Trafico de Mulheres para Fins de Exploração
Trafico de Mulheres para Fins de Exploração
Trafico de Mulheres para Fins de Exploração
FORTALEZA
2013
1
FORTALEZA
2013
2
CDD: 306.74
3
4
5
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço à Deus, que trouxe crescimento espiritual para a minha vida e
nela realizou coisas maravilhosas durante esses últimos dois anos.
À minha querida e amada mãe, minha companheira e amiga, meu sustentáculo de força e
motivação para todas as horas;
À minha sobrinha Alicia, por trazer doçura, esperança e enorme alegria para minha vida;
À minha amiga Lara, por compartilhar alegrias e angústias no percurso desse Mestrado;
À professora Zelma Madeira, por ter acreditado na minha capacidade de avançar nessa
pesquisa e pelos anos de apoio e acompanhamento durante meu período de graduação;
À professora Dolores Mota, por tão prontamente ter aceitado participar da banca de defesa
dessa dissertação.
[...]
[...]
RESUMO
ABSTRACT
The Constitution of the Federative Republic of Brazil in 1988 ensure all persons irrespective
of race, age, religion, gender or social class, full protection of human rights, among which we
can mention to life, liberty and security of person. However, the reality attests to the
systematic violation of these principles, one of which embodiments have been transfigured in
the trafficking of women for sexual exploitation. The practice was highlighted nationally for
the first time by the National Research on Trafficking in Women, Children and Adolescents
(Pestraf), published in 2002, which identified the existence of 241 routes of trafficking for
sexual exploitation in the country. The visibility of the issue mobilized the State to implement
policies addressing to the creation of Offices of Combat, Victims Assistance and Prevention.
In Ceará, the institution works since 2003, however, because of a decree published in 2011,
the organization changed its nomenclature to the Center for Combating Trafficking in Persons
in the State of Ceará (NETP/CE). The researcher's experience as a social worker of the
institution during the years 2008-2011, made possible the observation of difficulties at the
time of identification of cases of human trafficking by the multidisciplinary team that active
structure, resulting in distorted interpretation of situations and punctual attendance. The
central objective of this research is therefore to address the issue of trafficking in women for
sexual exploitation through the perspective of professionals working in the NETP/CE. This
cut gave up due to the predominance of this profile between the care provided by the
institution. To achieve our objective, we use discourse analysis as a method of interpretation
associated with the following techniques: semi-structured interviews, desk research and field
observation. As specific objectives, we conducted bibliographic manifestations of the
phenomenon in Brazil and international documents to which the country became a signatory,
as well as the regulations of the Brazilian state addressing the issue. This survey focused on
highlighting the main features plural and complex trafficking of women, sometimes confused
with prostitution or migration of prostitutes. We also performed, as a specific objective,
document research and analysis in cases filed in the field of research in order to identify the
key characteristics of victims and perpetrators in the trafficking of women for sexual
exploitation. As a way to subsidize our analysis, the extent of gender violence was considered
in view of the fact that the State of Ceará, there is a predominance of women as the main of
possible victims of such violence, as opposed to men, who have been identified as major
explorers, as evidenced by the data collected through the said document analysis. Thus, the
variety of methodological approaches were merged to facilitate the diagnosis proposed in this
critical qualitative research
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................147
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................152
10
APÊNDICES
ANEXOS
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 07 – Faixa etária das mulheres possíveis vítimas de Tráfico para fins de
Exploração Sexual nos Processos do NETP/CE entre os anos de 2003-2012
GRÁFICO 10 – Estado Civil das Mulheres Vítimas/Possíveis Vítimas de Tráfico para fins de
Exploração Sexual de Acordo com os processos do NETP/CE.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 02 - Panfleto (frente e verso) sobre tráfico de mulheres produzido pelo Ministério
da Justiça.
13
INTRODUÇÃO
Nesse contexto, nossa ênfase recai sobre as mulheres negras e nas múltiplas e
diversas formas pelas quais foram exploradas naquele universo. Não apenas violadas em seu
direito de liberdade, mas por sua condição de mulher, muitas africanas e descendentes foram
violentadas sexualmente no cativeiro e/ou no translado para o Brasil. Expropriadas de seus
corpos, foram exploradas no trabalho escravo e na prostituição, sendo os rendimentos
adquiridos nessas atividades de propriedade do seu senhor, conforme atesta Joaquim Nabuco
14
(2010). Maltratadas também pelas sinhás, inúmeras mulheres negras foram mutiladas: olhos
furados, seios decepados e unhas arrancadas.
A posição de gênero também se associa aos fatores que catalisam a ação dos
exploradores. Assim, conforme anunciado, os elementos de raça/etnia não são os únicos que
permeiam o tráfico de pessoas contemporâneo, aspectos relacionados a diversos tipos de
discriminação de origem socioeconômica e cultural se relacionam intimamente com a prática,
que tem por objetivo a sujeição e exploração das vítimas.
1
Definição baseada no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado
Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e
Crianças, mais conhecido como Protocolo de Palermo, publicado no ano 2000.
15
O Brasil, tendo em vista a vasta extensão de seu território – com várias regiões de
fronteira –, características socioeconômicas da população, formação histórico-cultural
machista e racista, concentra elevado número de pessoas passíveis a vivenciar situação de
tráfico. Tal realidade culminou no desenvolvimento de normativas e políticas públicas
voltadas para a questão no país. Contudo, essas iniciativas têm esbarrado em compreensões
enviesadas com relação à definição do fenômeno, culminado em práticas de perseguição de
prostitutas e deportação de imigrantes.
Por considerar a identificação adequada dos casos de tráfico de mulheres para fins
de exploração sexual uma prerrogativa indispensável para o desenvolvimento de estratégias
de assistência e promoção dos direitos humanos fundamentais dessas pessoas, bem como para
evitar a reinserção delas no ciclo do tráfico, acreditamos ser de essencial relevância investigar
como a problemática tem sido percebida pelos profissionais que atuam no enfrentamento da
situação.
16
[...] não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou
tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e, na superfície do solo,
lancem sua primeira claridade. Mas essa dificuldade não é apenas negativa; não se
deve associá-la a um obstáculo cujo poder seria, exclusivamente, de cegar, perturbar,
impedir a descoberta [...] (FOUCAULT, 2008, p. 50)
2
Em todos os relatórios de pesquisa que tive acesso, a definição de tráfico de Pessoas esteve baseada no
Protocolo de Palermo, o qual também discutiremos mais adiante nesse trabalho.
3
Novela escrita por Glória Perez e dirigida por Marcos Schechtman.
19
repercutindo no aumento das denúncias recebidas pelo NETP/CE, conforme ressalta uma das
profissionais entrevistadas nesse estudo, nomeada de Lagosta4:
4
Nomeação fictícia atribuída como forma de garantir sigilo à sua identidade.
5
Projeto de Extensão que ocorreu em parceria da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e Universidade
Federal do Ceará (UFC) através do Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Ética (Labvida/UECE),
Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança (NUCEPEC/UFC) e Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Gênero, Idade e Família (NEGIF/UFC). Trata-se de um programa que visou articular o fortalecimento das
redes de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. As ações previam coleta de dados em
campo à respeito da situação dos municípios em relação à questão (número de denúncias, processos, perfil das
vítimas e agressores, etc.) capacitações para os profissionais da rede e fortalecimento dos Conselhos de Direitos.
20
6
Cursado na Universidade Estadual do Ceará (UECE), cuja conclusão ocorreu no semestre de 2009.1.
7
Cursado na Universidade Estadual do Ceará (UECE) pelo período de 2009 à 2011.1.
21
Nesse sentido, para esse estudo adotaremos a exploração sexual comercial, haja
vista que ocorrem outras manifestações de exploração sexual, com determinações múltiplas
que seriam inviáveis de abordar nesse momento, levando em consideração o caráter restrito
que uma pesquisa representa frente à realidade diversa e ampla que vivenciamos. Dessa
formas, apresentaremos adiante reflexões conceituais tecidas nesse universo.
9
Vários relatos podem ser encontrados no Capítulo VIII do Livro I da obra O Capital, a partir do tópico 3,
intitulado ―Ramos da indústria inglesa sem limites legais da exploração‖ (MARX, 1996, p. 357-370).
24
Marx (1996) explica que tal situação é fruto das disposições socioeconômicas
fomentada pelo sistema capitalista de produção. Todavia, longe de defender que a exploração
ocorreu apenas com a instituição da era capitalista: ―[...] toda história tem sido uma história de
lutas de classes, de lutas entre as classes exploradas e as classes exploradoras, entre as classes
dominantes e as classes dominadas [...]‖ (MARX; ENGELS, 2004, p. 29). Contudo, o autor
enfatiza que o sistema burguês de produção é aquele que proporciona o ápice das relações
predatórias de exploração.
Para defender tal posicionamento, Marx (1996) apresenta, por uma série de
cálculos, fórmulas e argumentos, que a exploração do trabalho humano pode ser
dimensionada pela quantidade de mais-valia (base do lucro) extraída do indivíduo que se
encontra em posição inferior. Para ilustrar de forma bastante resumida, nas palavras do
próprio intelectual: ―A taxa de mais-valia é, por isso, a expressão exata do grau de exploração
da força de trabalho pelo capital ou do trabalhador pelo capitalista.‖ (MARX, 1996, p. 332).
Isso ocorre porque para que seja possível extrair a mais-valia, é necessário impor
ao(à) trabalhador(a) um ritmo cotidiano extra de esforço – que extrapola o trabalho
necessáripara pagar o seu salário – denominado por Marx (1996), conforme já indicamos, de
mais-trabalho ou sobretrabalho (p. 350-351). Dessa forma, é essa atividade, na perspectiva do
estudioso, que possibilita a obtenção e acumulação de lucro para o burguês, conforme
apresentamos no seguinte trecho:
O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que parte da sociedade possua
o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao
tempo de trabalho necessário à sua autoconservação um tempo de trabalho
excedente destinado a produzir os meios de subsistência para o proprietário dos
meios de produção, seja ele proprietário ateniense, teocrata, etrusco, [...] barão
25
Tão logo porém os povos, cuja produção se move ainda nas formas inferiores do
trabalho escravo, corveia etc., são arrastados a um mercado mundial, dominado pelo
modo de produção capitalista, o qual desenvolve a venda de seus produtos no
exterior como interesse preponderante, os horrores bárbaros da escravatura, da
servidão etc. são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho. (MARX,
1996, p. 350, grifo nosso).
[...] essas moças trabalham em média 16 1/2 horas, porém, durante a temporada
freqüentemente 30 horas sem interrupção, sendo reanimadas por meio de oferta
oportuna de Sherry, vinho do Porto ou café, quando sua ―força de trabalho‖ fraqueja.
Estava-se então no ponto alto da temporada. [...]. Mary Anne Walkley tinha
trabalhado 26 1/2 horas ininterruptas, juntamente com 60 outras moças, cada 30
num quarto, cuja capacidade cúbica mal chegava para conter 1/3 do ar necessário,
enquanto à noite partilhavam, duas a duas, uma cama num dos buracos sufocantes
em que se subdivide um quarto de dormir, por meio de paredes de tábuas. Mary
Anne Walkley adoeceu na sexta-feira e morreu no domingo, [...] O médico, Dr.
Keys, chamado muito tarde ao leito de morte, testemunhou perante o Coroner’s Jury
em secas palavras: “Mary Anne Walkley morreu, por excesso de horas de
10
―O capital é trabalho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto
mais quanto mais trabalho vivo chupa.‖ (MARX, 1999, p. 347).
26
11
No Brasil, a regulamentação do trabalho indica como marco jurídico-legal os avanços empreendidos no
período de Getúlio Vargas (1930-1945), que culminarão na Consolidação das Leis do Trabalho em 1943.
(ANTUNES, 2009, p. 86-85).
27
A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa utilidade, porém, não paira
no ar. Determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem o
mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo, diamante etc. é, portanto,
um valor de uso ou bem. Esse seu caráter não depende de se a apropriação de suas
propriedades úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho. [...] O valor de uso
realiza-se somente no uso ou no consumo. (MARX, 1996, p. 164).
Na realidade, Marx (1996) vai além, pois determina que a propriedade do valor de
troca é aquela que caracteriza de fato a mercadoria enquanto coisa mercantil, tendo em vista
que o valor de uso diz respeito ao interesse que o homem direciona ao objeto, enquanto o
valor de troca possibilita dimensionar quanto custa o produto. Portanto, é esse segundo valor
que possibilita que ela se relacione com outras mercadorias:
sexo, ou melhor, enquanto escrava sexual. Nessas condições, ela é explorada tanto pelo
cliente/consumidor como pelo(a) cafetão(ina), que se apropria dos rendimentos financeiros
adquiridos na super-exploração dessa atividade.
De acordo ainda com registro feitos no meu diário de campo no dia 12 de março
de 2008, por exemplo, também podemos identificar elementos que apontam para a super-
exploração do sobretrabalho no cotidiano enfrentado pela vítima de tráfico para fins sexuais:
29
12
Como(a) trabalhador(a) irregular consideramos aqueles(as) que não possuem carteira assinada ou que exercem
atividades que não são reconhecidas como trabalho pelo Estado, como por exemplo a prostituição.
13
Admitindo, contudo, que há outros meios para ―capturar‖ vítimas, como por exemplo através de rapto,
chantagem ou ameaça.
30
cafetão(ina) por exemplo; ou da prática sexual das vítimas, quando nos referimos ao
―cliente/consumidor‖.
Para Weber (1999), a posição social de classe que o indivíduo ocupa na sociedade
contemporânea tem essencialmente relação com o mercado econômico, a partir disso
estabelece relações de poder por meio daquilo que cada indivíduo tem condições de possuir,
ou seja, da propriedade:
estamentos, aos quais podem ser alocados com base nos múltiplos tipos de diferenças
socialmente e culturalmente hierarquizadas, tais como as étnicas, religiosas, raciais,
sexuais, etc. Weber (1999) afirma ainda que ―[...] a diferenciação estamental coincide, por
toda parte, com uma monopolização de bens ou oportunidades ideais e materiais [...].‖
(IDEM, p. 183).
Como meio de explicar essa imposição da vontade, Weber (1999) trata dos
mecanismos de dominação – como exercício de poder – que podem se operacionalizar das
mais variadas formas, destacando especialmente dois tipos: aquela em função de interesses e
aquela em virtude da autoridade:
última se baseia num dever de obediência, sem mais, que é considerado sem atenção
a quaisquer motivos e interesses. (IDEM, p. 189).
Foucault (2011) aborda a questão do poder numa perspectiva mais ampliada, pois
considera a base de compreensão dessa categoria nas complexas relações que permeiam a
produção de coisas, indução do prazer, formação de saber, produção de discursos.
(FOUCAULT, 2011, p. 8). Ainda nas palavras do teórico: ―Deve-se considerá-lo como uma
rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa
que tem função de reprimir‖ (IDEM, p. 8, grifo nosso).
14
―[...] em toda relação de dever autoritária, certo mínimo de interesse em obedecer, por parte do submetido,
continua sendo, na prática, a força motriz normal e indispensável da obediência.‖ (WEBER, 1999, p. 190).
15
Punição no caso da imigração ilegal, inclusive sendo esse tipo de ameaça uma das estratégias utilizadas pelas
quadrilhas no tráfico de seres humanos, onde é comum assustarem as vítimas com o risco de serem deportadas
para o país de origem ao qual muitas não querem retornar.
33
de mecanismos de repressão para que a exploração das vítimas se efetive. Em muitos casos,
conforme demonstraremos adiante, iremos identificar pessoas que se submetem(ram)
passivamente à essa exploração.
percebe-se apenas como uma trabalhadora migrante que teve má sorte [...]‖
(SODIREITOS, 2008, p. 25).
Pessoas traficadas podem apenas querer esquecer o que aconteceu com elas, como se
isso fosse um pesadelo, uma escolha sem sorte mediante a qual elas carregam toda a
responsabilidade ou apenas registram mais uma etapa de vida repleta de violência e
exploração. Elas podem não perceber isso como uma violação dos seus direitos
humanos que necessita ser confrontada. (MARREY; RIBEIRO, 2010, p. 55).
[...] a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela institui
cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até
nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é
destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. (p. 25).
Aquém desses elementos, não podemos ignorar a demanda por esses serviços, ou
seja, a clientela que busca pelo mercado do sexo que, como se sabe (e demonstraremos), é
predominantemente masculina. Tais sujeitos não serão abordados em profundidade nessa
pesquisa, contudo salientamos que eles ocupam um papel fundamental na perpetuação desse
tipo de violência, já que o intuito do traficante de mulheres é lucrar e esse lucro só é possível
se existirem compradores para sua ―mercadoria‖.
Outro dado extremamente relevante em relação aos clientes que podemos pincelar
nesse primeiro momento, embora não seja nosso foco, diz respeito às informações publicadas
pelas pesquisadoras Anderson e Davidson (2002), respectivamente ligadas à Universidade
norte-americana de Oxford e a Universidade inglesa de Nottingham, em pesquisa intitulada
―The Demand Side of Trafficking? A Multi Country Pilot Study‖16. Nesse estudo, que contou
com questionários e entrevistas direcionadas à homens que usufruem do mercado do sexo,
foram inqueridos, dentre outras coisas, se possuíam preferência por prostitutas
estrangeiras/imigrantes e por quais motivos. A pesquisa apontou que o clientes estabelecem
uma hierarquia para essas prostitutas de acordo com o país de origem e raça das mesmas.
Dessa forma, clientes indianos, por exemplo, consideram as prostitutas que trabalham em
Nova Deli (Capital da Índia) da seguinte forma:
In Delhi, most clients imagined dark-skinned women and girls from the Nat Bedia
community as standing at the bottom of this hierarchy, followed by dark-
skinned local sex workers, then by lighter-skinned Nepali sex workers. White
European sex workers were normally placed at the apex of the hierarchy.
Furthermore, some men perceived a link between the client’s social status and
the racial or ethnic identity of the sex worker whose services he consumes.17
(ANDERSON; DAVIDSON, 2002, p. 17).
16
O lado da Demanda do Tráfico? Um Estudo Piloto Multinacional. (Tradução livre da pesquisadora)
17
Em Nova Deli, a maioria dos clientes imagina mulheres de pele escura e meninas da comunidade Bedia Nat
como estando na base desta hierarquia, seguidas pelas prostitutas de pele escura locais, em seguida, pelas
trabalhadoras do sexo nepaleses de pele mais clara. Trabalhadoras do sexo brancas e europeias estavam
normalmente colocadas no topo da hierarquia. Além disso, alguns homens percebem uma ligação entre status
social do cliente e identidade racial ou étnica da trabalhadora do sexo cujos serviços que consome. (Tradução
livre da pesquisadora).
36
Ou seja, de acordo com a pesquisa, o cliente sopesa o preço que paga pelo serviço,
considerando algumas raças/etnias como menos dignas, além de valorizar uma posição
hierárquica que garanta superioridade em relação à prostituta que contrata. Dessa forma, os
clientes consideram importante contratar uma prostituta que para eles seja barata e
considerada como de raça/etnia inferior. Isso garantiria a redução da despesa e o exercício da
dominação ainda mais ampliada.
Minha definição de gênero tem duas partes e diversos subconjuntos, que estão
relacionados, mas devem ser analiticamente diferenciados: (1) o gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.
As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças
nas representações do poder [...] (SCOTT, 1995, p. 86).
The presumption of a binary gender system implicitly retains the belief in a mimetic
relation of gender to sex whereby gender mirrors sex or is otherwise restricted by it.
When the constructed status of gender is theorized as radically independent of sex,
gender itself becomes a free-floating artifice, with the consequence that man and
masculine might just as easily signify a female body as a male one, and woman and
feminine a male body as easily as a female one.18 (BUTLER, 1999, p. 10).
18
A pressuposição de um sistema de gênero binário mantém a crença em uma relação mimética entre gênero e
sexo pelo qual gênero reflete o sexo ou é aprisionado por ele. Quando o status construído do gênero é teorizado
como radicalmente independente do sexo, gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que
homem e masculino possam facilmente significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e
feminino um corpo masculino tão facilmente como um feminino. (Tradução livre da pesquisadora).
38
[...] violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força
para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a
espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger,
torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma
coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de
transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define
como justas e como um direito; 5) conseqüentemente, violência é um ato de
brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza
relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo
medo e pelo terror. (CHAUÍ, 2007, [s.p.], grifo nosso).
Faleiros (2007), numa discussão ainda mais ampliada, identifica diversos tipos de
violência, que envolvem a perspectiva de gênero e relações de poder e dominação numa
sociedade patriarcal: ―A violência praticada pela sociedade patriarcal se realiza de diversas
formas: identitária, física, psicológica, sexual, institucional, social e politicamente.
Articuladas, elas constituem o arsenal de que dispõe o gênero masculino para manter seu
poder sobre os outros gêneros.‖ (IDEM, p. 63).
Goldemberg (2005) indica que a pesquisa qualitativa foi desenvolvida como uma
estratégia de análise para a pesquisa social em oposição à visão positivista na qual as ciências
da natureza estão pautadas. O positivismo, desenvolvido originalmente pelo filósofo Augusto
Comte, atribuía aos estudos sociais uma postura originalmente das ciências físicas, ou seja,
buscava descobrir regularidades ou leis em objetos eminentemente subjetivos. Assim, coloca
Goldemberg, ao eleger o método qualitativo, ―Os pesquisadores qualitativistas recusam o
modelo positivista aplicado ao estudo da vida social‖. (GOLDEMBERG, 2005, p.17).
Deslauriers e Kérisit (2010) indicam que os dados que recebem tratamento por
esse tipo de abordagem são aqueles que: ―[...] se apresentam como resistentes à conformação
estatística. São dados da experiência, as representações, as definições da situação, as opiniões,
as palavras, o sentido da ação e dos fenômenos.‖ (IDEM, p. 147). Portanto, incompreensíveis
em suas relações complexas se investigados sob uma fórmula previamente estabelecida, que
pressupõe aplicação a toda e qualquer situação, independente das determinações sociais,
regionais, econômicas, históricas e culturais.
Para Foucault (2008), o discurso não é apenas ideal, porque possui uma
materialidade que não é determinada através da ―[...] operação expressiva pela qual um
indivíduo formula uma ideia, um desejo, uma imagem [...]‖ (p. 133); e não é intemporal
porque sofre interferência da história, embora considerada em sua descontinuidade, mas não
ignorada na sua unidade quando refere-se ao discurso direcionado ao mesmo objeto. Dessa
forma, o autor define o que considera como um discurso:
Como meio de explicar melhor a análise dos discursos, longe de especificar uma
receita-manual, Foucault (2008) indica ―regras de formação‖ para o enunciado – considerado
como componente fundamental na estrutura do discurso, também chamado pelo autor de
grupos de enunciados – por meio dos seguintes elementos: um referencial; um sujeito; um
campo associado e uma materialidade. (IDEM, p. 130).
Dizemos que quanto mais autônomo for um campo, maior será o seu poder de
refração e mais as imposições externas serão transfiguradas, a ponto,
46
expulsos 491 cidadãos brasileiros da Espanha, por permanência ilegal, dos quais a maioria é
mulheres ligadas à prostituição.‖19 (IDEM, p. 55-56).
19
Dado inclusive que pode indicar também a postura preconceituosa da Espanha em relação à prostituição
feminina brasileira naqueles países.
20
O UNODC coopera com os países para promover treinamento para policiais, promotores, procuradores e
juízes. Ao mesmo tempo, o objetivo dos programas é melhorar os serviços de proteção das vítimas e das
testemunhas oferecidos por cada país.
21
A Sejus, por sua vez, é um órgão do Governo do Estado do Ceará que surgiu em 24 de setembro de 1891 com
a nomeação, por portaria, do primeiro secretário desse órgão: bacharel Waldomiro Cavalcante.
49
delegacia ou instancia do poder judiciário. Não por acaso, tendo em vista que os depoimentos
muitas vezes eram coletados pelo mesmo modus operandi de uma delegacia: enquanto um
profissional fazia os questionamentos, outro digitava as informações tal qual um escrivão da
policia, sem mencionar as buscas ativas através do Gabinete de Gestão Integrada.
22
O símbolo indica a supressão da identificação do local mencionado como forma de garantir sigilo às
informações.
23
Ver matérias publicadas, por exemplo, no Diário do Nordeste, Caderno Polícia (Quinta-feira, 16 de março de
2009, p. 16; Terça-feira, 9 de junho de 2009, p. 14; Domingo, 04 de outubro de 2009, p. 03; Sábado, 17 de abril
de 2010, p. 18; etc).
52
24
Locais como aeroportos, rodoviárias, hotéis, praias, etc.
25
Os locais de realização dessas campanhas são selecionados a partir dos casos já identificados de tráfico de
seres humanos, as mulheres que estiveram em situação de trafico citam zonas de prostituição e locais de grande
fluxo turístico como pontos onde agem os aliciadores. Aeroportos e Rodoviárias também são alvos das
campanhas por serem à porta principal de saída e entrada de pessoas em situação de tráfico no Estado do Ceará.
53
26
O GGI-CE surgiu como consequência da adesão do Estado do Ceará ao Sistema Único de Segurança Pública,
com a finalidade de coordená-lo. Está vinculado à Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social.
27
São considerados membros natos: Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS); Comando-Geral
da Polícia Militar do Estado (PMCE); Superintendência da Polícia Civil; Comando-Geral do Corpo de
Bombeiros Militar (CBMCE); Secretaria de Justiça e Cidadania (SEJUS); Secretaria Nacional de Segurança
Pública (SENASP); Superintendência Regional da Polícia Federal no Estado do Ceará (SRPF/CE);
Superintendência Estadual do Ceará da Agência de Inteligência (SECE/ABIN) e Superintendência Regional da
Polícia Rodoviária no Estado Ceará (SRPRF/CE). Novas entidades, a partir do ano de 2010, passaram a fazer
parte da equipe que compõe o Gabinete de Gestão Integrada no Estado do Ceará, tais como: a Marinha do Brasil;
Exército Brasileiro; Aeronáutica; Casa Militar; Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária
(INFRAERO) e Receita Federal.
28
Integram ainda essa mesma estrutura, como convidados: Perícia Forense do Ceará (PEFOCE), Diretoria da
Guarda Municipal e Defesa Civil de Fortaleza, que representa a Prefeitura Municipal; Coordenação do Núcleo
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP/CE) – como representante da Secretaria da Justiça e Cidadania –
e representantes do Poder Judiciário, Procuradoria Geral de Justiça (PGJ), Secretaria da Fazenda (SEFAZ),
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE), Defensoria Pública Geral (DPG) e Secretaria do
Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS).
29
Secretaria Executiva essa composta um Secretário Executivo e Gerentes de Gestão da Inteligência, Informação
e de Operações.
55
30
De acordo com balanço feito pela Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará, no ano
de 2009, foram realizadas 31 (trinta e uma) operações, resultando em 31 (trinta e um) autos de prisão em
flagrante delito, 21 (vinte e um) termos circunstanciais de ocorrências e apreensão de 16 (dezesseis) armas de
fogo. Já em 2010, o referido balanço aponta que o GGI/CE realizou 50 (cinquenta) grandes operações que
desencadearam em 90 (noventa) autos de prisão em flagrante delito, 29 (vinte e nove) termos circunstanciais de
ocorrência e apreensão de 78 (setenta e oito) armas de fogo com a atuação da equipe em 20 (vinte) municípios
do Estado do Ceará.
56
23h:25m - [...] foi me buscar em casa com motorista da SEJUS e fomos para a 2ª
DP no Meireles. Lá fomos para o auditório onde um coronel explicou a operação e
especificou os órgãos participantes [...] A equipe toda foi para a rua dos Tremembés
e se dividiu para entrar nas boates [...] o procedimento do TSH 31 consiste em
solicitar os RG‘s das garotas de programa e verificar se são maiores de idade e se
são de outras Cidades/Municípios/Estados. [...] (Trecho do Diário de Campo do dia
25 de abril de 2008).
O NETP/CE, além de elaborar tais relatórios, coleta dados das pessoas abordadas
nas ações em instrumental de trabalho elaborado e manuseado por sua equipe multidisciplinar.
Entretanto, não os submete ao GGI/CE por tratarem-se de informações consideradas como
sigilosas. Tal instrumental contém dados como nome, naturalidade, data de nascimento, sexo,
profissão e escolaridade das mesmas. Essas informações são repassadas pelos profissionais da
instituição para uma tabela digitalizada.
para que o indivíduo possa superar aquela situação. É oferecido acompanhamento psicológico
e social sistemáticos e são feitos os encaminhamentos relativos à cada situação.
32
Programa coordenado pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Governo do Estado
do Ceará que, dentre outras ações, encaminha jovens da rede de ensino publico para desenvolver atividades de
estágio em órgãos públicos.
58
[...] atrás das coisas há ―algo inteiramente diferente‖: não seu segredo essencial e
sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi
construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. [...] O que se
encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da
origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate. (FOUCAULT, 2011, p. 17,18).
Para Foucault, não haveria um objeto completamente original, mas somente práticas
de objetivação e, de modo imanente, de subjetivação. Dessa forma, os objetos
seriam correlatos de práticas, não havendo uma essência desses, mas múltiplas
objetivações de práticas heterogêneas. A prática é o fazer, e "o objeto, se explica
pelo que foi o fazer em cada momento da história" [...]. (LEMOS; CARDOSO
JUNIOR, 2009, p. 355)
No que diz respeito a forma como foram transportados(as) da África para outros
continentes, podemos indicar o exemplo emblemático do Brooks, um navio negreiro
construído no século XVIII, desenhado e publicado pelo movimento abolicionista na
60
O poeta Castro Alves (2007) também relata o sofrimento dos negros e negras
capturados(as) no continente africano, apresentando o contraste entre a forma como viviam
em sua terra natal e os maus tratos sofridos desde o momento da captura e travessia no navio
negreiro. Como meio de demonstrar o exposto, transpomos o trecho a seguir:
33
Movimento intitulado de Society for Effecting the Abolition of the Slave Trade (Sociedade pela Efetivação da
Abolição do Tráfico de Escravos – tradução livre da pesquisadora).
61
Foi levado para o convés inferior, onde um cheiro nauseabundo logo o fez sentir-se
mal. Quando dois membros da tripulação lhe ofereceram comida, ele esboçou uma
fraca recusa. Eles o arrastaram novamente para o convés superior, amarraram-no ao
molinete e o chicotearam. Quando a dor percorreu-lhe o pequeno corpo, seu
primeiro pensamento foi fugir pulando na água [...] ainda que não soubesse nadar. E
então descobriu que o navio negreiro era equipado com redes justamente para evitar
esse tipo de resistência desesperada. Assim, a primeira experiência no navio negreiro
e a lembrança que dela lhe ficou, caracterizava-se por violência, terror e impulso
para resistir. (IDEM, p. 119).
34
Gustavos Vassas tornou-se abolicionista, escreveu a primeira autobiografia na perspectiva de um escravizado a
bordo do navio negreiro, mas o relato é bem mais extenso, envolve aspectos da sua vida antes da capturo, o
momento do sequestro e o desenrolar de sua história quando no destino da viagem sombria.
62
Stanfield faz referência ao fato mas se recusa a descrevê-lo – o capitão estuprou uma
menina. Stanfield menciona apenas algo ―praticado pelo capitão contra uma infeliz
escrava de oito anos ou nove anos‖. Embora ele não tivesse coragem de nomear o
crime – ―não tenho palavras para descrevê-lo‖ –, insistiu ter sido ―por demais atroz e
sangrento para passar em silêncio‖. Ele considerou aquele ato um exemplar da
‗barbaridade e tirania‖ cotidianas do tráfico de escravos. (REDIKER, 2011, p. 161).
35
Intitulado de Observations on a Guinea voyage, in a series of letters addressed to the Rev. Thomas Clarkson,
publicado em Londres, 1788.
63
Desde o início da colonização americana até o século XVIII, uma gama de lugares-
comuns jurídicos, teológicos e filosóficos justificara a escravidão de povos
africanos, como os justos títulos (casos de miséria extrema, condenação à morte,
ventre materno escravo e guerra justa), a maldição de Cam (passagem bíblica da
condenação de um dos filhos de Noé) e a releitura escolástica da teoria aristotélica
da escravidão natural. (PARRON, 2011, p. 51).
36
Os Quakers, seita radical protestante na Inglaterra, consideravam a escravidão um pecado, por conta disso, em
1768, mobilizaram-se para enviar ao parlamento uma solicitação pedindo o fim do tráfico de escravizados. O
movimento metodista, através da pregação de seu fundador, John Wesley, disseminou idéias contra a escravidão,
afirmando que preferiam ver as colônias inglesas do Caribe naufragarem do que manter um sistema que ―violava
a justiça, a misericórdia, a verdade‖. (ALBUQUERQUE; FILHO, 2006, p. 173).
64
[...] não havia outro meio de transportar aquela raça [os africanos] à América senão
o tráfico. Por conta da consciência individual correm as atrocidades cometidas. Não
carrega a ideia com a responsabilidade de semelhantes atos, como não se imputam à
religião católica, a sublime religião da caridade, as carnificinas da inquisição. O
tráfico, na sua essência, era o comércio de homens; a mancipatio dos romanos. Sem
a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a América seria ainda um vasto
deserto. (ALENCAR apud PARRON, 2011, p. 11).
Contudo, a referida lei não foi suficiente para extirpar da sociedade práticas de
degradação dos seres humanos com fins de exploração. Os pesquisadores Oliveira e Farias
(2008) evidenciam apontamentos sobre tal perpetuação:
Foi essa cultura de ―coisificar‖ pessoas que se firmou como uma herança
preconceituosa e estratificadora, fomentando ações de violência e segregação social
que perduram até os dias atuais. Uma dessas ações, de violação dos direitos
humanos, é o tráfico de pessoas para a exploração sexual ou o trabalho forçado,
65
crime que rompe a barreira do tempo e que, para continuar existindo, revestiu-se de
formas diferentes, ―adaptadas‖ à modernidade. (OLIVEIRA; FARIA, 2008, p. 45).
A autora enfatiza ainda que a mulher africana, mesmo quando inserida na sua
comunidade de origem, sofria com o domínio patriarcal: ―Essas mulheres estavam
acostumadas a suportar o trabalho de sol a sol, a dor, o cansaço e os castigos impostos por
maridos mais velhos.‖ (IBIDEM, p. 362).
Tanto nos engenhos de açúcar como nas fazendas de café, as escravas grávidas não
se livravam dos castigos violentos – como os pontapés na barriga aplicados pelos
capatazes –, que muitas vezes, eram responsáveis pela morte do bebê dentro da mãe.
Além disso, os senhores sujeitavam suas escravas grávidas ao serviço da roça e às
mesmas tarefas que faziam antes de engravidar, chegando algumas a dar à luz no
momento em que trabalhavam. (DIAS, 2012, p. 363).
Se por um lado elas estiveram sob o jugo escravocrata, por outro sofriam as
consequências de uma cultura machista advinda do próprio continente de origem, ou seja, os
homens africanos também assumiram o papel de perpetradores da violência no contexto do
cativeiro: ―A situação das mulheres ficava ainda mais difícil quando eram observados os
sentimentos de posse e de ciúmes cultivados pelos homens; elas sofriam violências, e muitas
chegavam a ser assassinadas pelos próprios companheiros de escravidão.‖ (IDEM, p. 363).
De acordo com Gilberto Freyre (2006) na clássica obra Casa Grande e Senzala, as
escravizadas foram alvo ainda de maus-tratos cruéis e mutilações por parte de suas patroas –
as Sinhás – que muitas vezes ficavam enciumadas pela beleza daquelas mulheres, belos
dentes e corpos que despertavam o interesse sexual de seus maridos:
Não são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho
contra escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas
bonitas e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira
de doce e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou
despeito mandavam vender mulatinhas de quinze anos a velhos libertinos. Outras
que espatifavam a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar
os peitos, arrancar as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de
judiadas. O motivo, quase sempre, o ciúme do marido. (FREYRE, 2006, p. 421).
67
Ser liberta não eximia as mulheres do ônus de viver em uma sociedade escravista.
As forras enfrentavam inúmeros preconceitos, eram acusadas de ―levar vida airada‖,
de não ter moral. Eram constantemente abordadas pelas autoridades como se fossem
escravas fugidas e algumas chegavam a ser presas várias vezes, amargando
processos judiciais para comprovar o seu status de liberta. Muitas chegaram mesmo
a ser raptadas, reescravizadas e revendidas como escravas. (DIAS, 2012, p. 377,
378).
Farias (2009) trata também da quantidade menos expressiva da mão de obra negra
escravizada no Ceará, indicando inclusive que esse fator contribuiu para a abolição pioneira
no Estado em 1884, já que no restante do país ela consolidou-se apenas em 188837:
37
Associado à isso, Farias (2009) indica ainda a venda de pessoas escravizadas para fora da região e a intensa
campanha abolicionista que se instaurou no Estado a partir de 1879 por influencia do ideário liberal europeu.
(FARIAS, 2009, p. 162).
69
Embora o sistema escravocrata tenha sido abolido, Funes (2007), ao tecer análises
desse momento histórico, destaca o ranço cultural profundamente arraigado na sociedade
brasileira, que repercute até os dias atuais:
[...] o senso comum vendo o escravo sem vontade própria, desprovido de sua
condição humana, percebida apenas como peça do sistema produtivo [...] Condena a
escravidão; mas continua a ver aquele como ser coisificado em sua subjetividade
[...]. (FUNES, 2007, p. 117).
70
O(a) escravo(a) liberto(a), nesse sentido, livra-se dos grilhões físicos, mas
continua cativo(a) de uma sociedade segregadora. Antes escravo(a), agora excluído(a) e
desempregado(a). Assim, na palavras de Funes (2007):
[...] quando o parente não podia ajudar, uma variedade de intermediários com
interesses financeiros entrava em ação. Onde havia uma grande demanda por
trabalho [...] de um lado, uma população ignorante das condições do país escolhido
de outro e uma longa distância pelo meio, o agente ou contratador prosperava.
(HOBSBAWN, 2011, p. 304).
Podemos inferir que a demanda por esses ―serviços‖ era enorme, pois de acordo
ainda com o historiador Hobsbawn (2011), o século XIX marcou a era de trânsito das grandes
massas migratórias ao redor do mundo, especialmente no sentido Europa-América: ―A metade
71
do século XIX marca o começo da maior migração de povos na História. [...] entre 1846 e
1875, uma quantidade bem superior a 9 milhões de pessoas deixou a Europa [...].‖
(HOBSBAWN, 2011, p. 295-296).
Sobre o período da Belle Époque, cabe indicar seu significado: apesar de possuir
raízes na França, influenciou inúmeros territórios aquém do continente europeu. O historiador
Ponte (2000) define esse período histórico como a tradução da ―[...] euforia europeia com as
novidades extasiantes decorrentes da revolução científico-tecnológica (1850-1870 em
diante).‖ (PONTE, 2000, p. 162). Dessa forma, tal momento no Brasil culminou num esforço
72
em transformar a estrutura das cidades do país, assim também como a moda, a economia e os
costumes, de acordo com os padrões vigentes na Europa. Ponte (2000) indica as
metamorfoses trazidas nesse contexto:
Rago (2008) tece ainda consideração sobre o caráter animalesco que as relações
com a prostituta (estrangeira ou não) podem despertar, e as motivações que levam os
fregueses a procurar por esses serviços, evidenciando características de uma cultura patriarcal
e machista:
[...] muitos dos frequentadores do mundo marginal eram homens de classe social
superior, cujas fantasias só poderiam ser compartilhadas por mulheres de posição
social inferior, que não evocam as imagens familiares da esposa, irmã ou mãe, e que
eram consideradas mais próximas do campo da animalidade e das perversões.
(IDEM, p. 260).
A vítima de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, nesse sentido, sofre
com fatores de violência ainda mais brutalizados, pois aliada às mazelas habitualmente
vivenciadas por qualquer prostituta, há ainda a decepção traumática produzida pelo engano e
a exploração sofrida não só por meio dos clientes, mas também através do(a) cafetão/cafetina
para os quais deve repassar a maior parte do dinheiro arrecadado na atividade. Tal figura
exercia sobre ela forte pressão emocional e por vezes violência física.38
38
Aspectos esses, inclusive, deveras semelhantes com o contexto do tráfico de pessoas na atualidade.
39
Final do século XIX e início do século XX.
40
Não significa, evidentemente, que homens e crianças também não tenham vinda, assim também como não
significa que todas as mulheres que migraram para o Brasil foram com a intenção de prostituir-se, entretanto,
para os objetivos propostos nesse trabalho as prostitutas migrantes e as escravas sexuais são colocadas em
evidência.
74
Dentre o perfil dos criminosos responsáveis por aliciar e explorar essas mulheres,
Largman (2008) evidencia os imigrantes judeus, manifestando que apesar da grande maioria
tratar-se de pessoas trabalhadoras e de boa índole, haviam também criminosos experientes e
exploradores de mulheres42, que cruzaram as fronteiras trazendo suas ―mercadorias‖ para
expandir os ―negócios‖:
A partir de 1891, de acordo com Gerardo Bra, houve uma grande leva de imigrantes
judeus, vindos sobretudo da Europa Oriental [...] Infelizmente, no bolo da leva,
chegaram também os traficantes de mulheres destinadas à prostituição, elementos
tarimbados nos bordeis, sobretudo da Polônia, muitos já fichados em diversos
distritos como Lodz, Lemberg e Varsóvia. (LARGMAN, p. 208, 2008).
41
Albert Londres infiltrou-se na realidade do tráfico de escravas brancas em Buenos Aeres, incursão essa que
resultou na publicação do livro chamado Le Chemin de Buenos Aires em 1927.
42
O objetivo de Largman é demonstrar o fenômeno no universo judaico, ela tanto aponta caftens judeus, como
mulheres judias exploradas.
75
No que se refere à atuação das redes criminosas, Rago (2008) relata que rufiões e
cafetinas não apenas faziam a travessia de suas vítimas, mas agiam também nas embarcações,
tentando cooptar jovens estrangeiras que já estivessem a caminho do Brasil. Para tanto, ilustra
suas afirmativas no relato do advogado Samuel Malamud, ucraniano que presenciou a
seguinte situação durante seu trajeto de migração:
Ele se articula com outros caftens, amplia seus negócios, casa-se outras vezes,
importa novas mulheres da França para a Argentina, vende as que lhe desagradam
ou se insubordinam, sem deixar, no entanto, de continuar vinculado à primeira
esposa. Como seus companheiros de ―não-trabalho‖, Victor, ―o Vitorioso‖, circulava
pelas cidades próximas a Buenos Aires [...] mantendo prostitutas em Rosário, centro
comercial mais importante depois da capital, Mendonza, Córboda, Santa Fé, além
das que trabalhavam para ela na capital. (RAGO, 2008, p. 303).
[...] O primeiro ano da guerra liquidou com o negocio da família [...] Sarah, com 15
anos, resolveu interromper o ginásio e começou a trabalhar como costureira numa
fábrica. Certo dia, apareceu um capataz novo, um rapaz moreno, muito elegante e
bonito, Benjamim Tarnow, que começou a dirigir-lhe a palavra, elogiou sua beleza
e, depois de algumas semanas, convidou-a para passear. Aos poucos Sarah
apaixonou-se. Tempos depois ficaram noivos e Benjamin avisou que iriam para a
América do Sul, onde tinha parentes com negócio montado e ricos. [...] No navio ela
percebeu que Benjamim conversava com alguns rapazes. Pareciam seus conhecidos
e olhavam para ela com expressão maliciosa. (LARGMAN, 2008, p. 18, 19).
77
Segundo a estudiosa, assim teve início a saga de muitas jovens mulheres que
tiveram como destino países como o Brasil. Muitos dos aliciadores, conforme já indicado
neste trabalho por Rago (2008), também eram estrangeiros e as autoridades nacionais tinham
pleno conhecimento do fenômeno. Largman (2008) realiza levantamento no Arquivo
Nacional Público, localizado no Estado do Rio de Janeiro, e aponta:
[...]
Caftens presos:
[...] dentro das normas judaicas, os suicidas e as prostitutas são enterrados junto aos
muros do cemitério, como forma de marcar o lugar de exclusão. [...] No caso do Rio
de Janeiro, por exemplo, o primeiro cemitério judaico da cidade pertence à
78
sociedade de prostitutas judias, como uma resultante da expulsão destas pessoas das
entidades judaicas tidas como oficiais e pela estruturação de sua vida comunitária
ser anterior a da organização oficial. (KUSHINIR, 1996, p. 73)
43
Inclusive a data é hoje considerada como marco no enfrentamento da questão e tornou-se Dia Internacional
Contra a exploração sexual e o Tráfico de Pessoas.
79
Assim, o combate ao ―tráfico de escravas brancas‖ esteve por vezes permeado por
noções moralistas e de perseguição às prostitutas. Além disso, na época em questão, Rago
(2008) evidencia que essas mulheres, vítimas de tráfico ou não, eram vistas como escória
social e por isso mais sujeitas às situações de violência e negligência por parte do Estado e da
sociedade: ―Consideradas biologicamente inferiores e, muitas vezes, sendo economicamente
mais pobres, as prostitutas expunham-se a muitas violências emocionais ou físicas.‖ (RAGO,
2008, p. 261).
Mais adiante, a autora aborda o tratamento que era empreendido à essas mulheres,
prostitutas do baixo meretrício, na ocorrência de conflitos, quando eram levadas pela polícia:
―[...] as mulheres [...] recebiam uma ducha de água fria, por vezes uma surra e, quase sempre,
saíam de lá com a cabeça raspada.‖ (PENTEADO apud RAGO, 2008, p. 276).
44
Aqui a autora referia-se à cidade de São Paulo.
80
exploradas: ―[...] profundamente irritado com a proteção que a cafetina [...] recebia por parte
da Polícia de Costumes, o jornal denunciava a agressão que ela praticara, tempos atrás, contra
a meretriz Odette de Camargo.‖ (IDEM, p. 265).
A questão é que, se as praticas de tráfico não são centrais nos mercados globais
transnacionais nem no mundo global em que vivemos, como outrora a
escravatura o foi, elas alojam‑se nas desigualdades e injustiças na distribuição
de riqueza promovidas e fomentadas por esse mesmo sistema mundo.
(SANTOS; et. al, 2009, p. 71).
Para Santos, et.al (2009), existem três elementos desencadeados pela globalização
neoliberal, que favorecem o tráfico de seres humanos contemporâneo, sendo eles:
[...] criação de uma economia global privatizada, com um controlo estatal residual,
em que os mercados locais surgem ligados entre si; a liberalização da troca, com a
diluição das fronteiras para a circulação de pessoas, bens e serviços que sirvam a
45
Como por exemplo o fast food norte-americano ou o fenômeno da cultura cinematográfica hollywoodyana,
que dita certo perfil de atores(izes) e enredos, ocasionando em processo de estranhamento à outras produções
que assumem perfil diferenciado. (SANTOS, 1997).
83
Favorecem ainda o turismo que busca por sexo, comumente conhecido por
turismo sexual, que em geral ocorre na movimentação inversa: pessoas de países ricos buscam
por mulheres nativas nos países pobres. Piscitelli (2002) elenca considerações à esse respeito
das relações desiguais estabelecidas nessa problemática:
46
Levando em consideração a proporção populacional.
85
Tal lógica não é apenas aplicável aos criminosos, mas a sociedade como um todo,
pois a partir do momento em que essa última torna-se indiferente a violência sofrida por
aqueles que já estão excluídos, por estarem enquadrados no patamar daqueles que não têm
utilidade, tornaram-se supérfluos para a sociedade egocêntrica:
O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje, com o
aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas
constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em
termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte
conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar
os homens supérfluos. (ARENTD, 1989, p. 509).
47
Pesquisa Tri-Nacional sobre Tráfico de Mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname,
2008.
86
entretanto, o que mais nos chama atenção são os dados referentes a situação que as mulheres
exploradas enfrentam no local, muitas sendo levada para as regiões de garimpo:
A passagem do Brasil até o garimpo, transporte local e hospedagem ficam por conta
do dono de garimpo. As mulheres ficam à disposição dos garimpeiros durante três
meses, para relações sexuais. O dono desconta no final do mês 10% do salário dos
garimpeiros e paga às mulheres, depois dos três meses, um salário pré- estabelecido.
Elas não podem sair do garimpo, não podem recusar clientes e precisam conseguir
um número máximo de relações sexuais. (SODIREITOS, 2008, p. 51).
Em relação aos aliciadores, a pesquisa evidencia, mesmo que de forma vaga, uma
maioria de homens estrangeiros, com faixa etária entre 28 e 46 anos. Entretanto, a presença de
mulheres nessa atividade também é relatada com uma peculiar particularidade: algumas
residem em outros países, casadas com estrangeiros e, de acordo com a pesquisa, vinham ao
Brasil recrutar mulheres para serem exploradas sexualmente no exterior. (IDEM, p. 102-104).
87
Entretanto, aqui levantamos uma outra hipótese, sem negar a existência dos casos
de tráfico de seres humanos naquela localidade, ou em qualquer outra: pelo caráter
eminentemente complexo do fenômeno, há de se considerar as margens de erro no momento
da caracterização da problemática por parte dos canais de publicação jornalística, fato esse
que pode, por outro lado, gerar um superávit nos casos evidenciados. Portanto, é sempre
necessária uma análise minuciosa das informações divulgadas por essas matérias para
descartar situações de outras naturezas.
[…] it is clear the percentage of Nepali girls in Indian brothels is very high, that
their numbers appear to be increasing, and that the average age at which they are
recruited is significantly lower than it was ten years ago, dropping from fourteen to
sixteen years in the 1980s to ten to fourteen years in 1994. Dr. Gilada of IHO told
our researcher that the youngest girl he had seen in a Bombay brothel was nine
years old.48 (HUMAN RIGHTS WATCH, 1995, p. 17)
Humanitarian groups working in China report the impression that there has been a
great increase in the numbers of women crossing the border since 1998, most of
them looking for opportunities to make money to send back to families in North
Korea. In most cases, the “opportunities” involve the sale of sexual services, either
through prostitution or arranged marriage, sometimes on the initiative of the woman
herself, but often through the agency of a third party who shelters, abducts, or in
some other way controls the woman. The rigors of agricultural and village life have
become less attractive to women in the border provinces in China as mobility and
industrialization have increased, which in turn has spurred the market for rural
brides. 49 (IDEM, 2002, p. 12).
48
Está claro que o percentual de meninas provenientes do Nepal nos bordeis indianos é muito alto, que parece
estar crescendo e que a idade com a qual elas tem sido recrutadas tem diminuído significativamente do que dez
anos atrás, caindo dos quatorze aos dezesseis anos nos anos 1980 para os dez à quatroze anos em 1994. Dr
Gilasa do IHO disse aos nossos pesquisadores que a garota mais jovem que ele viu em um bordel de Bombaim
tinha nove anos de idade. (Tradução livre da pesquisadora).
49
Grupos humanitários que atuam na China relatam a impressão que tem de que tem havido um grande aumento
no número de mulheres que atravessam a fronteira desde 1998, a maioria delas está procurando oportunidades de
ganhar dinheiro para enviar às suas famílias na Coreia do Norte. Na maioria dos casos as ―oportunidades‖
envolvem a venda de serviços sexuais, quer sejam através da prostituição ou casamento arranjado, às vezes por
iniciativa da própria mulher, mas muitas vezes por intermédio de um terceiro que aloja, rapta, ou de alguma
outra forma controla a mulher. Os rigores da agricultura e da vida no campo tornam-se menos atraentes para as
mulheres nas províncias de fronteira na China, ao mesmo tempo em que a industrialização tem crescido, o que,
por sua vez, impulsiona o mercado de noivas rurais. (Tradução livre da pesquisadora).
89
[...] Uma senhora de cerca de 40 e tal anos foi apanhada a transportar uma cabeça e
os órgãos sexuais de uma criança do sexo masculino de cerca de dez anos. Ela trazia
com ela vários sacos com várias coisas dentro e trazia aquele material no meio
50
O valor inicial oferecido às vítimas foi de US$ 10.000,00, entretanto a procura de pessoas querendo vender o
rim foi tão grande que o valor caiu em pouco tempo para US$ 3.000,00.
51
Informações obtidas através da Agenzia Nazionale Stampa Associata (Agência ANSA) [online], acesso em
20/12/2010.
52
A Liga Moçambicana dos Direitos Humanos é uma organização não governamental que foi fundada em 1995
e que se dedica a defender, proteger e promover os Direitos Humanos.
90
dessas coisas dentro de sacos com gelo. O terceiro caso: foi no fim de Outubro, há
cerca de 2 semanas atrás. Um homem dos seus 27, 28 anos trazia carne dentro de um
colman em forma de saco. [...]. No fundo escondido tinha órgãos sexuais de cinco
homens adultos. O guarda de fronteira abriu aquilo e perguntou para onde é que ele
estava a levar aquela carne e depois vasculhou bem e foi quando ele viu aquilo ali.
(LMD, 2009, p. 25)
53
Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT (2008), no Brasil, a maior parte do trabalho forçado
está concentrado nos Estados do Pará, Mato Grosso e Maranhão, sendo 53%, 26% e 19% respectivamente.
91
54
O Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980, permite apenas a entrada de mão-de-obra especializada e de
empreendedores no país. Para os que não se enquadram nesses critérios, as duas únicas possibilidades de
regularização são o casamento com cônjuge brasileiro ou o nascimento de um filho em território nacional, mas a
maioria dos estrangeiro não possuem essa informação.
92
O fato da vítima estar ciente da atividade que vai executar no local de destino
também não descaracteriza a situação de violência sofrida, pois a mesma consiste na
exploração da mesma, que muitas vezes tem de submeter-se a realizar jornadas exaustivas de
trabalho, dividir seus ganhos com terceiros e, em alguns casos, tem seu direito de ir e vir
cerceado. Portanto, aspectos referentes ao consentimento ―dado‖ pelas pessoas envolvidas
nessa situação devem ser compreendidos de maneira aprofundada e essa compreensão é
essencial para uma atuação qualificada das instituições e atores sociais junto ao fenômeno.
Jesus (2003) destaca:
Outro fator que facilita a atuação dos criminosos é a alocação das vítimas em
território estrangeiro. As redes clandestinas de tráfico internacional de pessoas submetem suas
vítimas à um contexto de situação ilegal de imigração, não domínio do idioma, não
93
As vítimas de tráfico não devem ser tratadas como imigrantes irregulares. Em geral,
considera-se que existe o risco do aumento do estigma contra a prostituição e o
combate ao tráfico de seres humanos conduzir à repressão da imigração. Os autores
da pesquisa brasileira consideram fundamental a existência de uma campanha
permanente de sensibilização sobre o tráfico de pessoas. (ICMPD, p. 18, 2011).
Nesse sentido, a promoção dos direitos humanos e sexuais são fundamentais para
possibilitar o processo de desconstrução de posicionamentos enraizados na sociedade. Assim,
o desenvolvimento de qualquer ação de enfrentamento ao tráfico de pessoas deve trazer à tona
a perspectiva do respeito à vida, à diversidade sexual, à liberdade, às diferenças culturais, à
raça, etnia, geração, enfim, à diversidade própria e característica dos seres humanos, que os
tornam singulares e sujeitos com direito ao respeito e à proteção.
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ―política geral‖ de verdade: isto é,
os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que
são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo
de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2011, p. 12).
A Carta Magna, por exemplo, em seu artigo 5º, incisos II e III, estabelece o
compromisso de que ―[...] ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude da lei [...] ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante‖. (BRASIL, 2010). A perpetuação de atividades ilícitas de exploração de pessoas
através do tráfico caracteriza-se, portanto, em grave violação desses princípios. O não efetivo
enfrentamento da questão por parte do Estado reforça essa dimensão.
55
Pesquisa já apresentada no primeiro capítulo desse estudo no tópico que trata sobre o lócus da pesquisa.
97
pelo Protocolo de Palermo, que será discutida posteriormente no ponto 2.2 deste capítulo para
problematiza-la com a definição ainda incipiente do Código Penal Brasileiro (CPB).
profissionais posicionados nas linhas de frente, assim também como a aplicabilidade dos tipos
penais, gerando uma série de confusões no momento da identificação do crime e,
consequentemente, das vítimas.
O arquivo [...] Longe de ser o que unifica tudo o que foi dito no grande murmúrio
confuso de um discurso, longe de ser apenas o que nos assegura a existência no meio
do discurso mantido, é o que diferencia os discursos em sua existência múltipla e os
especifica em sua duração própria. (FOUCAULT, 2008, p. 147).
O ―tráfico‖ está em geral ligado a tratados internacionais que tentavam lidar, entre
fins do século dezenove e início do vinte, com o surgimento de mulheres como
trabalhadoras migrantes no cenário internacional [...] As idéias sobre o tráfico foram
engendradas por ansiedades sobre a migração de mulheres sozinhas para o exterior,
e sobre a captura e escravização de mulheres para prostituição em terras
estrangeiras. A visão de uma sociedade moral subjacente ao cristianismo informava
a definição, e a política do abolicionismo da escravidão negra e do movimento pelo
sufrágio feminino tanto na Europa como nos Estados Unidos ajudaram a dar forma
ao paradigma do ―tráfico de pessoas‖. (KEMPADOO, 2008, p. 57).
56
http://dai-mre.serpro.gov.br/
100
Artigo 7º
57
O referido decreto além de trazer o conteúdo da convenção na íntegra traduzido para o português, apresento-o
também na língua original em que foi elaborado, ou seja, em francês.
102
Artigo primeiro
Quem quer que, para satisfazer as paixões de outrem, tenha aliciado, atraído ou
desencaminhado, ainda que com o seu consentimento, uma mulher ou solteira
maior, com fins de libertinagem em outro país, deve ser punido, mesmo quando os
vários atos, que são os elementos constitutivos da infração, forem praticados em
países diferentes. (CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A REPREÇÃO DO
TRÁFICO DE MULHERES MAIORES, 1938).
Artigo 1
As Partes na presente Convenção convêm em punir tôda pessoa que, para satisfazer
às paixões de outrém:
Assim, a referida Convenção, como sua própria nomenclatura atesta, trata apenas
de aspectos do tráfico vinculado à criança e adolescente, não trazendo elementos no que tange
aos adultos que podem vivenciar a situação. Trás avanços porque prevê comunicação
transnacional entre os Estado com relação aos casos identificados, com o objetivo de
resguardar os direitos da criança/adolescente em situação de tráfico internacional, conforme
atesta o artigo 4º: ―[...] as autoridades competentes dos Estados Partes deverão notificar as
autoridades competentes de um Estado não Parte, nos casos em que se encontrar em seu
território um menor que tenha sido vítima do tráfico internacional de menores.‖
104
[...] a maioria das pessoas traficadas não tem acesso a mecanismos efetivos de
proteção em razão da dificuldade de identificação de casos de tráfico por parte de
autoridades e organismos não governamentais. De fato, a identificação constitui,
hoje, um dos maiores desafios nessa área. (ALMEIDA; NEDERSTIGT, 2009, p. 6).
Nas leituras críticas sobre o Protocolo de Palermo se observa que ele assume uma
posição de aparente neutralidade no que se refere ao debate sobre a prostituição,
obtida às custas da falta de precisão [...] A falta de precisão seria efeito da falta de
acordo dos delegados governamentais, que se alinharam em uma ou outra posição e
105
Uma leitura estrita do Protocolo indicaria que, minimamente, a prostituição tem que
incluir um terceiro, o explorador, para que ela seja considerada como tráfico
propriamente dito. No entanto, as formas dessa ―exploração de outrem‖ não são
explicitadas, e isto causa problemas graves na hora de aplicar medidas repressivas
orientadas pelo Protocolo. (SILVA; BLANCHETTE, 2010, p. 150).
Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele
venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de
alguém que vá exercê-la no estrangeiro.
Outra fragilidade que pode ser apontada no que se refere ao documento é a vaga
definição do que deve ser considerado como traficante de pessoas, podendo abrir margem
para que qualquer indivíduo que auxilie outro, mesmo sem interesse pecuniário algum, à
migrar para exercer a prostituição voluntariamente em outra localidade seja considerado como
criminoso. Tal postura pode abrir precedentes para a repressão da prostituição em nome do
107
Veja ainda que, de acordo com CPB, o ato condenável é ―facilitar‖ o exercício do
meretrício. Dessa forma, se a atividade à ser realizada for de outra natureza, o crime de tráfico
fica descaracterizado. Nesse sentido, podemos inferir que a prostituta está impedida de migrar
para exercer essa atividade em outro local, a menos que o faça sem o auxílio ou convite de
ninguém, o que, tratando-se de viajem internacional é praticamente impossível.
Castilho (2008), ao fazer uma análise das decisões judiciais brasileiras voltadas
para processos envolvendo casos de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual,
identificou que por vezes a falta de clareza do Código Penal fomenta a reprodução da
violência contra a mulher, por não respeitar a autonomia dos indivíduos e por perceber a
prostituição através da ótima moralista:
Oliveira (2008) demonstra que os profissionais atuantes, por mais que tenham
clareza nos conceitos hora considerados, restringem a atuação por falta de respaldo legal, pois
só é possível agir de acordo com os instrumentos disponíveis, dentro dos parâmetros da lei.
Entretanto, destacamos que há de se considerar nesse universo aqueles agentes que nem se
quer conhecem o Protocolo, tendo em vista a ampla gama de atuações no qual estão inseridos,
como, por exemplo, um(a) delegado(a) que trabalha na tipificação dos mais diversos crimes.
A tendência é que esse profissional se baseie estritamente pelo CPB por considera-lo como
único documento legítimo.
se, portanto, considerar aspectos peculiares das vítimas em potencial. A questão que circunda
esses termos repousa no fato de que o sujeito violentado é por vezes considerado ―escória
social‖, um estranho, ou mesmo um ―indesejável‖, por se tratar de uma prostituta, um travesti
ou um imigrante irregular, com origem em país pauperizado.
"Para mim, foi um caso de xenofobia mesmo, porque aqui (na Espanha) virou moda
dizer que os brasileiros vêm para cometer delitos, vêm para se prostituir e que todo
mundo que entra, quer ficar", disse Lupiañez à BBC Brasil. (BBC Brasil, 11 de
janeiro de 2010).
discurso antitráfico que relaciona tráfico de pessoas à prostituição fortaleza tais ações
antimigratórias e xenofóbicas.‖ (IDEM, p. 257).
[...] em muitas nações as penalidades recaem sobre os imigrantes ilegais e não sobre as
quadrilhas internacionais especializadas em tráfico de seres humanos. "Alguns países
ainda tentam criminalizar esse problema sob a ótica da vítima como co-autora do delito",
disse Barreto, durante abertura do I Encontro Nacional da Rede de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, em Belo Horizonte. (AGÊNCIA DO ESTADO, 2010).
Há três tipos de políticas que devem ser consideradas quando se trata de tráfico de
pessoas: políticas econômicas, políticas de migração e políticas de enfrentamento ao
tráfico de pessoas. As últimas só terão algum efeito se as outras duas estiverem em
consonância, fortalecendo as pessoas, ampliando suas oportunidades e acesso aos
seus direitos e tendo uma escolha real de permanecer num lugar ou de migrar.
(HAZEL, 2008, p. 23).
58
GGI é a sigla que designa o Gabinete de Gestão Integrada. A estrutura, coordenado pela Secretaria de
Segurança Pública e Defesa Social, conta com a participação de inúmeros órgãos, dentre eles com o antigo
111
prende cinco pessoas acusadas de prostituição‖ (Diário do Nordeste, 2009, p. 14) 59. O título do artigo denota
que as pessoas foram presas por prostituir-se, e não que foram detidas aquelas que exploravam a prostituição de
outros. No texto, contudo, há a seguinte informação:
Escritório de Enfrentamento e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima (EEPTSH), hoje
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP).
59
Matéria publicada em 22 de setembro de 2009 no caderno Polícia.
60
Matéria publicada no caderno Polícia, no dia 09 de junho de 2009.
112
Para essa pesquisa, utilizamos as informações cadastradas nessa planilha, que vem
sendo atualizada conforme novos processos vão sendo abertos. Nessa planilha, os processos
referentes à anos diferentes ficam em tabelas separadas por abas no mesmo arquivo do
Microsoft Excel. As colunas das tabelas estão dispostas da seguinte forma: número do
processo; delito; ano; nome da vítima; data de nascimento da vítima; idade da vítima; sexo da
114
70 65
60
52 48
50
40
30 29
20 14 18
10 10 11
1 1
0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
61
Em relação à 2012, refere-se até o dia 20 de dezembro.
115
62
Um dos motivos para a redução na participação do Núcleo nas atividades do GGI/CE ocorreu porque aquela
primeira instituição passou a ter dificuldades em conseguir veículo para transportar a equipe multidisciplinar
junto à SEJUS/CE;
63
O Fortal é um carnaval fora de época realizada todos os anos na cidade de Fortaleza, sempre no final do mês
de julho. Conta com atrações que se apresentam em trio elétrico e atrai uma quantidade considerável de turistas.
116
50
40 41
40
30
20 15
9 11 9
10 6
3
0 0 0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
pelos profissionais atuantes no Núcleo são bastante questionáveis. Uma das entrevistadas
nessa pesquisa, inclusive, ilustra a situação:
A gente sempre trabalha aqui com possíveis vítimas... possível vítima de trafico,
afinal quem vai dar o desfecho final ééé... geralmente são os órgãos policiais, que
vão julgar, [...] e aí é que se vai concluir se de fato foi tráfico ou não foi tráfico...
porque a gente sempre fica naquela suspeita, [...] as vezes o crime é meio que
invisível, a gente tem o relato da vítima, mas não tem provas, as vezes de fato
concretas, que deixem tão claro [...]. (Garça).
Os autores alertam ainda que esses dados, na perspectiva deles coletados de forma
distorcida, por vezes são veiculados na mídia como casos comprovados de tráfico de pessoas,
o que ocasiona num panorama nacional fictício, que pressupõe a ocorrência maciça de casos
de tráfico para fins de exploração sexual no país. Contudo, os pesquisadores não refutam
completamente a existência de alguns casos:
64
Considerações mais aprofundadas sobre a confusão conceitual fomentada a partir da definição legal do tráfico
de pessoas no Código Penal Brasileiro e no Protocolo de Palermo estão expostas no terceiro capítulo desse
estudo.
118
3 1
Tráfico Interno
51 Tráfico Internacional
80 71
60 52
40
20 16 15 12
3 4 7
0
2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Outro dado que merece destaque diz respeito ao sexo das vítimas descritas nos
processos. Nesse direcionamento, o levantamento documental demonstrou em números,
aquilo que já era bastante visível pela experiência vivenciada na prática cotidiana de atuação
da pesquisadora no NETP/CE: apenas três processos, num universo de 134 (cento e trinta
quatro) ocorrências catalogadas como possíveis casos de tráfico, descrevem situações
envolvendo homens como vítimas para fins de trabalho escravo laboral. As demais situações
processuais, até o momento de conclusão desse estudo, envolvem mulheres, adolescentes ou
travestis, com a finalidade de exploração no mercado do sexo.
Mulheres
Homens
171
De acordo com esses dados, 171 (cento e setenta e duas) mulheres foram descritas
como possíveis vítimas de tráfico de seres humanos, enquanto apenas 21 (vinte e um) homens
estiveram nessa situação. Percentualmente falando, as mulheres apresentam um universo de
aproximadamente 87% dos casos de tráfico.
pessoas, quando a prática tem por fim a exploração sexual. De acordo com um relatório
publicado pelo Ministério da Justiça, em 2010, têm-se o seguinte panorama:
No que diz respeito à faixa etária descrita nesse universo feminino, e aqui
consideramos apenas as mulheres, elaboramos a seguinte representação gráfica:
GRÁFICO 07 – FAIXA ETÁRIA DAS MULHERES POSSÍVEIS VÍTIMAS DE TRÁFICO PARA FINS
DE EXPLORAÇÃO SEXUAL NOS PROCESSOS DO NETP/CE ENTRE OS ANOS DE 2003-2012
50
46
40
30 Faixa Etária
20 19
15
10 10
4 6
2
0 0
0 à 9 anos 10 à 12 13 à 15 16 à 18 19 à 25 26 à 30 31 à 40 Acima de
anos anos anos anos anos anos 40 anos
De acordo com a projeção acima, temos 02 (duas) mulheres com idades entre zero
e nove anos; 04 (quatro) com idades entre 10 e 12 anos; 10 (dez) com idades de 13 à 15 anos;
19 (dezenove) com faixa etária de 16 à 18 anos; 46 (quarenta e seis) com idades de 19 à 25
anos; 15 (quinze) com faixa etária de 26 à 30 anos; 06 (seis) com idades entre 31 e 40 anos;
por fim, nenhuma possível vítima esteve classificada com faixa etária acima de quarenta anos
de idade nos processo.
São Paulo
Mato Grosso
Amapá
Roraima
Distrito Federal
Amazonas
Pará
Naturalidade
Alagoas
Bahia
Pernambuco
Ceará
Maranhão
Piauí
0 10 20 30 40 50 60 70
3
6
Ens. Fundamental Incompleto
Ens. Fundamental Completo
Ens. Médio Incompleto
5
4
65
A lista dos NETP‘s em funcionamento no país pode ser conferida no site do Ministério da Justiça.
124
4 1
Solteiras
Casadas
Separadas
50
Frisamos ainda que muitos processos não são conclusivos ou não possuem dados
consistentes em relação a esses sujeitos, por vezes indicando apenas o primeiro nome ou
apelido pelo qual era conhecido pelas vítimas ou denunciantes. Como forma de ilustrar o
levantamento realizado, construiu-se a seguinte representação gráfica:
45
Homens
Mulheres
86
Embora os dados disponíveis nos processos do Núcleo não tenham nos permitido
identificar a faixa etária desses agressores/aliciadores, indicamos os dados da mesma pesquisa
acima referenciada: ―Se há uma predominância de vítimas mais jovens, embora aqui a falta de
informações sobre a qualificação dos acusados também seja notada, presencia-se que a
maioria dos implicados possui mais de 30 anos de idade.‖ (IDEM, p.31).
Em relação aos agressores, não foi possível construir um perfil satisfatório, haja
vista a quantidade escassa de informações contidas nos processos analisados. Pudemos apenas
identificar que eles têm sido apontados pelas denúncias, em sua grande maioria, como do sexo
masculino e de nacionalidade brasileira. Ressaltamos que a predominância do sexo masculino
nessa posição, associada ao caráter predominante de mulheres na situação de
vítimas/possíveis vítimas, aponta para a perspectiva da violência de gênero.
O tópico a seguir apresenta a análise dos discursos baseada nas falas dos(as)
profissionais entrevistados(a) no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado
do Ceará. Ressaltamos que tal discussão apresenta apenas um recorte daquilo que pôde ser
percebido através da coleta desses dados, não indicando, de forma alguma, uma verdade
127
absoluta, tendo em vista as inúmeras condições e variáveis, especialmente aquelas para mim
desconhecidas, que eventualmente possam ter interferido no pronunciamento dessas pessoas.
2
Psicóloga
Assistente Social
3
Bacharel em Direito
66
As entrevistas foram gravadas mediante prévia autorização dos(as) interlocutores(as)
67
Secretaria da Justiça e Cidadania, Rua Tenente Benévolo, nº 1055, Meireles.
68
Foram entrevistadas duas coordenadoras que possuem formação em Direito, uma que esteve à frente do
NETP/CE entre o período de março de 2011 à março de 2012, e outra que assumiu a função em abril de 2012 e
encontrava-se nela até o momento da conclusão desta pesquisa. As(os) outros(as) dois bacharéis em direito
trabalham junto à equipe multidisciplinar do local.
128
No Brasil, [...] ao contrário, a cor da pele, mais do que sua origem, definiria as
pessoas socialmente — e serviria de base para preconceitos e discriminações. Isto
permitiria que as pessoas "passem" com mais facilidade de uma categoria racial a
outra e, ao mesmo tempo, reduziria a coesão e identidade interna dos grupos étnicos
ou raciais. (SCHWARTZMAN, 1999, p. 84).
A entrevistada indica ainda que não teve à quem pedir orientação quanto à esses
atendimentos, foi apenas ao participar de uma oficina sobre o assunto, um ano após sua
contratação, em seminário promovido pelo Instituto Aliança69 em parceria com a
Universidade Estadual do Ceará (UECE) e com a Secretaria de Direitos Humanos do
Município de Fortaleza70, que pôde esclarecer algumas dúvidas, pois nesse evento estiveram
presentes profissionais ligados à uma ONG na Bahia que tinham experiência na questão.
[...] na verdade o meu início do trabalho aqui no Núcleo né, foi realmente um
desafio, [...] quando cheguei na área de direitos humanos [...] foi uma novidade
assim e a gente sabe que é um leque, um leque de informações, né... e quando assim,
especificamente o trab... é... trabalhando no tráfico de pessoas, isso foi um desafio
bem maior, porque eu não conhecia a temática, tive que estudar, tive que pesquisar,
né... pra falar realmente e entender como é que se deu todo esse processo né [...]
(Seriema)
69
Instituto sem fins lucrativos intitulado como Organização da Sociedade civil de Interesse Público (OSCIP)
para mais informações, visitar o endereço eletrônico da organização: http://www.institutoalianca.org.br/. O
evento foi realizado como etapa do Projeto Disseminação.
70
Projeto Disseminação, ocorrido em Fortaleza nos dias 13 à 15 de julho de 2009.
130
Outro elemento importante de ser ressaltado é que embora não tenham sido
questionadas diretamente sobre isso, todas as entrevistadas afirmaram que não receberam
nenhum tipo de treinamento ou capacitação específica promovida pela instituição que às
contratou, conforme saliente a Garça: ―[...] eu acho que a gente deveria passar por mais cursos
de capacitação, de... atualização, de re... eu mesmo estou aqui e nunca participei de nenhum
[...]‖ (Garça, grifo nosso).
momentos nas considerações feitas por ela, quando por exemplo, identifica a confusão que
existe entre tráfico-prostituição-migração:
Mas combater o tráfico no meu entendimento e é algo que eu sempre levo nas
capacitações e é uma das minhas falas,, combater o tráfico de pessoas não é
combater a prostituição, combater o tráfico de pessoas não é combater o direito a
migração, é um direito nosso, conquistado, a gente tem que ir. Se a gente tem
possibilidade, hoje é sim, algo muito positivo a gente ter pessoas de classe pobre
viajando, ótimo [...] (Arraia).
[...] da questão da exploração sexual... usar pra obter renda... né... aí no caso teria
que ter um transporte, porque pra ser o tráfico teria que ter algum deslocamento,
né... e existe uma grande dificuldade assim pra quem trabalha é... diferenciar um
pouquinho, por exemplo, porque tem um adolescente que ela é vítima de exploração
sexual, que a gente tá acompanhando, ela é... participa de algumas casas de
prostituição, mas ela não saiu nunca de Fortaleza, são casas daqui, e... hum... ela
mora num bairro.. e... hum... fica rodando nos bairros, então nesse caso ela não seria
vítima de tráfico, não é? Ela seria vítima de exploração, no caso ela teria que ir pelo
menos para outro município, pra Caucaia, pra ser vítima de tráfico... aí esse tipo de
coisa talvez, eu acho, teria que ser melhor definido né, porque o que é que acontece
hoje, a principal característica pra definir se a pessoa é pra exploração sexual
ou se é tráfico, é meramente o transporte de um município pra outro, é uma
questão geográfica, porque se essa menina tivesse num cabaré em Caucaia ela já
era vítima de tráfico. (Iguana, grifo nosso).
outros meios que caracteriza o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, e
não apenas o exercício da prostituição ou outra atividade ligada ao sexo, que muitas
vezes acontece de forma voluntária e em condições razoavelmente adequadas.
(SALES, ALENCAR, 2010, p. 57).
[...] ao meu ver, o meu conceito seria o deslocamento de uma determinada pessoa,
é... o o recrutamento né, o aliciamento também, existem todos os requisitos que
compõem a [trecho incompreensível] do tráfico, para fins de exploração sexual, para
ser alojada em uma casa, se existe uma terceira pessoa que ganh.. é.. que obtenha
uma vantagem econômica é... através dos programas que são realizados com
determinada garota, pra mim o tráfico seria isso, essa transferência, o alojamento,
recrutamento e até mesmo o aliciamento, dessa pessoa com fins de exercer
programas sexuais e uma terceira pessoa estar ganhando em cima dessa pessoa.
(Arara).
Quando a gente vai analisar o...o...os requisitos que existem no Código Penal, todos
os requisitos que compõem o crime de tráfico interno de pessoas não é? Que no caso
seria o recrutamento, o alojamento, o aliciamento, e ver realmente, [bocejo]
configurar e visualizar que existe uma terceira pessoa tendo algum tipo de vantagem
sobre... em cima do programa realizado pela garota. (Arara).
Nesse sentido, para Arara, a caracterização parece ser realizada de maneira muito
clara e pouco questionável, bastando, conforme considera, seguir as orientações do Código
Penal Brasileiro (CPB). Contudo, é interessante mencionar que o CPB não prevê todas essas
etapas, pois considera como traficante aquele que promove ou facilita a entrada, no território
nacional ou internacional, de alguém que irá exercer a prostituição, sendo, por conclusão,
133
considerada vítima aquela que se desloca com o auxílio de alguém para essa finalidade (se
prostituir).
Certamente a Arara repercute um discurso que ouviu falar, mas parece não saber
bem de onde é proveniente, acreditando ser próprio do CPB. Outra entrevistada que
apresentou em sua fala elementos podem indicar uma dissociação entre o documento que cita
e a definição contida nele foi a Dignidade. Quando questionada à respeito do que ela percebe
sobre o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, coloca:
[...] é... esse é uma questão meio que eu penso que a Política Nacional ela tem que
ser reformulada na definição porque realmente para que as políticas comecem
realmente a se efetivar [...]. e que realmente precisa hoje, precisa realmente existir,
é... que a política seja modificada, a política nacional seja modificada para que
a definição do tráfico de pessoas ela possa realmente ter esse amplo
entendimento, pra que tenha política realmente pra efetivação desses atendimentos,
e que os encaminhamentos que nós realizamos eles possam ser concluídos [...]
(Seriema, grifo nosso)
Art. 2º. Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão ―tráfico de pessoas‖
conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de
Pessoas, em especial Mulheres e Crianças [...] (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2008,
p. 67).
Não ignoramos as circunstâncias pontuais das entrevistas, que podem ter sofrido
interferências como nervosismo do entrevistado, mau-humor, preocupações de cunho pessoal,
dentre outras, que possam ter interferido na construção das respostas. Contudo, não podemos
ignorar os dados coletados, que podem indicar colocações incoerentes, reflexo,
possivelmente, de profissionais despreparados, que possuem apenas conhecimento superficial
em relação ao contexto problemático no qual atuam.
71
Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2006.
134
[...] a definição de tráfico acredito que seja é...é.... [breve pausa] falta de perspectiva,
falta de oportunidade, né, que as mulheres, hoje a gente fala assim mulheres, a gente
sabe que o perfil muda muito, não é só mulheres hoje, né... hoje a gente tem
homens, né... tem agora a...a...as travestis né, [...] né, porque assim, quando a gente
atende uma vítima a gente sente a necessidade de ter algo mais consistente pro
atendimento, pra se efetivar no atendimento, nós atendemos uma vítima, por
exemplo, e a gente não tem pra onde encaminhar, se for uma vítima acima de
dezoito anos a gente não tem pra onde encaminhar, então assim, essa definição que
eu faço é...é... assim, falta de oportunidade, eu acredito que, que sejam vítimas é...
é.... que já tem um histórico familiar né....[...] e que os encaminhamentos que nós
realizamos eles possam ser concluídos, [...] mas assim essa definição que eu faço
é...é... é no geral, né... então, não sei se eu contemplei a sua pergunta. (Seriema)
Pronto, a partir do recrutamento, né, das ofertas, das ofertas, que são... que são
oferecidas, né e que .... o recrutamento, o deslocamento, a gente sempre se baseia na
definição do...do... do que é o tráfico, né.... do recrutamento... do aliciamento e a
exploração, dentro outros, né... na conversa a gente vai é...é... no atendimento a
gente vai encontrando mais elementos, mais perguntas, a gente termina definindo,
né, o que é realmente esse tráfico de... de... de...pessoas né... mas assim a definição
maior eu acredito que seja a exploração, a partir do momento que... que há o.... e que
há também o...o...o dinheiro, eu acredito também que é uma das características que a
gente pode tá incluindo pra determinar... é... não é determinar, mas assim tá
caracterizando também como tráfico, um dos elementos né. Eu não sei se foi... se
contemplou.... (IBIDEM)
A... o abuso, o abuso sexual, né.... é.... deixa eu ver o que mais.... [pausa longa]
violência....né, a violência, [pausa breve] todo o tipo de violência, né.... e, deixa eu
ver o que mais a gente poderia tá.... o abuso... violência... acho que a falta de
oportunidade também, né.... acho que.... [pausa longa]. (Seriema)
[...] deve-se ter em mente que a falha na identificação correta de pessoas traficadas
pode resultar na negação dos direitos fundamentais delas. E, portanto, de acordo
com o Relatório do Alto Comissariado das Nações unidas para os Direitos Humanos
sobre os Princípios e Recomendações de Direitos humanos e Tráfico Humano [...]
―Estados têm a obrigação de assegurar que a identificação possa e seja feita.‖
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009, p. 21).
Deixa eu ver aqui...ó, teve um caso, ago... que a gente acompanhou, ano passado, de
um rapaz é... travesti, certo... que voltou de São Paulo e... foi, não foi caracterizado
assim... formalmente, porque ainda tá em inquérito o caso, mas foi até noticiado
que ele foi resgatado de um local onde existiam vários travestis que estavam sendo
explorados, né, exploração sexual, então no caso o que é que se suspeita, que é uma
rede de tráfico pessoas que atua nessa rota Nordeste-São Paulo né, então a gente
acompanhou esse rapaz, né, com... fizemos visitas, a mãe foi que pediu ajuda,
porque ele ligou pra mãe, pedindo ajuda, que não aguentava mais, e não tinha como
vir embora, porque tava devendo muito dinheiro pra pessoa que levou, devendo o
dinheiro do megahair que ele tinha, né... é... é... aí falou que tinha que levar uma
quantia de dinheiro por dia, se não levasse não podia nem entrar, tinha que voltar pra
continuar fazendo os programas, fazia vários programas por noite [...] (Iguana)
Iguana cita de fato uma situação que possui inúmeros indicativos que apontam
para o crime de tráfico de pessoas para fins sexuais: deslocamento (no sentido Fortaleza – São
Paulo) e a exploração sexual no destino final, com o agravante do que parece ser uma
servidão por dívidas e jornadas exaustivas de trabalho. Entretanto, logo no início de sua fala,
ela menciona a preocupação com a não conclusão do inquérito policial, o que dá a impressão
de que isso poderia ser para ela um elemento fundamental na caracterização do fenômeno.
Outra entrevistada, a Garça, quando solicitada para relatar alguns casos de tráfico
para fins de exploração sexual que acompanhou no NETP/CE, menciona a seguinte situação:
Certo... vou falar do caso de uma menina... em que ela foi traficada para a Holanda
eee... infelizmente, ela...aliás, felizmente ela conseguiu se livrar do aliciador que
levou e caiu nas mãos de outro aliciador... esse primeiro aliciador deixou ela numa
estação de metrô, e aí... sem ajuda...sem dinheiro... sem nada...apareceu uma outra
pessoa pra ajuda-la e ela caiu novamente na...na rede do tráfico... e ela voltou ano
passado, grávida...de um...de um árabe,[...] Depois de apanhar muuuito, ela tava
negando a fazer o que eles queriam, que era programas sexuais, apanhou, apanhou,
apanhou, apanhou... e aí levaram ela pro motel e aí exploraram ela no motel de todas
as formas, eu acho que era uns... dois ou eram três rapazes...e aí... largaram depois
ela numa estação de metrô. (Garça).
[...] uma jovem que veio do Pará, claro que tem toda um contexto que ainda tá
sendo analisado pela Polícia Federal, mas é... unindo as várias versões que
surgiram e o que eu posso te compilar é: que a jovem.... saiu des...des..desse Estado,
com promessas de trabalhar no..no...no trabalho doméstico no Suriname, foi aliciada
por uma pessoa, por uma... uma mulher adulta que prometeu...se aproximou da
comunidade, ééé... se da...das amigas desse bairro dela, solicitando mão de obra pra,
pro trabalho doméstico no Suriname, só que hã... todos se organizaram, tiraram
passaporte... hã... organizaram roupas, malas, é, ganharam celular dessa pessoa, que
isso já seria parte do pagamento desse patrão que estaria aguardando cada uma
dessas meninas, no Suriname, eee no dia dessa partida, essa menina, essa jovem que
foi atendida aqui pelo Núcleo, relatou que já numa oportunidade no aeroporto ouviu
que teria ligações dizendo que ―prepara o garimpo, as meninas estão chegando, hoje
vai ter festa no garimpo‖.... então nesse ―hoje vai ter festa no garimpo‖, ela
realmente ficou muito assustada, muito abalada, aí já veio outra versão, que ela diz
que essa moça já estava com o passaporte de todas elas na mão, ela deu um salto e
conseguiu pegar justamente o seu passaporte.... e saiu correndo num contexto de
fuga, é... entrou dentro dum caminhão baú, que transportava água mineral,
garrafinhas pequenas, e dentro desse contexto de fuga pro Ceará, teria passado três
dias viajando e aqui no Ceará chegou para o Núcleo por meio da Delegacia do
Turista, [...] (Lagosta, grifo nosso)
acompanhados, que correspondem àquilo que consideramos nesse estudo como tráfico para
fins de exploração sexual.
[...] a gente não consegue ter uma responsabilização, não consegue ter um inquérito
finalizado. [...] eu tenho os inquéritos, eu tenho alguns que a gente conseguiu
garimpar, que a gente conseguiu identificar, mas eu já vou lhe dizendo: são
pouquíssimos. [...] o Brasil é procurado, as vítimas estão aqui, as meninas estão
indo, né e os criminosos não estão sendo responsabilizados... o Brasil é um terreno
fértil pra atuação da rede de tráfico de pessoas, entendeu? E as vítimas sofrem com
isso. Eu vou bem denunciar se eu vejo que a polícia não ta nem aí? No lugar de me
escutar ela vai ficar é rindo da minha cara porque eu sou prostituta? Né? (Arraia)
Contudo, embora essa entrevistada perceba que há algo errado com a definição
legal do fenômeno, ela demonstra dúvidas em definir se a lei é abrangente demais ou restrita
demais. Iguana discorre ainda, de forma aparentemente contraditória, sobre a questão do
consentimento ―dado‖ pela possível vítima, pois num primeiro momento afirma que o mesmo
é irrelevante para a caracterização do crime e logo depois faz as considerações acima
destacadas em negrito.
[...] os profissionais que lidam conhecem, tendo esse contexto eles vão cuidar [...]
vão cuidar [...] de serem mais, mais pacientes na ouvida. Uma vítima de tráfico
dificilmente vai sentar na sua frente e contar tudo de primeira, ela não vai fazer isso.
Pelo contrário, ela vai tentar mentir pra você o máximo pra guardar pra ela aquela
realidade e não abrir mais pra ninguém. [...] porque ela tem medo [...]. É algo que
ela quer guardar pra ela. Então um profissional, um técnico que atende uma vítima
de tráfico de pessoas... tem que saber disso, não, ―Ai porque eu vou ficar com
raiva‖, [...] ―eu já insisti muito, ela não quis falar pra mim!‖. E ela não vai querer,
você vai ter que conquistar. Entendeu? Então é necessária a capacitação [...]
(Arraia).
[…] there is no formal process of identification and screening. The process of victim
identification is largely conducted on an ad hoc basis by a range of agencies
involved in the counter-trafficking effort, without much of a formal systematic
approach. As a result, a clear understanding of how to identify victims of trafficking
(or offenders) is currently lacking among a large part of the actors who are directly
or indirectly involved in the identification process.72 (IOM, 2005, p. 13).
72
[...] não há nenhum processo formal de identificação e triagem. O processo de identificação das vítimas é
amplamente realizado numa base ad hoc [situacional] por uma série de agências envolvidas no esforço de
combate ao tráfico, sem muito de uma abordagem formal e sistemática. Como resultado, uma clara compreensão
de como identificar vítimas de tráfico (ou autores), não existe entre uma grande parte dos atores que estão
diretamente ou indiretamente envolvidos no processo de identificação. (Tradução livre da pesquisadora)
142
As escravas, essas sim são vítimas. Conheci uma, o pai a vendeu com 16 anos. Isso
acontece muito com romenas e búlgaras. Na rua, uma delas começou a chorar, pedia
por favor que a tirássemos dali. Essas querem fugir, voltar, mesmo que sejam
deportadas, Não conheço nenhuma latina que tenha sido forçada. Mas procuram no
lugar errado, porque buscam vítimas de tráfico entre as que vêm porque querem [...]
(VERÔNICA apud PISCITELLI, 2008, p. 55).
a gente vai averiguar se existem garotas que são de outros municípios e que
estão ali com fins de realizar programas sexuais. Vai ser averiguado se...se existe
o, a, o fav... os artigos que estão tipificados no Código Penal, que é o favorecimento
a prostituição, o rufianismo, tráfico interno ou até mesmo o tráfico internacional.
(Arara, grifo nosso).
Dessa forma, podemos inferir que o sujeito interlocutor assume, através da lei
(respaldo institucional), as condições necessárias para proferir determinado discurso.
Observamos que esse tipo de declarações está ―esvaziada do sujeito‖, na medida em que se
repete na fala de outros sujeitos, constituindo-se o que Foucault (2008; 1996) chama de
enunciados: ―[...] algo diferente de um objeto qualquer fabricado por um ser humano;
modalidade que lhe permite estar em relação com um domínio de objetos, prescrever uma
posição definida a qualquer sujeito possível, [...] estar dotado, enfim, de uma materialidade
repetível.‖ (FOUCAULT, 2008, p. 121,122).
É errado uma prostituta conseguir a ajuda de uma outra prostituta que ta na Europa,
ajuda financeira, pra ir pra lá e se prostituir lá? De jeito nenhum! Na minha
concepção, é direito dela! É direito dela! Né? como é que ela vai pagar essa amiga?
A amiga ta traficando? Não! Ela não ta explorando ninguém, ela ta ajudando a
pessoa a realizar um sonho, a mudar de vida. (IDEM).
144
73
O NETP/CE passou, ao todo, por três gestões, exercidas por três coordenadoras diferentes: a primeira
permaneceu no cargo entre os anos de 2003-2010, a segunda assumiu no início do ano de 2011 e permaneceu até
março de 2012 e a atual está na posição desde abril de 2012.
145
para possibilitar mudanças efetivas que possam repercutir em âmbito mais ampliado. Essas
mudanças podem trazer avanços para a sociedade como um todo, na percepção e
enfrentamento do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, assim também como no
atendimento e assistência adequados às pessoas que vivenciaram essa situação. Butler (1998)
discute sobre as possibilidades de mobilidade e resignificação dos(as) indivíduos(as) dentro
da ordem socialmente pré-estabelecida:
O poder, além de sua dimensão produtiva, não se trata de um atributo que apenas
alguns possuem em detrimento dos demais. De acordo com a perspectiva foucaultiana (1987),
todos(as) relacionam-se com ele, e podem lançar mão de estratégias para produzir seus efeitos
de dominação, conforme ressalta:
[...] Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que
não é o ―privilégio‖ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido
pela posição dos que são dominados. (FOUCAULT, 1987, p. 30).
Congresso Nacional, composto por senadores e deputados federais74 eleitos pelo povo
brasileiro que posteriormente são submetidas à sanção presidencial. Entretanto, a elaboração e
reformulação dessas leis pode partir de propostas baseadas em discussões fomentadas por
resultados de pesquisas, debates públicos, experiências institucionais, reivindicações de
movimentos sociais, entidades profissionais, dentre outros.
Dessa forma, para Foucault (2011) deve-se considerar que uma perspectiva
mais ampliada de mudança está direcionada a toda uma estrutura de sustentação
discursiva: ―O problema não é mudar a ―consciência‖ das pessoas, ou o que elas têm
na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.‖
(FOUCAULT, 2011, p. 14).
Sem negar a importância do papel ativo dos indivíduos, acreditamos que enquanto
a legislação nacional não for rediscutida e reformulada na tentativa de adequar o conceito de
tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, assim como os outros tipos de tráfico, à
um conceito mais coerente e adequado, afinado com todas as normativas estabelecidas, as
práticas equivocadas irão se perpetuar, embora alguns profissionais inseridos nesse contexto
tenham consciência dessas questões.
74
Com mandatos de oito e quatro anos respectivamente.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ressaltamos ainda, de uma forma geral, que o resultado dessa análise não
assegura um retrato fiel da realidade, tendo em vista que os profissionais que realizam a
149
Todas relatam que sentiram dificuldade em atuar com a temática logo que
iniciaram as atividades no NETP/CE, principalmente por falta de conhecimento no assunto e
da metodologia adequada. Relataram ainda que não receberam nenhum tipo de treinamento ou
capacitação específica para trabalhar na estrutura, adquirindo conhecimento através de leituras
e participação em seminários promovidos por outras instituições.
75
Protocolo de Palermo (2000); Pestraf (2002); PRONASCI (2009).
151
Devemos citar que pouco antes da defesa dessa dissertação, no dia 25 de fevereiro
de 2013, foi amplamente anunciado pela mídia o II Plano Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, cujo um dos eixos é articular a reforma no Código Penal para ampliação
das finalidades do crime, com a inclusão do tráfico de órgãos, tecido ou partes do corpo e
trabalho escravo. Ainda assim, muitos elementos continuarão questionáveis, dentre eles, a
definição do que deve ser considerado como exploração sexual, por exemplo.
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ROTEIRO DE ENTREVISTA
DADOS DA ENTREVISTA
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DATA DE NASCIMENTO: FORMAÇÃO:
CARGO OCUPADO NO NETP/CE:
RELIGIÃO:
COR DA PELE:
RENDA FAMILIAR (em salários mínimos):