Do "Nó Do 2º. Grau" Ao Ultraconservadorismo Da Atual Política de Ensino Médio No Brasil: Atualidade E Urgência Do Pensamento de Dermeval Saviani
Do "Nó Do 2º. Grau" Ao Ultraconservadorismo Da Atual Política de Ensino Médio No Brasil: Atualidade E Urgência Do Pensamento de Dermeval Saviani
Do "Nó Do 2º. Grau" Ao Ultraconservadorismo Da Atual Política de Ensino Médio No Brasil: Atualidade E Urgência Do Pensamento de Dermeval Saviani
Marise Ramos2
sua criação autorizada pelo Decreto-Lei nº 616 de 09/06/1969, sob forma de Fundação vinculada ao
Ministério da Educação e Cultura, com a finalidade de preparação e aperfeiçoamento de “docentes,
técnicos e especialistas em formação profissional bem como a prestação de assistência técnica para
a melhoria e a expansão dos órgãos de formação e aperfeiçoamento de pessoal existente no País”.
(Art. 3º) Foi extinto pelo Decreto n. 93.613, de 21/11/1986.
4 2º Grau era a denominação conferida pela Lei n. 5.692/1971, ao nível de ensino que corresponde,
hoje, ao ensino médio, última etapa da educação básica, segundo a LDB vigente (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional – n. 9.394/2006). Essa lei organizou a educação nacional em somente
dois níveis, a saber: básica e superior. O primeiro passou a ser composto por três etapas, a educação
infantil; o ensino fundamental, dividido em dois ciclos; e o ensino médio, a última etapa. A indefinição
da função do ensino médio foi formalmente resolvida com essa reorganização, mas não o foi de fato.
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indefinição expressava como a sociedade via a articulação entre trabalho e
educação. Este era o primeiro problema a ser resolvido.
O estatuto clássico e, ao mesmo tempo, extremamente atual do conteúdo da
entrevista pode ser constatado pela riqueza de definições, conceitos e princípios
ético-políticos sobre um projeto de educação da classe trabalhadora que, ao longo
desses anos, vimos tentando apreender, aprofundar e difundir. Projeto este mais
urgente do que nunca, face ao ultraconservadorismo da atual contrarreforma do
ensino médio no Brasil. Revisitar esse texto é, também, “descobrir” uma das
primeiras fontes de conhecimento de educadores brasileiros que tomaram a
educação politécnica como princípio e como projeto, antes mesmo de poder
conhecer seus fundamentos originais nos escritos de Marx e Engels sobre
educação; nos estudos de Antonio Gramsci (1991b); além da experiência soviética
discutidos por Lenin, Krupskaya, Pistrak, Shugin e Makarenko, por exemplo.
Muito do que se manifesta em um quarto da primeira página e nas outras
duas que se seguem, pode ser encontrado em outros textos, como “Sobre a
concepção de politecnia” (1989a), retomado em 2003, no primeiro número da
Revista Trabalho, Educação e Saúde5; e no artigo publicado pela Revista Brasileira
de Educação (2007)6, para citar alguns frequentemente consultados.
Ao mesmo tempo, ao finalizar a leitura da entrevista, um sentimento que
mistura frustração, compromisso e responsabilidade é inevitável, pois a disputa pela
politecnia ainda precisa ser muito intensa. Alguns passos na história recente da
educação brasileira dela nos aproximaram. Mas, como a “utopia” de Eduardo
5 Periódico científico da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz
(EPSJV/Fiocruz). Essa instituição realizou, em 1989, o Seminário Choque Teórico, para discutir os
fundamentos do projeto dessa nossa unidade de ensino que se propunha a ajudar a construir a
“utopia da politecnia”, ainda sob a vigência da Lei n. 5.692/1971. A exposição do Professor Dermeval
Saviani foi gravada, transcrita e publicada de forma relativamente restrita. O artigo publicado no
periódico científico quase quinze anos depois, como explica o autor, é composto pela versão revisada
dessa exposição e pela discussão do conceito de politecnia. A experiência da EPSJV/Fiocruz e o
debate sobre politecnia na Constituinte e na elaboração da LDB foi objeto de reportagem de Oliveira,
Guerra e Gomes (1989) da Revista Sala de Aula, fazendo referência aos intelectuais que defendiam
essa concepção, como o próprio Dermeval Saviani, Lucília Machado, Gaudêncio Frigotto e Acácia
Kuenzer. A matéria traz, ainda, os “novos politécnicos” daquele momento: André Malhão, Bianca
Antunes Côrtes e Júlio Lima, que coordenavam o Curso Técnico de 2º. Grau em Saúde daquela
recém-criada unidade da Fiocruz, os três orientados por Gaudêncio Frigotto. Foram eles que me
apresentaram, quando me tornei professora de química daquele curso, o debate sobre a politecnia,
os textos de Dermeval Saviani e o educador Gaudêncio Frigotto, que também me acolheu nos
estudos a educação a partir de 1993.
6 O artigo é resultante da exposição do autor do trabalho encomendado pelo GT 9 (Grupo de
7 Pelo menos duas publicações merecem ser citadas a respeito dessa história. Uma delas é a Revista
Em Aberto, Brasília, ano 7, n 38, abr./jun. 1988, com um conjunto de artigos de educadores
progressistas sobra a educação na constituinte e as perspectivas de uma nova LDB. Outra é o livro
publicado por Saviani (1997), que nos traz o histórico e um balanço da lei aprovada.
8 Todas as citações que passo a fazer ao início de cada item são enxertos da entrevista aqui
analisada.
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Dermeval Saviani nos permite entender o significado e a dialeticidade da
expressão “trabalho como princípio educativo”, que deve orientar o projeto e a
prática escolares de forma explícita e intencional, já que, de fato, o faz. Mas,
historicamente, o faz sob a hegemonia do capital. Se o capital reduz o trabalho –
práxis onto-criativa do ser humano – à mercadoria força de trabalho, tenderá a
reduzir o “princípio educativo” à preparação dessa mercadoria. E nisto se vê a
unidade das dimensões ontológica e histórica do trabalho a que ele se refere na
introdução ao artigo de 2007. Tal redução se objetivou na função profissionalizante
do 2º Grau e na separação artificial dessas funções na contrarreforma dos anos de
1990 (ensino médio para a vida x educação profissional); é tensionada com o projeto
de Ensino Médio Integrado9; e retomada com a contrarreforma atual efetivada pela
Lei n. 13.415/2017 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Neste enunciado também identificamos elementos da dedicação do autor a
sua pesquisa em história da educação, tendo como guia o conceito de “‘modo de
produção’”, com vistas a explicitar “como as formas de produção da existência
humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais, por sua
vez, exercem influxo sobre o processo de transformação do modo de produção
correspondente”. (SAVIANI, 2005, p. 2).
Sobre a relação entre o trabalho e os conhecimentos científicos objetos da
educação escolar:
As Ciências da Natureza:
As Ciências Sociais:
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a fundo essas relações? Porque o homem não produz sozinho,
individualmente, suas condições de existência. Essa produção da
vida humana é coletiva, é feita socialmente e de modo organizado.
As relações entre os homens e as formas pelas quais se organizam
decorrem do grau de desenvolvimento dos meios de produção da
existência humana. Daí a necessidade de conhecer as instituições,
as formas das relações sociais que estão na base do modo como os
homens produzem sua própria vida. (p. 14).
As Ciências da linguagem:
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O próprio ensino de 1º Grau está fundado sobre a realidade do
trabalho. (...) Esse currículo consiste nos elementos básicos das
ciências naturais, das ciência humanas e das ciências da linguagem,
da comunicação. (...) Só que, nesse nível de ensino, o trabalho
determina o conteúdo curricular de modo implícito. Não é necessário
fazer referências constantes e diretas ao processo de trabalho. (p.
14)
Já no 2º Grau, a relação entre ensino e trabalho, entre conhecimento
e a atividade prática deveria ser tratada de maneira mais explícita.
(...) Nesse grau de ensino não basta dominar os elementos básicos e
gerais do conhecimento, que resultam e contribuem para o processo
de trabalho na sociedade; é preciso explicitar como o conhecimento
(objeto específico do processo de ensino) como ciência, potência
espiritual, converte-se em potência material no processo de
produção. (p. 15).
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função própria ao ensino médio de explicitar “o modo como o saber se relaciona com
o processo de trabalho, convertendo-se em força material”.
Ademais, mesmo que nas definições de politecnia frequentemente elaboradas
por ele seja ressaltado o domínio [teórico-prático] dos fundamentos [científicos] das
[múltiplas] técnicas utilizadas na produção11, a explicitação “das condições de
produção dos conhecimentos, suas principais manifestações e as tendências atuais
de transformação”, remete, necessariamente, à historicidade dos conhecimentos e
da produção e suas contradições como mediações da totalidade social. Por isto, a
fim de destacar tais dimensões, temos enunciado que a politecnia visa proporcionar
aos estudantes o domínio teórico-prático dos fundamentos científicos, sociais,
históricos e culturais da produção.
Sobre a universalização da escola unitária:
11 Articulei aqui, com o uso de colchetes, as definições enunciadas pelo autor na entrevista e no
resumo de 1989b.
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mundo real (ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte), (SAVIANI,
2005, p. 12) em intrínseca relação com a história e a dinâmica da produção.
Na realidade brasileira, a possibilidade de integrar formação geral e formação
técnica no ensino médio, em escolas de qualidade, sob o princípio da escola
unitária, em nosso entendimento é condição necessária para a travessia em direção
ao ensino médio politécnico e a superação da dualidade educacional pela superação
da dualidade de classes (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 45).
Sobre a relação teoria-prática
12 Refiro-me particularmente a Lênin (1919); Krupskaya (2017); Pistrak (2000, 2015); Shulgin (2013).
314
quatro deles correspondentes às respectivas áreas do conhecimento e o quinto, à
formação técnico-profissional.
É exatamente essa dicotomia que precisa ser superada, na perspectiva da
formação politécnica. A proposta atual do Ensino Médio Integrado tem esse
horizonte, entendendo que se trata de uma necessidade conjuntural, social e
histórica vinculada ao direito da classe trabalhadora à educação. Vemos a
possibilidade de integrar formação geral e formação técnica no ensino médio,
centrada nos conhecimentos das ciências, das artes e da ética, em articulação
teórico-prática e mediada pela historicidade dos processos de produção da
existência, como uma contradição importante e virtuosa.
Sobre os desafios da proposta:
Que lei e que ações? Chegamos à Constituição Federal e à LDB no final dos
1980. Fomos golpeados com o Decreto n. 2.208/1997 que se fez acompanhar das
Diretrizes Curriculares Nacionais baseadas em competências. Retomamos alguma
perspectiva de disputa pela educação politécnica a partir de 2003, tendo o Decreto
n. 5.154/2004, a construção de novas diretrizes, dentre outras regulações, como
mediações que ajudaram a retomar seu debate com a sociedade.
Cunhamos o conceito de Ensino Médio Integrado como a forma histórica de
construção da “travessia” em direção à utopia politécnica, que mobilizou, com muitas
contradições, especialmente os atuais Institutos Federais – antigas escolas técnicas,
agrotécnicas e alguns Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefet) – onde
Dermeval Saviani (1997) via existir os gérmens da educação politécnica.
Enfrentamos, agora, mais uma contrarreforma violenta do ensino médio,
iniciada com o Projeto de Lei da Câmara n. 6.840/2013, abandonado pelos
conservadores devido às emendas que conseguimos fazer inserir; imposta pela
Medida Provisória 746/2016, convertida na Lei n. 13.415/2017; pela Base Nacional
Comum Curricular; pelas novas Diretrizes Curriculares Nacionais; e, mais
recentemente, pelo Programa Nacional do Livro Didático. Impera-se a lógica das
competências e se consolida a concepção de educação (neo)pragmática,
(neo)escolanovista; (neo)construtivista.
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Aprendemos com Gramsci (2001a) e com Poulantzas (1985) que, em um
Estado democrático, organizado como unidade entre sociedade política e sociedade
civil, a legislação expressa a condensação material de correlação de forças no
Estado ampliado. Se não podemos depositar muita esperança na legislação
produzida por correlações de forças desfavoráveis à classe trabalhadora, não
devemos abandonar essa disputa. Mas é preciso retomar com intensidade o debate
com a sociedade civil. Aprender com a história: isto um clássico nos permite; esta é
a imensa contribuição desta pequena grande entrevista!!!!!
Considerações finais
13 Lembro aqui de Rosana Nunes Natividade que fez este trabalho tão cuidadosamente, no
Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde da EPSJV/Fiocruz, a pedido de Júlio
Lima, antes de este se aposentar.
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Este texto é uma homenagem a Dermeval Saviani? Pergunto-me. Trata-se
mais do produto de um esforço analítico que tentei fazer como se fossem estudos
iniciais – quase um fichamento comentado – como óculos que permitem a realidade
mostrar-se de forma cristalina. Se todo o aparato ideológico do capital trabalha para
nos fazer míopes, a teoria nos socorre! A transformação radical da visão social só
pode ocorrer cirurgicamente: revolucionando o modo de produção. Como não o
faremos sob a miopia, teimamos em interrogar a realidade. Fazemo-lo como
princípio ético-político da classe que produz a riqueza social. Espero que as
reflexões deste texto ajudem a atestar a atualidade e a urgência da defesa
intransigente da politecnia. Defesa esta que nos oportuniza, com muita honra,
reverenciar Dermeval Saviani pelo sólido patrimônio ele que tem legado
incessantemente a novas gerações.
Referências
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________. Ensaios sobre a escola politécnica. São Paulo: Expressão Popular,
2015.
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