mínima ideia de como me sinto por
dentro. Tento me convencer de que é melhor assim.
Lucas me pega pela mão e me conduz até a
varanda da casa, onde nos sentamos para
assistirmos ao pessoal tocar. Ele coloca uma mecha
do meu cabelo ruivo para trás da minha orelha e
ergo uma sobrancelha em um mudo
questionamento.
– O que foi? Não posso fazer um carinho
na minha ruiva? – ele pergunta e beija meu
pescoço.
– Sua ruiva?
– É.
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Estou prestes a contestar e entender melhor


essa mudança de comportamento, mas engasgo ao
ver Marcelo subir no pequeno palco com um violão
em mãos. Lembro-me de ouvi-lo mencionar que
tocava, mas nunca pensei que pudesse assisti-lo um
dia.
Outros dois caras se aproximam com
violões e Marcelo se posiciona no vocal. Sinto-me,
de repente, invadida por uma enorme vontade de
ouvi-lo cantar.
Malu se senta ao lado da banda junto com
Cris, os dois ficam aos cochichos observando
Marcelo. Meu rosto começa a esquentar. Não quero
que Malu brinque com ele. Marcelo não é desse
tipo. Mas quem sou eu para querer ou não alguma
coisa? Ambos são adultos.
Os primeiros acordes do violão chegam aos
meus ouvidos, uma melodia doce e calma para
começar a noite. Todo mundo se silencia e a voz
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grave de Marcelo reverbera pelo meu corpo,


fazendo-me tremer.

Olhe para o céu


Olhe para mim
Estou aqui, você diz.

Gostaria de escutar
O céu está cinza
Como naquele dia,
Mas os poucos fios de luz
Dão-me esperança
De que você está aí
Olhando por mim e para mim.

Olhe para o céu


Olhe para mim
Estou aqui, você diz.

Será que você me escuta também?

“Será que você me escuta também?”. Às


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vezes é o que desejo perguntar para qualquer um ao


meu lado. Será que você me escuta? Será que
entende tudo o que se passa dentro de mim? Mas,
ao mesmo tempo, sou eu que me fecho, que me
prendo e não deixo nada sair.
Outra música inicia:

Essa saudade me aperta, me sufoca, me condena


Queria que você estivesse aqui,
Mas não está.

Me sinto perdido entre os estilhaços


Que se tornaram meu coração.
Queria que você estivesse aqui,
Mas não está.

Viro para a saudade e digo:


– Estilhaça-me.
Mais uma vez, de novo, outra vez e mais uma.
Me sinto perdido entre os estilhaços
Que se tornaram meu coração.

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Parece que a música de Marcelo conversa


comigo. Eu também me sinto perdida entre os
estilhaços que se tornaram meu coração.
Lucas bebe a cerveja em sua latinha e
sorri para mim, absorto de tudo o que estou
pensando. Mas, talvez, alguém realmente me
escute. E tenho vontade de dizer para Marcelo: eu
escuto você também.

Capítulo 20

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Mais tarde, no luau, chegam outros


“amigos dos amigos” e por aí vai. Mais um cantor é
adicionado ao grupo. Malu se remexe na cadeira e a
percebo incomodada. Observo melhor e tenho
certeza: o recém-chegado é o tal vocalista que
vimos no barzinho ontem.
Cris passa por mim e me pega pelo braço.
– Acho que você está certa. Nesse mato tem
cachorro!
– Não disse? Ela ficou toda alvoroçada...
– Será que nossa pequena Malu está
apaixonada?
Não temos tempo para conjecturar a
respeito, pois Lucas vem atrás de mim e enlaça
minha cintura.
– Acho que podíamos ir embora – Malu
aparece do nada.
– Que ir embora, loira?! A noite mal
começou! – censura Lucas.
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– Pois, para mim, parece que acabou... – ela


bufa.
O grupo resolve dar uma pausa nas músicas
e sinto-me triste porque Marcelo não vem falar
comigo. Não entendo exatamente a fonte desse
sentimento, afinal, não somos grudados, né? Ele
pode conversar com quem quiser, mesmo com uma
certa jovem morena de olhos verdes extremamente
mais magra e mais bonita do que eu...
Espera, por que estou pensando isso? Que
coisa ridícula!
O tal vocalista do bar, de sorriso fácil e
cabelos encaracolados, vem para ao lado de Malu e
a abraça pelos ombros.
– E como vai a nossa fã número um?
– Pode acreditar quando digo que não fazia
ideia de que você estaria aqui – ela responde,
constrangida, enquanto se desvencilha do contato.

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– Mas aposto que, secretamente, você


esperava que eu estivesse.
– Henrique, será que dá para você parar de
se achar, garoto?
– Estou só expressando a realidade, garota.
Você me deseja desde a primeira vez que me viu,
só está chateadinha porque não quero nada com
você.
– Será que não quer mesmo? ‘Tô achando
que essa história está invertida.
– Se é assim, por que você faz de tudo para
chamar a minha atenção?
– Acho que você bateu a cabeça forte
demais naquela noite, no bar, e ‘tá tendo ideias
mirabolantes...
– Eu não bati, você bateu em mim.
Cris e eu nos entreolhamos, acompanhamos
a conversa virando a cabeça de um lado para o
outro como se estivéssemos assistindo a uma
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partida de ping-pong. Lucas, que só então me dou


conta não estar mais ao meu lado, foi buscar outra
cerveja e ficou de papo com os garotos do
escritório. Melhor assim. Essa conversa está boa
demais!
– Eu não teria batido em você se fosse mais
cavalheiro!
– Só porque sentei no seu suposto lugar?
Deixe de ser mimada!
– Eu não sou mimada!
Malu sai bufando e resmungando sobre
chamar um táxi, mas o tal de Henrique vai atrás
dela.
– Vou querer saber de tudo amanhã! – grita
Cris com um sorriso divertido.
Estou prestes a concordar quando Lucas
volta e me beija profundamente.
– Essa é a minha deixa! – diz Cris
deixando-nos sozinhos.
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O resto da noite é tranquilo, mas uma


sensação de inquietude toma conta do meu coração
quando Marcelo não lança seu olhar sobre mim
nem uma vez.
***
Após algumas semanas, com a confiança do
doutor Lopes depositada em mim, minha rotina no
trabalho fica mais intensa. É preciso dar conta das
atividades e, ainda, de pensar em estratégias para
reduzir os custos. O relógio indica estar quase na
hora da minha sessão com a psicóloga, que foi
remarcada para o início da noite de sexta, mas
ainda preciso imprimir alguns relatórios e deixá-los
na sala do doutor Lopes.
Júlia, que está fazendo hora extra porque
precisou visitar uma tia doente, ainda permanece no
escritório. A maioria dos funcionários já foi
embora.
– Júlia, posso pedir um favor?
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– Claro, Alice. Do que você precisa?


– Eu já imprimi alguns relatórios, só faltam
outros dois... Você poderia imprimir para mim e
deixá-los na sala do doutor Lopes? Eu os enviaria
por e-mail.
– Posso, Alice. Vou ficar aqui por, pelo menos,
mais uma hora para cumprir o que estou devendo.
– Muito obrigada, Júlia. Preciso ir, se não vou
me atrasar para o meu compromisso.
– Aproveita essa noite de sexta!
– Pior que nem vou aproveitar, estou indo no
médico mesmo... – Sorrio em solidariedade a ela,
que ficará mofando no escritório. Ao menos há
trabalho a ser feito.
Nos despedidos e desligo o computador logo
depois de enviar tudo para Júlia. Apresso o passo
para chegar à consulta a tempo, mas, quando viro a
última esquina, encontro quem menos podia
esperar: Gustavo.
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– Alice! – diz sorrindo.


Como esse cara de pau pode sorrir para mim
depois de tudo o que me fez passar? Sinceramente
não entendo, só pode ser um psicopata para quem
as emoções alheias nada importam!
Não respondo, tamanha a minha surpresa.
– Difícil encontrar você, hein? Nem
responde mais as minhas mensagens... – Aproxima-
se para me dar um beijo no rosto.
Sinto um frio na espinha, mas não consigo me
afastar. Não é um frio na espinha como quando
estamos apaixonadas. Muito pelo contrário. É fruto
de uma sensação de horror puro. Sinto que estou
prestes a ter uma crise de pânico, o fato de ser na
frente dele torna tudo pior.
Inspiro fundo, penso em um balão se
expandindo em minha barriga, conto até dez e solto
a respiração. Só então respondo:
– Não vejo sentido em responder suas
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mensagens, Gustavo. Não temos mais nada para


conversar.
– E quem disse que eu queria conversar? Minha
especialidade é outra coisa... – Ele me encara com
ar safado.
– Sim, sua especialidade é trair a confiança dos
outros e ser um cafajeste como só você consegue.
Parabéns!
– Por que essa raiva toda, minha gatinha?
– Gustavo, não vou perder meu tempo
respondendo a você. Talvez você nem considerasse
o que tínhamos um relacionamento, aliás, eu
também não consigo sequer dizer por que
considerei! Bobeira foi me envolver com alguém
assim, incapaz de amar. Mas, por favor, não ache
que agora vou continuar sendo trouxa e responder
suas mensagens aceitando ser a outra.
– Que outra, Alice? Só tenho olhos para
você...
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– Para mim e para quantas mais? Pare com


suas cantadas baratas, você insulta a minha
inteligência desse jeito! Quer saber? Faz o seguinte:
esquece que esse encontro aconteceu... Ou melhor,
lembra! Lembra que nunca mais quero falar com
você, não quero qualquer tipo de contato e, se me
vir na rua, atravesse para não correr o risco de a
gente se esbarrar. E agora, se me der licença, eu
tenho um compromisso!
Gustavo me segura pelo braço com força.
– Desde quando você ficou enfezadinha
assim? Acho que está até mais gostosa com esses
quilinhos a mais e toda essa raivinha no rosto...
Não consigo nem quero acreditar que uma
pessoa a quem amei pode mudar da água para o
vinho! Ele acabou comigo quando me deixou e por
meses fiquei a me perguntar o que fiz de errado.
Por meses fui consumida pela culpa por não
agradar ao Gustavo, por tê-lo perdido para outras
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garotas, por ter engordado e me tornado


desinteressante... Tentei me adequar ao que ele
queria, atendi aos seus padrões egoístas apenas
porque me afundava cada vez mais na insegurança
que ele mesmo alimentava em mim. Demorou, mas
agora percebo que Gustavo nunca foi o namorado
perfeito que imaginei. Ele não se tornou um babaca
completo de repente, mas era assim desde o
começo. Fui cega por não ver que o Gustavo
sempre foi um lobo em pele de cordeiro, e eu era só
mais uma refeição. Uma refeição grátis e muito
fácil!
Quero bater com a minha cabeça na parede
por ser tão idiota, mas estou petrificada. Ele aperta
meu braço cada vez mais forte.
– O que acha de ir à minha casa, hein?
Pelos velhos tempos!
Tento me desvencilhar e não consigo.
Gustavo não suporta a ideia de me ver seguir em
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frente, de saber que já não dependo dele e de sentir-


se superado. Ele não quer me reconquistar, e sim
me subjugar como antes. O medo me faz pedir
baixinho que me solte, mas nada acontece. Percebo
que preciso me mostrar firme e reúno muita
coragem para gritar:
– Gustavo, me solta agora!
Ele começa a me puxar pela rua e me sinto
no meio de uma novela mexicana. Não acredito que
meu ex-namorado está me puxando à força pelo
braço, achando que vamos ter uma rapidinha na
casa dele.
Sinto-me humilhada e enganada. Mais uma
vez, sinto-me traída! Não basta passar por tudo que
passei, ainda tenho que me sentir impotente e
agredida?
– Me solta! – digo mais alto.
– Eu sei que você quer ir comigo, não
precisa bancar a difícil...
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– Eu acho que ela não quer ir com você.


Quando me dou conta a quem pertence
aquela voz, o alívio me invade. Marcelo. Meu
salvador vem ao meu socorro de novo.
Os dois se encaram por alguns instantes e,
então, Gustavo me larga. Não quer brigar com
Marcelo, alguém bem maior que ele.
– Pode ficar, cara. Ela não vale nada
mesmo... – ele resmunga e se afasta.
Sinto as lágrimas brotarem e já não respiro
direito. Estou sofrendo outra crise de pânico no
meio da rua, justamente diante do Marcelo. Não,
não... O fôlego me escapa. Meu coração cavalga e
sento-me no chão.
– Você deve me achar ridícula, né? –
questiono entre um soluço e outro.
– Não, eu não acho. Ele é o único ridículo
nessa história – argumenta apontando para onde
Gustavo estava.
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– Eu me acho tão tonta por ter acreditado


que ele me amava, que ficaríamos juntos, que...
– Você não precisa pensar nisso agora. –
Ele se agacha à minha frente e coloca as mãos em
meu rosto. – Só se concentre em respirar.
– Eu não consigo... – Meu peito dói,
reclama a falta de ar.
– Você não se acha digna de respirar?
– Claro que sou!
– Então, concentre-se na minha voz. Confie
em mim. Só... respira... – Ele enche os pulmões e
solta o ar devagar pela boca.
Eu o acompanho timidamente. Talvez
realmente não me ache digna de respirar depois de
tudo que o Gustavo aprontou comigo. Depois de
tudo que aturei. Sou apenas uma covarde.
Sinto-me uma retardada e, só de lembrar,
outra onda de pânico me invade.
– Não pense nisso.
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E ele ainda me chamou de gorda! Falou


dos meus “quilinhos a mais” e fez com que me
sentisse suja. Como pôde me tratar daquele jeito
depois do que vivemos juntos? Não é a mesma
pessoa, não é...
Mas é, sim. Às vezes demora para
realmente conhecermos quem está ao nosso lado.
Como dizia meu avô: “você dorme com Maria,
come com Maria, mas não sabe quem é Maria”.
Nesse caso, eu nunca soube quem era Gustavo. Ele
me enganou! Não... eu me deixei enganar.
– Não pense mais...
Marcelo me abraça apertado. Não sei por
quanto tempo soluço em seu ombro. Esqueço-me
da consulta com a psicóloga, esqueço-me de todas
as pessoas passando entre nós na rua, não me
importo com os olhares curiosos... Deixo a culpa, a
vergonha, a tristeza e a humilhação se esvaírem.
Aos poucos, meus músculos relaxam.
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– Isso, joga tudo fora. Não guarde lixo


dentro de você.
Encontro seus olhos castanhos e sou
incapaz de expressar a gratidão que sinto nesse
momento.
– De nada! – Ele sorri para quebrar o gelo.
– Eu disse que você deveria frequentar a aula de
yoga da minha prima.
– Talvez realmente devesse...
Caminhamos lado a lado sem um rumo
certo. Permito-me, nesse momento, não ter um
rumo certo. Passamos o resto da noite conversando,
rindo e contando sobre nossos casos amorosos
desastrosos, nossas vidas, o que queremos para nós.
Marcelo escreveu aquelas músicas do final
de semana passado. Ele gosta de tocar violão desde
a adolescência, mas é absolutamente apaixonado
por Direito. Escrever é uma maneira que encontrou
de extravasar a timidez e superar o coração partido.
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Nunca se deu bem com as garotas, ao menos não do


jeito romântico. Sempre foi muito tímido. Quando
se tornou adulto sentiu-se mais seguro e melhorou
bastante, mas também foi traído e não encontrou
mais ninguém depois disso.
– É por razões como essa que não acredito
mais no amor – comento.
– Não diga isso. Só não encontrou a pessoa
certa ainda. – Seu olhar sério me prende e, então,
ele acrescenta sem jeito: – Ou talvez tenha
encontrado, né?
Torço o nariz ao pensar no Lucas.
– Com certeza não!
Vejo uma expressão de decepção passar
pelo rosto de Marcelo, mas talvez só tenha sido
impressão minha. Afinal, ele não parece gostar
muito do Lucas. Não tenho tempo de perguntar
sobre isso, pois meu telefone toca e o visor revela
ser Malu. Quando observo, já passa da meia-noite e
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ainda estamos no barzinho conversando. Para ela


me ligar em plena sexta-feira, a essa hora, algo
muito sério aconteceu.
– Malu? – questiono. – O que foi?
– Aquele canalha, idiota e metido a besta
me deu um fora!
– Um fora? Você?
– É isso mesmo que você ouviu!
– E quem foi?
– O Henrique!
– Quem é Henrique?
– COMO QUEM É HENRIQUE, ALICE
MARIA? – ela grita com uma voz esganiçada.
Preciso afastar o telefone do ouvido. – É o vocalista
daquela banda! O que só me sacaneia!
Não entendo nada, mas digo:
– Onde você está?
– Em casa.
– Estou indo para aí.
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– Ótimo, chama o Cris!


Olho para Marcelo com pesar. Não gostaria
que nossa conversa chegasse ao fim. Pensando um
pouco a respeito, quem melhor do que ele para me
ajudar a dar conselhos à Rainha da Sedução, aquela
que nunca leva fora de ninguém? Marcelo é um
ótimo ouvinte e muito sensível.
– Você se importa de ir comigo? A Malu
levou um fora... É o primeiro dela.
– O primeiro? – pergunta incrédulo.
– Digamos que ela nunca dá tempo para
que isso aconteça, sempre se antecipa...
Ele assente, pensativo.
– Você vai?
– Se me quiser, vou aonde você precisar.
Sorrio e seguro sua mão com carinho.
Marcelo, meu salvador outra vez. Saímos do
barzinho e, enquanto ele pede um táxi, mando uma
mensagem para o Cris: “Situação de emergência.
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Casa da Malu em quinze minutos!”.

Capítulo 21

Quando chegamos, a situação é um tanto


quanto inusitada: Cris e Daniel, o garçom que meu
amigo paquerava, estão juntos de mãos dadas
aguardando Malu abrir o portão. Desde quando são
um casal? Sinto-me feliz pelo meu amigo e,
sorrindo para esta romântica cena, fico a imaginar
como isso foi acontecer. Segundos depois, recebo
uma mensagem: “É recente, tipo hoje. Ele quis vir
comigo”. Respondo animada: “Depois vou querer
saber tudo!”.
Sei que não teremos tempo para conversar,
pois este será o show da Malu. Meu celular volta a
apitar: “E ele?”.
Resumo em poucas palavras: “Gustavo

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apareceu querendo me levar sei lá para onde à força


e o Marcelo me ajudou. Mais um dia comum na
minha vida”. Dessa vez, Cris sussurra em meu
ouvido:
– Depois eu vou querer saber tudo!
Tenho vontade de rir da minha desgraça.
Paramos com as mensagens quando
finalmente chegamos até a porta da Malu. Ela se
surpreende com a plateia à sua espera, mas deixa
todos entrarem.
– Eu chamei meus melhores amigos, quem
são os agregados? – cochicha para mim, pois os
cavalheiros me permitiram entrar antes.
– O Marcelo você já conhece... – Dou de
ombros.
– Então, obviamente, não estou falando
dele. – Ela faz uma careta.
– O outro você também conhece... –
murmuro, constrangida que alguém possa nos
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ouvir. – É o Daniel, aquele do barzinho de quem o


Cris pegou o telefone, lembra? Você que
estimulou...
Os olhos dela brilham, apenas por um
momento. Malu aconchega todos em sua pequena
sala de estar e diz:
– Muito bem, sejam bem-vindos à minha
humilde residência. O assunto de hoje é sério: eu
levei um fora.
Daniel e Marcelo se remexem inquietos,
cientes de que não deveriam estar aqui. Pensei que
ficariam calados, mas Marcelo se pronuncia:
– Malu, você se importa de estarmos
escutando essa conversa?
– Como nenhum dos dois me deu o fora,
acredito que não tem problema algum.
Seguro o riso. E Cris também. Nossa
querida amiga é sempre sutil como um cavalo.
– O Henrique, vocalista da banda Filhos da
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Pauta...
– Esse é o nome da banda? – questiono
franzindo o cenho.
– Você nunca tinha percebido? – pergunta
Cris, risonho.
– Não.
– Enfim, não é esse o caso – responde
Malu, fazendo um sinal com a mão para eu deixar
esse assunto de lado. – O que importa é o motivo
para isso acontecer.
– Talvez ele não esteja interessado? –
indaga Daniel tentando se entrosar na conversa.
Cris arregala os olhos.
– Nossa pequena Malu não acredita nisso.
– Em quê?
– Que alguém possa não se interessar por
ela.
– E se ele for gay? – Daniel insiste.
– Ele não é gay! – exclama Malu, sua voz é
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tão estridente que faz meus ouvidos zunirem.


– E como a senhorita sabe? – perguntei.
– Eu sei que ele não é gay – afirma
Marcelo. Todos nós o encaramos surpresos. – Ele
já ficou com algumas mulheres lá do escritório... –
Ele dá de ombros.
Assentimos em compreensão.
– Exatamente! O Henrique é o maior
pegador, pega geral, pega todo mundo...
– Só não ‘tá pegando você – Daniel
interrompe.
Cris gargalha. Malu o fuzila com o olhar.
– Ele não quer me pegar porque já fiquei
com um primo dele e, aparentemente, não fui muito
legal.
– E quando você é legal com os caras que
pega? – pergunto direta.
– Eu sei! Mas ele não precisava saber
disso...
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– E por que não? – rebato.


– Porque eu queria ficar com ele! E ele me
acha patricinha, mimada, arrogante, diz que não
temos nada a ver... Eu já tentei todas as minhas
táticas! TODAS! E olha que eu não sou de correr
atrás. Me fazer de difícil não deu certo também... –
Ela parece estar mais falando consigo mesma do
que com a gente. – Até pensei em descolar uma
sessão de gravação para ele, vocês sabem que meu
pai é produtor musical...
O pai dela mora na Argentina, mas possui
uma filial no Brasil e outra nos Estados Unidos.
Apesar de não ser muito próxima dele, Malu
trabalha lá praticamente desde que entrou na
faculdade de Administração junto comigo. Além
disso, seu salário é bem gordo para compensar a
ausência paterna na vida dela. Infelizmente,
dinheiro não é suficiente quando o assunto são
sentimentos.
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– Amiga, há tanto peixe nesse mar... –


murmura Cris.
– Mas eu...
– Você gosta dele – afirma Marcelo.
– Não quero mais falar disso. Mudei de
ideia!
E dizendo isso, Malu começa a chorar.
Sim, nossa Malu começa a chorar. Por um homem.
Todos ficamos em silêncio. Não há o que
dizer. Todos nós já passamos por um amor não
correspondido, pela primeira paixão, pelo primeiro
coração partido. Não importa se é uma paixão de
um dia, um mês, seis anos... Cada pessoa a sente
diferente, principalmente a Malu, que precisou
deixar todo o seu orgulho de lado para assumir isso.
Cris a consola até que ela dorme, exausta,
no sofá. Decidimos continuar nossa conversa com
ela em particular, depois de passar o “susto” dessa
fossa.
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– Bom, eu acho que vou para casa... –


Daniel começa.
Olhamos o relógio e já está muito tarde
para qualquer um de nós partir, mas sou eu quem
diz:
– A Malu tem colchões de sobra. Vamos
todos ficar por aqui e amanhã você vai, Daniel. –
Sorrio. – Você também, Marcelo. É muito perigoso
sair a essa hora, mesmo de táxi.
Eles concordam e iniciamos os
preparativos. Daniel acaba engatando em um papo
com Marcelo para obter conselhos, pois
aparentemente uma amiga está com alguns
problemas na justiça. Nesse meio-tempo, Cris fala
comigo:
– Como está a situação na sua casa, com o
bebê e tudo mais? – Ele parece sofrer para falar
sobre isso. O motivo? Não tenho nem ideia.
– Sinceramente? Não aguento mais morar
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com meus pais. Acho que já deu o que tinha que


dar e não suporto as ceninhas de casalzinho deles.
Claro, eles têm todo o direito de reatar, mas as
brigas, os melodramas, a tensão entre meu pai e
meu irmão... Enfim, é muito para minha cabeça.
– Você cresceu. Quer sua independência.
– Acho que sim.
– Já estava na hora. Seu irmão também
parece estar aprendendo...
– Do jeito mais difícil, mas está. Ele sequer
tem dormido lá em casa.
– Não? – Cris parece surpreso.
– Não.
Ficamos em silêncio por um tempo e,
então, Cris continua:
– Alice, tenho uma proposta para você.
– Qual?
– Quer morar comigo?
Agora a surpreendida sou eu. Como assim
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morarmos juntos? Confesso que a ideia nunca


passou pela minha cabeça. Sempre pensei em
morar com meus pais, depois com o Gustavo
quando noivos, planejando nosso casamento e...
bom, isso jamais acontecerá. Deus me livre!
– O lance com o Dani parece que vai
progredir... A gente tem se visto há um tempo.
– E você nunca me contou...
– Eu achei que não ia dar em nada.
– E o que mudou?
– Tinha outra pessoa na jogada.
– E agora não tem mais?
– Não, ela me descartou por mensagem de
texto ontem.
– Você está pensando em contar aos seus
pais?
– Ainda não sei, mas o fato é que preciso
da minha privacidade para ser quem sou por mais
do que algumas horas por dia. Não aguento mais
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me esconder.
– Eu só quero me esconder e, talvez por
isso, esteja louca para fugir de casa... Por mais
birutas que eles sejam, meus pais me enxergam
como ninguém.
– Você é tão transparente, Alice.
– E eu achando que era tão enigmática –
gracejo.
– Você aceita? Achei um apê bem bacana.
É no meio-termo entre o meu trabalho e o seu, é
barato, numa vizinhança legal, tem dois quartos e
podemos estabelecer regras, se você se sentir mais
confortável. Mas eu realmente gostaria que o Dani
dormisse lá às vezes.
– Não tenho problema com isso, Cris.
– E então?
– E então... eu topo!
Acho que é uma das poucas vezes em que
sou espontânea. Mas, no fundo, sem saber direito o
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motivo, morar com o Cris é exatamente o que


quero e preciso agora.
Nos abraçamos e Daniel pergunta:
– Ela aceitou?
– Sim! – exclamo feliz.
– Perdi alguma coisa? – questiona Marcelo.
– Eu e o Cris vamos dividir um
apartamento.
– Isso é ótimo, Alice!
Ficamos em clima de celebração e jogamos
mais um pouco de conversa fora enquanto Malu
dorme profundamente no sofá. Quero saber mais da
história dela com o Henrique, como tudo
aconteceu, mas minha amiga só irá nos contar
quando estiver pronta. E acho que ainda não é a
hora.

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Capítulo 22

No dia seguinte, não conseguimos arrancar


mais informações de Malu. Daniel e Marcelo vão
embora para nos deixar mais à vontade com ela,
mas isso ainda é em vão.
– Eu estou conformada com o fato de que é
minha primeira paixão... – ela fala como quem
comeu algo estragado – e de que não vai dar certo.
Eu fui mesmo idiota com o primo dele, como sou
com todo mundo, e paguei o preço. Não era para
ser...
– Talvez isso aconteceu para você perceber
que está na hora de se aquietar... – sugiro.
Cris balança a cabeça em concordância.
– Vocês dois não são nem um pouco o
exemplo disso para mim, né?

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– Do que você está falando? Eu estou com


o Daniel – responde Cris, semicerrando os olhos
em sinal de desafio.
– E tem certeza de que é dele que você
gosta?
– É muito recente. Estamos nos
conhecendo.
– Malu! Deixa o Cris em paz, não sabe
como foi difícil para ele finalmente se abrir para
alguém?
– Como você pode ser tão tapada, Alice? –
provoca ela. – Talvez porque você esteja muito
próxima da situação...
Cris fica vermelho, e eu realmente não
entendo sua reação.
– Chega dessa conversa! Se você não quer
parar com suas noites sem sentido e finalmente
achar alguém legal, o problema é seu! Eu encontrei
alguém bacana e pretendo investir nisso. A Alice
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está se recuperando ainda, e tem todo o direito de


dar a louca com o bad boy dela...
Suspiro. Lucas. Às vezes até esqueço que
ele existe. Mas ao mesmo tempo, quando o
encontro, esqueço de todo o resto... e me sinto
normal. Não quero pensar nisso agora. Quero ir
para casa e dar a notícia sobre a minha mudança
para meus pais e meu irmão.
– Gente, preciso ir. Mandei uma mensagem
ao Mateus e vou contar para a minha família, agora
pela manhã, as boas novas.
– E você acha que seus pais vão encarar
numa boa? – questiona Malu.
– Não importa. Eu já decidi. Só vou
comunicá-los.
– A pequena Alice está crescendo – ela
zomba de mim, mas não ligo.
Nos despedimos e sigo rumo à minha casa.
*-*-*
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Todos já estão à minha espera. Meu irmão


está com uma aparência diferente. Mais adulto,
mais comportado, por causa do trabalho que o Cris
lhe arranjou. Mateus realmente parece querer fazer
as coisas darem certo com a Vanessa, pelo bebê.
Ela agora está morando numa casa que o Cris
também arranjou, mas meu irmão anda abatido e
triste. Apesar de seu porte adulto, há uma sombra
em seu semblante. E, então, lembro do comentário
de Cris na noite de ontem sobre alguém o descartar
por mensagem...
Cris. Mateus. Cris. Mateus. Cris.
Algo nessa equação finalmente fecha. Cris
está a fim do meu irmão! Estava tão na cara que
finalmente entendo os comentários da Malu.
Entretanto a pergunta é: será que meu irmão sente o
mesmo? Pelo que o Cris falou, é provável que não.
E mesmo que sentisse, seu futuro agora está ligado
a um bebê... Que confusão!
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Se o Cris não quer me contar, não vou


pressioná-lo. E se ele acha que com o Daniel há
chances de realmente ser feliz, vou apoiá-lo cem
por cento em suas decisões.
Meus pais recebem a notícia como sempre:
um rolo só.
– Você vai morar com o Cris? Está certo
que o rapaz parece jogar no outro time, mas ainda é
um homem! – exclama meu pai.
Fico roxa de raiva. Ele não tem direito de
dar opinião!
– Filha, sua decisão não é um pouco
precipitada?
– Mãe, eu entendo que é difícil para você
aceitar que mais um filho vai deixar o ninho, mas
essa é a lei da vida. Além disso, não vamos falar
sobre precipitação, né? O que foi a sua decisão de
morar com o papai de novo?
– Nós já fomos casados. É diferente. Nos
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conhecemos há anos!
– Eu conheço o Cris há anos e somos só
amigos, o que é melhor ainda.
– Eu não estou gostando dessa história...
Primeiro um filho meu engravida uma menina e,
agora, minha filha quer cair na vida. Que educação
você deu para essas crianças? – Meu pai se vira
para a minha mãe.
– O ensinamento que pude enquanto você
não estava em casa!
E mais uma briga começa.
Desisto de tentar racionalizar a situação e
apenas me retiro da sala. Eu já tomei a minha
decisão e nada vai mudar isso. Eu preciso sair de
casa e finalmente crescer.
– Eu apoio você, maninha – sussurra meu
irmão, apenas nesse momento percebo que veio
atrás de mim.
– Obrigada. – Abraço-o com força tentando
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dizer com gestos o que não consigo em palavras.


Será que ele sente o mesmo pelo Cris? Será que
está sofrendo?
– Bom, já que o circo começou, vou me
mandar daqui. A Vanessa quer escolher algumas
roupinhas para o bebê...
– Você está feliz?
– Sempre quis ser pai, por mais que nunca
tivesse pensando no assunto seriamente. Não era o
momento, agora vai ter que ser. – Ele sorri de um
jeito triste. – Então, sim, estou feliz de certa
maneira.
Após a discussão acalorada dos meus pais,
os dias passam voando com todos os preparativos.
Em menos de um mês, Cris e eu estamos
devidamente instalados em nossa nova casa, perto
de onde trabalhamos e com a liberdade que sempre
sonhamos.
Daniel ajudou muito com a mudança, ele é
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uma presença frequente. Gosto dele cada dia mais,


especialmente porque faz bem para o Cris. Meu
amigo está mais leve, mais de bem consigo mesmo,
embora ainda não tenha contado para a família
sobre sua homossexualidade. Entretanto
Florianópolis não é tão grande assim e logo, logo
seus pais descobrirão caso não se apresse em dizer.
Lucas, por outro lado, apareceu aqui
poucas vezes e cheio de desculpas para evitar me
ajudar. Sinto-me culpada por pensar que possa estar
mentindo, pois sempre foram justificativas
relacionadas ao trabalho e a coisa no escritório
realmente não é das melhores, estamos todos
atolados de atividades.
Marcelo, no entanto, pareceu achar um
tempo para vir me visitar.
– A casa ficou ótima, gente – diz ele,
encantado. – Fico muito feliz por vocês! – Olha
para mim. – Acho que vocês precisavam disso.
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Nós quatro acabamos jantando juntos, no


chão da sala, enquanto ainda não compramos a
mesa. Pedimos pizza e ficamos conversando
animadamente até altas horas da manhã.
Não sei como o assunto acaba em natureza,
sítio e lazer ao ar livre, mas Marcelo aproveita o
momento para fazer um convite inesperado:
– Ouvi falar de um sítio em Anitápolis que
é maravilhoso. A gente pode passar o dia, comer
uma comidinha caseira de fazenda e ainda tomar
banho de cachoeira...
– Nossa, isso seria maravilhoso! Estou tão
estressado com o novo projeto que preciso dar um
tempo para a cabeça.
– E eu com a semana de provas da
faculdade, que finalmente chegou ao fim. – Sorri
Daniel, aliviado.
– O que vocês acham de irmos? A Malu
está convidada, claro. Podemos ir nesse domingo.
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– Embora não tenha muito a vibe de


natureza, aposto que ela toparia! – garante Cris, já
mandando mensagem no WhatsApp.
– O Lucas também poderia ir... – murmura
Marcelo parecendo incomodado.
– Claro – sorrio amarelo.
Mando uma mensagem para ele, que acaba
por topar na hora. O Lucas é tão de lua que não
consigo entendê-lo, realmente.
E, assim, estamos programados para irmos
no domingo para Anitápolis curtir um dia na serra.

Capítulo 23

Domingo chega e estou um caco. Nenhuma


das minhas roupas bonitas de verão entra em mim.
Tenho vontade de chorar. Mesmo fazendo zumba e
me policiando na comida, não vejo resultados

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extraordinários. Por isso, vou até a casa da minha


mãe emprestar algumas roupas dela. Preciso de um
de seus vestidos longos para encobrir minha pança
ridícula e nojenta.
– Filha, o resultado demora para vir... Não
foi da noite para o dia que você engordou, e não
será da noite para o dia que você vai emagrecer... –
minha mãe tenta me consolar.
– Mas, mãe... você já olhou para a Malu?
Ela é linda, loira e magra! – digo chorosa.
– E o que a Malu tem a ver com isso? Cada
mulher tem a sua beleza!
– No meu caso, beleza nenhuma...
– Você parece uma adolescente de treze
anos falando, e olha que nem teve essa fase
insuportável nessa idade...
– Então a estou tendo tardiamente! Por que
nenhuma roupa legal me serve nesse guarda-roupa
inteiro?! Eu me esforço e não emagreço um grama!
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Só de pensar em comida já engordo!


– Filha, você precisa repensar seus hábitos,
não apenas os relacionados à alimentação e aos
exercícios. Você está sempre estressada,
preocupada, e não podemos ignorar as suas crises
também... – Sua voz fica mais baixa.
– O que tem elas?
– As variações de humor colaboram para o
emagrecimento, minha amiga que é nutricionista já
comentou isso comigo. E esses seus picos de
alegria e tristeza não ajudam, você precisa se
esforçar para ficar mais estável.
Eu sei que, no fundo, minha mãe está certa.
Mas ela acha que eu não tento ficar mais estável?
Que eu não me esforço?
– Você sabe o que é olhar para si mesma no
espelho e se achar nojenta, mãe? Pois é assim que
estou me sentindo. Eu tenho nojo de mim! Quando
me olho de lado, pareço um botijão de gás! Eu
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nunca fui assim!


– Mas você nunca passou pelo que está
passando agora, precisa ter paciência!
E me sinto ainda pior por ter que correr
para o colo da minha mãe para conseguir roupas
decentes. Paciência é a última coisa que eu tenho!
Acabo pegando as roupas emprestadas,
sentindo-me horrível por fazer isso, e volto para
casa. A Malu e o Cris já me esperam; se percebem
o meu humor azedo, não comentam.
Tomo um banho quente para relaxar e
penso no belo dia que se aproxima. Tento
descontrair. Quando estou pronta, recebo uma
mensagem de Lucas avisando que chegou e logo
em seguida uma do Marcelo. Ao entrar na sala,
Daniel também já está lá. Estamos todos prontos
para subir a serra!
Vamos em dois carros. Malu prefere ir com
Marcelo, Daniel e Cris, deixando-me sozinha com
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Lucas.
No caminho conversamos sobre
amenidades, sobre o trabalho, sobre como foi a
balada dele na noite anterior – tento fingir que tive
uma noite fantástica quando apenas fiquei
assistindo à Netflix sozinha em casa. Sei que não
temos nada sério, mas todo esse lance com o Lucas
me deixa confusa. Nunca sei quando ele vai topar
fazer algo comigo, quando vai me convidar para
um compromisso ou apenas me deixar no vácuo e
sumir.
– Qual é a do Marcelo? Por que ele nos
convidou para ir? Não tem amigos? – questiona
Lucas.
Acho sua postura insensível, estúpida e, por
um segundo, penso em uma resposta malcriada,
mas opto por me conter.
– Ele apenas nos convidou quando
estávamos terminando de arrumar o apartamento...
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– Decido não mencionar que Lucas não apareceu


uma vez sequer para me ajudar. Se não somos um
casal de namorados, pelo menos podíamos ser
amigos que se pegam, né? Mas acho que nem isso.
– O que foi?
– Nada. Do que você está falando?
– É que você está com uma cara esquisita.
Então decido colocar para fora. Talvez uma
viagem de duas horas não seja o melhor momento
para falar sobre isso, mas quando seria?
– Lucas, a gente não é nem amigo. Não
estou cobrando de você um pedido de namoro,
casamento, nada. Mas você é muito desapegado e
isso não rola para mim, entende? Você não foi
sequer uma vez lá em casa para me ajudar, no
trabalho praticamente finge que não existo, a não
ser que seja conveniente para você, e dificilmente
me convida para alguma coisa bacana como um
encontro romântico. E agora reclama de pessoas
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como o Marcelo, que estão abertas para novas


amizades, que fazem gentilezas e são atenciosas.
Lucas fica com os olhos arregalados, não
esperando minha reação. Alguns minutos se passam
e, no entanto, eu também não esperava o que
aconteceu em seguida.
– Você tem toda razão, Alice, me perdoa...
– E parece que ele está lutando contra as lágrimas.
– Eu não sei me abrir para as pessoas, acabo
posando de playboy pegador quando, na verdade, a
única com quem quero ficar é você. Não quero
pedi-la em namoro porque sei que ainda está se
recuperando de tudo o que aconteceu, então achei
que fosse rápido demais, preferi lhe dar espaço...
Eu não sei ser seu amigo quando quero ser muito
mais, quando posso oferecer muito mais a você... E,
para falar a verdade, tenho medo de ser como o
Marcelo e acabar como ele, na friendzone. Eu gosto
de você, Alice, de verdade, mas não sei como agir.
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Fico chocada com o que ele disse. Mas o


que mais me desperta a atenção é sua menção ao
Marcelo.
– Do que você está falando? O Marcelo não
está na friendzone, ao menos não no sentido que
você está falando... Somos só amigos mesmo, de
verdade. Ele já passou por situações similares às
minhas e me entende. E, Lucas, se você está sendo
realmente sincero, devia começar a agir e não
apenas falar. De nada adianta dizer que gosta de
mim se demonstra o contrário. Você está certo, não
estou preparada para um relacionamento sério. Mas
gosto de você, me divirto com você, especialmente
quando está sendo espontâneo e não se exibindo
para alguém.
Lucas parece entender o recado, pois
quando chegamos ao sítio é muito solícito com
todos, atencioso e simpático. Marcelo, apesar de se
sentir claramente desconcertado, acaba por aceitar a
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“nova amizade”.
Em certo momento, Daniel e Cris estão em
clima de “recém-casados” enquanto Lucas se
oferece para jogar frescobol com Marcelo. Os dois
conversam e me surpreendo ao vê-los rirem juntos.
Malu e eu pegamos um pouco de sol na beira da
piscina. Dou graças a Deus por estar um pouco frio
e Malu se manter coberta, assim também não
preciso colocar um biquíni e mostrar minhas curvas
indesejadas.
– Deixa de ser boba! – repreende Malu. –
Ele gosta de você por ser quem é, não pela sua
barriga.
Só então noto que estou com a mão em
cima dela, protetora e envergonhada. Sorrio para a
minha amiga. A questão é que nunca fui gorda. E
falar essa palavra me assusta. Nem mesmo me sinto
segura em dizer que sou gorda, pois, como nunca
tive quilinhos a mais, posso estar apenas com
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sobrepeso. Chego a temer, às vezes, ofender quem


realmente é gordo ao dizer que também sou.
Começo a pensar em mil coisas e, quando dou por
mim, Malu nem está mais ao meu lado. Ela está
jogando futebol com Marcelo enquanto Lucas vem
se sentar comigo.
Conversamos verdadeiramente dessa vez.
Ele conta sobre os planos de continuar os negócios
do tio e suas várias ideias para o escritório, mas diz
estar receoso com a crise. Também fala sobre
antigos relacionamentos e confessa que nunca
pensou ser capaz de se interessar outra vez por
alguém depois de seu último namoro. Fico
vermelha, tímida, mas prefiro esse Lucas.
Ele coloca meu cabelo para trás da minha
orelha e sorri. Dessa vez não de um modo
galanteador, mas amável. Nos beijamos, e seus
lábios são delicados. Sinto um formigamento por
todo o corpo.
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Ao final do dia, depois de nos


empanturrarmos de comida – decidi escapar um
pouco da dieta –, jogar vôlei e explorar o sítio cujas
paisagens são exuberantes, verdes e ensolaradas,
sinto uma paz de espírito. O lugar é ótimo para
descansar, apreciar a natureza e não pensar em
nada.
Decidimos assar uns espetinhos e Malu
começa a tomar algumas latas de cerveja. Não
demora muito para que minha amiga esteja mais
solta do que pipa em dia de vento. Ela começa a
tocar o ombro de Marcelo, a dar aqueles olhares
que conheço como ninguém e a rir mais alto, se
exibindo.
Marcelo, ingênuo ou apenas educado,
continua conversando e retribui as risadas, parece
até contar piadas.
– Marcelo, você é uma figura! – Consigo
escutá-la dizer, todos conseguem. – Você é
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fantástico, onde se escondeu todo esse tempo?


– Não me escondi. A gente só vê o que
quer, Malu.
– Bom, com certeza estou vendo o que eu
quero agora.
Vejo-o corar, mas ele não se deixa abalar e
continua conversando. A Malu realmente está
dando em cima do Marcelo depois de todo o
episódio na casa dela sobre o Henrique? Será que
ela não aprendeu nada?
– Malu, posso falar com você um
instantinho? – questiono enquanto me desvencilho
dos braços de Lucas com um sorriso sem graça.
Cris também dá uma desculpa qualquer e
vem atrás.
– O que você pensa que está fazendo?
– Do que você está falando, Alice?
– Para de se fazer de boba! Será que não vê
o seu papelão dando em cima do Marcelo?
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– A única que está fazendo um papelão é


você ao vir discutir isso comigo! Acha que o Lucas
não percebeu o seu ataque de ciúmes agora?
– Isso não é um ataque de ciúmes! Só não
quero ver o Marcelo magoado, ele já passou por
muita coisa...
– Mas me magoar não tem problema? Eu,
que sou sua amiga há tanto tempo?
– Do que está falando? Não estou
magoando você! Vai me dizer que está a fim do
Marcelo agora?
Ela fica muda e acho que a cor some do
meu rosto. Não sei o que dizer. E se ela realmente
estiver a fim do Marcelo, o que eu tenho a ver com
isso?
Malu não se dá ao trabalho de responder e
volta para perto da churrasqueira, onde continua a
conversar como se nada tivesse acontecido. Vejo
que Daniel puxou papo com o Lucas e ambos estão
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enturmados. Respiro aliviada.


– Alice, dá um desconto para a Malu – Cris
pede. – Ela está tentando se encontrar...
– Eu sei disso, mas o Marcelo...
– Você gosta dele?
– Claro que gosto! Ele é meu amigo e está
cada vez mais presente na minha vida, não quero
que ele se machuque. Você sabe como a Malu pode
ser...
– Não é isso o que quero dizer. Você
realmente gosta dele?
Nego com a cabeça, pois parece que as
palavras não querem sair.
– Então os deixe se divertirem. O Marcelo
precisa de diversão assim como você e o Lucas,
entende? Pode não dar em nada, mas pode dar em
alguma coisa. Veja eu e o Daniel, por exemplo.
Mas não sei o que é pior: o Marcelo e a
Malu só se pegarem, como eu e o Lucas, ou
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realmente virarem algo sério, como o Dani e o Cris.


E o que eu tenho a ver com isso?

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Capítulo 24

Quando chegamos a casa, convido Malu


para subir. Meio a contragosto, ela aceita.
– Queria lhe pedir desculpas, não devia ter
falado da maneira como falei... Eu não tenho o
direito de me meter na sua vida. Mas, se o faço, é
pelo seu bem e pelo bem do meu novo amigo, o
Marcelo.
Ela não diz nada, o que me deixa nervosa.

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– De qualquer maneira, não tenho nada a


ver com isso. Ele também é adulto para tomar as
próprias decisões, assim como você. Por isso, peço
desculpas.
Meu estômago se revira ao pensar na
possibilidade de vê-los juntos, mas ignoro.
Malu sorri para mim e sei que tudo está
perdoado. Se há uma qualidade na minha amiga é
não ser rancorosa. Malu possui um coração mole e
perdoa fácil, pelo menos os amigos.
Ela decide dormir em nossa casa e, com
Cris, ficamos conversando até a madrugada,
quando minhas pálpebras já não conseguem ficar
abertas e o pânico de ter que acordar cedo para o
trabalho me assola.
***
Na manhã seguinte, acabo chegando quinze
minutos atrasada e quero morrer. Odeio atrasos.
Mas o doutor Lopes ainda não veio ao escritório,
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para meu alívio.


Passo na sala dele para verificar se os
relatórios estão lá. Júlia cumpriu o prometido.
Sento em minha mesa para iniciar o
trabalho da semana, verificar valores e métricas. As
despesas envolvendo almoços com clientes
continuam altas e vejo que preciso focar nisso. Vou
precisar analisar todos os recibos dos advogados e
encontrar a brecha...
– Ih, Alice. A gente não controlava isso
aqui, não... – comenta Júlia, afobada. – Acho que
você terá de pedir para os próprios advogados lhe
darem uma estimativa.
– Normalmente eles traziam um recibo
qualquer e entregavam para a Júlia – diz Cláudia.
A outra assente, calada.
– Mas, gente, não pode ser assim!
Precisamos das notas fiscais para mandá-las ao
contador... O contador nunca falou nada?
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As duas se entreolham preocupadas. Não,


ele nunca deve ter falado nada mesmo.
Para completar, o balanço patrimonial está
uma zona, muito diferente do mês passado. Quase
como se alguém tivesse mexido nos meus
relatórios...
Júlia.
Sei que é errado levantar falso testemunho,
mas não sou boba. Primeiro, ela é a responsável por
controlar os recibos, exatamente onde está o maior
furo. Segundo, ela ficou de entregar os relatórios e
teve acesso ao meu computador. E se não
modificou apenas ali, mas também nos relatórios
entregues?
Envio um e-mail para o doutor Lopes
informando que preciso verificar os relatórios que
estão em sua mesa, pois aparentemente faltaram
algumas páginas. Ele aceita minhas “desculpas
esfarrapadas” e consigo tempo para analisá-los.
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Dito e feito, os relatórios não são os


mesmos que produzi semana passada. Felizmente
sempre guardo um backup, o que me permite passar
os números corretos para o doutor Lopes e mostrar
a necessidade de realizar um corte de custos não só
em relação aos almoços corporativos, mas em
outras áreas do escritório. Por que a Júlia não quer
esses cortes? Por que quer mostrar uma saúde
financeira que o escritório não tem? O que estaria
tentando encobrir? Milhões de perguntas passam
pela minha cabeça, mas não tenho tempo para
pensar nelas. A reunião com o doutor Lopes e os
advogados sobre as metas da semana iniciará neste
exato instante.
Todos se mostram desconfortáveis em ter
que estimar os gastos com os almoços corporativos
e, também, por serem orientados a entregar a
“temida” nota fiscal. Até mesmo Marcelo, que
achei ser capaz de aceitar numa boa, faz cara feira.
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Aparentemente, os advogados não gostam de


“perder tempo” com “coisas bobas”.
– Não é isso, Alice. É que dá o maior
trabalhão... Quer dizer, é uma mudança de cultura
na verdade, e ninguém gosta de mudar, né? Mas
pode deixar que vou dar o meu melhor! – Marcelo
diz.
Lucas concorda.
Decido pensar num jeito de “desmascarar”
a Júlia, isso se realmente for a culpada. Preciso de
provas mais concretas antes de levar qualquer coisa
para o doutor Lopes e prejudicá-la no trabalho.
Com a cabeça cheia, termino o expediente e
vou para meu encontro com Cris, Daniel e Lucas.
Surpreendo-me por combinarem um encontro duplo
do qual só soube agora. Ainda me impressiono com
a mudança de Lucas.
– Vim buscá-la – ele diz, colocando a cara
para dentro da minha sala. – Já estava na hora de
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resgatar minha princesa ruiva de sua torre de


relatórios e números.
Sorrio. Gosto desse novo Lucas, embora
sua mudança repentina me assuste. Prefiro pensar
que ele apenas se sentiu mais confortável para
revelar o “verdadeiro Lucas” depois da nossa
conversa.
– Estou precisando mesmo de novos ares –
concordo cansada e empurro os papéis.
– Algum problema? – pergunta com o
cenho franzido.
– Nada que eu não possa resolver. – Sorrio
evitando revelar algo comprometedor sobre o
departamento financeiro da empresa. Negócios são
negócios.
– Minha ruiva é ninja mesmo! – Ele sorri
de volta, tascando-me um beijo no meio do
escritório. Por sorte, não há ninguém por perto.
Saímos de mãos dadas para o barzinho
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onde o Daniel trabalha, mas hoje é sua folga.


Sentamos os quatro com iscas de peixe e batatinhas
fritas, tento poupar calorias pedindo um suco de
morango. A aula de zumba que adiantei no almoço
também não faz milagres!
Conversamos sobre a vida profissional, a
faculdade do Daniel, os novos projetos do Cris, a
vontade do Lucas de crescer dentro do escritório e a
minha felicidade como Gerente Financeira, embora
envolva muita responsabilidade. Conversamos
também sobre Malu e Marcelo, ao que Lucas diz:
– Espero que se entendam, formam um
casal bonito.
Fico vermelha e tento disfarçar bebendo
um gole do meu suco.
Passamos, então, a falar sobre nós como
casais, nossas viagens e nossos planos futuros.
Quando percebemos, já está na hora de ir para casa.
Nos despedimos ali mesmo, Cris e eu seguimos
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para o nosso apartamento.


– Não pense que não vi o jeito como você
ficou quando o Lucas comentou sobre a
possibilidade de um certo casal, mas não vou falar
nada... por enquanto.
E, então, vou dormir ansiosa.

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Capítulo 25

Um mês se passou e ainda não consegui


provar a inocência ou a culpa de Júlia. Nada fora do
comum aconteceu e começo a achar que foi obra da
minha cabeça, que errei nos relatórios. Será que
errei mesmo?
– Júlia, estou saindo. Você vai ficar mais
tempo?
– Sim, ainda cobrindo as horas que faltei.
Acredita? – Ela sorri e dá de ombros. – Já estou
finalizando os recibos retroativos, ainda nessa

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semana devem estar com você.


Agradeço e sigo para a saída.
Lucas se despede de mim avisando que
precisará trabalhar até mais tarde, mas que nosso
encontro para amanhã está marcado. Ele está mais
carinhoso e atencioso, até já apareceu um par de
vezes lá em casa. Só não o convidei com mais
frequência porque ainda estou meio nervosa com
essa mudança toda...
Saio do trabalho pensando nisso e dou de
cara com uma cena que eu preferia não ver. Meu
estômago se contorce. Malu está tocando o braço
de Marcelo e enrolando o cabelo com a outra mão.
Ele ri sem jeito, mas continua conversando com
ela. Os dois estão perto da saída, de maneira que
não há como evitar passar por eles.
– Oi, Alice! Tudo bem? – diz Marcelo todo
educado.
– Claro, e com você? – sorrio evasiva.
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– Alice! Não sabia que você ainda estava


aqui... Andava pela vizinhança e passei para
arrastar o Marcelo para um café. Quer ir junto?
– Obrigada pelo convite, mas hoje não
posso. Tenho algumas coisas do trabalho para
fazer...
– E por que está indo para casa? – ela
suspeita.
– Estou com dor de cabeça, vou tomar um
banho quente e continuar as atividades por lá.
– Melhoras para você, Alice – deseja
Marcelo que, desde a nossa ida ao sítio, está mais
distante do que nunca.
Despeço-me deles e sigo para casa.
Chegando lá, o clima não poderia ser pior. Já
escuto gritos antes mesmo de entrar. Não que me
importe com o que os vizinhos vão pensar, mas
Cris e Daniel não são de ter brigas assim. Paro com
a chave na fechadura.
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– Não aguento mais isso, Cris! – reclama


Dani. – Eu não quero ficar escondido!
– Nós não namoramos escondido...
– Eu quero apresentar você para a minha
família, conhecer a sua, poder ir aos locais sem
medo de sermos flagrados... Não podemos nem
andar de mãos dadas na rua, pelo amor de Deus!
– Você sabia disso quando aceitou ficar
comigo. Eu ainda não estou pronto...
– E eu entenderia... se sentisse que algum
dia você estará pronto.
– Como você pode saber?
– Exatamente! Eu não posso. E isso está me
matando! Não consigo lidar com isso, parece que
eu regredi... Eu já saí do armário há muito tempo e
não quero voltar para ele.
– Dani, seja razoável...
– E você sabe que não é só isso... Eu sabia
que estava sendo um estepe para você se recuperar
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do Mateus, mas acho que ainda não o superou.


– Fala baixo! A Alice não pode saber...
– E tem mais essa! Será que alguma parte
da sua vida não é segredo?
Fico chocada e me sinto mal por estar
escutando uma conversa tão íntima. Mas não posso
simplesmente ficar plantada para fora de casa ou
até o Cris vai desconfiar, uma vez que lhe mandei
uma mensagem avisando estar voltando. Faço
barulho com a chave e forço uma tosse alta para
avisar que estou abrindo a porta.
Os dois me recebem com expressões
assustadas, mas sorrio fingindo que não ouvi nada.
– Oi, Cris! Oi, Dani! Tudo bem com vocês?
Eles apenas assentem e murmuram algumas
palavras.
– Bom, vou deixar vocês à vontade porque
estou com uma péssima dor de cabeça e tenho uma
pilha de trabalho a fazer... Acho que mais tarde
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farei uma massa à carbonara light. Alguém se


interessa?
– Obrigado, Alice, mas eu já estava de
saída...
Cris se adianta para segurá-lo, mas Dani
nega com a cabeça.
– A gente conversa em outro momento,
talvez...
E assim termina o namoro do meu querido
amigo Cris. Não consigo parar de pensar em tudo o
que escutei. Como assim se recuperar do Mateus?
O Dani falou, se não entendi errado, como se eles
tivessem alguma coisa no passado...
– Alice... você... você ouviu o que
dizíamos?
– Não, acabei de chegar, na verdade. Eu só
notei que vocês estavam gritando, mas não deu para
distinguir... Nem tentei, né? Desculpa ter entrado
no meio da briga, fiquei meio sem saber o que
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fazer...
– Não tem problema. Acho que eu só
estava querendo me enganar. Quis acreditar que
podia viver normalmente, assim como ele...
– Ele? Ele quem?
Cris parece não me ouvir e avisa que vai se
deitar um pouco. Nunca vi meu amigo tão
deprimido e assumo ser o momento de fazer uma
intervenção. Mando uma mensagem para Malu e
peço que se apresse a vir.

Capítulo 26

Malu corre ao socorro de Cris, e finjo que


nada aconteceu anteriormente. Na realidade, nada
aconteceu mesmo. Ainda tento me convencer disso
quando sentamos no tapete da sala e Cris despeja

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suas angústias sobre o fim do relacionamento,


sobre ainda não estar pronto para se assumir diante
da família e sobre não entender por que Dani não
aceita isso.
– É difícil para ele, Cris. Imagina não poder
namorar livremente com quem você gosta... –
pondera Malu com uma expressão pensativa.
– Mas ele sabia disso desde o começo!
– As pessoas mudam de opinião, Cris.
Somos humanos, temos sentimentos e não somos
estáticos como bonecos de cera. Talvez, no
começo, ele não se importasse ou tivesse a
esperança de que isso mudaria com o tempo... –
reflito.
– Principalmente depois que você se
mudou para cá – acrescenta Malu.
– Sei de tudo isso, mas...
– O Dani teve outros motivos para terminar
com você? – pressiono. Quero tirar essa história
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com o meu irmão a limpo.


– Do que você está falando? – ele pergunta.
– Eu menti. – Abaixo a cabeça,
envergonhada. – Eu ouvi a conversa de vocês mais
cedo e sei que você teve sentimentos pelo meu
irmão...
Ele arregala os olhos e respira fundo.
– Foram sentimentos não correspondidos –
diz finalmente. – Eu acabei me tornando amigo do
seu irmão por conta da faculdade, fui tirar umas
dúvidas, nada demais... Mateus era sempre tão legal
que... eu confundi as coisas. Continuei a ajudá-lo,
principalmente com a vinda do bebê, sem esperar
nada em troca, mas...
– Dói – completa Malu. – Dói não ser
correspondido, né? E mesmo assim ficar por perto.
Cris assente. Meu coração se aperta. Ele
não pode ficar para sempre preso a um amor
platônico! Terminar o relacionamento com alguém
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com quem realmente tem chances de ser feliz por


um heterossexual que logo terá um filho não é o
melhor dos cenários.
Durante o resto da noite, enquanto
assistimos à Netflix, ficamos nos lamentando e
tomando sorvete. Optei por um frozen yogurt por
ser mais light. Troca inteligente, né? É isso o que
minha mãe me orienta a fazer, mas não me sinto
nem um grama mais magra...
***
Chego ao escritório preparada para finalizar
a questão dos recibos retroativos.
– Ainda não consegui concluir – diz Júlia,
visivelmente apreensiva.
– Tudo bem, vamos fazer isso juntas.
– Não precisa, Alice. Você tem tanta coisa
para fazer...
– Mas isso é prioridade!
Vou até a mesa dela e não encontro nada.
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Ergo uma sobrancelha em sinal interrogativo e Júlia


apenas balbucia desculpas.
– Desembucha, Júlia, o futuro financeiro do
escritório depende disso!
– Eu-eu perdi...
– Como assim perdeu?
– Eu perdi os recibos... Eles estavam aqui
ontem, não sei o que aconteceu...
Bufo irritada. Não tenho tempo para isso
agora, o cerco está cada vez mais apertado com os
empréstimos no banco e precisamos enxugar os
valores de alguma maneira.
– Tudo bem, tenho os recibos digitalizados
– respondo.
Júlia fica branca feito cera.
– Deixe-me fazer isso sozinha...
– Acho melhor você ir para casa, Júlia – diz
Cláudia, que só então entra na conversa. – Você
parece não estar passando bem.
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Ela concorda e pega a bolsa. Mal sai da sala


e a vejo falar ao celular.
– Você não acha que a Júlia está estranha?
– questiono.
– Agora que você comentou, acho sim... –
diz Cláudia, pensativa. – Ela anda mais ansiosa,
agitada...
O dia de trabalho é intenso e, finalmente,
consigo concluir os recibos. Agora só faltam as
análises, mas meu cérebro exausto já não consegue
mais funcionar.
Decido continuar amanhã.
***
Quando volto para o escritório na manhã
seguinte, no entanto, todos os arquivos
digitalizados não estão mais em minha pasta de
documentos. E, então, a realidade vem: alguém
mexeu em meu computador. Alguém não quer que
eu descubra os valores desses recibos. E isso só
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pode significar uma coisa: estão roubando o doutor


Lopes de pouquinho em pouquinho através dos
valores de almoços e outras regalias oferecidas
para os clientes, uma forma fácil de desviar
dinheiro sem que ninguém perceba. O que essa
pessoa não contava é que, sendo uma das contas
mais exorbitantes, eu a analisaria com mais afinco.
Normalmente pensaria que se trata de um dos
advogados, mas o comportamento tão estranho de
Júlia...
Abro minha caixa de e-mail e levo um
susto:

Pare de procurar o que não quero que você ache


ou vai se arrepender.

A conta de onde provém o e-mail é da


Júlia. Como alguém pode me ameaçar e ainda
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colocar seu nome? Não faz sentido. Apesar de os


recibos terem sumido, Júlia é tão novinha que pode
nem notar ter sido roubada... Ela pode acreditar tê-
los perdido, mas não ser este o caso. Os relatórios
podem ter sido modificados por outra pessoa depois
que ela os deixou sobre a mesa do doutor Lopes. A
verdade é que o ladrão pode ser qualquer pessoa
desse escritório. E eu não tenho ideia de como
descobri-lo ou em quem confiar, com exceção de
Lucas e Marcelo.
Procuro por doutor Lopes, mas me avisam
que estará em reunião durante todo o dia. Por isso,
ao fim do expediente, só posso esperar
ansiosamente a oportunidade de lhe contar o que
está acontecendo na manhã seguinte.
Tudo o que quero é alguém para conversar,
então chamo Cris e Malu para saírem. Não posso
lhes dizer o que está havendo no escritório, pois o
assunto é confidencial, mas posso ao menos me
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distrair.
Entretanto aquela simples mensagem não
sai da minha cabeça. A ameaça conseguiu
alimentar a ansiedade sempre adormecida em mim.

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Capítulo 27

No barzinho encontramos Lucas, Marcelo e


outros advogados da Lopes & Associados em um
happy hour após uma reunião das grandes. Logo os
dois se unem à nossa mesa e ficamos conversando
sobre amenidades. Acabo não conseguindo falar
sobre o escritório, pois o tal Henrique sobe ao palco
assim que penso em abrir a boca.
– Essa música é para uma amiga querida,
porque é a cara dela.
Henrique sorri para Malu, sarcástico, e

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começa a cantar “Blank Space” de Taylor Swift em


um cover acústico.
A voz dele é bela e adoro a música, mas
quando penso na letra...

Got a long list of ex lovers


They'll tell you I'm insane
'Cause, you know, I love the players
And you love the game

O rosto de Malu está tão vermelho que


parece prestes a entrar em combustão. Despeço-me
de Lucas com um beijo suave e aceno para
Marcelo. Cris me acompanha e tiramos Malu dali
rapidinho.
– O que aconteceu ali dentro?! – indaga
Cris.
Malu começa a soluçar dentro do táxi a
caminho de casa e, apenas quando estamos sãos e

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salvos no nosso apartamento, desata a falar:


– Finalmente tomei coragem e confessei
tudo a ele. Eu disse que gostava dele, que fui, sim,
uma idiota com o primo dele e não, não me lembro
da história. Nem me lembro do primo dele! E ele
ficou ainda mais “pê” da vida, disse que fiz o primo
dele terminar com a namorada para ficar comigo e,
depois de uns dias, o larguei.
– Malu, o que você fez não foi certo,
admito – digo. – Mas se o primo quis terminar com
a namorada, a culpa não é sua.
– Eu joguei sujo... Eu... eu chantageei ele.
Disse que, se não a largasse, contaria que já
tínhamos ficado juntos e, óbvio, ela acreditaria em
mim por ser insegura. Mas ele não cedeu. Então fiz
exatamente isso. E ele, que confiava no amor da
menina, se ferrou bonito. Ela acreditou em mim. Eu
o “ataquei” quando estava vulnerável. E depois o
larguei, como sempre faço. Só sei que o primo, o
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Fernando, afundou em depressão, tentou se matar e,


agora, está finalmente com a vida reconstruída
depois de todos esses anos... Henrique me odeia,
porque Fernando é como um irmão. Ele não quer
me ver nem pintada de ouro. Ele aposta que esse é
só mais um dos meus truques.
Senti um baque no estômago. Teria sido
assim com Gustavo? Não entendo por que pensei
nisso agora, mas não posso evitar.
– Não vá por aí... – Cris sussurra, notando
meu conflito. – Gustavo era horrível. Ele teria
traído você independentemente de ser chantageado
ou não, porque nunca teve bom caráter. E isso não
importa.
Nós duas olhamos para ele.
– Malu, o que você fez foi horrível – meu
amigo diz. – Não tem desculpa e, sinceramente, não
sei se tem perdão. Mas você terá que tentar
consertar tudo isso. Terá que se redimir com o
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primo, com a menina, com o Henrique e com todo


mundo envolvido nessa história.
– Por que você fez isso? – consigo
perguntar.
– Raiva.
– De quem?
– Do amor. Foi quando descobri que minha
mãe traía meu pai e, então, todo aquele desfile de
homens começou a passar pela minha vida.
– Por que você não foi morar com o seu
pai?
– Ele não me quis. – Ela sorri, amarga. –
Preferiu começar uma vida nova longe de mim.
Disse que eu lembrava muito a minha mãe e não
conseguiria me manter por perto. Então fiz
exatamente igual a minha mãe, como ele disse.
– Por que você nunca nos contou isso?
– Eu tinha apenas quinze anos. Foi na
semana em que você tirou as amígdalas, Alice, e
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ficou meio incomunicável...


– Eu me lembro de você contar sobre o
divórcio na outra semana, você parecia tão...
madura.
– Tão normal – diz Cris.
– Eu mudei desde aquele dia... Jurei que
não choraria por homem nenhum, não choraria pelo
meu pai. E se ele me achava igual a minha mãe, eu
seria aquela a fazer todos os homens chorarem.
Tornei-me o que mais odeio.
– Por isso você mal fala com a sua mãe?
Malu assente de leve. Minha cabeça dá um
nó com tanta informação dessa novela mexicana. E
eu achando que só a minha família tinha dramas!
– Quero lhe pedir desculpas, Alice... Nunca
tive a intenção de ficar com o Marcelo, e nunca
quis fazê-lo sofrer. Realmente o achei divertido,
como amigo, mas não quis magoar você. Eu não
tinha percebido...
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– Percebido o quê?
– Que você gosta dele.
– Quem disse que gosto dele?
Cris me olha com desdém e Malu ergue as
sobrancelhas, ainda chorosa.
– Alice, não adianta mais esconder.
Depois de Malu chorar até a exaustão e
prometermos que a acompanharíamos até o tal
Fernando para pedir perdão, ela finalmente dormiu.
– Não consigo acreditar que a Malu
guardou isso por todos esses anos... – sussurra Cris
observando-a ressonar.
– Nem eu.
– O segredo realmente pode acabar com
uma pessoa.
Sei que ele está falando mais de si do que
de mim, mas não consigo parar de pensar que
talvez eu também guarde um segredo. E o segredo
é que eu gosto do Marcelo. De verdade.
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Capítulo 28

Com essa revelação, não consigo mais


esconder. Não consigo esconder de mim mesma o
fato de que gosto de uma pessoa e estou com outra.
Malu e Cris, no dia seguinte, me estimulam a
contar a verdade. E esse estímulo me leva a
combinar um café com Lucas no final do
expediente. Se realmente vou me declarar para o
Marcelo, preciso estar livre.
Começo meu trabalho com reuniões via

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Skype com alguns fornecedores para prorrogar


prazos de pagamento. Minha manhã passa voando.
Não consegui contato com o doutor Lopes, pois a
agenda dele parece pior do que a minha.
Antes de sair para o almoço, ao abrir meus
arquivos, recebo um aviso informando que meu
computador foi hackeado. Junto dele, a mensagem:

Peça demissão ou vai se arrepender!

A ameaça está escancarada na tela do meu


computador e fico nervosa. Júlia não veio trabalhar
de novo e começo a pensar se realmente foi ela
quem fez tudo isso ou se, justamente por saber o
autor, decidiu não vir. A ausência de notícias é
ainda pior, pois não sei quem pode ser o culpado.
Vou para o almoço nervosa e prestes a ter
uma crise de pânico. Ligo para Cris, que vem ao
meu encontro com Malu em seu encalço, e conto a
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verdade:
– Estou recebendo ameaças anônimas por
causa do trabalho que venho fazendo no
escritório...
– Como assim, amiga? – questiona Malu.
– Primeiro vi que precisávamos reduzir
custos, depois percebi furos, como a falta da
entrega de notas fiscais dos almoços corporativos...
E então, quando finalmente consegui recolhê-las,
percebi a existência de adulteração entre as notas
recebidas e os valores lançados em nosso controle
de caixa. Alguém está utilizando esses almoços
para se dar bem. Infelizmente pode ser tanto
alguém do setor financeiro quanto minhas colegas
Cláudia e Júlia, ou qualquer outra pessoa do
escritório. A ameaça de hoje ocorreu através da
invasão ao meu sistema.
– Deve ser alguém que manje de
computação, não? Essa ameaça parece ser coisa de
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hacker – pondera Cris.


Meus amigos me acalmam e finalmente
consigo pensar com clareza. Não posso me deixar
abalar, preciso esclarecer essa situação.
Após o meio-dia, consigo uma brecha na
agenda no doutor Lopes e despejo tudo sobre os
relatórios e as ameaças anônimas. Esclareço não
saber quem pode ser o culpado, afinal, não quero
condenar ninguém sem provas.
– Alice, peço desculpas por não ter
procurado você antes. Eu notei que esses desvios
vinham acontecendo, só não tinha provas de quem
estava envolvido. – Ele passa as mãos pelos olhos,
cansado. – A conta não fecha, assim como você
mesma constatou.
Suspiro, sinto-me aliviada por ele acreditar
em mim.
– Pode deixar que cuidarei disso
pessoalmente, Alice! Vamos achar o culpado!
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– Obrigada, doutor Lopes...


– E como você está? Deve ter sido
assustador! Você devia ter vindo falar comigo mais
cedo... Essa é uma questão séria, poderia me
interromper sem problemas. Pode sempre falar
comigo, Alice.
– Eu sei. Sinceramente, a princípio achei
que fiz algo errado nos relatórios, mas as
evidências estão cada vez mais claras...
– Você precisa de uns dias de folga? Isso
deve ter sido um trauma. Ser ameaça, mesmo que
virtualmente...
– Eu não quero comprometer o trabalho. E
já estamos na sexta-feira, o final de semana será
suficiente para mim, doutor Lopes.
– Você quem sabe. Se precisar de alguns
dias, estará liberada. A saúde e sua segurança
devem vir em primeiro lugar. Acho que você deve
trabalhar via home office por um tempo, apenas por
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precaução. Vou tomar medidas urgentes enquanto


isso. Todo cuidado é pouco.
O seu tom alerta me assusta um pouco e
percebo que devo levar mais a sério essa ameaça.
Ele pensa em instalar câmeras, mas o orçamento
realmente está curto. Para me tranquilizar, talvez,
diz que conversará com um amigo que já atuou na
área de segurança e, principalmente, na polícia. É
alguém que hoje atua como investigador particular.
Seu semblante é exausto, esse ano não está
sendo nada fácil para seu escritório. E agora saber
que alguém está desviando dinheiro... O doutor
Lopes provavelmente está apenas se controlando
para não se desmantelar à minha frente, uma notícia
dessas não deve ser simples de aceitar.
Ao término do expediente, finalmente me
encontro com Lucas.
– Oi, gatinha! – Ele tenta me beijar nos
lábios, mas desvio educadamente e isso o faz
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franzir o cenho. – O que aconteceu?


– Precisamos conversar.
Sentamos e pedimos um café enquanto
explico:
– Você é um cara legal, Lucas. E obrigada
por ter se esforçado em ser uma pessoa confiável
em minha vida. Você mudou muito nos últimos
tempos e espero que não pare essas mudanças por
minha causa. – Remexo-me desconfortavelmente
na cadeira.
– O que você quer dizer com isso?
– Que, infelizmente, não posso mais
continuar assim. Eu... eu...
– Tem outra pessoa?
– Não exatamente.
– Ou tem, ou não tem.
– É mais complicado que isso. Sim, acho
que gosto de outra pessoa, mas esse também não é
todo o motivo...
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– Ah, é? E quais são os outros motivos?


Percebo que Lucas está se alterando e fico
com falta de ar. Não posso ter uma crise agora. Não
na frente dele, não durante o nosso “término”.
– Não acho que a gente combine, Lucas.
Foi divertido, nos esforçamos, mas foi algo de
momento, sabe?
– Não foi para mim.
Sou atingida pela surpresa. Lucas sempre é
de momento, ele só sabe ser assim. Ou me enganei?
– Não acredito que estou aqui ouvindo isso!
Eu podia ter qualquer garota, sabia? Ou melhor,
poderia ter uma mulher de verdade! Mas, entre
todas elas, escolhi você. Não me importei com seus
quilinhos a mais, com você estar meio biruta, com
nada disso... Acho que você deveria ser mais grata
a mim.
Fico chocada com essas revelações. Sinto
um peso na boca do estômago.
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– Grata a você? – Não posso evitar repetir


as suas palavras.
– Ficou surda agora, foi? Não aguento mais
essa conversa. – Ele se levanta exaltado. – Sorte a
sua que não bato em mulher! E tem mais: a conta
fica com você, pois não vou pagar por essa merda
de café.
As pessoas ao meu redor observam a nossa
discussão e desejo ser engolida pelo chão. Sinto
que posso respirar apenas quando o vejo ir embora.
É assim que descubro a verdadeira face de
Lucas. E ela é horrorosa. Não consigo evitar me
sentir triste. Gustavo explorou meu lado romântico
e distorceu meu conceito de amor. Com seu
egoísmo me fez crer que ser uma namorada decente
implicava aceitar calada qualquer decisão. Lucas,
agora, explorou o que sobrou de uma mulher sem
grandes expectativas, mas animada por voltar a
descobrir o que a vida poderia oferecer. E isso dói.
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Parece que entreguei partes de mim a quem nunca


mereceu. Fui humilhada por ambos, desrespeitada
de um jeito difícil de curar. Nunca imaginei que
Lucas fosse me agredir assim... Em pensar que
temia ferir os sentimentos dele!
– Talvez ele não quisesse dizer nada disso,
amiga... – Malu me consola mais tarde, em meu
apartamento. – Os homens conseguem ser uns
grossos quando querem, quando se sentem
deixados de lado...
– Eu sou homem e não faço isso – reclama
Cris.
– Você é diferente.
– Só porque sou gay não significa que não
sou homem, Malu.
– Eu sei! Eu quis dizer que você não é um
troglodita...
Cris bufa, mas não insiste.
– Eu só queria tirar essa humilhação do
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meu corpo. Sinto-me feia, gorda, louca e imbecil.


– Ele é o imbecil! E você não é feia, muito
menos louca – corrige Cris. – E não, você não é um
pau de virar tripa, e daí? Isso não precisa ser ruim.
Você deve aprender a amar suas curvas.
Abraço meus amigos com força. É tão bom
ter pessoas em quem posso confiar no meio dessa
confusão profissional e amorosa em que me
encontro.

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Capítulo 29

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Trabalho durante toda a semana posterior


via home office, mas ainda não há notícias do
culpado. Fico feliz por pelo menos não ter que
enfrentar Lucas por esses dias.
Por outro lado, não vejo Marcelo. E ele
nem sequer me mandou uma mensagem
perguntando como estou ou o que aconteceu.
Malu diz que, na verdade, ele viajou a
trabalho. Ela está sabendo mais do que eu e fico
com ciúmes, mesmo sem haver motivo para isso.
Minha amiga continua depressiva por causa de
Henrique.
Cris, por sua vez, não me conta nada sobre
seus dramas amorosos ou a inexistência deles.
Quando chega a próxima segunda-feira,
volto a trabalhar no escritório porque não aguento
mais ficar em casa. Contudo arrependo-me
brutalmente. O clima está pesadíssimo, pois todos
estão ouvindo rumores de que há algo muito errado
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ocorrendo no setor financeiro e as opiniões estão


divididas. Alguns acreditam que estou criando
caso, outros já se mostram preocupados. Mas, no
topo disso, existe Lucas.
Ele está ríspido comigo e me trata com
frieza. Não encontra meu olhar e me ignora como
se fôssemos dois adolescentes. Não me importo,
desde que não atrapalhe meu trabalho.
***
No meio da semana, quando estamos
ocupados com o expediente, o investigador e
doutor Lopes chamam Júlia para conversar no
escritório. Acho estranho o fato de ela
simplesmente aceitar aparecer, pois soube que não
retornou às atividades desde que a vi pela última
vez. Após alguns minutos, o computador dela é
levado até a sala do doutor Lopes. Sinto minha
curiosidade e ansiedade em nível máximo. Estariam
conferindo os arquivos?
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Por fim, Júlia passa pelo corredor com o


cenho franzido e a postura rígida. Ela segue
diretamente para a saída. No trajeto, seu olhar
encontra o meu e percebo o ódio nele cintilar.
Então, ela era mesmo a culpada? Foi ela quem me
enviou as ameaças?
A novidade logo circula pelo escritório:
Júlia foi demitida. Ela partiu para não mais voltar.
Todos ficamos tão atordoados que não sabemos o
que fazer pelo resto do dia. Muitos conjecturam a
respeito, mas me mantenho alheia por ainda ser
difícil de acreditar. Ela trabalhou ao meu lado,
sempre com um sorriso fácil. Sua demissão é a
comprovação de seu envolvimento com a
adulteração do controle das notas fiscais. Cláudia
está ainda mais chocada, pois nunca suspeitou da
colega. Eu até tento confortá-la.
Sentindo-me mais confiante em minha
segurança, procuro por Marcelo para conversar.
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Quero finalmente falar sobre meus sentimentos.


Durante as últimas semanas limitei-me a viver essa
loucura no escritório com a suspeita de a Júlia ser a
culpada, com o golpe, com o desvio de dinheiro e,
claro, com o término de meu envolvimento com
Lucas...
Entretanto não o encontro em lugar
nenhum em meio à confusão que se tornou a saída
do escritório. O investigador exigiu o encerramento
das atividades para conversar melhor com o doutor
Lopes e somos avisados de que ouvirão cada um de
nós em breve.
Nos dias que se seguem, o investigador
chama cada funcionário para colher mais provas e
evidências. Depoimentos são dados, sussurros soam
sobre a vida de Júlia e o que a motivou a fazer isso,
além de estarmos com muito trabalho pela frente
para cobrir o rombo financeiro. Mais corte de
custos, mais recibos e notas fiscais a serem
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procurados.
Cláudia e eu ficamos tão atoladas de
serviço que mal consigo falar com alguém no mês
que passa. Meus amigos ficam preocupados, pois
estou trabalhando demais. Eles temem por minha
saúde, principalmente depois do horror que as
ameaças de Júlia me provocaram. Nem mesmo
assim acho um tempo para relaxar. De alguma
maneira sinto-me culpada pelo que está
acontecendo, como se fosse meu dever ter
percebido, ter falado alguma coisa, ter evitado essa
montanha de problemas... No topo das minhas
decepções, no entanto, encontram-se Marcelo e o
fato de ele estar me ignorando.
Quando Cláudia e eu finalmente achamos
estar chegando a algum lugar, percebemos que as
informações de Júlia estão tão desconexas que
ficamos desanimadas. Decidimos dar uma pausa e
continuar no dia seguinte, de novo.
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– Antes de ir, será que você pode pegar os


relatórios com o Lucas? – Cláudia me pede. – Ele
ainda não entregou.
Suspiro profundamente. Tenho evitado
falar com ele desde o rompimento, mas precisamos
ser profissionais. Lá vou eu.

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Capítulo 30

Não queria enfrentar Lucas nesse momento,


depois de tudo terminar de forma tão humilhante,
mas realmente devo pensar profissionalmente.
Entro em sua sala.
– Boa tarde – digo com o máximo de
dignidade que consigo reunir, mas meu
cumprimento não é respondido.
Bufo contrariada.
– Lucas, será que podemos conversar como
pessoas civilizadas?
Ele continua me ignorando, então decido ir
direto ao ponto:
– Realmente preciso dos relatórios de
fechamento de contratos desse mês.
– Estão na minha mesa. – Ele aponta com a

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cabeça como se eu fosse sua secretária particular


ou, pior, sua escrava.
Acho o cúmulo ele nem mesmo se dignar a
me entregar os papéis, mas não falo nada quando os
apanho.
– Ótimo, muito obrigada pela sua
colaboração – digo irônica. – Isso me ajudará a
resolver os problemas financeiros do escritório.
Vou para minha sala e fico trabalhando até
não ter mais um feixe de sol entrando pela janela.
Já passa das 20h quando recebo uma mensagem de
Cris: “Preciso de você. Tive um dia muito difícil!”.
Respondo preocupada: “O que aconteceu?”. Meu
amigo não demora em digitar: “Me assumi para a
minha família e, como você pode esperar, o
resultado não foi muito bom. Podemos nos
encontrar para chorar as mágoas? A Malu já
topou”. Levanto-me e começo a organizar as coisas
enquanto retorno: “Podemos. Também estou
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precisando conversar”. Ele pergunta: “Sobre o


quê?”. Até paro meus movimentos e suspiro,
audivelmente, antes de simplesmente escrever:
“Sobre o Lucas, sobre o trabalho, sobre tudo na
verdade...”.
Quando pego a bolsa e estou prestes a sair,
Lucas aparece na soleira da minha porta.
– Desculpe, Alice. – Seu semblante parece
sincero, mas não quero me enganar de novo. Tudo
o que ele me disse ainda está entalado em minha
garganta. – Eu fui e estou sendo um idiota. Fiquei
magoado e, com toda a pressão no escritório,
acabei descontando em você... Eu não quis dizer
nada daquilo. Foi o antigo Lucas falando, não eu. A
verdade é que sou apaixonado por você e acabei
ficando meio maluco de ciúme por achar que já
estava com outra pessoa...
– Você me disse coisas horríveis, Lucas. E
não acho que agora seja o momento apropriado
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para falarmos disso...


– Eu sei, eu sei. Apenas não consigo mais
segurar... Eu acabei até me aconselhando com o
Marcelo, imagine só!
Não quero ouvir o que Lucas tem a falar,
não quero ter essa conversa com ele, mas não
consigo evitar ficar interessada no que Marcelo lhe
disse. Afinal, nunca mais conversamos direito e
parece que tenho sido evitada de propósito sem
motivo algum. Sinto-me ridícula tendo que recorrer
ao Lucas por notícias, mas é algo mais forte do que
eu.
– O Marcelo? – questiono desejando não
parecer interessada demais. – E o que ele disse?
– Que, se eu te amo, tenho que deixar você
ser feliz mesmo que seja com outra pessoa.
– Outra pessoa?
– É, contei para ele que você está com outra
pessoa.
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Quero morrer. Não acredito que Lucas


disse isso ao Marcelo! Será que esse é o motivo do
seu sumiço? Tento não criar esperança, mas talvez
Marcelo realmente nutrisse sentimentos além da
amizade por mim e tenha ficado chateado por eu
estar com outra pessoa, mesmo após o Lucas.
Talvez ele esteja cansado de me esperar...
Talvez eu tenha perdido minha chance...
Esse pensamento me entristece.
Quando finalmente me abro para o amor,
descubro que estou fazendo tudo às avessas e que
minha fase de dedo podre pode chegar ao fim, o
Lucas acaba com todas as minhas possibilidades.
Mesmo se eu desfizer o mal-entendido, quem sabe
já não seja tarde demais? Não posso culpar o Lucas
por tudo, eu sei, devo assumir a minha
responsabilidade em ter levado o relacionamento
com ele por mais tempo do que deveria, mesmo
quando eu já tinha sentimentos pelo Marcelo.
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Minha cabeça dá um nó e não entendo


metade das coisas que Lucas diz, até ouvi-lo
mencionar o seguinte:
– Enfim, ficamos conversando enquanto ele
dava um jeito no meu computador e...
– Dava um jeito no seu computador?
Sei que pareço uma idiota repetindo as
frases dele, mas é muita informação para processar.
Preciso saber o máximo possível para planejar
como vou chegar até o Marcelo e finalmente me
declarar. Tenho vontade de sair correndo e fazer
isso hoje mesmo, mas o Cris precisa de mim e o
Lucas não para de tagarelar:
– É, o Marcelo é fera em computação. Meio
hacker, sabe?
As palavras de Cris voltam à minha cabeça:
“Deve ser alguém que manje de computação, não?
Essa ameaça parece ser coisa de hacker”.
Não podia ser... Será que Júlia contou com
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um comparsa o tempo todo? Será que Marcelo


estava envolvido e ela apenas o ajudou a encobrir,
pois trabalhava no setor financeiro? Ele seria o
cabeça por trás de tudo? Sinto vontade de ser
engolida e começo a ter falta de ar.
– Lucas, eu... eu preciso ir.
– Estou perdoado?
– Sim, você está perdoado!
E saio correndo porta afora. Preciso de ar.
Preciso pensar...
– Oi, Alice! – Justamente Marcelo é quem
me chama no saguão do edifício. – Quanto tempo!
Ando tão atolado de coisas que não consegui mais
parar para a gente conversar...
– E eu nem quero conversar com você! –
exclamo com raiva. – Seu dissimulado! Como você
foi capaz de fazer isso, Marcelo? Como?
– Do que você está falando, Alice?
– Eu descobri tudo, Marcelo. Eu sei que
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você está desviando dinheiro junto com a Júlia e


não adianta fugir, porque eu já avisei o doutor
Lopes – minto.
Sou louca por me arriscar a dizer que estou
ciente do que fez, mas minhas ações são
conduzidas pelo coração partido mais do que por
qualquer outra coisa.
O rosto de Marcelo empalidece, mas não
espero pela resposta. Cansei de ouvir mais
mentiras.
Talvez – com certeza – minha maré de
dedo podre não tenha acabado, afinal. Talvez eu só
saiba escolher homens errados e, agora, posso
também acrescentar “criminosos” para a minha
lista.

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Capítulo 31

Chego a casa esbaforida. Malu e Cris


degustam um vinho enquanto aguardam a pizza.

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Cris está com a cara inchada de tanto chorar. Nunca


vi meu amigo tão abalado assim. Ele nunca se
mostrou muito preocupado com sua situação diante
da família, contudo sempre soube que era uma
fachada apenas para não se machucar.
Uma família tão tradicional como a dele
muito provavelmente teria uma reação negativa.
Mesmo assim, eu tinha esperança de que pelo
menos a mãe de Cris fosse mais compreensiva. Eles
sempre foram tão ligados e imagino a decepção
dele.
Abraço-o bem apertado e ele chora mais
um pouco. Malu se joga no abraço também e
ficamos ali até finalmente tocar o interfone, nossa
pizza de calabresa chegou (peito de peru para mim,
mais light).
Faço uma salada enquanto Cris relata para
nós o ocorrido.
– Depois que o Dani terminou comigo,
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parei para pensar... Por mais que eu tivesse avisado


desde o início que nunca contaria para a minha
família, não era justo com ele. E sabe o principal?
Não era justo comigo. Não aguento viver
escondido. Conheço pessoas que vivem assim e,
pior, nenhum dos amigos sabe, ninguém... Até elas
têm medo de admitir, isso é horrível. Eu sempre
tive vocês, o que facilitou me manter firme, mas
mesmo assim...
– Estava na hora – completou Malu.
Eu entendi o que minha amiga queria dizer.
Assim como estava na hora de ela finalmente
assumir seus problemas com a mãe, com o pai e
com os homens em geral, estava na hora de Cris
enfrentar os seus medos. E os meus? Quando os
enfrentarei? Quando eu finalmente deixarei de lado
meu medo de ser imperfeita, meu medo de crescer?
– E como foi? – questiono para afastar
meus pensamentos.
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– Eu fui até a casa dos meus pais e


simplesmente saí contando. Expliquei que tentei,
que lutei contra tudo isso, mas que nunca me senti
completo e, então, percebi que era homossexual.
Expliquei que não era uma escolha, simplesmente
faz parte de quem sou e realmente não há motivos
para eu lutar contra isso. Meu pai disse que é um
absurdo, que não criou filho para ser veado e minha
mãe só chorava, não disse nada... Eu falei que
entendia ser um susto, pois eu mesmo demorei
muito tempo para me aceitar e sabia que eles
precisariam de um tempo também. Mas deixei claro
que não aguentava mais esconder essa parte de
mim como se fosse algo errado, porque não é.
Nenhuma de nós ousou falar quando Cris
pausou para respirar.
– Mas meu pai disse que nunca aceitará,
que a partir de hoje não sou mais seu filho e espera
que eu não saia por aí sendo promíscuo para não
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cair na boca do povo e, principalmente, do pessoal


da igreja... Eu decidi que não vou mais frequentar a
igreja com eles, mas sei que Deus me fez assim e
me ama do jeito que sou. Não preciso de uma igreja
para provar isso. Minha mãe ainda quis falar sobre
uma cura, sobre o filho da vizinha que estava com
esse problema e melhorou, sobre a possibilidade de
eu virar pastor e oferecer minha vida a Deus...
Malu abriu a boca e eu arregalei os olhos.
Era uma visão muito tradicional mesmo e, por mais
que eu não pudesse culpar seus pais por serem tão
intolerantes, por suas crenças e tudo mais, sentia-
me revirada do avesso e com raiva. Não era
qualquer pessoa que estava diante deles, era seu
filho, a quem deveriam amar não importa qual
fosse o motivo ou a situação. Que triste deve ter
sido Cris reconhecer que quem deveria amá-lo
escolheu tratá-lo com tanto preconceito. Eles
deveriam, pelo menos, ter compaixão.
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– Parece que só porque sou gay nada mais


em mim importa, nem minha carreira de arquiteto,
que conquistei com tanta luta, tanta batalha, nem
todos os anos em que escondi quem sou para não os
magoar... Isso nunca foi suficiente para o meu pai,
e minha mãe diz amém para tudo o que ele fala.
Acho que, no fundo, ele sabia existir algo em mim
que não aprovava. Por isso não conseguia me amar
por completo. Agora ele sabe o que é. Sempre fui
diferente...
– Não tem problema ser diferente, Cris –
digo com firmeza. – As pessoas só têm medo do
diferente.
– Eu estou cansado de ter medo.
– E eu fico feliz por isso. Mas eles estão
deixando o medo cegá-los, você mesmo já passou
por isso, como disse...
– É! Tenho certeza de que logo, logo eles
vão se arrepender e vocês serão uma família de
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novo – acrescenta Malu.


– Vocês não viram a fúria nos olhos do
meu pai, acho que ele realmente nunca vai aceitar...
Admito que ainda tenho um pouco de esperança
pela minha mãe, mas não quero mais falar sobre
isso agora...
– E o Dani? – questiona Malu. – Se esse era
o problema, agora não é mais.
Ela sorri, mas Cris não.
– Não é só isso, não é? – indago. Eu sei que
há mais coisa, só não posso dizer porque cabe ao
meu amigo trazer o assunto à tona. – Não é só por
isso que vocês terminaram.
– Não... – Ele abaixa a cabeça,
envergonhado. – Nós terminamos porque eu
gostava de outra pessoa. E ainda gosto.
– QUEM? – pergunta Malu, embora ela
saiba tanto quanto eu o nome a ser revelado.
– Mateus, o irmão da Alice.
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Nós fingimos um certo choque para


despistar. Cris está tão absorto em seu próprio
sofrimento que nem percebe nossa dramatização.
Eu realmente sabia que meu amigo ainda gostava
do meu irmão, mas estou bastante curiosa para
saber se Mateus correspondeu ao seu sentimento.
– Mas como assim? Vocês nem eram muito
amigos... Ele sabe disso? Ele também gosta de
você? Mas ele não é hétero? – Malu bombardeira
Cris com perguntas e ambos ficamos zonzos. Eu
também anseio saber as respostas.
– Nós ficamos amigos, sim. Nós dois
somos arquitetos, acabamos envolvidos em alguns
projetos juntos e uma coisa levou a outra... Eu me
apaixonei.
– E ele? – Obrigada, Malu, por ser tão
curiosa.
– Não cabe a mim dizer, Malu. Essa
história não pertence só a mim, sabe? – E Cris me
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olha com significância.


Malu entende e não questiona mais.
– O Cris disse que você também tinha
notícias bombásticas – ela troca de assunto. – O
que aconteceu?
– Acho que Marcelo foi cúmplice de Júlia
nessa coisa toda do escritório...
Os dois ficam boquiabertos e me enchem
de perguntas.
– Por que você acha isso?
– O que você descobriu?
– Lucas veio se desculpar comigo e, no
meio do seu discurso, comentou o quanto Marcelo
o ajudou em um problema no computador. Ele
disse que Marcelo é “meio hacker” e
imediatamente lembrei do que você mencionou,
Cris.
– Isso não é suficiente para provar que ele
teve algo a ver com o desvio.
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– Mas é meio suspeito – acrescenta Malu.


Cris a cutuca, mas eu intervenho:
– É verdade, Cris. É tudo confuso e
suspeito, não sei o que fazer. Não tenho provas,
mas não posso me declarar para alguém que não
tenho certeza se é ou não capaz de fazer isso.
– Você ia realmente se declarar? – Malu
sussurra. – Ah, amiga... eu sinto muito.
Só então me permito chorar. Choro pela
humilhação que sofri de Gustavo, de Lucas... Choro
por todo o rolo amoroso dos meus pais e por todas
as mudanças na minha vida. Choro porque estou
cansada de ser sempre forte, de buscar estar no
controle de tudo porque nada pode sair do lugar. Eu
sou imperfeita e tenho medo de várias coisas, mas o
medo não pode me paralisar. A minha ansiedade e
crise de pânico não podem me paralisar. Eu posso
ter uma vida normal, mesmo com esses obstáculos
no meu caminho. Sei que posso.
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Meu único real problema, que preciso


enfrentar assim como meus amigos, é me permitir
ir além da superfície. Eu sempre quero me proteger
e, por isso, não aprofundo minhas relações, não
confio nas pessoas, não divido meus segredos...
Quero carregar o mundo nas costas e isso me deixa
exausta.
Está na hora de enfrentar meus problemas.
De todos nós enfrentarmos, inclusive Mateus. Por
isso, depois que Malu vai embora e Cris se recolhe
em seu quarto, envio uma mensagem ao meu
irmão: “Mateus, você é gay?”.

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Capítulo 32

Espero a resposta, mas ela não chega. Vou


dormir depois das quatro da manhã, ainda com essa
questão em minha mente. Quando acordo, Cris já
saiu para o trabalho e a campainha toca enquanto
termino de lavar a louça do café. Ainda desfruto de
alguns minutos antes de ir para o escritório, pois
tenho horas extras a haver.
– Oi – cumprimento meu irmão que está na
soleira da porta, sua cara não é das melhores.
Abraço-o apertado, pois pressinto que a
conversa será intensa.
– Como você está? – ele pergunta.

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– Descobri que estou apaixonada por um


criminoso, fora isso, estou ótima.
Meu irmão faz uma expressão de
interrogação, mas acrescento:
– Você veio até aqui. Você começa. Minha
história conto depois, posso me dar ao luxo de
chegar atrasada hoje... – Até porque precisarei
contar sobre minha nova desconfiança para o
doutor Lopes, o atraso será útil.
– Você sabe que não sou de rodeios,
maninha, então vou só responder a sua pergunta:
sim.
– Sim o quê?
Eu sei o que Mateus quer dizer, mas
preciso ouvir. Meu irmão precisa se assumir de
uma vez por todas e parar de sofrer por conta disso.
– Sim, eu sou gay. E não sei mais o que
fazer...
– Como assim, Mateus? Vá ser feliz!
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Chega de se esconder, chega de ficar com uma


menina depois da outra porque nada lhe satisfaz...
Finalmente entendo o motivo de o meu
irmão ser tão galinha. Na verdade, ele só estava
procurando fugir de si mesmo em relacionamentos
sem futuro.
– Não é tão simples assim... Tem nossos
pais e agora meu filho.
– E você acha que seu filho quer que você
seja infeliz? Que os nossos pais querem isso?
– Não sei como o pai vai reagir...
– Não importa. O que importa é que estou
ao seu lado e seus amigos também estarão. Todos
nós só queremos a sua felicidade. E a Vanessa vai
precisar entender.
– A Vanessa sabe. Ela sabe que eu sou gay,
ela sabe de mim e do Cris...
– Como assim de você e do Cris?
– Achei que ele tivesse contado para você...
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E, então, eu me sento no sofá. Eu me sento


porque pressinto que a história está apenas por
começar.
– Eu já tinha ficado com outros caras, mas
nada demais. Não queria assumir ser homossexual.
Então conheci o Cris. Ele era tão bem resolvido,
apesar de não contar para a família. Um dia nós
conversamos e acabei dizendo a ele. E, com isso,
ficamos cada vez mais amigos. Nosso
relacionamento começou depois da Vanessa, depois
de eu decidir que não dava mais para continuar
sendo o que não sou. Cris e eu... nós ficamos
juntos.
– Juntos como?
– Namoramos, mas ninguém sabia. E o Cris
não se importava, até que...
– Até que a Vanessa ficou grávida.
– Foi um rolo só... No fim, acho que ela fez
isso só para me segurar. Ela sempre achou que
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fosse “me curar” ou algo do tipo. Quando terminei


com ela, fui sincero em lhe dizer o motivo, não
queria que ela pensasse ser um problema dela.
Vanessa sempre foi insegura...
– E como o Cris ficou nessa história?
– Eu terminei. Achei que era Deus me
dando um sinal, me punindo ou não sei... No fundo,
só estava com medo. As coisas com o Cris estavam
ficando sérias, logo precisaria contar para todo
mundo, para minha família, para você...
– E qual o problema de contar para mim?
– Não queria apagar a imagem de irmão
mais velho que você tinha de mim, de quem pode
protegê-la.
– Você não é menos homem porque gosta
de outro homem, Mateus. Uma coisa não tem nada
a ver com a outra. Eu sempre vou vê-lo da mesma
maneira que vejo hoje. E admiro você ainda mais
por finalmente ter a coragem de se abrir, algo que
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eu mesma não tenho...


– Você tem sim, mana. Você só está
escondida porque teve alguns tropeços, mas é
muito corajosa. Enfrentar sua ansiedade é ter
coragem e você faz isso todos dias em que vai à
psicoterapia, todos dias em que supera uma das
suas crises de pânico. Ninguém disse que seria
fácil, mas você não precisa mascarar, não precisa
fingir que está tudo bem. Você não precisa estar
bem e feliz o tempo todo.
Tenho vontade de chorar. Meu irmão está
certo. O único motivo para eu me esconder é a
vergonha de ser “imperfeita”, de alguém ver além
da minha superfície e descobrir minhas
inseguranças, minha ansiedade, minhas crises de
pânico... e acabar por me achar inferior. Não quero
permitir aos outros pensarem que sou menos
porque, às vezes, não consigo controlar minhas
emoções. Eu quero mostrar que estou sempre no
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controle, quero estar sempre no controle e isso


acaba me levando ao descontrole. Não é irônico?
– E você não precisa estar triste o tempo
todo, mano.
– Eu sou apaixonado pelo Cris, Alice. E
não sei o que fazer agora que serei pai.
– Mais uma vez lhe digo que uma coisa não
tem nada a ver com a outra. Sei que não é o ideal
ter o filho com uma mulher quando se é gay, mas
você não pode comprometer sua felicidade por
causa da sociedade, das aparências ou de
preconceitos que você mesmo mantém. Chegou o
momento de perdoar a si mesmo por ser assim,
porque não há nada para pedir perdão a alguém,
Mateus. Você é perfeito do jeito que é. E o Cris
também merece ser feliz, vejo como ele anda triste,
abatido... E não sabia que era por conta disso, até
achei que era por causa do Daniel... – deixo escapar
e mordo a língua.
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– Eu queria morrer quando vi Cris com o


Daniel. Sei que o fiz sentir o mesmo ao me ver com
a Vanessa. Não sei se o Cris ainda gosta de mim, se
ainda tenho alguma chance...
– Ele se assumiu para a família.
– Ele disse que só faria isso quando
encontrasse alguém que valesse a pena. E se for
tarde demais? E se esse alguém for o Daniel?
– Eles terminaram. Talvez o Cris tenha
feito isso por si mesmo... Quem melhor do que ele
para valer a pena? E você também deve fazer isso,
por você. Só assim vocês poderão ser felizes, livres
dessas amarras e segredos.
Meu irmão concorda e me abraça. Ficamos
no sofá da sala por muito tempo, até eu me dar
conta de que preciso ir para o trabalho e enfrentar o
doutor Lopes. Conto para meu irmão a besteira que
fiz ao confrontar Marcelo, um “criminoso”.
– Tem certeza, Alice? O Marcelo parece ser
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um cara legal... – diz ele, pensativo.


– Normalmente é assim. Os criminosos não
parecem criminosos até cometerem um crime, não
é?
– O seu computador do escritório está aí?
– Sim, por quê?
– Eu aprendi alguns truques com um cara
da faculdade... Deixe-me ver isso.
Mateus liga meu computador, começa a
digitar uns códigos e indico os arquivos que foram
modificados.
– Há um programa instalado no seu
computador que grava o que é digitado. Essa
pessoa deve ter acesso a todas as suas senhas, tudo
o que você fez... É como um vírus capaz de captar
o que você digita.
– A Júlia deve ter instalado isso no meu
computador. Ela tinha acesso... Mas como
descobrir quem é o cúmplice dela? Como saber se
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realmente é o Marcelo?
– Espera, acho que consigo descobrir para
qual e-mail estão sendo encaminhadas as
informações...
Meu irmão telefona para o amigo, esclarece
algumas dúvidas e começa a digitar códigos e
outras coisas. Espero o que parece uma eternidade
até, enfim, ele me dizer:
– Não é o Marcelo, Alice. É o Lucas. Ele
foi tão idiota que nem sequer se preocupou em usar
um endereço IP que não fosse pessoal...
– O sobrinho do doutor Lopes? O Lucas?
Não consigo definir se me sinto feliz ou
triste com a revelação, porque de qualquer modo
me envolvi com um “criminoso”. Mal posso crer no
quão baixo Lucas é capaz descer. Ele
provavelmente seduziu ou pagou para a Júlia se
envolver... E, pior, tentou culpar o Marcelo sem
qualquer hesitação. Com quem eu estava lidando?
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Um psicopata mentiroso que desviava dinheiro do


próprio tio?
Envio uma mensagem ao escritório
avisando que, devido a um imprevisto, não poderei
trabalhar hoje. Em minha mente, no entanto, já me
programo para ir à noite copiar os arquivos do meu
computador desktop sem que Lucas esteja lá para
me espreitar.
– Acho isso preocupante, Alice.
– Ele já terá ido para casa. Dificilmente fica
até mais tarde, especialmente agora que acha ter me
convencido de que o culpado é o Marcelo.
– Eu vou com você, Alice. Não quero que
vá sozinha.
– Você vai até nossos pais contar suas
novidades, pode deixar que eu me viro com os
meus problemas. O Lucas é um playboy inofensivo
que quis brincar de desviar dinheiro, Mateus.
– Você não sabe quais são os limites dele,
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Alice.
– Não me revelei uma ameaça para Lucas
e, de fato, acreditei nele quando mencionou
Marcelo – comento cabisbaixa. – Ele não tem por
que desconfiar de mim.
– Eu vou até o pai e a mãe, mas volto a
tempo de acompanhar você.
– Tudo bem – concordo relutante. A
verdade é que sinto medo do que pode acontecer e
não quero envolver meu irmão.
Ele me abraça e insiste que devo aguardá-
lo. Assinto obedientemente e o vejo ir até nossos
pais. Mal fecho a porta e envio uma mensagem
para o Marcelo: “Eu lhe devo um pedido enorme de
desculpas e, quando isso acabar, espero que
possamos sentar para conversar. Antes, porém, vou
resolver a confusão que arrumei. Hoje mesmo vou
ao escritório para pegar as provas que preciso para
inocentar você, pois descobri o culpado”.
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Se Lucas contou sobre Marcelo ser um


potencial hacker para mim, já deve ter envenenado
o tio com a mesma informação. Com certeza, Lucas
intenciona incriminar Marcelo completamente. Não
posso deixar isso acontecer. Não com o homem que
eu amo.
Que eu amo.
Eu amo o Marcelo.

Capítulo 33

Alegro-me ao ler a mensagem do meu


irmão algum tempo depois: “Nossos pais aceitaram
melhor do que o esperado”.

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“Sério? Como foi?” – pergunto interessada.


“O pai disse que, se for para eu ser feliz,
tudo bem. Mas que meu filho vai sofrer e não sei
mais o quê... Já mamãe não falou muita coisa, acho
que ainda está um pouco chocada, mas afirmou que
só quer a minha felicidade. Em resumo, foi isso.”
Fico aliviada porque meu irmão agora pode
se ajeitar, finalmente.
“Só falta conversar com a Vanessa de uma
vez por todas para terminar esse relacionamento
falso, né, Mateus?”
Fico observando a tela do visor, mas a
resposta demora. E, quando vem, meu irmão
desconversa: “Estou chegando aí para irmos juntos
ao escritório”.
Mordo os lábios, porque Mateus não
gostará nada do que tenho para dizer: “Já estou a
caminho, pode ficar tranquilo!”.
Meu irmão manda vários palavrões e tenta
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me ligar, mas não atendo. Não posso deixá-lo se


arriscar quando tem um filho a caminho. Não que
vá acontecer alguma coisa, só quero garantir...
Chego ao escritório no final do expediente,
tudo está tranquilo. Não há muita gente e a maioria
do pessoal já se prepara para ir embora. Foco no
que preciso fazer: juntar o máximo possível de
evidências para provar a inocência de Marcelo, pois
não merece ser acusado de algo que não fez.
Até pensei que esse fosse o caso da Júlia,
mas soube que a coitada confessou ter realmente
adulterado os dados e alguns dos meus arquivos.
Deve ter sido iludida pelo picareta e salafrário do
Lucas. Suspiro.
Cláudia já não estava mais na sala, então
aproveito para inserir o pen drive e copiar tudo, do
jeito que meu irmão me ensinou, a fim de pegar os
rastros de Lucas e os arquivos corretos e incorretos.
Vejo que o furo estava mesmo na falta de recibos e
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notas fiscais que exigi para organizar o setor


financeiro. Lucas desviava dinheiro por ali,
provavelmente fazendo um Caixa 2 com alguns
clientes de rabo preso. Isso caberá à justiça
descobrir assim que analisar os relatórios
verdadeiros em relação aos falsos.
Quando já disponho do que preciso dentro
da minha bolsa e me preparo para ir embora,
escuto:
– Você não podia simplesmente deixar para
lá, não é, sua ruivinha estúpida?
– Lucas! – Tento não mostrar medo em
minha voz, mas estremeço. – Do que você está
falando?
A melhor opção é me fazer de boba e rezo
para que acredite.
– Acha que me engana?
É, ele não acreditou... Seu olhar está
vidrado em mim, seus lábios crispados de raiva. A
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postura inteira dele grita perigo.


Lucas fecha a porta atrás de si e me
encurrala dentro da sala. Um funcionário está
passando, mas, quando penso em chamar sua
atenção, Lucas se aproxima e pressiona uma faca
contra meu ventre. Para quem está de fora, só
parece que ele está próximo de mim. E isso me
assusta. Não há como pedir socorro.
– Por que você não podia simplesmente ser
idiota e deslumbrada como a Júlia? Por que
precisou fuçar e ainda hackear a minha conta?
Pensou que eu não descobriria?
– Quem hackeou alguma conta foi você,
Lucas! Não tem vergonha de usar uma garota como
a Júlia, de enganar o seu próprio tio e ainda tentar
incriminar um homem direito com o Marcelo?
– Ah, o Marcelo! Foi tão fácil envenenar
você contra ele. Você não tem um pingo de
confiança em ninguém, né? Nem em si mesma
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porque, sempre que eu alterava os dados, lá ia você


arrumar de novo como se fosse um erro... Talvez
você seja burra mesmo, uma incompetente. Até a
Júlia conseguiu roubar seus arquivos e você nem
viu! Bem debaixo do seu nariz!
Tento não me abalar com a faca que agora
passeia pelo meu pescoço. Ele me faz sentar na
cadeira e ali permaneço, refém. Entretanto não
consigo me calar, não quando estou determinada a
não ser humilhada novamente:
– Acho que nós dois sabemos quem é o
burro, Lucas! Afinal, foi você quem não encobriu
seus rastros! E foi fácil descobrir que a Júlia estava
alterando os arquivos, só não quis levantar falso
testemunho... Pelo amor de Deus, eu mal entrei na
equipe e descobri o esquema todo! Realmente
julgou poder se safar depois do que fez?
Lucas fica enfurecido com as minhas
palavras e se aproxima ainda mais de mim. Num
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rompante, guarda a faca e suas mãos envolvem meu


pescoço. Ele não aperta, no entanto, apenas ameaça
fazê-lo. Quer mostrar ser perigoso e me fazer ceder.
Lucas seria capaz de me matar?
Ao fundo, vejo Marcelo abrindo a porta
cuidadosamente. Ele sempre foi o meu anjo da
guarda, mesmo quando desconfiei dele... Ele deve
ter visto a mensagem e decidiu vir ao meu
encontro. Apesar de sua presença renovar minha
esperança, sinto-me culpada, arrependida,
envergonhada e com medo.
Minha crise de pânico ameaça dar as caras
e não consigo respirar quando os dedos enfurecidos
de Lucas começam a pressionar meu pescoço.
Tento afastar suas mãos e o pavor me invade
quando isso apenas o incentiva a aumentar o aperto.
Ele faz menção de olhar para o lado e penso em
algo para distraí-lo:
– Lucas... – digo com dificuldade. – Você
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está me sufocando...
Ele se vira para mim.
– E é isso mesmo que eu quero, sua
desgraçada! Se não fosse por você, tudo estaria
como antes. Por que você não se ofereceu para me
ajudar ao invés de tramar contra mim?
Com essa distração, Marcelo agarra Lucas
por trás e ambos rolam no chão. Temo que Lucas
pegue a faca outra vez, mas Marcelo consegue
mantê-lo ocupado com golpes certeiros. Eu me
encolho, amedrontada, e respiro fundo. Preciso de
ar... agora! A luta está intensa, o monitor sobre a
mesa da Cláudia se espatifa no chão e Lucas
finalmente apanha a faca.
– Cuidado, Marcelo! – As palavras
arranham minha garganta seca.
Sem forças, decido não deixar a ansiedade
tomar o melhor de mim. Tento dissipar o pânico.
Quando finalmente recupero o controle, vejo que
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Marcelo está em posse da faca e segura Lucas


contra a parede.
– Eu nunca ajudaria você, Lucas – consigo
dizer. – Você é mau caráter, seu lugar é atrás das
grades!
Malu, Cris e Mateus invadem a sala
esbaforidos! Sinto-me aliviada ao vê-los nesse
momento. Trazem consigo o doutor Lopes e o
investigador que, graças a Deus, está armado. Ele
algema Lucas e, apesar de já não atuar como agente
policial, efetiva sua prisão em flagrante delito. O
investigador arrasta Lucas até o corredor. Doutor
Lopes, ainda chocado, pede desculpas por ter
duvidado de Marcelo. É notável seu pesar quando
seu olhar me encontra. Sei que estou descomposta,
ainda sinto meu pescoço doer pela agressão. Ele me
abraça.
– Menina, graças a Deus nada lhe
aconteceu. Eu nunca imaginei que o meu
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sobrinho...
Um policial, provavelmente amigo do
investigador, chama o doutor Lopes para
acompanhá-lo até a delegacia. Os acontecimentos
ainda parecem muito rápidos. Vejo meu chefe sair
como se levasse o peso do mundo nas costas,
provavelmente ele não terá estômago para defender
o sobrinho depois de comprovada a sua traição.
Meu irmão e meus amigos me abraçam.
– Não quero nem pensar no que poderia
acontecer se não chegássemos a tempo, Alice
Maria! – Malu chora em meu ombro. – Seu irmão
nos mandou uma mensagem para que
ajudássemos...
– Quando chegamos a este andar, gritei seu
nome. Doutor Lopes se apresentou e contei o que
descobrimos – Mateus diz, posso sentir sua
preocupação. – Ele estava com o investigador, que
já chamou algum amigo policial, sei lá... Sabíamos
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que você corria perigo.


– Nunca pensei que pudéssemos falar e agir
tão rápido... – Cris graceja.
Finalmente deixo as lágrimas caírem,
aliviada por estar viva, por ter evitado que Marcelo
fosse injustiçado e por ter sido salva por ele outra
vez. Ele. O homem que eu amo.
Quando me viro para agradecê-lo, Marcelo
não está mais lá. Meu coração se aperta e tudo o
que consigo pensar é: para onde ele foi?

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Capítulo 34

Após o episódio de “quase-morte”, o


doutor Lopes me deu férias adiantadas – que não
serão descontadas do meu salário. Fiquei um pouco
ansiosa por deixar o trabalho em um momento tão
importante, mas, na realidade, muitos funcionários
ganharam um período de recesso devido aos vários
contratos quebrados por medo da imagem negativa
que um advogado criminoso como o Lucas gerou
ao escritório.
Doutor Lopes me contou, antes de eu me
ausentar, que outros advogados estavam envolvidos

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na corrupção orquestrada por Lucas. Devido a isso,


o volume de notas e recibos cujos valores foram
adulterados era grande o suficiente para afetar o
escritório inteiro.
Já faz quase um mês desde que tudo
aconteceu e ainda parece surreal para mim. Tentei
procurar Marcelo depois do ocorrido, mas minhas
ligações não foram atendidas e confesso que me
sentia envergonhada demais para aparecer na casa
dele.
Estou morando com os meus pais por um
tempo, porque minha mãe insistiu sobre eu precisar
de “cuidados”, mas acho que foi apenas uma
tentativa de preparar o terreno para o que veio a
seguir.
– Sei que ainda é muito recente o que você
enfrentou, mas eu e seu pai já vínhamos pensando
nisso há algum tempo...
– Desembucha, mãe! – pede Mateus
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delicado como sempre.


– Nós vamos nos casar! – anuncia meu pai
com um sorriso de ponta a ponta.
Eu e meu irmão ficamos estagnados, sem
saber o que dizer por um tempo.
– De novo? – Mateus questiona.
– Têm certeza? – pergunto no mesmo
instante.
Os dois nos lançam um olhar enviesado,
mas não há como evitar achar que isso é uma
loucura.
– Sei que vocês não entenderão nossos
motivos, mas a verdade é que não precisam. Nós já
somos adultos e acreditamos que, dessa vez,
faremos diferente. Já está sendo diferente –
responde minha mãe, sem deixar brecha para
questionamentos.
– Tudo mudou quando você saiu de casa,
filha – complementa meu pai. – Eu percebi que, se
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você estava enfrentando a vida, crescendo,


decidindo ser adulta, que tipo de pai eu seria se não
fizesse o mesmo? E vi o quanto sua mãe teve que
aturar, o quanto fui devedor dela e de vocês, e
decidi ser melhor. Antes tarde do que nunca.
– Nisso eu concordo – diz meu irmão.
– Significaria muito para nós se vocês
fossem nossos padrinhos, pois a benção dos nossos
filhos é o que mais importa.
Tenho vontade de chorar. Eu, sempre tão
controlada e que pouco acredito no amor, quero
chorar. Porque agora sei que não precisamos
acertar sempre nem controlar tudo. Sei que a vida é
feita de altos e baixos, principalmente de falhas,
rupturas e buracos. Eu não preciso ser a Mulher-
Maravilha para alguém gostar de mim ou das
minhas sardas, celulites e estrias a mais que estou
aprendendo a aceitar – gostar, no entanto, ainda é
demais para mim! Finalmente entendo que, se não
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encontrei o amor ainda, é porque preciso ir além da


superfície, preciso me deixar levar e aprender a
conviver com a ansiedade à espreita, com certos
momentos de pânico. Ninguém é perfeito, afinal.
Depois desta conversa, decido ligar para
meus amigos e fazer alguma coisa para celebrar.
Além disso, quero sondar Cris para ver se algo com
meu irmão ainda é possível já que, se depender de
Mateus, isso nunca vai acontecer! Que criatura
mais teimosa!
Decidimos ir a um barzinho para relaxar.
Malu nos convida para um bar próximo ao
escritório, embora ainda me sinta meio receosa de
aparecer por lá. Lucas está respondendo por
tentativa de homicídio em liberdade, algo que me
incomoda profundamente. Ser réu primário, ter um
histórico “ilibado” e portar apenas uma arma
branca são atenuantes ao crime. O juiz poderia ter
negado o habeas corpus e mantê-lo encarcerado,
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mas não o fez. Quando argumento sobre como me


sinto, minha amiga diz que há pendências para
resolver nesse bar e só posso imaginar se referirem
ao Henrique.
***
A banda de Henrique já toma umas
cervejas e se prepara para a apresentação. Por
coincidência, o tal primo está lá. Sei disso porque
Malu me cutuca e diz:
– Aquele é o Fernando, o primo que
magoei. – Ela parece não acreditar no que vê. – Ele
veio mesmo.
– Como assim? – Cris pergunta.
– Eu o chamei.
– Você o chamou? – Arregalo os olhos.
– Quero resolver de uma vez por todas as
minhas pendências antes de viajar.
– Para onde você vai?
– Eu vou para a Argentina, Alice. Vou atrás
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do meu pai e, também, consegui uma vaga por


meio dos amigos dele em uma gravadora por lá.
Meu pai pode não falar comigo, mas o LinkedIn é
para essas coisas. Não quero mais ganhar migalhas
dele, quero construir uma carreira com base nos
meus esforços e, quem sabe, tentar salvar um
relacionamento que nunca nem começou com meu
pai.
– Eu não acredito! – exclamo abismada. –
Não acredito que você vai viajar sozinha! Quanto
tempo ficará por lá?
– Planejo ficar um ano, quem sabe mais...
– E se o seu pai não quiser vê-la?
– Não importa, Cris. Vai ser ótimo para a
minha carreira profissional e está na hora de eu me
livrar da minha mãe e das maluquices dela. ‘Tá na
hora de eu enfrentar meus demônios e crescer
também. E vou começar isso agora.
Malu segue em direção ao Henrique e seu
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primo. Cris e eu nos aproximamos na retaguarda


para ouvir a conversa.
– Não sou de rodeios nem de fazer
“mimimi” – ela começa. – Então serei clara: quero
me desculpar por tudo que fiz você sofrer. – Ela
olha diretamente para o primo de Henrique. – Não
vou dizer que minha intenção não foi magoar você,
porque naquela época eu não ligava para ninguém.
Por isso, peço perdão sinceramente e vou entender
se não puder me perdoar. Fico feliz por você ter
reconstruído sua vida e achado alguém para
compartilhá-la, isso é muito importante.
Eles se abraçam e Henrique está
boquiaberto, talvez não esperasse essa atitude do
primo.
– Eu já perdoei você há muito tempo,
Malu. Foi horrível, mas foi coisa de guria pequena.
Além do mais, todo mundo tem o coração partido
uma vez na vida. Não precisava ser do jeito que foi,
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eu não precisava ter sofrido tanto, mas sei que você


teve seus motivos, por mais que não justifiquem
sua atitude... Eu conheço a sua história.
– Conhece?
– Eu acabei procurando você, vigiando
você, querendo saber tudo sobre você... Queria
saber quem destruiu a minha vida. Hoje entendo.
Só espero que você encontre na Argentina o que
está buscando.
Ele dá um beijo no rosto dela e senta-se
com a atual namorada para ver o show. Malu se
aproxima de Henrique.
– Argentina é?
– Pois é.
– Boa viagem!
– Henrique, eu lhe devo desculpas também.
Tratei você como a todos os outros caras, mas
realmente gostei de você, de verdade. Não sei dizer
se é amor, porque nunca amei, mas, como seu
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primo disse, todo mundo tem o coração partido


pelo menos uma vez na vida. E você partiu o meu...
– Lágrimas começaram a escorrer pela face da
minha amiga.
– Malu, isso não vai me comover. Eu não
quero nada com você.
– Eu sei disso, Henrique. Eu só quero dizer
que meus sentimentos foram sinceros, por mais que
eu não soubesse expressá-los. Nossa história não
era para existir, mas da minha parte não será
esquecida. E mesmo que você só tenha me
rechaçado, eu aprendi muito.
– Fico feliz.
Ela sorri, parece sem graça.
– Espero que você encontre motivos para
me perdoar, assim como o seu primo fez. Eu não
mereço, mas não quero que você guarde toda essa
mágoa por minha causa.
– Ele é o meu melhor amigo, eu nunca o vi
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sofrer tanto na vida.


– Eu entendo, de verdade. Só espero que
você seja assim apenas comigo e não com todas as
garotas...
Eu suspeito que o tal primo disse alguma
coisa sobre a vida amorosa do Henrique. É incrível
como somos afetados pela vida das pessoas à nossa
volta. A vida dos meus pais me afetou demais e
meu medo de confiar, de errar, de ser feliz... veio
de tudo o que eu vi e vivi. No fim, não é culpa de
ninguém. A vida é feita de escolhas não apenas
nossas. A questão é que sempre nos espelhamos em
alguém, e acabei levando isso a sério demais ao
invés de dar meus próprios passos como tenho feito
agora. Talvez o espelho de Henrique tenha sido o
primo, e talvez por isso ele se isole de
relacionamentos. Mas essa história não é minha
para contar.
– Então ‘tá, Henrique, quem sabe nos
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esbarramos por aí?


– Acho difícil – ele resmunga.
Quando Malu se vira, ele a puxa pelo braço
e diz:
– Desculpa por tudo também, eu não lidei
com você da melhor maneira, mas é a única que
conheço.
E sem dizer mais nada, ele deixa minha
amiga ir embora. Não foi uma história de amor, não
foi nem mesmo uma boa história, mas fez Malu
crescer, se desenvolver e decidir ir para a Argentina
em paz à procura do que tanto buscou no Brasil e
não encontrou.
– Vamos para casa? – pergunto para Cris.
– Para casa mesmo?
– Hoje é dia de voltar para casa, chega de
colo de mãe, chega de superproteção.
– Chega de dramas e demônios –
acrescenta Malu.
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Mas sei que, para Cris, a história ainda não


acabou. Nem para o meu irmão. Nem para o
Marcelo – eu espero – e muito menos para mim.

Capítulo 35

Após uma licença forçada e várias idas à


psicóloga para finalmente entender que não preciso
me culpar, que Lucas fez suas próprias escolhas e

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que ter me envolvido com um criminoso – sem


saber – não faz de mim a pior pessoa do mundo,
sinto que estou pronta para voltar ao trabalho.
O cenário no escritório é de puro caos.
Vários advogados se demitiram e clientes
debandaram, mas decido que vou continuar ao
menos até deixar o setor financeiro funcionando
corretamente, como prometi ao ser contratada.
Depois, quem sabe, posso me tornar finalmente a
coach financeira que tanto quis?
Volto para a minha sala e fico feliz ao ver
Cláudia.
– Você está aqui! – celebro.
– Não ia deixar você na mão, querida! – diz
ela sorrindo. – Não sou de abandonar o barco e já
consegui ajeitar muito do que a Júlia estragou, viu?
Me empenhei assim como você. Chega de deixar a
onda me levar...
Abraço Cláudia e vejo que nem tudo está
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perdido.
– Quem mais ficou?
– Se você quer saber do Marcelo... – Ela
arqueia as sobrancelhas sugestivamente e
acrescenta ao notar meu desconforto: – As notícias
voam rápido aqui! Mas, como eu dizia, ele foi para
uma empresa defensora dos direitos dos animais,
direitos ambientais e sei lá o quê... Não lembro
direito o nome. É uma empresa grande de São
Paulo.
São Paulo. Meu estômago dá um nó. Então,
Marcelo se mudou...
– No entanto, o bom é que ele trabalhará na
filial daqui, em Florianópolis. Sabe como é, muito
mangue para defender... – Ela ri da própria piada
enquanto ainda estou tentando me recompor.
– Não imaginei que ele abandonaria o
escritório.
– Foi o doutor Lopes quem indicou.
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Marcelo é mais do estilo de defender os pobres e


oprimidos. Depois de tudo o que rolou, quando o
doutor Lopes até o incluiu como um dos suspeitos
de corrupção, acho que ficou envergonhado... Não
tinha clima, né?
Assinto com a cabeça e, para fazer meus
pensamentos pararem de querer sair pela boca,
digo:
– Então vamos trabalhar? Porque esse
barco tem que voltar a funcionar!
***
No fim de semana que se sucede a todas
essas novidades, acontece o casamento dos meus
pais. Nada muito chique ou suntuoso, mas do
jeitinho que eles queriam. Casam-se no civil e
fazem uma festa no salão do prédio onde Malu
mora, que é mais espaçoso do que o de qualquer
um.
Eles estão radiantes e felizes com os votos
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renovados, casamento renovado e vidas renovadas.


Eu, por mais que queira compartilhar desse
sentimento, só tenho olhos para Marcelo que veio
como acompanhante de Malu.
Não entendo a manobra da minha amiga
nem por que ele apareceu justamente aqui, mas não
posso deixar essa oportunidade passar.
– Quer dançar? – ele questiona, vindo em
minha direção.
– Sempre mais ágil do que eu... – murmuro.
– Eu estava indo falar com você.
– Acho que você precisa aprender a captar
as coisas mais rápido, assim como eu preciso me
mover mais depressa. Se tivesse feito isso antes,
talvez muito sofrimento fosse evitado.
– Sinto muito pelo seu trabalho com o
doutor Lopes e sinto muito por ter desconfiado de
você. No fundo, eu sabia que não podia ser
verdade, mas estava tão... confusa – digo por fim. –
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Não tenho melhor desculpa que essa e realmente


peço desculpas.
– Eu não estava falando do trabalho, Alice.
Estou muito mais feliz agora. Aquele escritório não
era para mim, afinal. – Ele dá de ombros. – Eu
estava falando da gente.
E ele é assim, direto ao ponto. Sinto minhas
bochechas corarem e tenho vontade de esconder
meu rosto.
– Não se esconda mais de mim, demorei
muito tempo para conseguir atingir além de sua
superfície.
– E gostou do que encontrou?
– Eu sempre soube que gostaria. E você
gostou?
– Estou aprendendo a gostar.
E assim que as palavras saem da minha
boca, percebo que é a verdade. Ainda não me
adaptei às minhas crises de pânico, frequento a
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psicoterapia semanalmente, julgo-me, culpo-me,


mas, quando percebo, sigo enfrentando essa
autossabotagem à minha autoestima. Já não tento
controlar tudo e aceito que há coisas muito além da
minha compreensão e do meu “poder”, se é que
tenho algum. E mais do que isso, preciso me apoiar
nos meus amigos e na minha família.
– Alice?
– Desculpe, estava divagando aqui...
– Gosto disso. Você parece mais calma,
mais serena... A última vez que vi você foi um...
– Caos – completo por ele. – Por que você
foi embora, Marcelo?
– Na verdade, a polícia me chamou para
dar depoimento. Não pude falar com você, pois
também estava envolvida. E depois...
sinceramente? Eu não sabia o que dizer, não sabia
como começar nem o que você estava sentindo por
seu namorado ter...
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– Lucas não era meu namorado. Ele nunca


foi. A gente já tinha terminado, mas não conseguia
encontrar você para dizer isso.
– Você queria me dizer isso?
– Eu terminei com ele por sua causa, por
isso ele aprontou para cima de você também...
Desculpe, foi uma atitude que poderia ser evitada.
– Você terminou com ele por minha causa?
Desculpa repetir o que você fala, mas não estou
acreditando...
– Quando foi que menti para você? – Sorrio
tentando parecer sedutora e tranquila ao mesmo
tempo.
Estou prestes a me declarar completamente
quando escutamos um estrondo de pratos se
quebrando vindo da cozinha. Nos encaramos
assustados e corremos para lá.
Vanessa está descontrolada atirando pratos
no meu irmão. Malu pede para a banda aumentar o
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volume, para que os outros convidados não


percebam, e a escuto no microfone:
– Foi só um acidente, gente! – ela explica.
– Está tudo certo, podem continuar a festa.
Graças a Deus, meus pais não vêm conferir.
– Seu desgraçado! Vai me largar para virar
veado de vez? Você não tem compostura?
Meu irmão está branco, seu segredo está
sendo relevado na frente de Marcelo, Malu e... Cris,
que também apareceu. Os dois se entreolham.
– Eu sabia que tinha dedo do seu
amiguinho na parada... Ele conseguiu um apê legal
para você, um emprego e agora quer colher os
frutos, né? E você vai me deixar sem nada! Grávida
e sozinha!
– Eu nunca deixei você sozinha, Vanessa.
Eu só estou dizendo que não tem como fingir mais,
eu vou criar esse filho, mas não vou ficar com
você.
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– Então não preciso de mais nada! Quer


saber como você foi trouxa durante esses meses
todos? Esse filho não é seu! É de um idiota que não
tem nem onde cair morto e achei que você seria um
pai melhor para o meu filho, que ficaria comigo...
– O que você disse? – meu irmão
questiona.
– Eu disse que esse filho nunca foi seu.

Capítulo 36

Vanessa começa a chorar e, enquanto

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caminha, cai no chão descontrolada. Marcelo liga


para o SAMU, pois seu estado não deve fazer bem
para o bebê. Eu só consigo pensar no meu irmão,
em todo o sofrimento que ele passou, em todas as
mudanças que fez, nos sermões que precisou
ouvir...
Por um lado, ele mudou a vida para melhor.
Isso o fez crescer no trabalho, arrumar seu próprio
canto, ser mais responsável e, por fim, se assumir
homossexual. Por outro, a dor de perder um filho é
muito maior. Descobrir que não é o pai dessa
criança é como perdê-la, afinal.
– Mateus... – Aproximo-me cautelosa.
– Eu vou com a Vanessa – ele avisa quando
observamos a ambulância chegar.
– Você não precisa ir – digo incerta.
– Eu preciso. Preciso resolver essa história
de uma vez por todas.
– Eu vou com você – diz Cris para o
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espanto de todos. – Nada mais vai separar a gente.


E enquanto Vanessa já está sedada dentro
da ambulância, Cris e Mateus se beijam, seus
braços envolvem um ao outro numa saudade
insana. É possível ver o quanto se amam.
Não consigo evitar sorrir feito boba,
embora o caos esteja solto. Meus pais aparecem
apavorados e, enquanto o novo casal some dentro
da ambulância, Malu explica o episódio.
Durante o resto da noite, Marcelo fica ao
meu lado. Nós nos despedimos dos convidados
com a festa terminando precocemente e nos
encaminhamos para o hospital.
***
Três meses depois, meus pais ainda estão
em clima de lua de mel. Malu já partiu para a
Argentina, Cris e meu irmão decidiram morar
juntos e adotar o bebê de Vanessa que já está para
nascer. Ela está sem a mínima condição de criar a
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criança e, embora ambos sejam jovens, Mateus não


quer abrir mão de ser o pai.
Meus pais o apoiam, e quem sou eu para
julgar ou discordar? Tudo o que quero é vê-los
felizes. E eles estão!
Vanessa decidiu abrir mão da custódia e
encontrou o pai da criança para fazer o mesmo.
Marcelo, por ser advogado, está auxiliando em todo
o processo.
Depois do casamento, nos vimos algumas
vezes apenas como amigos. Com tantas mudanças
nem tive tempo para pensar em romance.
Trabalhamos duro no escritório para reverter
algumas perdas de clientes e muitos deles
decidiram contratar a minha consultoria financeira
depois que o doutor Lopes contou sobre “a proeza”
que consegui realizar.
Acabei me tornando consultora financeira
em tempo integral e, com o dinheiro dos meus
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primeiros clientes, decidi trabalhar no Impact Hub,


um escritório colaborativo onde sou prestadora de
serviços.
Agora faço meu próprio horário, vou à
minha terapia e já cheguei a emagrecer cinco
quilos, porque aproveito o final da tarde para ir até
a academia anexa ao meu atual escritório, na SC-
401. Estando tão longe, precisei me mudar e
aluguei algo mais próximo, o que casou com a ideia
de Cris ir morar com Mateus. Agora moramos
longe um do outro, mas acho que às vezes esse é o
jeito de a vida nos fazer encontrar nossos rumos
nos lugares menos esperados.
– Alice? – Estou saindo do escritório
colaborativo quando revejo quem mais gostaria.
– Marcelo, o que você está fazendo aqui?
– Estou atendendo um cliente aqui na
ACATE.
– Nossa, que coincidência! Eu estou
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trabalhando no Impact Hub. – E mostro a ele minha


singela mesa.
– Seu irmão e o Cris me disseram que você
tinha saído do escritório mesmo...
– Muito obrigada por ajudar no processo de
adoção deles. Significa muito para mim!
– Imagina, estou só fazendo meu trabalho...
– Ele dá de ombros.
– Sei que é mais do que isso, e agradeço.
– Tem tempo para um café?
– Foi onde tudo começou, não é?
– E eu quero saber quando é que vamos
continuar... – ele diz.
– Você não tem mais rodeios mesmo... –
Sorrio, sem graça.
– Eu não tenho mais tempo a perder, Alice.
Ele me puxa pelo braço até um canto mais
recluso, entre as escadas, e então me olha
profundamente:
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– Eu quero você, Alice. E faço o que for


preciso para você entender isso. Sei que sua vida
mudou bastante nos últimos três meses, quase não
tivemos tempo de nos falarmos, e eu tenho viajado
muito também. Mesmo assim, quero dar uma
chance para nós dois, para mim mesmo. Eu sou
apaixonado por você e não me imagino saindo
daqui sem tê-la como minha namorada, como a
mulher da minha vida.
– Como você sabe que sou a mulher da sua
vida? – questiono insegura. Eu acabei de ouvir tudo
o que poderia querer de um homem maravilhoso,
mas sempre consigo estragar o clima!
– Eu tenho minhas suspeitas, mas só posso
comprovar se você me der uma chance.
– Eu também acredito que você é o homem
da minha vida.
Ele me puxa contra si e me beija
apaixonadamente. Seus lábios são grandes e
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macios, e me perco em seu abraço. Parece que,


enfim, estou onde devia estar, em todos os sentidos.
Se minha vida está perfeita? Nem de longe.
Às vezes os clientes atrasam o pagamento, fico
doida tentando pagar o aluguel. Há momentos em
que não sobra dinheiro sequer para um cafezinho,
mas estou realizada profissionalmente. Além disso,
serei a melhor tia que conseguir e estou tentando
reatar os laços com meu pai. Ele está feliz com
minha mãe, é tudo o que importa. Converso por
Skype regularmente com a Malu, que também está
mais madura e feliz, embora a história com o pai
ainda não tenha dado muito certo. Na verdade, ela
recebeu uma proposta para ir trabalhar nos Estados
Unidos em uma gravadora e talvez não volte tão
cedo.
Cada um está onde devia estar para
continuar seu crescimento que, nem de longe, está
sob nosso controle. Percebi que isso não importa,
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pois o mais relevante é apreciar a jornada. E acima


de tudo, agora eu sei que ninguém erra por amar
demais e que não preciso me culpar por nada que
aconteceu entre mim e Gustavo. Se errei, foi ao me
envergonhar por ter um sentimento tão bonito
dentro de mim, que foi o amor. Quem não soube
apreciar foi ele. E já está mais do que na hora de eu
abrir meu coração outra vez.
– Está precisando de alguém para dividir o
apartamento? O escritório está planejando mudar
para a SC-401 também...
– Quem sabe? – Sorrio enigmática, já não
faço planos tão calculados. – Mas acho que
primeiro devemos testar como vizinhos.
Marcelo ri e me abraça enquanto
caminhamos para tomar um café, o sabor que
embalou o começo e, agora, a continuação da nossa
história.

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