Do Reconhecimento À Enunciação: É Possível Falar Sobre Feminino Negro em Psicanálise?
Do Reconhecimento À Enunciação: É Possível Falar Sobre Feminino Negro em Psicanálise?
Do Reconhecimento À Enunciação: É Possível Falar Sobre Feminino Negro em Psicanálise?
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
Porto Alegre
2017
IRIMARA GOMES PEIXOTO
DO RECONHECIMENTO À ENUNCIAÇÃO: É
POSSÍVEL FALAR DE UM FEMININO NEGRO EM
PSICANÁLISE
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Profa. Luciane De Conti
________________________________________
Mestranda Taiasmin Ohnmacht
AGRADECIMENTOS
A psicanálise tem como uma de suas ferramentas de investigação teórica a escuta. A partir
desse lugar abrem-se múltiplas formas para que se produza na linguagem infinitas
significações. Em meio a essas me atento às identificações que podem ser trazidas durante a
escuta de mulheres negras. O propósito desse trabalho é construir uma narrativa que traga a
discussão da temática da cor e do feminino na perspectiva da psicanálise, num processo de
interseção. A partir de um estudo sobre o feminino na obra de Freud e sobre um feminino
negro apresentado por Ângela Davis no livro Mulher, Raça e Classe busco estabelecer
hipóteses sobre as significações feitas sobre a vivência simbólica da mulher negra e se é
possível, a partir dos resultados encontrados, falar sobre um Feminino Negro em psicanálise.
Além disso, partindo da premissa de Lacan sobre o Inconsciente estruturado como
linguagem, procuro discutir as maneiras que a raça e o gênero, marcados no laço social
como um signo linguístico, impossibilitam o estabelecimento de uma movimentação para a
ordem significante. Para isso, apresento um caso clínico fictício com questões que permeiam
a vida de uma personagem construído a partir de relatos ouvidos de diversas mulheres
negras. Assim, exemplifico a partir da fala e da vivência dessa personagem infinitas
possibilidades de reinvenção e de escape do discurso Racista e Sexista presente na cultura
brasileira. Por fim, busco apontar uma possível brecha para outras ideias de feminino negro,
que leve à não limitação derivada de uma identidade única ligada exclusivamente a
estereótipos racistas e machistas.
Davis também fala do quanto a vida doméstica durante a escravidão, aqui no Brasil
nas senzalas, era importante para vida social do coletivo. Existia uma valorização do
trabalho doméstico, já que esse trabalho era o único não controlado diretamente pelo senhor
de engenho. Era o espaço onde mulheres e homens escravizados poderiam, enfim, controlar
suas próprias ações, construir sua subjetividade, encontrarem-se como sujeitos com controle
de suas vontades e sentidos. Ela afirma: “as mulheres negras não eram diminuídas por suas
funções domésticas como acontecia com as mulheres brancas” (DAVIS, p. 29), já que essa
atividade não era de controle, mas sim de subversão. Quem tivesse controle sobre esse
espaço era responsável pelo bem-estar e manutenção da vida de uma população inteira. As
afirmações sobre o lugar de “trabalhadora em tempo integral e apenas ocasionalmente mãe e
dona de casa” abrem precedentes para que se discuta uma feminilidade diferente que se
pergunte do que se trata o feminino negro.
No infinito anseio de prover as necessidades de homens e crianças ao seu redor
(...), ela realizava o único trabalho da comunidade escrava que não podia ser direta
ou imediatamente reivindicado pelo opressor. Não havia compensações pelo
trabalho na lavoura, que de nada servia aos propósitos dos escravos. O trabalho
doméstico era o único trabalho significativo para a comunidade escrava como um
todo. (...) Foi justamente por meio dessa labuta - que há muito tem sido expressão
central do caráter socialmente condicionado da inferioridade feminina - que a
mulher negra escravizada conseguiu preparar o alicerce de certo grau de
autonomia, tanto para ela como para os homens. Mesmo submetida a um tipo
único de opressão por ser mulher, era levada a ocupar um lugar central na
comunidade escrava. Ela era, assim, essencial à sobrevivência da comunidade
(DAVIS, 2016, p.29).
Pensando na cultura atual como aquela que ainda carrega resquícios de uma
sociedade escravocrata, podemos visualizar as formas de organização políticas e culturais
dividindo papéis entre sujeitos. Dentre esses papéis, os que são desempenhados por
mulheres negras podem agir como um resultado de um corpo social que vive ainda dentro de
uma lógica racista. Exemplifico através do escrito de Fanon (1952) no livro Pele Negra
Máscaras Brancas: “Todo o problema humano exige ser considerado a partir do tempo”. A
identidade do negro vem sendo construída para além da época presente, para além da vida
do sujeito negro contemporâneo. Essa vida carrega ancestralidade junto a isso o registro de
resquícios de um momento da história que dizimou grande parte de uma população. É
possível comparar a escravidão ao Holocausto, posto que também trata-se de um genocídio.
Entretanto, o genocídio negro não recebeu reparação, também aparentemente não provocou
marca de vergonha ou pesar à população brasileira como o Holocausto provocou na história
alemã. O passado histórico cruel da escravidão, semelhante em muitas medidas no registro
de dor e de morte ao Holocausto, é considerado diferente deste porque é percebido ainda por
muitos como um momento necessário de crescimento econômico. Um momento da história
em que não se encontram dados precisos ou histórias sobre a humanização dessas pessoas
negras escravizadas, de como se sentiam e como viveram.
Lacan (1966) pensa o sujeito como um lugar a priori vazio que depende da
relação com os significantes para existir. Um significante é um elemento do discurso que
representa e determina o sujeito. Com isso podemos pensar a noção de grande Outro, aquilo
que faz enlace inconsciente do sujeito com o discurso social: o que somos depende do
Outro, é a partir desse lugar que se desenrola a cadeia significante que nos determina.
Há uma pergunta que sempre surge quando se afirma a cor como um significante
de diferentes dimensões: e o branco? Ele também não tem algo ligado a cor que o delimita
tanto quanto o negro? Sim, a cor branca também pode ser considerada um significante, mas
ela não tem a mesma dimensão que a negra, pois não foi marcada como signo. Não houve
uma concretude da palavra, ser branco é ser muitas coisas, anda entre múltiplos significados,
enquanto ser negro fica muitas vezes preso a uma única imagem, a uma única definição. A
cor traz consigo uma intensidade diferente, que não pode ser comparada e medida na mesma
dimensão que o corpo/cor branco/a. Voltando a Fanon, ele descreve o que entende como um
suposto complexo psicoexistencial das raças negras e brancas, ele diz: “Muitos pretos não se
reconhecerão nas linhas que se seguem. Muitos brancos igualmente. Mas o fato de que eu
me sinta estranho ao mundo do esquizofrênico, ou do impotente sexual, em nada muda a
realidade deles” (FANON, p. 29). O conceito de realidade aqui não se refere à ideia de real
lacaniano, mas sim à forma que a estrutura cultural do racismo afeta o corpo negro. Em
seguida, ele afirma: “Para o negro, há apenas um destino. E ele é branco” (FANON, p. 28).
Com isso podemos propor que a cor negra e a branca encontram-se em
dimensões diferentes na ordem significante, no enlace do sujeito com o mundo. Entretanto,
não se trataria apenas de uma mera identificação que é igual a qualquer outra característica,
como ser gordo ou alto, ou com qualquer outra diferença que coloque esse sujeito para fora
do padrão comum. Pensar o negro, nesse nível, nunca será como pensar o branco. Da mesma
maneira que refletir sobre a condição social do homem nunca será como refletir sobre a
mulher - inserindo assim a cor na mesma ordem do gênero como algo que faz um corte e
delimita de uma maneira diferente. A cor é uma marca que fala por si só e não pode ser
comparada ou posta no mesmo nível que outras. Na tese de doutorado de Isildinha Baptista
Nogueira a autora fala sobre como o corpo acaba agindo algumas vezes como signo e que
existem marcações que são aferidas através da imagem que o sujeito tem sobre si mesmo,
uma construção imaginária que é pautada na sua história e no seu inconsciente. O que
reforça a hipótese de que o negro carrega consigo uma diferença que se demonstra a partir
da imagem corporal.
Partimos, a partir daí, para a constituição do sujeito negro no mundo, que para
Fanon acontece de dois jeitos: a partir da alienação ou da recusa. Alienação quando o
negro(a) quer ser branco e a partir do seu comportamento busca modos de fugir de sua cor.
Por exemplo, quando um negro(a) nega a sua cor para poder se inserir em ambientes brancos
ou quando evita se relacionar afetivamente com pessoas negras acreditando que, quando
consegue o amor de uma pessoa branca, se torna branco. Já a recusa se dá pela via da
negação completa dos estereótipos colocados nesse corpo: “Eu não sou o/a negro(a) que
vocês dizem.”
Para além dos discursos que pairam sobre esse sujeito aos quais ele se faz
perceber e se reconhece, há a possibilidade de se identificar com os seus próprios ditos. É
dessa forma que escapes e subjetivações diferentes serão feitos, para além do signo já
marcado. O reconhecimento da cor enlaçada a outras significações, possibilitando a
identificação com o próprio corpo, este antes negado pela alienação de não pertencer e pela
identificação com discursos delimitantes sobre si. O sujeito da psicanálise é constituído a
partir do campo da linguagem que comporta real, simbólico e imaginário. Esse sujeito só é
possível porque entra na ordem social, o campo social é o campo do Outro, é um lugar no
sentido topológico em que o sujeito irá presumir que se encontra a Verdade. Verdade sobre
o seu próprio desejo. É a partir deste ponto que podemos pensar que a constituição do sujeito
está atrelada ao campo social e isso é uma condição para sua existência enquanto tal
(FERREIRA-LEMOS, 2011).
Penso ser pertinente fazer alguns enlaces com os quatro discursos de Lacan. Os
discursos são quatro modos de estruturação do laço social, representados por quatro lugares
diferentes: o do agente ou semblante, do trabalho ou do Outro, o da produção e o lugar da
verdade. Lacan formaliza essa teoria dos discursos a partir do Seminário 17: O avesso da
psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992).
Os quatro discursos são: o do mestre, o da histérica, o universitário e o discurso
do analista, não necessariamente seguindo uma ordem de movimentação ou cronologia
(CASTRO, 2009, p.246.).
Com essa questão trago a hipótese de que o discurso do mestre pode ser
associado ao funcionamento do racismo na nossa cultura de uma maneira simbólica. O
discurso do mestre é definido por um saber de certeza, uma ordem a qual o sujeito se aliena
e obedece. Funciona de uma maneira bem hierárquica onde o saber está sempre colocado no
Grande Outro e nunca no sujeito, que está excluído da cadeia significante. O racismo pode
funcionar dessa maneira a partir de um ideal coletivo que na maioria das vezes qualifica a
cor negra como ruim e a branca como boa, na dualidade real de dois opostos, associando a
cor negra à violência e à selvageria. Esse discurso, dentre tantas outras coisas, pode alienar o
sujeito e o manter preso à crença inerte de uma identificação racista única, sem se perceber
para além dela. O feminino também carrega esse enlace. O ideal seria que ser mulher fosse
definido para além das representações sociais hegemônicas, e sim definido por cada sujeito
na sua vivência do feminino.
Podemos pensar que para surgir o desejo o sujeito precisa movimentar-se para o
discurso histérico, um discurso que provoca um furo no saber do outro, que questiona o
mestre. Uma mulher negra não pode explicar a experiência universal de todas as outras
mulheres negras, porque existem múltiplas possibilidades de movimentação do significante,
não existiria apenas um sentido para a existência dessa mulher tanto ligada ao gênero quanto
à raça.
Infelizmente não é uma tarefa fácil falar sobre negritude no campo da psicologia.
Existem, como mais expressivos, dois pólos possíveis de construção de uma lógica teórica
com a raça como tema central. São esses através da psicologia social, que por vezes delimita
o negro a um espaço único de ação como aquele que só sofre e tem no sofrimento um espaço
único de assujeitamento, e a psicanálise. Nesta última, podemos encontrar um escape, já que
a teoria apresenta uma possibilidade de transcender a lugares únicos. Entretanto é uma
literatura baseada, em sua maioria, em escritos de Freud. É uma psicanálise baseada no
conceito de identificação, dos modos de construção de ego e Ideal de Eu. Sendo assim,
acredito que seja importante pontuar um breve escrito sobre o que existe nessa literatura e o
que psicanalistas negros vêm pontuando até então. Por isso no tópico que se segue buscarei,
diferente do primeiro, abordar como o racismo afeta a psique negra a partir das discussões
feitas sobre Ego e Ideal de Ego.
Há uma busca de todo o sujeito por um ideal de ego inatingível. Para Freud, o ego
age como mediador entre o id, o superego e o mundo externo. Ou seja, o ego faz um jogo de
forças entre os instintos do id e as exigências externas, estas baseadas no conjunto de leis
que nos constituem como sujeito através do superego (FREUD, 1923-1925). Junto a isso, há
o processo de identificação que possibilita a construção do ego. A identificação, para Freud
(1921), é o processo que transforma o externo em interno, fazendo com que a identificação
com o outro constitua o Eu. Refere-se primeiramente a um processo em que o sujeito
assimila um ou mais traços de outro indivíduo, integrando-os ao Eu e modificando-se de
acordo com os modelos em causa, desejando ser como ele (SILVA et al., 2017).
Logo o sujeito se reconhece no outro ao mesmo tempo que é reconhecido. O
mundo interno é delimitado através de identificações com o mundo externo, que são
oferecidas por aquele que ocupa o lugar de Outro, isto é, por aquele no qual o sujeito
encontra a sua representação.
Freud (1923-1925) traz a ideia de que o ideal de ego tem a missão de suprimir o
complexo de édipo, ao mesmo tempo que demanda do sujeito como deveria ser, de acordo
com o que a figura do pai quer, no que ele entende como demanda do outro. Há também o
Ego Ideal, instância que toma um modelo imaginário que se caracteriza pela idealização
maciça cujas representações são fantasmáticas, isto é, orientadas pelo ideal de onipotência
narcísica (FREUD, 1923-1925). Todo indivíduo, para se tornar sujeito, precisa de um
modelo de identificações (Ideal de Ego) que se forma no aparelho psíquico como um
modelo ideal, perfeito ou quase. O Ideal de Ego faz o vínculo com a Lei e a Ordem no que
se trata de ideais coletivos da cultura, que são percebidos simbolicamente, organizando os
sujeitos psiquicamente. O Ideal de Ego é uma exigência dificilmente burlável, que está sob o
domínio do simbólico e é “administrado” pelo Super Ego. Neusa Santos, no livro Tornar-se
Negro (1983), trata o ideal de ego como instância resultante da convergência do narcisismo,
das identificações com os pais/cuidadores com os ideais coletivos. Para autora, o cuidador
faz o enlace desse sujeito com a cultura.
O filósofo Martin Buber considerou a palavra-princípio Eu-Tu o primeiro modo de
relação humana: a relação Eu-Tu é anterior ao próprio Eu. Para ele, nós
aprendemos a ser humanos sendo chamados para uma relação Eu-Tu- na relação
um “se abre totalmente com o outro” ( BUBER, 2006).
Exemplificando isso com a infância e sua relação com o brincar, onde a criança
constrói, através de jogos imaginativos, seu ideal de ego, é possivelmente observável que
com isso ela demonstra o seu desejo de ser quem quer e quem acredita que o outro quer que
seja. Através da imagem que o outro passou como imagem ideal. Quando pensamos na
análise social percebemos que o ideal de ego imposto é um ideal de ego inatingível para
todos. Todavia, alguns sujeitos possuem ideais diferentes e demarcados de uma forma mais
peculiar que outras. Neusa Santos (1983) introduz a ideia de que a cultura promove um ideal
de ego branco ao qual o negro se funde como sujeito. É possível, nessa relação, alienar o
pensamento à ideologia identificatória defendida pelo outro. O negro nunca é reconhecido
porque a sua imagem não faz parte de nenhum ideal. Se esse Eu não for reconhecido, ele
volta o não reconhecimento para si.
A partir da experiência viva do racismo, a conceituação de Ideal de Ego Branco vai
se inscrevendo, como nos apresenta Souza (1983) em seu livro através de breves relatos de
pessoas negras que apresentam fatos durante a sua vida que marcaram a cor da pele como
algo depreciativo e violento, devido à fuga de seus próprios corpos por não conseguirem se
enxergar como negros também. Há assim, o não reconhecimento, porque a primeira regra
que o sujeito negro se impunha era a negação de qualquer semelhança ou contato com a pele
que o envolvia. Nos relatos, é descrito o ato de não se olhar no espelho, de fugir de imagens
parecidas com a sua, de não querer nenhum contato com qualquer forma de identificação
com o corpo negro.
Nessa lógica, o Ideal de Ego do Negro como Branco desenha a branquitude como o
lugar onde se deve chegar, como uma demanda maior do Superego. "O negro é diferente".
Essa diferença coloca esse sujeito num lugar que não abriga qualquer vestígio de
neutralidade e se define em relação a um outro. Assim, o branco, definido pela cultura como
proprietário exclusivo do lugar de referência, passa a ser sempre o norte, a partir do qual o
negro se auto-definirá. Não é dito que o negro é o único que se relaciona com o Ideal de
Ego, existe sempre em todo o sujeito não psicótico a demarcação dessa instância. Todos
estão insatisfeitos e vivem uma relação de tensão entre Ideal de Ego e Superego. Porém, é
necessário colocar uma diferença de nível e intensidade de insatisfação, já que todo o sujeito
negro que vive em uma sociedade racista, sem exceção, vai experienciar essa vivência de
uma forma mais forte e o desenlace se dará a partir de diferentes vias.
Uma campanha realizada no México, em 2010, promovida pelo Conselho Nacional
para Prevenir a Discriminação, realizou um experimento com bonecos e crianças. Um
boneco branco e outro negro são colocados em frente a crianças entre 4 e 6 anos de
diferentes cores. Em seguida, uma entrevistadora questiona um por um: "Qual boneco é
bonito? E qual é feio?". As respostas são todas iguais, o boneco feio é o de cor negra e o
bonito, de cor branca. Tanto para Neusa Santos quando para Fanon, o branco carrega a
imagem da beleza, da inteligência, enquanto o negro traz a imagem do selvagem, do
violento, do feio. Fanon traz uma pergunta inicial no seu escrito que decai muito bem para a
exemplificação desse ideal: o que quer o negro(a)? Ele quer ser humano. Mas ser humano é
ser branco, então é branco que o negro(a) tentará ser por todas as vias possíveis, do
comportamento à linguagem. É de reconhecimento que se fala, de uma divisão simbólica de
valores que são passadas de um para o outro.
O negro de quem estamos falando é aquele cujo Ideal de Ego é branco. O negro
que ora tematizamos é aquele que nasce e sobrevive imerso numa ideologia que
lhe é imposta pelo branco como ideal a ser atingido e que endossa a luta para
realizar esse modelo. (...) O relacionamento entre o Ego e o Ideal do Ego é vivido
sob o signo da tensão. E como não sê-lo, se o Superego bombardeia o Ego com
incessantes exigências de atingir um Ideal inalcançável? O negro, certamente, não
é o único a viver esta experiência. É certo que existe sempre, em todo sujeito não
psicótico, uma relação de tensão entre essas instâncias (...) No negro, do qual
falamos, esta relação caracteriza-se por uma acentuada defasagem traduzida por
uma dramática insatisfação, a despeito dos êxitos objetivos conquistados pelo
sujeito (SOUZA, 1983 p. 38).
A maneira que apresentarei o caso seguirá uma lógica parecida com a distribuição
de capítulos do filme Moonlight (2016). Esse longa que pretende, de um modo singelo e
sensível, mostrar a humanidade negra em sua forma criativa para além da dor. Semelhante
ao propósito que trago com o caso de Laura, de mostrar que é possível fugir do lugar comum
do gênero e da raça através do reconhecimento e da ressignificação. O relato será separado
em três partes, como no filme (1. Little,.2. Chiron e 3. Black) se sucederá na ordem 1.
Pequena, 2. Preta e 3. Laura. Meu intuito é relatar movimentos na forma em que o sujeito se
identifica consigo mesmo, marcando momentos específicos da formação de identidade: da
infância à vida adulta. Observando, dessa forma, a possibilidade de se consagrar um sujeito
de enunciação, um sujeito singular, não enclausurado a uma definição única.
4.2. Pequena
“Some say the blacker the berry, the sweeter the juice. I say the darker the flesh then the
deeper the roots.”1
O jeito que nos percebemos nunca será o jeito que o outro nos perceberá, pelo
menos não por completo, como no reflexo de um espelho. Para Pequena, foi numa
brincadeira inocente, quando o seu corpo ainda infantil se deparava com as novidades do
mundo. Foi na areia do parquinho onde desenhava riscos no chão sem controlar seus
movimentos. Lá, onde riscava como se fosse papel a areia com uma vareta fina. Ao lado de
uma coleguinha que, pequena como ela, seguia seus passos. A luz do sol atravessava as
árvores e batia no seu rosto e era bom, era tranquilo, até que um corte cessou a brincadeira.
Um grito estranho, de uma mulher com o rosto enrugado e a voz grunida: não brinca com
essa neguinha! No mesmo momento rápido, como um band-aid sendo arrancado, a menina
que brincava com ela desapareceu. Foi puxada por uma mão certeira deixando o graveto cair
no chão. O desenho ficou incompleto, disforme, Pequena deixou seu graveto cair também,
não sabia mais o que desenhava. Na sua cabeça, a palavra neguinha vibrava como uma
pergunta estranha. O que era aquilo? E por que tinha deixado aquela mulher tão nervosa?
Na hora de comprar bonecas, a mãe andou e andou por um longo tempo, visitando
todos os corredores da loja de brinquedos. Pequena não aguentava mais porque já sabia qual
boneca queria. Aquela que tinha segurado o caminho todo. Uma princesa de cabelos longos
e loiros, olhos azuis cintilantes. Só de olhar para ela seu rosto se iluminava. Como se saísse
uma luz de dentro pra fora. A mãe enfim parou num corredor e num canto escondido achou
o que queria. Mostrou para a filha, orgulhosa, o que tinha achado, o que tinha caminhado
tanto para achar. Encontrou a única boneca que tinha cabelo crespo e pele escura na loja
inteira. Pequena olhou, olhou e a cada olhar agarrava mais a princesa contra o seu peito.
Queria a boneca mais bonita. Ninguém iria brincar com ela se fosse a única que tivesse uma
boneca feia. A mãe tomou uma decisão: “então levaremos as duas”. Pequena não retrucou.
Foi para casa com a princesa nos braços e a outra boneca na sacola. Quando chegou, esperou
a mãe sair e escondeu a boneca na gaveta do quarto e nunca mais tirou ela de lá.
1
"Alguns dizem que quanto mais negra a amora, mais doce o suco. Eu digo que quanto mais escura a pele
mais profunda as suas raízes"; tradução minha.
Nesse trecho podemos observar que Pequena se deparou com algo que não entedia. Um
perigo foi atrelado à cor da sua pele quando a mãe branca da outra criança puxou a filha para
longe, temendo algo que Pequena não sabia o que era. Nesse instante ela passou a
reconhecer que havia algo de errado com a sua cor, já que aquela mulher parecia tão
desesperada e rude. No momento que se segue ela nega a boneca negra porque era de algum
modo parecida consigo. A cor causava um olhar diferente de pessoas brancas. Um olhar que
Pequena devolveu para sua boneca. Fanon descreve que o negro quer ser humano, mas
entende em algum ponto da sua história que ser humano significa negar a sua própria cor e
buscar a branquitude. Já que é nela que se reconhece a humanidade. Negar a boneca para
Pequena seria negar esse reconhecimento com esse corpo negro que no olhar do outro
assusta. Agora assusta ela também, porque no encontro com o branco o racismo produziu
marca, de alguma maneira produziu o trauma.
4.3. Preta
“The problem with gender is that it prescribes how we should be rather than recognizing
how we are. Imagine how much happier we would be, how much freer to be our true
individual selves, if we didn’t have the weight of gender expectations.”2
2
"O problema com gênero é que descreve como deveríamos ser ao invés de reconhecer como somos. Imagina
quão felizes seriamos, quão livres para ser o que somos, se não tivéssemos o peso das expectativas de gênero”;
tradução minha.
quando se enxergava no espelho ouvia nomes que sentavam sobre o seu corpo como moscas
no açúcar. Na escola chamavam ela de Preta. Era carinhoso, ela murmurava, mas a cada
sussurro quando repetia aquele apelido seu corpo se fechava como uma flor murcha. Por
vezes achava que estava entrando pela primeira vez no mundo e saindo completamente do
colo da mãe, afirmava uma independência forte, não precisava mais do olhar protetor do seu
pai e das mãos e pernas experientes dos irmãos. Mas quando foi votada a menina mais feia
numa lista que passou nas mãos de todos os meninos da escola, pediu pra mãe para voltar a
ser criança. Não queria que os seios tivessem crescido, que o corpo tivesse colocado ela na
turma das meninas. A sua nota na lista era a mais baixa, até a menina quietinha franzida de
óculos garrafais e aparelho no dente era mais bonita que ela. O que será que tinha de errado?
Naquele dia, chegou em casa e esfregou o corpo com mais força no chuveiro. A
única coisa que diferenciava ela de todas as outras meninas era a cor da sua pele. Foi o dia
que ela se tocou de algo que nunca tinha falado antes. Algo que pareceu que sempre sentia,
mas não sabia pôr em palavras.
“Eu não sabia o que era ser bonita ou feia antes de sair do portão da minha casa, do
aconchego do meu pátio, longe do farejar do meu cachorro, mas eu soube com a força de um
jato d’água cortante que a cor que cobria a minha pele por algum motivo não era bonita, que
o cabelo que crescia na minha cabeça estava, por algum motivo que eu não entendia, errado.
De repente, eu apenas entendia que eu não deveria estar aqui e por mais que eu trocasse de
roupa, que seguisse as regras que me davam, eu nunca estaria certa para aquele lugar, nunca
estaria certa pra esse mundo. Quando eu voltava pra casa, eu via que todos os outros já
sabiam da verdade que eu tinha acabado de descobrir. De algum jeito, a minha mãe que era
perfeita aos meus olhos também estava errada; meu pai que era a mais correta das pessoas
estava equivocado; meus irmãos, também, não eram certos. Antes de eu me enxergar no
espelho já existiam nomes que sentavam no meu corpo como moscas no açúcar e antes de eu
ser açúcar já me sentavam moscas.”
Dali em diante havia uma revolta. Existia uma chama que crescia e queria queimar
tudo ao redor. Não era certo se lavar com tanto afinco, sua mãe sempre lhe dizia que o corpo
era a sua primeira casa. Não era certo odiar tanto o que deveria lhe dar o aconchego de uma
morada. Foi numa brincadeira no fim da tarde com uma amiga que teve um pensamento
inédito. A menina perguntou a ela: e se pudesse se dar um nome, que nome seria? Não
pensou em nomes, pensou em adjetivos. No imaginário, diversas palavras novas surgiram
como gotas de chuva. Navegou para dentro de si e sentiu como se deslizasse num
escorregador infinito. Era divertido. Ali deixou o rosto e o corpo expostos enquanto descia o
escorredor num ritmo leve. Descia e descia sem chegar no chão, deixava grudar em si as
palavras que caíam do céu… Eram tantas, boas, ruins, neutras, estranhas, vazias. Deslizam
como seu corpo no escorredor. E o mais mágico era, que naquela brincadeira ela podia
escolher as que seriam absorvidas por sua pele.
Ela traz na fala que não sabia o que era ser bonita ou feia antes de ter posto os pés
pra fora de casa, isso indica de alguma maneira que as experiências de trauma do racismo a
definiram como feia antes de que pudesse definir por si mesma. Entretanto quando uma
amiga pergunta qual nome Preta gostaria de ter ela se permite deslocar-se das definições que
antes entendia como suas. Isso promove um alívio, um momento de liberdade, onde pode
escolher que nome se dar e para que caminho de identificações próprias seguir. Já que esses
são infinitos e com diversas qualificações e intensidades.
4.4. Laura
Ela chegou naquele dia dizendo que o seu corpo parecia que não pertencia apenas a
esse tempo. Havia algo de antes, ancestral até, com uma história que não era só dela. Algo
que trazia vários nomes e transcendia o tempo, como um labirinto com saídas incógnitas e
entradas escondidas. Lembro que achei interessante que ela chamou de templo vivo, porque
ao invés de paredes tinha pele e ao invés de portas tinha olhos e boca. O jeito que falava do
corpo trazia um tom de orgulho, como se tivesse ganhado um presente, como se soubesse de
um segredo que eu não sabia. Falou sobre um universo perdido de estrelas imortais, energias
sintonizadas na poeira de uma vida antiga. Dentre tantas coisas, falou do seu gosto por
astronomia, da formação das estrelas e de como uma Supernova, o passo de morte absoluta
de uma estrela, não deixava de ser um recomeço. Nada realmente acaba, o fim na verdade só
pode ser estipulado por nós mesmos. Só pode ser estipulado sobre aquilo que não
enxergamos. Disse que uma vez tentou matar Preta, porque a lembrança dela sufocava um
pouco o seu peito. Mesmo não encolhendo mais o corpo quando falava aquele nome, tentou
esconder a lembrança na gaveta do quarto como tinha feito com a boneca quando Pequena.
Mas não conseguiu. Ela sempre voltava clamando que não era justo apagar o que também
fez parte do processo de criação de tudo o que ela era hoje. Pedi pra ela voltar a pensar nas
estrelas, já que como tinha dito antes, tudo que tem no mundo está distribuído na matéria
que forma elas. Preta também poderia ser parte dessa matéria, tanto quanto Pequena e isso
3
"Eu pertenço profundamente a mim mesma”; tradução minha.
mudaria de que maneira essa estrela? Olhou para o teto como se olhasse o céu. E me
encarou com uma lágrima solitária descendo do olho esquerdo - Eu nunca vou perder
nenhuma delas, né? - fez a pergunta já sabendo a resposta. Sorriu secando o rosto. -Acho
que eu não preciso ser uma só.
Seguiu querendo saber um pouco de tudo. Explorando lugares que não entrava
antes porque achava que seriam proibidos pra ela. Ia com a certeza de que pra alguém era
possível e que esse alguém poderia ser ela. Dizia com uma certeza sensível, cambaleando
entre o sim e o não: deixei de ser uma só. Era uma caixa de pandora que, ao invés de trazer
tragédias, trazia perguntas. Ou como mesmo dizia: um universo imenso de galáxias
desconhecidas. Sendo menina, mulher, preta, pequena ou Laura, dentre tantos nomes,
entendia que nenhum deles a definiam por inteira, e mais importante que tudo, nenhum deles
faziam ela negar mais o seu corpo.
Era preciso deslizar, como Preta tinha feito no escorregador imaginário. Era preciso
deixar também os nomes e ser qualquer uma, deixar o próprio sentido levar até endereços
desconhecidos de identificações múltiplas. A casa do corpo pode ser a mesma, entretanto os
caminhos da Psique não suportam barreiras ou fechaduras. Era bom saber disso. Era bom e
melhor ainda saber que isso a deixava um pouco mais perto da lógica das estrelas.
Laura marca o movimento. Não final, mas estruturante que de alguma maneira
muda significações e produz novas formas de subjetivação. Devemos entender a cor branca
também como um significante, mas precisamos demarcar através da escuta do caso de Laura
que a intensidade dessa dimensão da cor é mais forte quando falamos do negro(a) e do
feminino. Laura promoveu o desencaixe, conseguiu através da fala a movimentação de uma
imagem única ligada a estereótipos de gênero e cor a outra criada por ela mesma. Já que
essa imagem anterior não a deixava deslocar-se para outros lugares. Foi no reconhecimento
do corpo como um templo vivo, como uma parte sua que demarca uma identidade que ela
conseguiu perceber-se dentro dos seus próprios discursos. O reconhecimento é parte
importante da história do sujeito porque é a partir dele que se ocupa o lugar de enunciação.
Em seguida pretendo aprofundar a movimentação do significante trazida no caso Laura
mostrando esse trajeto de mudança em uma música da Nina Simone. Música essa que
representa de uma forma extraordinária e simples como dar a si mesma novos nomes e a
partir deles produzir reconhecimento e enunciação.
Bell Hooks (2006) chama atenção para o fato de que pessoas negras usam a repressão
de seus sentimentos como uma estratégia de sobrevivência, essa característica seria uma
herança dos tempos da escravidão. A falta de humanização vivenciada por pessoas negras
nesse período fez com que adquirissem de certo modo uma máscara de invencibilidade, de
dureza, logo conter as emoções significou para muitos uma característica positiva de uma
personalidade forte. Entretanto, quando falamos de saúde mental é importante pautar que é
possível deixar essa máscara e permitir com que se mude essa realidade de diferentes
maneiras. A terapia existe justamente para permitir que o paciente expresse qualquer
emoção ou sentimento sem que se pense nisso como fraqueza, ou qualquer outra definição
que impeça o processo de abertura. Aí entra a necessidade de se pautar uma psicologia que
pense o sujeito negro em suas múltiplas facetas, percebendo que é necessário abrir outros
precedentes de estudo e outras formas de escuta.
Bell Hooks (2006) ainda no texto Vivendo de Amor fala um pouco sobre como é
preciso reconhecer que a opressão e a exploração que o sujeito negro vivencia na vida
impede e distorce a sua capacidade de amar. Nessa relação mulheres negras acabam
acostumando-se com a escassez e com o não amor nas suas vidas. Acredito que o corpo
entra nessa relação como o primeiro espaço onde se nega esse amor. Já que é nele que na
maioria das vezes se assentam os discursos sobre a cor. Como podemos perceber no caso de
Laura. Entretanto, o movimento mais saudável seria que no corpo se depositasse amor, entre
outras coisas. Que esse corpo seja o lugar onde o amor emana e onde o sujeito espelha o seu
amor ao outro. Bell Hooks diz que o amor cura, a recuperação dos impactos do racismo está
no ato de amar. Dessa maneira a autora põe como necessário o ato de se reconhecer e se
afirmar como uma estratégia de amor próprio. Como um fortalecimento da resiliência, ou
seja, do reforço da capacidade de um corpo de ser atingido por percalços e conseguir
recobrar sua forma de novo, como se fosse submetido a uma deformação elástica e voltasse
à forma anterior sem muitos danos. Estar vivendo em uma sociedade racista produz suas
marcas e muitas delas levam o sujeito a não amar a sua própria imagem. Olhar no espelho
passa a ser um ato de crítica e não de admiração, mas quando se coloca o reconhecimento
como uma forma de cultivar o amor interior novas formas de cuidado vão sendo geradas.
CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho pode-se perceber que para pensarmos o feminino negro
precisamos trabalhar na interseção de diversas possibilidades teóricas. De um lado, a ideia
de que a cultura promove um ideal de ego branco ao qual o negro se funde como sujeito e de
outro a demarcação do gênero como limitante e subjetivante de uma maneira tão marcada
quanto a cor. Trabalhando a interseccionalidade desse corpo é entendido que nesse processo
produzem-se diversas identidades e possibilidades de identificação que, através da escuta,
podem deslocar-se para diferentes lugares, subvertendo por vezes verdades e discursos
normativos sobre gênero e raça.
Para a saúde mental da mulher negra a resistência implica a reinvenção, já que a sociedade e
os modos que ela opera empurram essa mulher para a identificação com lógicas racistas e
sexistas o tempo todo, causando sofrimento e limitando a sua movimentação psíquica.
Logo, é preciso um movimento de reinvenção que seja contínuo e que pode ser possibilitado
pela escuta clínica, se esta buscar aprender sobre o feminino negro.
Concluo esse trabalho acreditando que as questões discutidas aqui poderão contribuir
para um melhor tratamento e acompanhamento da mulher negra na clínica, evitando o
silenciamento e escuta surda das questões trazidas por ela. Dessa forma, permitindo que esse
sujeito não caia em uma definição única, principalmente pautada nas normativas impostas
pelo racismo e sexismo. E, assim, possibilitando o caminho do reconhecimento e da
enunciação.
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