Trafico de Mulheres para Fins de Exploração

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ – UECE


CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS - CESA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

PRISCILA NOTTINGHAM DE LIMA

TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL:


UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE
PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ

FORTALEZA
2013
1

PRISCILA NOTTINGHAM DE LIMA

TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL:


UM ESTUDO NO NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE
PESSOAS DO ESTADO DO CEARÁ

Dissertação submetida ao Mestrado Acadêmico em


Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do
Ceará, como requisito parcial para a obtenção do grau de
mestra em Políticas Públicas e Sociedade.

Orientação: Prof.ª Dra. Maria Helena de Paula Frota.

FORTALEZA
2013
2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Universidade Estadual do Ceará
Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho
Bibliotecário Responsável – Francisco Welton Silva Rios – CRB-3 / 919

L732t Lima, Priscila Nottingham de


Tráfico de mulheres para fins de exploração sexual: um estudo no
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará /
Priscila Nottingham de Lima. — 2013.
CD-ROM. 160 f. ; 4 ¾ pol.

―CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho


acadêmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7
mm)‖.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual do Ceará, Centro
de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado Acadêmico em
Políticas Públicas e Sociedade, Fortaleza, 2012.
Área de Concentração: Políticas Públicas.
Orientação: Profa. Dra. Maria Helena de Paula Frota.

1. Tráfico de mulheres. 2. Violência de gênero. 3. Núcleo de


Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Título.

CDD: 306.74
3
4
5

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço à Deus, que trouxe crescimento espiritual para a minha vida e
nela realizou coisas maravilhosas durante esses últimos dois anos.

À minha querida e amada mãe, minha companheira e amiga, meu sustentáculo de força e
motivação para todas as horas;

À minha sobrinha Alicia, por trazer doçura, esperança e enorme alegria para minha vida;

A toda a equipe do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará, por


ter colaborado tão prontamente com essa investigação e por torcer sempre pelo meu sucesso;

À minha amiga Luana, pelo exemplo de força, perseverança e superação;

À minha amiga Lara, por compartilhar alegrias e angústias no percurso desse Mestrado;

À professora Helena Frota, pelas críticas e contribuições para o meu amadurecimento


acadêmico;

À professora Zelma Madeira, por ter acreditado na minha capacidade de avançar nessa
pesquisa e pelos anos de apoio e acompanhamento durante meu período de graduação;

À professora Dolores Mota, por tão prontamente ter aceitado participar da banca de defesa
dessa dissertação.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), por proporcionar


as condições necessárias para uma dedicação total aos estudos.
6

Duros mercadores se unem no mal,


E à meia-noite concedem o plano fatal;
Malham o primeiro elo da cadeia do terror,
Cujas vibrações se prolongam no reino da dor

[...]

Com ares enganosos dobravam a mente descuidada


Lançavam suas redes e colhiam sua presa.
Por fim, imputando-lhe uma dívida inventada,
A jogavam na masmorra, onde ficava indefesa.

[...]

Brancos ou pretos – livres ou cativos,


É tudo a mesma coisa nas mãos do malvado.
Respeito aos idosos, encanto delicado do sexo,
Lei ou sentimentos, nada detém o braço ensanguentado.

(STANFIEL apud REDIKER, 2011, p. 148; 158).


7

RESUMO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura a todas as pessoas, sem


distinção de raça, idade, religião, gênero ou classe social, proteção integral aos direitos
humanos, dentre os quais podemos citar à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Contudo, a
realidade atesta a violação sistemática desses princípios, cuja uma das corporificações têm se
transfigurado no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial. A prática foi
evidenciada nacionalmente pela primeira vez por meio da Pesquisa Nacional sobre o Tráfico
de Mulheres, Crianças e Adolescentes (Pestraf), publicada em 2002, que identificou a
existência de 241 rotas de tráfico para fins de exploração sexual no país. A visibilidade da
questão mobilizou o Estado a implantar políticas de enfrentamento por meio da criação de
Escritórios de Combate, Prevenção e Assistência as Vítimas. No Ceará, a instituição funciona
desde 2003, entretanto, devido ao decreto publicado em 2011, alterou sua nomenclatura para
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará (NETP/CE). A
experiência da pesquisadora enquanto assistente social no referido Núcleo durante os anos de
2008-2011, tornou possível a observação de dificuldades no momento da identificação dos
casos de tráfico de seres humanos por parte da equipe multidisciplinar atuante naquele local,
ocasionando na interpretação distorcida das situações e em atendimentos pontuais. O objetivo
central da presente investigação consiste, portanto, em abordar a questão do tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual comercial através da perspectiva dos profissionais
atuantes no NETP/CE. Tal recorte deu-se em decorrência da predominância desse perfil entre
os atendimentos realizados pela instituição. Para alcançar o objetivo proposto, utilizamos a
análise dos discursos como método de interpretação, associado às seguintes técnicas:
entrevista semi-estruturada, pesquisa documental e observação em campo. Como objetivos
específicos, realizamos levantamento bibliográfico das manifestações do fenômeno no Brasil
e dos documentos internacionais dos quais o país tornou-se signatário, assim como das
normativas do Estado brasileiro que abordam a questão. Tal levantamento teve como foco
principal evidenciar as características plurais e complexas do tráfico de mulheres, por vezes
confundido com prostituição ou migração de prostitutas. Realizamos ainda, como objetivo
específico, pesquisa e análise documental nos processos arquivados no campo de pesquisa
com o intuito de identificar as características principais das vítimas e agressores no tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual. Como forma de subsidiar nossa análise, a dimensão
da violência de gênero foi considerada, tendo em vista que na realidade do Estado do Ceará,
há predominância de mulheres como possíveis principais vítimas desse tipo de violência, em
oposição aos homens, que têm sido apontados como principais exploradores, conforme
atestam os dados coletados por meio da referida análise documental. Assim, essa variedade de
abordagens metodológicas foram intercaladas para viabilizar o diagnóstico crítico proposto
nessa investigação de natureza qualitativa.

Palavras-Chave: Violência de Gênero, Tráfico de Mulheres, Núcleo de Enfrentamento ao


Tráfico de Pessoas.
8

ABSTRACT

The Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988 ensure all persons irrespective
of race, age, religion, gender or social class, full protection of human rights, among which we
can mention to life, liberty and security of person. However, the reality attests to the
systematic violation of these principles, one of which embodiments have been transfigured in
the trafficking of women for sexual exploitation. The practice was highlighted nationally for
the first time by the National Research on Trafficking in Women, Children and Adolescents
(Pestraf), published in 2002, which identified the existence of 241 routes of trafficking for
sexual exploitation in the country. The visibility of the issue mobilized the State to implement
policies addressing to the creation of Offices of Combat, Victims Assistance and Prevention.
In Ceará, the institution works since 2003, however, because of a decree published in 2011,
the organization changed its nomenclature to the Center for Combating Trafficking in Persons
in the State of Ceará (NETP/CE). The researcher's experience as a social worker of the
institution during the years 2008-2011, made possible the observation of difficulties at the
time of identification of cases of human trafficking by the multidisciplinary team that active
structure, resulting in distorted interpretation of situations and punctual attendance. The
central objective of this research is therefore to address the issue of trafficking in women for
sexual exploitation through the perspective of professionals working in the NETP/CE. This
cut gave up due to the predominance of this profile between the care provided by the
institution. To achieve our objective, we use discourse analysis as a method of interpretation
associated with the following techniques: semi-structured interviews, desk research and field
observation. As specific objectives, we conducted bibliographic manifestations of the
phenomenon in Brazil and international documents to which the country became a signatory,
as well as the regulations of the Brazilian state addressing the issue. This survey focused on
highlighting the main features plural and complex trafficking of women, sometimes confused
with prostitution or migration of prostitutes. We also performed, as a specific objective,
document research and analysis in cases filed in the field of research in order to identify the
key characteristics of victims and perpetrators in the trafficking of women for sexual
exploitation. As a way to subsidize our analysis, the extent of gender violence was considered
in view of the fact that the State of Ceará, there is a predominance of women as the main of
possible victims of such violence, as opposed to men, who have been identified as major
explorers, as evidenced by the data collected through the said document analysis. Thus, the
variety of methodological approaches were merged to facilitate the diagnosis proposed in this
critical qualitative research

Keywords: Trafficking Women, Gender Violence, Núcleo de Enfrentamento e Prevenção ao


Tráfico de Pessoas.
9

SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS............................................................................10


LÍSTA DE GRÁFICOS..........................................................................................................11
LISTA DE FIGURAS.............................................................................................................12

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERCURSO TEÓRICO - METODOLÓGICO........18

1.1. Aproximações e construção do objeto de estudo.....................................................18


1.2. Natureza e Instrumentos da Pesquisa.......................................................................39
1.3. Lócus da Pesquisa: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do
Ceará.............................................................................................................................45

2. TRÁFICO DE PESSOAS E ESCRAVIDÃO: DO BRASIL COLÔNIA AOS DIAS


ATUAIS....................................................................................................................................58

2.1. Escravidão e Tráfico Negreiro..................................................................................59


2.2. A Mulher Negra e Escravizadas no Brasil Colonial.................................................65
2.3. O Tráfico Negreiro no contexto do Estado do Ceará...............................................67
2.4. Tráfico de Mulheres na Belle Époque brasileira......................................................70
2.5. Fenômeno Polimórfico: múltiplas formas de exploração no Tráfico de Pessoas
contemporâneo.................................................................................................................81

3. ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS: INSTRUMENTOS


NORMATIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS.......................................................................95

3.1. Tratados Internacionais.............................................................................................98


3.2. Protocolo de Palermo e os Instrumentos Normativos Contemporâneos................104

4. ANÁLISE DOCUMENTAL E DOS DISCURSOS: PERCEPÇÕES SOBRE OS


DADOS COLETADOS NO NETP/CE...............................................................................113

4.1. Dados do Campo: Pesquisa e Análise Documental................................................113


4.2. Oralidade em questão: análise das entrevistas........................................................127

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................147

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................152
10

APÊNDICES

APÊNDICE A – Roteiro de entrevista....................................................................................163

ANEXOS

ANEXO A – Decreto Estadual nº 30.682 de 22 de setembro de 2011, que institui, no âmbito


do Estado do Ceará, o Programa Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e cria o
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/CE) junto à Secretaria da Justiça e
Cidadania................................................................................................................................164
10

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABIN – Agência Brasileira de Inteligência


CECRIA – Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes
DDM – Delegacia de Defesa da Mulher
DECECA – Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente
EEPTSH – Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e
Assistência a Vítima
GGI – Gabinete de Gestão Integrada
GGI/CE – Gabinete de Gestão integrada do Estado do Ceará
LABVIDA – Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética
LMD – Liga Moçambicana de Direitos Humanos
NETP – Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
NETP/CE – Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará
NETP/SP – Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo
NUCEPEC – Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONU – Organização das Nações Unidas
PESTRAF – Pesquisa Nacional sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes
PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
SEJUS – Secretaria da Justiça e Cidadania
SNJ – Secretaria Nacional de Justiça
UNICRIA – Instituto das Nações Unidas de Pesquisa sobre Justiça e Crime Interregional
UNODC – Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes
11

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 01 – Número de Processos arquivados no NETP/CE entre os anos de 2003-2012.

GRÁFICO 02 – Número de Ações realizadas pelo GGI/CE com a participação do NETP/CE,


por Município, em 2009.

GRÁFICO 03 – Número de Processos referentes aos casos e possíveis casos de Tráfico de


Pessoas arquivados no NETP/CE entre os anos de 2003-2012.

GRÁFICO 04 – Tipo de Tráfico de acordo com o levantamento documental realizado nos


processos do NETP/CE.

GRÁFICO 05 – Número de vítimas descritas nos processos de Tráfico de Pessoas arquivados


no NETP/CE entre os anos de 2003-2012.

GRÁFICO 06 – Possíveis Vítimas de Tráfico de Pessoas, por sexo, de acordo com os


processos arquivados no NETP/CE.

GRÁFICO 07 – Faixa etária das mulheres possíveis vítimas de Tráfico para fins de
Exploração Sexual nos Processos do NETP/CE entre os anos de 2003-2012

GRÁFICO 08 – Naturalidade das Mulheres Possíveis Vítimas de Tráfico para fins de


Exploração Sexual descritas nos processos arquivados no NETP/CE.

GRÁFICO 09 – Escolaridade das Mulheres Vítima/Possíveis Vítimas de Tráfico para fins de


Exploração Sexual catalogadas nos processos do NETP/CE.

GRÁFICO 10 – Estado Civil das Mulheres Vítimas/Possíveis Vítimas de Tráfico para fins de
Exploração Sexual de Acordo com os processos do NETP/CE.

GRÁFICO 11 – Possíveis Agressores de Tráfico de Pessoas, por Sexo, de acordo com os


processos arquivados no NETP/CE.

GRAFICO 12 – Profissionais do NETP/CE entrevistados(as)


12

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 – Panfleto distribuído nas ações preventivas desempenhadas pelo NETP/CE

FIGURA 02 - Panfleto (frente e verso) sobre tráfico de mulheres produzido pelo Ministério
da Justiça.
13

INTRODUÇÃO

O fenômeno central que impulsionou o desenvolvimento desta pesquisa foi tráfico


de mulheres para fins de exploração sexual comercial. O interesse pela temática surgiu a partir
da experiência profissional da pesquisadora durante o período de três anos em que atuou no
antigo Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência a
Vítima do Estado do Ceará (EEPTSH), hoje Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(NETP/CE), sediado na Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado do Ceará (SEJUS/CE).

Tal atuação tornou possível perceber a dificuldade da equipe multidisciplinar em


identificar os casos de tráfico, por vezes confundindo-os com prostituição, migração de
prostitutas ou exploração sexual. Nesse sentido, a inquietação basilar que norteou o
desenvolvimento dessa pesquisa foi a de identificar como esses profissionais percebem o
tráfico de mulheres para fins de exploração sexual.

O recorte da temática deu-se em virtude da predominância de mulheres na posição


de possíveis vítimas, em oposição aos homens, que têm sido apontados como principais
exploradores de acordo com o cotidiano de atendimento do NETP/CE e conforme ratifica a
pesquisa documental realizada na instituição como etapa do processo investigativo proposto
nesse estudo.

Levando em consideração uma perspectiva histórica, enfatizamos que o tráfico de


seres humanos apresentou os primeiros indícios de sua existência no Brasil durante o período
colonial (1500-1822), quando milhares de negros e negras advindos(as) dos países africanos
foram trazidas à força de sua terra natal para executar trabalho forçado nas mais diversas
atividades de caráter braçal, com principal alocação nas fazendas canavieiras.

Nesse contexto, nossa ênfase recai sobre as mulheres negras e nas múltiplas e
diversas formas pelas quais foram exploradas naquele universo. Não apenas violadas em seu
direito de liberdade, mas por sua condição de mulher, muitas africanas e descendentes foram
violentadas sexualmente no cativeiro e/ou no translado para o Brasil. Expropriadas de seus
corpos, foram exploradas no trabalho escravo e na prostituição, sendo os rendimentos
adquiridos nessas atividades de propriedade do seu senhor, conforme atesta Joaquim Nabuco
14

(2010). Maltratadas também pelas sinhás, inúmeras mulheres negras foram mutiladas: olhos
furados, seios decepados e unhas arrancadas.

A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, apesar de representar um


marco legal para a abolição da escravatura, não foi capaz de extinguir os aspectos subjetivos
da prática: o(a) negro(a) permanece historicamente na posição de sujeição e exploração.
Associadas à esses(as) sujeitos(as), também em posição de menos favorecidos(as) na
sociedade, estão ainda o(a) pobre e a mulher.

A posição de gênero também se associa aos fatores que catalisam a ação dos
exploradores. Assim, conforme anunciado, os elementos de raça/etnia não são os únicos que
permeiam o tráfico de pessoas contemporâneo, aspectos relacionados a diversos tipos de
discriminação de origem socioeconômica e cultural se relacionam intimamente com a prática,
que tem por objetivo a sujeição e exploração das vítimas.

De acordo com o I Diagnóstico sobre o Tráfico de Seres Humanos: São Paulo,


Rio de Janeiro, Goiás e Ceará (2004), o tráfico de pessoas só é possível a partir de um longo
processo histórico e cultural de redução da humanidade do outro, que transforma, aos olhos
das redes criminosas e dos consumidores desses ―serviços‖, as vítimas em não-humanos, não-
detentores de direitos e não-iguais, permitindo a naturalização da violação dos direitos
humanos.

Embora relacionado com a escravidão, por definição1, o tráfico de seres humanos


é compreendido, resumidamente, como aquele que prevê o recrutamento ou sequestro de
pessoas, através de um aliciador, que pode lançar mão de vários tipos de estratégias;
deslocamento das mesmas e exploração no destino fim. Sendo, portanto, na minha perspectiva
de pesquisadora e profissional, o recrutamento/aliciamento, deslocamento e exploração no
destino final os elementos-chave para caracterizar a prática.

Enfatizamos ainda que o aliciamento/recrutamento pode ocorrer por meio de


coação, sequestro ou convencimento; o deslocamento deve compreender a mudança de

1
Definição baseada no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e
Crianças, mais conhecido como Protocolo de Palermo, publicado no ano 2000.
15

domicílio, devendo ocorrer entre Municípios, Estados ou Países; a exploração atualmente é


múltipla, sendo mais comum no contexto do Estado do Ceará aquela que envolve a
exploração sexual de mulheres.

O problema tornou-se publicamente evidente no Brasil especialmente a partir da


publicação, em 2002, da Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para
fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf), que identificou rotas nacionais e
internacionais de tráfico de mulheres, meninas e adolescentes, evidenciando uma realidade até
então invisível. O estudo apresentou que as cidades mais afetadas pela prática são aquelas que
estão estrategicamente localizadas nas proximidades de rodovias, portos e aeroportos, pois são
pontos de fácil mobilidade. (PESTRAF, 2002, p. 71).

O Brasil, tendo em vista a vasta extensão de seu território – com várias regiões de
fronteira –, características socioeconômicas da população, formação histórico-cultural
machista e racista, concentra elevado número de pessoas passíveis a vivenciar situação de
tráfico. Tal realidade culminou no desenvolvimento de normativas e políticas públicas
voltadas para a questão no país. Contudo, essas iniciativas têm esbarrado em compreensões
enviesadas com relação à definição do fenômeno, culminado em práticas de perseguição de
prostitutas e deportação de imigrantes.

Diante desses paradoxos, estruturou-se toda uma rede de políticas públicas de


enfrentamento ao tráfico de seres humanos no país, tendo como principal organização o
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP). Tal estrutura foi criada com base na
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, priorizando três áreas de atuação:
prevenção, assistência as vítimas e repressão aos criminosos.

Por considerar a identificação adequada dos casos de tráfico de mulheres para fins
de exploração sexual uma prerrogativa indispensável para o desenvolvimento de estratégias
de assistência e promoção dos direitos humanos fundamentais dessas pessoas, bem como para
evitar a reinserção delas no ciclo do tráfico, acreditamos ser de essencial relevância investigar
como a problemática tem sido percebida pelos profissionais que atuam no enfrentamento da
situação.
16

Dessa forma, o objetivo central desse estudo é identificar e analisar a percepção


dos profissionais atuantes no NETP/CE em relação ao tráfico de mulheres para fins de
exploração sexual comercial. Por compreender que a instituição é fruto de políticas públicas
estatais, resultado de uma compreensão do Estado acerca do tráfico de pessoas (mulheres),
estabeleceu-se como um dos objetivos específicos compreender de que maneira esse Estado
percebe o fenômeno através de suas normativas legais (tratados internacionais dos quais
tornou-se signatário e legislação nacional). Como forma de complementar a análise,
estabelecemos ainda como objetivos específicos: identificar, por meio de pesquisa
bibliográfica, as manifestações históricas da questão e investigar o perfil de vítimas e
agressores descritos(as) nos processos arquivados pelo NETP/CE.

Em posse desses posicionamentos, o trabalho foi desenvolvido em quatro


capítulos. O primeiro, intitulado de ―Considerações sobre o percurso teórico-metodológico‖,
trata do percurso teórico-metodológico da pesquisa, apresentando as aproximações com o
campo, surgimento das primeiras indagações, amadurecimento na percepção do objeto,
categorias centrais de análise, aspectos importantes em relação às posturas interpretativas e
instrumentos técnicos de investigação.

O segundo capítulo – Tráfico de pessoas e escravidão: do Brasil colônia aos dias


atuais – trata da pesquisa bibliográfica direcionada ao resgate histórico do tráfico de seres
humanos, com destaque para o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Nesse
percurso, foram apresentados elementos referentes ao período colonial, com foco nas
mulheres negras, levando em consideração especialmente o contexto nacional. Apresentamos
ainda o tráfico de escravas brancas para o Brasil no período da Belle Époque (1871-1914). Por
fim, tratamos das características contemporâneas do tráfico de pessoas. A proposta não é
apresentar o fenômeno numa perspectiva evolutiva, ou mesmo identificar uma essência para o
mesmo, mas viabilizar a compreensão histórica a partir da concepção de descontinuidade,
complexidade e metamorfose.

O terceiro capítulo, cujo título adotado foi ―Enfrentamento ao tráfico de seres


humanos: instrumentos normativos e políticas públicas‖, aborda algumas iniciativas do
Estado frente à problemática, documentos internacionais que tiveram como pauta o
enfrentamento ao tráfico de seres humanos, suas fragilidades e as modificações angariadas na
definição construída e publicada através do Protocolo de Palermo (2000). Evidencia ainda as
17

incompatibilidades do mesmo em relação ao Código Penal Brasileiro (CPB) e a estruturação


das políticas de enfrentamento ao tráfico de seres humanos atuais, tendo em vista tais
fragilidades.

O quarto e último capítulo, intitulado de ―Análise documental e dos discursos:


percepções sobre os dados coletados no NETP/CE‖ apresenta a análise documental dos
processos arquivados no NETP/CE e a análise dos discursos dos profissionais atuantes na
referida instituição, evidenciando a percepção dos mesmos no que tange à temática do tráfico
de mulheres para fins de exploração sexual, ressaltando os principais avanços e impasses
decorrentes da prática desempenhada pelos mesmos, levando em consideração,
especialmente, as lacunas legais e a dificuldade na aplicação e interpretação da lei.

Por fim, as considerações finais expressam um apanhado geral da pesquisa no


sentido de refletir de que maneira as inquietações iniciais foram respondidas, evidenciando
apontamentos da pesquisadora e sinalizando novas inquietações, numa perspectiva de indicar
possíveis aprimoramentos que possam subsidiar o enfrentamento ao tráfico de mulheres para
fins de exploração sexual comercial.
18

1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO E AS


INCURSÕES NO CAMPO DE PESQUISA

[...] não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou
tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo,
lancem sua primeira claridade. Mas essa dificuldade não é apenas negativa; não se
deve associá-la a um obstáculo cujo poder seria, exclusivamente, de cegar, perturbar,
impedir a descoberta [...] (FOUCAULT, 2008, p. 50)

1.1. Aproximações e construção do objeto de estudo

A construção do conhecimento no âmbito do tráfico de seres humanos tem sido


uma tarefa repleta de desafios: até o momento da conclusão desse estudo, não tomamos
conhecimento de nenhuma obra literária que discuta a questão em profundidade.
Identificamos alguns artigos, que pelo próprio formato que possuem, têm desenvolvimento
limitado; alguns relatórios de pesquisa de instituições como a Organização Internacional do
Trabalho (OIT), Escritório das Nações Unidas Contra Drogas e Crimes (UNODC) e
Ministério da Justiça (MJ), que apresentam uma série de dados, mas categorizam o conceito
com elementos de pouca complexidade2; e os documentos legais – nacionais e internacionais
– que abordam a temática, todavia numa perspectiva demasiadamente jurisdicional.

Atualmente, contudo, o debate em torno da temática encontra-se em centralidade e


expansão. Exemplo disso é a exibição da telenovela ―Salve Jorge‖3 pela emissora Rede
Globo, cujo um dos núcleos de enredo envolve a história de jovens mulheres enganadas por
propostas de emprego, levadas para a Europa e exploradas no mercado de venda do sexo. As
personagens retratadas são aliciadas por uma articulada rede de criminosos, acabam
aprisionadas numa boate em Istambul, na Turquia, onde são submetidas ao cárcere privado e
obrigadas a realizar programas sexuais.

Embora a novela tenha uma representação fictícia, destacamos que a iniciativa


trouxe ao debate público aspectos de uma realidade até então desconhecida em muitos
aspectos. Identificamos, inclusive, que a propagação na mídia do fenômeno pode estar

2
Em todos os relatórios de pesquisa que tive acesso, a definição de tráfico de Pessoas esteve baseada no
Protocolo de Palermo, o qual também discutiremos mais adiante nesse trabalho.
3
Novela escrita por Glória Perez e dirigida por Marcos Schechtman.
19

repercutindo no aumento das denúncias recebidas pelo NETP/CE, conforme ressalta uma das
profissionais entrevistadas nesse estudo, nomeada de Lagosta4:

Nós recebemos também várias denúncias, é... a questão da novela, dobraram as


denúncias...é até.... nós tínhamos ano passado seis casos de tráfico, possíveis casos
de tráfico né, [...] eeee... até agora nós temos doze, ééé... e de vários atores, por isso
eu tenho, tô percebendo que a rede, a partir dessa novela, vem se identificando com
a existência do fenômeno, com a existência do crime [...] (Lagosta).

Em relação ao contato com os sujeitos envolvidos no tráfico de pessoas,


considero-me privilegiada devido à experiência adquirida durante os três anos de prática
profissional no NETP/CE. Contudo, as aproximações com a temática da exploração sexual
tiveram início ainda no período de graduação, quando em 2007 fui aprovada na seleção para
participar como bolsista do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento
da Violência Sexual Infanto-juvenil no Território Brasileiro (PAIR-expansão)5, realizado nos
municípios de Caucaia, Aracati, Milagres e Sobral.

Nesse mesmo direcionamento, em 2008 participei do Projeto Escola que Protege,


também coordenado em parceria entre UECE e UFC, direcionado à promoção e defesa dos
direitos da criança e adolescente através de ações realizadas no contexto escolar. Previa a
formação continuada de professores e demais profissionais da área da educação no espaço das
instituições públicas – onde inclusive organizamos capacitações – e elaboração de material
didático à respeito da promoção desses direitos.

Ainda no ano de 2008, surgiu a oportunidade de estágio na Secretaria da Justiça e


Cidadania do Estado do Ceará. Tal órgão agrega em sua estrutura uma unidade de prevenção
e enfrentamento ao tráfico de pessoas, na época intitulada de Escritório de Combate e
Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima, para fui encaminhada.

4
Nomeação fictícia atribuída como forma de garantir sigilo à sua identidade.
5
Projeto de Extensão que ocorreu em parceria da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Universidade
Federal do Ceará (UFC) através do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (Labvida/UECE),
Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (NUCEPEC/UFC) e Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Gênero, Idade e Família (NEGIF/UFC). Trata-se de um programa que visou articular o fortalecimento das
redes de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. As ações previam coleta de dados em
campo à respeito da situação dos municípios em relação à questão (número de denúncias, processos, perfil das
vítimas e agressores, etc.) capacitações para os profissionais da rede e fortalecimento dos Conselhos de Direitos.
20

Tal contato despertou um profundo interesse em compreender melhor a realidade


que permeia o tráfico de pessoas, que se apresentou de forma intrigante e singular.
Questionamentos à respeito das motivações que levariam esses sujeitos à aceitarem a proposta
de um aliciador e compreender a predominância de mulheres na posição de vítimas e de
homens na posição de exploradores foram algumas das minhas inquietações preliminares.

Assim, as primeiras tentativas de desvendar o problema ocorreram durante a


pesquisa para o trabalho de conclusão do curso de Serviço Social6, que inclusive rendeu um
diário de campo cujo alguns trechos foram utilizados nessa dissertação. Contudo, os
elementos evidenciados nessa análise não foram capazes de oferecer respostas razoáveis à
vasta gama de inquietações da pesquisadora, que permaneceram latentes.

Em virtude dessas limitações, empreendeu-se uma segunda tentativa de desvelar a


complexidade desse objeto, numa experiência proporcionada a partir da elaboração do
trabalho de conclusão da Especialização em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos
Sociais7, apresentado e aprovado em fevereiro de 2011. Entretanto, devido ao curto prazo para
produção dessa pesquisa, muitos questionamentos permaneceram intocáveis.

Por fim, uma terceira tentativa de análise desenvolveu-se durante a experiência


desse Mestrado. Embora o recorte tenha sido redefinido, agora enfatizando o tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual, numa perspectiva de compreensão a partir dos
discursos dos profissionais atuantes na estrutura de enfrentamento, os vínculos com a temática
original permaneceram, o que favoreceu uma reaproximação mais amadurecida, partindo-se
do pressuposto de que a construção do conhecimento efetiva-se por sucessivas aproximações
com a realidade.

A nova redefinição dos elementos que tangenciam a temática deu-se em função de


observações empreendidas no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do
Ceará (NETP/CE), que revelaram a recorrente dificuldade dos profissionais envolvidos na
tarefa de identificação dos casos de tráfico.

6
Cursado na Universidade Estadual do Ceará (UECE), cuja conclusão ocorreu no semestre de 2009.1.
7
Cursado na Universidade Estadual do Ceará (UECE) pelo período de 2009 à 2011.1.
21

Evidenciamos, contudo, que a confusão conceitual na caracterização do fenômeno


não é uma realidade vivenciada apenas pelos(as) profissionais do NETP/CE. A pesquisadora
Marina P. P. de Oliveira (2008), ao realizar estudos nas sentenças judiciais entre os anos de
2003 e 2008 nos tribunais federais e estaduais brasileiros, ressalta:

O primeiro grupo de condenações, no qual se concentra a maior parte das sentenças


encontradas, atinge claramente organizações ou indivíduos que atuam para facilitar a
prostituição de terceiros, seja no Brasil, seja no exterior. Em outras palavras, os
elementos definidores do tráfico que são: a violência ou o uso da força ou abuso de
situação de vulnerabilidade no processo de aliciamento, bem como a exploração a
qual a vítima foi submetida, seja na indústria do sexo, no serviço doméstico, na
plantação de cana, etc., sequer aparecem na maior parte dos casos. (OLIVEIRA,
2008, p. 138).

De acordo com a autora, a caracterização tem ocorrido de forma demasiadamente


subjetiva. Elementos essenciais na identificação do crime, tais como o aliciamento e a
exploração da vítima, não têm sido evidenciados nos processos, o que pode indicar imprecisão
na definição adequada dos casos.

Discussões mais aprofundadas em relação a dificuldade na caracterização do


tráfico serão retomadas no terceiro capítulo desse estudo com ênfase na legislação brasileira
deficiente que o país tem sustentado até o momento, ocasionando muitas vezes na perseguição
de prostitutas, deportação e inadmissão de imigrantes, dentre outras práticas discriminatórias.

Retomando a discussão das aproximações com o campo, e tendo em vista a


pertinência de alguns questionamentos, essa pesquisa pretende identificar como o tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual tem sido percebido pela equipe multidisciplinar.
Dentro desse contexto, tentamos evidenciar o perfil das vítimas e exploradores descritos nos
processos arquivados na instituição, o caráter histórico do fenômeno, algumas de suas
múltiplas manifestações sociais e a forma como alguns documentos oficiais e legais percebem
o problema.

Como tráfico de pessoas, consideramos a definição do Protocolo Adicional à


Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças
(Protocolo de Palermo), quando afirma:
22

a) O tráfico de pessoas é o recrutamento, o transporte, a transferência, o


alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força
ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra, para fins de exploração. (CONVENÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, [s.d.], p. 42,43).

Entretanto, para compreender em profundidade essa categoria, a concepção de


exploração precisa ser discutida à luz da sociedade contemporânea. O Protocolo de Palermo
possui uma perspectiva limitada, porque descreve os tipos de exploração, sem contudo
explica-las: ―[...] A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou
outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas
similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos‖ (IDEM, p. 43).

O referido documento identifica práticas de tráfico de pessoas que podem ou não


estar ligadas às situações de escravatura ou servidão, centrado a finalidade do fenômeno na
exploração8 dos seres humanos. Devemos ressaltar que a situação de escravidão e servidão
contemporâneas diferem daquelas vivenciadas no sistema colonial escravocrata e na servidão
feudal, tendo em vista que não podemos ignorar o contexto socioeconômico em que vivemos,
que acaba imprimindo novos contornos à essas questões.

Nesse sentido, para esse estudo adotaremos a exploração sexual comercial, haja
vista que ocorrem outras manifestações de exploração sexual, com determinações múltiplas
que seriam inviáveis de abordar nesse momento, levando em consideração o caráter restrito
que uma pesquisa representa frente à realidade diversa e ampla que vivenciamos. Dessa
formas, apresentaremos adiante reflexões conceituais tecidas nesse universo.

De acordo com Marx (1996), o que difere o trabalho assalariado no capitalismo,


do sistema escravocrata e da servidão feudal, em linhas gerais, é a maneira pela qual os mais
favorecidos exploram seus subordinados. Essa exploração é exercida com o objetivo de
aquisição e acumulação de mais-valia, cujo modus operandi ocorre por meio da extensão da
jornada de trabalho, denominada pelo autor de mais-trabalho ou sobretrabalho. É exatamente
os limites – ou melhor, não-limites – da referida extensão que irão configurar o capitalismo:
―Apenas a forma pela qual esse mais-trabalho é extorquido do produtor direto, do trabalhador,
diferencia as formações sócioeconômicas, por exemplo a sociedade da escravidão da do
8
O mercador de seres humanos visa o lucro.
23

trabalho assalariado.‖ (MARX, 1996, p. 332). Tendo em vista as referidas considerações,


explicaremos tais elementos de forma mais detalhada.

Dentro do cenário de relações contraditórias e desiguais nas quais estamos


inseridos(as) ainda hoje, Marx (1996), ao analisar as relações de exploração que permeiam a
sociedade capitalista, em diversos momentos9 denunciou a condição degradante à qual
inúmeros(as) trabalhadores(as), mesmo considerados como ―livres‖, estiveram submetidos(as)
em meados do século XIX:

O sr. Broughton, um county magistrate, como presidente de uma reunião realizada


na prefeitura da cidade de Nottingham, em 14 de janeiro de 1860, declarou que no
setor da população urbana que vivia da fabricação de rendas reinava um grau de
sofrimento e miséria desconhecido no resto do mundo civilizado. (...) Às 2, 3, 4
horas da manhã, crianças de 9 a 10 anos são arrancadas de suas camas imundas e
obrigadas, para ganhar sua mera subsistência, a trabalhar até as 10, 11 ou 12 horas
da noite, enquanto seus membros definham, sua estatura se atrofia, suas linhas
faciais se embotam e sua essência se imobiliza num torpor pétreo, cuja aparência é
horripilante. [...] O sistema, como o reverendo Montagu Valpy o descreveu, é um
sistema de ilimitada escravidão, escravidão no sentido social, físico, moral e
intelectual. (LONDON DAILY TELEGRAPH apud MARX, 1996, p. 357-358).

Os relatos de Marx (1996) denunciam ainda a exploração de crianças e


adolescentes com jornadas de trabalho tão extenuantes quanto às dos adultos:

Wilhelm Wood, 9 anos de idade, tinha 7 anos e 10 meses quando começou a


trabalhar. ―Desde o começo, ele ran moulds (levava a peça modelada à câmara de
secagem e trazia de volta depois a fôrma vazia). Chega todos os dias da semana às 6
horas da manhã e pára por volta das 9 horas da noite. ‗Eu trabalho todos os dias da
semana até as 9 horas da noite. [...]‘. Portanto, 15 horas de trabalho para
uma criança de 7 anos! (MARX, 1996, p. 358).

Em relação ainda a esse primeiro momento do capitalismo industrial,


Castel (1998) descreve algumas das características aviltantes da situação enfrentada pelos(as)
assalariados(as):

Podem-se caracterizar assim os principais elementos dessa relação salarial do início


da industrialização [...]: uma remuneração próxima de uma renda mínima que
assegura apenas a reprodução do trabalhador e de sua família e que não permite
investir no consumo; uma ausência de garantias legais na situação de trabalho regida
pelo contrato de aluguel [...] (CASTEL, 1998, p. 419).

9
Vários relatos podem ser encontrados no Capítulo VIII do Livro I da obra O Capital, a partir do tópico 3,
intitulado ―Ramos da indústria inglesa sem limites legais da exploração‖ (MARX, 1996, p. 357-370).
24

Marx (1996) explica que tal situação é fruto das disposições socioeconômicas
fomentada pelo sistema capitalista de produção. Todavia, longe de defender que a exploração
ocorreu apenas com a instituição da era capitalista: ―[...] toda história tem sido uma história de
lutas de classes, de lutas entre as classes exploradas e as classes exploradoras, entre as classes
dominantes e as classes dominadas [...]‖ (MARX; ENGELS, 2004, p. 29). Contudo, o autor
enfatiza que o sistema burguês de produção é aquele que proporciona o ápice das relações
predatórias de exploração.

Para defender tal posicionamento, Marx (1996) apresenta, por uma série de
cálculos, fórmulas e argumentos, que a exploração do trabalho humano pode ser
dimensionada pela quantidade de mais-valia (base do lucro) extraída do indivíduo que se
encontra em posição inferior. Para ilustrar de forma bastante resumida, nas palavras do
próprio intelectual: ―A taxa de mais-valia é, por isso, a expressão exata do grau de exploração
da força de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista.‖ (MARX, 1996, p. 332).

Isso ocorre porque para que seja possível extrair a mais-valia, é necessário impor
ao(à) trabalhador(a) um ritmo cotidiano extra de esforço – que extrapola o trabalho
necessáripara pagar o seu salário – denominado por Marx (1996), conforme já indicamos, de
mais-trabalho ou sobretrabalho (p. 350-351). Dessa forma, é essa atividade, na perspectiva do
estudioso, que possibilita a obtenção e acumulação de lucro para o burguês, conforme
apresentamos no seguinte trecho:

O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador labuta além dos


limites do trabalho necessário, embora lhe custe trabalho, dispêndio de força de
trabalho, não cria para ele nenhum valor. Ela gera a mais-valia, que sorri ao
capitalista com todo o encanto de uma criação do nada. Essa parte da jornada de
trabalho chamo de tempo de trabalho excedente, e o trabalho despendido nela: mais-
trabalho. (MARX, 1996, p. 331).

Enfatizamos, contudo, que ao empreender tais explicações, o autor não quer


dizer que o mais-trabalho – método por excelência da exploração dos menos favorecidos –
seja criação do sistema capitalista, tanto é que salienta:

O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que parte da sociedade possua
o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao
tempo de trabalho necessário à sua autoconservação um tempo de trabalho
excedente destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos
meios de produção, seja ele proprietário ateniense, teocrata, etrusco, [...] barão
25

normando, escravocrata americano, boiardo da Valáquia, [...] moderno ou


capitalista. (IDEM, p. 349, grifo nosso).

Marx (1996) indica, todavia, que o mais-trabalho no capitalismo encontra uma


margem ilimitada de necessidade pelo caráter próprio de produção que caracteriza esse
sistema (IBIDEM, p. 349). Ou seja, o capitalismo, devido aos aspectos que o configuram, no
qual há a constante necessidade de expansão dos mercados e acumulação de mais-valia,
demanda por altíssimas margens de sobretrabalho, sempre em ordem crescente de exigência:

Tão logo porém os povos, cuja produção se move ainda nas formas inferiores do
trabalho escravo, corveia etc., são arrastados a um mercado mundial, dominado pelo
modo de produção capitalista, o qual desenvolve a venda de seus produtos no
exterior como interesse preponderante, os horrores bárbaros da escravatura, da
servidão etc. são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho. (MARX,
1996, p. 350, grifo nosso).

Portanto, a exploração, numa perspectiva marxiana, alcança elevadíssimos


patamares dentro das configurações que apresenta o sistema capitalista, exigindo jornadas de
trabalho progressivamente mais prolongadas. Dessa maneira, coloca o autor que: ―[...] a
avidez do capitalista por mais-trabalho manifesta-se no empenho em prolongar
desmedidamente a jornada de trabalho [...]‖ (MARX, 1996, p. 350-351).

Nesse ponto de sua obra, o autor apresenta sucessivos relatos de super-exploração


dos(as) trabalhadores(ras) por meio do mais-trabalho, que em muitos locais àquela época não
possuía qualquer regulamentação jurídico-legal nesse sentido. Como um dos exemplos
extremos dessa prática predatória – ou vampiresca, como diria o próprio Marx (1999)10 –
apresentamos o caso da modista inglesa Mary Anne:

[...] essas moças trabalham em média 16 1/2 horas, porém, durante a temporada
freqüentemente 30 horas sem interrupção, sendo reanimadas por meio de oferta
oportuna de Sherry, vinho do Porto ou café, quando sua ―força de trabalho‖ fraqueja.
Estava-se então no ponto alto da temporada. [...]. Mary Anne Walkley tinha
trabalhado 26 1/2 horas ininterruptas, juntamente com 60 outras moças, cada 30
num quarto, cuja capacidade cúbica mal chegava para conter 1/3 do ar necessário,
enquanto à noite partilhavam, duas a duas, uma cama num dos buracos sufocantes
em que se subdivide um quarto de dormir, por meio de paredes de tábuas. Mary
Anne Walkley adoeceu na sexta-feira e morreu no domingo, [...] O médico, Dr.
Keys, chamado muito tarde ao leito de morte, testemunhou perante o Coroner’s Jury
em secas palavras: “Mary Anne Walkley morreu, por excesso de horas de

10
―O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto
mais quanto mais trabalho vivo chupa.‖ (MARX, 1999, p. 347).
26

trabalho numa oficina superlotada e por dormir num cubículo superestreito e


mal ventilado” (MARX, 1996, p. 368-369, grifo nosso)

Embora com o decorrer dos anos, em muitos aspectos, as condições de trabalho


tenham sido adequadas e regulamentadas por meio de inúmeros manifestos e leis
trabalhistas11, a situação de super-exploração pode facilmente ser identificada em inúmeras
disposições na sociedade atual. Formas de trabalho não documentado e não regulamentado
abrem margens ainda maiores para a manutenção da situação precária de milhões de pessoas.
O tráfico de seres humanos, sem dúvida, está entre elas. Como forma de ilustrar os
argumentos, citamos o caso das bolivianas nessa situação na cidade de São Paulo:

Geralmente trabalham em média, das 7 horas da manhã até a 1 hora da madrugada,


todos os dias, como costureiras, e recebem aproximadamente 30 centavos por cada
peça. A insalubridade provocada pelo local sem arejamento e pela poeira do tecido,
que é bastante tóxica, provoca doenças pulmonares. Entre elas é comum
apresentarem um quadro de tuberculose ou de outros problemas respiratórios
(TELES, 2007, p. 39).

Demonstramos ainda as considerações de Piscitelli (2008) que, baseada em


pesquisa da qual participou, realizada com os deportados e não admitidos no Aeroporto de
Guarulhos, São Paulo, apresenta o seguinte panorama sobre o tráfico internacional de pessoas:

Os relatos freqüentemente aludiam a pagamentos mais baixos que os oferecidos a


pessoas em situação regular, ou a combinação entre baixos valores e a exigência de
jornadas extenuantes, entre 12 e 16 horas diárias, praticamente sem descanso. Às
vezes, mais de 50% dos rendimentos ficavam nas mãos de intermediadores,
freqüentemente, brasileiros. (PISCITELLI, 2008, p. 48).

Apresentados os argumentos, podemos inferir que as vítimas de tráfico atualmente


encontram-se no limiar extremo de exploração, haja vista que são expropriadas de sua
condição de humanidade, submetidas à jornadas exaustivas de trabalho e comercializadas sem
receber em troca pagamento significativo. No caso da mulher em situação de tráfico para fins
de exploração sexual comercial, a maior parte dos rendimentos adquiridos no ―serviço‖ que
presta é convertido em mais-valia para o seu explorador; o seu corpo em si torna-se
mercadoria. Sua humanidade, portanto, reduzida a condição de objeto.

11
No Brasil, a regulamentação do trabalho indica como marco jurídico-legal os avanços empreendidos no
período de Getúlio Vargas (1930-1945), que culminarão na Consolidação das Leis do Trabalho em 1943.
(ANTUNES, 2009, p. 86-85).
27

Como mercadoria, ainda numa perspectiva marxiana, poderíamos pressupor que a


vítima assume um valor de uso e um valor de troca, tendo em vista que diante da concepção
de Marx (1996), para ser mercadoria, necessariamente seria preciso incorporar ambos os
aspectos: ―Elas são só mercadorias, entretanto, devido à sua duplicidade, objetos de uso e
simultaneamente portadores de valor.‖ (MARX, 1996, p. 176).

O valor de uso decorre das características que agregam utilidade ao produto, no


caso de objetos, seria considerado o material com o qual é feito, sua durabilidade e sua
finalidade, conforme reforça Marx (1996):

A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa utilidade, porém, não paira
no ar. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem o
mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo, diamante etc. é, portanto,
um valor de uso ou bem. Esse seu caráter não depende de se a apropriação de suas
propriedades úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho. [...] O valor de uso
realiza-se somente no uso ou no consumo. (MARX, 1996, p. 164).

O valor de troca, ou simplesmente o valor da mercadoria, diz respeito ao tempo de


trabalho necessário para a produção da mesma no sistema capitalista, é o equivalente que
torna possível igualá-la a qualquer outra mercadoria, conforme expressa Marx (1996): ―[...] o
valor de troca é uma maneira social específica de expressar o trabalho empregado numa coisa
[...]‖ (IDEM, p. 206).

Na realidade, Marx (1996) vai além, pois determina que a propriedade do valor de
troca é aquela que caracteriza de fato a mercadoria enquanto coisa mercantil, tendo em vista
que o valor de uso diz respeito ao interesse que o homem direciona ao objeto, enquanto o
valor de troca possibilita dimensionar quanto custa o produto. Portanto, é esse segundo valor
que possibilita que ela se relacione com outras mercadorias:

Se as mercadorias pudessem falar, diriam: É possível que nosso valor de uso


interesse ao homem. Ele não nos compete enquanto coisas. Mas o que nos compete
enquanto coisas é nosso valor. Nossa própria circulação como coisas mercantis
demonstra isso. Nós nos relacionamos umas com as outras somente como valores de
troca. (IBIDEM, p. 207).

No caso da mulher em situação de tráfico para fins de exploração sexual


comercial, poderíamos admitir que esse valor de uso decorre de características ligadas a sua
condição de mulher, raça, etnia e faixa etária, por exemplo. Já o valor de troca, poderíamos
interpretar que estaria ligado à performance que ela desempenha enquanto profissional do
28

sexo, ou melhor, enquanto escrava sexual. Nessas condições, ela é explorada tanto pelo
cliente/consumidor como pelo(a) cafetão(ina), que se apropria dos rendimentos financeiros
adquiridos na super-exploração dessa atividade.

Marx (1996) se expressa de uma forma bastante interessante quando se refere à


relação estabelecida na sociedade burguesa entre as pessoas e as mercadorias, alegando que:
―As mercadorias são coisas e, conseqüentemente, não opõem resistência ao homem. Se elas
não se submetem a ele de boa vontade, ele pode usar de violência, em outras palavras, tomá-
las.‖ (MARX, 1996, p. 209). É bem o caso do explorador no tráfico de seres humanos: com o
claro objetivo de obter lucratividade, comercializa pessoas ―tomando-as‖ para si, podendo
fazer valer o seu intento por meio de inúmeras estratégias violentas: fraude, ameaça, coação,
cárcere, espancamento, violência sexual, dentre outras.

Contudo, a pessoa em situação de tráfico é além de mercadoria, ao mesmo tempo,


força de trabalho, à qual Marx (1996) define da seguinte maneira: ―A força de trabalho de um
homem consiste, pura e simplesmente, na sua individualidade viva.‖ (p. 99). Podemos
ressaltar ainda, na perspectiva marxiana, que o valor atribuído a essa força de trabalho ―[...] se
fixa como o de outra mercadoria qualquer [...]‖ (MARX, 1996, p. 100).

Na condição de detentora da força de trabalho, a vítima de tráfico é


exaustivamente submetida pelo explorador àquilo, conforme anteriormente por nós discutido,
que Marx (1996) chama de mais-trabalho ou sobretrabalho (1996, p. 349-350). Uma pesquisa
realizada sobre o tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual ilustra a fala
de uma vítima, nomeada ficticiamente de ―RO.‖, submetida às condições por nós indicadas:

Ah, nós ficávamos era trancadas na habitação e, quando chegavam os clientes,


tínhamos que atendê-los, nos obrigavam, os clientes e o dono também. Se nós
disséssemos que não, o cliente ia embora e o dono entrava, trabalhávamos de seis
horas até a hora que estivesse aberto o negócio. (RO. apud SODIREITOS, 2008, p.
166).

De acordo ainda com registro feitos no meu diário de campo no dia 12 de março
de 2008, por exemplo, também podemos identificar elementos que apontam para a super-
exploração do sobretrabalho no cotidiano enfrentado pela vítima de tráfico para fins sexuais:
29

Conhecemos a vítima [...] que contou as rotinas da casa de prostituição onde


trabalhou por 8 meses na Aldeota. Contou que na casa todas as meninas são maiores
de 18 anos e que muitas são de outros Estados. Na casa todas tinham uma folga na
semana e eram obrigadas a fazer uma média de 10 à 15 programas diariamente.
(Trecho do Diário de Campo do dia 12 de março de 2008).

Tendo em vista os elementos indicados, poderíamos admitir que o(a) escravo(a)


contemporâneo, vítima de tráfico de pessoas, assume portanto posição bastante similar à do
proletariado no inicio da revolução industrial: aquém de qualquer proteção, permanece
submetido às múltiplas violações dos direitos humanos, sociais e trabalhistas. A diferença é
que aqueles(as) operários(as) foram explorados com a anuência política e legal do Estado; o
escravo(a) de hoje é explorado porque se encontra na clandestinidade, muitas vezes devido à
sua situação de imigrante ilegal ou trabalhador irregular12.

Mediante todo o exposto, poderíamos resumir a caracterização do tráfico de seres


humanos pela associação das seguintes etapas: o primeiro momento, que seria a fase do
aliciamento, a principal estratégia utilizada pelos exploradores é o engano13 da vítima com
promessas de melhoria das condições de vida. No segundo momento, ocorre o deslocamento
para outra Cidade, Estado ou Nação. No terceiro momento, quando no destino final, as
vítimas são submetidas às condições de exploração.

Os elementos levantados nesse estudo, indicam que a chave do processo de


identificação do fenômeno poderia estar na associação dessas etapas, o que contudo nem
sempre é levado em consideração na elaboração e execução das políticas públicas de
enfrentamento, como perceberemos no decorrer dessa investigação mediante a fala dos(as)
entrevistados(as) e de outras evidências documentais e bibliográficas.

Salientamos ainda que a concepção de exploração considerada nesse trabalho,


decorre por meio da dominação exercida sobre os menos favorecidos(a) na sociedade atual
com o objetivo de obter sobre eles(as) algum tipo de vantagem. No caso do tráfico para fins
sexuais, podendo ser essa vantagem de ordem econômica, quando nos referimos ao aliciador e

12
Como(a) trabalhador(a) irregular consideramos aqueles(as) que não possuem carteira assinada ou que exercem
atividades que não são reconhecidas como trabalho pelo Estado, como por exemplo a prostituição.
13
Admitindo, contudo, que há outros meios para ―capturar‖ vítimas, como por exemplo através de rapto,
chantagem ou ameaça.
30

cafetão(ina) por exemplo; ou da prática sexual das vítimas, quando nos referimos ao
―cliente/consumidor‖.

No caso do recorte que atribuímos às vítimas – mulheres pobres em situação de


tráfico para fins de exploração sexual comercial – a escolha do público explorado pelos
aliciadores não é determinada exclusivamente pela posição de classe que ocupam, mas
também por outras variáveis, tais como etnia, raça e geração (valor de uso), já que serão
direcionadas para atender a demanda baseada nos interesses do mercado (clientes).

Para Weber (1999), a posição social de classe que o indivíduo ocupa na sociedade
contemporânea tem essencialmente relação com o mercado econômico, a partir disso
estabelece relações de poder por meio daquilo que cada indivíduo tem condições de possuir,
ou seja, da propriedade:

Falamos de uma "classe" quando 1) uma pluralidade de pessoas tem em comum um


componente causal específico de suas oportunidades de vida, na medida em que 2)
este componente está representado, exclusivamente, por interesses econômicos, de
posse de bens e aquisitivos, e isto 3) em condições determinadas pelo mercado de
bens ou de trabalho ("situação de classe"). (WEBER, 1999, p. 176).

O autor considera que os menos favorecidos na disposição de classe encontram-se


sujeitos a vender sua força de trabalho como meio de sobrevivência, submetendo-se por vezes
à situação de sujeição extrema: ―[...] não podem oferecer nada além de seus serviços em
forma de trabalho ou de produtos do trabalho próprio e estão obrigados a vendê-los a qualquer
preço, para garantir a mera existência.‖ (IDEM, p. 176).

Entretanto, como meio de ampliar a discussão, Weber (1999) considera os


estamentos como dimensão ampliada das relações de agremiação humanas (comunidades),
capazes de extrapolar a perspectiva restrita à renda (classe social):

Em oposição à "situação de classe", determinada por fatores puramente econômicos,


compreendemos por "situação estamental" aquele componente típico do destino vital
humano que está condicionado por uma específica avaliação social, positiva ou
negativa, da honra, vinculada a determinada qualidade comum a muitas pessoas.
(WEBER, 1999, p. 180).

Dessa forma, poderíamos dizer que associada à condição de classe, os menos


favorecidos na sociedade moderna estão submetidos também às disposições previstas nos
31

estamentos, aos quais podem ser alocados com base nos múltiplos tipos de diferenças
socialmente e culturalmente hierarquizadas, tais como as étnicas, religiosas, raciais,
sexuais, etc. Weber (1999) afirma ainda que ―[...] a diferenciação estamental coincide, por
toda parte, com uma monopolização de bens ou oportunidades ideais e materiais [...].‖
(IDEM, p. 183).

Em posse dessas considerações, poderíamos compreender que os estamentos,


devido as posições hierárquicas que geram, favorecem situações de desigualdade social.
Enfatizamos que pobreza é um fator relacionado à desigualdade social, contudo não o único,
tendo em vista que a desigualdade social pode vincular-se à diversos outros fatores ligados às
dimensões sócio e culturalmente determinadas.

Nesse sentido, poderíamos afirmar que na cultura ocidental, o homem masculino,


heterossexual, branco, cristão e economicamente favorecido ocuparia o estamento
considerado como ápice na posição de dominante e dominador. Enquanto que as demais
características sociais estariam distribuídas em posições estamentais de graus
hierarquicamente inferiores. Dentre essas disposições, para esse estudo, conforme já
enfatizado, optamos pelas mulheres pobres brasileiras, por representarem o universo que tem
sido apontado como principal atingido em relação ao tráfico para fins de exploração sexual.

Weber (1999) considera que essas disposições – tanto as de classe como as


estamentais – estão relacionadas à distribuição de poder na comunidade. Para definir a
referida categoria, o autor enfatiza: ―Por "poder" entendemos, aqui, genericamente, a
probabilidade de uma pessoa ou várias impor, numa ação social, a vontade própria, mesmo
contra a oposição de outros participantes desta.‖ (WEBER, 1999, p. 175).

Como meio de explicar essa imposição da vontade, Weber (1999) trata dos
mecanismos de dominação – como exercício de poder – que podem se operacionalizar das
mais variadas formas, destacando especialmente dois tipos: aquela em função de interesses e
aquela em virtude da autoridade:

A primeira, em seu tipo puro, fundamenta-se, exclusivamente, nas influências que


pode fazer valer, em virtude de uma propriedade garantida de alguma forma (ou de
uma habilidade disponível no mercado), e que exerce sobre a ação formalmente
"livre" e aparentemente voltada para interesses próprios dos dominados, enquanto a
32

última se baseia num dever de obediência, sem mais, que é considerado sem atenção
a quaisquer motivos e interesses. (IDEM, p. 189).

Isso significa, essencialmente, que a dominação em função de interesses parte do


pressuposto da submissão voluntária do dominado (por acreditar que está sendo beneficiado
de alguma forma), já a dominação autoritária impõe a obediência dos dominados mesmo
contra a vontade desses (por meio, por exemplo, da lei, justiça, regulamento, ameaça, coação
ou força física). Embora distintas, essas formas de dominação podem se mesclar, conforme
indica o próprio autor: ―[...] toda forma típica de dominação, em virtude de situação de
interesses, particularmente em virtude de uma posição monopolizadora, pode transformar-se,
gradualmente, numa dominação autoritária.‖ (IBIDEM, p.189).

Vale ressaltar que Weber (1999), paradoxalmente, menciona que a dominação,


qualquer que seja sua modalidade, pressupõe o interesse mínimo do subordinado em
obedecer14, inclusive nos casos de dominação autoritária. Se assim considerássemos o
fenômenos do tráfico de pessoas, esse interesse poderia ser em função da vontade em
continuar viva, ou para preservar a vida de alguém que ama, ou ainda para não ser presa ou
punida15. Entretanto, o que dizer dos casos de tráfico onde não há o emprego da repressão?

Foucault (2011) aborda a questão do poder numa perspectiva mais ampliada, pois
considera a base de compreensão dessa categoria nas complexas relações que permeiam a
produção de coisas, indução do prazer, formação de saber, produção de discursos.
(FOUCAULT, 2011, p. 8). Ainda nas palavras do teórico: ―Deve-se considerá-lo como uma
rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa
que tem função de reprimir‖ (IDEM, p. 8, grifo nosso).

Percebendo o poder como essa rede produtiva, poderíamos compreender a


existência de casos de tráfico de seres humanos onde não é preciso que o explorador faça
necessariamente uso da violência física, ameaça, coação ou cárcere para que o fenômeno
esteja caracterizado, ou seja, poderíamos admitir que nem sempre estará presente a utilização

14
―[...] em toda relação de dever autoritária, certo mínimo de interesse em obedecer, por parte do submetido,
continua sendo, na prática, a força motriz normal e indispensável da obediência.‖ (WEBER, 1999, p. 190).
15
Punição no caso da imigração ilegal, inclusive sendo esse tipo de ameaça uma das estratégias utilizadas pelas
quadrilhas no tráfico de seres humanos, onde é comum assustarem as vítimas com o risco de serem deportadas
para o país de origem ao qual muitas não querem retornar.
33

de mecanismos de repressão para que a exploração das vítimas se efetive. Em muitos casos,
conforme demonstraremos adiante, iremos identificar pessoas que se submetem(ram)
passivamente à essa exploração.

Encontraremos ocorrências onde as mulheres em situação de tráfico para fins de


exploração sexual comercial não se consideram vítimas do crime, conforme coloca a
pesquisa intitulada Jornadas Transatlânticas (2011), realizada em parceria do Ministério da
Justiça com o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC) e a União
Europeia:

Existem mulheres e transexuais que acreditam não sofrer exploração. Eles


expressaram gratidão pela pessoa que os ajuda(ou) a ganhar dinheiro e eles
percebem as transações econômicas com a cafetina como parte de uma troca justa. A
exploração é mantida como estratégia para melhorar as suas condições de vida.
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011, p.175).

Tais posicionamentos podem indicar, na realidade, as múltiplas situações onde as


relações de dominação permeiam também campos bem diversos daqueles que acreditamos
serem os comumente mais utilizados pelas quadrilhas e redes de exploração de mulheres
(repressivos), designando que a percepção de valores (ou não-valores) vinculados às
disposições de classe e estamento social também entram nesse complexo jogo de dominação.

Como meio de ilustrar os elementos acima expostos, apresentamos trecho da


pesquisa Jornadas Transatlânticas (2011), que faz menção às formas como a maioria das
quadrilhas de tráfico de pessoas têm agido ultimamente:

[...] o processo de recrutamento parece ter evoluído, em alguns casos, do modelo


clássico – que utiliza as características típicas do tráfico de seres humanos como o
engano, o rapto ou a ameaça/violência física – para uma abordagem aparentemente
mais negociada na qual as vítimas percebem-se como parceiras de negócio em
relação aos recrutadores. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011, p. 17).

Outra pesquisa realizada sobre o tráfico internacional de mulheres para Guiana


Francesa e Suriname apresenta os seguintes argumentos em relação às vítimas escutadas na
investigação: ―A mulher traficada nem sempre se reconhece como vítima de um crime, dada
sua construção subjetiva de aceitar o subjugo. No máximo, ela sente-se explorada ou
34

percebe-se apenas como uma trabalhadora migrante que teve má sorte [...]‖
(SODIREITOS, 2008, p. 25).

Discutir e repensar as relações sociais estabelecidas entre os mais favorecidos e


menos favorecidos na sociedade em que vivemos é prerrogativa fundamental para
desconstruir elementos de dominação e exploração simbolicamente introjetados e
naturalizados. No contexto do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual é possível
indicar, portanto, que mecanismos de dominação estejam talvez repercutindo na percepção
dessas mulheres enquanto vítimas. Em relação à esse último aspecto, os autores Marrey e
Ribeiro (2010) informam:

Pessoas traficadas podem apenas querer esquecer o que aconteceu com elas, como se
isso fosse um pesadelo, uma escolha sem sorte mediante a qual elas carregam toda a
responsabilidade ou apenas registram mais uma etapa de vida repleta de violência e
exploração. Elas podem não perceber isso como uma violação dos seus direitos
humanos que necessita ser confrontada. (MARREY; RIBEIRO, 2010, p. 55).

A discussão pode apontar para um processo de autodepreciação vivenciado por


algumas mulheres que estiveram em situação de tráfico, como se pelo fato de serem
prostitutas ou imigrantes indocumentadas justificasse os maus-tratos sofridos. Não
acreditamos que tal processo seja espontâneo, mas fruto de relações de poder que por meio da
dominação sutilmente interferem no julgamento e percepção do indivíduo. Conforme ressalta
Foucault (2011),

[...] a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela institui
cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até
nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é
destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. (p. 25).

No que se refere ao recorte direcionado ao tráfico de mulheres para fins de


exploração sexual comercial e a seleção da categoria violência de gênero se definiram a partir
das especificidades identificadas no próprio campo de pesquisa e atuação profissional da
pesquisadora. No cotidiano de trabalho, observou-se que a demanda recorrente referia-se à
jovens mulheres, garotas de programa, convidadas para exercer a prostituição em outras
localidades. Em contrapartida, percebia-se a predominância de homens na posição de
agressores (em geral, aliciador). A análise documental exposta capítulo quatro dessa pesquisa
demonstra e reafirma em números aquilo que já era percebido na prática.
35

Aquém desses elementos, não podemos ignorar a demanda por esses serviços, ou
seja, a clientela que busca pelo mercado do sexo que, como se sabe (e demonstraremos), é
predominantemente masculina. Tais sujeitos não serão abordados em profundidade nessa
pesquisa, contudo salientamos que eles ocupam um papel fundamental na perpetuação desse
tipo de violência, já que o intuito do traficante de mulheres é lucrar e esse lucro só é possível
se existirem compradores para sua ―mercadoria‖.

Uma pesquisa realizada sobre a condição de mulheres em situação de tráfico no


Suriname estabelece ainda uma relação entre o perfil das vítimas e a demanda pelos serviços
sexuais: ―O perfil é estabelecido pelos traficantes em função da demanda do mercado (os
clientes), para eleger a mercadoria (as mulheres).‖ (SODIREITOS, 2008, p. 148).

Outro dado extremamente relevante em relação aos clientes que podemos pincelar
nesse primeiro momento, embora não seja nosso foco, diz respeito às informações publicadas
pelas pesquisadoras Anderson e Davidson (2002), respectivamente ligadas à Universidade
norte-americana de Oxford e a Universidade inglesa de Nottingham, em pesquisa intitulada
―The Demand Side of Trafficking? A Multi Country Pilot Study‖16. Nesse estudo, que contou
com questionários e entrevistas direcionadas à homens que usufruem do mercado do sexo,
foram inqueridos, dentre outras coisas, se possuíam preferência por prostitutas
estrangeiras/imigrantes e por quais motivos. A pesquisa apontou que o clientes estabelecem
uma hierarquia para essas prostitutas de acordo com o país de origem e raça das mesmas.
Dessa forma, clientes indianos, por exemplo, consideram as prostitutas que trabalham em
Nova Deli (Capital da Índia) da seguinte forma:

In Delhi, most clients imagined dark-skinned women and girls from the Nat Bedia
community as standing at the bottom of this hierarchy, followed by dark-
skinned local sex workers, then by lighter-skinned Nepali sex workers. White
European sex workers were normally placed at the apex of the hierarchy.
Furthermore, some men perceived a link between the client’s social status and
the racial or ethnic identity of the sex worker whose services he consumes.17
(ANDERSON; DAVIDSON, 2002, p. 17).

16
O lado da Demanda do Tráfico? Um Estudo Piloto Multinacional. (Tradução livre da pesquisadora)
17
Em Nova Deli, a maioria dos clientes imagina mulheres de pele escura e meninas da comunidade Bedia Nat
como estando na base desta hierarquia, seguidas pelas prostitutas de pele escura locais, em seguida, pelas
trabalhadoras do sexo nepaleses de pele mais clara. Trabalhadoras do sexo brancas e europeias estavam
normalmente colocadas no topo da hierarquia. Além disso, alguns homens percebem uma ligação entre status
social do cliente e identidade racial ou étnica da trabalhadora do sexo cujos serviços que consome. (Tradução
livre da pesquisadora).
36

Ou seja, de acordo com a pesquisa, o cliente sopesa o preço que paga pelo serviço,
considerando algumas raças/etnias como menos dignas, além de valorizar uma posição
hierárquica que garanta superioridade em relação à prostituta que contrata. Dessa forma, os
clientes consideram importante contratar uma prostituta que para eles seja barata e
considerada como de raça/etnia inferior. Isso garantiria a redução da despesa e o exercício da
dominação ainda mais ampliada.

Retomando o direcionamento da nossa investigação, no que se refere à violência


de gênero, faz-se necessário empreender algumas consideração à respeito, primeiramente, da
categoria gênero. De acordo com Scott (1995), gênero se constitui no âmbito das relações
socioculturais, onde os papeis atribuídos para homens e mulheres não são indicados por
aspectos biológicos e inclinações ―naturais‖ ou genéticas, mas por todo um processo subjetivo
– disciplinar, educativo, familiar, religioso, político, etc. – que atribui direcionamento ao
comportamento definido como mais adequado para ambos os sexos. Isso não significa,
contudo, que essas definições sejam estáticas, elas sofrem influencias das alterações,
modificações, gestadas no seio societário. Scott (1995) apresenta sua interpretação da
categoria da seguinte forma:

Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão
relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados: (1) o gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.
As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças
nas representações do poder [...] (SCOTT, 1995, p. 86).

A autora elenca ainda quatro elementos que constituem a estrutura do gênero:


os símbolos culturalmente disponíveis que traduzem representações simbólicas; os conceitos
normativos que expressam interpretações dos significados desses símbolos; a concepção de
política, assim também como uma referência às instituições e organização da sociedade; e a
identidade subjetiva. (IDEM, p. 86, 87). Para Scott (1995), portanto, compreender gênero,
longe de transformar o termo em sinônimo de mulher, deve permear a compreensão dos
múltiplos elementos e significados que constituem a organização e disposição das relações
sociais e daquelas empreendidas entre os sexos.

Para Castilho (2008), a concepção de gênero auxilia na análise dos papeis


desiguais, socialmente atribuídos para o masculino e feminino, que repercutem não apenas na
dimensão subjetiva desses sujeitos, mas também na objetiva: ―[...] gênero como categoria de
37

análise capaz de evidenciar a subsistência do patriarcado, a dominação masculina, as relações


de dominação entre os sexos e a desigualdade material entre homens e mulheres.‖
(CASTILHO, 2008, p. 109).

Numa perspectiva mais moderna, temos a concepção de gênero trabalhada por


Judith Butler (1999). A autora se contrapõe à interpretações binárias entre masculino e
feminino e dispõe sobre as múltiplas formas pelas quais essas condições podem se manifestar,
sejam em corpos biologicamente de homens ou de mulheres. Nessa discussão, Butler (1999)
inclui as transgêneros e transexuais, admitindo que a discriminação de gênero também é
direcionada à elas pela identidade de gênero que assumem. Em relação às críticas ao sistema
de gênero binário, a autora salienta:

The presumption of a binary gender system implicitly retains the belief in a mimetic
relation of gender to sex whereby gender mirrors sex or is otherwise restricted by it.
When the constructed status of gender is theorized as radically independent of sex,
gender itself becomes a free-floating artifice, with the consequence that man and
masculine might just as easily signify a female body as a male one, and woman and
feminine a male body as easily as a female one.18 (BUTLER, 1999, p. 10).

Butler (1998) discute a categoria ―sexo‖, historicamente diferenciada entre


masculino e feminino, transcorrendo que representa, na realidade, construção social e cultural
que culmina em unidades fictícias e reguladoras: ―[...] o sexo não descreve uma materialidade
prévia, mas produz e regula a inteligibilidade da materialidade dos corpos. [...] a categoria
sexo impõe uma dualidade e uma uniformidade sobre os corpos a fim de manter a sexualidade
reprodutiva como uma ordem compulsória.‖ (IDEM, 1998, p. 26).

Nesse sentido, embora tenhamos feito o recorte dessa pesquisa no tráfico de


mulheres, afirmamos que compreendemos, a partir de perspectiva pautada em Butler (1998;
1999), uma dimensão ampliada das categorias ―gênero‖ e ―feminino‖, que percebem os
sujeito humanos sexuados para além das diferenças entre homem e mulher.

18
A pressuposição de um sistema de gênero binário mantém a crença em uma relação mimética entre gênero e
sexo pelo qual gênero reflete o sexo ou é aprisionado por ele. Quando o status construído do gênero é teorizado
como radicalmente independente do sexo, gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que
homem e masculino possam facilmente significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e
feminino um corpo masculino tão facilmente como um feminino. (Tradução livre da pesquisadora).
38

No que diz respeito à concepção de violência, Piscitelli (2008) considera a


amplitude do termo, que necessita ser discutido com ênfase nas relações de poder
estabelecidas entre os(as) indivíduos(as):

A violência é um termo aberto a disputas de significado, que implica o


reconhecimento social mais amplo, não apenas legal, de que certos atos constituem
abuso. Para entender esses sentidos é necessário prestar atenção aos processos
interativos em que os envolvidos ocupam posições de poder desiguais.
(PISCITELLI, 2008, p. 56).

Consideraremos, tendo em vista essa vasta gama de significados, para essa


pesquisa, a concepção formulada por Chauí (1985), que concebe a violência como uma
relação hierárquica entre os sujeitos, cujo objetivo reside na dominação, opressão, exploração,
assim também como numa atitude que concebe o outro como objeto, desprovido da
subjetividade característica do gênero humano. De forma mais detalhada, Chauí (2007)
define:

[...] violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força
para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a
espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger,
torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma
coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de
transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define
como justas e como um direito; 5) conseqüentemente, violência é um ato de
brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza
relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo
medo e pelo terror. (CHAUÍ, 2007, [s.p.], grifo nosso).

No que se refere mais especificamente à violência de gênero, Saffioti (1994)


dimensiona que embora não seja sinônimo de violência contra a mulher, elas têm sido as
principais prejudicadas nessa relação desproporcional de dominação: ―Trata-se de uma
correlação de forças, que muito raramente beneficia a mulher. Socialmente falando, o saldo
negativo da violência de gênero é tremendamente mais negativo para a mulher que para o
homem.‖ (SAFIOTTI, 1994, p. 446).

Na perspectiva de Bourdieu (2011), as relações de dominação masculina exercidas


historicamente sobre o feminino perpetuam-se na sociedade e são por vezes ―[...] vistas como
aceitáveis ou até mesmo como naturais.‖ (BOURDIEU, 2011, p. 7). Para o autor, essa
naturalização trata-se da transformação ―[...] da história em natureza, do arbitrário cultural em
natural.‖ (IDEM, p. 8).
39

Retomando a discussão na perspectiva da violência de gênero, Faleiros (2007) se


posiciona numa definição que considera a relação de múltiplas interseções macrossociais,
conforme trecho apresentado na sequencia:

A violência de gênero estrutura-se – social, cultural, econômica e politicamente – a


partir da concepção de que os seres humanos estão divididos entre machos e fêmeas,
correspondendo a cada sexo lugares, papéis, status e poderes desiguais na vida
privada e na pública, na família, no trabalho e na política. (FALEIROS, 2007, p. 62).

Faleiros (2007), numa discussão ainda mais ampliada, identifica diversos tipos de
violência, que envolvem a perspectiva de gênero e relações de poder e dominação numa
sociedade patriarcal: ―A violência praticada pela sociedade patriarcal se realiza de diversas
formas: identitária, física, psicológica, sexual, institucional, social e politicamente.
Articuladas, elas constituem o arsenal de que dispõe o gênero masculino para manter seu
poder sobre os outros gêneros.‖ (IDEM, p. 63).

Realizadas tais considerações, indicamos que essa investigação leva em


consideração, conforme anteriormente indicado, a perspectiva de gênero de forma relacionada
ao contexto da violência no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial. No
Brasil, sociedade instituída numa cultura patriarcal e excludente, essa dimensão destaca-se,
conforme aponta a pesquisadora Pascual (2007):

No ponto mais baixo da escala social estão as mulheres pertencentes às camadas


populares pobres, de sociedades patriarcais, marcadas por um histórico de
dominação masculina intocável. É dessas sociedades que surge o drama das
mulheres levadas para o mercado clandestino da prostituição feminina e do tráfico
de seres humano com fins de exploração sexual. (PASCUAL, 2007, p. 43).

Vasconcelos e Bolzon (2008) reafirmam o tráfico de mulheres para fins de


exploração sexual como uma das graves formas de sujeição contemporânea e violação de
direitos fundamentais no universo da violência de gênero:

Pode-se dizer que as complexas dinâmicas nas quais se assentam as relações de


gênero nas sociedades fornecem elementos para diferentes modalidades de
exploração. Apesar da dificuldade de gerar estimativas em relação às vítimas de
trabalho forçado, se observa uma predominância de mulheres e meninas em
situações de trabalho doméstico forçado, exploração sexual comercial e prostituição
forçada. (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 79).
40

Ressaltamos que a predominância de mulheres em situação de tráfico na realidade


do Estado do Ceará não difere em muito de outras localidades onde ocorre o fenômeno;
embora a finalidade – ou seja, o tipo de exploração – se altere. Piscitelli e Vasconcelos (2008)
elaboram considerações à respeito da questão:

Gênero marca as especificidades da inserção de imigrantes latino-americanas,


principalmente bolivianas, no trabalho forçado, em oficinas de costura de São Paulo
(Illes, Timóteo e Pereira, nv) e de brasileiras forçadas a trabalhar no serviço
doméstico e na indústria do sexo no exterior (Figueiredo et alii, nv). Gênero aparece
como distinção significativa também nos processos de contrabando de migrantes
mediante os quais pessoas indocumentadas ingressam nos Estados Unidos [...].
(PISCITELLI; VASCONCELOS, 2008, p. 24).

Como forma de diferir a prostituição autônoma e voluntária da exploração sexual


comercial vivenciada no tráfico de mulheres, a Pesquisa Tri-nacional sobre Tráfico de
Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname (2008) descreve as
características da escravidão sexual ao qual muitas brasileiras são submetidas:

É uma experiência comum vivida pelas mulheres tratadas em nível local e


internacional, é uma expressão do patriarcado. Obrigadas a vender seus corpos como
mercadoria, sem proteção, sem que se importem com o estado de saúde delas e,
durante largas jornadas, têm que atender aos clientes sem exceção. Com período
curto para descansar e dormir, isso se não aparecer nenhum cliente solicitando seus
serviços. As mulheres são mantidas em cativeiro, sem o direito de ir e vir.
(SODIREITOS, 2008, p.166).

Apresentadas tais considerações, o tópico em sequência trata dos elementos que


subsidiaram a pesquisa em relação aos instrumentos metodológicos utilizados e apresenta
considerações à respeito da natureza da investigação social proposta e da postura
interpretativa adotada como meio para análise dos dados teóricos e empíricos coletados pela
pesquisadora.

1.2. Natureza e Instrumentos da Pesquisa

A análise proposta nesse estudo trata-se de uma pesquisa social de natureza


qualitativa. De acordo com Groulx (2010), esse tipo de pesquisa está direcionada às análises
que valorizam as especificidades socioculturais e subjetivas da realidade, em detrimento de
indicadores de medidas numéricas, ―[...] a pesquisa qualitativa introduz um novo sentido dos
41

problemas; ela substitui a pesquisa de fatores e determinantes pela compreensão dos


significados.‖ (GROULX, 2010, p. 98).

Goldemberg (2005) indica que a pesquisa qualitativa foi desenvolvida como uma
estratégia de análise para a pesquisa social em oposição à visão positivista na qual as ciências
da natureza estão pautadas. O positivismo, desenvolvido originalmente pelo filósofo Augusto
Comte, atribuía aos estudos sociais uma postura originalmente das ciências físicas, ou seja,
buscava descobrir regularidades ou leis em objetos eminentemente subjetivos. Assim, coloca
Goldemberg, ao eleger o método qualitativo, ―Os pesquisadores qualitativistas recusam o
modelo positivista aplicado ao estudo da vida social‖. (GOLDEMBERG, 2005, p.17).

Deslauriers e Kérisit (2010) indicam que os dados que recebem tratamento por
esse tipo de abordagem são aqueles que: ―[...] se apresentam como resistentes à conformação
estatística. São dados da experiência, as representações, as definições da situação, as opiniões,
as palavras, o sentido da ação e dos fenômenos.‖ (IDEM, p. 147). Portanto, incompreensíveis
em suas relações complexas se investigados sob uma fórmula previamente estabelecida, que
pressupõe aplicação a toda e qualquer situação, independente das determinações sociais,
regionais, econômicas, históricas e culturais.

Nesse mesmo direcionamento, a socióloga Teresa Haguette (1992) indica que a


pesquisa qualitativa é aquela capaz de oferecer os elementos para compreensão mais
aprofundada dos fenômenos sociais com foco nos aspectos subjetivos e estruturas complexas
socialmente postas. A autora elenca ainda alguns fatores característicos que diferenciam a
pesquisa qualitativa da quantitativa, enfatizando que ―[...] os métodos quantitativos supõem
uma população de objetos de observação comparável entre si e os métodos qualitativos
enfatizam as especificidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão de
ser.‖ (HAGUETTE, 1992, p. 63).

Apresentada tais considerações, partimos para a explicitação das técnicas


utilizadas. Como forma de subsidiar as observações em campo, a primeira etapa do processo
proposto empreendeu-se através da pesquisa bibliográfica, indispensável na construção de
qualquer investigação. O percurso do diálogo construído entre o objeto escolhido e as fontes
bibliográficas existentes foi árduo e exaustivo. Tendo em vista tratar-se de tema que tomou
42

centralidade de análise científica apenas na contemporaneidade, há escassez de material


direcionado ao objeto em questão, conforme ressaltado no início desse estudo.

De acordo com Deslauriers e Késlauriers (2010), o pesquisador deve utilizar a


pesquisa bibliográfica como um dos elementos que subsidiará as investigações, mas não o
único: ―[...] permanece sendo um instrumento ao qual ele não pretende se subordinar: sem
negligenciá-lo, nem ignorar suas vantagens, o pesquisador qualitativo recorre a ele para
construir seu objeto e elucidar a análise dos dados.‖ (DESLAURIERS; KÉRISIT, 2010, p.
149).

As estratégias utilizadas como forma de subsidiar melhor as análises expostas no


estudo, tendo em vista a escassez literária apresentada, estiveram pautadas nas impressões da
coletas de dados do campo (NETP/CE) e pesquisa bibliográfica voltada para o resgate
histórico das manifestações da prática, que circunscreve aspectos socioculturais da nossa
sociedade, com base na naturalização da percepção do outro como ser coisificado,
comercializável e passível à exploração. Tal análise esteve direcionada ainda às características
desses atores sujeitados, pois foram alocados nessa situação por uma série de fatores
econômicos, culturais, raciais, étnicos e sexuais. Posições histórica e socialmente instituídas e
legitimadas por práticas e discursos.

Ressaltamos que o levantamento histórico baseado na pesquisa bibliográfica


ocorreu como meio de perceber elementos característicos de um tipo específico de exploração
que foi resignificada na ordem social contemporânea, conseguindo perpetuar a sujeição e
dominação de parcela da população de menos favorecidos. Indivíduos esses que não se
constituem de forma arbitrária, mas em virtude de uma situação étnica, de gênero, de raça, de
classe social, de geração, cujo ―não lugar‖ é legitimado por discursos hegemônicos.

Expostas tais considerações, enfatizamos a utilização da análise dos discursos


como método de interpretação na pesquisa. Tal perspectiva rejeita a noção de que a linguagem
é um meio neutro de expressão, concebendo-a como um importante mecanismo de construção
da vida social, que sofre interferências dos processos histórico-culturais. Nesse sentido, o
discurso é estruturado por uma construção social e, portanto, passível de análise e reflexão
como meio de superar seu caráter imediato e, por vezes, naturalizado.
43

Enfatizamos, portanto, que os discursos possuem corporificação etérea, mutável,


conforme afirma Foucault (1996): ―[...] o discurso em sua realidade material de coisa
pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência transitória destinada a se apagar,
sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence [...]‖ (FOUCAULT, 1996, p. 8).
Aqui Foucault (1996) distingue dois elementos: que o discurso supera o campo oral e permeia
também a escrita (e, evidente, relaciona-se com as práticas); e que seu momento de
dominação, embora transitório, não é determinado apenas pelos sujeitos.

Para Foucault (2008), o discurso não é apenas ideal, porque possui uma
materialidade que não é determinada através da ―[...] operação expressiva pela qual um
indivíduo formula uma ideia, um desejo, uma imagem [...]‖ (p. 133); e não é intemporal
porque sofre interferência da história, embora considerada em sua descontinuidade, mas não
ignorada na sua unidade quando refere-se ao discurso direcionado ao mesmo objeto. Dessa
forma, o autor define o que considera como um discurso:

[...] é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos


definir um conjunto de condições de existência. O discurso, assim entendido, não é
uma forma ideal e intemporal [...] é, de parte a parte, histórico – fragmento de
história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de
seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos
de sua temporalidade [...] (FOUCAULT, 2008, p. 133).

Como meio de explicar melhor a análise dos discursos, longe de especificar uma
receita-manual, Foucault (2008) indica ―regras de formação‖ para o enunciado – considerado
como componente fundamental na estrutura do discurso, também chamado pelo autor de
grupos de enunciados – por meio dos seguintes elementos: um referencial; um sujeito; um
campo associado e uma materialidade. (IDEM, p. 130).

Para definir o referencial, o autor citado indica que trata-se de um princípio de


diferenciação; em relação ao sujeito, alerta que não se trata da consciência que fala, mas
refere-se à uma posição ocupada sob certas condições por indivíduos diversos; já o campo
associado é o lugar onde se operacional a coexistência com outros enunciados; por fim, a
materialidade que ―[...] não é apenas a substância ou o suporte da articulação, mas um status,
regras de transição, possibilidades de uso ou reutilização‖ (IBIDEM, p. 130).
44

Aplicando a referida compreensão ao contexto brasileiro, podemos citar o


enunciado que define o tráfico de pessoas no Código Penal Brasileiro, artigo 231, como
aquele direcionado à: ―Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que
nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém
que vá exercê-la no estrangeiro.‖

Levando em consideração os aspectos que importam para nosso estudo e de


acordo com os elementos indicados por Foucault (2008), o referencial corresponde à relação
estabelecida nesse enunciado entre o tráfico de pessoas e a prostituição; o sujeito diz respeito
aquele(s) que profere(m) – ou podem reproduzir – esse discurso, no caso o Estado Brasileiro,
mas também os agentes que atuam em nome desse Estado; o campo associado refere-se a
relação que essas palavras estabelecem com outros espaços discursivos que tratem da mesma
questão, como por exemplo, o discurso dos tratados internacionais; por fim, a materialidade,
que circunscreve a objetividade dessas palavra, as formas como se corporificam, por meio do
próprio Código Penal Brasileiro, através daquilo que é divulgado pela mídia, e,
especialmente, por aquilo que é dito pelos profissionais do NETP/CE.

Tendo apresentado tais considerações, utilizamos como meio de coleta dos


discursos orais a entrevista, cujo formato adotado foi a semi-estruturada, uma combinação
entre as modalidade de entrevista aberta e estruturada. No que se refere à tal caracterização,
apresentamos a definição de Neto (1994):

[...] torna-se possível trabalhar com a entrevista aberta ou não-estruturada, onde o


informante aborda livremente o tema proposto; bem como com as estruturadas que
pressupõem perguntas previamente formuladas. Há formas, no entanto, que
articulam duas modalidade, caracterizando-se como entrevistas semi-estruturadas.
(NETO, 1994, p.58).

A interpretação crítica realizada a partir da análise dos discursos, levará em


consideração ainda as palavras de Bourdieu (2009) quando afirma que ―A linguagem levanta
um problema [...] ela é, com efeito, um enorme depósito de pré-construções naturalizadas,
portanto, ignoradas como tal, que funcionam como instrumentos inconscientes de
construção.‖ (BOURDIEU, 2009, p. 39). Essas particularidades, expostas nas entrelinhas dos
discursos dos(as) entrevistado(as), foram analisadas nessa pesquisa.
45

Dessa forma, a percepção das falas dos(as) participantes esteve atenta às


contradições e subjetividades. Sennet (2006) aponta para o cuidado que o pesquisador,
enquanto entrevistador, deve ter para captar esses aspectos: ―[...] aguça a audição para aquilo
que leva as pessoas a se contradizerem ou se meterem num beco sem saída do entendimento.
O entrevistador não está ouvindo um relato imperfeito, e sim prestando atenção a uma
investigação subjetiva da complexidade social.‖ (SENETT, 2006, p. 19).

Consideramos ainda que a pesquisa documental foi utilizada para a realização de


levantamento nas informações dos processos arquivados no Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará (NETP/CE), localizado na sede da Secretaria da
Justiça e Cidadania, campo desse estudo. Esse momento teve como objetivo identificar o
perfil de vítimas/possíveis vítimas e agressores/aliciadores identificados nesses documentos.

O contato com o campo, conforme já frisado, também fez parte do processo de


compreensão do objeto proposto. Tal etapa é de fundamental importância na construção da
pesquisa qualitativa, pois, conforme salientam Deslauriers et. al. (2010): ―[...] o projeto de
pesquisa qualitativa não se elabora somente no silêncio do escritório do pesquisador.‖
(DESLAURIERS; KÉRISIT, 2010, p. 133).

Bourdieu (2004) compreende que entre a conjuntura socioeconômica e histórica e


os textos científicos existe uma lacuna que deve ser preenchida pelas noções de campo. O
campo é compreendido como aquele no qual ―[...] estão inseridos os agentes e as instituições
que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência.‖ (BOURDIEU, 2004,
p. 20). Quanto à noção de campo, de acordo ainda com o autor, ―[...] está aí para designar esse
espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias. [...]‖ (IDEM,
p. 20). Nesse sentido, Bourdieu (2004) afirma que compreender o grau de autonomia que o
campo analisado usufrui é aspecto chave do processo investigativo.

As aproximações com o campo, portanto, estiveram permeadas pela perspectiva


indicada por Bourdieu (2004) em compreender as influências externas e históricas que
interferem nesse espaço e como elas são apreendidas e reproduzidas pelos profissionais que
atuam no NETP/CE. Assim, o autor esclarece:

Dizemos que quanto mais autônomo for um campo, maior será o seu poder de
refração e mais as imposições externas serão transfiguradas, a ponto,
46

frequentemente, de se tornarem perfeitamente irreconhecíveis. O grau de autonomia


de um campo tem por indicador principal seu poder de refração, de retradução.
Inversamente, a heteronomia de um campo manifesta-se, essencialmente, pelo fato
de que os problemas exteriores, em especial, os problemas políticos, aí se exprimem
diretamente. (BOURDIEU, 2004, p. 22).

Tendo em vista a proximidade da pesquisadora com o campo, construída ao longo


da atuação técnica naquele local, consideramos as orientações de Roberto Da Matta (1978) ao
sugerir dois pressuposto na pesquisa qualitativa: o de transformar o exótico em algo familiar
ou, e é nesse segundo ponto que repousa nossa reflexão, o de transformar o familiar em
exótico. Os questionamentos e inquietações nesse universo só foram possíveis através da
aproximação científica com a temática, da leitura de pesquisas, artigos e legislação vigente,
que entrou profundamente em confronto com a prática desempenhada no Núcleo. Da Matta
(1978) alerta:

A segunda transformação parece corresponder ao momento presente, quando a


disciplina se volta para a nossa própria sociedade, num movimento semelhante a um
auto-exorcismo, pois já não se trata de depositar no selvagem africano ou
melanésico o mundo de práticas primitivas que se deseja objetificar e inventariar,
mas de descobri-las em nos, nas nossas instituições, na nossa prática política e
religiosa. O problema é, então, o de tirar a capa de membro de uma classe e de um
grupo social específico para poder – como etnólogo – estranhar alguma regra social
familiar e assim descobrir [...] o exótico no que está petrificado dentro de nós pela
reificação e pelos mecanismos de legitimação. (DA MATTA, p. 28,29).

A partir do exposto, construiu-se uma análise dos discursos com foco na


percepção dos profissionais do NETP/CE em relação ao tráfico de mulheres para fins de
exploração sexual. Nesse processo investigativo, traçamos o perfil das vítimas/possíveis
vítimas e agressores, de acordo com dados da instituição; realizamos levantamento das
manifestações históricas do fenômeno no Brasil e do posicionamento legal e normativo do
país em relação à questão.

1.3. Lócus da Pesquisa: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas

Para introduzir os aspectos propostos nesse tópico, cabe definir o que


consideramos como políticas públicas. Partindo da compreensão de que essa categoria possui
diversas concepções, adotamos aquela que a considera como uma ―[...] diretriz elaborada para
enfrentar um problema público‖. (SECCHI, 2010, p. 02, grifo nosso). Contudo, apesar das
políticas públicas não serem necessariamente elaboradas e desenvolvidas pelo Estado,
ressaltamos que nosso foco recairá sobre esse ator. Conforme Secchi (2010) ―Não há dúvidas,
47

no entanto, de que o Estado moderno se destaca em relação a outros atores no estabelecimento


de políticas públicas.‖ (IDEM, p. 04).

No que se refere à relação existente entre problema público e a política pública,


reforçamos nas palavras do autor que: ―A essência conceitual de políticas públicas é o
problema público. Exatamente por isso, o que define se uma política é ou não público é a sua
intenção de responder a um problema público, e não se o tomador de decisão tem
personalidade jurídica estatal [...].‖ (SECCHI, 2010, p. 04).

Já a definição de problema público em si, perpassa pela sua relevância para o


coletivo da sociedade. Quando tal relevância atinge visibilidade político-social e jurídico-
legal, torna-se passível de ser objeto das políticas públicas. De acordo com Secchi (2010):

[...] a definição do que seja um ―problema público‖ depende da interpretação


normativa de base. Para um problema ser considerado ―público‖, este deve ter
implicações para uma quantidade ou qualidade notável de pessoas. Em síntese, um
problema só se torna público quando os atores políticos intersubjetivamente o
consideram problema (situação inadequada) e público (relevante para a
coletividade). (IDEM, p. 07,08).

Mais especificamente, para os objetivos específicos desse estudo, delimitamos a


análise na política pública desenvolvida pelo Estado na figura do NETP. Indicamos que a
publicização do tráfico de pessoas enquanto problema público, tal como se apresenta na
atualidade, conforme já explicado no início deste capítulo, ocorreu em função da publicação
da Pesquisa desenvolvida em 2002 pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre
Crianças e Adolescentes (Cecria), intitulada de Pesquisa sobre tráfico de Mulheres, Crianças e
Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (Pestraf).

Tal investigação evidenciou 241 rotas de tráfico de meninas e mulheres, frisando


que as regiões Norte e Nordeste são as que apresentam a maior parte das rotas de tráfico para
fins de exploração sexual. (PESTRAF, 2002, p. 55). Com relação ao tráfico internacional, o
estudo aponta ainda a Espanha como um forte destino e apresenta dados referentes a
predominância de mulheres em situação de migrante ilegal exercendo a prostituição naquele
país como um indicativo de possível situação de exploração e tráfico: ―Em 1999 foram
48

expulsos 491 cidadãos brasileiros da Espanha, por permanência ilegal, dos quais a maioria é
mulheres ligadas à prostituição.‖19 (IDEM, p. 55-56).

Diante do exposto, o surgimento do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de


Pessoas (NETP) ocorreu como resposta do poder público ao problema latente. Criado num
primeiro momento sob a nomenclatura de Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico
de Seres Humanos e Assistência a Vítima, a iniciativa partiu de um projeto piloto intitulado
―Programa Global de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos‖, que surgiu mediante uma
parceria entre a Secretaria Nacional de Justiça (do Ministério da Justiça) com o Escritório das
Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC)20 em 2003. Alguns estados foram
escolhidos para iniciar o projeto: Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Ceará. Para a
consolidação do mesmo, foi proposta a criação de unidades do Escritório em cada um desses
locais, com sede na capital dos referidos Estados.

O surgimento do Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres


Humanos e Assistência a Vítima no Estado do Ceará ocorreu em 2003, passando a realizar
suas ações em experiência pioneira de enfrentamento à questão no país. O órgão, a partir do
início de seu funcionamento, passou a receber denúncias e encaminhamentos de outras
instituições de possíveis casos de tráfico de seres humanos e, além de oferecer assessoria
jurídica e psicossocial, faz encaminhamento dos mesmos para o Ministério Público Federal
através Procuradoria da República do Estado do Ceará. Assim, o Escritório funcionou nos
anos de 2003 à 2006 na sede do Ministério Público Estadual, até que, em 2007, foi transferido
para a sede da Secretaria da Justiça e Cidadania do estado do Ceará (SEJUS).21

Até o ano de 2007, o projeto não possuía uma metodologia de atendimento


padrão, pois a coordenadora do mesmo pôde contar apenas com o trabalho voluntário
eventual de outros profissionais até aquele momento. Em março de 2008, entretanto, houve a

19
Dado inclusive que pode indicar também a postura preconceituosa da Espanha em relação à prostituição
feminina brasileira naqueles países.
20
O UNODC coopera com os países para promover treinamento para policiais, promotores, procuradores e
juízes. Ao mesmo tempo, o objetivo dos programas é melhorar os serviços de proteção das vítimas e das
testemunhas oferecidos por cada país.
21
A Sejus, por sua vez, é um órgão do Governo do Estado do Ceará que surgiu em 24 de setembro de 1891 com
a nomeação, por portaria, do primeiro secretário desse órgão: bacharel Waldomiro Cavalcante.
49

contratação de 02 estagiárias de psicologia e 01 estagiária de serviço social. No mês de abril


do mesmo ano foi contratada uma turismóloga, em maio um estagiário de direito e, no mês de
agosto, duas profissionais formadas em psicologia. Com a equipe composta, houve uma
discussão e efetivação de metodologia de atendimento com a finalidade de padronizá-la.

Em relação ao panorama nacional, houve a publicação da Política Nacional de


Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas por meio do Decreto Presidencial nº 5.948, de 26 de
outubro de 2006. O documento prevê diretrizes específicas de atuação em três esferas:
Prevenção, Repressão e Assistência. Prevê ainda ações à serem implementadas nas áreas da
Justiça e Segurança Pública; Relações Exteriores; Educação; Saúde; Assistência Social;
Igualdade Racial; Direitos Humanos; Trabalho e Emprego; Desenvolvimento Agrário;
Proteção e Promoção dos Direitos da Mulher; Turismo; Cultura.

O I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas surge em decorrência


da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto
Presidencial nº 6.347, de 08 de janeiro de 2008. Nesse documento, estão discriminadas duas
atividades prioritárias que envolvem Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e os
Escritórios, descritas respectivamente como 5.B.2 e 5.C.3. O texto da primeira prioridade
destacada explicita: ―Apoiar o desenvolvimento de núcleos de enfrentamento ao tráfico de
pessoas‖. Já a segunda coloca: ―Avaliar as atuações dos escritórios estaduais, entre outras
experiências, como subsídio para apoiar a criação ou o desenvolvimento de núcleos de
enfrentamento ao tráfico de pessoas‖. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008, p. 86, 87).
Estabeleceu-se ainda o Ministério da Justiça como instituição responsável por executar e
acompanhar o desenvolvimento das referidas prioridades.

Dessa forma, o Ministério da Justiça, ainda em 2008, articulou uma organização


de estrutura e atendimento para essas unidades, prevendo proposta de alteração das
nomenclatura de Escritório para Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP),
além de estabelecer a meta de implantar outras unidades em território nacional. Dessa forma,
os NETP‘s foram contemplados por recursos destinados à programas do governo na área de
Apoio às Políticas Públicas e Áreas Especiais descritos no Plano Plurianual 2008-2011
(Anexo II, p. 223, 224).
50

Embora a normativa nacional de apoio aos NETPS‘s tenha sido publicada em


2008 e as atividades no EEPTSH/CE viessem sendo realizadas desde 2003 na SEJUS/CE,
cabe destacar que é apenas no segundo semestre de 2011 que se publica o Decreto Estadual
oficializando o funcionamento da estrutura no Ceará. No documento, dentre outras medidas, a
nomenclatura é alterada de Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Pessoas e
Assistência a Vítima para Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do
Ceará:

DECRETO Nº 30.682, de 22 de setembro de 2011.


INSTITUI, NO ÂMBITO DO ESTADO DO CEARÁ, [...] CRIA O NÚCLEO DE
ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS – NETP, JUNTO À
SECRETARIA DA JUSTIÇA E CIDADANIA [...]

Art.2º O Programa Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - PETP fica


subordinado ao Gabinete do(a) Secretário(a) da Justiça e Cidadania, por meio do
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – NETP, composto de equipe
operacional multidisciplinar formada, no mínimo, por um(a) advogado(a), um(a)
assistente social e um(a) psicólogo(a). (DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO
CEARÁ, 2011, p. 19).

A partir da publicação do decreto nº 30.682/2011, estabelece-se oficialmente as


atribuições do Núcleo, dentre elas podemos citar: articular e planejar o desenvolvimento das
ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas; operacionalizar, acompanhar e avaliar o
processo de gestão das ações, projetos e programas de enfrentamento ao tráfico de pessoas;
integrar, fortalecer e mobilizar os serviços e redes de atendimento; sistematizar, elaborar e
divulgar estudos, pesquisas e informações sobre o tráfico de pessoas; capacitar e formar atores
envolvidos direta ou indiretamente com o enfrentamento ao tráfico de pessoas na perspectiva
da promoção dos direitos humanos; impulsionar, em âmbito estadual, mecanismos de
repressão ao tráfico de pessoas e consequente responsabilização dos autores; definir, de forma
articulada, fluxo de encaminhamento que inclua competências e responsabilidades das
instituições inseridas no sistema estadual de disque denúncia; prestar auxílio às vítimas do
tráfico de pessoas, no retorno a localidade de origem, caso seja solicitado; (IDEM, p. 19,20).

Um aspecto que chamamos atenção no texto do decreto é o fato da atribuição


referente à assistência e auxílio às vítimas vir descrita apenas no tópico de número XIV, na
antepenúltima posição de atribuições, abaixo de atividades que envolvem o suporte à
repressão, por exemplo. Inclusive, um dos fatos que muito despertou inquietação durante
minha experiência profissional no NETP/CE foi a confusão existente, em especial por parte
dos usuários, em relação ao papel daquela estrutura, muitas vezes confundida com uma
51

delegacia ou instancia do poder judiciário. Não por acaso, tendo em vista que os depoimentos
muitas vezes eram coletados pelo mesmo modus operandi de uma delegacia: enquanto um
profissional fazia os questionamentos, outro digitava as informações tal qual um escrivão da
policia, sem mencionar as buscas ativas através do Gabinete de Gestão Integrada.

Ocorreram inúmeros eventos ainda nos quais a equipe multidisciplinar esteve


presente na delegacia, participando do procedimento de coleta de depoimentos, conforme
ilustro de transcrição de trecho do meu diário de campo, quando ainda desempenhava as
atividades de estagiária de serviço social no Núcleo: ―Hoje acompanhei na delegacia * 22 o
depoimento de um homem que trabalha como segurança no condomínio * [...] eu que digitei o
depoimento enquanto a delegada fazia o interrogatório [...].‖ (Trecho do Diário de Campo do
dia 24 de março de 2008).

Ressaltamos ainda que inúmeras das atividades realizadas pelo NETP/CE em


parceria com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) por meio do
Gabinete de Gestão Integrada do Estado do Ceará (GGI/CE) – das quais nos reportaremos
mais detalhadamente logo adiante – foram divulgadas pela mídia, em programas que tratam
especificamente de criminalidade, e quando publicadas por meio de jornal escrito apareciam
no caderno ―Polícia‖23.

As atividades de repressão realizadas, associadas ao tipo de publicidade que


recebiam, gerou uma série de distorções em relação ao NETP/CE. Enquanto ainda trabalhava
na instituição, pude presenciar que várias possíveis vítimas de tráfico e seus familiares se
reportaram à alguns profissionais como delegados(as) de polícia ou policiais. Instituições
ligadas aos Direitos Humanos passaram também a repudiar essas ações, dificultando parceiras
e hostilizando os profissionais atuantes, conforme inclusive menciona uma de nossas
entrevistadas para essa pesquisa, nomeada ficticiamente de Arraia:

Encontrei, logo no início, algumas dificuldades, algumas dificuldades de


relacionamento mesmo, tendo em vista o Escritório à época, né, assumia uma

22
O símbolo indica a supressão da identificação do local mencionado como forma de garantir sigilo às
informações.
23
Ver matérias publicadas, por exemplo, no Diário do Nordeste, Caderno Polícia (Quinta-feira, 16 de março de
2009, p. 16; Terça-feira, 9 de junho de 2009, p. 14; Domingo, 04 de outubro de 2009, p. 03; Sábado, 17 de abril
de 2010, p. 18; etc).
52

postura bastante repressiva. Encontrei muitas portas fechadas, principalmente das


ONGs, de, da rede de assistência, né, pública e as vezes até mesmo privada, de
ONGs, etc. (Arraia).

Em relação às atividades de prevenção, de acordo ainda com a experiência de


campo da pesquisadora, são efetuadas através da distribuição de material informativo nos
principais pontos de fluxo turístico24 e de prostituição da cidade. Camisinhas envidas pelo
Ministério da Justiça também foram distribuídas pela instituição até o ano de 2010, quando o
material se esgotou e o estoque não foi reposto. Os locais onde tais atividades são realizadas
são selecionados a partir dos registros de denúncias de possíveis casos de tráfico no
NETP/CE. No período em que trabalhei no local, foram principalmente realizadas no
calçadão da Beira-Mar, Espaço Cultural Dragão do Mar e mediações, Barracas da Praia do
Futuro e casas de prostituição.

Ainda no que tange as ações preventivas o NETP/CE, o órgão desempenha


atividades educativas através de palestras, seminários, e participação em simpósios.25
Conforme anteriormente mencionado, executa distribuição de material (folders, cartazes e
cartilhas) em locais de grande fluxo turístico da cidade ou em campanhas realizadas em datas
importantes como o 08 de março (dia internacional de mulher) e o 18 de maio (dia Nacional
de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes), por exemplo.
Durante as visitas de campo em 2012, a equipe multidisciplinar do NETP/CE nos relatou
ainda que durante os anos de 2011 e 2012 realizaram atividades junto às escolas públicas de
ensino médio com o objetivo de alertar adolescentes à respeito da questão.

Destacamos, contudo, que nas atividades de prevenção desenvolvidas, a equipe do


NETP/CE utiliza material informativo voltado exclusivamente para o enfrentamento ao
tráfico de mulheres com fins de exploração sexual. Tanto o material elaborado pela Secretaria
da Justiça do Ceará (SEJUS) como o do Ministério da Justiça apresentam essa especificidade.
Apresentamos na sequencia o panfleto da SEJUS para ilustra a argumentação exposta:

24
Locais como aeroportos, rodoviárias, hotéis, praias, etc.
25
Os locais de realização dessas campanhas são selecionados a partir dos casos já identificados de tráfico de
seres humanos, as mulheres que estiveram em situação de trafico citam zonas de prostituição e locais de grande
fluxo turístico como pontos onde agem os aliciadores. Aeroportos e Rodoviárias também são alvos das
campanhas por serem à porta principal de saída e entrada de pessoas em situação de tráfico no Estado do Ceará.
53

FIGURA 01 – PANFLETO DISTRIBUÍDO NAS AÇÕES PREVENTIVAS DESEMPENHADAS PELO NETP/CE

FONTE: Scanneado pela pesquisadora, 2012.

Conforme anteriormente indicado, no mesmo direcionamento encontra-se o


material produzido pelo Ministério da Justiça, que inclusive foi amplamente utilizado pelo
NETP/CE entre os anos de 2007-2010, cujo modelo segue abaixo:

FIGURA 02 - PANFLETO PRODUZIDO PELO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (FRENTE E VERSO)

FONTE: Scanneado pela pesquisadora, 2012.


54

Durante o período de 2008-2010, no que se refere ao enfrentamento ou combate,


realizava-se especialmente de duas formas: através de ações com o Gabinete de Gestão
Integrada do Estado do Ceará26 (GGI/CE) e de acompanhamento das denúncias junto à
Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e à Delegacia de Combate à Exploração contra a
Criança e Adolescente (DCECA).

Em relação ao GGI/CE, trata-se de um colegiado de caráter deliberativo e


interventivo que se tornou extremamente atuante a partir de 2007, elegendo como prioridade
nas suas ações o combate permanente ao tráfico de drogas, de armas, de seres humanos e
exploração sexual de crianças e adolescentes. Daquele momento em diante, no Estado do
Ceará, o GGI/CE atuou, entre outras coisas, como um instrumento de repressão ao tráfico de
pessoas.

A composição do GGI/CE conta com membros natos27 e convidados28 – todos


provenientes do poder público estadual e federal. Possui ainda uma coordenação, que é
efetivada pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (SSPD), uma secretaria
executiva29, além de assessorias e comissões temáticas, todos previstos em lei.

No que tange ao planejamento e discussão das atividades à serem efetivadas, o


GGI/CE realiza reuniões em caráter ordinário a cada dois meses e, quando necessário,

26
O GGI-CE surgiu como consequência da adesão do Estado do Ceará ao Sistema Único de Segurança Pública,
com a finalidade de coordená-lo. Está vinculado à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social.
27
São considerados membros natos: Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS); Comando-Geral
da Polícia Militar do Estado (PMCE); Superintendência da Polícia Civil; Comando-Geral do Corpo de
Bombeiros Militar (CBMCE); Secretaria de Justiça e Cidadania (SEJUS); Secretaria Nacional de Segurança
Pública (SENASP); Superintendência Regional da Polícia Federal no Estado do Ceará (SRPF/CE);
Superintendência Estadual do Ceará da Agência de Inteligência (SECE/ABIN) e Superintendência Regional da
Polícia Rodoviária no Estado Ceará (SRPRF/CE). Novas entidades, a partir do ano de 2010, passaram a fazer
parte da equipe que compõe o Gabinete de Gestão Integrada no Estado do Ceará, tais como: a Marinha do Brasil;
Exército Brasileiro; Aeronáutica; Casa Militar; Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária
(INFRAERO) e Receita Federal.
28
Integram ainda essa mesma estrutura, como convidados: Perícia Forense do Ceará (PEFOCE), Diretoria da
Guarda Municipal e Defesa Civil de Fortaleza, que representa a Prefeitura Municipal; Coordenação do Núcleo
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/CE) – como representante da Secretaria da Justiça e Cidadania –
e representantes do Poder Judiciário, Procuradoria Geral de Justiça (PGJ), Secretaria da Fazenda (SEFAZ),
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), Defensoria Pública Geral (DPG) e Secretaria do
Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS).
29
Secretaria Executiva essa composta um Secretário Executivo e Gerentes de Gestão da Inteligência, Informação
e de Operações.
55

extraordinário, que ocorrerem por convocação da Secretaria Executiva mediante solicitação


de qualquer um dos membros integrantes. Nessas reuniões, as partes se manifestam à respeito
de denúncias recebidas, podem fazer solicitações acerca de fiscalizações em determinados
locais, tecem avaliações sobre ações já efetivadas e realizam planejamento de ações futuras.
Tais encontros são comunicados a todos os membros com, pelo menos, oito dias de
antecedência, pela Secretaria Executiva do GGI/CE.

As atribuições do GGI/CE estão pautadas nas Comissões Temáticas e


regulamentadas pelas Diretrizes Operacionais nº 002/2007 e nº 003/2007. Afora tais
regulamentações, o GGI/CE possui Regimento Interno que foi elaborado em 2005. Suas
atividades de campo, que compreendem fiscalizações, são desempenhadas tanto na capital
(Fortaleza) quanto na região metropolitana e interior do Estado do Ceará.30

O Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará


(NETP/CE), por sua vez, executava em atividades de planejamento e ação junto ao GGI/CE,
atuando com o objetivo de identificar e acolher possíveis vítimas de tráfico, acompanhar seus
depoimentos na delegacia, coletar dados das mesmas e disseminar informações de caráter
preventivo ao fenômeno através da distribuição de material informativo e esclarecimento de
dúvidas.

A execução das ações em campo conta com a participação de integrantes das


instituições que compõe o GGI/CE e com um coordenador ou dois – dependendo da
quantidade de locais que deverão ser fiscalizados – designados em cada ocasião. Cada ação
conta ainda com a participação de um delegado ou delegada diferente, assim como uma
delegacia, que também muda em cada operação, onde são autuados os flagrantes e coletados
os depoimentos de testemunhas e demais pessoas envolvidas. A seguir apresento breve relato
da primeira ação do GGI/CE que participei enquanto estagiária de Serviço Social do
Escritório:

30
De acordo com balanço feito pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, no ano
de 2009, foram realizadas 31 (trinta e uma) operações, resultando em 31 (trinta e um) autos de prisão em
flagrante delito, 21 (vinte e um) termos circunstanciais de ocorrências e apreensão de 16 (dezesseis) armas de
fogo. Já em 2010, o referido balanço aponta que o GGI/CE realizou 50 (cinquenta) grandes operações que
desencadearam em 90 (noventa) autos de prisão em flagrante delito, 29 (vinte e nove) termos circunstanciais de
ocorrência e apreensão de 78 (setenta e oito) armas de fogo com a atuação da equipe em 20 (vinte) municípios
do Estado do Ceará.
56

23h:25m - [...] foi me buscar em casa com motorista da SEJUS e fomos para a 2ª
DP no Meireles. Lá fomos para o auditório onde um coronel explicou a operação e
especificou os órgãos participantes [...] A equipe toda foi para a rua dos Tremembés
e se dividiu para entrar nas boates [...] o procedimento do TSH 31 consiste em
solicitar os RG‘s das garotas de programa e verificar se são maiores de idade e se
são de outras Cidades/Municípios/Estados. [...] (Trecho do Diário de Campo do dia
25 de abril de 2008).

As referidas atividades são iniciadas normalmente durante o final da noite – entre


as 21:00 e 23:00 horas – e muitas vezes se estendem por toda a madrugada. Os locais à serem
fiscalizados não podem ser revelados com antecedência à maioria dos integrantes que atuarão
na execução dessas atividades por uma questão de sigilo, mesmo assim, já ocorrendo algumas
vezes vazamento de informações e o local à ser abordado estar de portas fechadas, como
algumas vezes presenciei.

Cada órgão que comparece à essas atividades fica encarregada de elaborar


relatório padrão com dados como número de participantes na ação, número de pessoas
apreendidas, nome dos locais fiscalizados, número de informativos distribuídos e outras
especificidades. As informações devem ser encaminhadas, via e-mail ou via fax, no primeiro
dia útil após a realização das ações, para a Secretaria Executiva do GGI/CE.

O NETP/CE, além de elaborar tais relatórios, coleta dados das pessoas abordadas
nas ações em instrumental de trabalho elaborado e manuseado por sua equipe multidisciplinar.
Entretanto, não os submete ao GGI/CE por tratarem-se de informações consideradas como
sigilosas. Tal instrumental contém dados como nome, naturalidade, data de nascimento, sexo,
profissão e escolaridade das mesmas. Essas informações são repassadas pelos profissionais da
instituição para uma tabela digitalizada.

No que tange à assistência, o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do


Estado do Ceará (NETP/CE) realiza atendimento sistemático assistencial, psicossocial e
suporte jurídico às pessoas em situação de tráfico. A metodologia de atendimento nesse
âmbito, em linhas gerais, consiste no acolhimento à pessoa em situação de tráfico por
assistente social e psicólogo. Tais profissionais se encarregam de realizar entrevista
psicossocial que consiste num diagnóstico da situação psicológica e as condições econômicas
e sociais que aquela pessoa esta submetida naquele momento. Diante desses dados, uma visita
social é agendada e a partir da construção de relatório de atendimento buscam-se alternativas
31
Sigla pela qual o Escritório era chamado pela equipe profissional atuante e parceiros.
57

para que o indivíduo possa superar aquela situação. É oferecido acompanhamento psicológico
e social sistemáticos e são feitos os encaminhamentos relativos à cada situação.

Em relação à equipe multidisciplinar que presta suporte na sede do NETP/CE


atualmente identificamos até janeiro de 2013: 01 (uma) coordenadora (bacharel em direito);
02 (duas) psicólogas; 01 (um) bacharel em direito; 01 (uma) assistente social; 02 (dois) apoios
à coordenação – com ensino médio completo –; 02 (duas) estagiárias do ensino médio do
Programa Jovem Primeiro Passo32.

Com o objetivo de melhor demonstrar os casos registrados no NETP/CE realizou-


se levantamento documental no local com a finalidade de estabelecer alguns dados
quantitativos inportantes no que se refere ao tráfico de seres humanos no Estado do Ceará,
aspectos esses abordados mais adiante, no último capítulo desse estudo.

O capítulo seguinte tratará da pesquisa bibliográfica referente aos aspectos


históricos que envolvem manifestações do tráfico de seres humanos no Brasil, enfatizando a
posição da mulher nesse tipo de exploração, além de tratar das configurações contemporâneas
do fenômeno, descrito como complexo devido às suas múltiplas finalidades e polêmicos
elementos de caracterização.

32
Programa coordenado pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Governo do Estado
do Ceará que, dentre outras ações, encaminha jovens da rede de ensino publico para desenvolver atividades de
estágio em órgãos públicos.
58

2. TRÁFICO DE PESSOAS E ESCRAVIDÃO: DO BRASIL COLÔNIA


AOS DIAS ATUAIS.

A perspectiva histórica apresentada nesse capítulo não pretende alocar o tráfico de


seres humanos numa dimensão evolutiva ou na busca por uma ―essência‖ que demonstraria
um retrato fiel do fenômeno. Em direcionamento pautado em Foucault (2011), percebemos
esses momentos como descontínuos, embora relacionados, que apresentam práticas e
definições diferenciadas em cada momento histórico. Segundo o autor:

[...] atrás das coisas há ―algo inteiramente diferente‖: não seu segredo essencial e
sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi
construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. [...] O que se
encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da
origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate. (FOUCAULT, 2011, p. 17,18).

Dessa forma, ainda na perspectiva foucaultiana, o acontecimento ao longo de seu


percurso histórico pode se atualizar, suscitando novos significados e, a partir daí, abrir outros
caminhos, inclusive contraditórios, para se corporificar (daí a noção de discórdia). A história,
portanto, longe de ocorrer por meio da continuidade, do determinismo entre o objeto e o que
se diz dele, se dá pelo movimento no qual as coisas se transformam (devir) e pela
descontinuidade, negando a perspectiva de ―naturalização‖, de metafísica e de imanência dos
fenômenos (FOUCAULT, 2011).

Perceber historicamente o fenômeno, ainda com base em Foucault (2011), trata-se


de estabelecer diálogo entre as relações de saber-poder em cada um dos espaços temporais
demonstrados, relações essas que fomentam ―realidades‖, vinculadas à saberes, pensamentos,
atitudes e sentimentos. Ou seja, saberes que estabelecem relações não-estáticas de poder entre
as palavras e as coisas. De acordo com Lemos e Cardoso Junior (2009):

Para Foucault, não haveria um objeto completamente original, mas somente práticas
de objetivação e, de modo imanente, de subjetivação. Dessa forma, os objetos
seriam correlatos de práticas, não havendo uma essência desses, mas múltiplas
objetivações de práticas heterogêneas. A prática é o fazer, e "o objeto, se explica
pelo que foi o fazer em cada momento da história" [...]. (LEMOS; CARDOSO
JUNIOR, 2009, p. 355)

Realizadas tais considerações, segue, a partir do tópico adiante, o levantamento


das manifestações históricas do tráfico de pessoas, com foco no tráfico de mulheres para fins
de exploração sexual.
59

2.1. Escravidão e Tráfico Negreiro

No período colonial (sécs. XVI-XVII), milhares de negros e negras africanos(as)


foram sequestrados(as) e trazidos(as) ao Brasil para serem comercializados(as) como objetos
e explorados(as) de múltiplas formas por seus ―proprietários‖. Totalmente privados(as) de
qualquer dignidade humana, os africanos(as) escravizados e escravizadas transformaram-se
rapidamente em fonte de renda lucrativa para traficantes e fazendeiros. Em poucos anos, os
números dessa prática cresceram exponencialmente, como demonstra Marquese (2006):

[...] entre 1576 e 1600, desembarcaram em portos brasileiros cerca de 40 mil


africanos escravizados; no quarto de século seguinte (1601-1625), esse volume mais
que triplicou, passando para cerca de 150 mil os africanos aportados como escravos
na América portuguesa, a maior parte deles destinada a trabalhos em canaviais e
engenhos de açúcar. (MARQUESE, 2006, p.5)

O historiador José Murilo de Carvalho (2007) também faz referência à esses


números, indicando um contingente de cerca de três milhões de africanos(as) transportados
para o Brasil até 1822, com o acréscimo de mais um milhão até meados de 1850
(CARVALHO, 2007, p. 19-20). Sobre a origem específica dessas pessoas, indica: ―Vieram
escravos de várias etnias e de diferentes tradições culturais, saídos de regiões que iam da baía
de Benin, na costa ocidental da África, onde hoje fica a Nigéria, em direção ao sul, até
Moçambique, já na parte oriental daquele continente.‖ (IDEM, p. 20).

No mesmo direcionamento, Boris Fausto (1996) evidencia esses números:


―Estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos, na
sua grande maioria jovens do sexo masculino.‖ (FAUSTO, 1996, p. 29). No que diz respeito
aos principais portos de entrada brasileiros, o autor ressalta: ―Os grandes centros importadores
de escravos foram Salvador e depois o Rio de Janeiro, cada qual com sua organização própria
e fortemente concorrentes.‖ (IDEM, p. 29).

No que diz respeito a forma como foram transportados(as) da África para outros
continentes, podemos indicar o exemplo emblemático do Brooks, um navio negreiro
construído no século XVIII, desenhado e publicado pelo movimento abolicionista na
60

Inglaterra33 para demonstrar à sociedade as atrocidades pelas quais eram submetidos os


negros(as) e a maneira pela qual foram alojados nessas embarcações. O referido navio foi
considerado como um dos que possuía a menor área quadrada por escravo transportado,
dispondo apenas de 76 cm de altura (impedindo que um adulto ficasse de pé), onde as tábuas
dispostas no chão provocavam ferimentos nos corpos humanos devido ao balanço do mar,
assim também como as correntes aos quais estavam submetidos esfolavam seus membros.
(REDIKER, 2011, p. 324). De uma forma geral, essa era a realidade desse tipo de
embarcação, conforme atesta o poema de Stanfield:

Apinhados, em dor, os corpos malcheirosos, / Contidos por grilhões, conspurcam os


ares abafados. / Em dolorosas fileiras, com grande engenho amontoados, / Jazem
fumegantes, respirando a úmida fedentina: / Manchada de sangue, no chão de
madeira adamantina, / Articulações esfoladas, pelo balanço do mar / – e o navio
prossegue em seu funesto singrar. (STANFIELD apud REDIKER, 2011, p. 159).

O poeta Castro Alves (2007) também relata o sofrimento dos negros e negras
capturados(as) no continente africano, apresentando o contraste entre a forma como viviam
em sua terra natal e os maus tratos sofridos desde o momento da captura e travessia no navio
negreiro. Como meio de demonstrar o exposto, transpomos o trecho a seguir:

Ontem a Serra Leoa,


A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,


A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!... (ALVES, 2007, p. 09).

33
Movimento intitulado de Society for Effecting the Abolition of the Slave Trade (Sociedade pela Efetivação da
Abolição do Tráfico de Escravos – tradução livre da pesquisadora).
61

Conforme a escravidão cresceu em proporções, negros e negras já sabiam o que


teriam de enfrentar quando eram capturados em sua terra natal. Como forma de resistência,
alguns faziam greve de fome, motins e até cometiam suicídio ainda durante a jornada no mar:

Logo de saída o homem recusou qualquer alimentação. Desde o começo de seu


cativeiro a bordo do navio, ele simplesmente não se dispunha a comer. Também essa
reação era muito comum, mas ele foi mais longe. Certa manhã, ainda bem cedo,
quando os marujos desceram ao convés inferior para inspecionar os escravos,
acharam o homem todo ensanguentado. [...] o homem tentara cortar a garganta [...]
Trotter suturou o ferimento e considerou a possibilidade de alimentar o homem à
força. O ferimento, porém, ―nos impossibilitava de usar quaisquer meios
compulsórios‖, que eram, naturalmente, muito empregados pelos traficantes de
escravos. (REDIKER, 2011, p. 26).

As resistências empreendidas pelos cativos a bordo do navio acarretavam em


severas e cruéis punições aplicadas pela tripulação branca. Rediker (2011) apresenta alguns
exemplos desse tipo de punição e indica que além de açoites e torturas, os tubarões também
eram utilizados nas ameaças: ―[...] Outros capitães de navios negreiros praticavam um espécie
de terror esportivo, usando despojos humanos para atrair tubarões [...]‖ (IDEM, p. 49). O
autor complementa sua exposição explicando que os marujos atraiam os animais arrastando
pelo mar cadáveres de negros(as), que acabavam por ser devorados(as) pelos bichos. A prática
era realizada para servir de exemplo aos demais cativos(as). (REDIKER, 2011).

Na perspectiva dos(as) negros(as), Rediker (2011) trás o relato da história do


africano Olaudah Equiano, também conhecido como Gustavus Vassa, capturado na Nigéria
aos onze anos de idade em 1754, que escreveu anos depois sua autobiografia34, relatando os
horrores que presenciou no navio negreiro no qual foi transportado para o ―Novo Mundo‖:

Foi levado para o convés inferior, onde um cheiro nauseabundo logo o fez sentir-se
mal. Quando dois membros da tripulação lhe ofereceram comida, ele esboçou uma
fraca recusa. Eles o arrastaram novamente para o convés superior, amarraram-no ao
molinete e o chicotearam. Quando a dor percorreu-lhe o pequeno corpo, seu
primeiro pensamento foi fugir pulando na água [...] ainda que não soubesse nadar. E
então descobriu que o navio negreiro era equipado com redes justamente para evitar
esse tipo de resistência desesperada. Assim, a primeira experiência no navio negreiro
e a lembrança que dela lhe ficou, caracterizava-se por violência, terror e impulso
para resistir. (IDEM, p. 119).

34
Gustavos Vassas tornou-se abolicionista, escreveu a primeira autobiografia na perspectiva de um escravizado a
bordo do navio negreiro, mas o relato é bem mais extenso, envolve aspectos da sua vida antes da capturo, o
momento do sequestro e o desenrolar de sua história quando no destino da viagem sombria.
62

A violência sexual também esteve presente nessas embarcações. Nesse sentido,


Rediker (2011) apresenta o relato de James Field Stanfield35, que além de contar em
pormenores as resistências, castigos e maus tratos que sofriam as escravas de uma forma
geral, fica extremamente horrorizado com a barbaridade que presencia contra uma criança:

Stanfield faz referência ao fato mas se recusa a descrevê-lo – o capitão estuprou uma
menina. Stanfield menciona apenas algo ―praticado pelo capitão contra uma infeliz
escrava de oito anos ou nove anos‖. Embora ele não tivesse coragem de nomear o
crime – ―não tenho palavras para descrevê-lo‖ –, insistiu ter sido ―por demais atroz e
sangrento para passar em silêncio‖. Ele considerou aquele ato um exemplar da
‗barbaridade e tirania‖ cotidianas do tráfico de escravos. (REDIKER, 2011, p. 161).

Quando em cativeiro na terra firme, as múltiplas violências sofridas eram


ratificadas pelo Estado. As escravas negras, por exemplo, de acordo com lei vigente no Brasil
de 1883, podiam ser comercializadas no mercado sexual como prostitutas e seus proprietários
tinham o direito assegurado de receber os rendimentos financeiros dessa prática. Joaquim
Nabuco denuncia esse fato: ―Os senhores podem empregar escravas na prostituição,
recebendo os lucros desse negócio, sem que isso lhes faça perder a propriedade sobre elas
[...]‖ (NABUCO, 2010, p. 119).

Carvalho (2007) menciona que a violência sexual se estendia as indígenas, pois


durante as primeiras décadas de colonização do país, a presença de mulheres brancas era
extremamente incomum: ―Dada a escassez de mulheres brancas, o colonizador miscigenava-
se com mulheres indígenas e africanas, processo em que estupro e consentimento se
misturavam de maneira indistinguível.‖ (CARVALHO, 2007, p. 20).

Funes (2007) também evidencia a utilização de africanas escravizadas na


prostituição, e tece sobre as múltiplas atividades desempenhadas pelos escravizados:

Na cidade, o trabalho do escravo ajudava na composição das rendas da família do


senhor, não apenas no ganho pelo seu valor, mas como escravo de aluguel, como
escravo de ganho e até como prostitutas. Encontra-se nos centros urbanos uma mão-
de-obra mais especializada como pedreiros, marceneiros, alfaiates, sapateiros entre
outros. (FUNES, 2000, p. 115).

35
Intitulado de Observations on a Guinea voyage, in a series of letters addressed to the Rev. Thomas Clarkson,
publicado em Londres, 1788.
63

Ressaltamos ainda que a escravidão além da anuência proporcionada pelo suporte


jurídico-legal, também foi justificada por outras esferas sociais, como a igreja católica e
alguns intelectuais de respaldo na época, por exemplo, fomentando um campo de dominação
ideológica que permeou (e em certa medida ainda permeia) a sociedade brasileira. Nesse
direcionamento, apresentamos as considerações de Parron (2011):

Desde o início da colonização americana até o século XVIII, uma gama de lugares-
comuns jurídicos, teológicos e filosóficos justificara a escravidão de povos
africanos, como os justos títulos (casos de miséria extrema, condenação à morte,
ventre materno escravo e guerra justa), a maldição de Cam (passagem bíblica da
condenação de um dos filhos de Noé) e a releitura escolástica da teoria aristotélica
da escravidão natural. (PARRON, 2011, p. 51).

A Inglaterra, por ter se modernizado através da revolução industrial e pela


existência de movimentos abolicionistas religiosos36, foi o país que mais exerceu pressão em
Portugal para abolir a escravidão. Através dos Tratados da Aliança e da Amizade e de
Navegação e Comércio, os ingleses tentaram induzir aquele país a cessar a prática naquele
território e em suas colônias. Entretanto, as medidas pioneiras não lograram muito sucesso.
Outra tentativa foi feita no Congresso de Viena, onde Portugal e Inglaterra assinaram novo
acordo, mas também não obteve resultados significantes. Fausto (1996) menciona esses
tratados e o posterior fracasso dos mesmos:

Uma cláusula adicional ao tratado concedeu à Inglaterra o "direito de visita" em


alto-mar a navios suspeitos de transportar cativos, autorizando sua apreensão.
Nenhuma dessas medidas impediu o tráfico que, pelo contrário, se tornou maior no
início de 1820 do que era no começo do século. (FAUSTO, 1996, p.78).

A primeira atitude legal brasileira eficiente, direcionada a abolir a escravidão,


incidiu sobre o tráfico negreiro. A lei Euzébio de Queiroz, de 04 de setembro de 1850,
reprimia o translado de escravizados da África para o Brasil, estabelecendo sua posterior
extinção. O autor da lei, senador Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara, tinha
atuado anteriormente como Chefe de Polícia no Rio de Janeiro, cargo esse que lhe forneceu
subsídios suficientes para a repressão, pois obtinha ciência dos alojamentos que mantinham
africanos contrabandeados. Joaquim Nabuco (2010) referenda a empreitada:

36
Os Quakers, seita radical protestante na Inglaterra, consideravam a escravidão um pecado, por conta disso, em
1768, mobilizaram-se para enviar ao parlamento uma solicitação pedindo o fim do tráfico de escravizados. O
movimento metodista, através da pregação de seu fundador, John Wesley, disseminou idéias contra a escravidão,
afirmando que preferiam ver as colônias inglesas do Caribe naufragarem do que manter um sistema que ―violava
a justiça, a misericórdia, a verdade‖. (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 173).
64

A primeira oposição nacional à escravidão foi promovida tão somente contra o


tráfico. Pretendia-se suprimir a escravidão lentamente, proibindo a importação de
novos escravos [...] Acabada a importação de africanos pela energia e decisão de
Eusébio de Queiroz, e pela vontade tenaz do imperador - o qual chegou a dizer em
despacho que preferia perder a coroa a consentir na continuação do tráfico -, seguiu-
se à deportação dos traficantes [...]. (NABUCO, 2010, p. 36)

Entretanto, devemos ressaltar que a iniciativa encontrou muita resistência,


conforme demonstra Parron (2011) por meio de texto escrito por José de Alencar (1867) em
defesa do tráfico negreiro e da escravidão no Brasil:

[...] não havia outro meio de transportar aquela raça [os africanos] à América senão
o tráfico. Por conta da consciência individual correm as atrocidades cometidas. Não
carrega a ideia com a responsabilidade de semelhantes atos, como não se imputam à
religião católica, a sublime religião da caridade, as carnificinas da inquisição. O
tráfico, na sua essência, era o comércio de homens; a mancipatio dos romanos. Sem
a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a América seria ainda um vasto
deserto. (ALENCAR apud PARRON, 2011, p. 11).

Embora enfrentando resistências, outras medidas sucederam a lei Euzébio de


Queiroz, dentre elas podemos citar a Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, que
considerava liberto todo aquele(a) nascido(a) de escrava. Contudo, mantinha esse(a) sob tutela
do senhor até os 21 (vinte e um) anos. Houve ainda a Lei dos Sexagenários, que decretava
livre o escravo ou escrava a partir dos 60 (sessenta) anos completos. Entretanto, muitos
escravizados sequer chegavam a tal idade e caso conseguissem, praticamente não possuíam
meios para sobreviver fora das fazendas.

Tais iniciativas inclusive foram severamente criticadas como insuficientes e


paliativas, sendo apenas em 1888 que a escravidão foi finalmente considerada como ilegal no
Brasil. Fruto de intensas lutas políticas e do movimento abolicionista liderado por Joaquim
Nabuco, a princesa Isabel, na época regente, promulga, enfim, a Lei Áurea.

Contudo, a referida lei não foi suficiente para extirpar da sociedade práticas de
degradação dos seres humanos com fins de exploração. Os pesquisadores Oliveira e Farias
(2008) evidenciam apontamentos sobre tal perpetuação:

Foi essa cultura de ―coisificar‖ pessoas que se firmou como uma herança
preconceituosa e estratificadora, fomentando ações de violência e segregação social
que perduram até os dias atuais. Uma dessas ações, de violação dos direitos
humanos, é o tráfico de pessoas para a exploração sexual ou o trabalho forçado,
65

crime que rompe a barreira do tempo e que, para continuar existindo, revestiu-se de
formas diferentes, ―adaptadas‖ à modernidade. (OLIVEIRA; FARIA, 2008, p. 45).

O subtópico a seguir apresenta especificidades relacionadas a situação da mulher


escrava no período colonial brasileiro, com ênfase na violência de gênero sofrida por essas
sujeitas, com especificidades que trouxeram contornos diferenciados para a situação de
cativeiro vivenciada por elas.

2.2. A Mulher Negra e Escravizada no Brasil Colonial

De acordo com o relato da pesquisadora Maria Odila Dias (2012), houveram


constantes guerra internas entre tribos rivais africanas que favoreceram a captura, comércio e
tráfico de pessoas. Naquele mercado interno, as mulheres negras eram consideradas
mercadoria mais cara do que os homens negros africanos, em decorrência da sua função de
reprodutora e trabalhadora agrícola, ―[...] reservadas para consumo dos próprios africanos ou
revendidas para países árabes e a Índia‖ (DIAS, 2012, p. 361).

Contudo, quando inseridas no contexto brasileiro, a situação se invertia, pois os


homens, por conta da estrutura forte e robusta, eram mais valiosos e constantemente
disputados entre os fazendeiros, especialmente no período em que o tráfico foi proibido, em
1850. Segundo Dias (2012), ―Eles não valorizavam as mulheres, cujos preços, aliás, eram
cerca de 20% mais baixos do que os dos escravos do sexo masculino [...]‖ (IDEM, p. 362).

A autora enfatiza ainda que a mulher africana, mesmo quando inserida na sua
comunidade de origem, sofria com o domínio patriarcal: ―Essas mulheres estavam
acostumadas a suportar o trabalho de sol a sol, a dor, o cansaço e os castigos impostos por
maridos mais velhos.‖ (IBIDEM, p. 362).

Quando capturadas e vendidas para o comércio das Américas, elas enfrentavam


longas e exaustivas travessias à bordo do navio negreiro. Além de submetidas à fatores de
desnutrição, castigos físicos e humilhações, essas mulheres vivenciaram a violência de
gênero. Dias (2012) enfatiza a situação: ―Apesar de separadas em compartimentos só de
mulheres, as escravas eram bastante vulneráveis a estupros.‖ (DIAS, 2012, p. 361).
66

Apartadas de sua comunidade, de seus laços familiares, da sua terra natal, a


mulher negra e escravizada esteve submetida, por gerações, aos maus tratos físicos e
psicológicos, além de vivenciar crueldades em decorrência da sua particular condição de
mulher. Dias (2012) relata, por exemplo, o tratamento que recebia quando na condição de
gestante:

Tanto nos engenhos de açúcar como nas fazendas de café, as escravas grávidas não
se livravam dos castigos violentos – como os pontapés na barriga aplicados pelos
capatazes –, que muitas vezes, eram responsáveis pela morte do bebê dentro da mãe.
Além disso, os senhores sujeitavam suas escravas grávidas ao serviço da roça e às
mesmas tarefas que faziam antes de engravidar, chegando algumas a dar à luz no
momento em que trabalhavam. (DIAS, 2012, p. 363).

Se por um lado elas estiveram sob o jugo escravocrata, por outro sofriam as
consequências de uma cultura machista advinda do próprio continente de origem, ou seja, os
homens africanos também assumiram o papel de perpetradores da violência no contexto do
cativeiro: ―A situação das mulheres ficava ainda mais difícil quando eram observados os
sentimentos de posse e de ciúmes cultivados pelos homens; elas sofriam violências, e muitas
chegavam a ser assassinadas pelos próprios companheiros de escravidão.‖ (IDEM, p. 363).

Contudo, Dias (2012) relata elementos que caracterizam também a iniciativa de


homens escravizados em defesa de suas companheiras e filhas: ―Uma das alegações mais
frequentes para o assassinato de capatazes por escravos era a reação contra o castigo
excessivo ou mesmo o estupro de suas mulheres ou filhas‖ (p. 365).

De acordo com Gilberto Freyre (2006) na clássica obra Casa Grande e Senzala, as
escravizadas foram alvo ainda de maus-tratos cruéis e mutilações por parte de suas patroas –
as Sinhás – que muitas vezes ficavam enciumadas pela beleza daquelas mulheres, belos
dentes e corpos que despertavam o interesse sexual de seus maridos:

Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho
contra escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas
bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira
de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou
despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras
que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar
os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de
judiadas. O motivo, quase sempre, o ciúme do marido. (FREYRE, 2006, p. 421).
67

Outro aspecto que merece destaque é a continuidade dos aspectos de exclusão


social, preconceito e situação de violência sofrida após a conquista da liberdade:

Ser liberta não eximia as mulheres do ônus de viver em uma sociedade escravista.
As forras enfrentavam inúmeros preconceitos, eram acusadas de ―levar vida airada‖,
de não ter moral. Eram constantemente abordadas pelas autoridades como se fossem
escravas fugidas e algumas chegavam a ser presas várias vezes, amargando
processos judiciais para comprovar o seu status de liberta. Muitas chegaram mesmo
a ser raptadas, reescravizadas e revendidas como escravas. (DIAS, 2012, p. 377,
378).

Embora o sistema patriarcal brasileiro também tenha submetido a mulher branca


ao processo de violência, a negra vivenciou a desigualdade de forma mais acentuada,
proporcionada pelo preconceito étnico-racial e pelo brutal apartamento de suas raízes.
Nepomuceno (2012) tece considerações à respeito dessa condição particular vivenciada pela
mulher negra no contexto brasileiro:

Às mulheres negras não coube experimentar o mesmo tipo de submissão vivido


pelas mulheres brancas de elite até inícios do século XX. Tampouco seu espaço de
atuação foi unicamente o privado, reservado às bem-nascidas, uma vez que, pobres e
discriminadas, se viram forçadas a lançar mão de ma gama de estratégias para
sobreviver e fazer frente aos desafios cotidianos. (NEPOMUCENO, 2012, p. 383).

Adiante trataremos das configurações particulares do tráfico negreiro e condição


escravocrata no Estado do Ceará, que assumiu contornos diferenciados daqueles comuns à
maior parte do território nacional.

2.3. O Tráfico Negreiro no contexto do Estado do Ceará

Embora historiadores indiquem um processo de ocupação diferenciado nas terras


cearenses, que exigiu emprego de mão de obra escravizada em menor escala do que em outras
regiões do país, ainda assim, é possível indicar expressivos números de seres humanos nessa
condição no Estado. Conforme Funes (2007) apresenta:

[...] a introdução da mão-de-obra africana não deixou de ocorrer, tornando-se mais


acentuada a partir das últimas décadas do século XVII, quando a lavoura algodoeira,
ao lado da pecuária, constitui-se num dos principais atrativos para a população
advinda de outras áreas nordestinas e da metrópole portuguesa. (FUNES, 2007, p.
106).
68

Farias (2009) trata também da quantidade menos expressiva da mão de obra negra
escravizada no Ceará, indicando inclusive que esse fator contribuiu para a abolição pioneira
no Estado em 1884, já que no restante do país ela consolidou-se apenas em 188837:

Um fator fundamental seria o pequeno número de cativos negros no Ceará (quando


comparado com outras áreas do País, como as açucareiras, a mineradora e cafeeira) e
o pouco peso da mão-de-obra escrava na economia local. A quantidade de escravos
negros no Ceará nunca foi expressiva – por exemplo, no ano de 1860, a província
apresentava uma população aproximadamente de 503 mil habitantes, dos quais 35
mil eram cativos. (FARIAS, 2009, p. 161)

Sobre a origem desse povo, capturado e contrabandeado do vasto território do


continente africano, alguns aspectos se destacam entre aqueles que foram direcionados ao
mercado das Américas:

Negros apanhados nos campos, matas e rios da distante África, em especial na


região congo-angolana, de cultura bantu. Separados de sua gente, expatriados, os
africanos vinham para o outro lado do oceano com o destino selado: ser força de
trabalho capaz de realizar os sonhos de muitos colonos europeus. (FUNES, 2007, p.
107,108).

O historiador cearense Airton de Farias (2009) também se refere à origem dos(as)


negros(as), contudo sua ênfase é para aqueles diretamente comercializados e utilizados como
mão de obra escravizada no Estado do Ceará:

Para cá vinham predominantemente africanos de etnia banto,embarcados em Angola


(existia também uma reduzida quantidade de sudaneses), embora por volta da
terceira década do século XIX escasseassem os negros de ―nação‖ (africanos) e
preponderassem os crioulos e mestiços nas importações. (FARIAS, 2009, p. 158).

Dentre as inúmeras atividades desempenhadas pelos(as) escravizados(as), Funes


(2007) destaca aquelas exercidas na cidade: ―[...] o trabalho do escravo ajudava na
composição das rendas da família, não apenas pelo seu valor, mas como escravo de aluguel,
como escravo de ganho e até com prostitutas.‖ (FUNES, 2007, p. 115).

37
Associado à isso, Farias (2009) indica ainda a venda de pessoas escravizadas para fora da região e a intensa
campanha abolicionista que se instaurou no Estado a partir de 1879 por influencia do ideário liberal europeu.
(FARIAS, 2009, p. 162).
69

Cabe ressaltar nesse contexto, uma peculiaridade do Estado do Ceará: a figura do


vaqueiro, por vezes assumida também pelo negro. O historiador Funes (2007), evidencia a
inserção gradual desse personagem no cotidiano da história cearense:

À medida que a ocupação do Ceará foi-se efetivando, consequência natural da frente


de expansão, consolidou-se um espaço de trabalho que atraiu um contingente de
homens livres, em sua maioria pobres, negros e pardos, vindos de províncias
vizinhas, na condição de vaqueiros, trabalhando no sistema de quarta, ou como
morador agregado junto às fazendas de criar. (IDEM, p. 105).

Aquém do processo de importação da mão de obra escravizada e da figura do


vaqueiro, o Ceará também foi responsável por traficar negros e negras cativos(as) dentro do
território nacional a partir de 1850 (IDEM, p. 105). Contudo, nesse período, há um aumento
significativo de negros(as), já na condição de libertos, que também migram voluntariamente
para a região. Farias (2009) também trata da condição diversa dos(as) negros(as) no Ceará:
―Não vieram os africanos apenas como escravos, mas como fugitivos do litoral açucareiro,
alforriados e até como sesmeiros.‖ (FARIAS, 2009, p. 158).

O movimento de exportação de africanos(as) escravizados(as) da região cearense


também é um fato histórico relatado por Farias (2009), especialmente no período em que a
Lei Euzébio de Queiroz proíbe a importação de negros da África e o Sudeste expandia a
plantação de café, necessitando, portanto, de mais de mão de obra, que encontrava-se escassa
no mercado nacional: ―Ante a impossibilidade de trazer mais negros escravizados na África,
isso num momento de expansão do café no sudeste brasileiro, os cafeicultores passaram a
comprar cativos do Norte do Império, em especial do Ceará‖ (IDEM, p. 162), e mais adiante
complementa ―[...] especula-se em torno de sete mil os vendidos entre 1871 e 1881, sendo em
1877 foram exportados três mil só pelo porto de Fortaleza.‖ (IBIDEM).

Embora o sistema escravocrata tenha sido abolido, Funes (2007), ao tecer análises
desse momento histórico, destaca o ranço cultural profundamente arraigado na sociedade
brasileira, que repercute até os dias atuais:

[...] o senso comum vendo o escravo sem vontade própria, desprovido de sua
condição humana, percebida apenas como peça do sistema produtivo [...] Condena a
escravidão; mas continua a ver aquele como ser coisificado em sua subjetividade
[...]. (FUNES, 2007, p. 117).
70

O(a) escravo(a) liberto(a), nesse sentido, livra-se dos grilhões físicos, mas
continua cativo(a) de uma sociedade segregadora. Antes escravo(a), agora excluído(a) e
desempregado(a). Assim, na palavras de Funes (2007):

O controle sobre o outro é mantido com todas as implicações sociais decorrentes


desse processo e relação de trabalho. A abolição, nos moldes em que foi realizada,
permitiu a passagem de uma coerção predominantemente física do trabalhador para
uma coerção predominantemente ideológica. No Ceará, em particular na cidade de
Fortaleza, há um aumento considerável daqueles indivíduos sujeitos à condição de
agregados e empregados domésticos. (IDEM, p. 132).

O subtópico a seguir traz uma abordagem do tráfico de pessoas no período pós-


abolição da escravatura no Brasil, onde mulheres de origem europeia tornaram-se a principal
fonte de renda lucrativa para criminosos especializados no aliciamento, recrutamento e
transporte dessas ―mercadorias‖, para fins de exploração sexual, cujo destino foi
especialmente o continente americano.

2.4. Tráfico de Mulheres na Belle Époque brasileira

Apesar do direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra ter sido


oficialmente abolido em 1888, a prática, ainda que sob novas características, se perpetuou. A
abolição da escravidão e a modernização industrial transformaram os centros urbanos em
palcos atrativos para milhões de pessoas, não só àqueles que buscavam oportunidade de
trabalho, mas também para criminosos dispostos à obter lucratividade através das mais
diversificadas atividades ilícitas.

Hobsbawn (2011) indica que ―empresários da imigração‖ aproveitavam-se da


situação vulnerável de estrangeiros para explorá-los:

[...] quando o parente não podia ajudar, uma variedade de intermediários com
interesses financeiros entrava em ação. Onde havia uma grande demanda por
trabalho [...] de um lado, uma população ignorante das condições do país escolhido
de outro e uma longa distância pelo meio, o agente ou contratador prosperava.
(HOBSBAWN, 2011, p. 304).

Podemos inferir que a demanda por esses ―serviços‖ era enorme, pois de acordo
ainda com o historiador Hobsbawn (2011), o século XIX marcou a era de trânsito das grandes
massas migratórias ao redor do mundo, especialmente no sentido Europa-América: ―A metade
71

do século XIX marca o começo da maior migração de povos na História. [...] entre 1846 e
1875, uma quantidade bem superior a 9 milhões de pessoas deixou a Europa [...].‖
(HOBSBAWN, 2011, p. 295-296).

Nesse contexto, mais especificamente da Belle Époque (1871-1914), algumas


jovens mulheres – confundindo-se entre aquelas que migravam em busca de oportunidades na
indústria ou trabalho doméstico, ou mesmo entre aquelas que tinham intenção de exercer a
prostituição voluntaria – foram enganadas, submetidas aos maus tratos, privação de liberdade
e violência sexual. Em relação ao perfil mais comum das imigrantes desse período, Hobsbawn
(2001) destaca: ―As mulheres migrantes entre países tornaram-se em sua maioria empregadas
domésticas, até que se casavam com um compatriota ou passavam para alguma ocupação
urbana. A migração de famílias ou mesmo de casais era incomum.‖ (IDEM, p. 300).

Contudo, Kushinir (1996) relata sobre a procedência das primeiras estrangeiras


que exerceram a prostituição no Brasil, reconhecendo que as negras africanas escravizadas –
na modalidade de prostituição forçada – e as portuguesas, na modalidade voluntária, foram as
pioneiras:

[...] a prostituição estrangeira já frequenta a cidade do Rio de Janeiro desde o inicio


do século XIX. Durante a primeira metade do século passado, a cidade possuía
prostitutas portuguesas [...] ou escravas de ganho induzidas a esse trabalho por seus
senhores. A partir de meados do século, o panorama modifica-se com a chegada de
mulheres vindas da Europa e que povoam tanto o Rio de Janeiro como Santos, São
Paulo e as principais cidades-porto do país. (KUSHINIR, 1996, p. 82)

Assim, prostitutas que desempenhavam suas atividades autônoma e


voluntariamente se confundiam com mulheres que foram obrigadas a exercê-la. Num primeiro
momento, meretrizes livres e negras escravizadas dividiam os espaços, sendo a exploração
dessas segundas legitimada pelo Estado; num segundo momento, brancas escravizadas
importadas pela atividade de redes criminosas confundiam-se com prostitutas imigrantes que
vieram tentar melhores oportunidades de sobrevivência no Brasil.

Sobre o período da Belle Époque, cabe indicar seu significado: apesar de possuir
raízes na França, influenciou inúmeros territórios aquém do continente europeu. O historiador
Ponte (2000) define esse período histórico como a tradução da ―[...] euforia europeia com as
novidades extasiantes decorrentes da revolução científico-tecnológica (1850-1870 em
diante).‖ (PONTE, 2000, p. 162). Dessa forma, tal momento no Brasil culminou num esforço
72

em transformar a estrutura das cidades do país, assim também como a moda, a economia e os
costumes, de acordo com os padrões vigentes na Europa. Ponte (2000) indica as
metamorfoses trazidas nesse contexto:

Com efeito, esse período, momente fundante do nosso mundo contemporâneo, é


marcado por um intenso fluxo de mudanças que não só produziu transformações de
ordem urbana, política e econômica, como também afetou profundamente o
cotidiano e a subjetividade das pessoas, alterando seus comportamentos e condutas,
seus modos de perceber e de sentir. (PONTE, 2000, p. 163).

As reformas nacionais para adaptar-se aos padrões europeus, portanto, podemos


inferir, também afetou o ―comercio‖ da prostituição. Um bordel que dispusesse de cortesãs
estrangeiras provenientes do velho continente era muito frequentado, pois aludia à grande
status social e ao progresso. Rago (2008) salienta o interesse dos homens daquela época por
essas mulheres:

Relacionar-se com a prostituta estrangeira, mulher experiente e desconhecida,


satisfazia a expectativa burguesa de se ver introduzida nos hábitos sexuais
avançados das sociedades modernas. Fazendeiros e coronéis não mediam esforços
para tanto. Pelo mundo da prostituição, acreditava-se entrar no compasso da
História, absorvendo e consumindo práticas e mercadorias europeias, profundamente
mistificadas (RAGO, 2008, p. 197).

Rago (2008) tece ainda consideração sobre o caráter animalesco que as relações
com a prostituta (estrangeira ou não) podem despertar, e as motivações que levam os
fregueses a procurar por esses serviços, evidenciando características de uma cultura patriarcal
e machista:

[...] muitos dos frequentadores do mundo marginal eram homens de classe social
superior, cujas fantasias só poderiam ser compartilhadas por mulheres de posição
social inferior, que não evocam as imagens familiares da esposa, irmã ou mãe, e que
eram consideradas mais próximas do campo da animalidade e das perversões.
(IDEM, p. 260).

Entretanto, a figura da mulher europeia na prostituição brasileira não esteve


presente apenas no alto meretrício. Cafetões e cafetinas perceberam que poderiam ganhar
dinheiro também no baixo meretrício, levando o ―produto importado‖ para as camadas
populares. Foi nesse campo onde se proliferou o tráfico de escravas brancas. Aliado ainda às
precárias condições socioeconômicas enfrentadas por essas mulheres na Europa Ocidental
nesse período, inúmeras jovens foram facilmente cooptadas pelas redes criminosas. Sobre a
situação das mulheres inseridas no baixo meretrício, Rago (2008) coloca:
73

No baixo meretrício, a rotatividade muito mais acelerada dos corpos implicava


encontros sexuais mais rápidos e diretos. As meretrizes deviam atender a uma
quantidade maior de fregueses [...]. as prostitutas tinham de enfrentar fregueses dos
mais diversos tipos, desde figuras agradáveis até bêbados, delinquentes,
vagabundos, ladrões, homens violentos e desequilibrados, que não podiam arcar
com os custos dos bordeis mais caros. Consideradas biologicamente inferiores e,
muitas vezes, sendo economicamente mais pobres, as prostitutas expunham-se a
muitas violências emocionais ou físicas. (IBIDEM, p. 261).

A vítima de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, nesse sentido, sofre
com fatores de violência ainda mais brutalizados, pois aliada às mazelas habitualmente
vivenciadas por qualquer prostituta, há ainda a decepção traumática produzida pelo engano e
a exploração sofrida não só por meio dos clientes, mas também através do(a) cafetão/cafetina
para os quais deve repassar a maior parte do dinheiro arrecadado na atividade. Tal figura
exercia sobre ela forte pressão emocional e por vezes violência física.38

Aliada a demanda pelos serviços sexuais de mulheres estrangeiras em países


como o Brasil e Argentina, o Leste Europeu, naquele período39, esteve submerso em disputas
políticas, ondas antissemitas, desemprego e agudos abismos sociais. Assim, muitas mulheres40
daquela região migraram na esperança de encontrar melhores oportunidades de sobrevivência.
Sobre tais motivações, Kushinir (1996) reafirma: ―A crise econômica, a miséria, a
perseguição religiosa e a falta de trabalho são fatos que certamente se associaram para
explicar o aumento da migração antes e depois da guerra [...].‖ (KUSHINIR, 1996, p.100).

Rago (2008) descreve o movimento migratório dessa época para o Brasil,


colocando também em evidência prostitutas migrantes e escravas sexuais. A referida autora
enfatiza a dificuldade em diferenciar os dois casos no que diz respeito aos números e
estatísticas:

É praticamente impossível estimar a quantidade de prostitutas que vieram traficadas


da Europa, principalmente das aldeias pobres da Polônia, Rússia, Áustria, Hungria e
Romênia para a América do Sul. Também dificilmente saberemos quantas vieram

38
Aspectos esses, inclusive, deveras semelhantes com o contexto do tráfico de pessoas na atualidade.
39
Final do século XIX e início do século XX.
40
Não significa, evidentemente, que homens e crianças também não tenham vinda, assim também como não
significa que todas as mulheres que migraram para o Brasil foram com a intenção de prostituir-se, entretanto,
para os objetivos propostos nesse trabalho as prostitutas migrantes e as escravas sexuais são colocadas em
evidência.
74

por vontade própria, ou iludidas com promessas de casamento e perspectivas


estimulantes de enriquecimento [...] (RAGO, 2008, p.282)

Embora a autora ressalte que definir essas diferenciações em números é inviável,


o importante para nossa análise é evidenciar que a problemática de fato ocorreu nesse período
e salientar as principais características que a envolve. Baseada no relato histórico verídico do
repórter francês Albert Londres41, a estudiosa descreve, dentre outros aspectos, rotas de
tráfico de mulheres, especificidades das vítimas, além do modus operandi das redes
criminosas:

Como comerciantes especializados na venda de mercadorias, peles ou joias, os


rufiões mantinham absoluto controle sobre as moças durante o percurso da viagem,
instruindo-as quanto às formas de conduta, tipos de conversa, momentos de silêncio,
respostas, lugares onde poderiam aparecer publicamente e determinavam seu
relacionamento com a própria polícia alfandegária. (IDEM, p. 301).

Largman (2008) reflete sobre a mesma questão e é taxativa ao afirmar que a


presença de mulheres de origem judaica, advindas especialmente da Europa Ocidental para
exercer a prostituição, tanto na Argentina como no Brasil, tendo como principal destino
cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Santos, era fato amplamente
conhecido pela sociedade e autoridades governamentais. Assim como Rago (2008), a autora
admite que o número exato dessas mulheres é incerto, mas estima que mais de 10 mil judias
foram trazidas para o Brasil através do tráfico internacional, entre 1908 e 1930.

Dentre o perfil dos criminosos responsáveis por aliciar e explorar essas mulheres,
Largman (2008) evidencia os imigrantes judeus, manifestando que apesar da grande maioria
tratar-se de pessoas trabalhadoras e de boa índole, haviam também criminosos experientes e
exploradores de mulheres42, que cruzaram as fronteiras trazendo suas ―mercadorias‖ para
expandir os ―negócios‖:

A partir de 1891, de acordo com Gerardo Bra, houve uma grande leva de imigrantes
judeus, vindos sobretudo da Europa Oriental [...] Infelizmente, no bolo da leva,
chegaram também os traficantes de mulheres destinadas à prostituição, elementos
tarimbados nos bordeis, sobretudo da Polônia, muitos já fichados em diversos
distritos como Lodz, Lemberg e Varsóvia. (LARGMAN, p. 208, 2008).

41
Albert Londres infiltrou-se na realidade do tráfico de escravas brancas em Buenos Aeres, incursão essa que
resultou na publicação do livro chamado Le Chemin de Buenos Aires em 1927.
42
O objetivo de Largman é demonstrar o fenômeno no universo judaico, ela tanto aponta caftens judeus, como
mulheres judias exploradas.
75

No que se refere à atuação das redes criminosas, Rago (2008) relata que rufiões e
cafetinas não apenas faziam a travessia de suas vítimas, mas agiam também nas embarcações,
tentando cooptar jovens estrangeiras que já estivessem a caminho do Brasil. Para tanto, ilustra
suas afirmativas no relato do advogado Samuel Malamud, ucraniano que presenciou a
seguinte situação durante seu trajeto de migração:

Ao deparar com a moça, procurou entabular conversa, indagando de onde vinha e


para onde ia. Dizia ter vontade de lhe ser útil e estar pronta para ajudá-la, pois
residia no Rio de Janeiro há longos anos. Minha mãe, tão logo deparou essa mulher
e sua conversa com a oca, interveio e fez-lhe sentir que ela viajava em nossa
companhia, de modo que dispensava seus bons serviços. Em seguida, advertiu a
moça de que não tivesse qualquer contato com essa visitante da primeira classe.
Apesar de advertida por minha mãe e não mais se aproximar, essa mulher ousada
ainda procurou novos contatos com a moça e a convidou para visitá-la em sua
cabine. Conversava com todo mundo, dando preferência às mulheres. (MALAMUD
apud RAGO, 2008, p. 293).

A pesquisadora caracteriza ainda a ação mais ampliada de um traficante chamado


Victor ―o Vitorioso‖, que inicia sua ―carreira‖ ao casar-se com uma prostituta em Londres que
se torna, por influencia dele, ―acompanhante‖ de luxo. Ambos posteriormente mudam-se para
a Argentina, estabelecendo ali um rentável negócio clandestino, com foco no tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual comercial:

Ele se articula com outros caftens, amplia seus negócios, casa-se outras vezes,
importa novas mulheres da França para a Argentina, vende as que lhe desagradam
ou se insubordinam, sem deixar, no entanto, de continuar vinculado à primeira
esposa. Como seus companheiros de ―não-trabalho‖, Victor, ―o Vitorioso‖, circulava
pelas cidades próximas a Buenos Aires [...] mantendo prostitutas em Rosário, centro
comercial mais importante depois da capital, Mendonza, Córboda, Santa Fé, além
das que trabalhavam para ela na capital. (RAGO, 2008, p. 303).

Os criminosos, em sua maioria também estrangeiros, articulavam-se astutamente


entre si, formando verdadeiras organizações especializadas em explorar jovens mulheres e
comercializá-las, inclusive entre eles, com o objetivo de dar ―rotatividade‖ às suas
mercadorias e garantir maiores lucros. Essa articulação é retratada por Rago (2008):

Reunidos em seus pontos de encontro mais conhecidos, como os cafés Suisso e


Criterium, na praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, ou em São Paulo, no Bar do
Municipal, em cafés e restaurantes próximos às casinhas baixas do centro, esses
homens negociavam a importação de suas ―mercadorias‖, depois encerradas nos
prostíbulos cariocas ou paulistas, ou comercializadas nas principais cidades
argentinas. Vários haviam se tornado figuras tão conhecidas do submundo, no Brasil
ou no exterior, que os consulados enviavam cartas prevenindo contra sua atuação.
Mesmo assim, atreviam-se a operar livremente, burlando os poderes públicos com
muita agilidade e sem maiores constrangimentos. (IDEM, p.286).
76

Rago (2008) relata ainda a existência de rotas de tráfico de mulheres bem


delineadas na época, onde atuavam essas máfias, já então altamente especializadas nesse tipo
de negócio. A autora apresenta uma estimativa do possível número de vítimas, remetendo-se a
relatos de autoridades da época:

Segundo o jurista Paul Appleton, Gênova embarcava anualmente cerca de 1.200


mulheres para a América do Sul, na maioria procedentes da Áustria, Hungria,
Rússia, Polônia e França. Marselha, Anvers e Hamburgo apareciam como portos
importantes do tráfico, enquanto Buenos Aires era considerado o principal porto de
chegada, seguido de Montevidéu e Rio de Janeiro. (IBIDEM, p. 288)

Kushinir (1996) também levanta aspectos sobre as redes criminosas


predominantemente compostas por estrangeiros, e declara que, assim como as mulheres
―traficadas‖, esses sujeitos também estiveram expostos aos fatores de vulnerabilidade social
antes de entrarem para redes clandestinas: ―Baseadas na proteção contra o caótico mundo dos
cortiços e na luta pela sobrevivência, essas gangues estabeleceram a noção da ―grande família
mafiosa‖, formada por imigrantes marginalizados do contexto sócio-econômico.‖
((KUSHINIR, 1996, p.43).

As europeias prostitutas, por sua vez, ficaram popularmente conhecidas como


―polacas‖. Submetidas à situação de pobreza no qual o leste europeu esteve imerso naquele
período, como anteriormente relatado nessa pesquisa, muitas jovens vinham voluntariamente
ao Brasil exercer o ofício. Entretanto haviam aquelas que eram enganadas por rapazes que se
passavam por pretendentes idôneos e bem intencionados. Ainda na Europa, casavam-se com
aqueles que, na realidade, seriam seus traficantes. Posteriormente, eram convencidas a tentar a
vida na América do Sul. Na esperança de um futuro melhor, a maioria aceitava o desafio.
Largman (2008), baseada em pesquisas e estudos científicos, constrói relatos do que deve ter
ocorrido com essas mulheres:

[...] O primeiro ano da guerra liquidou com o negocio da família [...] Sarah, com 15
anos, resolveu interromper o ginásio e começou a trabalhar como costureira numa
fábrica. Certo dia, apareceu um capataz novo, um rapaz moreno, muito elegante e
bonito, Benjamim Tarnow, que começou a dirigir-lhe a palavra, elogiou sua beleza
e, depois de algumas semanas, convidou-a para passear. Aos poucos Sarah
apaixonou-se. Tempos depois ficaram noivos e Benjamin avisou que iriam para a
América do Sul, onde tinha parentes com negócio montado e ricos. [...] No navio ela
percebeu que Benjamim conversava com alguns rapazes. Pareciam seus conhecidos
e olhavam para ela com expressão maliciosa. (LARGMAN, 2008, p. 18, 19).
77

Segundo a estudiosa, assim teve início a saga de muitas jovens mulheres que
tiveram como destino países como o Brasil. Muitos dos aliciadores, conforme já indicado
neste trabalho por Rago (2008), também eram estrangeiros e as autoridades nacionais tinham
pleno conhecimento do fenômeno. Largman (2008) realiza levantamento no Arquivo
Nacional Público, localizado no Estado do Rio de Janeiro, e aponta:

Relatório de ocorrências na 4ª Delegacia Policial


Janeiro a Maio – 1917

[...]

Caftens presos:

Ezequiel Rodrigues, brasileiro, mulheres nas ruas Taylor e Conceição. Ex-guarda


civil.
Jean Lemnyon, francês, explora a esposa Coraline na rua Joaquim Silva.
Ângelo Mazarelia, argentino, explora a própria mulher, Carmem Fernandes.
Abraham Marmet, polaco, explora Rosita, na rua Senador Dantas, nº 3, e Helena, na
rua Conceição, nº 34.
Simon Lipscher, russo, explora Ema Sclep, na rua São Jorge, nº 79.
Jorge Abdula, turco, explora Rosita, na rua Morais e Valle, s/nº
José Maia, nacional, explora Elvira Viana, em Nictheroy.
A denúncia foi pela nossa delegacia.
Jacob Gant, polaco, explora a mulher, Sara Kolner.
David Braklin, polaco, explora Magdeleine Lencovet e Rosa Kapilov, na rua Luis de
Camões, nº 82. (IDEM, p. 37, 38).

A pesquisadora apontou ainda que as mulheres exploradas de origem judia não


eram aceitas pela comunidade judaica, consideradas impuras e impedidas de frequentar
sinagogas ou mesmo de serem sepultadas nos cemitérios judeus. Diante dessa realidade, elas
criaram meios de continuarem professando fé, tinham sinagogas próprias e foi criado
inclusive um cemitério para as mesmas, que existe até hoje no Rio de Janeiro capital, na Rua
Inhamúns, onde foram identificados 538 túmulos de ―escravas brancas‖. No tocante ao
cemitério, é válido indicar dados pertinentes: ―Na ala velha, a maioria dos túmulos indicava a
data de nascimento e a origem. Havia mulheres oriundas da Rússia, Polônia e Áustria. Outros
indicavam a cidade: Lodz, Lemberg e, sobretudo, Warszava.‖ (IBIDEM, p. 270, 271).

Kushinir (1996) também menciona a criação do cemitério, ressaltando que tinha


extrema importância para os judeus excluídos no Brasil, pois representava uma forma de
perpetuar seus costumes religiosos sem serem discriminados:

[...] dentro das normas judaicas, os suicidas e as prostitutas são enterrados junto aos
muros do cemitério, como forma de marcar o lugar de exclusão. [...] No caso do Rio
de Janeiro, por exemplo, o primeiro cemitério judaico da cidade pertence à
78

sociedade de prostitutas judias, como uma resultante da expulsão destas pessoas das
entidades judaicas tidas como oficiais e pela estruturação de sua vida comunitária
ser anterior a da organização oficial. (KUSHINIR, 1996, p. 73)

O comércio de mulheres do Leste Europeu para a América Latina só começou a


esvair-se a partir de 1930. Relatos evidenciam que o chefe de polícia argentino Julio
Alsogaray, após receber a denúncia de Raquel Liberman, judia, explorada na Argentina pela
rede mafiosa Zwi Migdal, desmantelou a rede criminosa. A iniciativa resultou numa
publicação em jornal de circulação com o nome dos criminosos que compunham a rede,
resultando na prisão, deportação e fuga dos integrantes da quadrilha. Detalhes sobre o fato são
relatados por Kushinir (1996):

Raquel Liberman, nascida em Lodz, Polônia, segundo relatos da época, viveu na


prostituição por dez anos, tendo conseguido sair do baixo meretrício mediante um
processo de recompra de sua liberdade – algo comentado na literatura como
explicando os possíveis leilões de venda de prostitutas. A partir dessa possibilidade
de circulação de mercadoria expressa nos leilões, Raquel teria planejado sua
libertação do mundo da prostituição por meio da compra do seu ―passe‖, realizada
por um amigo. A partir daí, abre um negócio de móveis [...] a organização descobre
sua fraude e faz com que um de seus membros – Salomón José Korn – a seduza com
uma promessa de casamento, reintroduzindo-a no universo do baixo meretrício
portenho. Revoltada, Raquel teria denunciado a Ziw Migdal [...]. (IDEM, p. 81).

Assim, Buenos Aires, na Argentina, foi pioneira no enfrentamento ao tráfico de


mulheres através da publicação da Lei nº 9.143 de 23 de setembro de 1913, conhecida como
Lei Palácios43. Rago (2008) chama atenção para a repercussão da referida iniciativa legal no
Brasil:

Em 1913, ano particularmente importante na perseguição aos rufiões na Argentina,


em virtude da decretação da Lei Palácios, que decidia pela deportação dos
―indesejáveis‖, a polícia marítima do Rio de Janeiro impedia a entrada de
aproximadamente 1.068 caftens procedentes de Buenos Aires. (RAGO, 2008, p.
298).

Em relação ao contexto brasileiro, Kushinir (1996) evidencia que ali, apesar de


existirem relatos de atividades de enfrentamento nesse sentido, mesmo com a repercussão do
que ocorreu na Argentina, de fato, não houveram, num primeiro momento, ações mais
enfáticas de enfrentamento à essas questões: ―[...] Em contraste com o processo argentino, no
Brasil jamais houve uma séria campanha de repressão tanto ao tráfico como ao caftismo.
Percebe-se apenas experiências pontuais [...]‖ (KUSHINIR, 1996, p.87).

43
Inclusive a data é hoje considerada como marco no enfrentamento da questão e tornou-se Dia Internacional
Contra a exploração sexual e o Tráfico de Pessoas.
79

Um pratica comum no Brasil, era a realização de sensos com relação ao número


de prostitutas estrangeiras atuantes nas capitais do Rio de Janeiro e São Paulo como meio de
subsidiar o enfrentamento ao tráfico de escravas brancas. Rago (2008) descreve essas
atividades: ―o chefe de polícia, [...] mandara organizar uma relação das prostitutas européias
que viviam nesta capital44, para ser enviado ao comitê berlinense encarregado do combate ao
tráfico.‖ (RAGO, 2008, p. 290). Chamamos atenção para o fato de que não há nenhuma
preocupação em diferenciar quais delas estariam ali voluntariamente ou quais estariam em
caráter de servidão. O levantamento é meramente numérico, identificando apenas prostitutas
estrangeiras.

Desse modo, cabe frisar que parte do ―saneamento moral‖ de combate à


prostituição foi desenvolvido sob o pretexto do enfrentamento ao tráfico de escravas brancas.
O controle da prostituição permeou tanto o campo da repressão policial quanto da tolerância,
pois desde que o exercício do meretrício ficasse restrito à determinados territórios dentro da
cidade era ―aceito‖. No campo da repressão, caftens estrangeiros e suas acompanhantes foram
detidos nos principais portos de circulação do país, sendo posteriormente deportados.

Assim, o combate ao ―tráfico de escravas brancas‖ esteve por vezes permeado por
noções moralistas e de perseguição às prostitutas. Além disso, na época em questão, Rago
(2008) evidencia que essas mulheres, vítimas de tráfico ou não, eram vistas como escória
social e por isso mais sujeitas às situações de violência e negligência por parte do Estado e da
sociedade: ―Consideradas biologicamente inferiores e, muitas vezes, sendo economicamente
mais pobres, as prostitutas expunham-se a muitas violências emocionais ou físicas.‖ (RAGO,
2008, p. 261).

Mais adiante, a autora aborda o tratamento que era empreendido à essas mulheres,
prostitutas do baixo meretrício, na ocorrência de conflitos, quando eram levadas pela polícia:
―[...] as mulheres [...] recebiam uma ducha de água fria, por vezes uma surra e, quase sempre,
saíam de lá com a cabeça raspada.‖ (PENTEADO apud RAGO, 2008, p. 276).

A pesquisadora relata ainda que membros da Polícia de Costumes da época


tornaram-se corruptos e faziam a proteção de caftens e cafetinas em detrimento das mulheres

44
Aqui a autora referia-se à cidade de São Paulo.
80

exploradas: ―[...] profundamente irritado com a proteção que a cafetina [...] recebia por parte
da Polícia de Costumes, o jornal denunciava a agressão que ela praticara, tempos atrás, contra
a meretriz Odette de Camargo.‖ (IDEM, p. 265).

A assistência direcionada à essas mulheres portanto, ficou à cargo de entidades


não governamentais, que também surgiram para combater o ―tráfico de escravas brancas‖,
conforme sinaliza Rago (2008):

Internacionalmente, associações de combate ao lenocínio e à prostituição


mobilizaram a opinião pública e procuraram dotar os países envolvidos de uma
legislação adequada. Ao lado da associação filantrópica inglesa, a Nacional
Vigilance Association, fundada em 1885 pelos abolicionistas, surgiu em Londres a
Jewish Association for the Protection of Girl and Women, que progressivamente
construiu filiais nos principais países envolvidos pelo tráfico, especialmente em
Buenos Aeres. Na França, fundou-se, entre outras, a Associoation pou la Repression
de la traites des Blanches et la Preservation de la Jeune Fille, em 1910 [...] (RAGO,
2008, p. 347).

A autora evidencia que tais instituições realizavam atividades de inspeção nas


embarcações e trens em busca de jovens mulheres que pudessem estar em situação de perigo
para o tráfico de escravas brancas com o objetivo de ―resgatá-las‖. No Brasil, tais entidades
foram eminentemente organizadas pela comunidade israelita, como por exemplo, a Sociedade
Beneficente das Damas Israelitas, a Sociedade dos Amigos dos Pobres ou ainda a Sociedade
Beneficente Israelita e Amparo aos Imigrantes (Relief), ―[...] tendo em vista amparar as
famílias judias carentes e os imigrantes despossuídos [...]‖ (IDEM, p. 347).

É importante destacar que o tráfico de pessoas é fenômeno plural e admite outras


finalidades que não apenas a exploração sexual. O Suriname, por exemplo, ao libertar seus
escravizados(as), importou mão de obra asiática para suprir a demanda da lavoura. Entretanto
as condições de trabalho aos quais essas pessoas forma submetidas em muito se assemelhou à
escravidão, constituindo elementos suficientes para caracterizar o tráfico de seres humanos
para fins de exploração laboral naquela região ainda no século XIX:

Para suprir a demanda de mão-de-obra para as plantações, trabalhadores da Ásia


foram recrutados. Entre 1853 e 1873, 2.502 chineses foram levados para a colônia.
Entre 1873 e 1922, 34.024 trabalhadores do subcontinente Índia e, entre 1891 e
1939, 32.965 pessoas da Indonésia foram recrutadas. Estes migrantes chegaram
como trabalhadores endividados que assinaram contratos que os obrigavam a
permanecer no emprego por vários anos. (SODIREITOS, 2008, p. 44).
81

Além de chineses e indonésios, os indianos também estiveram entre as vítimas. As


etapas de aliciamento/recrutamento e falsas promessas, características indispensáveis na
configuração do tráfico de pessoas, estiveram presentes, conforme ressalta trecho abaixo
descrito:

O recrutamento de trabalhadores na Índia e em Java ocorria através de aliciadores


que abordavam jovens masculinos com falsas promessas e os levavam através de
contratos de dívida às plantações no Suriname. Na Índia, existia muita revolta contra
os aliciadores, que eram perseguidos pela população, pois sua atuação de levar
pessoas, muitas vezes sem informar suas famílias, era considerada criminosa.
(IDEM, p. 45)

O historiador Hobsbawn (2011) também menciona a exploração de indianos e


chineses no período pós-abolição da escravidão, ressaltando a lucratividade do negócio para
contratadores e aliciadores: ―Podemos deduzir que eles geralmente exploravam a pobreza e a
ignorância, embora os extremos do contrato de trabalho e servidão de dívidas fossem talvez
incomuns nesse período, exceto entre os indianos e chineses enviados para as plantações.‖
(HOBSBAWN, 2011, p. 304).

O tópico a seguir trata das características contemporâneas do tráfico de pessoas,


identificando novas modalidades da prática e uma expansão considerável no que diz respeito
às vítimas, tendo em vista que não se delimitam mais ao campo feminino, embora elas ainda
representem a maioria, mas seres humanos de todas os sexos, raças, culturas e etnias, sujeitos
à fatores de vulnerabilidade social extrema, que facilitam a ação dos criminosos(as).

2.5. Fenômeno Polimórfico: múltiplas formas de exploração no Tráfico de Pessoas


Contemporâneo.

A questão é que, se as praticas de tráfico não são centrais nos mercados globais
transnacionais nem no mundo global em que vivemos, como outrora a
escravatura o foi, elas alojam‑se nas desigualdades e injustiças na distribuição
de riqueza promovidas e fomentadas por esse mesmo sistema mundo.
(SANTOS; et. al, 2009, p. 71).

Nesse tópico trataremos de algumas modalidades do tráfico de seres humanos –


para fins de exploração laboral, sexual comercial, tráfico de órgãos e casamento servil – na
compreensão de que seria impossível abordar todas elas, tendo em vista a amplitude de
manifestações que a prática tem apresentado.
82

O mundo atual vivencia o capitalismo associado à fenômenos como a


globalização e o neoliberalismo. Para Boaventura de Sousa Santos (1997; 2001), a
globalização – que para o autor deveria ser nomeada no plural – é um fenômeno de definição
complexa que pode incorporar muitos significados. Privilegiando uma concepção direcionada
às dimensões culturais, políticas e sociais, o estudioso define que: ―[...] a globalização é o
processo pelo qual determinada condição ou entidade local consegue estender a sua influência
a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição
social ou entidade rival.‖ (SANTOS, 1997, p.108)

A globalização associada ou neoliberalismo gera, de acordo com o autor, a


seguinte situação:

[...] restrições drásticas à regulação estatal da economia; novos direitos de


propriedade internacional para investidores estrangeiros, inventores e criadores de
inovações susceptíveis de serem objecto de propriedade intelectual (Robinson, 1995:
373); subordinação dos Estados nacionais às agências multilaterais tais como o
Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial
do Comércio. Dado o carácter geral deste consenso, as receitas em que ele se
traduziu foram aplicadas, ora com extremo rigor (o que designo por modo da jaula
de ferro), ora com alguma flexibilidade (o modo da jaula de borracha). (SANTOS,
2011, p.35)

Tal contexto contemporâneo favorece fatores como a precarização das condições


de trabalho, baixos salários, enormes abismos sociais e globalização de processos culturais
localizados45 – gerando a sobreposição de uns sobre os outros – que ocasionam em situação
de pauperização e discriminação para boa parte da população mundial. Nessa perspectiva,
inúmeros indivíduos saem de seus países em busca de melhores oportunidades de vida nos
países ricos. Na realidade, de uma forma geral, deslocam-se de regiões mais precarizadas em
direção à outras mais produtivas, como é o caso, por exemplo, da movimentação de
nordestinos para o sul e sudeste do Brasil..

Para Santos, et.al (2009), existem três elementos desencadeados pela globalização
neoliberal, que favorecem o tráfico de seres humanos contemporâneo, sendo eles:

[...] criação de uma economia global privatizada, com um controlo estatal residual,
em que os mercados locais surgem ligados entre si; a liberalização da troca, com a
diluição das fronteiras para a circulação de pessoas, bens e serviços que sirvam a

45
Como por exemplo o fast food norte-americano ou o fenômeno da cultura cinematográfica hollywoodyana,
que dita certo perfil de atores(izes) e enredos, ocasionando em processo de estranhamento à outras produções
que assumem perfil diferenciado. (SANTOS, 1997).
83

criação do tal mercado global; e a disseminação da produção através de investimento


estrangeiro em multinacionais. (SANTOS; et.al, 2009, p. 72).

De acordo com o autor, o panorama da globalização neoliberal contribui para a


geração de mercados internacionais do sexo que são sustentados especialmente pela mão-de
obra migrante: em parte, pessoas que buscam voluntariamente pela atividade, em parte por
meio do tráfico para fins de exploração sexual.

Favorecem ainda o turismo que busca por sexo, comumente conhecido por
turismo sexual, que em geral ocorre na movimentação inversa: pessoas de países ricos buscam
por mulheres nativas nos países pobres. Piscitelli (2002) elenca considerações à esse respeito
das relações desiguais estabelecidas nessa problemática:

As análises sobre a dinâmica do turismo sexual internacional apontam para o fato de


os bolsos dos turistas sexuais Ocidentais conterem suficiente poder para converter os
outros em Outros, meros atores num palco pornográfico, como uma expressão do
enorme desequilíbrio econômico, social e político entre nações pobres e ricas.
(PISCITELLI, 2002, p. 222).

Aliada as questões de caráter econômico (classe), situam-se aquelas de origem


sociocultural que legitimam historicamente discriminações de diversas naturezas,
anteriormente discutidas no primeiro capítulo desse estudo sob a nomenclatura de estamentos
(WEBER, 1999). Nesse direcionamento indicamos, tendo em vista a realidade brasileira,
conforme Carvalho (2007), que: ―A desigualdade incide sobretudo sobre os grupos da
população mais vitimados ao longo da história, os descendentes dos escravos, os
trabalhadores rurais, as mulheres, os nordestinos.‖ (CARVALHO, 2007, p. 29).

Entre esses grupos menos favorecidos, Saffioti (1987) elenca especialmente a


situação das mulheres, que ocupam posição social específica de fragilidade: ―Múltiplas
formas de trabalho clandestino existem no Brasil. Eles absorvem homens e mulheres, mas
estas últimas são mais numerosas nestes tipos de trabalho.‖ (SAFFIOTI, 1987, p. 49).

Dessa maneira, o tráfico de pessoas incorpora como vítimas em potencial o(a)


indivíduo(a) que se encontra em posição inferior na escala hierárquica de classe e estamento
social. Quanto às consequências dessa situação, coloca Arendt (2007) que ―A pobreza força o
homem livre a agir como escravo.‖ (ARENDT, 2007, p. 74). Isso ocorre porque a privação
84

das condições mínimas de sobrevivência e a discriminação vivenciada cotidianamente,


tornam-se fortes catalizadores para que essas pessoas aceitem facilmente a oferta de um
estranho que proponha uma oportunidade de rendimento financeiro vantajoso em outra
localidade, além de interferir na percepção do sujeito enquanto vítima (ou melhor, não-vítima)
de exploração (facilitando o processo de submissão prolongada).

Tendo em vista tal perspectiva, o grupo dos menos favorecidos procura


mecanismos de sobrevivência na sociedade desigual, campo fértil para a inserção nas arestas
da marginalidade ou em atividades degradantes. Hazel (2008) assinala aspectos inerentes à
tais considerações, com foco nas mulheres exploradas sexualmente:

[...] dentro dos processos de exclusão as pessoas encontram formas de reivindicar e


procurar a sua inclusão, mesmo encontrando somente brechas deixadas pela lógica
excludente. A discriminação de gênero, a marginalização das culturas locais, a
precarização das relações de trabalho criaram realidades nas quais principalmente
mulheres pobres procuram estratégias de inclusão através do mercado de sexo.
(HAZEL, 2008, p. 01).

As aspirações desses seres humanos são frustradas nas piores condições de


exploração. Nessa perspectiva, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera que
―O tráfico de pessoas é a antítese do trabalho em liberdade. Tal prática nega às pessoas a
oportunidade de desenvolverem suas habilidades e de contribuírem para o desenvolvimento
econômico e social do país.‖ (OIT, 2012, p. 09). A referida organização, em anuência com o
que temos indicado, aponta para fatores circunstanciais favorecedores dessa prática, dentre
outros, a pobreza, ausência de oportunidades de trabalho, discriminação de gênero, emigração
indocumentada, turismo sexual e leis deficientes. (IDEM, 2005, p. 15-17).

Tendo em vista tais considerações, países com menores índices de


desenvolvimento humano tendem a concentrar o maior número de pessoas vítimas desse tipo
de violência. Assim, a OIT (2005) estima que haja, em média, 2,4 milhões de indivíduos
vítimas de trabalho forçado em todo o mundo, com a região da América Latina ocupando a
segunda posição em incidência desse tipo de prática46, perdendo apenas para a região da Ásia
e Pacífico e superando localidades como o Oriente Médio e o Norte da África.

46
Levando em consideração a proporção populacional.
85

A prática do tráfico de pessoas, portanto, perpassa por uma lógica assentada na


―banalidade do mal‖ (ARENDT, 1989), onde os sujeitos não refletem sobre a humanidade do
outro, tornando-se indiferentes ao sofrimento daquele que para eles é considerado não-
humano, inferior. Embora Arendt (1989) tenha direcionado sua análise aos regimes
totalitários e às práticas perversas direcionadas ao povo judeu, a mesma lógica pode ser
correlacionada com empreitadas cruéis atuais, como o tráfico de pessoas.

Tal lógica não é apenas aplicável aos criminosos, mas a sociedade como um todo,
pois a partir do momento em que essa última torna-se indiferente a violência sofrida por
aqueles que já estão excluídos, por estarem enquadrados no patamar daqueles que não têm
utilidade, tornaram-se supérfluos para a sociedade egocêntrica:

O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje, com o
aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas
constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em
termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte
conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar
os homens supérfluos. (ARENTD, 1989, p. 509).

No que se refere ao explorador, de acordo com a Pesquisa sobre Tráfico de


Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial (2002), esse
pode ser identificado nas seguintes posições: ―[...] do consumidor, do aliciador ou daquele que
ajuda a cooptar a vítima para a rede criminosa do tráfico. Esta é organizada por diferentes
atores, que desempenham papéis no crime organizado [...]‖ (PESTRAF, 2002, p. 51).

Tendo em vista tais considerações, cabe mencionar as manifestações do fenômeno


na atualidade. Uma pesquisa mais recente47 do que a Pestraf (2002) revelou que o Suriname
tem se mostrado como forte destino de tráfico internacional de muitas mulheres brasileiras,
especialmente daquelas que vivem na região Norte do país.

A investigação relata que o serviço de saúde do Suriname, que registra as


trabalhadoras de sexo atuantes em clubes da capital, para controlá-las em relação a doenças
sexualmente transmissíveis, destacou a presença de 308 brasileiras nos clubes do país,

47
Pesquisa Tri-Nacional sobre Tráfico de Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname,
2008.
86

entretanto, o que mais nos chama atenção são os dados referentes a situação que as mulheres
exploradas enfrentam no local, muitas sendo levada para as regiões de garimpo:

A passagem do Brasil até o garimpo, transporte local e hospedagem ficam por conta
do dono de garimpo. As mulheres ficam à disposição dos garimpeiros durante três
meses, para relações sexuais. O dono desconta no final do mês 10% do salário dos
garimpeiros e paga às mulheres, depois dos três meses, um salário pré- estabelecido.
Elas não podem sair do garimpo, não podem recusar clientes e precisam conseguir
um número máximo de relações sexuais. (SODIREITOS, 2008, p. 51).

A referida pesquisa traz ainda o relato de 14 mulheres brasileiras que vivenciaram


a situação de tráfico para fins de exploração sexual, evidenciando a situação de
vulnerabilidade ao qual estiveram submetidas antes do recrutamento e descrevendo os maus
tratos e engano que sofreram quando vivenciaram a experiência do tráfico. Com o objetivo de
melhor ilustrar esse estudo, cabe demonstrar parte do relato de uma das vítimas identificadas
naquela pesquisa como ―D.I.‖:

Foi convidada a ir para o Suriname a fim de trabalhar num restaurante, mas na


verdade foi levada com mais sete meninas para um clube fechado, quando tinha 23
anos. 'Quando cheguei lá, fiquei assustada. Tinha até um micro-ônibus pra levar as
meninas. Chegando lá, eu olhei e vi um monte de mulheres num privê. Funciona de
dia, as meninas que querem trabalham pra pagar mais rápido (a dívida). Tem uma
que é obrigatório trabalhar. Quando foi à noite, ele (o dono do clube) chamou as
meninas no escritório, ele deu as boas vindas e disse que, se fôssemos obedientes,
poderíamos ser grandes amigas dele. Foi um inferno. Fazia programa até doente pra
pagar habitação, comida e limpeza', relata. (IDEM, p. 69).

Uma outra pesquisa realizada para identificar aspectos do tráfico de seres


humanos para fins de exploração sexual no Estado de Pernambuco, publicada em 2009,
analisou 17 inquéritos policiais e 07 procedimentos administrativos daquele Estado, com o
objetivo de identificar o perfil das vítimas e agressores. De acordo com o levantamento, foram
identificadas 23 mulheres, tendo a maioria entre 18 e 36 anos de idade, baixa escolaridade e
advindas da classe social baixa. (SECRETARIA NACIONAL DE JUSTIÇA, 2009, p. 99-10).

Em relação aos aliciadores, a pesquisa evidencia, mesmo que de forma vaga, uma
maioria de homens estrangeiros, com faixa etária entre 28 e 46 anos. Entretanto, a presença de
mulheres nessa atividade também é relatada com uma peculiar particularidade: algumas
residem em outros países, casadas com estrangeiros e, de acordo com a pesquisa, vinham ao
Brasil recrutar mulheres para serem exploradas sexualmente no exterior. (IDEM, p. 102-104).
87

Um relatório publicado pelo Ministério da Justiça (2010) sobre o tráfico de


pessoas para fins de exploração sexual no Rio Grande do Sul, baseado em pesquisa
desenvolvida por Silva (2010), aponta o fluxo criminoso entre Brasil e países como a
Argentina, Paraguai e Uruguai. Ao evidenciar e analisar o fenômeno através dos inquéritos
policiais daquele Estado, o relatório constata:

No Rio Grande do Sul, os inquéritos mostram a atuação de redes organizadas de


tráfico na serra gaúcha e na fronteira com a Argentina. Os inquéritos indicam a
utilização tanto de rotas aéreas quanto terrestres para o tráfico de pessoas. As redes
se aproveitam das condições das regiões de fronteira e das possibilidades oferecidas
por pólos econômicos de influência regional. Isso porque nos dois casos existe um
grande fluxo de pessoas de diferentes nacionalidades e estados, mobilizados pelas
tramas comerciais e culturais (universidades, turismo, exportação) locais. Esse
contexto cria uma situação favorável ao aliciamento e, portanto, ao estabelecimento
de redes de tráfico de pessoas. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2010, p.39)

O relatório se faz valer ainda das notícias de jornais envolvendo a temática,


constatando uma alta discrepância entre o que tem sido publicado e o que está nos inquéritos
policiais, concluindo que o real número de casos pode estar sendo subestimado devido à
escassez de inquéritos nesse sentido: ―O pequeno número de inquéritos localizados se choca
com a quantidade de citações de jornais sobre o tráfico de pessoas. A primeira conclusão é de
que esse crime quase não chega ao sistema de responsabilização [...]‖ (IDEM, p. 40).

Entretanto, aqui levantamos uma outra hipótese, sem negar a existência dos casos
de tráfico de seres humanos naquela localidade, ou em qualquer outra: pelo caráter
eminentemente complexo do fenômeno, há de se considerar as margens de erro no momento
da caracterização da problemática por parte dos canais de publicação jornalística, fato esse
que pode, por outro lado, gerar um superávit nos casos evidenciados. Portanto, é sempre
necessária uma análise minuciosa das informações divulgadas por essas matérias para
descartar situações de outras naturezas.

Retomando o debate central do tópico, o tráfico de meninas e mulheres para fins


de exploração sexual também foi evidenciado em países como Nepal e Índia. De acordo com
relatório elaborado pelo Observatório de Direitos Humanos (Human Right Watch) o número
de crianças em bordeis localizados na capital da Índia, Bombaim, tem crescido
assombrosamente nos últimos anos, muitas provenientes do Nepal, vendidas pela própria
família aos aliciadores.
88

[…] it is clear the percentage of Nepali girls in Indian brothels is very high, that
their numbers appear to be increasing, and that the average age at which they are
recruited is significantly lower than it was ten years ago, dropping from fourteen to
sixteen years in the 1980s to ten to fourteen years in 1994. Dr. Gilada of IHO told
our researcher that the youngest girl he had seen in a Bombay brothel was nine
years old.48 (HUMAN RIGHTS WATCH, 1995, p. 17)

O casamento servil também tem sido relatado como finalidade do tráfico de


mulheres e embora não existam relatos da prática no Brasil, países como a China e Coreia do
Norte apresentam dados nesse sentido. Uma pesquisa realizada também pelo Observatório de
Direitos Humanos naquela localidade evidencia a problemática:

Humanitarian groups working in China report the impression that there has been a
great increase in the numbers of women crossing the border since 1998, most of
them looking for opportunities to make money to send back to families in North
Korea. In most cases, the “opportunities” involve the sale of sexual services, either
through prostitution or arranged marriage, sometimes on the initiative of the woman
herself, but often through the agency of a third party who shelters, abducts, or in
some other way controls the woman. The rigors of agricultural and village life have
become less attractive to women in the border provinces in China as mobility and
industrialization have increased, which in turn has spurred the market for rural
brides. 49 (IDEM, 2002, p. 12).

O trecho acima aponta que o problema, além de envolver o casamento servil,


envolve ainda o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, mas também não exclui que
muitas delas migram voluntariamente para praticar a prostituição, portanto, temas que se
entrelaçam, mas que de maneira alguma são sinônimos, como já anteriormente mencionado
nesse capítulo.

No que se refere ao tráfico de órgãos, no Brasil podemos citar como exemplo um


famoso caso que, inclusive, foi noticiado na mídia. O fato ocorreu em Pernambuco, onde
vários nativos foram recrutados por uma organização criminosa composta por brasileiros,

48
Está claro que o percentual de meninas provenientes do Nepal nos bordeis indianos é muito alto, que parece
estar crescendo e que a idade com a qual elas tem sido recrutadas tem diminuído significativamente do que dez
anos atrás, caindo dos quatorze aos dezesseis anos nos anos 1980 para os dez à quatroze anos em 1994. Dr
Gilasa do IHO disse aos nossos pesquisadores que a garota mais jovem que ele viu em um bordel de Bombaim
tinha nove anos de idade. (Tradução livre da pesquisadora).
49
Grupos humanitários que atuam na China relatam a impressão que tem de que tem havido um grande aumento
no número de mulheres que atravessam a fronteira desde 1998, a maioria delas está procurando oportunidades de
ganhar dinheiro para enviar às suas famílias na Coreia do Norte. Na maioria dos casos as ―oportunidades‖
envolvem a venda de serviços sexuais, quer sejam através da prostituição ou casamento arranjado, às vezes por
iniciativa da própria mulher, mas muitas vezes por intermédio de um terceiro que aloja, rapta, ou de alguma
outra forma controla a mulher. Os rigores da agricultura e da vida no campo tornam-se menos atraentes para as
mulheres nas províncias de fronteira na China, ao mesmo tempo em que a industrialização tem crescido, o que,
por sua vez, impulsiona o mercado de noivas rurais. (Tradução livre da pesquisadora).
89

israelitas, norte-americanos e africanos. As vítimas, por sua vez, provenientes de um bairro na


periferia da cidade de Recife, receberam até US$ 10.000,00 para entregarem um de seus
rins50. A cirurgia para retirada do órgão era realizada em Durban, na África do Sul e os
―doadores‖ tinham todas as despesas de viagem pagas pela quadrilha.

A prática criminosa foi denunciada ao Ministério Público em 2003, que através da


atuação da Polícia Federal em ação denominada Operação Bisturi, descobriu todo o esquema.
Foi instaurada ainda uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em 2004, para apurar os fatos e
detalhes. A mesma recebeu o título de CPI dos Tráficos de Órgãos.

Em outros países também é possível constatar indícios desse tipo de crime. Na


Índia, em 2008, foi descoberta uma quadrilha composta por, pelo menos, cinqüenta pessoas,
incluindo médicos e outros profissionais da área da saúde. Os bandidos enganavam indianos
paupérrimos oferecendo cerca de US$ 2,5 mil às pessoas que teriam seus órgãos extraídos e
depois os vendiam por valores entre US$ 8 mil e US$ 9 mil à clientes árabes, americanos,
libaneses, britânicos, canadenses, etc. Possuíam uma clínica clandestina extremamente
equipada nos arredores de Nova Déli.51

A Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LMD)52 realizou, em 2008, uma


pesquisa em Moçambique e na África do Sul evidenciando que o tráfico de pessoas com a
finalidade de remoção de órgãos ou partes do corpo naqueles territórios é frequente e está
ligada diretamente à rituais religiosos realizados por curandeiros. Em entrevistas realizadas
pela equipe de pesquisadores, vários relatos de práticas nesse sentido são relatadas. O trecho a
seguir retrata o testemunho de uma senhora que trabalha em casa de acolhimento à vítimas de
tráfico de pessoas na Província de Maputo:

[...] Uma senhora de cerca de 40 e tal anos foi apanhada a transportar uma cabeça e
os órgãos sexuais de uma criança do sexo masculino de cerca de dez anos. Ela trazia
com ela vários sacos com várias coisas dentro e trazia aquele material no meio

50
O valor inicial oferecido às vítimas foi de US$ 10.000,00, entretanto a procura de pessoas querendo vender o
rim foi tão grande que o valor caiu em pouco tempo para US$ 3.000,00.
51
Informações obtidas através da Agenzia Nazionale Stampa Associata (Agência ANSA) [online], acesso em
20/12/2010.
52
A Liga Moçambicana dos Direitos Humanos é uma organização não governamental que foi fundada em 1995
e que se dedica a defender, proteger e promover os Direitos Humanos.
90

dessas coisas dentro de sacos com gelo. O terceiro caso: foi no fim de Outubro, há
cerca de 2 semanas atrás. Um homem dos seus 27, 28 anos trazia carne dentro de um
colman em forma de saco. [...]. No fundo escondido tinha órgãos sexuais de cinco
homens adultos. O guarda de fronteira abriu aquilo e perguntou para onde é que ele
estava a levar aquela carne e depois vasculhou bem e foi quando ele viu aquilo ali.
(LMD, 2009, p. 25)

No que tange ao trabalho escravo no Brasil, está frequentemente associado à


agricultura e carvoaria. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontam sua
ocorrência em Estados como o Pará, Maranhão e Mato Grosso53. O recrutamento dos
trabalhadores é feito em localidades pobres, em geral nas cidades no interior do Nordeste, por
aliciadores conhecidos como ―gatos‖, que atraem as vítimas com falsas promessas de ótimos
salários e bons alojamentos em regiões longínquas.

Quando no local de destino é que os trabalhadores se deparam com a realidade:


alojamentos inadequados, ausência das mínimas condições de higiene, inexistência de
banheiros, carência de boa alimentação e água potável, ausência de equipamentos de trabalho
e de proteção. Em alguns casos, quando há equipamentos para a execução das atividades, os
empregados são obrigados pelos patrões a arcar com os custos dos mesmos, que por lei
deveriam ser de responsabilidade do empregador. Os trabalhadores são imputados ainda com
altos valores cobrados quanto à alimentação, moradia e vestuário, jamais conseguindo saldar
suas dívidas, sendo impedidos de deixar as propriedades que são constantemente vigiadas por
jagunços armados.

Apesar da maioria dos casos se concentrarem em regiões específicas, o Estado do


Ceará também aparece nas estatísticas como destino. Segundo dados divulgados pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em 2011, através do cadastro atualizado de
empregadores que foram flagrados submetendo trabalhadores à condição análoga á de
escravidão. O Ceará aparece na lista com 04 empregadores citados, que juntos totalizaram 260
trabalhadores explorados entre julho de 2009 e dezembro de 2010. Os quatro empregadores
são do ramo agrícola e as fazendas estão localizadas nas zonas rurais de Paracuru, Parambu,
Ubajara e São Gonçalo do Amarante.

53
Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT (2008), no Brasil, a maior parte do trabalho forçado
está concentrado nos Estados do Pará, Mato Grosso e Maranhão, sendo 53%, 26% e 19% respectivamente.
91

Já o trabalho escravo em fábricas de costura é uma prática recorrente na cidade de


São Paulo, que ―importa‖ frequentemente mão de obra escrava da Bolívia. Esses imigrantes
são submetidos a jornadas exaustivas de trabalho, variando entre 14 e 17 horas diárias, com
precárias condições de higiene, alojamento e alimentação. O patrão, em geral, não os deixava
sair, intimidando-os, declarando que a Polícia Federal estaria rondando por ali, podendo
prendê-los e deportá-los a qualquer momento54. Trabalham meses sem receber pagamento
algum, pois, segundo o patrão, parte do dinheiro estaria sendo enviado para os seus familiares
na Bolívia e o restante seria para pagamento das despesas com a viagem, alimentação e
alojamento dos imigrantes. (SILVA, 2006, p. 03).

Dentro desse contexto das múltiplas e polimórficas manifestações do tráfico de


pessoas na atualidade algumas reflexões são extremamente pertinentes para trazer à luz
aspectos delicados que envolvem a temática e interferem diretamente na sua compreensão e
enfrentamento. Uma dessas reflexões repousa no posicionamento das vítimas em relação a sua
situação, ou seja, a questão do consenso. Muitas sabem, por exemplo, que vão exercer a
prostituição no local de destino e se submetem passivamente a exploração sofrida. Algumas,
inclusive, acreditam que é justo pagarem preços abusivos pelas ―despesas‖ de viagem,
hospedagem e alimentação, assim também como cederem uma porcentagem alta dos
programas que realizam ao(à) cafetão(ina), pois consideram a vida que levavam anteriormente
na miséria muito pior, algumas chegando inclusive a sentirem-se gratas pela ―oportunidade‖
que lhes foi dada.

O consentimento dado pelo explorado ao explorador, tendo em vista sua situação


de dominado, deve ser sempre considerado induzido. Inclusive, esse entendimento consta
como orientação no Protocolo de Palermo (2000) que expressa: ―O consentimento dado pela
vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração [...] será considerado
irrelevante [...]‖ (p. 47). Portanto, é importante observar atentamente o contexto que envolve
cada caso, em especial a situação vivenciada anteriormente da pessoa vítima de tráfico no seu
local de origem.

54
O Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980, permite apenas a entrada de mão-de-obra especializada e de
empreendedores no país. Para os que não se enquadram nesses critérios, as duas únicas possibilidades de
regularização são o casamento com cônjuge brasileiro ou o nascimento de um filho em território nacional, mas a
maioria dos estrangeiro não possuem essa informação.
92

O fato da vítima estar ciente da atividade que vai executar no local de destino
também não descaracteriza a situação de violência sofrida, pois a mesma consiste na
exploração da mesma, que muitas vezes tem de submeter-se a realizar jornadas exaustivas de
trabalho, dividir seus ganhos com terceiros e, em alguns casos, tem seu direito de ir e vir
cerceado. Portanto, aspectos referentes ao consentimento ―dado‖ pelas pessoas envolvidas
nessa situação devem ser compreendidos de maneira aprofundada e essa compreensão é
essencial para uma atuação qualificada das instituições e atores sociais junto ao fenômeno.
Jesus (2003) destaca:

O tráfico pode envolver um indivíduo ou um grupo de indivíduos. O ilícito começa


com o aliciamento e termina com a pessoa que explora a vítima [...] observando-se
que o consentimento da vítima em seguir viagem não exclui a culpabilidade do
traficante ou do explorador, nem limita o direito que ela tem à proteção oficial.
(JESUS, 2003, p. 07).

Uma pesquisa sobre o tema, realizada no Estado de Pernambuco, com apoio do


governo federal através do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(PRONASCI) publicada em 2009, também manifestou preocupação com a questão do
consentimento, alegando que:

Há configuração do tráfico de pessoas ainda que o transporte seja feito com o


consentimento da vítima, uma vez que há a exploração dessa pessoa no destino final.
Entende-se que a vítima tem direito a proteção especial, porque sua vontade está
viciada pelos meios utilizados. O consentimento, assim, é irrelevante para a
caracterização do tráfico. (PRONASCI, 2009, p. 126)

A Pestraf (2002) também posiciona-se sobre tal ―consentimento induzido‖,


caracterizando-o da seguinte forma:

[...] a palavra induzir significa levar a, persuadir, instigar, incutir. No âmbito do


Direito é traduzida como crime que consiste em abusar da inexperiência, da
simplicidade ou da inferioridade de outrem sabendo ou devendo saber que a
operação proposta é ruinosa, ou seja, pode ser nociva e trazer prejuízos. Neste
sentido, também o que chamamos de ―consentimento induzido‖ diz respeito ao
conceito de cooptação que aqui adquire o significado de abuso por parte de um
grupo que domina um tipo de situação [...] em relação a uma pessoa ou grupo, para
levar a uma aparente escolha ou consentimento. (PESTRAF, 2002, p. 25).

Outro fator que facilita a atuação dos criminosos é a alocação das vítimas em
território estrangeiro. As redes clandestinas de tráfico internacional de pessoas submetem suas
vítimas à um contexto de situação ilegal de imigração, não domínio do idioma, não
93

conhecimento do território e ausência de suporte familiar e comunitário – que costumo


intitular de apartamento da comunidade –, considerados fatores bastante favoráveis para a
manutenção do ciclo de exploração.

Entretanto, há de se atentar para o fato de que, apesar de serem temas co-


relacionados, imigração ilegal ou contrabando de imigrantes não corresponde, ou seja, não é
necessariamente sinônimo de tráfico de pessoas, uma vez que após a entrada ilegal no país ao
qual se pretende ir, o imigrante precisa estar submetido à uma situação de exploração sexual,
laboral, entre outras, para que o tráfico de seres humanos possa ser caracterizado. Ou seja, o
imigrante quando vítima de trafico de pessoas, já é aliciado pelos traficantes na sua terra natal
com o objetivo de ser explorado no país de destino. Já o contrabando de migrantes, que prevê
a figura do ―atravessador‖ para auxiliar na entrada ilícita de estrangeiros em pais diverso do
seu, não significa exploração do indivíduo no destino final, portanto, não sendo sinônimo de
tráfico de pessoas.

Em termos conceituais, de acordo com a OIT, o contrabando de migrantes é


compreendido como aquele que “[...] ocorre quando pessoas são impedidas de entrar
legalmente em um país e outras as ajudam (por pagamento ou não) para atravessar a fronteira.
É considerada pela legislação de muitos países como uma forma irregular de migração.‖ (OIT,
2009, p. 13).

Pesquisas recentes tem demonstrado preocupação com a proximidade dos temas,


pois a confusão entre eles leva à práticas de enfrentamento distorcidas, por vezes pautadas em
posturas moralistas ou xenofóbicas. O International Centre for Migration Policy
Development (ICMPD) inclusive alerta sobre a questão em conclusão de estudo transnacional
recentemente realizado e publicado:

As vítimas de tráfico não devem ser tratadas como imigrantes irregulares. Em geral,
considera-se que existe o risco do aumento do estigma contra a prostituição e o
combate ao tráfico de seres humanos conduzir à repressão da imigração. Os autores
da pesquisa brasileira consideram fundamental a existência de uma campanha
permanente de sensibilização sobre o tráfico de pessoas. (ICMPD, p. 18, 2011).

Caracterizar o tráfico de seres humanos, portanto, é tarefa extremamente


complexa e basear-se apenas nos instrumentos legais brasileiros parece insuficiente para
retratar de forma real como ocorre a referida prática. A publicação de pesquisas com foco na
94

vivência profissional do enfrentamento à questão, o entendimento do contexto global, o


conhecimento do Protocolo de Palermo (2000) e o aprofundamento na compreensão de
algumas categorias como exploração e imigração são essenciais para complementar o
entendimento do fenômeno.

Aspectos inerentes a cultura dominante da sociedade globalizada, que sofre ainda


influencia da herança cultura racista e patriarcal, precisam ser também discutidas, pois
parecem legitimar, no contexto da atualidade, práticas de exploração do outro, considerado,
por vezes, como inferior. Conforme Vasconcelos e Bolzon (2008) salientam: ―Essa
desvalorização política e social da vida viabiliza a submissão dos corpos daqueles
considerados sem-valor a condições degradantes de trabalho e a quaisquer formas de
violência.‖ (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 195).

Na perspectiva da violência de gênero, Saffioti (1987) salienta:

[...] segundo a ideologia dominante, ocupa o lugar de caçador. Deve perseguir, da


mesma forma que o caçador persegue o animal que deseja matar. Para o poderoso
macho importa, em primeiro lugar, seu próprio desejo. Comporta-se, pois, como
sujeito desejante em busca de sua presa. Esta é o objeto de seu desejo. Para o macho
não importa que a mulher objeto de seu desejo não seja sujeito desejante. Basta que
ela consinta em ser usada enquanto objeto. (SAFFIOTI, 1987, p. 18, grifo nosso).

Nesse sentido, a promoção dos direitos humanos e sexuais são fundamentais para
possibilitar o processo de desconstrução de posicionamentos enraizados na sociedade. Assim,
o desenvolvimento de qualquer ação de enfrentamento ao tráfico de pessoas deve trazer à tona
a perspectiva do respeito à vida, à diversidade sexual, à liberdade, às diferenças culturais, à
raça, etnia, geração, enfim, à diversidade própria e característica dos seres humanos, que os
tornam singulares e sujeitos com direito ao respeito e à proteção.

O próximo capítulo apresenta uma discussão histórica acerca dos instrumentos


normativos internacionais voltados para o enfrentamento ao tráfico de pessoas dos quais o
Brasil tornou-se signatário, com foco no tráfico de mulheres para fins de exploração sexual,
na perspectiva da paradoxal e controvérsia definição conceitual do fenômeno e nas medidas
estatais públicas direcionadas à questão.
95

3. ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS:


INSTRUMENTOS NORMATIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS

Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ―política geral‖ de verdade: isto é,
os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo
de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2011, p. 12).

Numa retrospectiva do que apresentamos até o momento, colocamos as palavras


de Valconcelos e Bolzon (2008) à respeito do público atingido pelas consequências do tráfico
de pessoas na sociedade moderna, com efeitos direcionados a degradação da humanidade:

No período colonial, a vida sem valor e, portanto, o corpo a ser colocado à


disposição pertencia, especialmente, ao negro africano. Atualmente, a
desvalorização da vida não parece estar confinada a uma categoria social específica.
Critérios sociais, raciais, regionais e de gênero podem fazer do pobre, do negro, do
nordestino e da mulher os alvos preferenciais dessa desvalorização, o que é
acentuado quando suas vidas são percebidas como parte daquele processo de
desenraizamento social. (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 195)

Tendo em vista a desvalorização da humanidade do outro no contexto do tráfico


de pessoas, as políticas voltadas para enfrentar o problema, seja através da coibição do crime
ou do suporte e assistência as vítimas, devem estar intimamente relacionados com os
princípios de Direitos Humanos. Comparato (2010) enfatiza que a diversidade humana deve
ser objeto de proteção e não de discriminação:

O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em considerar e


tratar o outro – um indivíduo, uma classe, um povo – como um ser inferior, sob
pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial. Algumas
diferenças humanas, aliás, não são deficiências, mas bem ao contrário, fontes de
valores positivos e, como tal, devem ser protegidas e estimuladas. (COMPARATO,
2010, p. 241)

Por Direitos Humanos, compreende-se aqueles ―[...] direitos que pertencem a


todos os seres humanos pelo simples fato de fazerem parte do gênero humano. [...] são
direitos pré-estatais, naturais, inatos e inerentes ao homem e de validade absoluta [...]‖.
(MALUSCHKE; et. al, 2004, p. 15). Nessa perspectiva, tais direitos se sobrepõem ao Estado,
devendo ser prioridade, encarregando-o de zelar por seus princípios.
96

No contexto brasileiro, a Promulgação da Constituição Federal de 1988 representa


um marco histórico na garantia dos direitos humanos. O artigo 1º, inciso III, determina a
dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais que direciona as ações e
postura do Estado democrático de direito. Contudo, o cotidiano tem demonstrado que por
vezes essa garantia permanece no campo da formalidade: as múltiplas violações ocorrem
recorrentemente e por vezes, inclusive, perpetradas pelos próprios agentes do Estado.

A Carta Magna, por exemplo, em seu artigo 5º, incisos II e III, estabelece o
compromisso de que ―[...] ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude da lei [...] ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante‖. (BRASIL, 2010). A perpetuação de atividades ilícitas de exploração de pessoas
através do tráfico caracteriza-se, portanto, em grave violação desses princípios. O não efetivo
enfrentamento da questão por parte do Estado reforça essa dimensão.

Através da visibilidade que o fenômeno social adquiriu na contemporaneidade,


especialmente devido à publicação da Pestraf (2002)55, fomentou-se o ponto de partida para a
inclusão do problema na agenda política. Houve, a partir de então, a ratificação, em 2004, do
Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial
Mulheres e Crianças (Protocolo de Palermo) pelo Brasil, da rediscussão e reestruturação do
Código Penal – com o objetivo de adequá-lo as características mais recentes do fenômeno – e
a construção de uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas que culminou
no desenvolvimento de um Plano Nacional voltado especificamente para a temática, aspectos
descritos no primeiro capítulo desse estudo.

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, publicada por meio


do Decreto Nacional nº 6.347 de 08 de janeiro de 2008 – portanto, extremamente recente –
surgiu com o objetivo de estabelecer ―[...] princípios, diretrizes e ações de prevenção e
repressão ao tráfico de pessoas e de atendimento às vítimas, conforme as normas e
instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos e a legislação pátria.‖ (Art. 1º).
Com isso, o documento admite enquanto tráfico de pessoas a ampla definição apresentada

55
Pesquisa já apresentada no primeiro capítulo desse estudo no tópico que trata sobre o lócus da pesquisa.
97

pelo Protocolo de Palermo, que será discutida posteriormente no ponto 2.2 deste capítulo para
problematiza-la com a definição ainda incipiente do Código Penal Brasileiro (CPB).

Já o Plano Nacional de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) foi


organizado, à exemplo de iniciativas internacionais anteriores, em três eixos: prevenção,
atenção às vítimas e combate; esse último envolvendo a repressão e responsabilização dos
criminosos. Cada um desses eixos foi desenvolvido através da estipulação de prioridades com
o objetivo de organizar as ações.

No eixo da prevenção foram estipuladas quatro prioridades: fomentar e divulgar


pesquisas e experiências sobre tráfico de pessoas; capacitar sujeitos envolvidos com o
enfrentamento da temática na perspectiva dos direitos humanos; mobilizar e sensibilizar a
comunidade; diminuir a vulnerabilidade ao tráfico de pessoas de grupos sociais específicos.
(PNETP, 2008, p. 11,12).

Já no eixo da atenção às vítimas existe apenas uma única prioridade: articular,


estruturar e consolidar, com base nos serviços e rede previamente existentes, um sistema
nacional de referência e atendimento às pessoas em situação de tráfico. (IDEM, p. 13).
Contudo, fomentou a criação de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em vários
Estados do território nacional, tendo em vista que a ―rede previamente existente‖ não possuía
trabalho específico voltado para a questão e as vítimas desse tipo de crime apresentam
especificidades que demandam por formação especializada.

Por fim, o eixo de repressão e responsabilização dos criminosos prevê seis


prioridades: aperfeiçoar a legislação brasileira, ampliar o conhecimento sobre o fenômeno nas
instâncias e órgãos envolvidos na repressão e responsabilização dos autores, fomentar a
cooperação entre os órgãos federais, estaduais e municipais, criar e aprimorar instrumentos
para esse enfrentamento, estruturar os órgãos responsáveis por esse eixo, fomentar a
cooperação internacional para repressão ao tráfico de pessoas. (IBIDEM, p. 14-16).

Evidente que tais alterações são consideradas como avanços no enfrentamento ao


tráfico de pessoas, entretanto, como avaliaremos nos tópicos subsequentes, não foram capazes
de subsidiar a complexa gama que permeia a problemática do tráfico, tendo em vista as
contradições ainda presentes nos instrumentos normativos, o que dificulta a atividade dos
98

profissionais posicionados nas linhas de frente, assim também como a aplicabilidade dos tipos
penais, gerando uma série de confusões no momento da identificação do crime e,
consequentemente, das vítimas.

Associada à tais considerações, temos ainda uma estrutura social culturalmente


excludente, machista, racista e classista, que embora pressuponha igualdade e equidade
asseguradas em lei, não legitima muitas conquista em virtude de uma formação histórica
vinculada à posicionamentos discriminatórios. Saffioti (1987) elenca elementos à respeito
desses aspectos, centrada na discriminação de gênero:

Estruturas de dominação não se transformam meramente através da legislação. Esta


é importante, na medida em que permite a qualquer cidadão prejudicado pelas
práticas discriminatórias recorrer à justiça. Todavia, enquanto perdurarem
discriminações legitimadas pela ideologia dominante, especialmente contra a
mulher, os próprios agentes da justiça tenderão a interpretar as ocorrências que
devem julgar à luz do sistema de ideias justificador do presente estado das coisas
(SAFFIOTI, 1987, p. 15,16).

O tópico a seguir traz uma análise documental dos instrumentos internacionais


dos quais o Brasil tornou-se signatário e que antecedem o Protocolo de Palermo. O objetivo
desse levantamento é demonstrar de que forma o fenômeno foi gradativamente sendo
percebido pelo Estado, assim também como mudanças de perspectiva nessa compreensão e
impasses apresentados por esses instrumentos legais no que tange a caracterização da
problemática.

3.1. A Definição do Tráfico de Pessoas nos Tratados Internacionais

O arquivo [...] Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio
confuso de um discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio
do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os
especifica em sua duração própria. (FOUCAULT, 2008, p. 147).

No percurso histórico do desenvolvimento do tráfico de pessoas, vários


instrumentos normativos de caráter transnacional foram elaborados como forma de reação dos
Estados na tentativa de coibir a prática. Após a extinção do tráfico negreiro, a principal
preocupação desses atores voltou-se para o tráfico de mulheres brancas. Rago (2008)
evidencia esse momento: ―Desde o final do século XIX, realizaram-se congressos
internacionais na Inglaterra, Holanda, França e Alemanha, com a finalidade de reprimir o
99

tráfico de ―brancas‖ e dotar os países envolvidos de uma legislação adequada e eficaz.‖


(RAGO, 2008, p. 287).

Tais eventos desencadearam na elaboração de vários documentos, dos quais alguns


o Brasil tornou-se signatário. Kempadoo (2008) trata sobre a constituição da definição do
tráfico de pessoas através desses tratados, evidenciando as influencias que esse processo
absorveu da conjuntura social.

O ―tráfico‖ está em geral ligado a tratados internacionais que tentavam lidar, entre
fins do século dezenove e início do vinte, com o surgimento de mulheres como
trabalhadoras migrantes no cenário internacional [...] As idéias sobre o tráfico foram
engendradas por ansiedades sobre a migração de mulheres sozinhas para o exterior,
e sobre a captura e escravização de mulheres para prostituição em terras
estrangeiras. A visão de uma sociedade moral subjacente ao cristianismo informava
a definição, e a política do abolicionismo da escravidão negra e do movimento pelo
sufrágio feminino tanto na Europa como nos Estados Unidos ajudaram a dar forma
ao paradigma do ―tráfico de pessoas‖. (KEMPADOO, 2008, p. 57).

Antes de adentrar na discussão do conteúdo desses documentos, cabe, para melhor


ilustrar as convenções e acordos internacionais aos quais o Brasil aderiu, o quadro elaborado
para essa pesquisa, a partir do levantamento documental realizado no endereço eletrônico da
Divisão de Atos Internacionais (DAI)56 do Governo Federal:

TABELA 1 – DOCUMENTOS E CONVENÇÕES INTERNACIONAIS QUE TRATAM SOBRE O


TRÁFICO DE PESSOAS DOS QUAIS O BRASIL FOI/É SIGNATÁRIO.

TÍTULO DO DOCUMENTO DATA Nº DO DECRETO NO BRASIL


Acordo para a Repressão do Tráfico
18/05/1904 5.591 de 13/07/1905
de Mulheres Brancas
Convenção Internacional para a
Repressão do Tráfico de Mulheres e 30/09/1921 23.812 de 30/01/1934
de Crianças.
Convenção Internacional para
Repressão do Tráfico de Mulheres 11/10/1933 2.954 de 10/08/1938
Maiores
Protocolo de Emenda da Convenção
para a Repressão do Tráfico de
Mulheres e de Crianças, de 30 de
Setembro de 1921, e da Convenção 12/11/1947 37.176 de 15/04/1955
para a Repressão do Tráfico de
Mulheres Maiores, de 11 de Outubro
de 1933
Convenção para a Repressão do
Tráfico de Pessoas e do Lenocínio e
21/03/1950 46.981 de 08/10/1959
Protocolo Final

56
http://dai-mre.serpro.gov.br/
100

Convenção Interamericana sobre o


18/03/1994 2.740 de 20/08/1998
Tráfico Internacional de Menores
Protocolo Adicional à Convenção das
Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à
15/11/2000 5.017 de 12/03/2004
Prevenção, Repressão e Punição do
Tráfico de Pessoas, em Especial
Mulheres e Crianças.

Fonte: Elaboração da pesquisadora, 2012

De acordo com o quadro apresentado, em 1904, firma-se em Paris o Acordo para a


Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas do qual o Brasil tornou-se signatário
posteriormente, promulgando o decreto nacional nº 5.591 em 13 de julho de 1905. O referido
documento, que possui ao todo dez artigos e contou com a aderência de países como Rússia,
Portugal, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Irlanda, Inglaterra e França, prevê
atividades de repressão ao tráfico e, mesmo precariamente, alguma assistência às mulheres em
situação de prostituição no país estrangeiro. Entretanto, o documento não esclarece a
definição de tráfico de seres humanos, deixando muitas lacunas que o confundem com a
prostituição voluntária, gerando um controle dessa atividade:

Art 3º Os Governos se obrigam a mandar receber, quando assim acontecer e dentro


dos limites legaes, as declarações das mulheres, virgens ou não, de nacionalidade
estrangeira, que se entreguem à prostituição, no sentido de determinar sua identidade
e estado civil, e indagar quem as induziu a abandonar seu paiz. As informações
recolhidas, serão communicadas às autoridades do paiz de origem das ditas
mulheres, virgens ou não, para facilitar sua eventual repatriação. (ACORDO PARA
A REPRESSÃO DO TRÁFICO DE MULHERES BRANCAS, 1904)

Tal trecho evidencia a intenção em manter controle sobre as atividades das


prostitutas estrangeiras com o objetivo de saber quantas estão atuando e algumas
características referentes às mesmas. É possível perceber que ao detectá-las, a ação
recomendada é a ―repatriação‖, que na realidade representa a deportação dessas mulheres,
sem o oferecimento de suporte local. Desconsidera-se ainda a migração autônoma para o
exercício da prostituição, postura clara quando se afirma a intenção de ― [...] indagar quem as
induziu a abandonar seu paiz.‖ (IDEM).

O fato do documento sublinhar ainda a questão da virgindade, sugerindo que há


uma diferença entre mulheres virgens e não virgens, indica o caráter eminentemente moralista
dos Estados frente a questão da sexualidade da mulher, considerando esse aspecto como
requisito valorativo.
101

O documento prevê ainda a fiscalização de estações férreas e portos, com o


objetivo de identificar homens conduzindo mulheres estrangeiras que venham exercer a
prostituição no destino, mas não especifica que elementos deveriam ser utilizados para tal
identificação. Essa fragilidade na indefinição do tráfico de mulheres acabou incidindo, mais
uma vez, sobre pessoas que viriam exercer a prostituição voluntariamente no Brasil.

Mais adiante, surge a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de


Mulheres e Crianças, discutida em Genebra no ano de 1921, mas promulgada no Brasil
apenas em 1934, através do Decreto Nacional nº 23.812 do governo Getúlio Vargas.57 A
referida Convenção propõe-se a fomentar medidas legais efetivas na repressão, assistência e
prevenção do tráfico de pessoas, essa última através da distribuição de informações por meio
de cartazes nos locais de fluxo migratório, conforme exposto do Artigo 7º:

Artigo 7º

As Altas Partes Contratantes comprometem-se no que concerne aos seus serviços de


imigração e emigração, a tomar as medidas administrativas e legislativas destinadas
a combater o tráfico das mulheres e crianças. Comprometem-se principalmente a
baixar os regulamentos necessários para a proteção das mulheres e crianças que
viajam a bordo de navios de emigrantes, não somente no embarque e desembarque,
mas ainda no decurso da viagem, e a tomar medidas concernentes à afixação, nas
estações ferroviárias e nos portos, de avisos chamando a atenção das mulheres e
crianças para os perigos do tráfico e indicando os lugares onde podem encontrar
abrigo, ajuda e assistência. (CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A
REPRESSÃO DO TRÁFICO DE MULHERES E CRIANÇAS, 1921).

O documento prevê, conforme o trecho acima, que a proteção de mulheres e


crianças encontradas nessa situação deve contar com abrigos e ajuda especializada, mas não
entra em maiores detalhes nesses sentido, sendo inclusive esse o único artigo do texto que
trata da questão. Já o posicionamento em relação à prostituição, o documento, no mesmo
direcionamento do anterior, continua a considera-la como atentado à moral e aos bons
costumes. Quanto aos criminosos, a única medida prevista é a deportação dos estrangeiros
identificados cometendo o delito.

A Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, de


1938, já trás uma definição um pouco melhor elaborada daquele(a) que deveria ser
considerado(a) como traficante de mulheres. Entretanto, novamente há confusão entre tráfico

57
O referido decreto além de trazer o conteúdo da convenção na íntegra traduzido para o português, apresento-o
também na língua original em que foi elaborado, ou seja, em francês.
102

para fins de exploração sexual e prostituição voluntária, conforme demonstra o trecho a


seguir:

Artigo primeiro

Quem quer que, para satisfazer as paixões de outrem, tenha aliciado, atraído ou
desencaminhado, ainda que com o seu consentimento, uma mulher ou solteira
maior, com fins de libertinagem em outro país, deve ser punido, mesmo quando os
vários atos, que são os elementos constitutivos da infração, forem praticados em
países diferentes. (CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A REPREÇÃO DO
TRÁFICO DE MULHERES MAIORES, 1938).

O documento reúne em um único artigo a prática do rufianismo e do tráfico de


mulheres, entretanto não esclarece que o rufianismo deve prever o ganho pecuniário do
explorador em cima dos programas sexual realizados pela explorada, deixando margem para
que seja considerado como criminoso qualquer pessoa que de qualquer forma tenha
convidado outra para exercer a prostituição, aspecto esse que persiste na caracterização atual
do tráfico de pessoas descrita no Código Penal Brasileiro.

Há ainda a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e


do Lenocínio, de 1949, concluída em Lake Success, Nova York, e assinada pelo Brasil em 5
de outubro de 1951, mas efetivamente instituída apenas através do decreto nacional de nº
46.981 apenas em 1959 no governo de Juscelino Kubitschek.

A referida Convenção trás avanços ao considerar como vítima de tráfico qualquer


pessoa, desvinculando-a da figura feminina ou mesmo de uma faixa etária específica. Mas
permanece estagnada quando à finalidade do crime, atribuindo às práticas de tráfico apenas
aquelas que levam outros à prostituição. Nesse sentido, mais uma vez, abre-se precedentes
para relacionar diretamente o tráfico de seres humanos com a prostituição voluntária,
conforme exposto no trecho:

Artigo 1

As Partes na presente Convenção convêm em punir tôda pessoa que, para satisfazer
às paixões de outrém:

1. aplicar, induzir ou desencaminhar para fins de prostituição, outra pessoa, ainda


que com seu consentimento; (CONVENÇÃO E PROTOCOLO FINAL PARA A
REPRESSÃO DO TRÁFICO DE PESSOAS E LENOCÍNIO, 1959).
103

De acordo com o referido artigo, portanto, e no mesmo direcionamento dos outros


documentos analisados, qualquer um(a) que de qualquer forma convide alguém para exercer a
prostituição – mesmo que essa última seja adulta e consciente de sua decisão e que aquela(e)
que a convidou não tenha intenções de explorá-la, sendo inclusive também prostituta – pode
ser considerado(a) como criminoso(a).

A tentativa de associar o tráfico de pessoas diretamente às práticas de


prostituição pode ter sido constituída como uma forma de controlar e impedir o
movimento dessas protagonistas para exercer tal atividade. Rago (1995), ao tratar da
dimensão histórica em relação ao posicionamento do poder público no tratamento à essas
mulheres, enfatiza que ―[...] a preocupação com a prostituição e com as mulheres pobres
do submundo prendeu-se muito mais à vontade de normatizar os comportamentos femininos
em geral [...].‖ (RAGO, 1995, p. 90).

Por fim, encerrando nossa análise na perspectiva histórica, apresentamos a


Convenção Interamericana sobre o Tráfico Internacional de Menores que surgiu em 1994,
mas foi acatada pelo Brasil apenas em 1998. O documento considera como menor aquele que
possui idade inferior aos dezoito anos e define na alínea ―b‖ do artigo segundo o que seria o
tráfico internacional de menores: ―[...] a subtração, transferência ou retenção, ou a tentativa de
subtração, transferência ou retenção de um menor, com propósitos ou por meios ilícitos‖.

Na tentativa de esclarecer melhor esses pressupostos a Convenção complementa


na alínea ―c‖ do mesmo artigo o que compreende como propósitos ilícitos: ―[...] entre outros,
prostituição, exploração sexual, servidão ou qualquer outro propósito ilícito, seja no Estado
em que o menor resida habitualmente, ou no Estado Parte em que este se encontre‖.

Assim, a referida Convenção, como sua própria nomenclatura atesta, trata apenas
de aspectos do tráfico vinculado à criança e adolescente, não trazendo elementos no que tange
aos adultos que podem vivenciar a situação. Trás avanços porque prevê comunicação
transnacional entre os Estado com relação aos casos identificados, com o objetivo de
resguardar os direitos da criança/adolescente em situação de tráfico internacional, conforme
atesta o artigo 4º: ―[...] as autoridades competentes dos Estados Partes deverão notificar as
autoridades competentes de um Estado não Parte, nos casos em que se encontrar em seu
território um menor que tenha sido vítima do tráfico internacional de menores.‖
104

O tópico a seguir apresenta aspectos normativos e a legislação nacional


relacionados à atualidade e evidencia algumas fragilidades que permanecem pertinentes no
contexto brasileiro, confluindo para práticas de combate a prostituição em nome do
enfrentamento ao tráfico de pessoas.

3.2. Protocolo de Palermo e a confusão conceitual no Tráfico de Pessoas

A confusão historicamente evidenciada entre o tráfico de mulheres para fins de


exploração sexual, prostituição e migração persiste na atualidade. Por se tratar de prática
multifacetada, sabe-se que o fenômeno necessita, para seu efetivo enfrentamento, de ações
articuladas, intersetoriais e de equipes tecnicamente preparadas e devidamente qualificadas,
tanto para garantir a punição adequada dos agressores, como para identificar e acolher
corretamente as vítimas e realizar ações preventivas adequadas. Nessa perspectiva, colocam-
se Almeida e Nederstigt (2009):

[...] a maioria das pessoas traficadas não tem acesso a mecanismos efetivos de
proteção em razão da dificuldade de identificação de casos de tráfico por parte de
autoridades e organismos não governamentais. De fato, a identificação constitui,
hoje, um dos maiores desafios nessa área. (ALMEIDA; NEDERSTIGT, 2009, p. 6).

No que se refere à definição mais completa do que seria o tráfico de pessoas no


contexto atual, o documento considerado como referência, citado anteriormente no primeiro
capítulo desse estudo, é o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o
Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, mais conhecido como Protocolo de Palermo, por
ter sido elaborado na cidade de Palermo, Itália, no ano 2000.

O referido Protocolo, do qual o Brasil tornou-se signatário apenas em 2004, tem


sido objeto de críticas na atualidade. A autora Piscitelli (2011), por exemplo, discorre à esse
respeito, ressaltando que não há clareza quanto ao posicionamento do tratado em relação à
exploração da prostituição, contribuindo para discrepâncias na caracterização do tráfico para
fins de exploração sexual:

Nas leituras críticas sobre o Protocolo de Palermo se observa que ele assume uma
posição de aparente neutralidade no que se refere ao debate sobre a prostituição,
obtida às custas da falta de precisão [...] A falta de precisão seria efeito da falta de
acordo dos delegados governamentais, que se alinharam em uma ou outra posição e
105

seu efeito seria a dificuldade de trabalhar adequadamente com o Protocolo,


delimitando situações de tráfico de pessoas. (PISCITELLI, 2011, p.193)

Ou seja, o Protocolo trata da exploração da prostituição, mas não a define. Na


realidade não, o documento não caracteriza nenhuma das explorações descritas. Tal
indefinição, abriu precedentes para que cada país signatário definisse os parâmetros para
estabelecer aquilo o que considera como exploração no tráfico de pessoas. No caso do Brasil,
essa exploração foi associada à prostituição no Código Penal.

Como forma de ilustrar o exposto, apresentamos as considerações dos


pesquisadores Silva e Blanchette (2010), que demonstram preocupação em relação à esses
aspectos:

Uma leitura estrita do Protocolo indicaria que, minimamente, a prostituição tem que
incluir um terceiro, o explorador, para que ela seja considerada como tráfico
propriamente dito. No entanto, as formas dessa ―exploração de outrem‖ não são
explicitadas, e isto causa problemas graves na hora de aplicar medidas repressivas
orientadas pelo Protocolo. (SILVA; BLANCHETTE, 2010, p. 150).

Ainda assim, o Protocolo de Palermo, sem dúvida, representa um marco, pois os


instrumentos normativos existentes antes dele não foram capazes de trazer uma definição que
comportasse tantos aspectos específicos do crime, considerando as formas de violência que
necessitam estar presentes, as finalidades da prática e a ampliação das vítimas para qualquer
ser humano independente de sexo, cor ou faixa etária.

O Código Penal Brasileiro, contudo, conforme enfatizado, não se adequou à


ampla caracterização do tráfico de pessoas descrita no Protocolo de Palermo:

Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual

Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele
venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de
alguém que vá exercê-la no estrangeiro.

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa


traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-
la ou alojá-la.

§ 2o A pena é aumentada da metade se:

I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;


106

II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário


discernimento para a prática do ato;

III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,


companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu,
por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou

IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude

§ 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se


também multa.

Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual

Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território


nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

§ 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a


pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la,
transferi-la ou alojá-la. (CÓDIGO PENAL BRASILEIRO, 2009).

Atualmente sabe-se que a finalidade do tráfico de pessoas – conforme


anteriormente demonstrado no segundo capítulo dessa pesquisa – abrange uma diversidade
extremamente ampla, tal como tráfico de órgãos, trabalho escravo em fazendas, trabalho
escravo em fábricas de costura, entre outros, contudo, o Código Penal Brasileiro (CPB), como
acima demonstrado, considera apenas a exploração sexual na caracterização do crime.

De acordo com o texto CPB, considera-se ainda a prostituição em si como uma


forma de exploração sexual, posicionamento claro quando no trecho: ―[...] para o exercício da
prostituição ou outra forma de exploração sexual‖. Tal postura parece negar a possibilidade
da escolha de uma mulher adulta em exercer a prostituição de forma autônoma em outro país
ou mesmo fora do seu Estado. Cabe indicar aquilo que pode estar implícito nas entrelinhas:
evitar a migração de prostitutas e legitimar a deportação/inadmissão das mesmas sob a
perspectiva de que estariam sendo sempre ―traficadas‖.

Outra fragilidade que pode ser apontada no que se refere ao documento é a vaga
definição do que deve ser considerado como traficante de pessoas, podendo abrir margem
para que qualquer indivíduo que auxilie outro, mesmo sem interesse pecuniário algum, à
migrar para exercer a prostituição voluntariamente em outra localidade seja considerado como
criminoso. Tal postura pode abrir precedentes para a repressão da prostituição em nome do
107

enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, reforçando uma


discriminação histórica por parte do Estado aos sujeitos que decidem, de maneira autônoma,
migrar para praticar a atividade sem sofrer exploração de terceiros.

Os pesquisadores Silva e Blanchette (2010) fazem algumas considerações à


respeito dessa discrepância: ―De acordo com uma leitura literal do artigo 231-A do Código
Penal Brasileiro, pagar um taxi para uma prostituta ir para seu trabalho é suficiente para
qualificar um crime de tráfico de pessoas, independentemente de qualquer outras
considerações.‖ (SILVA; BLANCHETTE, 2012, p. 152).

Veja ainda que, de acordo com CPB, o ato condenável é ―facilitar‖ o exercício do
meretrício. Dessa forma, se a atividade à ser realizada for de outra natureza, o crime de tráfico
fica descaracterizado. Nesse sentido, podemos inferir que a prostituta está impedida de migrar
para exercer essa atividade em outro local, a menos que o faça sem o auxílio ou convite de
ninguém, o que, tratando-se de viajem internacional é praticamente impossível.

Castilho (2008), ao fazer uma análise das decisões judiciais brasileiras voltadas
para processos envolvendo casos de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual,
identificou que por vezes a falta de clareza do Código Penal fomenta a reprodução da
violência contra a mulher, por não respeitar a autonomia dos indivíduos e por perceber a
prostituição através da ótima moralista:

A análise das decisões judiciais revela a subsistência da concepção da mulher como


sexo frágil, e do seu papel tradicional no contexto familiar. É inadmissível nessa
concepção que a mulher exerça a prostituição por livre e espontânea vontade. Mas,
ao mesmo tempo, não há grande preocupação com essa mulher que se viu compelida
à prostituir-se. Se comportamento, inclusive, serve para reprovar com menos rigor a
conduta da pessoa acusada. (CASTILHO, 2008, p. 121).

As repercussões da ambiguidade legal entre o tráfico de seres humanos e a


prostituição na execução das ações do Estado também foi objeto de considerações da
pesquisadora Oliveira (2008),

É importante lembrar que o Sistema de Justiça e Responsabilização (polícias,


Ministério Público, Poder Judiciário) atua na esfera criminal sob a orientação do
Código Penal. Portanto, ainda que existam operadores de Direito cujo entendimento
do conceito de tráfico de pessoas tenha sido alargado pelo Protocolo de Palermo, a
atuação cotidiana desses agentes está limitada pelo Código Penal. Nesse sentido, a
108

redação atual do marco normativo nacional reforça a armadilha da associação direta


entre o tráfico de pessoas e a prostituição. (OLIVEIRA, 2008, p. 137).

Oliveira (2008) demonstra que os profissionais atuantes, por mais que tenham
clareza nos conceitos hora considerados, restringem a atuação por falta de respaldo legal, pois
só é possível agir de acordo com os instrumentos disponíveis, dentro dos parâmetros da lei.
Entretanto, destacamos que há de se considerar nesse universo aqueles agentes que nem se
quer conhecem o Protocolo, tendo em vista a ampla gama de atuações no qual estão inseridos,
como, por exemplo, um(a) delegado(a) que trabalha na tipificação dos mais diversos crimes.
A tendência é que esse profissional se baseie estritamente pelo CPB por considera-lo como
único documento legítimo.

O sujeito, na armadilha da ação não refletida, nos faz em muito lembrar o


posicionamento de Bourdieu, quando afirma que: ―O que faz o poder das palavras e das
palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de subverter, é a crença na legitimidade das
palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das
palavras.‖ (BOURDIEU, 2009, p. 15). Ou seja, discutir as discrepâncias do CPB é
fundamental para desconstruir estereótipos por vezes marcados pelo discurso oficial, que
acabam sendo legitimados por uma prática não refletida respaldada na ―letra da lei‖. Daí a
importância da capacitação continuada dos profissionais, com o objetivo de fomentar
inquietações que possam levar à mudanças substanciais nos posicionamentos junto à questão.

Cabe destacar que é importante levar sempre em consideração não apenas o


caráter complexo do fenômeno, mas também as características das pessoas mais vulneráveis à
vivenciar esse tipo de situação com o objetivo de estruturar políticas capazes de prestar
suporte adequado à esses indivíduos. Valconselos e Bolzon (2008) tecem algumas
considerações historicamente relacionadas sobre esses aspectos:

No período colonial, a vida sem valor e, portanto, o corpo a ser colocado à


disposição pertencia, especialmente, ao negro africano. Atualmente, a
desvalorização da vida não parece estar confinada a uma categoria social específica.
Critérios sociais, raciais, regionais e de gênero podem fazer do pobre, do negro, do
nordestino e da mulher os alvos preferenciais dessa desvalorização, o que é
acentuado quando suas vidas são percebidas como parte daquele processo de
desenraizamento social. (VASCONCELOS; BOLZON, 2008, p. 195).

Para a construção de instrumentos normativos e políticas públicas de qualidade,


que possam oferecer suporte adequado no tratamento às vítimas de tráfico de pessoas, deve-
109

se, portanto, considerar aspectos peculiares das vítimas em potencial. A questão que circunda
esses termos repousa no fato de que o sujeito violentado é por vezes considerado ―escória
social‖, um estranho, ou mesmo um ―indesejável‖, por se tratar de uma prostituta, um travesti
ou um imigrante irregular, com origem em país pauperizado.

Esse entendimento enviesado tem culminado em políticas de deportação de


imigrantes e perseguição de garotas e garotos de programa. Tais políticas, por vezes
mascaradas em campanhas de combate e prevenção ao tráfico de seres humanos, tem ganhado
visibilidade no contexto contemporâneo. Reportagens recentes evidenciam, por exemplo, que
a Espanha tem impedido a entrada de mulheres brasileiras no seu território, impulsionada pela
discriminação de que elas possam estar indo exercer a prostituição naquela localidade:

Apesar de ter um advogado contratado pelo noivo e mostrar à polícia todos os


documentos requisitados - passaporte em vigor, 500 euros em dinheiro, seguro de
saúde, passagem de volta e reserva de hotel - a brasileira foi deportada. [...] Segundo
o noivo dela, José Lupiañez, a polícia disse que alguns documentos eram inválidos
por serem cópias sem demonstração dos originais, mas a razão da inadmissão teria
sido outra.

"Para mim, foi um caso de xenofobia mesmo, porque aqui (na Espanha) virou moda
dizer que os brasileiros vêm para cometer delitos, vêm para se prostituir e que todo
mundo que entra, quer ficar", disse Lupiañez à BBC Brasil. (BBC Brasil, 11 de
janeiro de 2010).

A Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude


(Asbrad) também aponta elementos que evidenciam a discriminação acentuada por parte do
controle migratório, justificadas por eles como iniciativas de ―proteção‖ ao viajante:

A discriminação de gênero no país de destino aparece com frequência nas narrativas


das mulheres deportadas e inadmitidas, que dizem terem sido tratadas como
prostitutas e por isso discriminadas, não só por funcionários de migração, mas
também pelos cidadãos estrangeiros. No caso das pessoas inadmitidas, percebe-se a
ausência de critérios para o impedimento de entrada no país de destino, o que abre
brechas para o abuso de autoridade e ações discriminatórias. O argumento da polícia
migratória estrangeira, principalmente a de países europeus, é que a pessoa sem
dinheiro torna-se ―vulnerável‖. Assim, a devolução dessas pessoas ao país de origem
teria o caráter de ―proteção‖ ao viajante. (ASBRAD, 2008, p. 256).

O discurso em prol da erradicação do tráfico de seres humanos se articula à tais


iniciativas, tendo em vista a forte correlação equivocada estabelecida entre a prostituição e o
tráfico de pessoas. A Asbrad (2008), ao apresentar o discurso de mulheres que foram
inadmitidas pela barreira migratória por terem sido consideradas prostitutas, considera: ―O
110

discurso antitráfico que relaciona tráfico de pessoas à prostituição fortaleza tais ações
antimigratórias e xenofóbicas.‖ (IDEM, p. 257).

Representantes do governo brasileiro direcionam reiteradas críticas às ações de


combate ao tráfico de pessoas no exterior, como por exemplo, o ex-ministro da Justiça Luiz
Paulo Barreto, que de acordo com o boletim eletrônico da Agência do Estado declarou em
evento nacional sobre a temática:

[...] em muitas nações as penalidades recaem sobre os imigrantes ilegais e não sobre as
quadrilhas internacionais especializadas em tráfico de seres humanos. "Alguns países
ainda tentam criminalizar esse problema sob a ótica da vítima como co-autora do delito",
disse Barreto, durante abertura do I Encontro Nacional da Rede de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, em Belo Horizonte. (AGÊNCIA DO ESTADO, 2010).

Entretanto, essa prática xenofóbica também é relatada no território nacional, tanto


em relação aos bolivianos que tem sido escravizados nas fábricas de costura do sudeste do
país, como nordestinos que vão exercer a prostituição (forçada eu não) em cidades como Rio
de Janeiro e São Paulo. Com relação aos primeiros, Silva (2006) coloca:

O problema da indocumentação tem sido um dos grandes desafios para os


imigrantes mais pobres no Brasil, particularmente para os bolivianos(as), uma vez
que o Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980 por decurso de prazo e num
contexto de Segurança Nacional, só permite a entrada de mão-de-obra especializada
e de empreendedores no país. (SILVA, 2006, 163).

Hazel (2008) alerta para a necessidade de se articular políticas diferenciadas no


enfrentamento de problema tão complexo, com vistas a garantir e preservar os direitos
daqueles mais afetados nessa situação:

Há três tipos de políticas que devem ser consideradas quando se trata de tráfico de
pessoas: políticas econômicas, políticas de migração e políticas de enfrentamento ao
tráfico de pessoas. As últimas só terão algum efeito se as outras duas estiverem em
consonância, fortalecendo as pessoas, ampliando suas oportunidades e acesso aos
seus direitos e tendo uma escolha real de permanecer num lugar ou de migrar.
(HAZEL, 2008, p. 23).

Contudo, na prática, essas políticas tem se operacionalizado de forma bastante


distanciada do ideal proposto. A perseguição de garotas de programa, por exemplo, tem
inclusive sido amplamente noticiada no Estado do Ceará como formas de combate ao tráfico
de pessoas. Podemos citar uma matéria, publicada em 2009, com os seguintes dizeres: “GGI58

58
GGI é a sigla que designa o Gabinete de Gestão Integrada. A estrutura, coordenado pela Secretaria de
Segurança Pública e Defesa Social, conta com a participação de inúmeros órgãos, dentre eles com o antigo
111

prende cinco pessoas acusadas de prostituição‖ (Diário do Nordeste, 2009, p. 14) 59. O título do artigo denota
que as pessoas foram presas por prostituir-se, e não que foram detidas aquelas que exploravam a prostituição de
outros. No texto, contudo, há a seguinte informação:

"Identificamos donos e gerentes de bares que funcionavam apenas de fachada e, na


verdade, eram bordéis. Nestes locais encontramos 11 mulheres que estavam sendo
submetidas a exploração e tinham sido cooptadas em outros Municípios. Havia até
uma mulher do Pará", destacou Eline Marques, coordenadora do Escritório de
combate ao tráfico de seres humanos. (DIÁRIO DO NORDESTE, 2009, p. 14).

Outra matéria que descreve as atividades do Escritório de Enfrentamento e


Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência a Vítima (EEPTSH) possui o seguinte
subtítulo: “Quinze garotas com idades entre 23 e 30 anos foram encontradas nos locais. Elas
prestarão depoimento à Polícia.” (DIÁRO DO NORDESTE, 2009)60. No corpo da matéria as
seguintes informações:

As garotas, de acordo com ela, são de Tejuçuoca, Canindé e Acopiara, o que


caracteriza o tráfico de seres humanos. Elas têm idades entre 23 e 30 anos. ―Já temos
informação de que elas fariam show de streap tease em um dos pontos. De lá,
sairiam com os ´clientes´ para o outro local, onde funcionaria um motel.‖ (DIÁRIO
DO NORDESTE, 2009).

A impressão que gera a leitura do artigo é de que o fato dessas mulheres


praticarem a prostituição culminou na prestação de esclarecimentos junto à delegacia. Outro
ponto importante à ser frisado é o fato das matérias estarem sempre posicionadas no caderno
―Polícia‖, denotando o caráter sempre repressivo das atividades voltadas para esse público.

Sob essa perspectiva, fomentou-se a construção das políticas públicas de


enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Para prestar apoio e assistência às vítimas,
foram criados Escritórios de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos no
Brasil. Estes escritórios foram instalados nos quatro Estados (Ceará, Rio de Janeiro, Goiás e
São Paulo) em que se desenvolveu o projeto piloto de combate ao tráfico de seres humanos,
intitulado ―Medidas contra o Tráfico de Seres Humanos no Brasil‖, realizado pela Secretária
Nacional de Justiça e pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime.

Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima (EEPTSH), hoje
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP).
59
Matéria publicada em 22 de setembro de 2009 no caderno Polícia.
60
Matéria publicada no caderno Polícia, no dia 09 de junho de 2009.
112

O principal objetivo destes Escritórios seria o de fornecer auxílio jurídico,


psicológico e social às pessoas traficadas no momento de retorno ao país. Este foi o primeiro
programa nacional voltado especificamente para as vítimas de tráfico. Ele, de acordo com os
parâmetros norteadores da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, pôde
servir tanto ao atendimento das vítimas de exploração sexual quanto as de trabalho escravo.
Hoje, contudo, como meio de unificar as ações propostas nos escritórios, sua terminologia foi
alterada para Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, sendo ainda criadas outras
sedes em diversos Estados no Brasil.

O próximo capítulo trata das pesquisas e respectivas análises documentais e dos


discursos baseadas no levantamento e entrevistas realizadas no Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará (NETP/CE).
113

4. ANÁLISE DOCUMENTAL E DOS DISCURSOS: PERCEPÇÕES SOBRE OS


DADOS COLETADOS NO NETP/CE

4.1 Dados do Campo: Pesquisa e Análise Documental

Os processos arquivados no NETP/CE ficam situados na sede da instituição,


localizada na Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado do Ceará. Eles são fruto de
denúncias recebidas, onde cada uma delas, seja de tráfico de pessoas ou não, se transforma em
um processo que deve ser encaminhado – se for o caso – e/ou acompanhado pela equipe
multidisciplinar do local.

Os documentos estão organizados na sala da coordenação do NETP/CE em


caráter de sigilo. A classificação deles é feita por ano de recebimento da denúncia e ordem de
chegada na instituição, por exemplo, a primeira denúncia recebida em 2003, figura como
processo 001/2003; a segunda está catalogada como 002/2003, e assim por diante. No ano
seguinte, 2004, a primeira denúncia figura como 001/2004, seguindo sucessivamente até o
ano de 2012, quando esta pesquisa documental foi concluída.

As gavetas do armário que acomodam os processos possuem igualmente


identificação da numeração e ano dos mesmos em etiquetas externas, sendo que na mesma
gaveta não estão organizados processos de anos diferentes. Em 2008, a equipe
multidisciplinar da estrutura iniciou a tarefa de catalogação desses processos numa planilha
do Microsoft Excel, atividade essa que inclusive participei e acompanhei, conforme ilustrado
no meu diário de campo: ―Conheci a estagiária de psicologia da tarde. Resolvemos começar
na sexta (amanhã) a organização e catalogação dos processos do Escritório. Lemos alguns
casos e recebi a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.‖ (Trecho do
Diário de campo do dia 06 de março de 2008).

Para essa pesquisa, utilizamos as informações cadastradas nessa planilha, que vem
sendo atualizada conforme novos processos vão sendo abertos. Nessa planilha, os processos
referentes à anos diferentes ficam em tabelas separadas por abas no mesmo arquivo do
Microsoft Excel. As colunas das tabelas estão dispostas da seguinte forma: número do
processo; delito; ano; nome da vítima; data de nascimento da vítima; idade da vítima; sexo da
114

vítima; naturalidade da vítima; escolaridade da vítima; bairro que a vítima mora/morava;


nome do aliciador/agenciador; história sobre o caso e sentido do tráfico.

Para a construção dos dados apresentados à diante, a pesquisadora realizou


contagem de caso à caso, gerando números nos quais transformou em gráficos para facilitar a
visualização dos mesmos. Nesse sentido, iniciei a empreitada contabilizando os processos de
uma forma geral, culminando na construção da seguinte representação:

GRÁFICO 01 – NÚMERO DE PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE


ENTRE OS ANOS DE 2003-2012

70 65
60
52 48
50
40
30 29
20 14 18
10 10 11
1 1
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Número de Processos Arquivados no NETP/CE

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

Conforme os dados acima apresentados, indica-se a quantidade total de 249


(duzentos e quarenta e nove) processos, distribuídos da seguinte forma: 01 (um) processo para
cada um dos anos de 2003 e 2004; 10 (dez) processos no ano de 2005; 52 (cinquenta e dois)
processos no ano de 2006; 11 (onze) processos no ano de 2007; 29 (vinte e nove) processos
no ano de 2008; 65 (sessenta e cinco) processos no ano de 2009; 48 (quarenta e oito)
processos no ano de 2010; 14 (quatorze) processos no ano de 2011 e 18 (dezoito) processos
no ano de 201261.

O ápice no aumento de denúncias no ano de 2009 pode ter ocorrido em


decorrência do aumento do número de atividades realizadas em campo, tanto no que diz
respeito às campanhas de prevenção, como no que diz respeito às buscas ativas por meio do
Gabinete de Gestão Integrada (GGI). De acordo com dados coletados no NETP/CE em
relação à tais atividades, podemos constatar que enquanto em 2008 foram realizadas 12 (doze)

61
Em relação à 2012, refere-se até o dia 20 de dezembro.
115

ações, em 2009 o GGI/CE solicitou a participação do NETP/CE em 28 (vinte e oito)


atividades, conforme demonstra gráfico a seguir:

GRÁFICO 02 - NÚMERO DE AÇÕES REALIZADAS PELO GGI/CE COM A


PARTICIPAÇÃO DO NETP/CE, POR MUNICÍPIO, EM 2009.
Fortaleza - 17
Canoa Quebrada - 1
Brejo Santo - 1
Juazeiro do Norte - 1
Crato - 1
Várzea Alegre - 1
Pindoretama - 1
Ibicuitinga - 1
Milagres - 1
Canindé - 1
Pacajús - 1
Pena Forte - 1
FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

Já no ano de 2010, as atividades realizadas pelo GGI/CE em que houve


participação do NETP/CE sofreram drástica queda62, passando de 28 (vinte e oito) para
apenas 10 (dez). Todas essas últimas atividades foram realizadas na cidade de Fortaleza,
sendo 02 (duas) em boates de streeper no Bairro José Walter, 01 (uma) em barracas da Praia
do Futuro, 01 (uma) no Centro Cultural Dragão do Mar e arredores e 06 (seis) em eventos e
shows de grande porte na cidade, tais como Ceará Music e Fortal63.

Essas ações tanto proporcionaram a abertura de novos processos no NETP/CE –


resultado de ocorrências identificadas – como, em alguns casos, tais atividade foram
divulgadas pela mídia local, o que aumenta a visibilidade da questão junto à população,
ocasionando no crescimento de denúncias espontâneas ao órgão, o que, consequentemente,
também culmina na abertura de novos processos pela estrutura.

Em relação ao ano de 2011, o GGI/CE suspendeu suas atividades, em parte, por


conta da mudança na figura do Secretário de Segurança Pública e Defesa Social. Em 2012 as
atividades foram retomadas, mas em virtude de mudanças na coordenação do NETP/CE e
devido ao caráter repressivo e ―policialesco‖ dessas atividades, o NETP/CE optou por não
participar mais dessas ações. Esse fato pode ter contribuído para a redução drástica no número
de denúncias recebidas, conforme demonstramos anteriormente no Gráfico 02.

62
Um dos motivos para a redução na participação do Núcleo nas atividades do GGI/CE ocorreu porque aquela
primeira instituição passou a ter dificuldades em conseguir veículo para transportar a equipe multidisciplinar
junto à SEJUS/CE;
63
O Fortal é um carnaval fora de época realizada todos os anos na cidade de Fortaleza, sempre no final do mês
de julho. Conta com atrações que se apresentam em trio elétrico e atrai uma quantidade considerável de turistas.
116

Como meio de especificar melhor as informações, realizamos uma diferenciação


entre os processos especificamente voltados para casos, ou possíveis casos, de tráfico de
pessoas arquivados no NETP/CE, conforme demonstra o gráfico em seguida:

GRÁFICO 03 – NÚMERO DE PROCESSOS REFERENTES À CASOS E POSSÍVEIS CASOS DE


TRÁFICO DE PESSOAS ARQUIVADOS NO NETP/CE ENTRE OS ANOS DE 2003-2012

50
40 41
40
30
20 15
9 11 9
10 6
3
0 0 0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Número de Processos arquivados e classificados como Tráfico de Pessoas pelo NETP/CE

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

De acordo com a leitura do gráfico, indicamos que nenhum processo de tráfico de


pessoas foi registrado entre os anos de 2003 e 2004; em 2005, contabilizamos 03 (três)
processos; 40 (quarenta) processos em 2006; 09 (nove) processos em 2007; 15 (quinze)
processos em 2008; 41 (quarenta e um) processos em 2009; 11 (onze) processos em 2010; 6
(seis) processos em 2011 e 9 (nove) em 2012, totalizando 134 (cento e trinta e quatro)
processos referentes à casos ou possíveis casos de tráfico de seres humanos.

Em primeiro lugar, destacamos a desproporção existente entre a totalidade dos


casos registrados como denúncia pela estrutura, em relação àqueles que realmente foram
considerados como casos ou possíveis casos de tráfico de pessoas. Isso pode ter ocorrido em
função da confusão conceitual que ainda existe na sociedade acerca da definição do que seria
considerado como tráfico de pessoas. Nesse sentido, figuram como denúncias no NETP/CE
situações de sequestro, exploração sexual de crianças e adolescentes, abuso sexual, estupro,
homicídio e, especialmente, funcionamento de bares, boates e casas de massagem que
favorecem a prostituição.

Em segundo lugar, enfatizamos que consideramos os processos como possíveis


casos de tráfico porque os elementos que têm sido levados em consideração para classifica-los
117

pelos profissionais atuantes no Núcleo são bastante questionáveis. Uma das entrevistadas
nessa pesquisa, inclusive, ilustra a situação:

A gente sempre trabalha aqui com possíveis vítimas... possível vítima de trafico,
afinal quem vai dar o desfecho final ééé... geralmente são os órgãos policiais, que
vão julgar, [...] e aí é que se vai concluir se de fato foi tráfico ou não foi tráfico...
porque a gente sempre fica naquela suspeita, [...] as vezes o crime é meio que
invisível, a gente tem o relato da vítima, mas não tem provas, as vezes de fato
concretas, que deixem tão claro [...]. (Garça).

Outra entrevistada, a Lagosta, também coloca essa dimensão, proferindo as


seguintes considerações: ―[...] porque você sabe que isso é muito fluido, ás vezes a gente
considera um caso de tráfico, ás vezes não considera, tudo muda, é muito fluido ess... essa...
essa... catalogação aqui do Núcleo [...].‖ (Lagosta).

Destacamos ainda que essa questão também é identificada por outros


pesquisadores que analisaram dados referentes aos casos que têm sido considerados como
tráfico de pessoas em outras localidades do país. Silva e Blanchete (2010), em
posicionamento que defende a existência de poucos casos, alegam:

[...] embora as principais organizações e indivíduos que estudam o tráfico afirmem


orientar-se pela definição do Protocolo de Palermo (tráfico = exploração sexual de
outrem e violação de direitos humanos), em quase todas as ocorrências, a atual
contagem de casos ou rotas de tráfico é parcial ou totalmente baseada em casos
definidos como tráfico de acordo com o artigo 231 do Código Penal brasileiro
(tráfico = ajudar uma prostituta a se movimentar internacionalmente) [...] (SILVA;
BLANCHETTE, 2010, p. 158).64

Os autores alertam ainda que esses dados, na perspectiva deles coletados de forma
distorcida, por vezes são veiculados na mídia como casos comprovados de tráfico de pessoas,
o que ocasiona num panorama nacional fictício, que pressupõe a ocorrência maciça de casos
de tráfico para fins de exploração sexual no país. Contudo, os pesquisadores não refutam
completamente a existência de alguns casos:

Obviamente, existem casos de escravidão sexual no exterior que envolvem


brasileiras e que até envolvem prostitutas brasileiras. Todavia, pelo menos no
presente momento, as indicações são de que a maior parte daquilo que é tido em
nosso país como tráfico de mulheres, de fato, são pessoas que foram trabalhar,

64
Considerações mais aprofundadas sobre a confusão conceitual fomentada a partir da definição legal do tráfico
de pessoas no Código Penal Brasileiro e no Protocolo de Palermo estão expostas no terceiro capítulo desse
estudo.
118

conscientemente e por livre e espontânea vontade no mercado do sexo no exterior.


(IDEM, p. 161).

A questão dos números referentes aos casos de vítimas de tráfico também é


questionada por Boaventura de Sousa Santos, et. al. (2009) no contexto internacional. Indicam
os autores que as estatísticas diferem em milhares de casos e que isso pode ocorrer pela não
consensual caracterização que cada instituição/pesquisador atribui ao fenômeno:

A maior ou menor abrangência do conceito de trafico sexual influencia, desde logo,


os números que são apresentados [...] Os números sobre o trafico sexual, seja a nível
nacional, continental ou mundial, dificilmente são sólidos e fiáveis, o que tem
conduzido a duas posições que, por serem extremadas, efectivamente pouco podem
ajudar as mulheres traficadas. Cada organização internacional presenteia‑nos com
números que podem divergir em milhares ou em milhões. Por um lado, temos
instancias que fazem referencia a números muito elevados; por outro, aquelas que
contestam esses números e que entendem que o trafico sexual é um fenômeno
residual. (SANTOS; et. al., 2009, p. 70)

Ao demonstrar as duas desproporções, a preocupação dos autores direciona-se às


formas de enfrentamento: se por um lado consideram-se milhões de casos, pode-se acarretar
na perseguição de imigrantes e prostitutas em nome do tráfico de pessoas. Se por outro lado
consideram-se casos escassos, pode-se acarretar na negligência ao atendimento, suporte e
assistência necessária às vítimas. (SANTOS; et.al; 2009, p. 70).

Para os autores, o cerne da questão reside na necessidade de se discutir o conceito


de tráfico e alinhar a legislação aos demais documentos internacionais e nacionais para que se
possa alcançar um consenso que culmine na elaboração e aplicação de políticas públicas
coerentes. Percebemos, portanto, que esses impasses são enfrentados à nível transnacional,
tendo em vista que Santos, et.al. (2009) refere-se ao contexto de Portugal, sendo o mesmo
paradoxo também identificado no Brasil, conforme temos discutido em alguns pontos da
nossa investigação.

Retomando a pesquisa documental, outro dado relevante refere-se ao destino


dessas pessoas, realizamos levantamento para identificar se os possíveis casos mais comuns
têm sido em relação ao tráfico interno ou ao tráfico internacional de seres humanos. Tráfico
interno refere-se aos casos onde as possíveis vítimas são deslocadas para localidades dentro
do território brasileiro, já no tráfico internacional, o deslocamento ocorre envolvendo
119

territórios estrangeiros. Nesse direcionamento, demonstramos o levantamento realizado a


partir do seguinte gráfico:

GRÁFICO 04 – TIPO DE TRÁFICO DE ACORDO COM O LEVANTAMENTO DOCUMENTAL


REALIZADO NOS PROCESSOS DO NETP/CE

3 1
Tráfico Interno

51 Tráfico Internacional

Tráfico Interno e Internacional


79
Indefinido

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

No que se refere às vítimas de tráfico de seres humanos, os processos descrevem,


em geral, mais de uma pessoa nessa condição em cada situação. Ou seja, um único processo
geralmente envolve mais de uma vítima. Nesse sentido, representamos o quantitativo de
pessoas em situação de tráfico de seres humanos entre os anos de 2003-2012 no gráfico
adiante:

GRÁFICO 05 – NÚMERO DE VÍTIMAS DESCRITAS NOS PROCESSOS DE TRÁFICO DE PESSOAS


ARQUIVADOS NO NETP/CE ENTRE OS ANOS DE 2003-2012

80 71
60 52
40
20 16 15 12
3 4 7
0
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012

Número de vítimas descritas nos processos de tráfico de pessoas arquivados no NETP/CE

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

Conforme descrito acima, os dados apontam para a quantidade de 03 (três)


vítimas descritas nos processos de 2005; 71 (setenta e uma) vítimas em 2006; 16 (dezesseis)
vítimas em 2007; 15 (quinze) em 2008; 52 (cinquenta e duas) em 2009; 12 (doze) em 2010; 3
(três) em 2011 e 07 (sete) em 2012. Não consideramos os anos de 2003 e 2004 porque não
foram contabilizados processos referentes ao tráfico de pessoas nesse período.
120

Embora alguns processos envolvam mais de uma vítima, como anteriormente


frisado, em contrapartida, outros não possuem vítimas descritas. É o caso, por exemplo, de
um dos processos em 2011, onde descreve apenas ―crianças entre 06 (seis) e 10 (dez) anos de
idade‖, ou ainda dois processos de 2012, que referiam-se ao recrutamento de mulheres, sem
descrição específica de nenhuma delas, pois tratavam-se de relatos sobre a atividade de
possíveis quadrilhas.

Outro dado que merece destaque diz respeito ao sexo das vítimas descritas nos
processos. Nesse direcionamento, o levantamento documental demonstrou em números,
aquilo que já era bastante visível pela experiência vivenciada na prática cotidiana de atuação
da pesquisadora no NETP/CE: apenas três processos, num universo de 134 (cento e trinta
quatro) ocorrências catalogadas como possíveis casos de tráfico, descrevem situações
envolvendo homens como vítimas para fins de trabalho escravo laboral. As demais situações
processuais, até o momento de conclusão desse estudo, envolvem mulheres, adolescentes ou
travestis, com a finalidade de exploração no mercado do sexo.

GRÁFICO 06 – POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS, POR SEXO, DE ACORDO COM


OS PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE
21

Mulheres

Homens

171

Fonte: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

De acordo com esses dados, 171 (cento e setenta e duas) mulheres foram descritas
como possíveis vítimas de tráfico de seres humanos, enquanto apenas 21 (vinte e um) homens
estiveram nessa situação. Percentualmente falando, as mulheres apresentam um universo de
aproximadamente 87% dos casos de tráfico.

Outras pesquisas realizadas ao redor do país, e mesmo em outros países, já


demonstram que as mulheres e as travestis têm sido os principais alvos do crime de tráfico de
121

pessoas, quando a prática tem por fim a exploração sexual. De acordo com um relatório
publicado pelo Ministério da Justiça, em 2010, têm-se o seguinte panorama:

A questão da desigualdade de gênero na relação de poder entre homens e mulheres é


um forte componente do crime do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual,
pois as vítimas são, na sua maioria, mulheres, meninas e adolescentes. Uma pesquisa
realizada pelo Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes (UNODC),
concluída em 2009, indicou que 66% das vítimas eram mulheres, 13% eram
meninas, enquanto apenas 12% eram homens e 9% meninos. (MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA, 2010, p. 23).

No que diz respeito à faixa etária descrita nesse universo feminino, e aqui
consideramos apenas as mulheres, elaboramos a seguinte representação gráfica:

GRÁFICO 07 – FAIXA ETÁRIA DAS MULHERES POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO PARA FINS
DE EXPLORAÇÃO SEXUAL NOS PROCESSOS DO NETP/CE ENTRE OS ANOS DE 2003-2012
50
46
40

30 Faixa Etária

20 19
15
10 10
4 6
2
0 0
0 à 9 anos 10 à 12 13 à 15 16 à 18 19 à 25 26 à 30 31 à 40 Acima de
anos anos anos anos anos anos 40 anos

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

De acordo com a projeção acima, temos 02 (duas) mulheres com idades entre zero
e nove anos; 04 (quatro) com idades entre 10 e 12 anos; 10 (dez) com idades de 13 à 15 anos;
19 (dezenove) com faixa etária de 16 à 18 anos; 46 (quarenta e seis) com idades de 19 à 25
anos; 15 (quinze) com faixa etária de 26 à 30 anos; 06 (seis) com idades entre 31 e 40 anos;
por fim, nenhuma possível vítima esteve classificada com faixa etária acima de quarenta anos
de idade nos processo.

Observa-se predominância existente entre às idades de 19 e 25 anos, o que


corrobora com outras pesquisas já realizadas sobre tráfico de mulheres que apresentam o
perfil dessas vítimas como jovens mulheres. Uma pesquisa realizada pela união Europeia em
122

parceria com o Ministério da Justiça, publicada em 2011, realizou as seguintes considerações


sobre o perfil das mulheres vítimas do fenômeno para fins de exploração sexual, levada para
países da Europa: ―Com efeito, as equipes de pesquisa encontraram alguns elementos comuns
e possíveis indicadores, tais como: baixa escolaridade, expectativas reduzidas de mobilidade
social e faixa etária entre 20 e 30 anos [...]‖ (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011, p. 16).

No que se refere à naturalidade das mulheres descritas como possíveis vítimas de


tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, elaboramos a seguinte representação:

GRÁFICO 08 – NATURALIDADE DAS MULHERES POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO PARA


FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL DESCRITAS NOS PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE.

São Paulo

Mato Grosso

Amapá

Roraima

Distrito Federal

Amazonas

Pará
Naturalidade
Alagoas

Bahia

Pernambuco

Rio Grande do Norte

Ceará

Maranhão

Piauí

0 10 20 30 40 50 60 70

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

Destaca-se uma predominância de mulheres com naturalidade cearense,


distribuídas da seguinte forma: 33 (trinta e três) de Fortaleza; 03 (três) de Juazeiro do Norte;
02 (duas) do Crato; 02 (duas) de Iguatu; 02 (duas) de Boa Viagem; e 01 (uma) para cada um
dos municípios de Antonina do Norte, Mauriti, Jardins, Apuiarés, Croatá, Brejo Santo,
Crateús, Barbalha, Assaré, Campos Sales, Missão Velha, Aquiraz, Jucás, Itapipoca, São
Gonçalo do Amarante e Paraipaba.
123

Todos os outros Estados possuem pequena representatividade, inferior à 10(dez)


casos, com destaque para o Maranhão, com 07 (sete) mulheres; Pernambuco, com 05 (cinco)
mulheres; e o Piauí com 04 (quatro) mulheres. Destacamos que desses Estado, apenas há
existência de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em Pernambuco65.

No que diz respeito à escolaridade das mulheres vítimas/possíveis vítimas de


tráfico para fins de exploração sexual descritas nos processos do NETP/CE, apenas em 24
(vinte e quatro) delas possuem informações à esse respeito, distribuídas da seguinte forma:

GRÁFICO 09 – ESCOLARIDADE DAS MULHERES VÍTIMA/POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO


PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL CATALOGADAS NOS PROCESSOS DO NETP/CE

3
6
Ens. Fundamental Incompleto
Ens. Fundamental Completo
Ens. Médio Incompleto

6 Ens. Médio Completo


Ens. Superior Incompleto

5
4

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

De acordo com a representação acima demonstrada, podemos inferir que a maior


representatividade das vítimas/possíveis vítima possui baixa escolaridade, tendo em vista que
aquelas que declaram possuir Ensino Fundamental Incompleto e Completo representam a
maior parte dos casos. É importante destacar ainda a existência de mulheres que possuem o
Ensino Superior Incompleto, o que pode indicar um novo perfil de mulheres sendo recrutadas.

Programas de Governo, tais como o Programa Universidade para Todos (Prouni),


ou mesmo as políticas de cotas, que facilitam o acesso das camadas populares ao ensino
superior, podem ter relação com essa presença de mulheres vítimas/possíveis vítimas de
tráfico que declaram Ensino Superior Incompleto, tendo em vista que a grande maioria dos
estudos que tratam da questão do tráfico de pessoas apontam para um perfil de vítimas que
possui baixa renda familiar.

65
A lista dos NETP‘s em funcionamento no país pode ser conferida no site do Ministério da Justiça.
124

Inclusive, embora o NETP/CE não catalogue informações em relação à renda


familiar dos casos atendidos, a vivência cotidiana da pesquisadora como profissional da
instituição atesta para a predominância de mulheres vítimas/possíveis vítimas em situação
socioeconômica precária.

No que se refere ao estado civil, em 55 (cinquenta e cinco) mulheres


vítimas/possíveis vítimas possui essa informação discriminada, contribuindo para a
elaboração do seguinte gráfico:

GRÁFICO 10 – ESTADO CIVIL DAS MULHERES VÍTIMAS/POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO


PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL DE ACORDO COM OS PROCESSOS DO NETP/CE

4 1

Solteiras
Casadas
Separadas

50

FONTE: Elaboração da Pesquisadora, 2012

Dessa forma, há uma maior representatividade de casos onde as mulheres estão


identificadas como solteiras, perfazendo um percentual de aproximadamente 91 % dos casos.
Tal realidade pode ocorrer porque favorece a probabilidade da vítima aceitar a proposta do
aliciador, pois é um fator que reduz os vínculos que possui com o local de origem, além de
fortalecer a ilusão na busca por um príncipe encantado.

Em relação aos agressores, o levantamento apontou um universo de 86 (oitenta e


seis) homens envolvidos, enquanto a quantidade de mulheres nesse papel foi de 45 (quarenta e
cinco). Dentre os homens exploradores identificados no relato das vítimas, 30 (trinta) foram
apontados como estrangeiros, cuja maior parcela de nacionalidade foi de italianos, nesse
sentido, evidencia-se que a maioria dos envolvidos com os possíveis casos de tráfico de fato
são brasileiros.
125

Em relação à nacionalidade dos exploradores, outras pesquisas indicam a


predominância de brasileiros na atividade, sem contudo excluir a atuação de estrangeiros,
conforme atesta a publicação da Organização Internacional do Trabalho (OIT):

Quanto à nacionalidade, encontra-se a presença tanto de brasileiros como de


estrangeiros. Enquanto que a pesquisa MJ-UNODC traz larga predominância de
brasileiros entre os os indiciados (88,2%), a Pestraf aponta que 32,3% dos
recrutadores identificados em reportagens da mídia são do exterior (Espanha,
Holanda, Venezuela, Paraguai, Alemanha, França, Itália, Portugal, China, Israel,
Bélgica, Rússia, Polônia, Estados Unidos e Suíça). (OIT, 2005, p. 24).

Frisamos ainda que muitos processos não são conclusivos ou não possuem dados
consistentes em relação a esses sujeitos, por vezes indicando apenas o primeiro nome ou
apelido pelo qual era conhecido pelas vítimas ou denunciantes. Como forma de ilustrar o
levantamento realizado, construiu-se a seguinte representação gráfica:

GRÁFICO 11 – POSSÍVEIS AGRESSORES DE TRÁFICO DE PESSOAS, POR SEXO, DE ACORDO


COM OS PROCESSOS ARQUIVADOS NO NETP/CE

45
Homens
Mulheres

86

FONTE: Elaboração da pesquisadora, 2012.

A superior representatividade do universo masculino em detrimento do feminino


no papel de explorador e a relação inversa estabelecida quando se trata de vítimas, demonstra
a já indicada e inegável existência da violência de gênero que permeia a realidade do tráfico
de pessoas no Estado do Ceará. Isso sem mencionar a demanda eminentemente masculina,
embora não tenhamos dados numéricos no NETP/CE que possam indicar essa afirmação, a
vivência de campo e a experiência da pesquisadora atestam esse fato.

Contudo, essa não tem sido realidade identificada apenas entre os


agressores/aliciadores no Estado do Ceará. Uma pesquisa realizada pela Secretaria Nacional
de Justiça à âmbito nacional, em 2004, relatou às seguintes informações: ―Ao contrário do
que se pode notar no tocante às vítimas, com relação aos acusados há uma variação expressiva
126

no que diz respeito ao gênero, majoritariamente composto por homens.‖ (SECRETARIA


NACIONAL DE JUSTIÇA, 2004, p. 30).

Embora os dados disponíveis nos processos do Núcleo não tenham nos permitido
identificar a faixa etária desses agressores/aliciadores, indicamos os dados da mesma pesquisa
acima referenciada: ―Se há uma predominância de vítimas mais jovens, embora aqui a falta de
informações sobre a qualificação dos acusados também seja notada, presencia-se que a
maioria dos implicados possui mais de 30 anos de idade.‖ (IDEM, p.31).

Dessa forma, de uma maneira geral e com base no levantamento documental


apresentado, podemos concluir que o perfil das possíveis vítimas de tráfico registradas pelo
NETP/CE têm sido eminentemente feminino, com as mulheres representando em média 87%
dos casos, com faixa etária predominante de 19 à 25 anos de idade, recrutadas em sua maioria
para outras localidades dentro do próprio país (tráfico interno), com naturalidade
especialmente cearense, com especial destaque para a cidade de Fortaleza (33 casos), com
baixa escolaridade e solteiras.

Destacamos que existe a necessidade de incluir outras informações importantes no


momento do preenchimento dos dados processuais no NETP/CE, como por exemplo, raça,
religião, renda familiar, quantidade de filhos, pois são elementos importantes para construir o
perfil das vítimas/possíveis vítimas, indicando dados relevantes que podem auxiliar no
direcionamento de ações de prevenção e enfrentamento da questão.

Em relação aos agressores, não foi possível construir um perfil satisfatório, haja
vista a quantidade escassa de informações contidas nos processos analisados. Pudemos apenas
identificar que eles têm sido apontados pelas denúncias, em sua grande maioria, como do sexo
masculino e de nacionalidade brasileira. Ressaltamos que a predominância do sexo masculino
nessa posição, associada ao caráter predominante de mulheres na situação de
vítimas/possíveis vítimas, aponta para a perspectiva da violência de gênero.

O tópico a seguir apresenta a análise dos discursos baseada nas falas dos(as)
profissionais entrevistados(a) no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado
do Ceará. Ressaltamos que tal discussão apresenta apenas um recorte daquilo que pôde ser
percebido através da coleta desses dados, não indicando, de forma alguma, uma verdade
127

absoluta, tendo em vista as inúmeras condições e variáveis, especialmente aquelas para mim
desconhecidas, que eventualmente possam ter interferido no pronunciamento dessas pessoas.

4.2. Oralidade em questão: análise das entrevistas

Os aspectos orais que proporcionaram a análise exposta nesse capítulo foram


coletados através de entrevistas semi-estruturadas66, realizadas na sede do Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará67. Esse tipo de entrevista considera
algumas poucas perguntas previamente formuladas e admite a inclusão de outros
questionamentos durante a coleta do depoimento, conforme anteriormente especificado no
primeiro capítulo dessa pesquisa.

As entrevistas foram realizadas ao longo do ano de 2012, com exceção da


primeira delas que foi efetivada ainda em 2011. As duas entrevistas posteriores à primeira
ocorreram entre os meses de março e maio de 2012, e as três últimas entre os meses de
novembro e dezembro, representando um total de seis entrevistas. Por conta dos objetivos do
estudo, convidamos para participar apenas os profissionais do NETP/CE que realizam o
atendimento das vítimas de tráfico de pessoa: assistente social, psicólogas, e bacharéis em
direito68. Nesse sentido, apresentamos o seguinte gráfico de entrevistas quanto à formação
profissional:

GRAFICO 12 – PROFISSIONAIS DO NETP/CE ENTREVISTADOS(AS)

2
Psicóloga

Assistente Social
3
Bacharel em Direito

Fonte: Elaboração da Pesquisadora, 2012.

66
As entrevistas foram gravadas mediante prévia autorização dos(as) interlocutores(as)
67
Secretaria da Justiça e Cidadania, Rua Tenente Benévolo, nº 1055, Meireles.
68
Foram entrevistadas duas coordenadoras que possuem formação em Direito, uma que esteve à frente do
NETP/CE entre o período de março de 2011 à março de 2012, e outra que assumiu a função em abril de 2012 e
encontrava-se nela até o momento da conclusão desta pesquisa. As(os) outros(as) dois bacharéis em direito
trabalham junto à equipe multidisciplinar do local.
128

No que se refere ao sexo dos componentes da equipe multidisciplinar, é composta


pela maioria de mulheres, sendo apenas um dos profissionais do sexo masculino. Em relação
à faixa etária, as idades oscilam entre 24 e 35 anos, com exceção de uma das profissionais que
possui mais de 40 (mais especificamente 44 anos). No tocante à renda familiar, 02
entrevistados(as) declararam renda superior à 10 salários mínimos; 02 participantes
declararam entre 07 e 10 salários mínimos; 01 declarou entre 04 e 06 salários mínimos e 01
não declarou essa informação.

Cinco dos entrevistados se declararam católicos(as), tendo duas delas enfatizado


que são praticantes, ou seja, frequentam periodicamente a igreja e seguem os preceitos
religiosos. Em relação ao estado civil, 03 profissionais explanaram que são casadas; 02
afirmaram serem solteiros(as); 01 não apresentou essa informação. No que se refere à cor da
pela, 04 se declararam como pardos(as); 01 como branca e 01 não apresentou esse dado.

Em relação à definição da cor de pele, podemos nos referir às palavras de


Schwartzman (1999), em interpretação às ideias defendidas por Oracy Nogueira:

No Brasil, [...] ao contrário, a cor da pele, mais do que sua origem, definiria as
pessoas socialmente — e serviria de base para preconceitos e discriminações. Isto
permitiria que as pessoas "passem" com mais facilidade de uma categoria racial a
outra e, ao mesmo tempo, reduziria a coesão e identidade interna dos grupos étnicos
ou raciais. (SCHWARTZMAN, 1999, p. 84).

Nesse sentido, negros(as) e descendentes africanos(as) passam a identificar-se


com frequência com o pardo(a), pois é uma categoria não definida – nem negro, nem branco
– portanto neutra, esconjurando qualquer relação que possam ter com a origem ―maldita‖ e
discriminada historicamente.

Retomando nossa discussão, diante do compromisso em resguardar a identidade


dos(as) sujeitos(as) colaboradores nas entrevistas, atribuímos nomes fictícios escolhidos
aleatoriamente com base em animais que podem ser encontrados na fauna brasileira, sendo
nossos(as) entrevistados(as) nomeados de Seriema, Arara, Iguana, Arraia, Lagosta e Garça.
Dessa forma, independente de qualquer dimensão valorativa, nos reportaremos à nossos(as)
interlocutores(as) de acordo com a nomenclatura do animal que o(a) representa, sem com isso
intencionar qualquer associação de personalidade ou moral.
129

Devido aos objetivos do estudo, todos os questionamentos realizados estiveram


centrados na tentativa de identificar a compreensão dos(as) participantes em relação ao tráfico
de mulheres para fins de exploração sexual e sobre o cotidiano de atendimento e identificação
dos casos. Tento em vista tais considerações, a primeira solicitação – após a assinatura do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorização para gravação da entrevista e a
coleta de informações acerca do perfil pessoal – foi que os(as) participantes relatassem a
experiência profissional individual vivenciada no NETP/CE desde o momento da contratação.

Todas as(os) entrevistadas(os) relataram que tiveram dificuldades para


desempenhar atividades quando ingressaram na instituição. Cinco delas(es) atribuíram essa
dificuldade à falta de conhecimento em relação ao fenômeno e metodologia de atendimento.
Nesse sentido, a Iguana, por exemplo, discorre sobre a seguinte situação: ―De início era um
pouco confuso, eu até tava falando essa semana sobre isso, [...] que no começo a gente nem
sabia direito qual era nossa função [...]‖ (Iguana).

A entrevistada indica ainda que não teve à quem pedir orientação quanto à esses
atendimentos, foi apenas ao participar de uma oficina sobre o assunto, um ano após sua
contratação, em seminário promovido pelo Instituto Aliança69 em parceria com a
Universidade Estadual do Ceará (UECE) e com a Secretaria de Direitos Humanos do
Município de Fortaleza70, que pôde esclarecer algumas dúvidas, pois nesse evento estiveram
presentes profissionais ligados à uma ONG na Bahia que tinham experiência na questão.

A Seriema também expressa situação dificultosa semelhante, enfatizando


inclusive que embora possuísse ampla experiência em outras instituições, nunca havia tido
contato com nada semelhante ao tráfico de pessoas:

[...] na verdade o meu início do trabalho aqui no Núcleo né, foi realmente um
desafio, [...] quando cheguei na área de direitos humanos [...] foi uma novidade
assim e a gente sabe que é um leque, um leque de informações, né... e quando assim,
especificamente o trab... é... trabalhando no tráfico de pessoas, isso foi um desafio
bem maior, porque eu não conhecia a temática, tive que estudar, tive que pesquisar,
né... pra falar realmente e entender como é que se deu todo esse processo né [...]
(Seriema)

69
Instituto sem fins lucrativos intitulado como Organização da Sociedade civil de Interesse Público (OSCIP)
para mais informações, visitar o endereço eletrônico da organização: http://www.institutoalianca.org.br/. O
evento foi realizado como etapa do Projeto Disseminação.
70
Projeto Disseminação, ocorrido em Fortaleza nos dias 13 à 15 de julho de 2009.
130

Outro elemento importante de ser ressaltado é que embora não tenham sido
questionadas diretamente sobre isso, todas as entrevistadas afirmaram que não receberam
nenhum tipo de treinamento ou capacitação específica promovida pela instituição que às
contratou, conforme saliente a Garça: ―[...] eu acho que a gente deveria passar por mais cursos
de capacitação, de... atualização, de re... eu mesmo estou aqui e nunca participei de nenhum
[...]‖ (Garça, grifo nosso).

A dificuldade inicial de atuação relatada pelas entrevistadas, além da relação com


a falta de capacitação, pode também estar relacionada à proposta pioneira de atividades
desenvolvidas pelo NETP/CE, primeira estrutura específica, em âmbito estadual, direcionada
ao enfrentamento do tráfico de pessoas. Contudo, a situação poderia ter sido amenizada se um
treinamento tivesse sido oferecido à esses(as) profissionais, o que na realidade constitui-se
como agente fundamental para garantir a oferta de um serviço de qualidade. Embora, contudo,
não acreditemos que apenas a capacitação seria suficiente para sanar os impasses que
circundam a caracterização do crime, tendo em vista que os documentos oficiais são
ambíguos à esse respeito, abrindo precedentes para uma série de problemas de aplicabilidade
da política de enfrentamento.

Apenas uma entrevistada, a Arraia, relacionou sua dificuldade inicial de atuação


no NETP/CE ao perfil repressivo que a instituição havia assumido e que ela gostaria de
desconstruir, conforme relata no trecho apresentado a seguir:

Encontrei, logo no início, algumas dificuldades, algumas dificuldades de


relacionamento mesmo, tendo em vista o Escritório à época, né, assumir uma
postura bastante repressiva. Encontrei muitas portas fechadas, principalmente das
ONGs, de, da rede de assistência, né, pública e as vezes até mesmo privada, de
ONGs, etc. (Arraia)

A referida entrevistada enfatizou ainda que a oportunidade de trabalho surgiu em


decorrência de estudos que já possuía na área e como fruto de atuação voluntária que já havia
realizado na estrutura enquanto ainda Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres
Humanos e Assistência a Vítima. Elementos esses que certamente justificam a maturidade
discursiva em relação especialmente à concepção de tráfico de mulheres para fins de
exploração sexual e quanto à atuação do Estado frente à questão, apresentadas em vários
131

momentos nas considerações feitas por ela, quando por exemplo, identifica a confusão que
existe entre tráfico-prostituição-migração:

Mas combater o tráfico no meu entendimento e é algo que eu sempre levo nas
capacitações e é uma das minhas falas,, combater o tráfico de pessoas não é
combater a prostituição, combater o tráfico de pessoas não é combater o direito a
migração, é um direito nosso, conquistado, a gente tem que ir. Se a gente tem
possibilidade, hoje é sim, algo muito positivo a gente ter pessoas de classe pobre
viajando, ótimo [...] (Arraia).

A entrevista transcorreu com o questionamento do que cada participante


compreendia sobre tráfico de mulheres para fins de exploração sexual. Quando perguntamos
para a Iguana, por exemplo, ela tece as seguintes reflexões:

[...] da questão da exploração sexual... usar pra obter renda... né... aí no caso teria
que ter um transporte, porque pra ser o tráfico teria que ter algum deslocamento,
né... e existe uma grande dificuldade assim pra quem trabalha é... diferenciar um
pouquinho, por exemplo, porque tem um adolescente que ela é vítima de exploração
sexual, que a gente tá acompanhando, ela é... participa de algumas casas de
prostituição, mas ela não saiu nunca de Fortaleza, são casas daqui, e... hum... ela
mora num bairro.. e... hum... fica rodando nos bairros, então nesse caso ela não seria
vítima de tráfico, não é? Ela seria vítima de exploração, no caso ela teria que ir pelo
menos para outro município, pra Caucaia, pra ser vítima de tráfico... aí esse tipo de
coisa talvez, eu acho, teria que ser melhor definido né, porque o que é que acontece
hoje, a principal característica pra definir se a pessoa é pra exploração sexual
ou se é tráfico, é meramente o transporte de um município pra outro, é uma
questão geográfica, porque se essa menina tivesse num cabaré em Caucaia ela já
era vítima de tráfico. (Iguana, grifo nosso).

A Iguana consegue identificar como é conflituosa a definição do fenômeno,


tecendo inclusive considerações críticas à respeito dessa definição. Ela expõe, aparentemente
contrapondo-se à essa questão, que de acordo com a concepção normativa na qual está
baseado o trabalho da equipe, o que diferencia efetivamente a exploração sexual, ou mesmo a
prostituição, do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual é meramente uma questão
de deslocamento. Ressaltamos que o afastamento do indivíduo de sua comunidade original é
um aspecto chave no fenômeno, contudo, não deve ser considerado o único, tendo em vista
que essa percepção pode acarretar em distorções na identificação da problemática.

As pesquisadoras Sales e Alencar (2010) posicionam-se acerca de elementos que


reportam à questão conflituosa dessa caracterização, aparentemente percebidos parcialmente
pela Iguana:

São as condições de realização da prostituição, em que pode ocorrer excessiva


exploração, somadas ao deslocamento para o qual se utiliza de engano, coação ou
132

outros meios que caracteriza o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, e
não apenas o exercício da prostituição ou outra atividade ligada ao sexo, que muitas
vezes acontece de forma voluntária e em condições razoavelmente adequadas.
(SALES, ALENCAR, 2010, p. 57).

De acordo com essas autoras, identificar o tráfico de pessoas como diretamente


relacionado à migração de prostitutas têm sido utilizado como justificativa para impedir e
discriminar o deslocamento dessas mulheres: ―[...] mulheres que se deslocam são
implicitamente suspeitas de atravessarem fronteiras para propósitos sexuais [...] Assim,
mulheres e seus movimentos são vistos através da lente de criminalidade e estigma [...]‖
(IDEM, p. 57).

Já a Arara, quando questionada sobre sua compreensão em relação à definição do


tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, articula as seguintes considerações:

[...] ao meu ver, o meu conceito seria o deslocamento de uma determinada pessoa,
é... o o recrutamento né, o aliciamento também, existem todos os requisitos que
compõem a [trecho incompreensível] do tráfico, para fins de exploração sexual, para
ser alojada em uma casa, se existe uma terceira pessoa que ganh.. é.. que obtenha
uma vantagem econômica é... através dos programas que são realizados com
determinada garota, pra mim o tráfico seria isso, essa transferência, o alojamento,
recrutamento e até mesmo o aliciamento, dessa pessoa com fins de exercer
programas sexuais e uma terceira pessoa estar ganhando em cima dessa pessoa.
(Arara).

A referida entrevistada, conforme exposto, consegue explanar construções


coerentes acerca do fenômeno, entretanto, em momento algum apresentou que considerava a
legislação brasileira deficiente. Quando questionada acerca dos elementos que levava em
consideração para identificar os casos na prática, a entrevistada salienta:

Quando a gente vai analisar o...o...os requisitos que existem no Código Penal, todos
os requisitos que compõem o crime de tráfico interno de pessoas não é? Que no caso
seria o recrutamento, o alojamento, o aliciamento, e ver realmente, [bocejo]
configurar e visualizar que existe uma terceira pessoa tendo algum tipo de vantagem
sobre... em cima do programa realizado pela garota. (Arara).

Nesse sentido, para Arara, a caracterização parece ser realizada de maneira muito
clara e pouco questionável, bastando, conforme considera, seguir as orientações do Código
Penal Brasileiro (CPB). Contudo, é interessante mencionar que o CPB não prevê todas essas
etapas, pois considera como traficante aquele que promove ou facilita a entrada, no território
nacional ou internacional, de alguém que irá exercer a prostituição, sendo, por conclusão,
133

considerada vítima aquela que se desloca com o auxílio de alguém para essa finalidade (se
prostituir).

Certamente a Arara repercute um discurso que ouviu falar, mas parece não saber
bem de onde é proveniente, acreditando ser próprio do CPB. Outra entrevistada que
apresentou em sua fala elementos podem indicar uma dissociação entre o documento que cita
e a definição contida nele foi a Dignidade. Quando questionada à respeito do que ela percebe
sobre o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, coloca:

[...] é... esse é uma questão meio que eu penso que a Política Nacional ela tem que
ser reformulada na definição porque realmente para que as políticas comecem
realmente a se efetivar [...]. e que realmente precisa hoje, precisa realmente existir,
é... que a política seja modificada, a política nacional seja modificada para que
a definição do tráfico de pessoas ela possa realmente ter esse amplo
entendimento, pra que tenha política realmente pra efetivação desses atendimentos,
e que os encaminhamentos que nós realizamos eles possam ser concluídos [...]
(Seriema, grifo nosso)

Através do trecho exposto, evidencia-se que ela parece conseguir perceber a


existência de uma concepção pouco abrangente do tráfico de pessoas, contudo, a interlocutora
não relaciona essa deficiência ao Código Penal Brasileiro, mas à Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas71, que na verdade, adota a mesma concepção do
Protocolo de Palermo, ou seja, admite as múltiplas finalidades de exploração no tráfico:

Art. 2º. Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão ―tráfico de pessoas‖
conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em especial Mulheres e Crianças [...] (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008,
p. 67).

Não ignoramos as circunstâncias pontuais das entrevistas, que podem ter sofrido
interferências como nervosismo do entrevistado, mau-humor, preocupações de cunho pessoal,
dentre outras, que possam ter interferido na construção das respostas. Contudo, não podemos
ignorar os dados coletados, que podem indicar colocações incoerentes, reflexo,
possivelmente, de profissionais despreparados, que possuem apenas conhecimento superficial
em relação ao contexto problemático no qual atuam.

71
Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006.
134

Acreditamos que a incapacidade de diferenciar o conteúdo dos documentos


normativos com os quais trabalhamos pode ser um indicativo de conhecimento superficial dos
mesmos. Certamente a efetivação de estudos mais minuciosos sobre a temática – a partir de
pesquisas concluídas, artigos científicos, documentos normativos e legislação – associados às
práticas cotidianas, forneceriam os requisitos mínimos de indicação para a identificação dos
reais problemas conceituais que o fenômeno apresenta e os paradoxos de aplicação da lei.

Retomando os discursos da equipe, no que se refere a percepção que Seriema


possui sobre o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, a entrevistada coloca:

[...] a definição de tráfico acredito que seja é...é.... [breve pausa] falta de perspectiva,
falta de oportunidade, né, que as mulheres, hoje a gente fala assim mulheres, a gente
sabe que o perfil muda muito, não é só mulheres hoje, né... hoje a gente tem
homens, né... tem agora a...a...as travestis né, [...] né, porque assim, quando a gente
atende uma vítima a gente sente a necessidade de ter algo mais consistente pro
atendimento, pra se efetivar no atendimento, nós atendemos uma vítima, por
exemplo, e a gente não tem pra onde encaminhar, se for uma vítima acima de
dezoito anos a gente não tem pra onde encaminhar, então assim, essa definição que
eu faço é...é... assim, falta de oportunidade, eu acredito que, que sejam vítimas é...
é.... que já tem um histórico familiar né....[...] e que os encaminhamentos que nós
realizamos eles possam ser concluídos, [...] mas assim essa definição que eu faço
é...é... é no geral, né... então, não sei se eu contemplei a sua pergunta. (Seriema)

Por considerar a resposta pouco objetiva na definição do que a entrevistada


entende por tráfico de mulheres, reformulei o questionamento em busca de obter uma
construção discursiva mais coerente. Nesse direcionamento, tentei refazer a pergunta através
das seguintes palavras: ―Veja bem, na tua concepção, o que você diria que é o tráfico de
mulheres, o conceito mesmo, quais são as características do tráfico?‖. A partir disso,
obtivemos a seguinte resposta:

[longa pausa] pronto... [longa pausa] a...a... exploração, de um modo geral, a


exploração, [pausa] né... e ...e.... valha meu Deus... é porque quando chega assim
né... eu acho que... que... a exploração.... eu acho que falta de oportunidade, acho
que não sei, acho que é isso... mais ou menos, dá pra..... (IDEM)

Diante das considerações acima descritas, insisti mais uma vez no


questionamento. Na tentativa de conseguir coletar respostas mais claras, coloquei-me da
seguinte maneira: ―Perguntando de uma outra forma, vamos supor, aqui no seu cotidiano de
trabalho, quando chega uma pessoa para você fazer o atendimento, quais são os elementos
que você se baseia para definir se aquele é um caso de tráfico ou não?‖ Diante dessas
colocações, obtive as seguintes considerações:
135

Pronto, a partir do recrutamento, né, das ofertas, das ofertas, que são... que são
oferecidas, né e que .... o recrutamento, o deslocamento, a gente sempre se baseia na
definição do...do... do que é o tráfico, né.... do recrutamento... do aliciamento e a
exploração, dentro outros, né... na conversa a gente vai é...é... no atendimento a
gente vai encontrando mais elementos, mais perguntas, a gente termina definindo,
né, o que é realmente esse tráfico de... de... de...pessoas né... mas assim a definição
maior eu acredito que seja a exploração, a partir do momento que... que há o.... e que
há também o...o...o dinheiro, eu acredito também que é uma das características que a
gente pode tá incluindo pra determinar... é... não é determinar, mas assim tá
caracterizando também como tráfico, um dos elementos né. Eu não sei se foi... se
contemplou.... (IBIDEM)

Podemos perceber, conforme acima exposto, que na construção da resposta dessa


entrevistada, a ênfase parece recair sobre o aspecto da exploração, resolvi então questioná-la
sobre o significado dessa palavra, quando obtive a seguinte resposta:

A... o abuso, o abuso sexual, né.... é.... deixa eu ver o que mais.... [pausa longa]
violência....né, a violência, [pausa breve] todo o tipo de violência, né.... e, deixa eu
ver o que mais a gente poderia tá.... o abuso... violência... acho que a falta de
oportunidade também, né.... acho que.... [pausa longa]. (Seriema)

Dessa forma, percebe-se, no discurso proferido pela Seriema, definições vagas e


imprecisas do tráfico, não só de mulheres para fins de exploração sexual, mas do fenômeno e
das características do mesmo de uma forma geral. Destacamos que essa falta de precisão pode
comprometer a atuação profissional, pois se a definição do fenômeno não é clara para o(a)
agente que o enfrenta, pode interferir no processo de identificação prática dos casos, assim
também como nas atividades preventivas, já que estas preveem, dentre outros elementos, o
conhecimento em profundidade da questão, tendo em vista que o objetivo delas é baseado
principalmente na disseminação de informações que caracterizam o fenômeno.

Na perspectiva da importância na identificação correta dos casos, uma publicação


do Ministério da Justiça, que trata dos critérios e fatores de identificação em situações de
tráfico de pessoas, menciona as seguintes considerações:

[...] deve-se ter em mente que a falha na identificação correta de pessoas traficadas
pode resultar na negação dos direitos fundamentais delas. E, portanto, de acordo
com o Relatório do Alto Comissariado das Nações unidas para os Direitos Humanos
sobre os Princípios e Recomendações de Direitos humanos e Tráfico Humano [...]
―Estados têm a obrigação de assegurar que a identificação possa e seja feita.‖
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009, p. 21).

Ou seja, a identificação inadequada dos casos pode culminar em negligência às


verdadeiras vítimas de tráfico. Destacamos contudo, que com exceção da Seriema, as demais
136

entrevistadas parecem conseguir articular um conceito de tráfico de mulheres para fins de


exploração sexual relativamente coerente, embora em alguns momentos desses discursos
proferidos, seja possível perceber pontos que podem indicar certa insegurança e dúvida,
especialmente quando as perguntas realizadas são relacionadas ao contexto de prática
cotidiana desempenhada no NETP/CE.

Nesse sentido, solicitamos aos(as) entrevistados(as) que relatassem alguns casos


de tráfico que acompanharam enquanto profissionais do NETP/CE. Iguana, por exemplo,
relata a seguinte situação:

Deixa eu ver aqui...ó, teve um caso, ago... que a gente acompanhou, ano passado, de
um rapaz é... travesti, certo... que voltou de São Paulo e... foi, não foi caracterizado
assim... formalmente, porque ainda tá em inquérito o caso, mas foi até noticiado
que ele foi resgatado de um local onde existiam vários travestis que estavam sendo
explorados, né, exploração sexual, então no caso o que é que se suspeita, que é uma
rede de tráfico pessoas que atua nessa rota Nordeste-São Paulo né, então a gente
acompanhou esse rapaz, né, com... fizemos visitas, a mãe foi que pediu ajuda,
porque ele ligou pra mãe, pedindo ajuda, que não aguentava mais, e não tinha como
vir embora, porque tava devendo muito dinheiro pra pessoa que levou, devendo o
dinheiro do megahair que ele tinha, né... é... é... aí falou que tinha que levar uma
quantia de dinheiro por dia, se não levasse não podia nem entrar, tinha que voltar pra
continuar fazendo os programas, fazia vários programas por noite [...] (Iguana)

Iguana cita de fato uma situação que possui inúmeros indicativos que apontam
para o crime de tráfico de pessoas para fins sexuais: deslocamento (no sentido Fortaleza – São
Paulo) e a exploração sexual no destino final, com o agravante do que parece ser uma
servidão por dívidas e jornadas exaustivas de trabalho. Entretanto, logo no início de sua fala,
ela menciona a preocupação com a não conclusão do inquérito policial, o que dá a impressão
de que isso poderia ser para ela um elemento fundamental na caracterização do fenômeno.

Alguns estudos e pesquisas indicam que os inquéritos policiais voltados para os


possíveis casos de tráfico de seres humanos, como não poderia deixar de ser, estão submetido
às ambiguidades legais brasileiras, conforme salienta Oliveira (2008): ―Como não cabe ao
policial mudar as leis [...] ele opta por investigar o crime dentro das possibilidades oferecidas
pelo Código Penal.‖ (OLIVEIRA, 2008, p. 135). Dessa forma, a referida conduta abre
precedentes para que situações bastante questionáveis possam ser enquadradas como tráfico
(como no caso de pessoas que de qualquer forma ajudam ou facilitam a migração de
prostitutas), enquanto outros não serão assim considerados (como é o caso daqueles
explorados para outros fins que não os sexuais).
137

Através dessa argumentação, pretendo indicar que é bastante possível que os


inquéritos policiais, em muitas situações, não apresentem conclusão confiável àquilo que
nesse estudo consideramos efetivamente como reais casos de tráfico de seres humanos,
recomendando-se portanto, que não devem ser utilizados como parâmetro na definição do
existência da problemática.

Outra entrevistada, a Garça, quando solicitada para relatar alguns casos de tráfico
para fins de exploração sexual que acompanhou no NETP/CE, menciona a seguinte situação:

Certo... vou falar do caso de uma menina... em que ela foi traficada para a Holanda
eee... infelizmente, ela...aliás, felizmente ela conseguiu se livrar do aliciador que
levou e caiu nas mãos de outro aliciador... esse primeiro aliciador deixou ela numa
estação de metrô, e aí... sem ajuda...sem dinheiro... sem nada...apareceu uma outra
pessoa pra ajuda-la e ela caiu novamente na...na rede do tráfico... e ela voltou ano
passado, grávida...de um...de um árabe,[...] Depois de apanhar muuuito, ela tava
negando a fazer o que eles queriam, que era programas sexuais, apanhou, apanhou,
apanhou, apanhou... e aí levaram ela pro motel e aí exploraram ela no motel de todas
as formas, eu acho que era uns... dois ou eram três rapazes...e aí... largaram depois
ela numa estação de metrô. (Garça).

Já a entrevistada Lagosta, quando solicitada à discorrer sobre a mesma questão, relata


o seguinte caso:

[...] uma jovem que veio do Pará, claro que tem toda um contexto que ainda tá
sendo analisado pela Polícia Federal, mas é... unindo as várias versões que
surgiram e o que eu posso te compilar é: que a jovem.... saiu des...des..desse Estado,
com promessas de trabalhar no..no...no trabalho doméstico no Suriname, foi aliciada
por uma pessoa, por uma... uma mulher adulta que prometeu...se aproximou da
comunidade, ééé... se da...das amigas desse bairro dela, solicitando mão de obra pra,
pro trabalho doméstico no Suriname, só que hã... todos se organizaram, tiraram
passaporte... hã... organizaram roupas, malas, é, ganharam celular dessa pessoa, que
isso já seria parte do pagamento desse patrão que estaria aguardando cada uma
dessas meninas, no Suriname, eee no dia dessa partida, essa menina, essa jovem que
foi atendida aqui pelo Núcleo, relatou que já numa oportunidade no aeroporto ouviu
que teria ligações dizendo que ―prepara o garimpo, as meninas estão chegando, hoje
vai ter festa no garimpo‖.... então nesse ―hoje vai ter festa no garimpo‖, ela
realmente ficou muito assustada, muito abalada, aí já veio outra versão, que ela diz
que essa moça já estava com o passaporte de todas elas na mão, ela deu um salto e
conseguiu pegar justamente o seu passaporte.... e saiu correndo num contexto de
fuga, é... entrou dentro dum caminhão baú, que transportava água mineral,
garrafinhas pequenas, e dentro desse contexto de fuga pro Ceará, teria passado três
dias viajando e aqui no Ceará chegou para o Núcleo por meio da Delegacia do
Turista, [...] (Lagosta, grifo nosso)

Destacamos que, diante dos depoimentos, é possível perceber que as


entrevistadas, de uma forma geral, parecem conseguir relatar casos práticos, por elas
138

acompanhados, que correspondem àquilo que consideramos nesse estudo como tráfico para
fins de exploração sexual.

Prosseguimos as entrevistas perguntando aos(às) profissionais se sentiam dúvidas


para identificar os casos de tráfico de pessoas na prática cotidiana de atendimento no
NETP/CE. Todos(as) se posicionaram de forma afirmativa. Em relação à Seriema, enfatiza as
seguintes observações:

Já, e aqui acontece muito, porque, por exemplo, recentemente, recentemente


assim...em torno de seis meses, atendemos uma vítima que ela chegou, contava uma
história, né... e... e assim, nós ficamos na dúvida no atendimento, toda a equipe ficou
na duvida.... ―meu Deus, será que é tráfico?‖, porque ela contava uma história pra
mim né... pra[...] ela contava outra, né, e pra [...] ela contava outra, e quando a gente
sentava pra... pra fazer um estudo de caso, as informações não batiam, ―não mais aí
ela fugiu‖.... daqui a pouco ela vinha e me contava outra história [...] (Seriema).

Embora essa participante admita dificuldades para identificar os casos no seu


cotidiano de trabalho, ela parece não conseguir associar esse fato à compreensão que ela
própria possui da questão (conforme demonstramos nas páginas 130-132 dessa pesquisa),
direcionando o motivo para os múltiplos relatos conflitantes que as possíveis vítimas
verbalizam nos atendimentos.

Apenas 02 (duas) das entrevistadas fizeram associação entre a dificuldade prática


de identificação dos casos de tráfico de pessoas com a deficiência legal. Uma delas foi a
Arraia, que possui formação em Direito, pós-graduação e desenvolve estudos na área do
tráfico de seres humanos. Arraia reporta ainda sua ênfase à identificação problemática e
preconceituosa realizada por aqueles que compõem a estrutura jurídica e de repressão na rede
de enfrentamento:

[...] a gente não consegue ter uma responsabilização, não consegue ter um inquérito
finalizado. [...] eu tenho os inquéritos, eu tenho alguns que a gente conseguiu
garimpar, que a gente conseguiu identificar, mas eu já vou lhe dizendo: são
pouquíssimos. [...] o Brasil é procurado, as vítimas estão aqui, as meninas estão
indo, né e os criminosos não estão sendo responsabilizados... o Brasil é um terreno
fértil pra atuação da rede de tráfico de pessoas, entendeu? E as vítimas sofrem com
isso. Eu vou bem denunciar se eu vejo que a polícia não ta nem aí? No lugar de me
escutar ela vai ficar é rindo da minha cara porque eu sou prostituta? Né? (Arraia)

A outra entrevistada que associou a dificuldade prática de identificação dos casos


com a deficiência legal foi a Iguana, conforme demonstraremos no recorte abaixo:
139

Aí eu acho que a principal dificuldade é essa, a questão do conceito mesmo, que


talvez seja abrangente demais, ou muito restrito, eu nem sei... eu acho que tem que
ser estudado melhor, né? A questão da legislação que eu acho que tá muito é...
resumido, né.... na nossa legislação tá resumido. A questão mesmo da gente... da
questão da vontade da vítima, por exemplo né, que é a vontade da vítima é... é...
independe da vontade da vítima pra configurar tráfico, aqui no Brasil, independe,
né.... mesmo que ele... ela consinta, a pessoa pode ser enquadrada no tráfico, [...], aí
a gente fica “não mas, essa menina ela sabia que ia pra trabalhar e que ia ser
explorada lá”, então é tráfico? Não é Tráfico? É isso que é a discussão. (Iguana,
grifo nosso)

Contudo, embora essa entrevistada perceba que há algo errado com a definição
legal do fenômeno, ela demonstra dúvidas em definir se a lei é abrangente demais ou restrita
demais. Iguana discorre ainda, de forma aparentemente contraditória, sobre a questão do
consentimento ―dado‖ pela possível vítima, pois num primeiro momento afirma que o mesmo
é irrelevante para a caracterização do crime e logo depois faz as considerações acima
destacadas em negrito.

Percebe-se, portanto, elementos que podem indicar que a entrevistada compreende


uma definição teórica que estabelece o consentimento da vítima como irrelevante. Todavia, na
prática, ela expõe que fica em dúvida no momento dessa caracterização – ―[...] aí a gente fica
―não mas, essa menina ela sabia que ia pra trabalhar e que ia ser explorada lá‖, então é
tráfico? Não é Tráfico?[...]‖ (Iguana) –; e ao que parece, essa dúvida é partilhada com os
companheiros de atuação profissional, já que ela menciona que há uma ―discussão‖.

Nesse sentido, Iguana parece verbalizar um discurso oficial (irrelevância do


consentimento da vítima), mas estabelece um conflito entre aquilo que diz e aquilo que
pratica. Na realidade, uma análise mais cuidadosa das palavras dessa participante, talvez
pudesse evidenciar uma certa falta de atenção contida na afirmação que indica ser possível
uma pessoa consentir, de forma consciente e esclarecida, com uma situação de exploração.

Vários autores indicam que esse consentimento não deve interferir na


caracterização do crime, pois muitas vezes a vítima sabe que irá realizar programas sexuais,
mas não imagina em que condições irá fazê-lo. Nesse direcionamento apresentamos as
considerações de Kempadoo (2005):

[...] mulheres e meninas tentam mudar para o exterior consciente e voluntariamente


para melhorar suas vidas e as de suas famílias. O que essas mulheres muitas vezes
não sabem, ou às vezes aceitam tacitamente, são os perigos das rotas subterrâneas
que têm que usar para atravessar a fronteira, os custos financeiros, o tipo de
140

atividades, as condições de vida e de trabalho na chegada, o alto nível de


dependência de um conjunto específico de recrutadores, agentes ou empregadores,
os riscos de saúde, a duração do emprego, seu status criminoso no exterior, a
violência e/ou períodos de detenção ou encarceramento que poderão ter que
enfrentar. (KEMPADOO, 2005, p. 63-64)

Assim, muitas das mulheres que estiveram inseridas em contexto de pobreza e


discriminação no local onde foram aliciadas, concedem um consentimento que deve ser
considerado como induzido, tendo em vista que uma oportunidade de trabalho, seja ela no
exterior ou em outras localidades ao redor do país, desponta para elas como possibilidade de
melhoria na qualidade de vida.

As colocações da entrevistada podem demonstrar um aspecto ainda mais gravoso:


uma discriminação direcionada àquelas pessoas pelo fato de parecerem ter consentido com a
situação de exploração sexual. Tal suposição nos remete às reflexões empreendidas por Judith
Butler (1998), ao analisar a forma como casos de estupro foram tratados pelo Estado norte-
americano. A autora indica que muitos advogados de defesa dos estupradores têm exposto a
vítima como sujeito ativo na ação, ou seja, o estupro ocorre em decorrência da exposição
dessas mulheres aos elementos da violência, nesse sentido, Butler (1998) coloca:

A categoria sexo funciona aqui como um princípio de produção e regulação ao


mesmo tempo, a causa da violação instalada como o princípio formador do corpo e
da sexualidade. Aqui sexo é uma categoria, mas não apenas uma representação; é
um princípio de produção, inteligibilidade e regulação que impõe uma violência
e a racionaliza após o fato. (BUTLER, 1998, p. 27, grifo nosso)

No caso do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, a categoria


prostituta pode estar sendo colocada como aspecto que justifica a situação de violência. A
discriminação pode ocorrer, portanto, de duas formas: através de medidas que pretendem
evitar a migração autônoma delas para o exercício da venda de sexo, assim também como por
meio de posturas que banalizam a situação dessas mulheres em outras localidades apenas
porque ―consentiram‖ em se prostituir.

Retomando os discursos coletados, uma das entrevistadas, a Arraia, expõe que


considera a equipe com a qual trabalha despreparada, e expõe que muitas vezes as colegas não
tem paciência na escuta por falta de qualificação adequada, impossibilitando um atendimento
e acompanhamento que leve em consideração as especificidades que uma vítima de tráfico de
mulheres para fins de exploração sexual possui:
141

[...] os profissionais que lidam conhecem, tendo esse contexto eles vão cuidar [...]
vão cuidar [...] de serem mais, mais pacientes na ouvida. Uma vítima de tráfico
dificilmente vai sentar na sua frente e contar tudo de primeira, ela não vai fazer isso.
Pelo contrário, ela vai tentar mentir pra você o máximo pra guardar pra ela aquela
realidade e não abrir mais pra ninguém. [...] porque ela tem medo [...]. É algo que
ela quer guardar pra ela. Então um profissional, um técnico que atende uma vítima
de tráfico de pessoas... tem que saber disso, não, ―Ai porque eu vou ficar com
raiva‖, [...] ―eu já insisti muito, ela não quis falar pra mim!‖. E ela não vai querer,
você vai ter que conquistar. Entendeu? Então é necessária a capacitação [...]
(Arraia).

Reafirmamos que apenas duas das entrevistadas explanaram acerca da questão da


fragilidade conceitual legal. As demais conseguem admitir que sentem dificuldades na prática
em identificar os casos, mas atribuem os motivos às mais diversas questões, tais como falta de
capacitação profissional, ―invisibilidade‖ do crime e relatos incoerentes das possíveis vítimas.

Um relatório internacional publicado pela Internacional Organizacion for


Migration (IOM) trata da complexidade em estabelecer parâmetros de identificação dos casos
de tráfico de pessoas à âmbito mundial, dificultando o trabalho dos agentes envolvidos no
enfrentamento:

[…] there is no formal process of identification and screening. The process of victim
identification is largely conducted on an ad hoc basis by a range of agencies
involved in the counter-trafficking effort, without much of a formal systematic
approach. As a result, a clear understanding of how to identify victims of trafficking
(or offenders) is currently lacking among a large part of the actors who are directly
or indirectly involved in the identification process.72 (IOM, 2005, p. 13).

Outro elemento que é interessante destacar refere-se à maneira como a Europa, na


perspectiva da entrevistada Arraia, tem percebido e enfrentado o tráfico internacional de
mulheres para fins de exploração sexual: ―Muito, muito mal. Quem atua são as ONG‘s.
Brasileira no exterior fica sob custódia do Estado um tempozinho e tal, até serem deportadas.‖
(Arraia). Contudo, a participante considera que tem havido avanços: ―[...] a gente já vê a
Itália, Portugal e Brasil sentando pra conversar. Em encontros em Brasília a gente já vê
presença de policiais da Espanha, de Portugal e da Itália, que são os principais destinos das
brasileiras.‖ (IDEM).

72
[...] não há nenhum processo formal de identificação e triagem. O processo de identificação das vítimas é
amplamente realizado numa base ad hoc [situacional] por uma série de agências envolvidas no esforço de
combate ao tráfico, sem muito de uma abordagem formal e sistemática. Como resultado, uma clara compreensão
de como identificar vítimas de tráfico (ou autores), não existe entre uma grande parte dos atores que estão
diretamente ou indiretamente envolvidos no processo de identificação. (Tradução livre da pesquisadora)
142

Indicamos, entretanto, que a presença de policiais nos encontros brasileiros sobre


tráfico de pessoas, embora seja considerado um avanço pela entrevistada, na realidade pode
representar apenas uma maneira de articular a repressão na intercepção de mulheres que
queiram exercer a prostituição fora das fronteiras do Brasil, tendo em vista que nem mesmo
nosso Código Penal contradiz essa prática, muito pelo contrário, a definição vaga que consta
nesse documento legitima tal postura.

Nesse direcionamento, podemos indicar as conclusões de Piscitelli (2008), que


considera a legislação da Espanha extremamente questionável nesse sentido, ocasionando na
associação direta e frequente entre prostituição e tráfico de mulheres para fins de exploração
sexual:

[...] a obtenção de lucros da prostituição, mesmo envolvendo maiores de idade que


agem de maneira autônoma passou a ser delito e, de acordo com a Ley de Extrajería,
se considera delito favorecer a imigração ilegal, com agravante se o fim é a
exploração sexual (Cantarero, 2007). A confluência entre essas duas disposições tem
como efeito que presença massiva de estrangeiras na indústria do sexo, muitas vezes
não documentada, seja lida de maneira automática como vinculada a atividades
delitivas. (PISCITELLI, 2008, p. 51).

Salientamos ainda que a perseguição de prostitutas pode estar repercutindo numa


questão ainda mais gravosa: a preocupação dos países em deportar essas mulheres acaba
negligenciando os reais casos de tráfico, conforme atesta a fala de uma das entrevistadas na
Espanha por Piscitelli (2008), nomeada de Verônica pela pesquisadora:

As escravas, essas sim são vítimas. Conheci uma, o pai a vendeu com 16 anos. Isso
acontece muito com romenas e búlgaras. Na rua, uma delas começou a chorar, pedia
por favor que a tirássemos dali. Essas querem fugir, voltar, mesmo que sejam
deportadas, Não conheço nenhuma latina que tenha sido forçada. Mas procuram no
lugar errado, porque buscam vítimas de tráfico entre as que vêm porque querem [...]
(VERÔNICA apud PISCITELLI, 2008, p. 55).

A associação entre migração de prostitutas e tráfico de mulheres para fins de


exploração sexual repercute também nas atividades do NETP/CE, conforme explana a Arara.
Ao tratar de outros artigos penais como parte do trabalho desenvolvido pela equipe em ações
de busca ativa junto ao Gabinete de Gestão Integrada (GGI), a entrevistada expõe as seguintes
palavras:

Bom, no caso, o Escritório, que é a... na verdade atual Núcleo, é fica...ficaria


responsável por é... é.... é as vítimas, as vítimas, as garotas que são, são consideradas
traficadas para fins de exploração sexual né, a gente vai ficar no trabalho de ir nessas
casas de massagem, se existir, ou então esses cabarés que funcionam no município e
143

a gente vai averiguar se existem garotas que são de outros municípios e que
estão ali com fins de realizar programas sexuais. Vai ser averiguado se...se existe
o, a, o fav... os artigos que estão tipificados no Código Penal, que é o favorecimento
a prostituição, o rufianismo, tráfico interno ou até mesmo o tráfico internacional.
(Arara, grifo nosso).

Diante de tais considerações, é possível perceber que o NETP/CE preocupa-se em


verificar a presença de meretrizes de outros municípios realizando programas sexuais, o que
pode ser, na verdade, simplesmente um indicativo de migração de prostitutas. Contudo, como
o Código Penal Brasileiro (CPB) considera essa prerrogativa como suficiente para tipificar o
tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, o NETP/CE parece agir em conformidade
com o mesmo.

Dessa forma, podemos inferir que o sujeito interlocutor assume, através da lei
(respaldo institucional), as condições necessárias para proferir determinado discurso.
Observamos que esse tipo de declarações está ―esvaziada do sujeito‖, na medida em que se
repete na fala de outros sujeitos, constituindo-se o que Foucault (2008; 1996) chama de
enunciados: ―[...] algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano;
modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma
posição definida a qualquer sujeito possível, [...] estar dotado, enfim, de uma materialidade
repetível.‖ (FOUCAULT, 2008, p. 121,122).

A relação estabelecida entre tráfico de mulheres para fins de exploração sexual e


prostituição, portanto, é um discurso sustentado pelo CPB que repercute nas práticas (de
atuação e discursivas) desempenhas pela equipe do NETP/CE. Contudo, defendemos que isso
não significa dizer que essas sujeitas são escravas desse posicionamento, a pesquisa e o estudo
voltados para a questão fornecem os elementos necessários para possibilitar o rompimento
com essa visão de ―verdade‖.

Nesse sentido, a entrevistada Arraia, por exemplo, conseguiu verbalizar


indignação diretamente sobre as práticas de perseguição e discriminação dessas mulheres em
nome de um enfrentamento ao tráfico de pessoas:

É errado uma prostituta conseguir a ajuda de uma outra prostituta que ta na Europa,
ajuda financeira, pra ir pra lá e se prostituir lá? De jeito nenhum! Na minha
concepção, é direito dela! É direito dela! Né? como é que ela vai pagar essa amiga?
A amiga ta traficando? Não! Ela não ta explorando ninguém, ela ta ajudando a
pessoa a realizar um sonho, a mudar de vida. (IDEM).
144

Retomando a explanação da Arara, outro elemento que é importante destacar


naquele discurso refere-se aos demais tipos penais citados pela mesma que são verificados
pelo NETP/CE na busca ativa, como por exemplo o favorecimento à prostituição e o
rufianismo. Na realidade, o NETP/CE deveria voltar suas ações para a identificação de
mulheres em situação de exploração num contexto de servidão por dívidas, cárcere ou
jornadas exaustivas de realização de programas sexuais, com o objetivo de prestar
acolhimento e assistência às vítimas. Entretanto, conforme inclusive demonstrado em algumas
matérias de jornal expostas no capítulo dois dessa pesquisa, o NETP/CE parece assumir uma
postura muito mais repressiva e coercitiva nessas atividades do que propriamente de
assistência e acolhimento a possíveis vítimas.

Destacamos, contudo, que esse posicionamento não é defendido por todas as


profissionais entrevistadas. A Lagosta, por exemplo, assim como a Arraia, admite que o
NETP/CE por muito tempo propagou uma postura excessivamente repressiva, quando deveria
prestar prioritariamente assistência às vítimas e possíveis vítimas de tráfico de pessoas,
postura essa que as duas últimas gestões73 vêm tentando desconstruir:

O Núcleo, felizmente, vem passando... vem passando por uma fase de


reconhecimento da sociedade, do seu trabalho, [...] essas duas últimas gestões estão
tentando construir de aproximação, de reconstrução da identidade do Núcleo pra
prevenção, atenção às vítimas, e não apenas uma imagem repressiva, [...]
policialesca que existia antigamente, que nessas duas últimas gestões estão
enfrentando bastante pra tentar desconstruir, inicialmente, antes de construir um
novo trabalho [...] (Lagosta).

Indicamos que para possibilitar a realização de um trabalho de qualidade no


âmbito do enfrentamento ao tráfico de pessoas, acreditamos ser necessário, em primeiro lugar,
conhecer e discutir a dimensão conceitual problemática e histórica que permeia a definição da
terminologia. Essa aproximação é necessária para que os(as) sujeitos(as) sociais possam se
apropriar das categorias envolvidas e ter condições de propor outras concepções mais
adequadas para o fenômeno, outras estruturas discursivas.

O discurso oficial não deve engessar a ação desses profissionais. Conhecer em


profundidade a questão, questionar, criticar, contrapor-se, são alguns elementos essenciais

73
O NETP/CE passou, ao todo, por três gestões, exercidas por três coordenadoras diferentes: a primeira
permaneceu no cargo entre os anos de 2003-2010, a segunda assumiu no início do ano de 2011 e permaneceu até
março de 2012 e a atual está na posição desde abril de 2012.
145

para possibilitar mudanças efetivas que possam repercutir em âmbito mais ampliado. Essas
mudanças podem trazer avanços para a sociedade como um todo, na percepção e
enfrentamento do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, assim também como no
atendimento e assistência adequados às pessoas que vivenciaram essa situação. Butler (1998)
discute sobre as possibilidades de mobilidade e resignificação dos(as) indivíduos(as) dentro
da ordem socialmente pré-estabelecida:

[...] precisamos perguntar que possibilidades de mobilização são produzidas com


base nas configurações existentes de discurso e poder. Onde estão as possibilidades
de retrabalhar a matriz de poder pela qual somos constituídos, de reconstituir o
legado daquela constituição, e de trabalhar um contra o outro os processos de
regulação que podem desestabilizar regimes de poder existentes? Pois se o sujeito é
constituído pelo poder, esse poder não cessa no momento em que o sujeito é
constituído, pois esse sujeito nunca está plenamente constituído, mas é sujeitado e
produzido continuamente. Esse sujeito não é base nem produto, mas a possibilidade
permanente de um certo processo de re-significação, que é desviado e bloqueado
mediante outro mecanismo de poder, mas que é a possibilidade de retrabalhar o
poder. [...] (BUTLER, 1998, p. 22).

Essa possibilidade de retrabalhar o poder é possível graças a dimensão relacional


que possui – enquanto técnicas e estratégias que repercutem em efeito produtivos – conforme
explica Foucault (2011), afirmando ainda que longe de ocupar um lugar específico e estar
destinado meramente a interdição, o poder gera saber e produz discursos: ―O que faz com que
o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força
que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas [...] forma saber, produz discurso
[...]‖ (FOUCAULT, 2011, p. 8).

O poder, além de sua dimensão produtiva, não se trata de um atributo que apenas
alguns possuem em detrimento dos demais. De acordo com a perspectiva foucaultiana (1987),
todos(as) relacionam-se com ele, e podem lançar mão de estratégias para produzir seus efeitos
de dominação, conforme ressalta:

[...] Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que
não é o ―privilégio‖ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido
pela posição dos que são dominados. (FOUCAULT, 1987, p. 30).

A aprovação das leis no nosso país, por exemplo, conforme regulamentação


estabelecida pela Constituição Federal de 1988, é realizada principalmente por meio do
146

Congresso Nacional, composto por senadores e deputados federais74 eleitos pelo povo
brasileiro que posteriormente são submetidas à sanção presidencial. Entretanto, a elaboração e
reformulação dessas leis pode partir de propostas baseadas em discussões fomentadas por
resultados de pesquisas, debates públicos, experiências institucionais, reivindicações de
movimentos sociais, entidades profissionais, dentre outros.

Partindo dessas premissas, é possível compreender que ―a verdade‖ – considerada


aqui como o discurso oficial do Estado proferido por meio de leis e políticas, tendo em vista a
regulamentação de comportamentos e punições, assim como a definição de fenômenos –
nada mais é do que uma construção discursiva que emana poder. Enquanto tal, pode ser
questionada, desconstruída e transformada pelos diversos atores sociais. Nesse sentido,
enfatiza Foucault (2011): ―[...] a ―verdade‖ é centrada na forma do discurso científico e nas
instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política
[...] enfim, é objeto de debate político e de confronto social‖ (p. 13).

Dessa forma, para Foucault (2011) deve-se considerar que uma perspectiva
mais ampliada de mudança está direcionada a toda uma estrutura de sustentação
discursiva: ―O problema não é mudar a ―consciência‖ das pessoas, ou o que elas têm
na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.‖
(FOUCAULT, 2011, p. 14).

Sem negar a importância do papel ativo dos indivíduos, acreditamos que enquanto
a legislação nacional não for rediscutida e reformulada na tentativa de adequar o conceito de
tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, assim como os outros tipos de tráfico, à
um conceito mais coerente e adequado, afinado com todas as normativas estabelecidas, as
práticas equivocadas irão se perpetuar, embora alguns profissionais inseridos nesse contexto
tenham consciência dessas questões.

74
Com mandatos de oito e quatro anos respectivamente.
147

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Corroborando com as experiências de análises anteriores (monografia de


graduação e especialização), reafirmamos que o estudo do tráfico de pessoas continua a ser
um verdadeiro desafio acadêmico, haja vista a restrita literatura especializada diretamente
voltada ao assunto. Pudemos encontrar algumas pesquisas mais recentes e fizemos uso de
material originalmente escrito na língua inglesa como tentativa de trabalhar melhor alguns
elementos. Contudo, foram principalmente as impressões de campo e a pesquisa bibliográfica
de temas relacionais que proporcionaram os subsídios que viabilizaram o desenvolvimento de
boa parte dessa pesquisa.

Identificamos o tráfico de seres humanos a partir da perspectiva da exploração das


vítimas associada ao contexto capitalista globalizado, que ocorre por meio da submissão à
jornadas exaustivas de trabalho, ―salários‖ insignificantes e ingresso em atividades irregulares
ou não regulamentadas pelo Estado. Nesse fenômeno, incorrem ainda aspectos de dominação
determinados pelas relações de poder socialmente impostas.

Em relação ao exposto no segundo capítulo, o levantamento bibliográfico


histórico aponta que o tráfico de pessoas é fenômeno antigo na sociedade, presente no Brasil
desde o período colonial, onde o translado de negros(as) foi realizado de forma brutal do
continente Africano para inúmeras cidades emergente como Salvador, Rio de Janeiro e
Recife. Alocados nas mais diversificadas atividades, e com total respaldo do suporte jurídico-
legal nacional, esses seres humanos foram explorados por longos e sangrentos anos da história
brasileira.

Devemos ressaltar que as mulheres negras estiveram submetidas às brutais


situações de violência agravadas em virtude de condição de mulher: foram exploradas
sexualmente na atividade da prostituição por seus senhores, violentadas para satisfazer a
lascívia de traficantes, obrigadas ao trabalho extenuante quando gestantes e submetidas aos
maus-tratos de sinhás enciumadas.

No período da Belle Époque, a exploração tomou outros contornos, a finalidade da


prática envolveu naquele momento a exploração sexual de jovens mulheres de origem
europeia, com a presença de muitas judias entre as vítimas. Nesse momento histórico, o
148

Estado se posicionou através de atividades de cunho higienista, realizando senso de prostitutas


e delimitando suas ações no campo da moral e dos bons costumes. Atitudes voltadas para a
deportação de imigrantes foram comuns, não houve preocupação em diferenciar tráfico de
mulheres (brancas) da prostituição voluntária, ou mesmo de prestar qualquer tipo de
assistência à essas pessoas.

As configurações do fenômeno na atualidade, contudo, redesenharam o tráfico de


seres humanos em outros contornos: vítimas alocadas na posição de menos favorecidas (em
função de sua classe e estamento social); e múltiplas finalidades, envolvendo especialmente a
exploração sexual, trabalho escravo em fazendas ou fábricas de costura, casamento servil e
tráfico de órgãos. Tal complexidade aproxima a temática de outras questões como a
prostituição e migração, campos de interseção que têm causado inúmeros equívocos
conceituais e operacionais por parte do Estado.

No caso específico do Estado do Ceará, foco de nossa análise, a predominância


dos casos, conforme demonstrado pela pesquisa documental, recai sobre o tráfico de mulheres
para fins de exploração sexual. Nessa perspectiva, há a dimensão da violência de gênero, haja
vista a desproporcional predominância de mulheres em situação de exploração sexual e a
posição de homens enquanto exploradores (aliciadores, caftens e clientes).

A análise documental – realizada no NETP/CE, entre os processos de 2003-2012


– evidencia, portanto, a existência predominante de jovens mulheres, com faixa etária
predominante entre 19 e 25 anos, aliciadas especialmente para o tráfico interno, de
naturalidade cearense, principalmente da cidade de Fortaleza (33 casos), com baixa
escolaridade e solteiras.

Em relação aos exploradores descritos nos referidos processos, constatou-se uma


predominância de brasileiros. Entre os estrangeiros identificados nessa posição, observou-se
uma incidência mais frequente de italianos. Contudo ressaltamos que a carência de dados é
bastante acentuada, não favorecendo a construção daquilo que poderia realmente ser
considerado como um perfil desses indivíduos.

Ressaltamos ainda, de uma forma geral, que o resultado dessa análise não
assegura um retrato fiel da realidade, tendo em vista que os profissionais que realizam a
149

abertura e classificação dos processos possuem dificuldade para identificar os casos


(conforme constatado no quarto capítulo desse estudo), sem mencionar os casos baseados na
concepção do Código Penal Brasileiro, onde ocorre associação entre tráfico de pessoas para
fins de exploração sexual e migração de prostitutas.

No que se refere a pesquisa documental em relação aos tratados internacionais,


evidenciamos que avançaram na discussão do fenômeno, entretanto, o Estado Brasileiro,
embora signatário desses documentos, mantém uma postura legal pautada, conforme já
exaustivamente enfatizado, na associação direta do tráfico de pessoas com a migração de
prostitutas. Tal posicionamento tem perpetuado práticas históricas que envolvem posturas de
cunho moralista. Inclusive, matérias publicadas pela mídia, conforme apresentadas ao final do
segundo capítulo dessa pesquisa, demonstram que prostitutas têm sido confundidas não
apenas com vítimas de tráfico de pessoas, mas também com criminosas.

Não refutamos que a iniciativa governamental de instituir o Núcleo de


Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) é valida, pois articulou estrutura pioneira no
enfrentamento da questão, tendo em vista que até o momento não haviam instituições públicas
voltadas para a temática. Entretanto, a caracterização legal ambígua do fenômeno repercute
em uma série de problemas de compreensão de aplicabilidade da lei.

Em relação à coleta das falas, realizamos um total de 06 (seis) entrevistas com


profissionais que desempenham, dentre outras atividade, a função de atender e acompanhar as
vítimas e possíveis vítimas de tráfico de pessoas, universo esse composto por psicólogas,
assistente social e bacharéis em direito.

Todas relatam que sentiram dificuldade em atuar com a temática logo que
iniciaram as atividades no NETP/CE, principalmente por falta de conhecimento no assunto e
da metodologia adequada. Relataram ainda que não receberam nenhum tipo de treinamento ou
capacitação específica para trabalhar na estrutura, adquirindo conhecimento através de leituras
e participação em seminários promovidos por outras instituições.

No que se refere às percepções da equipe multidisciplinar entrevistada em relação


ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, identificamos que 05 (cinco) das 06
(seis) participantes conseguem articular uma definição que consideramos como coerente à
150

respeito da questão, contudo, admitem que possuem dificuldade no momento da identificação


prática dos casos no cotidiana de atendimento.

Apenas 02 (duas) das entrevistadas relacionaram essa dificuldade com a


caracterização equivocada que existe no Código Penal Brasileiro, as demais vincularam à
questão especialmente ao depoimento conflitante das possíveis vítimas e à falta de
capacitação dos profissionais, tanto deles próprios, quanto daqueles que compõem outras
instituições ligadas à rede de enfrentamento.

Uma entrevistada específica, a Iguana, verbalizou que a identificação do


consentimento da vítima interfere na caracterização do crime que realiza no seu cotidiano de
atuação. Frisamos, conforme já evidenciam alguns documentos normativos da área75, que esse
aspecto não deve, em hipótese alguma, interferir na caracterização do fenômeno, já que na
grande maioria das situações a vítima possui ciência de que irá realizar programas sexuais,
mas não imagina sob quais condições deverá fazê-lo.

Além disso, no local de origem, a grande maioria dessas pessoas vivenciam


situação de precarização das condições de sobrevivência, o que ocasiona em maiores
possibilidades no momento de assentir com a realização de programas sexuais, tendo em vista
que a proposta do aliciador aparece, muitas vezes, como única alternativa viável de possível
ascensão social e econômica. Baseada nos estudos e na experiência de campo que possuo,
acredito que os aspectos que deveriam centralizar a identificação dos casos de tráfico de
pessoas seriam o aliciamento, o deslocamento e a exploração. Caracterizados esses elementos,
os demais tornam-se adjacentes.

Para concluir, destacamos que a definição de exploração também precisa ser


discutida e as múltiplas finalidades da mesma precisam ser incluídas no Código Penal
Brasileiro para evitar mais ambiguidades, confusões conceituais e arbitrariedades nas ações de
repressão e assistência às vítimas repercutidas pelo NETP/CE. É necessário que exista
adequação dos conceitos e uniformidade entre eles para reestabelecer um discurso oficial mais
adequado às múltiplas e complexas formas pelas quais o fenômeno se apresenta na realidade.

75
Protocolo de Palermo (2000); Pestraf (2002); PRONASCI (2009).
151

Devemos citar que pouco antes da defesa dessa dissertação, no dia 25 de fevereiro
de 2013, foi amplamente anunciado pela mídia o II Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, cujo um dos eixos é articular a reforma no Código Penal para ampliação
das finalidades do crime, com a inclusão do tráfico de órgãos, tecido ou partes do corpo e
trabalho escravo. Ainda assim, muitos elementos continuarão questionáveis, dentre eles, a
definição do que deve ser considerado como exploração sexual, por exemplo.

Não ignoramos, contudo, que os profissionais atuantes também necessitem


incluir-se nessas discussões para amadurecer o entendimento que possuem acerca da questão
e para participar na proposição de novas formas de tipificação legal e normativas de
enfrentamento ao fenômeno, na busca pela garantia dos direitos humanos, assegurando
acompanhamento adequado às reais vítimas de tráfico de pessoas e possibilitando a produção
confiável de dados em relação aos casos, proporcionando o desenho de um perfil mais realista
e confiável de vítimas e agressores.

É verdade ainda que o tráfico de mulheres é um negócio, e como todo negócio


pressupõe demanda e clientes dispostos à pagar, único meio de garantir o lucro das
quadrilhas. O negócio do tráfico de mulheres, portanto, não envolve apenas articuladas redes
criminosas e pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, mas também uma vasta
demanda de clientes disposta à pagar para usufruir da ―mercadoria‖ humana, especialmente se
ela for ―importada‖ e exótica, mas isso é assunto para outra pesquisa.
152

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APÊNDICE A

ROTEIRO DE ENTREVISTA

DADOS DA ENTREVISTA

DATA: _____/_______/_______ HORÁRIO:


LOCAL:
DADOS DO ENTREVISTADO

NOME:
DATA DE NASCIMENTO: FORMAÇÃO:
CARGO OCUPADO NO NETP/CE:
RELIGIÃO:
COR DA PELE:
RENDA FAMILIAR (em salários mínimos):

1. Fale sobre sua experiência no NETP/CE? (atividades que você


desempenha, há quanto tempo trabalha, etc).

2. Para você, o que é o tráfico de mulheres para fins de exploração


sexual?

3. Relate alguns casos que você já tenha acompanhado na sua


experiência aqui no NETP/CE.

4. Você sente dificuldades no momento da identificação prática dos


casos?

5. Quais os procedimentos tomados pela equipe ao se deparar com um


desses casos?

6. Quais são os principais parceiros do NETP/CE atualmente?

7. Na sua opinião, o que poderia ser feito para trazer melhorias no


enfrentamento ao tráfico de pessoas?
ANEXO A

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