A Figuração Cinematográfica Da Experiência Sensorial Do Espaço Arquitectónico
A Figuração Cinematográfica Da Experiência Sensorial Do Espaço Arquitectónico
A Figuração Cinematográfica Da Experiência Sensorial Do Espaço Arquitectónico
A FIGURAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA
ARQUITECTÓNICO
T R A B A L H O D E P R O J E C TO
M E S T R A D O E M D E S E N V O LV I M E N TO D E P R O J E C TO C I N E M ATO G R Á F I C O -
E S P E C I A L I Z A Ç Ã O E M D R A M AT U R G I A E R E A L I Z A Ç Ã O
Lisboa, Setembro/2016
INSTITUTO POLITÉCNICO DE LISBOA
A FIGURAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA
ARQUITECTÓNICO
Argumento.
Lisboa, Setembro/2016
Agradeço a todos aqueles que contribuíram para a realização do presente projecto,
particularmente aos meus pais, à minha irmã, ao Pedro Castro Neves, à Filipa Correia,
à Sónia Pereira, à Madalena Areal, à Rita Cruchinho Neves, ao Hugo Salvado, ao
professor orientador Vítor Gonçalves, e ao professor co-orientador João Maria
Mendes.
Ao Gil e ao Gaël
A primeira parte procura uma definição para o objecto do projecto enfatizando as suas
qualidades matéricas e sensuais. A dança surge neste âmbito como meio privilegiado
de vivência do espaço arquitectónico.
No último capítulo, o filme Casa, Corpo sem fim exibe uma abordagem experimental
à figuração da experiência sensorial do espaço arquitectónico. A dança surge em
paridade com o cinema como modo elevado de recriação do espaço.
V
ABSTRACT
The present project aims to investigate the representation modalities of the sensorial
experience in architectural space, which call out for the total sensibility of the
spectators’ body. The work is organized in two parts.
The first part looks out for a definition of the project’s object emphasizing its sensual
and material qualities. Dance appears in this context as an elevated way of
experiencing architectural space.
The second part explores distinct ways of representing cinematically the architectural
experience. It is divided in three chapters:
Finally, the film Casa, Corpo sem fim presents an experimental approach to the
representation of the sensorial experience in architectural space. Dance appears along
with cinema as a high means of recreating space.
VI
ÍNDICE
RESUMO ............................................................................................................... V
ABSTRACT ........................................................................................................... VI
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 1
PARTE I
A EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO ESPAÇO ARQUITECTÓNICO .......... 3
PARTE II
A FIGURAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO
ESPAÇO ARQUITECTÓNICO .......................................................................... 15
CAPÍTULO I
O CINEMA COMO DISPOSITIVO PRIVILEGIADO DE FIGURAÇÃO E
COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO ESPAÇO
ARQUITECTÓNICO ........................................................................................... 16
CAPÍTULO II
A FIGURAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO
ESPAÇO ARQUITECTÓNICO .......................................................................... 23
Nota ......................................................................................................................... 23
VII
1. O háptico ............................................................................................................ 24
Conclusão ................................................................................................................ 51
CAPÍTULO III
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 64
APÊNDICE ............................................................................................................ .
VIII
INTRODUÇÃO
A primeira parte deste projecto expõe uma síntese que encerra uma reflexão sobre o
objecto que pretendemos pensar e figurar cinematograficamente - a experiência
sensorial do espaço arquitectónico - para que seja mais clara a sua compreensão. O
pensamento sobre a vivência do espaço tem como referência o movimento crítico ao
ocularcentrismo na arquitectura - que emergiu fortemente na primeira década do
século XXI - com o propósito de uma rehierquização da visão perante os restantes
sentidos. Isto quer significar uma enfatização das qualidades sensuais e matéricas do
espaço e no conseguinte apelo à consciência e ao corpo na sua totalidade sensível. A
dança surge neste âmbito como um meio superlativo de vivência do espaço
arquitectónico.
O primeiro capítulo aborda três questões que, no nosso entender, fazem do cinema um
meio privilegiado para compreender e figurar o tema escolhido, permitindo a
problematização da arquitectura enquanto prática artística desencadeadora e
construtora de experiências emocionais e significativas.
1
Pickpocket (1959) de Robert Bresson e Páginas Escondidas (1992) de Alexander
Sokurov.
O terceiro e último capítulo expõe as intenções do projecto fílmico Casa, Corpo sem
fim, que pretende figurar e recriar através do dispositivo cinematográfico a
experiência arquitectónica, enquadrando-o na tendência da arte contemporânea. Esta
vivência é no contexto deste filme realizada por meio do movimento dançado.
Procuramos estabelecer relações com as sequências fílmicas analisadas e os conceitos
expostos no capítulo anterior.
2
PARTE I
A EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO ESPAÇO ARQUITECTÓNICO
3
1. A experiência sensorial do espaço arquitectónico
Moholy-Nagy considerava não existir uma ideia clara sobre o conceito de espaço, no
entanto antes de procurar uma definição, atenta que o espaço é um meio expressivo e
uma experiência humana. É na física que encontra um ponto de partida para uma
tentativa de definição de espaço: “o espaço é uma relação posicional entre corpos”
(Moholy-Nagy, 2005: 195).
Considera ainda que o espaço é uma realidade da nossa vida e pode ser experienciado
de um modo orgânico, isto é, a experiência do espaço pode ser realizada através da
utilização consciente dos nossos sentidos. Como expõe:
1
A cinestesia é a percepção ou sensibilidade da posição, deslocamento, equilíbrio, peso e
distribuição do próprio corpo e das suas partes. http://www.priberam.pt.
4
“(...) pode ser vivenciado por meio do sentido do tacto. Outras possibilidades de
vivência do espaço encontram-se nos órgão acústicos e nos órgãos de equilíbrio; além
disso, elas também estão presentes noutros modos de sensibilidade dos nossos corpos.
A consciência a respeito desses âmbitos sensíveis prestará também à arquitectura um
grande serviço” (Moholy-Nagy, 2005: 196).
Esta reflexão sobre o espaço já encerra um ponto de vista que inclui a noção de
participação sensível. Isto quer significar, que o corpo experiencia o espaço
arquitectónico através de um movimento consciente, convocando os sentidos, num
todo sinestésico2.
O espaço arquitectónico surge deste ponto de vista para além da suas características
físicas: forma, matéria, coordenadas geométricas e dimensões fixas. Só adquirindo
verdadeiro sentido quando vivenciado pelo homem por meio do movimento.
2
A sinestesia tem que ver com a produção de uma sensação através de um outro sentido. Ver
adiante p.38.
3
Pallasmaa, Juhani, The Eyes of the Skin, Architecture and the Senses, 2005.
5
periférica, que em diálogo com os restantes sentidos envolve-nos no mundo,
proporcionando uma arquitectura da proximidade e do intimismo. Segundo o autor
uma experiência plena do espaço arquitectónico encerra uma participação do corpo
como um todo que convoca de maneira equivalente os nossos sentidos. Como expõe:
“Qualquer experiência significativa da arquitectura é multissensorial; as qualidades do
espaço, da matéria e da escala são percepcionadas de igual modo por meio dos olhos,
ouvidos, nariz, pele, esqueleto e através dos músculos” [trad. a.] (Pallasmaa, 2008:
41).
Outro elemento relevante da experiência arquitectónica tem que ver com o apelo
intrínseco dos objecto arquitectónicos. Segundo Henri Bergson, existe uma acção
implícita em todos os objectos ou estruturas que nos envolvem. Isto quer significar no
contexto deste projecto, uma narrativa descrita pelo modo como o espaço foi pensado,
desenhado e construído, e pela relação de posição entre as partes que o constituem, a
sua topologia. Esta acção implícita pode convocar o corpo humano para um
movimento físico que varia consoante a sua predisposição para se relacionar com o
espaço. As acções latentes que o espaço arquitectónico encerra não estão
condicionadas somente à sua função utilitária, reflectem possíveis e múltiplas
reacções do corpo, como refere o filósofo, em Matéria e Memória (1895): “os
6
objectos (...) devolvem portanto ao meu corpo, como faria um espelho, a sua
influência eventual (...) Os objectos que cercam o meu corpo reflectem a acção
possível do meu corpo sobre eles” (Bergson, 1999: 15). O corpo humano reage ou
não à influencia e apelo dos espaços, edifícios e objectos, conforme a sua
predisposição para agir. Por exemplo, pode seguir um percurso conforme indicado
pela forma, matéria e cor do pavimento, ou pode subverter esse percurso e recriar um
outro caminho através do espaço, sem atender às referências predefinidas, com vista a
alcançar o mesmo lugar. Esta possibilidade de movimento é um aspecto inseparável
do modo como experienciamos a arquitectura.
7
Steen Eiler Rasmussen, arquitecto dinamarquês, numa reflexão realizada no final dos
anos cinquenta, considera que as experiências que acumulámos na infância são
essenciais para podermos entender a arquitectura e os elementos que a constituem4.
Na infância entramos em contacto e familiarizamo-nos com o mundo dos objectos,
ocasiões que nos possibilitam aprofundar a relação sensorial com o espaço
envolvente. A utilização dos sentidos oferece-nos uma percepção acerca do carácter
agradável ou desagradável desses objectos, constituindo-se como uma forma de
aprendizagem primordial.
Nesta exploração táctil e sensorial apreendemos as características das coisas que nos
rodeiam e aprendemos a apreciá-las de acordo com o seu peso, solidez, textura, cor,
temperatura5. Numa fase posterior do crescimento, já não temos necessidade de tocar
e manipular os objectos; depois de os explorarmos vezes suficientes, somos capazes
de os apreender recorrendo somente ao sentido da visão. Como expõe Rasmussen:
“Quando nos referimos a uma chávena como tendo uma forma “suave”, é sobretudo
devido a uma série de experiências que acumulámos na infância que nos ensinaram o
modo como os materiais duros ou moles, respondem à manipulação. A ideia de
suavidade ou rigidez, adquirida a partir de objectos pequenos e manipuláveis, pode ser
do mesmo modo aplicada às grandes estruturas” [tradução da autora] (Rasmussen,
1992: 21).
A memória que adquirimos das experiências à escala da mão - das formas e dos
materiais - é indispensável para apreciarmos e vivenciarmos as qualidades de um
edifício ou estrutura edificada, seja ela de pequena ou grande escala. Por exemplo, se
atentarmos num arco construído em tijolo à vista, somos capazes intuitivamente de
apreender a delicadeza da forma curva, e ao mesmo tempo a maleabilidade do
material principal que constitui o tijolo, a argila, mesmo que esta se apresente
solidificada no momento da construção do arco.
4
Rasmussen, Steen Eiler, Experiencing Architecture, 1959.
5
Esta fase do desenvolvimento infantil corresponde ao estágio sensório-motor, na teoria
cognitiva de Jean Piaget.
8
De modo a construímos a nossa vivência presente, temos de valorizar as experiências
sensoriais da infância. A experiência passada vai contribuir para a nossa relação
sensível com os objectos e o espaço arquitectónico. Como diz Rasmussen: “Visto que
a nossa compreensão e os nossos sentimentos estão alicerçados no passado, a nossa
relação sensual com um edifício tem de respeitar essas memórias. Imagens,
ambientes, formas” [trad. a.] (Rasmussen, 1992: 25).
Com uma abordagem semelhante, centrado sobretudo na atmosfera que diz respeito à
combinação que a luz e a matéria proporcionam ao espaço construído, sendo a relação
destes elementos componentes do espaço que convoca a nossa memória das pequenas
percepções, Peter Zumthor reflecte sobre a sua prática arquitectónica:
9
As memórias de infância não servem só o arquitecto no exercício da sua profissão,
são essenciais para a nossa vivência. A informação adquirida na infância vai moldar o
modo como sentimos a arquitectura, porque fornece as bases para a nossa percepção
da matéria, da forma e do espaço. Assim, parece-nos imprescindível a convocação das
nossas memórias corporais, fundamentais na recriação consciente, atenta, e sensual do
espaço arquitectónico.
10
2. Recriar o espaço arquitectónico: o corpo que dança
“o espaço é vivenciado de modo mais imediato por meio do movimento, num grau
mais elevado por meio da dança. A dança é ao mesmo tempo um meio-essencial para
satisfazer desejos de configuração de espaço. Ela pode condensar o espaço, pode
dividi-lo: o espaço dilata-se, afunda e paira-flutua em todas as direcções” (Moholy-
Nagy, 2005: 195).
“A arquitetura é criada, 'inventada de novo', por cada homem que anda nela, que
percorre o espaço, subindo as escadas, ou descansando sobre um guarda-corpo,
levantando a cabeça para olhar, abrir, fechar uma porta, sentar-se ou levantar-se e ter
um contato íntimo e ao mesmo tempo criar 'formas' no espaço; o ritual primitivo do
qual surgiu a dança” (Bardi cit. por Oliveira, 2006, 358).
6
Moholy-Nagy defendia conceito de Obra de arte total.
11
Segundo a arquitecta modernista, o espaço arquitectónico não é um objecto acabado,
só se realiza inteiramente por meio de uma dança coreografada pelo homem que
instaura um tempo e um lugar, e não através de um movimento funcional, rotineiro e
limitado, ou de um movimento desatento. A dança é formada por gestos e
movimentos conscientes e atentos ao mundo envolvente que podem trazer para a
nossa vivência um estado de harmonia desaparecido da experiência arquitectónica. O
movimento dançado realiza-se ao som da música que emana do próprio espaço
arquitectónico, das suas matérias constituintes.
De um modo mais aprofundado, José Gil numa reflexão sobre o corpo que dança,
atenta que este evolui num espaço próprio, o espaço do corpo, que considera
paradoxal, porque embora seja diferente do espaço objectivo7, não está afastado dele,
interligando-se completamente até não ser possível distingui-lo desse espaço. O
espaço do corpo é espaço objectivo investido de afectos e forças novas. Gil diz:
“Como se recobrissem as coisas com um invólucro semelhante à pele: o espaço do
corpo é a pele que se prolonga no espaço é a pele tornada espaço. De onde as extrema
proximidade das coisas e do corpo” (Gil, 2001: 58).
Para o filósofo, este espaço não é produzido só pelos bailarinos ou desportistas, é uma
realidade constante, desde o momento em que há uma acção afectiva do corpo; trata-
se de um espaço intensificado em relação ao tacto comum da pele. O espaço do corpo
funciona como uma extensão do próprio corpo8, alargado os seus limites físicos e os
seus contornos visíveis, excedendo o espaço objectivo; as suas coordenadas,
orientações e referências fixas:
7
No contexto deste projecto, considera-se que o espaço objectivo equivale ao espaço
arquitectónico, embora Gil se refira ao espaço em geral.
8
O autor refere a seguinte experiência: “completamente nus, mergulhados numa banheira
funda, só com a cabeça de fora, façamos cair na superfície da água, aos nossos pés, uma
aranha. Sentiremos o seu contacto sobre toda a nossa pele. A água criou um espaço do corpo
delimitado pela pele-película da água da banheira (Gil, 2001: 58).
12
“O corpo move-se nele sem enfrentar os obstáculos do espaço objectivo estranho, com
os seus objectos, a sua densidade, as suas orientações já fixadas, os seus pontos de
referência próprios. No espaço do corpo, este cria os seus referentes aos quais as
direcções exteriores devem submeter-se” (Gil, 2001: 61).
Gil refere que este espaço encerra vários aspectos paradoxais como a inexistência de
limites internos enquanto, observado de um ponto de vista exterior, se trata de um
espaço finito; ou o facto da sua dimensão primordial ser a profundidade, não
perspectivista, mas topológica. Trata-se de uma profundidade não mensurável10, o que
distingue o espaço objectivo do espaço do corpo. O autor refere: “O que é próprio
desta profundidade é ligar-se ao lugar, dizendo-se então topológica: é uma certa
ligação do corpo com o lugar que escava nele a sua profundidade. O espaço do corpo
é esse meio espacial que cria a profundidade dos lugares” (Gil, idem: 65). Esta
dimensão permite ao bailarino misturar-se com o espaço objectivo com a
possibilidade de se dilatar, torcer, dispersar e reunir num só ponto.
Segundo este ponto de vista, o corpo que dança não evolui no espaço comum, mas
num espaço e num tempo particulares; os movimentos do bailarino formam unidades
espaço-tempo. Deste modo, o bailarino transforma com os seus gestos e o seu
movimento o tempo cronológico e o espaço objectivo.
9
Gil refere o exemplo do coreógrafo e bailarino Rodolf von Laban que pensou um espaço em
forma de icosaedro. O espaço do corpo é uma “experiência vivida do bailarino que se sente
evoluir dentro de uma espécie de involucro que suporta o movimento” (Gil, 2001: 59).
10
“São por assim dizer dilatações e dobragens, no mesmo lugar e não numa extensão
objectiva. Por exemplo só o desdobrar do espaço graças à profundidade faz com que o
bailarino adquira uma “lentidão eterna” ao executar o movimento (Gil, idem: 66).
13
As cidades ocultas. 1.
Em Olinda, quem lá for com uma lente e procurar com atenção pode achar em
qualquer parte um ponto não maior que uma cabeça de alfinete que se o
observarmos um pouco ampliado se vê dentro dele os telhados as antenas os
candeeiros os jardins os lagos, as faixas a atravessar as ruas, os quiosques nas
praças, os campos de corridas de cavalos. Esse ponto não fica ali: ao cabo de
um ano achamo-lo do tamanho de meio limão, depois como um cogumelo
porcino, depois como um prato de sopa. E eis que se transforma numa cidade
em tamanho natural, encerrada dentro da cidade de outrora: uma nova cidade
que abre caminho no meio da cidade de antes e a empurra para fora.
14
PARTE II
A FIGURAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO
ESPAÇO ARQUITECTÓNICO
15
CAPÍTULO I
O CINEMA COMO DISPOSITIVO PRIVILEGIADO DE FIGURAÇÃO E
COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO ESPAÇO
ARQUITECTÓNICO
“No filme Nostalghia, as imagens do quarto de Doménico, com a chuva a entrar através
do telhado, estão entre as imagens arquitectónicas mais fascinantes que foram criadas
até hoje (...) A qualidade dos detalhes e das associações, a fusão da figura e do fundo,
16
da matéria e da luz trazem à memória a complexidade do espaço, da ornamentação, do
trompe d’oeil e da luz, no interior das igrejas rococós bávaras” [tradução da autora]
(Pallasmaa, 2007: 91).
“O que o filme propõe ao espectador não é que nele encontre o real, mas o inverso:
propõe-lhe que nele mergulhe e seja depois capaz de ver, no real, e nele inscrever,
percepcionando-o emocionalmente de um modo novo, o que começou por ver no ecrã
(o exercício de matriz realista a que Bazin chamou “alucinação verdadeira”); novas
figurações que o filme lhe revelou e que ele poderá inscrever, ou não, na experiência
vivida. Um olhar educado pela imagem não percepciona o mundo de modo banal,
porque inscreve no mundo o que aprendeu com a imagem” (Mendes, 2012: 27).
17
fazem-no reflectir sobre a sua maneira de recriar atmosferas arquitectónicas: “A arte
de Kaurismaki confere aos seus filmes uma sensação de conforto (...) Construir casas
como Kaurismaki faz filmes é o que eu gostaria de fazer” [trad. a.] (Zumthor, 1996:
48).
“O filme com os seus grandes planos extrai, do inventário do mundo exterior, detalhes
habitualmente escondidos de acessórios familiares, explorando meios banais sob a
direcção genial da objectiva; e ao fazê-lo, alarga a compreensão das mil determinações
de que depende a nossa existência, ao mesmo tempo que nos abre um campo de acção
imenso e insuspeitado” (Benjamin, 2011: 37).
18
técnicas cinematográficas: dos movimentos de câmara, dos efeitos de câmara lenta ou
de aceleração, dos ângulos de câmara, da tipologia dos planos e da montagem.
11
No âmbito deste projecto consideramos a percepção natural como aquela que não é
mediada por nenhum dispositivo mecânico ou tecnológico.
19
3. O cinema como dispositivo que convoca a fisicalidade do espectador
Na sua reflexão sobre a obra de arte Benjamin defende no início do século XX, um
novo modo de percepção e apropriação dos objectos, que Mendes refere como o
“carácter revolucionário da recepção ‘táctil e distraída’ do filme pelas massas”
(Mendes, 2011: 06). Este novo modo de recepção encerra uma supressão da distância
entre o espectador e a obra: o paradigma da pura contemplação estética, entendida
como a separação entre o sujeito e o objecto desaparece. A experiência óptica e
distante de observação da representação clássica, dá lugar a um tipo de percepção que
implica um estimulo sensorial, a percepção táctil.
Esta percepção “táctil e distraída” é criada na relação das massas com o filme que na
distracção que lhe é característica ao envolverem-se fisicamente com a obra
instauraram um novo modo de recepção: “a massa dada a sua própria distracção,
recolhe no seu seio a obra de arte, transmite-lhe o seu ritmo de vida, abraça-a nos seus
fluxos” (Benjamin, 2011: 42). E ainda, o carácter táctil do filme alicerçado no seu
dispositivo mecânico, produz um choque traumatizante, isto é, o modo como a
imagem se transforma sistematicamente sem se deixar fixar, confere um carácter
físico à recepção.
20
O autor defende que o cinema estimula de imediato o corpo, convocando a reacção da
totalidade dos sentidos, num processo que antecipa a reacção cognitiva. O espectador
é solicitado pelo que vê, a percepção torna-se uma alteração física, isto é, uma
intensificação das sensações corporais, em vez de um processo puramente mental de
identificação, como refere: “A percepção volta-se para o corpo do espectador,
afectando e alterando esse corpo, em vez de constituir uma série de representações
para o reconhecimento do espectador” [trad. a.] (Shaviro, 2006: 50.1).
Embora esta reflexão seja relevante ao âmbito deste projecto, no que diz respeito a
noção de cinema como um dispositivo que provoca manifestações e reacções físicas
no espectador que antecedem o processo cognitivo, interessa-nos, sobretudo, outras
problemáticas que se afastam do conceito de contágio pensado por Shaviro.
Estas questões são abordadas na teoria fílmica de Laura Marks que se debruçou sobre
a relação háptica e erótica entre o espectador e o filme. A autora desenvolveu o
12
Por exemplo o filme Un Chien Andalou (1929) de Luis Buñuel, mais concretamente a
sequência em que o olho é cortado por uma lâmina, provoca uma reacção de repulsa. Esta
violência visual segundo Shaviro, estimula uma excitação visceral no espectador,
transportando a visão para um estado de auto-aniquilação. Isto quer significar que perante a
violência da imagem a visão torna-se intolerável. Como refere: “Todo o cinema tende para a
disposição despedaçada do espectador no momento em que a lâmina corta o olho em Un
chien andalou. O filme extingue o poder da visão” [tradução da autora] (Shaviro, 1993: 54,5).
21
conceito de visualidade háptica 13 , como uma alternativa cinematográfica à
representação clássica ocidental, com base num corpo de filmes que exploram temas
ligados à interculturalidade - filmes realizados por mulheres, filmes feministas e
filmes experimentais - e que apresentam outros modos de representar o mundo
empregando uma visão mais intimista e atmosférica que contrasta fortemente com o
ponto de vista exposto por Shaviro.
13
Ver Capítulo II p.36.
22
CAPÍTULO II
A FIGURAÇÃO CINEMATOGRÁFICA DA EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO
ESPAÇO ARQUITECTÓNICO
Nota
“Qualquer objecto filmado (...) é ou pode ser signo de uma outra coisa, remetendo para
um imaginário individual ou socialmente determinado que de algum modo o
transfigura, dando-lhe polissemia e convidando-nos a ver nele um invisível não
explicitamente referenciado” (Mendes, 2012: 27).
23
1. O HÁPTICO
O termo háptico tem a sua origem no “verbo grego hapto” que significa tocar e
remete para a sensação táctil. O adjectivo foi primeiramente utilizado, no campo
cultural e da imagem, pelo historiador de arte do séc. XIX, Aloïs Riegl, que na sua
análise sobre diferentes concepções do espaço na evolução da arte antiga, distingue o
carácter háptico da arte egípcia, da visão eminentemente óptica da arte romana14,
como expõe: “O háptico não designa uma relação extrínseca entre a visão e o tacto,
mas antes uma ‘possibilidade do olhar’, um tipo de visão distinto do óptico: a arte
egípcia é tacteada pelo olhar, concebida para ser vista de perto” (Riegl cit. por
Deleuze, 2011: 204).
O historiador austríaco considera por exemplo, a visão próxima e táctil das Pirâmides
egípcias que desfaz a volumetria, rebatendo-a numa superfície, como refere Gilles
Deleuze: “É pois uma geometria do plano, da linha e da essência (...) que também vai
tomar conta do volume ao cobrir o cubo funerário com uma pirâmide, ou seja ao erigir
uma Figura que somente nos oferece a superfície unitária de triângulos isósceles”
(Deleuze, 2011: 204). Opondo este modo do olhar à visão distante e óptica do Panteão
Romano. O primeiro tipo de visão estabelece uma relação directa, não mediada com o
espaço arquitectónico, recorrendo o segundo à representação.
14
Riegl, segundo Patrícia Castello Branco, divide a arte antiga em três fases: “a primeira,
claramente háptica, mantem tanto quanto possível, a aparência de um objecto unificado,
isolado, aderindo a um plano a que chama ‘o plano háptico’. Esta fase encontra-se
optimamente ilustrada na arte egípcia antiga. A segunda fase, ou fase intermédia da arte grega
clássica, é marcada pelo surgimento de projecções de objectos na superfície, mas estes estão
ainda claramente ligados ao plano de fundo. Finalmente na terceira fase, que corresponde ao
estilo óptico da arte romana, os objectos aparecem na sua total tri-dimensionalidade.
Encontramo-nos face a um plano óptico em que o espaço é reconhecido como um espaço
mensurável, auto-contido” (Branco, 2013: 473).
24
2. O ESPAÇO HÁPTICO E O ESPAÇO ÓPTICO
Gilles Deleuze e Félix Guattari, no ensaio Mil planaltos (1980), partem dos conceitos
de Alois Riegl, de espaço háptico - visão aproximada, e de espaço óptico - visão
distante, desenvolvendo depois de um modo livre os seus conceitos de espaço liso e
nómada, e espaço estriado e sedentário. Estes espaços não são da mesma natureza,
podem simplesmente opor-se, ou de um modo mais complexo só existir devido às
misturas entre si, o que não impede a distinção entre eles.
O espaço liso e háptico - visual, auditivo ou táctil - o termo háptico é mais adequado
que o termo táctil pois une dois órgãos dos sentidos, a visão e o tacto, e pressupõe que
o olho pode ter outra função que se distingue da função óptica. É um espaço em que
visão é aproximada até à perda de referências, como referem Deleuze e Guattari a
propósito do acto de pintar em Cézanne: “falava da necessidade de já não ver o
campo de trigo, de estar perto demais, perder-se, sem referência, em espaço liso”
(Deleuze, Guattari, 2004: 626). Ao contrário do espaço estriado e óptico cujo modelo
visual é um espaço longínquo.
Trata-se de espaço direccional, definido por uma variação constante das referências,
orientações e ligações, por exemplo, o deserto, a estepe, o gelo ou o mar, são espaços
de pura conexão. O modelo visual do espaço liso corresponde a muitos observadores e
ao conceito de mónade15, no entanto excede-o e torna-se nómada. Isto é, as mónades
dão origem a um espaço nómada, dado que estabelecem entre si ligações tácteis. Por
15
A mónade, segundo Deleuze, “é uma célula, mais uma sacristia do que um átomo: um
compartimento sem porta ou janela, onde todas as acções são interiores (...) A mónade é a
autonomia do interior, um interior sem exterior” [tradução da autora] (Deleuze, 1991: 233).
25
sua vez estas ligações são feitas de um modo infinitamente variável o que remete para
os espaços riemanianos16. Por oposição, o espaço estriado e óptico define-se por uma
orientação espacial constante e referências fixas, correspondendo a um observador
imóvel exterior. É neste espaço que se constitui a perspectiva euclidiana17.
Dentro deste universo, Deleuze encontra no cinema moderno - que utiliza raciocínios
abstractos e subjectivos de composição para reconstruir a realidade - espaços
fragmentados e desconectados, cujas relações se estabelecem por vizinhança, de um
modo háptico como no espaço liso, e ainda, as conexões entre estes espaços vizinhos
não são predefinidas e fazem-se de inúmeras maneiras, à semelhança dos espaços
riemanianos em que “cada vizinhança é, pois, como um pequeno bocado de espaço
euclidiano, mas a ligação de uma vizinhança à vizinhança seguinte não é definida e
pode fazer-se de uma infinidade de maneiras” (Deleuze, Guattari, idem: 617).
16
O espaço riemaniano é um espaço matemático apresentado no capítulo O liso e o estriado
de Mil Planaltos, Capitalismo e esquizofrenia 2, 2004.
17
A perspectiva euclidiana organiza geometricamente o espaço da representação segundo um
único ponto de vista central e fixo.
26
partes não é predeterminada, mas pode fazer-se de múltiplas maneiras: é um espaço
desconectado, puramente óptico, sonoro, ou mesmo táctil (à maneira de Bresson)”
(Deleuze, 2006: 169).
Na sua reflexão sobre o cinema, Deleuze coloca em relação o espaço liso e háptico de
Riemann com o espaço do cinema moderno. Partindo desse confronto desenvolve o
conceito cinematográfico de espaço qualquer 18 , onde o espaço fragmentado e
desconectado de Bresson apresenta a sua primeira forma.
18
Ver p.28.
27
3. O ESPAÇO QUALQUER: A RECRIAÇÃO AFECTIVA DO ESPAÇO
ARQUITECTÓNICO
“Os afectos não têm a individuação das personagens e das coisas, mas também não se
confundem no indiferenciado do vazio. Têm singularidades que entram em conjunção
virtual e constituem de cada vez uma entidade complexa. São como pontos de fusão, de
ebulição, de condensação, de coagulação (...)” (Deleuze, 2009: 160).
28
O grande plano, para o filósofo francês, tem a função de exprimir o afecto como
entidade, e o rosto em grande plano é considerado como o puro material do afecto. No
entanto, o plano médio ou o plano geral podem tornar-se equivalentes ao grande
plano, se recusarem a perspectiva e a profundidade. Isto é, o afecto pode existir sem a
apresentação do rosto e sem a utilização do grande plano, e faz referência a diversos
cineastas, como a Robert Bresson e ao seu cinematógrafo.
19
Bresson, Robert, Notas sobre o Cinematógrafo, 2000.
29
O espaço e os objectos não são apresentados no seu cinema em planos de conjunto,
mas fraccionados - bocados de uma sala, de uma porta ou de uma cadeira - e
mostrados, segundo ligações que constroem uma realidade que tende ao fechamento,
mas que encerra em si uma grande liberdade na relação das partes e na criação de
novos sentidos. Em Bresson essa liberdade na composição é apresentada de uma
maneira táctil.
20
Pascal Auger, cineasta e artista de vídeo. Colaborou com Gilles Deleuze na investigação
sobre o cinema experimental e contribuiu para a criação do conceito de espaço qualquer.
http://www.actu-philosophia.com/spip.php?article316.
30
O espaço qualquer não é um espaço abstracto, apresenta um carácter próprio, mas
onde não existe homogeneidade, perde a sua singularidade clássica: espacialidade,
forma, matéria, coordenadas, relações métricas, função. Trata-se de um espaço
heterogéneo onde impera a potencialidade, isto é, a conexão das suas partes
constituintes não está fixada: “É um espaço de conjunção virtual captado como puro
lugar do possível” (Deleuze, 2006: 169). Um espaço que privilegia outros modos de
ligação entre as suas partes fragmentadas, através dos movimentos, dos ritmos, das
velocidades e das intensidades. A montagem utiliza estas componentes com uma
grande liberdade: o raccord - princípio de conexão entre as imagens e entre os sons -
deixa de efectuar-se segundo uma lógica causal. E é esse tipo de estratégia que
conduz à grande inventividade na recriação dos universos singulares, tão marcantes
no cinema de Bresson.
Do ponto de vista de Deleuze, o espaço qualquer é mais apto, se for comparado com
o rosto ou o seu equivalente, à transmissão de emoções e afectos, e refere o
pensamento de Pascal Bonitzer: “entramos num sistema de emoções muito mais subtil
e diferenciado, menos fácil de identificar, capaz de induzir afectos não-humanos”
(Deleuze, 2009: 170). O filósofo pensa que o espaço qualquer é a substância genética
da imagem-afecção e considera que o cinema de Bresson, através da sua utilização
exprime o afecto - o afecto espiritual - de um modo háptico.
31
3.2. Análise fílmica: O espaço qualquer de Pickpocket, a recriação afectiva da
experiência arquitectónica do quarto de Michel
Pickpocket
21
Ver Parte I.
22
Ver Fig. 1.
32
compartimento. O quarto apresenta ao longo do filme, uma força centrípeta,
intensificada pela escala dos planos de Bresson - planos médios e grandes planos -
que tendem ao fechamento, e constitui-se como um elemento que organiza a vivência
de Michel, onde este treina e prepara os roubos, e para onde volta, independentemente
do sucesso ou fracasso dos mesmos. O seu movimento pendular entre o regresso ao
quarto e a fuga para o exterior só termina na cena final, no encontro com Jeanne.
23
Os modelos anónimos de Bresson - não actores - não representavam, mas encarnavam as
personagens. O cineasta procurava assim desconstruir ideias estabelecidas, de modo a
aproximar-nos do real, e por sua vez criar novas relações entre som e imagem, de maneira a
podermos percepcionar as pessoas tal como são, sem vícios e afastadas dos significados que
habitualmente projectamos nelas: “Modelos. O seu modo de ser as pessoas do teu filme
serem eles mesmos, permanecerem aquilo que são. (mesmo em contradição com o que tinhas
imaginado.)” (Bresson, 2000: 75).
33
planos de conjunto, mas através de planos médios e grandes planos que enquadram
partes do corpo do protagonista, do espaço, e dos elementos arquitectónicos.
O quarto é recriado pela ligação afectiva dos planos fragmentados, através de uma
montagem que assimila os planos médios à figura do grande plano. A experiência do
espaço é construída por meio de inúmeros pontos de vista sobre os objectos, o corpo e
a forma do espaço: “Muitas perspectivas da mesma coisa, como um pintor que pinta
várias telas ou executa vários desenhos do mesmo tema e que, de cada vez, progride
34
em direcção à justeza (Bresson, 2000: 92). Este tipo de montagem potencia e
transforma o pequeno habitáculo.
35
4. A IMAGEM E O SOM HÁPTICOS: A RECRIAÇÃO AFECTIVA DA
EXPERIÊNCIA SENSORIAL DO ESPAÇO ARQUITECTÓNICO
24
Entende-se o corpo do filme como: “massa plástica feita de imagens em movimento e
sons” (Mendes, 2009: 27).
25
Ver p.24.
36
Sobchack26. Segundo a autora, “o espectador, em vez de observar o cinema através de
uma moldura, janela ou espelho, partilha e entra no espaço cinemático de um modo
dialógico” [trad. a.] (Marks, 2002: 13). A noção de sujeito passivo desaparece para
dar lugar a um movimento participativo, criando-se assim uma relação que está para
além do limiar da simples contemplação.
26
Concretamente no ensaio The Address of the Eye, A Phenomenology of Film Experience,
1992.
37
No caso em que as imagens se apresentam continuamente indefinidas, o espectador
terá de desenvolver a capacidade de trazê-las do seu estado latente. É aquilo que a
autora refere como visão voluntária e intencional, quando o sujeito e objecto da visão
se constituem um ao outro. O espectador ao envolver-se profundamente com a
imagem renuncia ao controle visual e à separação que este implica. Isto sugere uma
relação erótica que constrói uma intersubjectividade, no sentido de um
reconhecimento mútuo entre o corpo do espectador e o corpo do filme. Como expõe:
“As imagens hápticas são eróticas independentemente do seu conteúdo, porque
constroem uma relação particular de intersubjectividade entre o corpo e o filme” [trad.
a.] (Marks, 2002: 13).
A visualidade háptica não diz respeito só à questão formal, mas sobretudo, à maneira
como nos podemos relacionar intimamente com o filme. Deste modo, a experiência
cinematográfica pode tornar-se num encontro intenso e sensorial.
38
4.2. Imagem-tempo - imagem táctil
27
Deleuze considera como referência o ensaio Matéria e Memória (1895); a noção de
imagem pensada por Bergson na perspectiva da duração.
28
Segundo Humberto Eco, a noção de obra aberta diz respeito à ideia de que uma produção
literária não se encontra de todo acabada em si mesma e plenamente definida enquanto
estrutura finita, pelo contrário, possibilita diversas interpretações e reformulações.
http://www.edtl.com.pt/business -directory/6325/obra-aberta/.
29
Para o filósofo a situação sensorial-motora desenvolve-se num meio distinto que diz
respeito às causas e efeitos da acção: “A situação sensorial-motora tem por espaço um meio
bem qualificado, e supõe uma acção que a faz descobrir, ou suscita uma reacção que a ela se
adapta ou modifica” (Deleuze, 2009: 17).
30
Na reflexão de Deleuze, a imagem óptica e sonora pura não se opõe à imagem táctil, mas
exprime-se nela.
39
“Faz apreender, é suposta fazer apreender algo de intolerável, de insuportável. Não
uma brutalidade como agressão nervosa, uma violência ampliada que se pode extrair
das relações sensoriais motoras na imagem acção. (...) Trata-se de algo de demasiado
poderoso, ou demasiado injusto, mas por vezes, também de demasiado belo, e que, por
isso, excede as nossas capacidades sensoriais motoras” (Deleuze, 2006: 33).
Segundo Deleuze, o táctil pode constituir uma imagem sensorial pura se as mãos
renunciarem às suas funções preensivas e motoras para se organizarem como puro
tacto. Apresenta como exemplo, o cinema de Werner Herzog, concretamente o filme
Kaspar Houser (1974) que exibe uma procura das sensações tácteis, através da
utilização de imagens de visões oníricas coexistindo com outras de subtis gestos
tácteis, “por exemplo a pressão do polegar e dos dedos quando Kaspar se esforça por
pensar” (Deleuze, idem: 25). Outro exemplo de imagem táctil, é o filme Pickpocket de
Bresson, já abordado neste capítulo, que torna o tacto um objecto para o olhar.
40
Palavras, sons, e até os ruídos se tornam para além da sua decifração literal,
‘imaginal’, ondas, vibrações, ondulações.
Luigi Nono,
s
19º Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea, 1995
Embora não possamos tocar o som com os ouvidos, podemos em paridade com a
visão percepcionar o espaço envolvente de um modo háptico. A audição háptica
acontece quando os sons se ouvem como um todo indiferenciado, no momento
anterior à identificação daqueles que nos cativam, como expõe Marks: “A audição
háptica diz respeito ao breve momento em que os sons se apresentam indistintos antes
de seleccionarmos aqueles que são mais relevantes” [trad. a.] (Marks, 2000: 183).
Este modo de audição não estabelece uma hierarquia entre os variados sons do
contexto, percepcionando-os de uma maneira homogénea. Opondo-se à audição que
percepciona a envolvente de um modo mais instrumental, detendo-se e valorizando
sons específicos.
41
No contexto cinematográfico, o som háptico funciona como uma lógica semelhante à
da imagem háptica. Pode manifestar-se, por exemplo, no som ambiente31, dado que
este se liberta da consciente procura da sua origem sendo percepcionado pelo
espectador como uma massa sonora indiferenciada. Este tipo de sonoridade segundo
Michel Chion: “envolve a cena e habita o seu espaço sem colocar a questão da
identificação ou visualização da sua causa: pássaros a cantar, sinos a tocar” [trad. a.]
(Chion, 1994: 31).
No entanto, da mesma maneira que a imagem háptica pode conter situações muito
detalhadas em que são perceptíveis tanto a figura isolada como o conjunto, o som
háptico também pode resultar num todo uniforme, formado por elementos inteligíveis
e definidos, que devido a esse facto se tornam insignificantes. Como diz André Bazin
a propósito do cinema de Jacques Tati: “São raros os elementos sonoros indistintos
(...) Os diálogos longe de serem incompreensíveis, são, isso sim, in-significantes, e a
respectiva in-significância é revelada pela sua própria precisão” (Bazin cit. por
Deleuze, 2011: 41).
A audição háptica parece constituir-se na área de influência daquilo que Chion define
como audição reduzida. Um modo de percepção que se distingue da audição causal e
31
Chion nomeia igualmente o som ambiente de som-território, pelo facto de estabelecer uma
geografia e um lugar particulares.
42
da audição semântica, embora durante a experiência fílmica os três modos de
percepção auditiva possam sobrepor-se e relacionar-se de uma maneira complexa32.
A audição reduzida centra-se nas propriedades do próprio som, nas suas qualidades
intrínsecas, independentemente da identificação da sua causa ou fonte - audição
causal - ou da compreensão do seu significado - audição semântica - O som - vozes,
ruídos, tocado por um instrumento - é ele mesmo um objecto com características
matéricas e texturais em lugar de servir de veículo para uma mensagem.
32
O autor considera que o processo auditivo é heterogéneo e define três modos de audição: a
audição causal, a audição semântica e a audição reduzida. Este último modo de percepção
foi desenvolvido a partir do pensamento de Pierre Schaeffer.
43
4.4. Análise fílmica: a imagem e o som hápticos de Páginas Escondidas, a
recriação afectiva da experiência sensorial do espaço arquitectónico
Páginas Escondidas
44
paciente que reinventa todas as coisas, mas também e sobretudo na forma segundo a
qual ele ocupa conscientemente o seu próprio espaço: a superfície sem profundidade
do quadro ou da parede” (Rancière, 1999: 89).
O realizador utiliza com este propósito vários procedimentos, por exemplo, a pintura
manual com pinceis tradicionais chineses muito finos nas superfícies de vidro ou
espelhadas, que coloca à volta das lentes, e nas próprias lentes, durante a rodagem do
filme. “É um processo muito difícil, muito especial, muito longo. Destruo a
verdadeira natureza e crio a minha própria natureza33”(Sokurov, 1999: 135).
“Estas marcas manuais (...) dão portanto testemunho da intrusão de outro mundo no
mundo visual da figuração que reinava sobre ele e o tornava à partida figurativo. A mão
do pintor veio interpor-se para sacudir a sua própria dependência e romper a soberania
da organização óptica: já não se vê nada” (Deleuze, 2011: 171).
33
Esta afirmação de Sokurov refere-se em particular ao filme Mãe e Filho (1997), no entanto
consideramos que pode adequar-se a Páginas Escondidas que utiliza procedimentos análogos.
34
O espaço perspéctico está ligado à representação visual da modernidade: “A representação
visual moderna hegemónica é a imagem construída em perspectiva (...) a perspectiva de
projecção central de Alberti antecipa uma concepção de espaço eminentemente racional
defendido por pensadores como Newton e Descartes. A construção da imagem em função de
um ponto central organizador parece demonstrar a possibilidade da existência de um único
ponto de vista a partir do qual o sujeito se pode relacionar com o mundo objectivamente
separado de si como uma ‘coisa’ ” (Branco, 2013: 337).
35
No ensaio, Francis Bacon - Lógica da Sensação, 2011.
45
A mão do pintor é, em Páginas Escondidas, a mão do realizador - Sokurov - que
através da pintura manual sobre as lentes e as superfícies de vidro, confere à imagem
cinematográfica uma marca humana e táctil com o objectivo de desconstruir o espaço
óptico da representação clássica.
36
Para Gil, as expressões podem conter em si o próprio sentido: “isto é dizer que não há um
sentido expressivo anterior à sua exteriorização, mas que a passagem do interior ao exterior
[do corpo] constitui a expressão como sentido plenamente expresso” (Gil, idem: 88).
46
Plano-sequência 1 [11’54’’- 14’00’’]
37
Ver Fig. 2. Plano-sequência 1.
47
atraído para a situação, do mesmo modo que as personagens são atraídas para a
cidade.
“Os personagens que se atiram na superfície plana caiem numa outra terceira dimensão:
o ruído que se ouve sob eles, no rumor dos risos e das altercações confusas... que
prolonga a sequência anterior. O som dito off tornou-se a terceira dimensão da
imagem” (Rancière, idem: 91).
38
Ver Fig. 2. Plano-sequência 2.
48
A qualidade táctil é conferida através de um trabalho sobre zonas especificas da
imagem que resulta indefinida e sombria, sem profundidade; e por meio da utilização
de lentes anamórficas que aliadas ao movimento do plano distorcem os elementos
arquitectónicos. A situação apela fortemente à participação e deambulação do olhar
pela superfície da imagem, convocando o seu carácter háptico. Ainda Marks: “O olhar
háptico tende a mover-se ao longo da superfície do objecto em vez de mergulhar
numa profundidade ilusionista” [trad. a.] (Marks, 2000: 162).
39
Kindertotenlieder [canções sobre a morte das crianças], ciclo de canções para voz e
orquestra compostos por Gustav Mahler em 1901-1904, sobre poemas escritos por Friedrich
Rückert. https://pt.wikipedia.org/wiki/Kindertotenlieder
49
Sokurov apresenta-nos uma vivência do espaço arquitectónico através de um cinema
de afectos. Por meio de um trabalho sobre a matéria da imagem e do som, o realizador
figura intensamente a experiência do espaço, mas não a mostra na sua totalidade,
sugerindo um espaço que ainda não foi figurado, que cada um reconstrói na medida
da sua experiência de vida. Com esse objectivo, apela ao nosso corpo, à nossa
memória corpórea e à nossa imaginação.
50
Conclusão
Com base na imersão nestes universos fílmicos, podemos concluir que estes dois
modos de pensar o cinema, apresentam na sua génese características concordantes e
discordantes. A imagem é pensada pelos dois cineastas de um modo semelhante,
ambos procuram enfatizar o seu carácter bidimensional, háptico e afectivo, no
entanto, fazem-no utilizando procedimentos diferentes que resultam em distintas
expressões da vivência arquitectónica. Em Pickpocket, este objectivo é realizado
através do recurso à fragmentação - Bresson utiliza sobretudo grandes planos e planos
médios - e por meio da composição da imagem que busca a planeza. No caso de
Páginas Escondidas, este propósito é efectuado por meio da sobreposição de imagens
ou da manipulação da sua matéria constituinte. Sokurov procura desfazer os contornos
e as fronteiras, definidas e fixas, das figuras e do espaço arquitectónico.
51
No que diz respeito à montagem, em Pickpocket o espaço do quarto é desconstruído -
as suas dimensões rígidas e relações predeterminadas - sendo recriado de um modo
táctil e afectivo, através dos gestos e dos movimentos das personagens. Estes
estabelecem outras ligações entre as suas partes fragmentadas, abrindo novas
possibilidades à experiência arquitectónica e à suas qualidades expressivas. De um
modo bastante distinto, na sequência analisada em Páginas Escondidas, a experiência
do espaço é figurada através de uma montagem pouco perceptível. Embora sugerindo
uma relação de campo/ contra campo, os planos cinematográficos constituem-se como
entidades voltadas para si próprias, apelando à sua percepção e fruição independente.
52
Quanto tempo dura o Espaço?
O corpo que dança é a perfeita duração do Espaço
Dançar não é durar (demorar) no espaço, não é sobreviver no Espaço.
dançar é durar o Espaço
é fazer sobreviver o Espaço,
é salvá-lo.
Libertar o Espaço da Monotonia.
Tempo com ossos e órgãos.
Tempo com imaginação.
Salvação do espaço.
(o meteoro não atravessa o Espaço
o corpo meteoro leva atrás o Espaço).
53
CAPÍTULO III
Breve nota
40
O projecto fílmico Casa, Corpo sem fim pretende figurar e recriar
cinematograficamente a experiência sensorial do espaço arquitectónico. Esta vivência
é, no contexto deste filme, realizada por meio do movimento dançado. Ao longo deste
capítulo procuramos estabelecer correspondências com as situações fílmicas
analisadas e as ideias expostas nos capítulos anteriores. Isto quer dizer que o filme se
inspirou nos filmes apresentados e nos conceitos cinematográficos que os enformam,
no entanto assume-se como um objecto cinematográfico com uma nova idiossincrasia.
40
O filme surge a partir de uma reflexão de Frederick Kiesler: Casa sem fim - manifesto do
Correalismo - que defendia a casa como um organismo vivo, uma extensão do corpo, por
oposição à casa como máquina de habitar enunciada por Le Corbusier. “A casa não é uma
máquina, nem a máquina uma obra de arte. A casa é um organismo vivo e não um conjunto
de materiais mortos. Ela é um ente vivo, no todo e nos pormenores. A casa é uma epiderme
do corpo humano” [tradução da autora] (Kiesler cit. por Ramírez, 2003: 73).
54
1. O cinema e a dança: a recriação do espaço arquitectónico
41
O Kinetoscope é um “instrumento de feira com um movimento contínuo e de visão
individual especificamente construído para exibir os filmes da Kinetograph a primeira
verdadeira câmara da história do cinema” [tradução da autora] (Passek, 2000: 708).
42
Merce Cunningham na suas peças coreográficas rejeita o mimetismo do espaço cénico,
como refere: “Ao pensar a cena segundo a imagem da perspectiva do Renascimento que
conservava, o ballet clássico mantinha uma forma linear do espaço. Mergulhando as suas
raízes no expressionismo alemão e nos sentimentos pessoais de vários pioneiros americanos, a
dança moderna americana quebrou o espaço em vários pedaços, ou muitas vezes,
simplesmente em colinas estáticas dividindo a cena, sem qualquer relação com o espaço mais
vasto da área cénica” (Gil, 2001: 32).
55
O dispositivo cinematográfico com os meios técnicos que o constituem tem a
capacidade de prolongar o sentido próprio da dança. Como expõe Gil: “o dançarino
pode tornar-se um Fred Astaire que desconstrói o sentido e o espaço, dançando sobre
as paredes e o tecto, cabeça para baixo, graças às possibilidades da câmara que
prolonga cinematograficamente a lógica própria da dança” (Gil, 1997: 72).
“o cinema proporciona outra ordem espacial, tem a capacidade de criar outra forma de
temporalidade, possibilita ainda ao corpo humano realizar um movimento não humano.
As minhas coreografias não são danças para a câmara; são danças coreografadas e
executadas de igual maneira pela câmara e por seres humanos” [tradução da autora]
(Deren, 1967: 12).
Dentro desta lógica de aproximação das duas artes, Casa, corpo sem fim foi pensado
enquanto projecto experimental que procura aproximar a lógica do cinema à lógica da
própria dança, mas mais do que figurar as inúmeras possibilidades acrobáticas44 do
43
Cineasta americana, explorou na sua obra fílmica as relações que se criam entre cinema e
dança. Por exemplo, o filme A Study in Choreography for Camera (1945) contém “uma
participação equivalente das duas artes. Ela intitulou-o de ‘Pas de Deux’, referindo-se à dança
e à câmara” [tradução da autora] (Sitney, 2002: 21). Neste filme, Deren investiga através da
técnica da montagem, a continuidade do gesto dançado atravessando espaços não contíguos,
explorando distintas relações espaço-tempo.
44
Acrobacia: Exercício de equilíbrio ou de perícia, geralmente espectacular, que exige
grande agilidade ou destreza física. in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha],
2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/acrobacias [consultado em 23-05-2016].
56
corpo humano interessa a este projecto a expressão e a recriação cinematográfica de
gestos e movimentos dançados que no tempo fazem do espaço uma morada.
2. Intenções fílmicas
A criação artística contemporânea que inclui o cinema e o vídeo, tem vindo a explorar
um novo modo de percepção em que o papel hegemónico do olho tem sido substituído
por uma “óptica tendencialmente háptica”. Trata-se de um movimento que através de
um enfoque no corpo, procura formas alternativas que convocam, de uma maneira
directa, sensações físicas e emocionais.
Este novo movimento resulta de mudanças significativas que dizem respeito a duas
questões: à destituição do paradigma que coloca a visão como inseparável da razão -
pensamento vindo do renascimento que atravessa os movimentos racionalistas até aos
modernismos da primeira metade do século XX - e ao reposicionamento da visão face
aos restantes sentidos, isto é, a sua integração numa “sensorialidade total”.
45
Branco refere que ambas “têm em comum o enfoque no corpo humano como totalidade não
racional, ou exclusivamente cerebral, mas um espaço onde confluem e se podem tornar
pressentidas, ou mesmo visíveis, forças naturais e sensoriais formativas das figuras. O corpo
surge como lugar por onde podem ser canalizadas directamente energias e forças através das
sensações representadas e experienciadas” (Branco, 2013: 500).
57
“podemos afirmar que a imagem háptica dos discursos artísticos tem vindo
progressivamente a centrar-se no binómio corpo-máquina explorando domínios que
fogem completamente ao racionalismo e ocularcentrismo modernos. As palavras chave
dessa arte háptica serão então: multisensorialidade, corporeidade, experiência,
fisicalidade, abandono dos contornos visuais fixos, fluidez, apelo a intensidades não
exclusivamente visuais expressas através dos sentidos, força, intimismo, envolvência,
inputs diretos e simultaneidade espácio-temporal” (Branco, 2013: 494).
Este projecto segue esta tendência da criação artística contemporânea, que procura
mudar o paradigma do modo como nos relacionamos com as imagens. A imagem
háptica significa neste contexto fílmico, a exploração táctil e sinestésica, por meio do
dispositivo cinematográfico, com o objectivo de figurar a experiência sensorial do
espaço arquitectónico.
Casa, Corpo sem fim parte de duas intenções centrais que incidem num afastamento
do espaço óptico da representação e na conseguinte aproximação a um espaço
háptico, e na desconstrução da lógica espácio-temporal do objecto arquitectónico, de
maneira a recriar um espaço que potencia outras modalidades de vivência.
58
Deste modo, intenta-se perturbar um espaço organizado e um corpo fechado e
delimitado46, para chegar à figuração cinematográfica de um espaço arquitectónico e
de um espaço do corpo que se imbricam criando entre eles novas relações, que
resultam em experiências arquitectónicas íntimas, intensas e afectivas.
46
Entendemos aqui o corpo delimitado no sentido referido por Gil, a propósito da
representação do “corpo clássico” de Doríforo, de Policleto, que “segue um código de
perfeição, em que a simetria, a harmonia, a unidade orgânica impõe normas precisas para a
construção da figura (...) Tudo é equilíbrio e medida, é um corpo ‘acabado rigorosamente
delimitado, fechado, mostrado do exterior, não misturado, individual’ ” (Gil, 2003: 75).
59
É precisamente neste sentido que o filme exibe, frequentemente, uma incompletude
visual. Apresenta imagens com pouca informação, não desvendando o espaço, nem os
elementos arquitectónicos na sua totalidade, fazendo um apelo à participação do
espectador que deverá reconstituir as imagens, trazendo-as da invisibilidade e
reconstruindo através da memória do seu corpo, as experiências e os espaços
arquitectónicos figurados.
60
Em algumas situações do filme, a experiência arquitectónica é recriada através das
qualidades da voz que, segundo Gil, é corpo. A voz nas suas diferentes modulações
duplica a sua função - contém o íntimo e o longínquo - procurando tanto aproximar-se
do corpo do espectador como conferir forma e profundidade ao espaço arquitectónico-
fílmico47.
47
Ver Capítulo II p.43. Utilizamos como referência a sequência analisada em Páginas
Escondidas onde Sokurov explora a tridimensionalidade dos espaços da cidade - em distintas
escalas - através do carácter plástico dos elementos sonoros, incidindo sobretudo nas
características da voz.
48
“O som interno é aquele que embora esteja situado na acção, corresponde ao interior, físico
e mental, da personagem. Este inclui os sons fisiológicos da respiração, gemidos ou
batimentos cardíacos. Todos podem ser considerados sons internos objectivos. Ainda na
categoria de sons internos, estão as vozes mentais, memórias, aos quais eu nomeio de sons
internos subjectivos” [tradução da autora] (Chion, 1994: 76).
49
Com referência ao pensamento de Bergson, onde “a duração pura é a forma resultante da
sucessão dos nossos estados interiores de consciência quando o nosso eu se deixa viver,
quando se abstém de estabelecer uma separação entre o estado presente e os estados
anteriores” [tradução da autora] (Bergson cit. por Guerlac, 2006: 65).
61
subjectivas tendem a desvanecer-se, já não se distingue o real do imaginário que se
tornam indiscerníveis. Como refere o autor:
“as situações ópticas e sonoras puras podem ter dois polos, objectivo e subjectivo, real
e imaginário, físico e mental. Mas dão lugar a opisignos e sonsignos que não param de
fazer comunicar os dois polos, e que num sentido ou noutro, confirmam as passagens e
as conversões, tendendo para um ponto de indiscernibilidade (e não de confusão)”
(Deleuze, 2009: 21).
Casa, Corpo sem fim explora estes elementos cinematográficos, e as relações entre
eles, com a intenção de transformar a nossa percepção, proporcionando-nos uma
impressão de intimismo que resulta num espaço não dimensional e íntimo, definido
não pelas suas características fixas, mas pelo ponto de vista do espectador que é
atraído para o espaço arquitectónico-fílmico.
A articulação dos planos sequência assenta numa continuidade rítmica que não é
narrativa, cronológica, espacial ou gestual. Não se pretende prolongar o momento, o
espaço ou o gesto, mas criar um movimento cinematográfico que prolongue a lógica
própria da dança. O movimento variável e contínuo do sentido, no contexto da dança,
50
Deleuze diz a propósito da noção de planalto: “está sempre no meio, nem principio nem
fim” e refere Gregory Bateson que “serve-se da palavra ‘planalto’ para designar algo de muito
especial: uma região contínua de intensidades, vibrando sobre si própria, e que se desenvolve
ao evitar qualquer orientação sobre um ponto culminante ou na direcção de um fim exterior”
(Deleuze, 2006: 53).
62
é apresentado sob a forma de nuvens51. Com este propósito a ligação entre as várias
sequências é realizada não por meio do corte abrupto, mas através do encadeado e da
utilização do fundido. Em ambos as imagens e sons aparecem, sobrepõem-se e
desparecem sem revelar a sua lógica interna, prolongando o movimento da nuvem.
Foi utilizada uma tipologia de montagem que não exibe uma lógica de causa e efeito.
Pretende antes chegar à matéria constituinte dos corpos através de uma redução
progressiva da escala dos planos. Neste movimento de aproximação, as relações entre
as imagens e os sons resultam, sobretudo, de um pulsar interno, da criação de
conexões subtis entre as diversas vivências do espaço arquitectónico: ressonâncias e
rimas, isto é, “repetições de longe em longe, similaridades aproximativas, sensações
que abrem à memória um espaço diferente e projectam noutros lugares sentimentos
que voltam a palpitar” (Amiel, 2007: 110).
51
Segundo Gil, “uma nuvem é uma concreção de sentido que surge numa atmosfera.
Concreção movente e móvel, submetida a transformações imperceptíveis; tal como o sentido
nos gestos do bailarino, a forma da nuvem é geralmente instável e efémera”. Pensando na
nuvem de um modo visual, à maneira do movimento cinematográfico: “o movimento das
nuvens altera-as por surgimento e aparição, como se uma figura, um contorno, uma linha,
uma crista viessem completar o que resta do desaparecimento dos traços anteriores - como se
uma figura invisível virtual se actualizasse no prolongamento das que olhávamos e já lá não
estão. Estranho devir das formas cujo movimento se apreende sem se apreender a sua lógica -
como toda a forma surgisse do caos e todavia viesse enquadrar-se no nexo da própria nuvem”
(Gil, 2001: 122).
63
CONCLUSÃO
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dipositivo fílmico tem a capacidade de intuir outros mundos que estão para além da
vivência real e quotidiana do espectador. Ao exibir pormenores que habitualmente a
nossa percepção sensorial não capta, revela-nos um campo enorme de possibilidades
que nos permitem aceder a novas visões e a outras dimensões da experiência
arquitectónica.
O espaço háptico pode manifestar-se no cinema através do espaço qualquer. Este tipo
de espaço, assim como, a imagem háptica e o som háptico, são exibidos neste projecto
como modos de exploração das características tácteis do cinema, com o objectivo de
figurar de um modo sensível a experiência sensorial do espaço arquitectónico.
65
espaço heterogéneo onde a conexão das suas partes constituintes não está
predeterminada, estabelecendo-se como um puro potencial. Este espaço é mais apto
segundo Deleuze, quando comparado com o rosto ou o seu equivalente, à transmissão
de emoções, exprimindo o afecto de um modo táctil.
Por fim, os filmes Pickpocket e Páginas Escondidas servem como objecto de pesquisa
das modalidades de figuração cinematográfica da experiência arquitectónica. Partindo
da análise de algumas sequências fílmicas, concluímos que a experiência sensorial do
espaço arquitectónico pode ser figurada intensamente através de cinematografias que
utilizam distintas abordagens e metodologias críticas: o cinematógrafo de Robert
Bresson e o cinema de Alexander Sokurov. Ambas as aproximações questionam a
noção de representação clássica do espaço, no que diz respeito às suas dimensões,
proporções e relações determinadas, por meio de procedimentos que desconstroem a
realidade arquitectónica. Estabelecendo outros modos de figurar e recriar a
arquitectura que potenciam a experiência sensorial do espaço, isto é, que recriam
outras sensações e emoções aquando da sua vivência.
O terceiro capítulo expõe o projecto experimental Casa, Corpo sem fim, como um
modo idiossincrático de figurar a experiência arquitectónica. Este filme parece
contextualizar-se no propósito da criação artística contemporânea - do cinema e do
vídeo - que segundo Castello Branco se centra no corpo como modo de comunicação,
66
investigando procedimentos alternativos ao racionalismo e à hegemonia da visão,
como a lógica háptica e a “lógica da sensação”.
Com base na pesquisa feita nos capítulos anteriores, consideramos que a experiência
sensorial do espaço arquitectónico pode encontrar a sua figuração num cinema com
um carácter táctil. Por meio da utilização da imagem e do som hápticos que dissolvem
fronteiras e tornam o espectador íntimo do filme; do recurso ao espaço qualquer, um
espaço afectivo que desconstrói a lógica espácio-temporal do objecto construído; e
ainda, através da dança cujos procedimentos internos se aproximam da lógica do
cinema, visto que ambos encerram a capacidade de transformar o espaço e o tempo,
recriando o objecto arquitectónico: a sua espacialidade, forma, textura, densidade.
67
BIBLIOGRAFIA CITADA
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2007. ISBN: 978-989-8285-31-7.
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972-0-45052-5.
DELEUZE, Gilles - A imagem - tempo, Cinema 2. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
ISBN 972-37-1096-0.
68
DELEUZE, Gilles - Francis Bacon - Lógica da sensação. Lisboa: Orfeu Negro, 2011.
ISBN 978-989-8327-10-9.
DELEUZE, Gilles - Rizoma. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006. ISBN 978-972-37-1108-
0.
GIL, José - Movimento Total - O Corpo e a Dança. Lisboa: Relógio D’Água Editores,
2001.
NONO, Luigi - Entrevista com Luigi Nono e Massimo Cacciari, por Michele
Bertaggia, Catálogo: 19ºs Encontros de Música Contemporânea. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995.
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Senses. Durham and London: Duke Univerity Press, 2000.
MENDES, João Maria - Que coisa é o filme. Lisboa: Escola Superior de Teatro e
Cinema, 2012. ISBN 978-972-9370-13-7.
69
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Editorial Gustavo Gili, SA /Romano Guerra Editora, 2006.
PALLASMAA, Juhani - The Eyes of the Skin, Architecture and the Senses. London:
Jon Wiley & Sons Inc., 2005. ISBN-978-0-470-01579-7 (HB).
TAVARES, Gonçalo M. - Livro da Dança. Lisboa: Assírio & Alvim, 2001. ISNB
972-37-0669-5.
70
VIVEIROS, Paulo - “A imagem do Som”, in MADEIRA, Maria João, Org -
Alexander Sokurov. Lisboa: Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 1999. ISBN
972- 619-162-9.
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FILMOGRAFIA CITADA
HERZOG, Werner - Jeder Für Sich und Gott Gegen Alle (O enigma de Kaspar
Houser), 1974.
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APÊNDICE
Fig. 1
Pickpocket
Quarto de Michel
[Fotogramas]
Fig. 2
Páginas Escondidas
Plano-sequência 1
[Fotogramas]
Plano-sequência 2
[Fotograma]