Patrick O - Brian - A Patente Do Corso - Série Mestre Dos Mares - Livro 12
Patrick O - Brian - A Patente Do Corso - Série Mestre Dos Mares - Livro 12
Patrick O - Brian - A Patente Do Corso - Série Mestre Dos Mares - Livro 12
Sobre a obra:
Sobre nós:
A Patente de Corso
série Mestre dos Mares
Mestre dos Mares
O Capitão
A Fragata Surprise
Expedição à Ilha Maurício
A Ilha da Desolação
O Butim da Guerra
O Ajudante de Cirurgião
Missão em Jônia
O Porto da Traição
O Lado Mais Distante do Mundo
O Outro Lado da Moeda
A Patente de Corso
Treze Salvas em Honra
A Escuna Noz-moscada
Clarissa Oakes, Clandestina a Bordo
Um Mar Escuro como o Vinho do Porto
O Comodoro
Almirante em Terra
Os Cem Dias
Azul na Mezena
Depois de ser afastado da marinha por
um delito que não cometeu, Jack Aubrey
aceita a oferta de seu amigo Maturin,
enriquecido ao receber uma herança, de
assumir o comando da mítica Surprise para
fazer o corso pelo canal da Mancha. Depois
de alguns extraordinários êxitos na luta
contra os franceses, Aubrey parece em uma
posição que não pode ser melhor para que seu
cargo lhe seja restituído, e para consegui-lo
aceita entrar na política. Mas uma parte
importante do romance centra-se em
Maturin, que parece a ponto de conseguir
reabilitar seu matrimônio, ainda que para isso
deva viajar para a Suécia onde, conforme
suas últimas notícias, sua esposa tem um
novo amante. O tema da droga (Maturin
esteve experimentando o láudano e a folha
de coca) é outro dos pontos centrais do relato,
assim como a música, neste caso as aberturas
operísticas italianas.
Nota da edição espanhola
Desde que Jack Aubrey foi expulso da Armada, desde que seu nome foi
apagado da lista de capitães de navio e sua antiguidade foi invalidada,
parecia que vivia em um mundo completamente distinto. Ainda que tudo
fosse familiar, dos odores da água do mar e da lona alcatroada da exárcia até
o suave balanço da coberta sob seus pés, tudo havia perdido sua essência e
ele tinha a impressão de ser um estranho.
Outros oficiais expulsos por um conselho de guerra estavam pior do
que ele, como, por exemplo, os dois que haviam subido a bordo com apenas
um baú para ambos. Comparado com eles Aubrey era muito afortunado e,
ainda que isto podia proporcionar-lhe sossego, não contribuía para levantar-
lhe o ânimo. Tampouco contribuía para isso que não houvesse cometido o
delito pelo qual lhe haviam sentenciado.
Apesar de tudo, era inegável que Jack Aubrey não estava em uma
situação desesperada. A Armada havia vendido sua velha mas bonita
fragata Surprise, que Stephen Maturin comprara para convertê-la em um
barco de guerra privado (quer dizer, um barco corsário), para perseguir ao
inimigo, e ele tinha o comando.
A fragata estava ancorada com uma só âncora em um porto isolado em
que um grande banco de areia e as bruscas mudanças da maré o tornavam
perigoso. Os comerciantes e os oficiais da Armada evitavam o lugar,
enquanto que eram frequentados por contrabandistas e corsários, muitos de
cujos rápidos barcos se alinhavam ao longo do cais. Jack deu a volta ao
chegar ao final de um dos passeios que dava mecanicamente pelo lado de
estibordo do castelo de popa, olhou para o povoado e voltou a se perguntar
qual era a causa de achar Shelmerston tão parecido com os povoados de
piratas e bucaneiros que ainda restavam nas Antilhas e Madagascar, e que
tão bem conheceu quando navegava na Surprise como guarda-marinha.
Apesar de que em Shelmerston não havia uma praia de brilhante areia
coralínea nem coqueiros flexíveis, parecia com esses portos; talvez a
semelhança consistisse nas tabernas chamativas, o ambiente em que
predominavam a desordem e o dinheiro fácil, o grande número de
prostitutas e o fato de dar a impressão de que somente uma brigada
recrutadora sumamente valente e bem armada tentaria agir ali. Jack
também viu que dois botes zarpavam da costa em direção à Surprise e que os
dois competiam para chegar primeiro; contudo, em nenhuma estava o
doutor Maturin, o cirurgião da fragata (poucos sabiam que também era seu
dono), que devia subir a bordo esse dia. Em uma o timoneiro era uma
belíssima jovem ruiva, recém chegada ao povoado, que se mostrava muito
contente de encontrar-se ali e a quem os tripulantes admiravam muito e a
cujos gritos agudos respondiam com tal heroísmo que um deles rompeu um
remo. Ainda que não podia dizer-se que Jack Aubrey frequentasse o trato
com prostitutas, tampouco observava o celibato. Desde sua juventude a
beleza havia sido para ele fonte de prazer, e essa jovem animada e tão
entusiasmada era exageradamente bonita; contudo, limitou-se a considerar
isto com objetividade e, em tom inexpressivo, indicou para Tom Pullings:
— Não deixe que essa mulher suba a bordo e admita só a três dos
melhores.
Voltou a dar passeios pensativo enquanto Pullings, o contramestre, o
condestável e Bonden, seu própio timoneiro, testavam os marinheiros.
Todos eles tinham que subir a exárcia, largar e aferrar uma joanete enquanto
se contava o tempo com um relógio de areia, depois descer e apontar um
canhão, depois disparar com um mosquete em uma garrafa pendurada de
um penol e, por último, fazer um nó de envergue frente a uma multidão de
excelentes marinheiros. Em geral, dotar de tripulação a um barco do rei era
algo difícil que se conseguia com a ajuda das brigadas recrutadoras, rogando
humildemente que os barcos recrutadores trouxessem um grupo de homens,
ainda que fossem desajeitados delinqüentes, e enviando marinheiros para
navegar de um lado a outro do canal para sacar tripulantes dos mercantes
que iam de regresso à Inglaterra ou recrutando homens nos povoados
costeiros; contudo, raras vezes tinha-se êxito e havia que zarpar com cem
tripulantes a menos dos necessários. Mas para o capitão da Surprise armar a
fragata em Shelmerston era como armá-la no paraíso, pois ali se recebiam de
imediato os apetrechos que se encomendavam aos dispostos e competitivos
provedores cujos armazéns bem sortidos ficavam junto ao cais e, ademais,
não era necessário recrutar homens forçosamente nem rogar-lhes que se
alistassem depois de reunidos com o toque do tambor. Há muito tempo os
marinheiros sabiam que Jack Aubrey era um capitão audaz e que tinha tanta
sorte em conseguir butins que o chamavam de Jack Aubrey o Afortunado; e
quando se difundiu a notícia de que sua fragata, que navegava de maneira
extraordinária quando habilmente manobrada, converter-se-ia em um barco
corsário que estaria sob seu comando, muitos tripulantes de barcos corsários
correram em tropel para oferecer-lhe seus serviços. Jack podia escolher aos
marinheiros, algo que nunca lhe ocorrera quando estava a bordo dos barcos
do rei em tempo de guerra, e agora lhe faltavam somente três para
completar o número de tripulantes que estimava adequado. Muitos dos
marinheiros e suboficiais eram antigos tripulantes da Surprise que haviam
sido licenciados depois de atracar a fragata na dar-se e que provavelmente
haviam se esquivado das brigadas recrutadoras desde então, ainda que Jack
suspeitava que vários haviam desertado dos barcos do rei e que, em alguns
casos, o haviam feito com ajuda de seus amigos íntimos (como Heneage
Dundas) ao comando deles. Naturalmente, alguns tripulantes eram fiéis
seguidores seus, como seu dispenseiro e seu timoneiro e alguns quantos
homens mais que não nunca o haviam abandonado. Vários dos marinheiros
que não conhecia procediam de mercantes, mas a maioria eram
contrabandistas e tripulantes de barcos corsários, marinheiros de primeira
curtidos que não estavam habituados à disciplina e muito menos ao
cerimonial que a rodeava (ainda que quase todos tenham sido recrutados
forçosamente alguma vez), mas estavam dispostos a servir às ordens de um
capitão a quem respeitavam. Nesse momento, aos olhos dos tripulantes de
barcos corsários Jack era mais respeitável do que ele supunha. Ainda que
tenha perdido peso, ainda era muito largo de ombros e parecia
exageradamente alto; tinha um aspecto mais velho e sua cara rosada e de
expressão alegre agora estava mais delgada e tinha um gesto grave com um
toque de ferocidade, pelo que qualquer um que conhecesse bem a rudeza
dos marinheiros quando lhe via compreendia que não podia faltar a respeito
de um homem com uma cara assim, pois se alguém o ofendesse ele golpearia
sem avisar e as consequências seriam terríveis.
Provavelmente a Surprise era a embarcação em serviço de sua categoria
que tinha uma tripulação mais eficiente e profissional, o que podia encher
de alegria ao seu capitão; contudo, ainda que ao observar isto Jack havia
sentido certa satisfação e tanta alegria como podia hospedar seu coração,
nenhum destes sentimentos era profundo. Parecia que o coração de Jack
Aubrey havia endurecido para poder suportar sua desgraça sem se romper,
e esse endurecimento o transformara em um homem tão pouco capacitado
para experimentar emoções como um eunuco.Talvez esta explicação fosse
simples demais, mas a verdade era que em outro tempo o capitão Aubrey,
como seu herói, Nelson, e muitos de seus contemporâneos, chorava com
facilidade (chorara de alegria no tope de um mastro do primeiro barco que
esteve sob seu comando, umedecia com suas lágrimas a parte inferior de seu
violino quando tocava fragmentos exageradamente comoventes e havia
soluçado nos funerais de muitos de seu companheiros de tripulação, tanto
no mar como em terra) e agora tinha tão pouca sensibilidade e os olhos tão
secos como era possível a um homem. Quando se despediu de Sophie e das
crianças em Ashgrove Cottage só sentiu um nó na garganta, pelo que sua
despedida parecera rude e sem afeto; e, por outro lado, desde que subira a
bordo não tocara o violino, que ainda permanecia em seu estojo forrado de
lona alcatroada.
— Estes são os três melhores marinheiros, senhor, com sua permissão —
disse o senhor Pullings, tirando o chapéu —. Harvey, Fisher e Whitaker.
Os três se tocaram a testa com a mão. Eram contrabandistas e
excelentes marinheiros (do contrário não teriam passado nas
exageradamente duras provas) e, como eram primos, tinham o mesmo nariz
comprido, a mesma cara curtida pelos elementos e o mesmo gesto astuto.
Aubrey lhes olhou com certa satisfação e disse:
— Harvey, Fisher e Whitaker, alegro-me de que se encontrem a bordo,
mas saibam que só se ficarão se forem do agrado do cirurgião e obtiverem a
sua aprovação. — voltou a olhar para a costa, mas não viu nenhum bote
com o cirurgião a bordo, e continuou — : E já conhecem as condições de
pagamento e de divisão do butim, assim como as normas de disciplina e os
possíveis castigos, não é?
— Certamente, senhor. O timoneiro nos as leu.
— Muito bem. Podem subir seus baús a bordo.
Começou a dar passeios outra vez enquanto repetia: “Harvey, Fisher,
Whitaker”. Um capitão tinha o dever de saber os nomes de todos seus
homens e conhecer um pouco sua vida, o que até agora não lhe havia
resultado difícil nem mesmo em navios de linha com seiscentos ou
setecentos tripulantes. Ainda recordava o nome dos marinheiros da Surprise,
com os quais havia compartido a última viagem pelo Pacífico Sul, e, em
alguns casos, muitas outras viagens anos atrás; contudo, lamentavelmente,
esquecia os nomes dos novos marinheiros e inclusive tinha que fazer um
esforço para recordar o de seus oficiais. Isto não ocorria com Tom Pullings,
que havia servido sob suas ordens como guarda-marinha e agora era um
capitão da Armada Real com meio soldo, um excelente capitão sem
esperanças de conseguir um barco, e atualmente era seu primeiro oficial;
tampouco ocorria com o segundo e o terceiro, ambos antigos oficiais do rei, a
quem conhecia bastante bem e cujos julgamentos ante um conselho de
guerra recordava claramente (a West lhe haviam processado por bater-se
em duelo e a Davidge por um complicado assunto relacionado com a
precipitada firma dos livros de um desonesto contador sem havê-los
olhado); mas só podia recordar o nome do contramestre, Bulkeley, por
associação de idéias. Por sorte, nenhum carpinteiro se opunha a que lhe
chamassem de Lascas nem nenhum condestável a que lhe chamassem de
Mestre Condestável, e, por outro lado, estava seguro de que, com o tempo,
lembraria os nomes dos suboficiais que pouco conhecia.
Caminhava de um lado para outro incessantemente, e olhava para a
margem cada vez que girava, até que a aparição de algas na parte superior
da corrente da âncora e o rumor da água o fizeram compreender que devia
zarpar ou não poderia aproveitar a maré.
— Senhor Pullings, sairemos ao exterior do banco de areia — disse.
— Sim, senhor — respondeu Pullings e depois gritou — : Senhor
Bulkeley, todos a recolher a âncora!
Imediatamente se ouviram as agudas notas da batida do contramestre
e o ruído de rápidos passos, o que demonstrava que os homens de
Shelmerston conheciam bem o perigoso banco de areia e o calado da fragata.
Os marinheiros ataram o virador e depois colocaram, seguraram e
começaram a mover as barras do cabrestante como se todos fossem
veteranos tripulantes da Surprise. E quando o cabrestante começou a girar e
a fragata começou a deslizar pelo porto em direção de sua âncora, alguns
homens começaram a cantar: “Gira-a e ela girará, oh, oh!” Isso nunca ocorria
quando era uma embarcação do rei, já que na Armada não se permitia que
os marinheiros cantassem durante o trabalho. Pullings olhou fixamente para
Jack, que negou com a cabeça e disse:
— Deixe-os cantar.
Até esse momento não se haviam produzido incidentes entre os
antigos tripulantes da Surprise e as novas incorporações, e Jack estava
disposto a fazer qualquer coisa para evitar que se produzissem. Tanto ele
como Pullings fizeram o quanto puderam misturando os homens das
brigadas de artilheiros e das guardas, mas estava seguro de que o fator mais
importante naquela relação estranhamente pacífica entre dois grupos tão
diferentes era a situação inusual. Todos, particularmente os tripulantes
veteranos da Surprise, estavam tão desconcertados que não sabiam o que
pensar nem o que dizer, e não tinham à mão nenhuma fórmula adequada.
Se aquilo durava até que lhes açoitasse uma tormenta durante três ou
quatro dias no canal ou, melhor ainda, até que uma batalha lhes convertesse
em um só grupo, havia esperanças de que na fragata houvesse harmonia.
— Acima e abaixo, senhor! — gritou Weld desde o castelo.
— Gavieiros! — clamou a voz de Jack —. Ouvem-me ai de cima?
Tinham que ser surdos para não lhe ouvir, pois se ouviu claramente
chegar o eco de “ai de cima” desde as casas situadas ao fundo da baía.
— Adiante! — continuou —. Larguem a vela! Larguem a vela!
Nesse momento os marinheiros correram para os amantilhos do
traquete. A gávea se abriu; os marinheiros de bombordo caçaram as escotas e
depois, sem pronunciar palavra, correram para pegar as adriças. A verga
subiu sem dificuldade; o velacho se inchou; a Surprise ganhou velocidade
suficiente para poder recolher a âncora e depois, descrevendo uma suave
curva, começou a mover-se em direção ao banco de areia, que tinha um
colorido ameaçador em meio da água verde cinzenta e da borda branca.
— Pelo centro do canal, Gillow — ordenou Jack ao homem que levava
o leme.
— Pelo centro, senhor — disse Gillow, um marinheiro de Shelmerston,
movendo um pouco as cavilhas enquanto olhava para a direita e esquerda.
Quando a Surprise chegou ao alto mar voltou a dobrar suas alas. Os
marinheiros deixaram cair a âncora do pescante e lentamente a fragata deu
um amplo giro. A manobra realizada era simples, e Jack a vira milhares de
vezes em sua vida, mas se sentiu muito satisfeito de que a realizassem
perfeitamente, sem nenhuma erro. Isso foi muito conveniente, pois fazia
bastante tempo que estava indignado com a demora de Maturin e, se bem
podia suportar sem se queixar de sua enorme desgraça (ainda que não se
resignasse a ela), as pequenas coisas lhe irritavam muito. Havia deixado uma
sucinta nota para Stephen na costa na qual marcava um encontro em outro
lugar ao cabo de quinze dias.
— Senhor Davidge, eu vou para baixo — disse —. Caso veja o
almirante dobrar o cabo, avise-me imediatamente, por favor.
O almirante Russell, que vivia em Allacombe, a segunda enseada ao sul,
havia informado de que teria vontade de fazer uma visita ao senhor Aubrey
durante a tarde, se o vento e o tempo permitissem, e esperava que o senhor
Aubrey passasse a noite em sua casa em Allacombe. Ademais, enviava
saldações ao doutor Maturin e anunciava que teria prazer em vê-lo se
estivesse a bordo.
— Imediatamente, senhor — disse Davidge e, em tom vacilante,
perguntou — : Como devemos recebê-lo, senhor?
— Como ao capitão de qualquer barco privado — respondeu Jack —.
Com guarda-mancebos, é claro, mas nada mais.
Para Jack lhe horrorizava a idéia de que se fizessem as coisas como na
Armada Real, pois sempre lhe incomodara ver a imitação de seus costumes
nos barcos da Companhia das Índias Orientais, de outras importantes
companhias e de corsários ambiciosos e ainda mais importantes; por isso
vestia uma casaca e calças de lã. Porém, ainda que a Surprise já não tinha
galhardete nem fitas douradas nem infantes do marinha nem muitas outras
coisas, estava decidido a que as tarefas básicas se realizassem como em um
barco de guerra, e opinava que as duas coisas não eram incompatíveis.
Teria dado um olho da cara para evitar se encontrar com Russell, mas
servira sob as ordens do almirante quando era guarda-marinha, tinha-lhe
um profundo respeito e lhe era muito agradecido porque ascendeu ao grau
de tenente graças à sua influência. Russell lhe fez o convite tão
amavelmente e com tão boa intenção que seria uma descortesia recusá-lo,
mas ele desejava com todas suas forças que Stephen estivesse ali para lhe
ajudar durante a tarde. Como não se sentia suficientemente alegre para se
dedicar ao trato social, assustava-lhe ter convidados, sobretudo membros da
Armada, e, além disso, horrorizava-lhe o trato compassivo de qualquer um
que não fosse seu amigo íntimo e a cortesia pintada de indiferença e
arrogância de quem não simpatizava com ele.
— Killick, Killick! — gritou na grande cabine.
— Que foi… — perguntou Killick em tom mal-humorado de onde
estava pendurada a maca de Jack e, para guardar as formas, acrescentou —
: senhor?
— Traga-me a casaca verde garrafa e um par de calções decentes.
— Aqui estão, mas não poderá colocá-la antes de dez minutos porque
tenho que costurar os botões.
Nem Killick nem Bonden expressaram seu pesar pelo capitão Aubrey
ter sido processado e condenado. Tinham o bom tino de tratar os assuntos
importantes com uma delicadeza que Jack, depois de tantos anos de
experiência e trato com os marinheiros, sabia como interpretar. Não
mostravam sua compaixão abertamente, senão com sua presença e suas
atenções, e Killick aparentava ter um humor pior do que nunca, se isso era
possível, para demostrar que nada havia mudado.
Agora ele podia ser ouvido no dormitório da cabine murmurando:
— Maldita agulha despontada… Se me dessem um xelim por cada
botão que essa estúpida prostituta de Ashgrove Cottage deixou frouxo, seria
um homem rico… Não tem idéia de como se costura a parte traseira dos
botões nos barcos de guerra… E o tom de verde do fio é diferente!
Pouco tempo depois, o capitão Aubrey já tinha posta sua roupa recém
arrumada e escovada. Então, completamente só, começou a dar seus
habituais passeios pelo castelo de popa, olhando algumas vezes para terra e
outras para o cabo que ficava ao sul.
— Sinto muito que tenha perdido, Tom — disse Jack Aubrey quando
desjejuava na cabine com Pullings, que, tal como haviam acordado,
compareceu ao encontro pouco antes de que saísse o sol —. Foi a melhor
surprise que possa imaginar. E não havia outra maneira de fazer as coisas
porque, naturalmente, eu não ia meter a fragata entre esses obstáculos
durante a noite. Esses arrecifes são terríveis. O Azul se afundou em um lugar
de dez braças de profundidade pouco depois de pegarmos os feridos.
Nunca compreenderei como esse jovem insensato pôde se aproximar dele
sem sofrer danos.
— Lamento que o tenham ferido, senhor — respondeu Pullings —.
Espero que a ferida não seja tão grave como parece.
— Não tem importância. Inclusive o doutor diz que não tem
importância, e quando a fizeram não senti nada. Não foi mais que uma
roçadura com a lança. Quase não sofremos danos, mas o Spartan e o Azul se
destruiram um ao outro. Foi a batalha curta mais sangrenta que já vi. As
cobertas estavam cheias de sangue, completamente cheias. No Azul só
havia um pequeno grupo de homens capazes de caminhar, um grupo que
cabia em dois botes; e no Spartan, além dos feridos, havia duas vintenas de
homens. É verdade que muitos homens foram enviados para tripular as
cinco grandes presas, porém, apesar de tudo, houve uma carnificina.
— Aqui está o contramestre, senhor — informou Killick.
— Sente-se, senhor Bulkeley — ordenou Jack —. O que queria lhe
perguntar era se temos muitas bandeiras francesas.
— Somente três ou quatro, senhor.
— Então, se quiser, poderia fazer algumas mais. Não digo que tenha
que fazê-las, senhor Bulkeley, porque isso suporia ser muito presunsoso, só
digo que pense na possibilidade de fazê-las.
— Sim, senhor. Pensarei nessa possibilidade — disse o contramestre e
pediu permissão para se retirar.
— Bem, Tom — continuou Jack —, voltando às presas, não temos nem
um minuto a perder. Sei que o doutor proferirá juramentos — acrescentou,
olhando pela janela a ilhota, pela qual Stephen e Martin andavam a gatas
depois de ter deixado os feridos com os cirurgiões —, mas zarparemos rumo
a Faial tão logo o Spartan esteja em condições de navegar, e a verdade é que
tem muitos cabos e provisões de todo tipo. Avançaremos tão rápido como
possamos, a toda vela, porque o final do mês e a Constitution estão mais perto
a cada dia. Navegaremos rumo a Faial, porque as cinco presas do Spartan
estão ali, atracadas no porto de Horta. O Spartan aparecerá frente ao porto
acompanhado de um barco que se parece muito com o Azul, e, certamente,
não entrará na longa baía porque perderia muito tempo manobrando;
contudo, a Merlin, que todos conhecem muito bem, entrará, disparará duas
salvas e dará o sinal de saída. As presas recolherão âncoras e se reunirão
conosco em alto mar, onde substituiremos seus tripulantes, e então as
levaremos para a Inglaterra com uma bandeira francesa içada em cada uma
para enganar à Constitution se nos encontrarmos com ela. Entende o que
quero fazer, Tom?
CAPÍTULO 4
— É estranho que Killick não esteja aqui e que não chegue até amanhã
— disse Jack para Stephen quando lhe servia um grande pedaço de bolo de
bezerra e presunto que Sophie lhes entregara para a janta —, mas
precisamente esta tarde não me houvesse gostado tê-lo aqui nem por cem
libras. Ele gosta de ficar escutando, sabe?, e ainda que falei sinceramente aos
seguidores de Set, não poderia ter-lhes dado uma lição de moral se ele
estivesse escutando.
— Quando chegarão os homens de Ashgrove? — inquiriu Stephen.
— Em torno das quatro da tarde, se tudo sair bem e o coche não virar.
Mais ou menos na mesma hora que Pullings.
— Essa é uma má notícia. Esqueci de pôr uma camisa limpa e de trocar
esta na semana passada, e os oficiais, que agora estão cheios de orgulho e
têm alguns guinéus, vão nos convidar para almoçar amanhã para que
conheças à senhora Martin. Sinto um grande respeito por ela e não queria
parecer um tipo saído de um presídio.
Observou os punhos da camisa, que estavam um pouco sujos antes de
fazer aquela longa viagem durante a noite no imundo coche e agora eram a
vergonha da fragata.
— Que tipo mais raro você é, Stephen! — exclamou Jack —. Depois de
tantos anos no mar ainda não sabe nada da vida a bordo de um barco. Dê a
camisa a qualquer um dos antigos tripulantes da Surprise que você curou de
sífilis ou de gripe, a qualquer um deles, a Warren, a Hurst, a Farrell ou a
qualquer outro, e verá como a lavarão com a água doce do barril de onde
todos bebem, secarão na cozinha e amanhã pela manhã lhe darão ela limpa.
Entretanto pode usar uma camisa de dormir. Tenho vontade de conhecer
esta senhora, sobretudo porque é raro que elogie uma mulher. Como ela é?
— Não se gaba de ser bela nem culta nem de ter disposição para a arte
ou o trato social. Às vezes usa óculos e não é alta nem magra. Mas tem um
caráter tão doce e tão bom humor que resulta uma agradável companhia.
— Lembro que me disse que cuidou de Martin devotamente quando
lhe abriu a barriga. Alegro-me de conhecê-la na hora do almoço porque
várias horas depois seria muito tarde, e não queria que pensasse que não lhe
dou atenção. Quando Pullings, Bonden, Killick e os outros cheguarem
zarparemos, ainda que seja possível que antes carreguemos as poucas
provisões que faltam e escolha a um cozinheiro. Entraremos no Canal
durante a próxima mudança da maré ou na seguinte.
— Você me surpreende, meu amigo. Estou realmente assombrado. A
Diane não zarpará até o dia treze e hoje é quatro, e em um período mais
curto que esse poderíamos ir até Saint Martin, isto é, até o lugar do oceano
onde pensa interceptá-la.
Jack desarrolhou outra garrafa de vinho e depois de alguns momentos
explicou:
— Pela noite, enquanto vínhamos, fiquei pensando nesse assunto, e
desde então segui pensando nele e recordei o que você me disse sobre seu
capitão e sua tripulação escolhida. Acredito que é melhor ir ao seu encontro
do que esperar que chegue em frente ao cabo, expostos aos temporais, aos
fortes ventos e arriscando-nos a perder a posição vantajosa. Ademais, é
muito provável que uma corveta ou um bergantim a acompanhem até a
saída do Canal. A artilharia francesa é muito boa e, ainda que os antigos
tripulantes da Surprise poderiam lutar contra ela, com o atual complemento
da tripulação não poderíamos disparar ao mesmo tempo com as baterias dos
dois costados com a rapidez necessária.
— Então, por que não contrata mais homens, pelo amor de Deus? Por
acaso não há marinheiros que nos perseguem pelas ruas rogando-nos que os
admitamos?
— Stephen, creia-me que isso não serviria de nada. Não se pode
converter um homem em um artilheiro em uma semana nem em muitas.
Por outro lado, não podemos sair pela rua e chamar aos infantes da marinha
com um apito. Poderá dizer que são simples soldados, e é verdade, mas são
homens fortes, adestrados e disciplinados, e os trinta e tantos que
costumavam nos acompanhar nas batalhas proporcionavam uma valiosa
ajuda. Basta se recordar como disparavam as armas leves.
Stephen pensou perguntar a Jack por que o complemento da
tripulação da Surprise não era similar ao de antes e por que não incluía
homens comparáveis aos infantes da marinha, fosse qual fosse o nome que
lhes desse ao subir a bordo, mas a resposta era óbvia, pois tanto nisto como
em muitas outras coisas Jack tentava poupar.
— Meu Deus! — exclamou Jack —. Eu lhe disse que havia falado com
sinceridade aos seguidores de Set e lhes disse exatamente o que pensava,
mas meu afã de não perder sete marinheiros de primeira fez com que
atuasse com menos dureza do que se todo o complemento da tripulação
estivesse respaldado pelo Código Naval. Porém, por outro lado, devo dizer
que adotar uma postura muito dura em um caso como este incomoda mais,
muito mais à tripulação do que os oficiais déspotas, os açoites excessivos ou a
suspensão da licença para descer a terra.
— Estou seguro de que fez o adequado — disse Stephen —. Os homens
estão dispostos a ir à fogueira por nomes menos respeitáveis do que Set.
Então pensa zarpar imediatamente.
— Sim, porque me parece que o melhor é sacar ou tratar de sacar essa
fragata do porto durante a noite. Apesar de que um patrulhe uma zona
durante um longo tempo e muito perto da costa para encontrar com um
barco, é possível que no final não o encontre, o que é imprescindível se se
quer entrar em batalha com ele.
— Não posso negá-lo, meu amigo.
— Pretendo recolher âncoras amanhã no máximo, sabe? Então direi aos
tripulantes o que vamos fazer e desenharei uma grande carta marinha para
mostrar-lhes qual é a posição, a forma de Saint Martin e a profundidade das
águas que a rodeiam. Marcarei nela onde estará situada a Diane e onde nós
estaremos. Depois iremos até Polcombe ou outra dessas enseadas solitárias,
dependendo do tempo, e atracaremos a fragata. Então praticaremos como
tirá-la dali usando os botes noite depois de noite, até que todos os homens
saibam exatamente onde devem se colocar e o que devem fazer.
— Aplaudo seu plano — disse Stephen —. E seria estupendo que
durante esse tempo a fragata não estabelecesse comunicação com a costa,
pois os planos deste tipo são facilmente descobertos, sobretudo em um litoral
onde há muitos barcos fazendo contrabando. Além disso, sugiro que
contrate a alguns desses tipos forçudos e desalmados para esta operação, se
o consideras oportuno.
— Estou de acordo no que diz sobre a comunicação, e eu também
havia pensado nisso; contudo, com respeito a esses rufiães, acho que não são
necessários porque William e seus companheiros nos proporcionarão todos os
voluntários que caibam em suas lanchas e esses homens estão acostumados a
observar a disciplina naval. O que temo é que… — Jack se interrompeu e
tossiu — que haja muitos homens, e também que falem ou façam ruído.
Como havia dito antes nesse dia, mesmo um pouco de vinho era capaz
de afetar a capacidade de julgamento de um homem. Esteve a ponto de
dizer que lhe horrorizava que Babbington, por ser diligente e para demostrar
sua amizade (ainda que neste caso demostrar sua amizade era terrivelmente
prejudicial) se unisse à expedição, porque, então, todos acreditariam que a
Diane fora tirada do porto pelo capitão Babbington, que governava a corveta
Tartarus, da Armada Real, com ajuda dos botes dos barcos de guerra que
tinha sob seu comando e de um barco corsário. Tampouco podia recusar a
oferta que temia, pois a captura da Diane converteria a William Babbington,
agora um simples capitão de corveta, em um capitão de navio, o que era um
passo fundamental para chegar a ser um almirante e ter um alto comando.
Jack esteve a ponto de dizer isto a Stephen, mas não teria servido de nada
fazê-lo. Se William chegasse a compreendê-lo, tinha que compreendê-lo por
si mesmo. Jack não duvidava do afeto e da lealdade de William, que haviam
sido demostrados tantas vezes, mas pensava que seu bom coração não era
acompanhado de uma inteligência brilhante, uma inteligência que lhe
permitisse dar um valor relativo à probabilidade de uma ascensão e à remota
possibilidade da reabilitação. Mas Babbington era muito bem relacionado e
contava com o apoio de muitos parlamentares, pelo que estava certo de que
conseguiria uma ascensão logo, e Jack, em troca, talvez não voltasse a ter
uma oportunidade como essa em toda sua vida. Jack dirigiu o olhar para o
outro lado da mesa e o fixou em Stephen, que disse:
— Fazer práticas pela noite é uma excelente idéia.
— Espero que sejam úteis. Pelo menos é melhor que perseguir um touro
em uma louçaria sem um plano. Lutar com o Spartan era diferente, porque
nesse caso só tínhamos que derrotar ao inimigo; enquanto que neste temos
que derrotá-lo e, além do mais, sacar seu barco do porto sob o fogo das
baterias e dos barcos de guerra que haja ali. Se não se faz muito bem é
melhor não fazê-lo. Diga-me, Stephen, acredita que Babbington tem uma
inteligência aguda?
Stephen esteve a ponto de rir e em tom alegre respondeu:
— Aprecio a William Babbington, mas acho que ninguém mais que a
senhora Wray se atreveria a dizer que tem uma inteligência, uma mente ou
um entendimento agudo. Não há dúvida de que é sagaz nas duras ações de
guerra e quando se enfrenta com os perigos do oceano; contudo, não tem
reflexos para perceber com rapidez os assuntos mais complexos. Está
perfeitamente capacitado para as práticas noturnas que se propõe fazer,
que requerem ir de um ponto estabelecido a outro entre a umidade e a
escuridão com um claro propósito. E como lhe disse, acho uma estupenda
idéia fazê-las.
Todos os marinheiros compartiam a opinião do doutor Maturin e todos,
enquanto a fragata avançava para Polcombe com poucas velas desdobradas,
observaram com grande atenção a grande carta marítima que Jack
desenhou com giz entre o pau de mezena e o coroamento. Alguns haviam
estado em Saint Martin durante a paz e corroboraram que, em geral, o porto,
o estaleiro e os canais navegáveis não haviam mudado. Assim como seus
companheiros, estavam de acordo com Jack em que a parte mais difícil da
entrada era onde se encontrava o quebra-mar, um quebra-mar situado no
lado sul do porto, junto ao escarpado onde ficava o farol, e que protegia o
lugar das ondas do oeste e por cuja rampa patrulhavam vários sentinelas. Os
botes tinham que passar forçosamente muito perto dele, porém, por sorte,
na tripulação da Surprise havia dois homens de Jérsei, Duchamp e
Chevènement, e Jack sugeriu que dissessem rápido algo breve como
“marinheiros e provisões para a Diane” em caso de que lhes pedissem que se
identificassem.
Quando chegaram a Polcombe o vento amainou e tiveram que rebocar
a fragata pelas águas pouco profundas. A levaram até um lugar tão
recôndito que provavelmente também teriam que sacá-la a reboque, pois ali
não chegava nem uma pitada de vento que pudesse inchar suas velas,
porque o alto escarpado o impedia de entrar. Ademais, durante a maré-
cheia as ondas chocavam com força contra o arrecife de Old Scratch, uma
ilhota rochosa que protegia a entrada da enseada (que podia ser considerada
uma pequena baía) das fortes ondas do sul e do sudoeste. Ali, observados
por um milhar de curiosas ovelhas da borda superior do escarpado, que
estava coberto de capim curto e espesso, e por um assombrado pastor, os
marinheiros a atracaram com cabos às amarras da âncora e começaram a pôr
bóias para delimitar um espaço como o porto de Saint Martin, de acordo
com as distâncias e os ângulos que o tenente Aubrey medira com tanta
exatidão anos atrás. Também colocaram marcas que representavam a ponta
do cabo onde ficava o farol e o quebra-mar com sua pronunciada rampa.
Quando terminaram a tarde já estava muito avançada, mas todos estavam
tão animados que rodearam com suas lanchas a de Jack e, deixando-se levar
por seu bom humor e alentados porque os rodeava a escuridão e estavam
longe da fragata, tomaram a liberdade de pedir permissão a Jack para remar
até um ponto de alto mar que distasse dessa costa tanto como o lugar em
que se situaria a fragata do cabo e depois “fazer uma tenativa”.
— Muito bem — disse Jack —, mas temos que fazer a operação
completa. Formaremos uma linha colocando a proa de um bote atrás da
popa do outro. Todos devem remar devagar e com suavidade para não
molhar a pólvora das armas de seus companheiros. Não podem falar nem
sequer emitir um maldito burburinho, porque não estamos em Bartholomew
Fair. O primeiro homem que fale terá que voltar para sua casa a nado.
Os botes avançaram para o alto mar até que Jack achou que haviam
chegado no lugar indicado para atracar a Surprise diante do cabo Bowhead.
Ali repetiu três vezes sem a menor variação onde cada bote devia se colocar
para que seus tripulantes abordassem a fragata e o que cada grupo devia
fazer. Depois repetiu com maior ênfase o pedido de silêncio. As estrelas já
assomavam no claro céu, e guiando-se por Vega, Arturo e a bússola,
conduziu a fileira de botes até a baliza que indicava o cabo, depois até a do
quebra-mar, onde descreveram uma pronunciada curva e Duchamp gritou:
“Novos marinheiros para a Diane”, e depois até o desprevenido barco. Os
marinheiros remaram suavemente milha depois de milha enquanto a maré
subia e por fim Jack murmurou: “Cortem e afastem-nos”. Os botes, já soltos
do cabo que os mantinha unidos, aproximaram-se rapidamente dos pontos
de ataque: a roda de proa, os pescantes de proa, centrais e de popa e a
escada de popa. Então os tripulantes invadiram a fragata simultaneamente
fazendo um ruído ensurdecedor. Alguns dos gavieiros mais jovens e ágeis
subiram rapidamente pela exárcia e soltaram as maiores e as gáveas; Padeen
e um negro tão forte como ele correram para as amarras da âncora e subiram
nelas simulando que tinham um machado nas mãos; dois timoneiros
pegaram o leme; e Jack Aubrey desceu correndo para a cabine, ainda que
isto não só o fez para dar os passos necessários para apresar o capitão e os
civis e apoderar-se de seus documentos, como também para saber a hora. —
Acredito que demoramos uma hora e quarenta e três minutos — anunciou
—, mas não estou seguro de quando começamos. Da próxima vez eu levarei
uma lanterna com portinhola. Surpreenderam-se com a gritaria?
— Muito — respondeu Stephen.
— Foi realmente uma surpresa — disse Martin.
— Assustaram-se?
— Talvez nos houvesse assustado mais se tivessem rido menos. O
tempestuoso riso de Plaice podia ser reconhecido a grande distância.
— Não seria mais desconcertante um ataque silencioso? — perguntou
Martin —. Não acham que a violência sem nada que a inicie ou a anuncie é
contrária ao contrato social, conforme o qual deve precedê-la pelo menos
um desafio? Mas o ataque, tal como se fez, aterrorizou ao seu novo
cozinheiro, senhor. Estávamos falando com ele para que preparasse pilaff
para a janta quando começou o vozerio e então gritou algo, provavelmente
em armênio, saiu correndo da cabine e se agachou mais do que o
humanamente possível em um canto.
— Pilaff. Que boa idéia! Agrada-me comer um bom pilaff. Espero que
possamos desfrutar de sua companhia, senhor Martin.
Minha querida:
Acabo de chegar da Tartarus. William foi nomeado capitão de navio e
está tão contente como eu. Esta noite é uma das mais belas que já vi. O
vento sopra do OSO ou um pouco mais para S e o barômetro subiu um
pouco. Deus lhe abençoe, minha querida. Estou a ponto de me deitar. Estive
muito ocupado hoje e espero ficar ainda mais amanhã.
Jack Aubrey logrou subir a escada de popa com ajuda de Bonden, que o
empurrava por trás, mas Tom Pullings se surpreendeu a palidez marmórea
de sua cara quando o iluminou com a lanterna. Ao mesmo tempo que
desaparecia sua expressão alegre e triunfal, Pullings se adiantou para pegá-
lo no braço perguntando:
— Está bem, senhor?
— Só são alguns cortes — respondeu Jack quando avançava para o
castelo de popa, onde suas botas empapadas de sangue deixavam uma
marca a cada passo —. Que é isto? — perguntou ao ver um enorme buraco
que havia no costado de bombordo, justo no final da popa.
— Uma bomba, senhor. Os franceses lograram subir um morteiro para a
colina quando estávamos recolhendo a âncora. Mas só causou danos no
jardim, não abaixo.
— Então poderemos pôr… — começou a dizer Jack e se virou para ver
melhor a parte ferida, mas o desafortunado giro lhe causou tanta dor que
teve que se agarrar a um brandal para não cair e se passaram alguns
momentos antes que pudesse continuar — : pôr gavietes modernos por fim.
— Venha, senhor, tem que descer imediatamente — disse Pullings,
segurando-o fortemente —. Já faz mais de meia hora que o doutor subiu a
bordo e está na coberta inferior com o senhor Martin. Ajude aqui, Bonden.
Jack não pôde resistir e só murmurou:
— Nós nos aproximaremos da Tartarus com as maiores desdobradas.
Depois deixou que eles o levassem até a iluminada coberta inferior,
onde Stephen e Martin estavam atendendo aos feridos. Sentou-se em uma
maca enrolada e se pôs dobrado e encolhido, pois era a única posição em que
sentia alívio. Provavelmente perdeu a consciência, pois quando voltou a si,
estava desnudo em cima dos baús cobertos com uma lona ensangüentada e
Stephen e Martin examinavam a parte de abaixo de suas costas.
— Não é aí onde me dói — disse com uma voz assombrosamente forte
—. Me dói a maldita perna.
— Bobagem, meu amigo — replicou Stephen —. Essa é uma dor
refletida pelo nervo ciático. Estamos no ponto correto. Tem uma bala de
pistola alojada entre as duas vértebras — acrescentou apalpando a região.
— Aí? Pensei que um cavalo me dera um coice. Naquele momento
quase não notei nada.
— Todos somos falíveis. Agora quero que me escute, Jack, por favor.
Temos que tirá-la imediatamente e, se Deus quiser e tudo vai bem, só terá
que passar uma semana rígido, nada mais. Mas quando eu pegar a bala com
o saca-balas e começar a movê-la, sentirá muita dor, mais do que poderá
suportar sem se mover, assim que tenho que lhe amarrar. Aqui tens uma
almofaddinha de couro para pôr entre os dentes. Bem, já está atado. Morda
duro e relaxe as costas todo o possível. A dor não durará muito. Martin,
pode passar-me o saca-balas longo?
Para Jack pareceu que o fato de que fosse longo ou curto não tinha
nenhuma relação com a agonia que seguiu a essas palavras. A dor foi tão
grande que, apesar de sua foça, retorceu-se debaixo das amarras forradas de
couro e ouviu sair de sua boca um bramido semelhante ao de um animal, e
depois outro, e outro… Mas a agonia terminou por fim e Martin soltou as
amarras enquanto Stephen tirava a almofadinha de sua boca e secava o suor
que cobria sua testa. A dor ainda estava ali e se estendia em ondas pelo seu
corpo, mas era só uma sombra do que fora e cada vez as ondas tinham
menor alcance; eram como a baixa-mar.
— Bem, meu amigo, já terminou — disse Stephen —. A bala saiu bem e,
se não fosse assim, sua perna não teria muito valor.
— Obrigado, Stephen — murmurou Jack, ainda ofegando como um
cachorro quando eles lhe puseram uma faixa e o viraram para curar as
outras feridas: a do antebraço direito, superficial mas espetacular, e a da
coxa, um talho bastante profundo. Não notara quase nada quando lhe
fizeram, ainda que tenham provocado uma grande perda de sangue. Agora
tinha tão pouca sensibilidade como então, e ainda que notasse como
Stephen futucava nelas e as espetadas que lhe dava com a agulha ao cosê-
las, ou seja, que via, ouvia e notava Stephen trabalhando, quase não sentia
nada.
— Qual foi o saldo de feridos? — perguntou.
— Muito alta para uma batalha tão curta — respondeu Stephen —.
Não houve mortos, mas três homens têm feridas abdominais que não me
gostam nada e o senhor Bentley tem todo o corpo machucado porque
tropeçou em um balde e caiu pela escotilha central. E há muitos, muitos
mais do que pareceria razoável em uma batalha naval, que sofreram lesões
pelos coices e as mordidas dos cavalos. Tome um trago disto.
— O que é?
— Um remédio.
— Tem sabor de conhaque.
— Tanto melhor. Padeen, tu e Bonden tirarão o capitão daqui neste
lençol. Não o dobrem. Têm que pô-lo estendido na maca. O caso seguinte.
O longa sala de jantar da casa de sir Joseph, que raras vezes se usava,
estava impecável. Era antiquada, pois tinha as paredes forradas de nogueira
em vez de cetim ou mogno, mas a harpia mais exigente do mundo não
poderia encontrar nem uma mancha de poeira nele. As doze reluzentes
cadeiras de fundo largo estavam muito bem alinhadas e a toalha de mesa
era tão branca como a neve recém caída e estava completamente lisa, já que
a senhora Barlow não deixava que se formassem rugas que impedissem o
perfeito caimento do tecido, e, naturalmente, a prataria brilhava outra vez.
Contudo, sir Joseph ia de um lado para outro, movendo ora um garfo ora
uma faca, e perguntava para a senhora Barlow se estava segura de que os
diferentes pratos estariam quentes e se teria pudim suficiente porque “o
cavalheiro e o lorde Panmure” gostavam muito, e as respostas eram cada
vez mais curtas. Depois disse:
— Talvez devessemos mudar tudo. O cavalheiro está ferido na perna e
poderia estendê-la na banqueta da biblioteca, mas para que possa fazê-lo
teria que ficar sentado na ponta da mesa, mas que perna e que ponta?
A senhora Barlow pensou: “Se isto continuar por mais cinco minutos,
jogarei pela janela toda a janta, a sopa de tartaruga, as lagostas, os pratos que
acompanham ao principal, o pudim e tudo”.
Mas antes que passassem cinco minutos, antes que Blaine movesse de
lugar mais de um par de cadeiras, começaram a chegar os convidados. Era
um interessante grupo de homens: dois colegas de Blaine de Whitehall,
quatro membros da Royal Society, um arcebispo que participava na política,
vários respeitáveis terratenentes, alguns donos de seus distritos eleitorais e
outros representantes de seus condados, e dois homens da Cidade, um dos
quais era um eminente astrônomo. Ainda que nenhum pertencia à oposição,
nenhum tinha um cargo na administração nem desejava uma condecoração
nem dependia dos ministros. Todos os que ocupavam uma cadeira na
Câmara dos Lordes ou na dos Comuns podiam abster-se de dar seu voto ou
votar contra o Governo em assuntos em que estavam em franco desacordo
com a política oficial, enquanto que os que não ocupavam nenhuma cadeira
eram homens cujas recomendações tinham peso na administração.
Em ocasiões deste tipo sir Joseph contratava serventes de Gunter's, e o
esplêndido mordomo anunciou nove cavalheiros antes de dizer: “O doutor
Maturin e o senhor Aubrey”. Todo o grupo olhou com interesse para a porta,
e ali, junto à frágil figura do doutor Maturin, apareceu um homem
exageradamente alto, magro e de ombros largos que estava pálido e sério. A
seriedade e a palidez se deviam em parte à terrível fome (seu estômago
estava acostumado aos horários de efeição da Armada, que era várias horas
antes que a de Londres), mas a primeira era, sobretudo, uma armadura que
lhe protegia de possíveis gestos desrespeitosos e a segunda era
principalmente consequência de suas feridas.
Blaine avançou apressadamente e felicitou ao senhor Aubrey,
agradeceu a sua presença, disse que esperava que suas feridas não lhe
molestassem muito e perguntou se queria uma banqueta. Antes do que
mandava a etiqueta lhe seguiu um homenzinho rosado com uma casaca de
cor cereja que tinha uma expressão alegre e bondosa.
— Provavelmente não se recordará de mim, senhor — disse, fazendo
uma profunda reverência —. Tive a honra de conhecê-lo junto à cabeceira
de meu sobrinho William, o filho de minha irmã casada com o senhor
Babbington, quando o feriram na vitoriosa batalha em que tomou parte em
1804, uma das vitoriosas batalhas daquele ano. Até faz pouco me chamava
Gardner, mas agora me chamo Meyrick.
— Lembro do senhor perfeitamente, milorde — respondeu Jack —.
William e eu falamos do senhor faz apenas duas semanas. Permita-me
felicitá-lo.
— De jeito nenhum, de jeito nenhum! — exclamou lorde Meyrick —. É
ao contrário. Acho que mudar de uma câmara para outra não pode se
comparar a sacar do porto uma fragata.
Disse mais algumas frases bajuladoras e, ainda que a maioria de suas
palavras foram afogadas pelos cumprimentos dos homens que Jack já
conhecia e pelo que dizia sir Joseph ao apresentar-lhe aos demais, sua
sinceridade não podia lhe produzir outra coisa que prazer. Nenhum dos
outros convidados chegou a se expressar como lorde Meyrick (faltava-lhes
sua simplicidade) e, contudo, suas sinceras felicitações haveriam satisfeito a
qualquer homem muito mais orgulhoso de si mesmo que Aubrey. Sua reserva
e sua seriedade (que não costumava ter antes) se desvaneceram, e o xerez
de sir Joseph, que se estendeu por seu estômago reduzido e necessitado de
vinho, contribuiu para isso.
O tio de Babbington insistiu em dar a precedência a Jack, que se sentou
ao lado direito de Blaine muito alegre e desejoso de ingerir a sopa de
tartaruga que seu nariz havia detectado fazia tempo. O arcebispo bendisse a
mesa e a promessa se converteu em realidade: a parte verdosa e a parte
ambarina do interior da carapaça nadavam em seu própio suco. Depois de
alguns momentos, Jack comentou a Blaine:
— Os clássicos falam sem parar da ambrosia, mas não sabem o que
dizem. Nunca comeram sopa de tartaruga.
— Não há tartarugas no Mediterrâneo?
— Oh, sim! Mas somente tartarugas marinhas, as tartarugas das quais
se tira a carapaça. A verdadeira, a que contém a ambrosia, é a verde, e para
encontrá-la há que ir às Antilhas ou à ilha da Ascensão.
— A ilha da Ascensão! — exclamou lorde Meyrick —. Quantas
recordações me traz à memória! Que oceano de vasta eternidade! Quando
era jovem ansiava viajar, senhor. Ansiava ver a Grande Muralha chinesa, o
venenoso antiar, o fluxo e refluxo do fabuloso Nilo e as lágrimas do crocodilo,
mas quando cheguei a Calais compreendi que não poderia, que meu corpo
não suportava o movimento. Esperei nessa maldita cidade até que houvesse
um dia tranqüilo, um dia de calmaria, e então me trouxeram devagar, ainda
meio morto e cheio de melancolia. Desde então só viajei, lutei, sofri,
conquistei e sobrevivi na pessoa de William. Quantas coisas me conta,
senhor! Como o senhor e ele, na Sophie, um barco de catorze canhões,
aprisionaram o Cacafuego, de trinta e dois…
Seguiu contando com todo detalhe as batalhas em que Aubrey havia
participado e disse que tivera muita sorte nelas. Os dois terratenentes, que
estavam do outro lado da mesa, sentiram mais respeito por Jack e o olharam
surpreendidos porque sua carreira, contada fielmente, era realmente
extraordinária.
— Senhor Aubrey — murmurou Blaine, interrompendo o relato justo
quando a Surprise estava afundando um barco turco no mar Jônico —, acho
que o arcebispo quer brindar com o senhor.
Jack olhou para a ponta da mesa e ali viu ao arcebispo sorrindo-lhe e
com uma taça na mão.
— Brindo ao senhor, senhor Aubrey — sentenciou.
— Muito obrigado, milorde — respondeu Jack, assentindo com a
cabeça —. Brindo por sua felicidade.
A este brinde seguiram outros com outros cavalheiros, e Stephen,
sentado no centro do outro lado da mesa, notou que a cor voltava ao rosto
de Jack, ainda que mais rápido do que o desejável. Pouco depois notou
também que seu amigo ia começar a contar uma anedota. As anedotas de
Jack Aubrey raras vezes terminavam bem, porque não tinha talento para
contá-las, mas como sabia desempenhar o papel de convidado, olhou
alegremente para o homem que estava do seu lado e começou o relato.
— Quando era menino havia um bispo em nossa região, o bispo anterior
ao doutor Taylor, que quando foi nomeado para o cargo percorreu toda a
diocese. Foi a muitos lugares e quando chegou a Trotton não podia acreditar
que aquele lugar solitário, onde só havia algumas cabanas de pescadores na
costa, fosse uma paróquia. Então perguntou ao pastor West, que era um
excelente pescador também, e que me ensinou a pescar enguias…
Perguntou ao pastor West…
Jack franziu o cenho e Stephen juntou as mãos. Nesse ponto era onde
a anedota poderia dar a perder, dependendo da palavra que incluísse na
pergunta do arcebispo.
— Perguntou ao pastor West: “Há muitas almas aqui?”
— Stephen relaxou —. E o pastor West respondeu: “Não, milorde,
somente peixes”.
Jack Aubrey, comprazido pela boa acolhida que tivera seu relato, por
tê-lo feito quase de um puxão e porque de momento havia cumprido com as
normas sociais, passou a comer o excelente cordeiro, e ao seu redor começou
uma conversa. Alguém sentado perto do arcebispo disse que os franceses
desconheciam os costumes e os títulos ingleses, e um dos homens de
Whitehall disse:
— Sim. Quando Andréossy, o enviado de Bonaparte, estava aqui,
dirigiu-se ao meu chefe em uma carta como dom sir Williamson. Além disso,
fez algo pior: Intrigava com a esposa de um de nossos colegas, uma mulher
francesa, e quando ouviu que os Devonshire estavam em má situação
econômica, mandou-a ver a duquesa e oferecer-lhe abertamente dez mil
libras por segredos do Conselho de Ministros. A duquesa comunicou isso a
Fox.
— A ignorância será a causa que fará os franceses perderem esta guerra
— disse o homem que estava ao seu lado —. Começaram por cortar a cabeça
de Lavoisier alegando que a República não necessita de cientistas.
— Acredita que pode se dizer que os franceses são ignorantes se se
compara a sua atitude para com os balões com a nossa? — perguntou o
homem que estava sentado na frente dele —. Sem dúvida o senhor
recordará que muito cedo tiveram uma divisão aerostática e que ganharam
a batalha de Fleurus, em grande parte pela detalhada informação precisa
conseguida com os balões aerostáticos que tinham colocados a uma altura
considerável acima do inimigo. Viram quantos eram, como estavam
distribuídos e quais eram seus movimentos. E nós, em troca, o que sabemos
de balões? Nada.
— A Royal Society os condenou — interveio o arcebispo —. Lembro
muito bem a resposta que deu o Rei, orando se ofereceu a pagar alguns
testes, porque então estava fazendo retiro. A sociedade disse: “Não se pode
esperar nada de bom destes experimentos”.
— Uma parte da sociedade — disse um dos membros secamente —.
Uma minúscula parte da sociedade, um comitê formado principalmente por
matemáticos e antiquários.
O outro membro da sociedade presente disse que discordava com ele e
com os outros dois homens; contudo, Aubrey e Maturin não participaram na
discussão, pois ainda que estivessem estreitamente relacionados com a Royal
Society, passavam muito tempo fora do país e sabiam muito pouco dos
freqüentes e apaixonados debates internos e das manobras políticas, e lhes
interessavam ainda menos. Stephen dedicou toda sua atenção ao homem
que estava a sua direita, que havia viajado em um balão, e com êxito, antes
da guerra, na época em que começou o entusiasmo por eles. O homem disse
que era tão jovem e tão tonto então que não havia registrado nenhum
detalhe técnico, mas tinha um vivido recordo da surpresa e do prazer que
experimentou quando o balão, depois de passar por uma massa de névoa
cinza durante alguns momentos angustiantes, subiu entre os raios do sol.
Então pôde ver debaixo, por todos lados, brancas montanhas de nuvens
com cristas e pináculos, e acima o imenso céu, que tinha um colorido azul
mais escuro, muito mais escuro que o que vira desde a terra. Aquele era um
mundo completamente diferente e silencioso. O balão se elevava rápido,
cada vez mais rápido, sob o sol, e ele via sua sombra projetar-se sobre o mar
de nuvens.
— Meu Deus, posso ver tudo agora! — exclamou —. Quanto eu
gostaria de poder descrevê-lo! Acima, aquela enorme pedra preciosa e
abaixo, aquele extraordinário mundo por cima do qual eu passava
rapidamente com a sensação de ser um intruso.
Ashgrove Cottage
Querido Stephen:
Felicite-me! Tio Edward teve a generosidade de me oferecer a cadeira
que ocupa o representante do distrito de Milport, que é de sua propriedade.
Fomos lá e passamos um dia entre seus habitantes, homens amáveis que
tiveram a bondade de dizer que, devido ao ocorrido em Saint Martin e nos
Açores, teriam votado em mim de toda maneira, ainda que o primo Edward
não lhes houvesse aconselhado que o fizessem.
Quando estávamos lá chegou o coche de um mensageiro enviado pelos
ministros com propostas para meu tio, mas ele lhe disse que não podia
aceitá-las porque já estava comprometido comigo. O mensageiro o olhou
assombrado e se foi.
Regressei para casa depois de passar outro dia na casa de tio Edward,
porque queria que visse suas rosas. Não podia fazer menos. Quando dava a
notícia e tudo o que espero que se derive dela a Sophie pela vigésima vez,
chegou Heneage Dundas.
Sabia que a Eurydice ia regressar, mas não tive tempo para ir a Pompey
para dar-lhe as boas-vindas e, quando lhe mandei uma mensagem
convidando-o para almoçar, a resposta foi que havia ido à cidade, assim que
não nos surpreendeu vê-lo. Supusemos que regressava para seu barco e que
havia dobrado no Jericó para nos visitar.
Mas sim, nos surpreendeu que depois de ter elogiado a captura da
Diane e ter me pedido que descrevesse a operação com todo luxo de
detalhes, adotasse uma atitude estranha e se pusesse muito sério. Após um
tempo disse que tinha ido visitar-me como amigo e como emissário. Disse
que os ministros haviam ouvido que eu ia ser o representante de Milport e
que seu irmão se alegrava muito porque esse apoio adicional lhe permitiria
pressionar mais intensamente aos seus colegas para que me reabilitassem
sem condições, quer dizer, sem ter que pedir perdão. Acrescentou que para
fazer isso Melville tinha que assegurar-lhes qual seria minha postura no
Parlamento e que não me pedia que apoiasse aos ministros sempre,
dissessem o que dissessem, mas que pelo menos esperava poder dizer-lhes
que eu não me oporia a eles violenta e sistematicamente, quer dizer, que não
atuaria com veemência nem entusiasmo. Olhei para Sophie, que sabia
perfeitamente bem o que eu queria, e consentiu com a cabeça. Então disse a
Heneage que era improvável que alguma vez falasse no Parlamento de
outra coisa que não fossem questões navais, pois já vi a muitos oficiais da
marinha perderem o norte por se meter na política, e que, em geral, votaria
com muito prazer pelas medidas propostas pelo lorde Melville, a quem
estimo muito e com cujo pai tenho uma dívida de gratidão. Quanto a agir
com veemência e entusiasmo, nem mesmo meus inimigos podem me acusar
de agir assim. Heneage concordou com nisso e disse que nada podia fazê-lo
mais feliz que levar essa mensagem, que Melville lhe dissera que se a
resposta fosse favorável, começariam a revisar meus documentos
imediatamente, e que apesar de que tardariam vários meses em passar pelos
canais adequados e que não fariam público o acordo oficial até que não
pudessem fazê-lo coincidir com alguma vitória na Península ibérica ou,
melhor ainda, no mar, ele se encarregaria de que incluíssem meu nome e
meu cargo atual em uma lista especial para que considerassem a
antiguidade que realmente tenho. Oh, Stephen, como estamos contentes!
Sophie vai cantando por toda a casa. Diz que daria qualquer coisa para que
compartilhasse nossa alegria, assim que lhe faço estes garranchos com a
esperança de que lhe cheguem antes que saia para Leith. Mas se não for
assim, terei o prazer de lhe dizer isto quando nos reunamos na Suécia.
Queria fazer só uma mudança no plano que temos, e é que quando
estivermos no Báltico irei a Riga comprar cabos, paus e lona para nossa
viagem. A melhor lona que já vi em minha vida é a de Riga. Que Deus te
abençoe, Stephen. Sophie me encarrega que lhe mande um carinhoso
cumprimento. Afetuosamente,
John Aubrey
Jack entrou no quarto na ponta dos pés, com uma expressão ansiosa e
temerosa ao mesmo tempo, e o seguiram Martin e Jagiello. Beijou Diana
como é própio entre primos, sem prestar muita atenção, e pegou com afeto e
delicadeza a mão de Stephen.
— Meu pobre amigo — disse —. Como está?
— Muito bem, Obrigado, Jack. Como está a fragata? Já tem a lona?
— Está muito bem. Atravessou o Suur Väin tão veloz como um cavalo
de corridas, com as joanetes e as alas superiores e inferiores abertas e as velas
amuradas para estibordo. E passou pelo estreito canal Wormsi quase
roçando-o, de tal maneira que se podia lançar uma bolacha para a costa a
sotavento. E tem uma dúzia de rolos da lona que usam no céu.
Stephen soltou um riso escandaloso com o qual expressava sua
satisfação e disse:
— Diana, permita-me apresentar-lhe ao meu amigo íntimo o reverendo
Martin, de quem tanto ouviu falar. Senhor Martin, minha esposa.
Diana lhe estendeu a mão com um amável sorriso e disse:
— Acho que o senhor é o único de nossos amigos que foi mordido por
um macaco-da-noite.
Falaram durante muito tempo do macaco-da-noite, da capivara e do
mico. Ulrika e o lapão trouxeram café e, em uma pausa, Stephen perguntou:
— Jack, a fragata está junto ao elegante cais da velha cidade?
— Sim. Está amarrada pela proa e pela popa aos cabeços e já virou em
redondo.
— Acha que seria conveniente que subisse a bordo esta noite?
— Eu gostaria muito — disse Jack —. Não acredito que o vento se
mantenha assim outras vinte e quatro horas.
— O senhor pode viajar com uma perna quebada? — inquiriu Jagiello.
— Mersennius disse que podia se fosse até a fragata de carruagem.
Jagiello, teria a amabilidade de levar-me?
— Certamente! Certamente! Tiraremos uma porta das dobradiças, o
desceremos deitado nela e o meteremos no coche, onde o senhor Martin o
segurará. Conduzirei o coche muito devagar. E meu regimento o escoltará
como a um coronel.
— Diana, minha querida, isso lhe convém ou preferiria dispor de um
ou dois dias para fazer a bagagem?
— Em duas horas estarei pronta — respondeu Diana com os olhos
brilhantes —. Não se movam, cavalheiros, eu lhes rogo, e terminem o café.
Mandarei Pishan trazer alguns sanduíches.
Pouco depois os cavalheiros se moveram, pelo menos Aubrey e Jagiello.
Ambos foram ver se servia uma porta que Jagiello recordava que havia no
celeiro de sua avó e para ver se uma das criadas que lhe restavam podia
ajudar a preparar a bagagem.
— Ouvi Bonden lé embaixo — disse Stephen quando ele e Martim
ficaram sozinhos —. Padeen também está aqui?
— Para dizer a verdade, Maturin, não — respondeu Martin —.
Infelizmente, tivemos uma discussão esta manhã e o capitão Pullings o
acorrentou. Sinto dizer — continuou —, mas eu o surpreendi, sem a menor
intenção de encontrá-lo fazendo algo indevido, pegando láudano de um
botijão com um sifão e substituindo a tintura por conhaque.
— Claro, claro, claro — murmurou —. Que tonto eu fui! Como não me
dei conta disso?
Quando Martin terminou de contar que Padeen havia reagido
violentamente quando lhe tiraram o frasco, Stephen disse:
— Eu tenho grande parte da culpa por deixar esse tipo de coisas ao seu
alcance. Teremos que analisar seriamente a questão. Não podemos deixar
que se converta em um viciado em ópio.
Ficaram silenciosos e pensativos durante um momento. Depois Martin
contou a Stephen detalhadamente o que haviam feito em Riga e lhe falou
dos costumes dos letões e de seus amos russos. Ia falar dos mergulhões que
achava ter visto ao longe sobre a ampla Letônia quando Diana entrou. Diana
causou uma impressão tão forte em Stephen que para suportá-la foi
necessária toda a fortaleza que recuperara e as folhas que estava mascando,
pois estava com o traje de montar verde que vestia no sonho.
— Stephen — disse, com os olhos ainda mais brilhantes —, meti em um
par de baús tudo o que necessito pelo momento. O resto pode ser enviado
depois. O coche chegará dentro de cinco minutos com a porta da condessa
Tessin, mas eu não irei contigo. Necessita que um homem lhe segure e com
ele e a porta não resta espaço para mim, assim irei a cavalo — acrescentou e
riu alegremente —. Recolherei suas coisas no hotel e porei flores em nosso
camarote…
— querida, sabe onde fica a farmácia localizada perto do hotel e que
tem na vitrina monstros e um tatuetê embalsamado?
— A de um boticário muito baixinho?
— Essa mesma. Por favor vá lá… Alguém poderá segurar o cavalo?
— O lapão irá comigo.
— Compra-me todas as folhas de coca que lhe restem. Estas são só as
do fundo de um saco.
— Stephen, necessitarei de um pouco de dinheiro.
Quando ele se voltou para seu paletó, ela perguntou:
— Se dá conta de que as esposas se convertem em sanguessugas,
senhor Martin?
A Surprise, como Jack havia dito, estava amarrada ao cais pela proa e
pela popa. O convés estava deserto, já que Tom Pullings e o contador
estavam em terra tratando de decifrar as contas dos comerciantes de Riga e
um grande número de tripulantes estavam de licença até a seis. West era o
único oficial que se encontrava no castelo de popa e todos os marinheiros
que teciam esteiras e faixas para proteger os cabos no castelo eram de
Shelmerston. Bocejava e olhava distraidamente por cima do coroamento
quando viu uma mulher, exageradamente bonita, correndo a cavalo para o
cais seguida por um moço. Ela desmontou em frente da fragata, entregou as
rédeas ao moço, subiu rapidamente a bordo pela proa e se foi abaixo.
— Ei, um momento! — gritou, correndo atrás dela —, este é o camarote
do doutor Maturin.
— Sou sua esposa, senhor — disse ela —. Peço que mande o carpinteiro
pendurar uma maca para mim aqui — acrescentou assinalando o lugar.
Depois se inclinou para frente e assomou a cabeça pelo escotilhão.
— Aí estão! — gritou —. Por favor, ordene aos marinheiros que se
preparem para ajudá-lo a subir a bordo.
Instou West a sair da cabine e subir para o convés e lá ele e os
assombrados marinheiros do castelo viram um coche azul e dourado puxado
por quatro cavalos e escoltado por soldados de um regimento da cavalaria
com casacas de cor lilás com as bordas prateadas. A carruagem avançava
lentamente pelo cais e o capitão e um oficial do Exército sueco estavam
sentados no assento, enquanto que o cirurgião e seu ajudante estavam
assomados pela janela. E todos eles, acompanhados agora pela dama que
estava no convés, cantavam: “Ah tutti contenti saremo cosí, ah tutti contenti
saremo, saremo cosí…” com voz potente mas melodiosa e com uma imensa
alegria.
{1} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos
joanetes.
{2} Nunc est bibendum: Agora é hora de beber.
{3} Ballestrinque: Mar. Nó marinheiro que se forma com duas voltas de cabo,
dadas de tal modo que resultam cruzados os chicotes.
Este ePub foi criado em Fevereiro de 2014 por
LeYtor
Tendo como base tradução do Espanhol para o Português feita em
11/10/2011 por
Kleber de Souza Andrade