O Passo Decisivo Jiddu Krishnamurti

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KRISH NAM URTI

Em O P asso D ecisivo , que reúne uma série de conferências feitas


por Krishnamurti na Europa, o grande pensador contemporâneo,
mantendo-se fiel ao seu ideário básico — o indivíduo deve libertar-se
das peias dos sistemas, religiões e ideologias estabelecidos e cuidar
de descobrir-se a si mesmo e ao mundo que o cerca em sua reali­
dade essencial — aborda questões da maior importância, tais como:
a ação criadora, o viver sem conflito, a libertação do temor, a reno­
vação mental, o ver as coisas como são, o descobrimento do verda­
deiro, o autoconhecimento, a serenidade espiritual etc.
J. K R I S H N A MURTI

O PASSO DECISIVO

Tradução

de

H ugo Veloso

EDITORA CULTRIX
SÃO PAULO
Título do original:
TALKS BY KRISH NAM URTI IN EURO PE
1961

1.“ edição: dezembro de 1974


29 edição; setembro de 1977

MCMLXXVII

Direitos de tradução para a língua


portuguesa cedidos com exclusividade à
ED ITO RA C U LTR IX LTDA.
Rua Conselheiro Furtado, 648, fone: 278-4811, São Paulo
pela IN STITU IÇÃ O CULTURAL KRISH NAM URTI,
Av. Presidente Vargas, 418, sala 1 109, Rio de Janeiro, Guanabara

Impresso no Brasil
Priníed in Brazil
S UMÁRI O

LONDRES — I. A mente nova 7


LONDRES — II. Ação criadora 17
LONDRES — II I. Viver sem conflito 27
LONDRES — IV. O medo 35
LONDRES — V. Libertação do temor 45
LO ND RES —• VI. Das influências condicionantes 51
LONDRES — V II. Pensar e sentir 60
LONDRES — V III. Sentimento e solidão 70
LONDRES — IX . Tempo e morte 78
LONDRES — X . Mente meditativa 88
LONDRES — X I. A energia do amor 97
LONDRES — X II. Renovação mental 107
SAANEN — I. Ver as coisas como são 119
SAANEN — II. O intelecto 128
SAANEN — III. Do conflito 137
SAANEN — IV. A investigação real 146
SAANEN — V. O que é meditar 154
SAANEN — VI. Sofrimento 162
SAANEN — V II. Do pensar negativo 172
SAANEN — V III. Problemas e temores 180
SAANEN — IX . Mentalidade religiosa 190
PA RIS — I. O descobrimento do verdadeiro 199
PA RIS — II. Influências condicionantes 208
PARIS — III. Paz 216
PARIS — IV. Desejo, paixão, amor 224
PARIS — V. Pensamento gera medo 233
PARIS — V I. Da mutação radical 242
PARIS — V II. Nada exigir da vida 251
PARIS -— V III. Autoconhecimento 260
PARIS — IX . Perenidade espiritual 271
LONDRES I
A Mente N ova

( C onvém termos desde já uma noção bem clara da


finalidade destas reuniões. Não devem elas degenerar, de modo ne­
nhum, em mera troca intelectual de palavras e idéias ou exposição de
pontos de vista pessoais. Não estamos tratando de idéias, porquanto
as idéias são unicamente a expressão de nosso próprio condiciona­
mento, nossas próprias limitações. Discutir a respeito de idéias, sobre
quem tem razão e quem não a tem, é coisa completamente fútil. Tra­
temos, antes, de explorar juntos os nossos problemas. Em vez de
ficarmos inativos, como os assistentes de uma competição esportiva,
tomemos parte ativa, cada um de nós, nestas discussões, para vermos
se podemos penetrar profundamente os nossos problemas, não apenas
os individuais, mas também os coletivos. Penso que há possibilidade
de ultrapassarmos os murmúrios, as “ tagarelices” da mente, ultrapas­
sarmos todas as exigências e influências mundanas e descobrirmos por
nós mesmos o que é verdadeiro. E com esse descobrimento do verda­
deiro estaremos aptos a enfrentar, a ficar com os numerosos problemas
que atormentam cada um de nós.
Assim sendo, procuremos investigar inteligentemente, com calma
e cautela, a fim de apreendermos o integral significado da vida, de
nossa existência — sua finalidade. E creio que só teremos essa possi­
bilidade se formos honestos com nós mesmos, e isso é bastante difícil.
Em nossa investigação, devemos desnudar a nós mesmos e não a
outrem, de modo que, com nossa própria inteligência, nosso próprio
exato pensar, possamos penetrar até encontrarmos algo de real valia.
Quase todos nós sabemos, não apenas da leitura dos jornais, mas
também de nossa própria experiência direta, que uma estupenda
transformação se está processando no mundo. Não estou pensando
na transformação consistente em passar de um estado para outro,
porém na rapidez com que está ocorrendo a transformação, não apenas
em nossa vida pessoal, mas também na vida coletiva, na vida nacional
de todos os povos do mundo.
Em primeiro lugar, as máquinas estão fazendo maravilhas. Sob
muitos aspectos, os cérebros ou computadores eletrônicos estão ope­
rando com muito mais exatidão e rapidez do que nós, entes humanos.
E já se estão estudando meios de produzir máquinas que acionarão
outras máquinas, sem nenhuma interferência do homem. Vai-se,
assim, eliminando gradualmente o homem. Funcionam essas máqui­
nas com base nos mesmos princípios da mente humana, do cérebro
humano. Talvez chegue o tempo em que poderão compor música,
escrever poemas, pintar quadros — assim como se ensinou o macaco
a pintar figuras, etc. Observa-se uma extraordinária onda remode-
ladora, e o mundo nunca mais tornará a ser para nós o que antes
foi. Penso que todos aqui estamos bem cônscios disso. Mas
nenhuma certeza tenho sobre se estamos cônscios de nossa relação
individual com todo esse “ processo” ; pois consideramos o saber coisa
imensamente importante. Adoramos o saber — mas as máquinas são
capazes de muito mais vasto saber. . . Este é um aspecto do problema.
Em seguida, constata-se a existência de todos os tipos de comu­
nismo, fascismo, etc. Observa-se pobreza descomunal, esmagadora,
degradante, na Ásia, e entes humanos a buscarém um sistema para
resolver este problema. Mas o problema permanece sem solução,
por causa de nossos pontos de vista limitados, nacionalistas, e porque
cada país, cada sistema quer dominar os demais.
Parece-me, por conseguinte, que para enfrentarmos todos esses
problemas de um ponto de vista diferente, se torna necessária a revo­
lução fundamental; não uma revolução comunista, socialista, ameri­
cana ou chinesa: uma revolução interior, uma mente completamente
renovada. Este, parece-me, é o problema que nos deve interessar —
e não a bomba atômica, ou a viagem à lua, ou o dar meia-dúzia de
voltas ao redor da Terra dentro de um foguete; o macaco já fez isso,
e outras pessoas e mais outras o farão. Positivamente, para se enfren­
tar a vida como totalidade, com todos os seus incidentes e acidentes,

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necessita-se de uma mente de todo diferente; nao da chamada mente
religiosa, produto da crença organizada, oriental ou’ ocidental: esta só
serve para perpetuar a divisão e criar cada vez mais superstição e
temor. Todas as absurdas divisões e limitações — pertencer a este
ou àquele grupo, ingressar nesta ou naquela sociedade, seguir deter­
minada forma de crença ou determinado padrão de ação — nada disso
poderá resolver nossos imensos problemas.
Acho que só teremos possibilidade de atender a esses problemas
quando ingressarmos num estado que não seja mero produto da expe­
riência, porquanto a experiência é sempre limitada, sempre colorida,
sempre contida nos limites do tempo. Temos de averiguar por nós
mesmos — não achais? — se é possível ultrapassarmos as fronteiras
da mente, a barreira do tempo, e descobrirmos o imenso significado
da morte — e isso significa, realmente, descobrir o que é viver. Para
tanto, sem dúvida, é absolutamente necessária uma mente nova —
nao uma mentalidade inglesa, indiana, russa ou americana, porém
uma mentalidade capaz de apreender o significado do todo, capaz de
demolir o nacionalismo, os condicionamentos, os valores, e transcen­
der as palavras que a escravizam.
Eis o que é, para mim, o verdadeiro problema, o verdadeiro
desafio. Gostaria de investigar junto convosco, inteligentemente, precí-
samente, sem sentimentalismos e sem parábolas, descobrir se há meios
ou se nenhum meio existe de adquirirmos uma mente nova. Existe
caminho, método, sistema de disciplina capaz de conduzir-nos a ela?
Ou todos os métodos, disciplinas, sistemas e idéias têm de ser aban­
donados, abolidos, para que a mente se possa tornar nova, jovem,
“ inocente” ?
Como sabeis, na índia, aquele velho país tão cheio de tradições
e infelizmente tão populoso, tem havido numerosos instrutores que
estabeleceram o que é certo e o que é errado, que método se deve
seguir, como meditar, o que pensar e o que não pensar; e dessa
maneira todos se vêem agrilhoados, aprisionados em diferentes padrões
de pensamento. E também aqui, no Ocidente, o mesmo “ processo”
se observa. Não queremos transformar-nos. Todos, com mais ou
menos tenacidade, estamos em busca da segurança, em tudo o que
fazemos; segurança na família, nas relações, nas idéias. Queremos
ter certeza, e esse desejo de certeza gera temor, e o temor cria “ a
culpa” e a ansiedade. Se nos examinamos interiormente, podemos
ver quão intensamente tememos quase tudo e como está sempre pre­
sente a sombra da “ culpa” . Na índia, cingir uma tanga limpa faz uma
pessoa sentir-se “ culpada” ; tomar uma refeição completa faz a pessoa
sentir-se “ culpada” — pois há tanta pobreza, tanta sordidez e miséria
por toda a parte! Aqui a situação não é tão má, porque o Estado
cuida do bem-estar social, e há trabalho e um alto grau de segurança;
mas há outras formas de “ culpa” e ansiedade. Sabemos de tudo isso,
mas, infelizmente, não sabemos como libertar-nos de todos esses hor­
ríveis fatores limitativos; não sabemos como sacudi-los de nós comple­
tamente, para que nossa mente torne a ser nova, “ inocente” , jovem.
Por certo, só a mente que se renova pode perceber, observar, desco­
brir se existe uma realidade, se existe Deus, se existe algo além de
todas as palavras, frases e condicionamentos.
Considerando, pois, tudo isso, que se deve fazer? E se há algo
que cumpre fazer, que é esse algo e em que direção ele se encontra?
Não sei se o que estou dizendo tem alguma significação para vós.
Para mim, trata-se de coisa muito séria; “ sério” , não no sentido de
“ fazer uma cara solene” , mas no sentido de sermos ardorosos, impe­
tuosos, diretos. E se sentis também essa necessidade de uma mente
nova, investiguemos onde começar e o que cumpre fazer.
A parte : A mente parece estar sempre a dar voltas, sem nunca
ultrapassar as próprias limitações.

K rishnamurti: Vamos investigar um pouco esta questão, já que não


desejamos que esta seja apenas uma reunião de “ perguntas e respos­
tas” ? Em primeiro lugar, antes de dizermos que a mente anda “ a
dar voltas” não é necessário descobrirmos o conteúdo total da mente,
averiguarmos o que entendemos por “ mente” ? Ora, como responder
a uma pergunta desta natureza? Qual o “ processo” que começa a fun­
cionar quando se faz tal pergunta? Tende a bondade de observar a
vossa própria mente, sem aguardar resposta minha. Eu fiz uma per­
gunta: Que é a mente? Como reagis, e que é “ reagir” ? Como
observais uma coisa qualquer? Como observais uma árvore? Lançais-
-lhe um rápido olhar superficial, ou observais o tronco, os ramos, as
folhas, as flores, os frutos: a totalidade da árvore? Como se observa
uma coisa totalmente? Espero não estar tornando a questão abstrata
demais, mas acho necessário examiná-la bem. Quando fazemos a
pergunta: “ Que é a mente?” — como reagis a este desafio? De

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que centro, de que fundo ( background) observais? E para observar
uma coisa inteiramente, de maneira nova, totalmente, que fazeis?
A parte : É preciso observar com percepção total. .
K risiinamurti: E que se entende por “ percepção total” ? Compreen­
deis? Notai, por favor, que não estou cavilando, mas será recomen­
dável não fazermos uso de termos substitutos. Prossigamos juntos,
um bocadinho. Que se entende por “ observar” , “ ver” , “ perceber” ?
Quando digo que vejo uma coisa com toda a clareza, que significa isso?
Significa que não vemos a coisa apenas fisicamente, com os olhos,
mas também que ultrapassamos os limites das palavras, não é verdade?
Vejo que o nacionalismo é uma estúpida modalidade de “ emociona-
lismo” , destituída de racionalidade e de sentido. Vejo-o — eu, não
vós. Primeiro, há o percebimento imediato de sua falsidade e, em
seguida, dou as explicações: como separa as pessoas, sua natureza
venenosa, quanto é destrutivo um indivíduo dizer-sc indiano, inglês,
alemão ou o que quer que seja. Ninguém mo precisa dizer, nem tenho
necessidade de raciocinar a esse respeito, chegar a uma conclusão por
meio de dedução ou indução. Percebo tudo isso num relance, com
percepção imediata, exatamente como quando vejo que pertencer a
qualquer religião organizada significa uma existência em extremo cor­
ruptora e destrutiva?
Ora, que é essa capacidade de ver? Vejo a totalidade da mente?
Não os segmentos da mente, a parte intelectual, a parte emotiva, .a
parte que conserva e utiliza o conhecimento, a parte que é ambiciosa
e contradiz a si própria não desejando ser ambiciosa, etc., etc. Per­
cebo a coisa em sua totalidade, ou fico à espera de que alguém ma
indique?
Seria muito interessante e lucrativo — se me permitis esta expres­
são comercial — se pudéssemos, cada um de nós, descobrir o que
se entende por ver. Ora, eu não preciso que ninguém me diga que
estou com fome. Sei que tenho fome. Nenhuma descrição, por mais
eloqüente que seja, me pode dar a experiência da fome. Ora, pode­
mos ter a experiência direta da mente como totalidade? E quando
tendes a experiência de qualquer coisa como totalidade, de onde vem
essa experiência?
Desejais experimentar “ a totalidade da mente” , não? Desejais
experimentar o estado em que se verifica o sentimento total da vida,

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o sentimento total do desapego a uma dada coisa. Mas, como sabereis
o que é “ a totalidade da mente” ? A experiência está sempre em
relação com o conhecido, não é verdade? E se nunca experimentastes
a totalidade da mente, como a conhecereis? Percebeis o problema?
Por favor, não concordeis, apenas, porquanto isso encerra uma porção
de coisas.
Quando viajamos de avião de um ponto para outro, trinta ou
quarenta mil pés abaixo de nós se estende a terra; e, sobrevoando o
Paquistão, o Irão, o Oriente Médio, a ilha de Creta, a Itália, a França,
a Inglaterra, a América etc., sabemos que tudo está separado peias
divisões artificiais criadas pelo homem, mas existe o sentimento da
totalidade da Terra, desta Terra inteira, tão extraordinariamente bela!
Ora, para sentirmos a qualidade dessa totalidade, podemos expe­
rimentá-la em termos do que já conhecemos? Ou trata-se de coisa
que não pode ser experimentada em termos de reconhecimento?
Talvez eu esteja entrando rapidamente demais na questão, e,
pois, perguntemos mais uma vez a nós mesmos: Que é a mente? Exa­
minemo-la, descubramo-la.
A mente é a capacidade de reconhecer, de acumular conheci­
mentos na forma de memória; é o resultado de séculos de esforço
humano, experiência, conflito, e das presentes experiências individuais
em relação ao passado e ao futuro; é a capacidade de planejar, de
comunicar, de sentir, de pensar, racional ou irracionalmente. Existe
a mente de sentimentos mansos, quietos, serenos, e também a mente
brutal, cruel, “ superior” , arrogante, vã; a mente em estado de auto-
contradição, solicitada em diferentes sentidos. Esta é a mente de
quem diz: “ sou inglês” , ou “ americano” ou “ indiano” . Existe a mente
inconsciente, o profundo reservatório coletivo, hereditário; e há a
mente superficial, educada de acordo com uma certa técnica, um certo
código de conduta, de ação, de conhecimento. Esta é a mente que
busca, que deseja a permanência, a segurança; a mente que vive da
esperança, mas só conhece a frustração, fracasso, desespero; a mente
que pode lembrar-se, rememorar; a mente muito dextra e exata; a
mente que sabe o que é amar e desejar ser amado.
Tudo isso, por certo, constitui a totalidade, não? Essa é a mente
que vós e eu possuímos — e os animais também, embora em menor
escala. E há, ainda, a mente que diz que precisa transcender tudo isso,

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alcançar um certo pontó, experimentar uma totalidade, um estado
atemporal, imensurável.
Tudo isso, pois, constitui a mente. Conhecemo-la por segmentos
quando sentimos ciúme, raiva, ódio; ou conhecemo-la na autocontra-
dição; ou por meio de sonhos, sugestões ou intuições provenientes do
passado. Tudo isso constitui a mente. É a mente que diz: “ Sou a
alma” , “ sou o Atman” , o “ eu superior” , isto, aquilo e aquilo outro. . .
A mente que se acha aprisionada dentro dos limites do tempo —
pois tudo isso se relaciona com o tempo. A mente escrava das
palavras, assim como os ingleses são escravos das palavras “ Rainha” ,
“ Cristo” ; e os hindus, escravos de sua própria coleção de palavras;
e os chineses e os comunistas, escravos das suas, e assim por diante.
Agora, percebendo tudo isso, como proceder? Que é, com efeito,
a mente?
Consideremos a questão de maneira diferente. Vós vedes, senho­
res, que se necessita de mudança; mas mudança calculada não é
mudança nenhuma. A mudança que visa a um certo resultado, por
meio de exercício, disciplina, controle, impiedosa dominação, é, mera­
mente, a continuação da mesma coisa sob disfarce diferente. E a
mudança progressiva, evolutiva, disso já tratamos e é assunto liqui­
dado. A única mudança verdadeira é a mudança radical, imediata.
Como pode a mente alcançar essa mudança, depois de se tomar livre
de seu condicionamento, suas brutalidades, suas ações estúpidas, seus
temores, sua “ culpa” , suas ansiedades e, portanto, tornar-se nova?
Digo que isso é possível, mas não pelo processo analítico, a investi­
gação, o exame etc. Digo que é possível “ limpar a lousa” de um só
golpe, instantaneamente. Não traduzais isto como “ graça de Deus” ;
não digais: “ Isso pode ser possível a outro, mas não a mim” — por­
que, assim, não estamos enfrentando o problema, porém evitando-o.
Eis por que eu disse no começo que necessitamos de um pensar muito
claro e muito preciso, de implacável investigação.
A parte : Essa eliminação instantânea. . . nela, decerto, não pode
haver pensamento de nenhuma espécie.
K rishnamurti: Mas como pode ela ser feita, qual a ação necessária?
Compreendeis, senhores, o que quero dizer? Sabeis muito bem o
que está acontecendo no mundo — talvez melhor do que eu, pois
não costumo ler jornais nem estudá-los; mas viajo muito e vejo muita

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gente, pessoas “ importantes’’ e pessoas “ insignificantes” , e escuto.
Sabeis que há necessidade de uma tremenda revolução interior, para
fazer frente ao desafio deste mundo caótico e conturbado. Digo que
ela é possível e desejo, se permitis — sem interromper vosso exame
— continuar a investigar nesta direção. Promover uma transformação
radical — não é este o vosso problema, quer sejais jovens, quer sejais
velhos? Assim, como empreender este trabalho?
A parte : Isto está parecendo algo que estamos tentando “ pegar” ,
mas não podemos. . .
K rishnamurti: Quando tentamos “ pegar” , quando tentamos captu­
rar uma coisa, não há dúvida de que já a estamos traduzindo em
termos do velho. Senhor, não deveis ver claramente se este problema
vos concerne? Se eu vos estou impondo o problema, tem de haver
necessariamente um estado de contradição entre vós e mim. Não
estou impondo o problema; apenas o estou enunciando. Se não o
vedes, cabe-nos examiná-lo. Mas, se o vedes, ele é então vosso
problema, e não meu. Então, vós e eu estamos em relação; esta­
mos em contato um com outro, procurando uma solução. E se
o problema não vos concerne, digo-vos então: “ Por que não?” —
Vede, por favor, o que se passa no mundo: uma crescente tendência
para a “ exteriorização” . . . as coisas exteriores a se tornarem cada
vez mais importantes. . . voa até à Lua, ver quem chega lá primei­
ro. . . quantas infantilidades se estão tornando hoje em dia de tre­
menda importância! Assim, se este problema atinge a todos nós,
como a ele devemos aplicar-nos?
A parte : S ó podemos responder que não sabemos.
K rishnamurti: Quando dizemos “ Não sei” , que queremos dizer?
Aparte : E u quero dizer isso, exatamente.
K rishnamurti: Não, desculpai-me, não quereis dizer isso. Deixai-
-me esclarecer melhor, porquanto há diferentes estados de “ saber” e
“ não saber” . Se vos fazem uma pergunta familiar, sabeis responder
imediatamente, não? Porque estais familiarizado com ela, vossa res­
posta é instantânea. Se a pergunta é mais complicada, precisais de
certo tempo para responder; e a demora entre a pergunta e a resposta
é o “ processo” de pensamento, não é? Esse pensar é uma consulta
à memória, para encontrar a resposta. Isto é óbvio; não estou falando

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de coisa complicada, pois isso é muito. simples. Depois, se vos é
feita outra pergunta mais complicada ainda e à qual momentaneamente
não sabeis que resposta dar, dizeis: “ Não sei” ; mas ficais em expecta­
tiva, esperando descobrir a resposta no arquivo de vossa memória ou
por informação de outra pessoa. Assim, ao dizerdes “ Não sei” , isso
significa que estais esperando, que estais na expectativa de descobrir
a resposta. Agora, um minuto. Podeis dizer honestamente “ Não sei”
— sem isso significar expectativa nem consulta à memória? Temos,
pois, dois estados, quando se pergunta como pode tornar-se existente
uma mente nova: Podeis responder “ não sei” , significando que espe­
rais que eu vo-lo diga; ou de fato não sabeis e, por conseguinte, não
há expectativa nem desejo de experimentar algo; e esta pode ser a
coisa essencial.
Voltemos um pouco atrás, pois acho importante compreender o
que se entende por perceber, ver, observar. Como vemos realmente
uma coisa?
A parte : Parece-me que só podemos ver através de palavras.
K r is h n a m u r t i : Vós compreendeis através de palavras? Natural­
mente nós nos servimos de palavras para fins de comunicação, para
que possais falar comigo e eu falar convosco; mas isto não significa
escravização à palavra. Percebeis como estamos escravizados às pala­
vras? As palavras “ inglês” , “ russo” , “ Deus” , “ amor” — não somos
escravos delas? E se sois escravos de palavras, como podeis compreen­
der uma coisa total, não contida numa palavra? Se sou escravo da
palavra “ amor” — palavra de que tanto temos abusado e tanto temos
corrompido — posso compreender a natureza total do amor, que há
de ser necessariamente uma coisa extraordinária? Todo o universo
está contido no significado desta palavra.
Mas, infelizmente, somos escravos das palavras e estamos ten­
tando alcançar algo que se acha além dos limites verbais. Extirpar,
destroçar as palavras e ficar livre delas — isso dá invulgar percebi-
mento, vitalidade, vigor. E é necessário tempo para nos libertarmos
das palavras? Dizeis “ preciso refletir primeiro” ou “ preciso exercitar
o percebimento” ou “ vou ler Bertrand Russel” ? Ou vedes deveras
que a mente escrava da palavra é incapaz de olhar, de observar, sentir,
ver? — e esta própria clareza, esta própria verdade não destrói a'
escravidão?

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P ergunta : Poder-se-ia ver, por um instante, e logo a mente
interferir?
K rishnamurti: Vedes, por um instante, que o nacionalismo é vene­
noso e, logo a seguir, nele recaís?
Percebemos realmente que somos escravos das palavras? O comu­
nista é escravo das palavras “ Marx” , “ Stalin” , etc. E o chamado cris­
tão é escravo do símbolo, da Cruz, e do respectivo jogo sutil de pala­
vras. Ide a Roma, ide a qualquer parte do mundo, e o que se
encontra é sempre a palavra.
E talvez sejamos também escravos da palavra “ mente’5. Adora­
mos a mente, e nossa educação consiste apenas em cultivá-la. E, por
certo, o que estamos tentando descobrir é a totalidade de alguma coisa
que não é a palavra: o sentimento que abarca a totalidade, sem a
barreira das palavras.

2 de maio de 1961.

16
LONDRES
Ação Criadora

E M nossa última reunião, estivemos dizendo que se


toma necessária uma grande revolução, não só em virtude da terrível
situação mundial, mas também porque é indispensável que a mente
humana seja livre para descobrir o que é verdadeiro. Parece-me de
essencial importância que se crie uma mente nova, mente não limi­
tada pela nacionalidade, pelas religiões organizadas, pela crença, por
um dado dogma ou pelas limitações da experiência. Urge, por certo,
fazer nascer um estado criador — não a mera capacidade de inventar,
de pintar, de escrever, etc.; criador num sentido muito mais profundo
e amplo. Indagamos como seria possível promover uma tal revolução
e qual a ação necessária. E espero possamos prosseguir nesta mesma
ordem de investigação.
Já se tem tentado, não é verdade? — aderindo a diferentes gru­
pos, freqüentando várias escolas de pensamento e de imitação —
descobrir o que cumpre fazer. Sentimos esta necessidade de desco­
brir o que impende fazer, não apenas em nossa vida diária; desejamos
também saber se há um modo de ação —• tomada esta palavra num
sentido muito mais amplo — de natureza total, não apenas num dado
memento. Parece-me bastante óbvio que a maioria de nós anseia
por descobrir o que se deve fazer; e talvez seja por esta razão que
aqui estais, pois pertenceis a tantos grupos, corporações e sociedades
religiosas: desejais descobrir o que se deve pensar e o que se deve
fazer.
Para mim, o problema não é este, absolutamente. A exigência
de “ o que fazer” , a exigência de uma norma de conduta, determinada
maneira de vida, é, na realidade, muito prejudicial à ação. Implica

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um sistema para seguir, dia a dia, até se alcançar determinado alvo,
determinado “ estado de ser” . Vivendo, como vivemos, neste mundo
insano, caótico, impiedoso, procuramos, em meio a toda esta confusão,
uma norma de ação que não crie novos problemas. E creio que para
se compreender esta matéria profundamente é necessário compreender
o esforço, o conflito e a contradição.
Vivemos, em geral, num estado de autocontradição, tanto cole­
tiva como individualmente. Não quero fazer asserções absolutas, mas
acho que é mais ou menos exata a asserção de que muito raramente
conhecemos momentos livres de conflito, de contradição interior. Não
conhecemos um estado mental perfeitamente tranqüilo, em que essa
tranqüilidade, por si só, é ação. Em maioria, vivemos em contradição,
e dessa contradição resulta conflito. E interessa-nos saber como nos
libertarmos desse conflito, não só exteriormente, mas também interior­
mente. Se, partindo daqui, pudermos prosseguir nossa investigação,
talvez consigamos encontrar a ação que não é mera reação.
Para a maioria de nós, toda ação é reação. E é possível agirmos
sem ser em reação e, consequentemente, sem criarmos contradição em
nós mesmos? Espero que me esteja fazendo claro. Gostaria que
examinássemos juntos esta questão, penetrando-a completamente. Por­
que, para mim, o conflito, em qualquer forma que seja, é — expres­
sando-o delicadamente — prejudicial à penetração, à compreensão.
Somos criados, educados no conflito e na competição; toda a nossa
sociedade aquisitiva se baseia nisso. É possível, pois, a mente liber­
tar-se do conflito e, em conseqüência, esclarecer todo esse processo
de autocontradição? Talvez possamos examinar este ponto com inte­
ligência, para alcançarmos aquela mente que se acha num estado de
revolução e compreendermos, assim, o que é atuar sem os efeitos
condicionadores da experiência e do conhecimento.
P ergunta : Isso não seria agir sem pensar?
K rishnamurti: I sso (agir sem pensar) seria algo caótico, não achais?
Talvez seja preferível examinarmos primeiramente o processo do pen­
sar, o mecanismo do pensar. Permiti-me, pois, perguntar: Que é
pensar?
A parte : E u diria que pensar é uma reação nervosa a algo que
se experimentou. Não podemos reagir ao que não experi­
mentamos.

18
K rishnamurti: Ora, há máquinas que pensam: os cérebros eletrô­
nicos, os computadores. Nosso pensar se processa de maneira seme­
lhante? É ele reação da memória, que são as experiências armaze­
nadas, individuais e coletivas; reação à qual se junta a reação ner­
vosa? Pergunto-vos: Que é pensar? Antes de responder, não deveis
estar cônscio do processo, do mecanismo que opera no responder?
No intervalo entre a pergunta e a resposta está em movimento o “ pro­
cesso” pensante, não é exato? O desafio constituído pela pergunta
põe em ação o mecanismo do pensamento e vem então a reação. Não
é assim mesmo? Se vos perguntam qual é vossa religião ou naciona­
lidade, vós respondeis — não é verdade? — em conformidade com
vossa educação, vossa criação, de acordo com vossa crença ou não-
-crença. Ora, de que fundo ( background) procede a vossa resposta?
Aparte : Da memória.
K rishnamurti: Exatamente, não é? Se nasci em certo lugar e lá
fui educado, moldado pela sociedade, pela tradição de que vivo,
tenho então um certo reservatório de experiências, lembranças, e
minha reação a qualquer desafio procede desse fundo. Eis o meca­
nismo, eis o que chamamos “ pensar” . De acordo com essa experiên­
cia, herdada ou adquirida, eu vivo e atuo. Meu pensar, portanto, é
sempre muito limitado; por conseguinte, não há liberdade no pensar.
P ergunta : Não é possível um homem ter pensamento criador:
por exemplo, fazer novas descobertas na ciência ou na Mate­
mática? O pensar é todo ele resultado de condicionamento?
K rishnamurti: Quando descobrimos realmente alguma coisa? Quan­
do percebemos algo novo, subjetiva ou objetivamente?
A parte : Eu diria: quando se esgotaram os meios conhecidos.
K rishnamurti: Examinemos isso. Tenho um problema de Matemá­
tica e trabalho para o resolver; ataco-o de muitas e diferentes manei­
ras, até ficar exausto; deixo-o então de lado e eis que na manhã
seguinte, ou em dado momento posterior, a solução se apresenta subi­
tamente. Assim, depois de a mente ocupar-se amplamente com o
problema, e de abandoná-lo por não encontrar a solução, sobrevém
uma certa quietude em relação ao problema e, posteriormente, a solu­
ção vem por si.

19
P ergunta : Direis que isso nao é pensar?
K rishnamurti: Estamos investigando, não? Há muitas coisas aí
compreendidas. O pensar não se acha num único nível mental; é pre­
ciso também considerar o todo inconsciente. Estamos investigando o
que é pensar. E vemos que nosso pensar procede, pela maior parte,
de nosso fundo de memória, experiência, conhecimento etc. E há
momentos em que, num rápido clarão, percebemos uma dada coisa
aparentemente não relacionada com o passado; e isso que vemos pode
ser falso ou pode ser verdadeiro, conforme a maneira como o tradu­
zimos, e conforme o nosso fundo. Quando a mente superficial está
tranqüila, pode haver descobrimento, entendido como uma nova inven­
ção ou uma idéia nova; mas todos os descobrimentos novos são da
mesma natureza? Pois temos de considerar a mente em sua totali­
dade, não achais? — não só a mente superficial, mas também a
mente inconsciente.
Pela maior parte do tempo funcionamos num nível superficial,
não é verdade? As atividades a que nos entregamos são muito super­
ficiais: não exigem a reação integral de nosso ser total. É óbvio que
toda a nossa educação e todo o nosso cabedal mental ( background)
estão ajustados para a reação superficial; vivemos na superfície da
mente. Mas existe também a mente inconsciente, profunda e inexplo­
rada, a qual está sempre fornecendo alusões, avisos, sonhos etc.; e
estas coisas, por sua vez, são traduzidas pela mente consciente segundo
o seu condicionamento. E a consciência inteira não está condicionada?
O inconsciente, decerto, é o reservatório das memórias raciais: recor­
dações, reflexões, tradições, memórias, todos os conhecimentos acumu­
lados do homem. Mas a mente consciente, a mente superficial é edu­
cada para as técnicas do mundo moderno. Por isso, evidentemente,
existe uma contradição entre o inconsciente e o consciente. A mente
consciente pode ser educada para nao ter crença em Deus, para ser
ateísta, comunista ou o que quer que seja, mas o inconsciente foi
exercitado durante séculos na crença; e quando sobrevém a crise, o
inconsciente reage muito mais fortemente do que a mente consciente.
Sabeis disso muito bem, não? Vemos, pois, que a totalidade da
consciência, não apenas a parte superficial, mas também a parte incons­
ciente, está condicionada; e qualquer reação oriunda do inconsciente
não é fator de libertação. Pensai nisso, por favor, e investigai junto
comigo; não vos limiteis a concordar ou discordar. Se um matemá­

20
tico tem um problena e, depois de investigá-lo, de estudá-lo, o resolve
sem a ajuda do pensamento, constitui esta solução coisa totalmente
nova, não nascida, não resultante do inconsciente?
Pergunta : Se procede do inconsciente, então é coisa velha; não
é realmente nova, é?
K rishnamurti: Se permitis dizê-lo, temos de ser muito cautelosos,
para não ficarmos no terreno da especulação pura e simples. Ou fala­
mos por compreensão direta, depoís de investigarmos toda a matéria,
ou, ainda, podemos estar simplesmente repetindo o que alguém disse
ou o que lemos. Se pudermos, por ora, ou mesmo para sempre, pôr
de parte tudo o que outros disseram — os íogues, os swamis, os
analistas, os psicólogos, e quem mais seja — estaremos então capaci­
tados para descobrir por nós mesmos, diretamente, se é possível a
consciência total libertar-se do condicionamento. Se não é possível,
então o que se pode fazer é só continuarmos o velho trabalho de
aperfeiçoar a consciência total — torná-la mais digna, melhor, mais
nobre etc. Isto é o mesmo que viver numa prisão a decorar-lhe as
paredes. Não importa se o intelecto foi “ banhado” pelos comunistas,
os católicos, os protestantes, os anglicanos ou outra seita qualquer. . .
tudo é a mesma coisa. E é realmente importante, de vital importância,
considerarmos se é possível ultrapassar a consciência limitada e condi­
cionada; se a mente pode ficar livre, no sentido mais profundo desta
palavra. Há quem diga que a mente, sendo resultado do tempo e do
ambiente, permanecerá necessariamente escrava dessas influências;
mas nós estamos perguntando se podemos transcender a mente, o
tempo.
P ergunta : Como seria possível tal coisa?
K rishnamurti: Estamos examinando o problema inteiro, não? Ou
a mente é capaz de libertar-se de todas as influências e, por conse­
guinte, de todos os ambientes passados, presentes e futuros, ou isso
não é possível. Os comunistas não o crêem possível, tampouco o
crêem os católicõs ou qualquer dentre as pessoas religiosas. Falam a
respeito de liberdade, mas não crêem nela, pois quem deles discorda
é considerado herético — excomungado, queimado vivo, liquidado etc.
É possível, pois, manifestar-se uma ação não procedente da esfera da
consciência, da limitação, do condicionamento? Percebeis a questão,
senhores?

21
A parte : A experiência da maioria nos mostra que isso não é
possível, mas ao mesmo tempo pressentimos essa possibi­
lidade, mas não sabemos como consegui-lo.
A parte : E u sinto que não é possível.
K rishnamurti: Estais só esperando que eu diga alguma coisa? Ora,
eu não sei até que ponto penetrastes por vós mesmos nesta questão.

A parte : Tenho certeza de que a mente consciente pode ser livre,


mas a mente inconsciente parece-me um problema tremendo.
K rishnamurti: É possível, mediante análise, penetrar passo a passo
no inconsciente, esclarecê-lo e, assim, transcendê-lo? É possível?
Ora, o inconsciente é um “ processo” positivo, não? E podeis
abeirar-vos de um processo positivo com uma exigência positiva?
Tanto o consciente como o inconsciente estão sujeitos à mesma limi­
tação, pois não? A mente consciente tem seus motivos próprios
para desejar investigar o inconsciente. O motivo existe: ela quer ser
livre. O motivo é positivo; e o inconsciente não é uma coisa vaga,
é também positivo. Mas, embora o inconsciente seja positivo — com
todas as suas alusões, avisos, sonhos etc. — não conheceis diretamente
o seu conteúdo; não sabeis o que ele é realmente. Pode, pois, a
mente consciente investigar uma coisa que desconhece? Por favor,
não ponhais isso de lado; é assunto muito importante. A análise,
feita por outro ou por vós mesmo, poderá revelar todo o conteúdo
dessa coisa chamada inconsciente, a qual desconheceis totalmente?

A parte : O inconsciente parece-me vasto demais.


K rishnamurti: Não, não vos limiteis a dizer que ele é vasto demais;
pois, nesse caso, não estais dando atenção à verdadeira questão: estais
escapando por uma tangente. Parece que nunca examinastes bem o
processo do pensar. Existe pensamento sem a palavra, a imagem, a
idéia, o símbolo? Pois o símbolo se encontra também no inconsciente,
tal como no consciente, não é verdade? E o processo de investigar
o inconsciente por meio de análise me parece falho. Desejo sugerir-
-vos um caminho certo: o percebimento direto.
Em primeiro lugar, deve ficar bem claro para nós que todo pen­
sar é mecânico. Pensar é reação da memória, reação do conheci­
mento, da experiência; e todo pensar proveniente desse fundo é condi­

22
cionado. Por conseguinte, o pensamento nunca pode ser livre: e
sempre mecânico.
A parte : Sim, percebo isso.
K rishnamurti: Que entendeis, ao dizerdes: “ Percebo” ? Vede, por
favor, isto é muito importante.

A parte : Algo, dentro em mim, me faz percebê-lo.


K rishnamurti: Quer dizer, então, que “ algo dentro em vós” vos
faz também perceber que deveis ser nacionalista, não é verdade?
Algo vos faz crer que existe Deus, que deveis ter uma religião. Se
dependeis de “ algo” que vos fala “ de dentro” , estais então também
sujeito a ter ilusões, não? Assim, que entendeis por “ Percebo” ? Se
digo que o nacionalismo é um veneno, percebeis a verdade desta
asserção?
A parte : Ela é óbvia.
K rishnamurti: E quando digo que ter qualquer crença, pertencer a
qualquer sociedade, qualquer religião organizada, é prejudicial ao des­
cobrimento, percebeis também isto?

Aparte : Não muito claramente, porque pertenço a um grupo


que trabalha para as Nações Unidas, e acho que isso é uma
boa coisa.
A parte : Ele queria dizer “ nações desunidas” .
K rishnamurti: Desunidas, não há dúvida; mas estamo-nos afastando
da matéria. Dissestes muito claramente que percebeis que o
nacionalismo é um veneno. Vós todos concordastes. Mas, inconscien­
temente, sois todos nacionalistas, não é verdade? Sentis-vos inglês,
francês, ou o que quer que seja. Esse sentimento existe, profunda­
mente arraigado, não? E dizeis não perceber com a mesma clareza
que a crença é destrutiva do descobrimento. Mas considerai a coisa
desta maneira: Desejo descobrir se existe Deus. Desejo realmente des­
cobrir por mim mesmo se Ele existe ou não. Portanto, preciso, em
primeiro lugar, eliminar tanto do consciente como do inconsciente
todos os conceitos relativos a Deus, não? Para descobri-lo realmente,
tenho primeiro de arrancar todas as raízes da cultura em que fui
criado, educado; não deve haver abrigo nem refúgio, onde eu ache

23
que estou prestando bons serviços. Uma vez que minha intenção é
descobrir, devo livrar-me sem dó nem piedade de tudo quanto aceitei,
de modo que fique completamente desabrigado, física, verbal, intelec­
tual ou emocionalmente; então, já não pertenço a coisa alguma.
Iniciamos esta investigação com a questão relativa ao que se
deve fazer neste mundo insano. Uma nova maneira de considerar a
vida, uma mentalidade inteiramente nova — isso é necessário; e esse
novo “ caminho” deve resultar de uma revolução completa, de uma
total abjuração do passado. E o passado é tanto o inconsciente como
o consciente. Assim, pertencer a qualquer grupo organizado de pen­
samento é coisa venenosa.
E todo esforço que façamos para sermos novos pertence tam­
bém ao passado, não é verdade? Porque toda a atual estrutura da
sociedade se assenta na aquisição, que significa esforço. Todo o pro­
cesso baseado no “ devo ser isto” ou “ não devo ser aquilo” implica
esforço, conflito; percebo isso. E quando digo “ percebo” , quero dizer
que o percebo realmente e não emocional, sentimental, intelectual ou
verbalmente. Vejo-o, assim como estou vendo este microfone. E
o próprio percebimento do fato eliminou completamente aquele con­
dicionamento. Não sei se vos estou comunicando alguma coisa. Por
favor, não vos limiteis a concordar comigo. Isto não é um entrete­
nimento social. Porque, se o estais vendo pela mesma maneira, estais
então livres de tudo, completamente, instantaneamente.
A parte : Sentimo-nos agrilhoados ao nosso condicionamento, em
virtude de nossos deveres para com a sociedade e a família.
K rishnamurti: Diz este cavalheiro, com toda a razão, que estamos
agrilhoados pelos nossos deveres para com a família, a sociedade,
nosso emprego, nossa pátria, a religião em que fomos criados, etc.
etc. É assim que, quando nos vemos frente a frente com a neces­
sidade de termos uma mente de todo nova, contrapomos a família,
a sociedade, ao fato. E, por essa razão, há conflito entre o fato e
aquilo que concebeis como vosso dever, não é? E é assim que, para
fugir desse conflito, um homem ingressa num mosteiro, torna-se mon­
ge, ou isola-se interiormente; constrói um hábito em torno de si e aí
fica vivendo. Ora, senhores, quando empregais as palavras “ dever” ,
“ responsabilidade” , estais-vos pondo em oposição à liberdade. Mas,
se percebesseis o fato sobre o qual estivemos falando, teríeis então

24
uma maneira de agir completamente diferente, em relação a vossa
família e à sociedade.
Como vedes, estou voltando à questão da ação e talvez forçando
um pouco as conclusões. É bem de ver que todos desejamos “ fazer
alguma coisa” de nossa vida. Conheço pessoas, pelo mundo inteiro,
que se disciplinaram rigorosamente, por desejarem descobrir o que é
correto fazer. Essas pessoas se isolaram, renunciaram a tudo, obede­
ceram a preceitos religiosos e fizeram esforços tremendos; e o resul­
tado final é que são entes humanos mortos, estiolados. Foi o constante
esforço para ser alguma coisa, tornar-se alguma coisa, que os destruiu.
E quando pomos a sociedade e a família em oposição à liberdade, o
que fazemos é apenas introduzir o fator de conflito. E eu vos digo:
não introduzais o elemento de conflito. Vede a verdade aí existente,
e esse próprio percebimento se encarregará das relações. Como disse,
para a maioria de nós ação é puramente reação. Eu vos lisonjeio, e
vós reagis; ou vos insulto, e reagis. Nossa ação é sempre reação.
E eu estou falando a respeito de coisa diferente, da ação que não é
reação, porém ação total. Isto não é nenhuma idéia singular, extrava­
gante, fantástica, de minha própria cabeça. Mas, se observásseis dire­
tamente a coisa, na sua totalidade, se observásseis o mundo, as pessoas,
estudando-as, olhando-as realmente — os grandes, os pequenos, os
chamados santos e os chamados pecadores — veríeis que todos edifi­
caram suas vidas no conflito, na luta, na repressão e no temor, e
veríeis os horrores que daí resultam. Para ficardes livres de tudo
isso, tendes de primeiramente vê-lo.
Aparte : Há tanto condicionamento inconsciente!
K rishnamurti: Considerai isso, por favor. Todos vivemos em nossa
mente consciente, superficial, e como podeis clarear todas as camadas,
todas as seções do inconsciente, sem perder uma única? É possível
a mente consciente penetrar em algo inconsciente, oculto? Ora, sem
dúvida, o que posso fazer é só observar, permanecer completamente
desperto, vigilante, o dia inteiro — quando trabalho, quando descanso,
quando passeio, quando falo — para que tenha uma noite sem sonhos.
Começamos falando sobre uma revolução que não é resultado de
cálculo e pensamento; porque o pensamento é mecânico, o pensa­
mento é reação. O comunismo é reação ao capitalismo; se eu aban­
donar o catolicismo e me tornar outra coisa, isso é ainda uma reação.

2J5
Mas, sê percebo a verdade de quê pertencer a qualquer coisa, crer em
qualquer coisa significa estar apegado a uma certa forma de segurança
e impedindo, por conseqüência, o percebimento do que é verdadeiro,
não há então conflito, nem esforço.
Estou vendo, pois, que a ação que é reação, não é ação, de
modo nenhum. Desejo descobrir o que é a liberdade. Percebo a impe­
riosa e urgente necessidade de ter uma mente nova, e não sei o que
faça para ter. Assim, fico preocupado acerca do que “ devo fazer” ;
por conseguinte, estou dando toda a importância ao que “ devo fazer”
e não à mente nova. “ O que devo fazer” tornou-se, pois, de suma
importância, e rogo: “ Tende a bondade de mo dizer” — e deste
modo cria-se a autoridade, a coisa mais perniciosa deste mundo.
Assim sendo, podemos perceber interiormente, ver este fato real:
que toda ação é reação; que toda ação nasce do impulso para realizar,
alcançar, tornar-se algo, chegar a alguma parte? Posso perceber este
fato realmente, sem introduzir “ o que devo fazer” , “ minha família” ,
“ meu emprego” e outras coisas que tais? Porque, se a mente percebe
o fato, sem traduzi-lo nos termos do velho, há então percepção ime­
diata; compreender-se-á então a ação que não é reação; e essa com­
preensão é uma qualidade essencial da mente nova.

4 de maio de 1961.

26
LONDRES III
V iver sem Conflito

E stivemos falando sobre a necessidade de termos


uma mente nova, fresca. Em toda parte aonde vamos encontramos
tremenda desordem, sofrimento em grande escala, físico e mofai, infi­
nita confusão. E, parece-me, em vez de tratarmos de resolver o pro­
blema do sofrimento e da confusão, estamos mais interessados em
fugir dele — em busca da Lua, de entretenimentos, de ilusões várias.
Mas, o que quer que façamos, continuam existentes o sofrimento e a
confusão e, para livrar-nos dessas condições, é-nos necessário, penso
eu, uma mente nova, viçosa.
Desejo, pois, continuar do ponto em que paramos e considerar
se é possível vivermos neste mundo sem conflito. Porque, quer-me
parecer, uma mente invadida pelo conflito está embotada, é medíocre.
Todos nos achamos em conflito, desta ou daquela natureza, em níveis
diferentes e de diferentes formas. E, ou nós nos conformamos com ele,
ou tratamos ansiosamente de refugiar-nos em entretenimentos, refor­
mas sociais e nas coisas que as igrejas e as religiões oferecem, com
seus rituais, suas misteriosas palavras, suas crenças e dogmas —
românticas formas de consolação. E, à medida que vamos envelhe­
cendo e as fugas se tornando cada vez mais habituais e constantes,
nossa mente se torna mais e mais embotada, lerda, estúpida. Isso é
um fato ocorrente com a maioria de nós. Poderá haver momentos
em que, apesar de todos os sofrimentos causados pelo conflito, as
nuvens se abrem, deixando-nos ver algo, muito claramente, que nos
desperta um sentimento de tranqüilidade, profundeza; mas raramente
isso acontece.

27
Acho que precisamos investigar esta questão profundamente •—
tarefa bem difícil. Não se trata apenas de examinar umas poucas
idéias; trata-se, antes, de penetrarmos mui profundamente em nós
mesmos, para vermos se é possível extirpar o conflito em todas as
suas formas. Requer-se uma mente ardorosa, penetrante, mente que
não se deixe prender na rede das palavras. Infelizmente, tendemos a
prestar atenção apenas a certas palavras, frases e idéias; limitamo-nos
a deslizar sobre a superfície das coisas. E, provavelmente, tal é a
razão por que vimos assistir a estas conferências, ano por ano, e o
resultado final se torna um tanto estúpido; porque ficamos apenas a
trocar idéias sem jamais penetrarmos a matéria profunda e direta­
mente, para extirparmos deveras o conflito.
Penso, portanto, que devemos restringir-nos nesta manhã a ver
se é verdadeiramente possível — não teórica ou verbalmente — com­
preender deveras a natureza do conflito e, dessa investigação, sairmos
renovados, rejuvenescidos, purificados. A mente purificada, “ inocen­
te” , nunca se acha em conflito; está num estado de ação. Uma mente
em ação, em movimento, sempre a renovar-se, nunca se achará em
conflito. Só aquela que encerra contradição está perpetuamente em
luta.
Por favor, enquanto falo, não vos limiteis a ouvir minhas pala­
vras, porquanto as palavras só têm significado superficial. Pois estou
certo de que, se examinardes a vós mesmos, encontrareis muitas
contradições. Assim, tende a bondade de acompanhar-me atenta­
mente, “ experimentando” durante o percurso, porque, então, ao con­
cluirmos o nosso exame, talvez alcanceis um sentimento de clareza,
um sentimento de libertação da terrível opressão do conflito.
Vimos aceitando o conflito desde a infância. No setor educa­
tivo, todas as escolas do mundo estão criando bases de conflito e há
a luta constante para emularmos com os que são mais talentosos que
nós. E ao nos tornarmos mais velhos começamos a seguir o exemplo,
o líder, a autoridade, o ideal; e surge, assim, a separação entre o que
deveria ser e o que realmente é, e, daí, a contradição. Temos não
apenas o conflito exterior, mundano, a competição, os ideais, a ambi­
ção, o perpétuo impulso, na moderna vida social, a nos tornarmos
inteligentes, mais belos; imitação não só de nossos semelhantes, mas
também de Jesus, de Deus; imitação não só da moda, mas também
da virtude. De tudo isso resultam, exteriormente, guerras entre os

28
povos, as raças, as nações e os estadistas. E se um homem repudia
tudo isso, por demasiado estúpido, volta-se para o seu interior, onde
novo problema se apresenta — o de alcançar a paz, a tranqínlidade, a
felicidade, Deus, o amor, o céu. A busca interior é uma reação à
busca exterior, sendo, por conseguinte, o mesmo movimento — movi­
mento semelhante ao vaivém das marés. São estes óbvios fatos psico­
lógicos; e se nos tornamos cônscios de tudo isso, não há mais
discutir a seu respeito: é o fato. Poder-se-á argumentar sobre a possi­
bilidade de transcender tudo isso; mas o fato real é que existe conflito
interior e exíeriormente, de onde se origina um espírito de espantosa
brutalidade, uma eficiência cruel. O movimento exterior poderá pro­
duzir um certo progresso, prosperidade, mas pode-se ver o que está
acontecendo no mundo: tanta prosperidade e menos, cada vez menos,
liberdade. Isso se pode observar muito claramente na América: lá
existe esta grande prosperidade, mas o espírito pioneiro, o espírito
de liberdade vai desaparecendo gradualmente. Interiormente, também,
quanto mais intenso o conflito, tanto maior o impulso para a ativi­
dade; e surgem assim os ‘‘beneméritos” , os reformadores, os chamados
“ santos” e os intelectuais, autores de livros e mais livros, etc. etc.
Quanto maior a tensão do conflito, tanto mais ela se expressa por
meio da capacidade.
Sabemos de tudo isso, todos sentimos o “ puxão” em diferentes
direções. Conhecemos o impulso da ambição. E onde há ambição,
não há amor em forma nenhuma, não há compaixão, piedade ou afei­
ção. E a fuga ao conflito, seja conflito entre duas pessoas, seja entre
nações — e não importa se nosso refúgio é Deus, a bebida, o nacio­
nalismo, a conta bancária — a fuga nos afunda mais e mais no ilusório
sentimento de segurança. Nossa mente se nutre de mitos, especulações.
Cresce, assim, o conflito e desse estado resulta ação que, por
sua vez, produz mais contradição ainda. E ficamos a debater-nos nesse
torvelinho de luta. Estou apenas expressando em palavras o que
realmente está acontecendo. Tal é a sina de todos. Podemos ver
diretamente que a mente está sempre tentando fugir, por meio da
repressão, da disciplina — sempre advogada pelos santos, em todo
o mundo e, de feito, tudo submetendo a seu controle. E, se não
é a disciplina o nosso meio de fuga, é então uma certa atividade:
reforma social, reforma política, estudo de cursos especiais, fomento

2.9
da fraternidade — conheceis todas essas atividades, essa agitação, esse
impulso para fazer algo em relação com alguma coisa.
O que sabemos é apenas que nossa ação cria mais misérias, mais
perversão, mais ilusão e sofrimento, interior e exteriormente. Todo
estado de relação, no começo tão novo, tão original, degenera cm algo
feio, estúpido ou venenoso. Todos, sem dúvida, conhecemos esse pro­
cesso dual de amor e de ódio. E rogamos aos deuses os meios de
ocultá-lo. . . e, infelizmente, os deuses nos atendem, pois não faltam
meios de fuga.
Eis o quadro que se nos depara: uma idéia, um ideal, e a ação
resultante, visando a concretizar essa idéia. A mente cria a idéia e
em seguida procura agir, a fim de realizá-la. Está assim criado um
intervalo, sobre o qual procuramos tenazmente lançar uma ponte.
E nunca o conseguimos, porquanto a idéia é estática, criamo-la firme,
fixa; a ação, entretanto, tem de ser necessariamente variada, mutável,
em constante movimento, conforme as exigências da vida. Por isso,
há conflito perene.
E embora cônscios de todas essas tremendas tensões e violentas
exigências, nunca perguntamos a nós mesmos se é possível viver neste
mundo sem conflito. É possível? No meu sentir, só é criadora a
mente em que não existe um só movimento de conflito. Não me
refiro à ação criadora dos poetas, dos pintores, dos arquitetos etc.
Estes poderão possuir certos dons, certas capacidades; poderão ocasio­
nalmente vislumbrar algo, num rápido clarão, e expressá-lo no már­
more, num poema, num monumento arquitetônico; mas não são verda­
deiramente criadores, porque continuam em guerra, com si mesmos
e com o mundo; são impulsionados por suas ambições, seus ciúmes,
suas irritações e rancores, tal como nós outros. Mas, para encontrar
Deus — ou o nome que preferirdes — para descobrir realmente se
tal entidade existe, a mente deve estar de todo livre de conflito. Isso
exige enorme esforço; e, talvez, os mais velhos dentre nós já estão
acabados, fora de combate. Podemos estar assim, ou talvez não.
Não sei se já vistes as pinturas das cavernas de Dordognc, velhas
de dezessete mil anos. As cores são muito vivas, porque os ventos
e as chuvas nunca as atingiram. Representam essas figuras o homem
em luta com animais, cavalos, touros de graciosos chifres; e são repre­
sentações cheias de extraordinário movimento. Mas. . . a mesma luta,
sempre.

30
A questão, pois, é: Que devemos fazer em relação a tudo isso?
E tendes de resolver este problema, porque sois vós quem sofre,
quem está em conflito. Não podeis ficar a esperar descansadamente
que outra pessoa o resolva. E isso, afinal, nada tem que ver com a
idade, não depende de se a pessoa é velha ou nova.
Enunciando diferentemente o problema: viver é agir. Não se
pode viver sem ação. Cada gesto, cada idéia, cada onda de pensa­
mento é ação; e toda ação dá origem a uma reação, e dessa reação
resulta mais ação. Assim, todas as nossas ações são reações; e estamos
aprisionados nisso. Ora, é possível vivermos com ação em extraor­
dinária abundância e sem raízes nenhumas no conflito? Eis a questão,
que espero vos esteja ciara.
A parte : Suponho que isso acontece ocasionalmente a cada um
de nós; vem e vai independentemente de nossa vontade,
como o vento entre as árvores ou as folhas mortas levadas
pelo vento.
K rishnamurti: Quer dizer, isso acontece casualmente e fica-nos sua
lembrança, despertando o desejo de repetição — e temos assim, de
novo, conflito. Percebeis? Tenho uma experiência que me deleita:
contemplando uma bela nuvem, um rosto bonito, um doce sorriso;
e essa experiência deixa-me uma impressão de prazer, de alegria —
êxtase. Desejo vê-la repetir-se, e começa o conflito. Tende a bon­
dade de seguir isso, completamente, e vereis algo por vós mesmo.
A parte : O conflito começa com o desejar.
K rishnamurti: De fato? Que mal há em desejar algo belo?
A parte : Desejar a repetição, quero dizer.
K rishnamurti: Um momento, senhor. Todo desejo é de repetição.
Não haveria desejo de uma coisa, se não a tivéssemos provádo antes,
sem uma lembrança prévia. Todo desejar representa reconhecimento
de uma coisa antes conhecida.
A parte : E se se trata de desejar Deus?
K rishnamurti: É a mesma coisa, não? Desejar uma mulher, um
filho, apreciar um belo poente, ou desejar Deus, e desejar a repetição
da experiência — tudo é a mesma coisa, não? Parece que não estais
percebendo o aspecto mais importante da questão.

31
A parte : É a resistência ao desejar que cria a contradição.
K rishnamurti: O desejar gera conflito, e qualquer espécie de resis­
tência gera conflito; mas é este o problema? O perpétuo clamor do
artista provém de ter ele conhecido esse ocasional vislumbre da beleza
e desejar segurá-lo; e, assim, ele luta, entrega-se às mulheres, à bebida
etc. E nós fazemos a mesma coisa; vivemos no passado, nos “ dias
felizes que se foram” , os rostos lembrados, nossas memórias, e todas
as coisas que desejamos recordar. Elá o desejo, e a resistência a esse
desejo; mas é este o problema? Todos os santos disseram: “ Eliminai
o desejo” ; mandam-nos voltar-lhe as costas, asfixiá-lo, controlá-lo, não
nos deixarmos apaixonar. Mas é este o problema que nos interessa?
A parte : Acho que não compreendo o desejo.
K rishnamurti: É esse o problema? Vede, senhores, quando tendes
uma experiência e desejais repeti-la, continuá-la, não criastes um pro­
blema? Quer resistais, quer cedais, não criastes um problema? Cria­
mos o problema de como manter um determinado estado, não é
certo? Ora, que é um problema? Problema, por certo, é tudo aquilo
que eu não compreendi. Compreendida uma coisa, o problema deixou
de existir. Para um mecânico, um desarranjo num motor não consti­
tui problema real: ele sabe o que deve fazer. Nós aqui não sabemos
o que devemos fazer, e esse “ não saber” é um problema. Não pode­
mos destruir o desejo, pois isso seria terrível, estúpido; seria assumir
a vulgaridade do santo — perdoai-me, se vos choco. E a resistência
é uma forma de repressão. Certo?
E que há para compreender no desejo? Não muita coisa. Sabeis
o que são desejos e como eles nascem; e conheceis também a resis­
tência, e como nasce: de nossa educação, nossas tradições, nosso cabe­
dal mental ( background), a atitude do dizer “ isto é certo e aquilo
errado” , o sentimento de que devo ser respeitável a todo custo e que
minha respeitabilidade deve ser reconhecida pela sociedade. Conheceis
tudo isso.
Podemos agora passar adiante? Que é um problema, que é que
cria o problema?
A parte ; A lembrança da experiência.
K rishnamurti: Não se pode eliminar a experiência, pode-se? Isso
significaria morrer, fechar os olhos à vida, tornar-se insensível. Viver

32
é experiência. Mas a experiência deixa-nos o seu resíduo, como me­
mória — a cicatriz da memória. Estais-me seguindo? O problema,
pois, é a memória e não o desejo ou a resistência. Pode, então, a
mente viver num “ estado de experimentar” , sem que fique resíduo,
isto é, memória?
Podeis compreender isso verbalmente, mas trata-se de coisa real­
mente extraordinária e que deve ser investigada; mas para tanto
requer-se excepcional vitalidade e energia. Não pode a mente fugir
à experiência, entretanto todos tentamos furtar-nos a uma experiência
vital; reforçamos as paredes da crença; recusamo-nos a ver que o
mundo é uma unidade, que a Terra é vossa e minha; dividimo-la em
britânica, européia, indiana, russa; e quedamo-nos, paralisados, no
interior dessas muralhas. Repelimos, com efeito, a experiência por­
que não desejamos mudanças; cultivamos a memória, adicionando-lhe
em vez de subtrair-lhe.
O problema, portanto, é este: Pode a mente receber uma coisa
sem que esta deixe marca? Não podeis dizer que isso é possível ou
impossível. Pensai, por favor. Porque só a mente que experimenta,
vê, olha, vibra, está viva. Não está viva a mente que leva a carga de
memórias seculares, a que chamamos conhecimento, tradições. Entre­
tanto, não podemos suprimir o conhecimento; ele precisa existir, se­
não não saberemos voltar para casa. Mas pode-se viver sem a interfe­
rência do passado?
A parte : O problema é que, para impedirmos a memória de
deixar-nos marca na mente, precisamos possuir extraordi­
nário interesse em cada uma de nossas experiências.
K rishnamurti: Por favor, senhor, atentai no que acabais de dizer:
“ precisamos” . Esse “ precisamos” já lançou na mente o germe do
conflito, não?
A parte : Talvez eu devesse perguntar: Como criar esse interesse?
K rishnamurti: Para termos uma resposta correta, temos de fazer
uma pergunta correta. Esta pergunta é correta?
Aparte : Seria mais correto perguntar: Por que não estou inte­
ressado? ,
K rishnamurti: Ora, isto é como tirar o tom correto de um violino.
Só se pode tirar o tom correto quando a corda está na tensão correta.

33
Estais fazendo esta pergunta <eom a tensão correta? Tensão correta;
não, estado de conflito. Se considerardes bem, encontrareis vós mesmo
a resposta. Talvez a própria pergunta que estais fazendo vos esteja
impedindo de descobrir diretamente. Percebeis? Vou expressá-lo de
maneira diferente.
Percebo realmente, visualmente, o conflito existente no mundo
e em mim mesmo. Há contradição interna e externa. E o esforço
para fazer alguma coisa a esse respeito: tornar-me pacífico, evitar
todo sofrimento — implica conflito. Isso, fora de qualquer dúvida,
é o fato. Estais percebendo? E o desejar fazer alguma coisa contra
o fato é a reação de procurar fugir-lhe, repudiá-lo, resistir-lhe, trans­
cendê-lo. Correto? Portanto, o desejo, a ânsia-, o impulso para fazer
alguma coisa em relação ao fato é que é o problema. Mas, se o fato
existe e percebeis que nada podeis fazer contra ele, o próprio fato vos
dá então a resposta. Existe, então, problema?

7 de maio de 1961.

34
LONDRES - IV
O M edo

E STiVEMOS falando a respeito da mente nova, e


estou certo de que ela não pode ser produzida pela vontade, em qual­
quer forma que seja, nem por qualquer desejo, intenção, ou pensa­
mento deliberado. Mas parece-me que, se pudermos compreender os
vários fatores que impedem o nascimento desse estado, talvez possa­
mos, então, descobrir por nós mesmos a natureza da mente nova.
Desejo, pois, apreciar junto convosco uma questão que poderá ser
um tanto complicada, mas espero que possamos examiná-la a pleno e,
se necessário, prosseguiremos nisso da próxima vez.
Não sei se já perguntastes a vós mesmos porque existe esse
impulso inelutável a aderir a uma dada escola de pensamento, perten­
cer a alguma coisa, identificar-se com uma idéia, adotar um dado
sistema de ação. Uma pessoa adere, digamos, ao comunismo, identi-
ficando-se completamente com seus ideais, suas atividades. Pode-se
ver porque assim procede: porque tem esperanças numa utópia final
etc. etc. Mas esta me parece apenas uma explicação superficial. Penso
existe uma razão psicológica muito mais profunda pela qual cada um
de nós deseja pertencer a alguma coisa — uma pessoa, um grupo,
certas idéias e ideais. E talvez seja possível examinarmos a natureza
intrínseca desse impulso. Que é ele, precisamente?
Penso que, em primeiro lugar, está o desejo de agir. Desejamos
promover uma certa espécie de reforma, transformar o mundo de acor­
do com um certo padrão. Existe o sentimento de que devemos fazer
alguma coisa juntos, que há necessidade de ação cooperativa. E, em
certos níveis — melhoramento das estradas, promoção de melhores

33
condições sanitárias etc. — talvez seja necessário aderirmos a uma
certa idéia. Mas, se investigamos com mais profundeza, começaremos
a descobrir que existe esse impulso a nos identificarmos com uma
certa coisa porque aspiramos a um sentimento de segurança, de
garantia.
Todos conhecemos muitas pessoas que se filiam a determinado
partido político, ou determinado sistema de ação, ou certo grupo de
pensamento religioso. Passado certo tempo, essas pessoas começam a
descobrir que a causa que abraçaram não lhes convém e, assim, a
abandonam e passam-se para outra.
Acho importante averiguar porque existe esse impulso. Porque
é que aderimos a uma coisa ou pessoa? Se investigarmos isso, abri­
remos a porta do problema do medo.
A mente, por certo, está sempre em busca da segurança, da
permanência. Busca a permanência nas relações com a esposa, o
marido, os filhos, uma idéia, no conhecimento e na experiência. E
quanto mais experiência temos, quanto mais conhecimento acumula­
mos, maior se torna o sentimento de segurança. E permita-se-me dizer
agora que ouvir as palavras que estamos dizendo é uma coisa, e coisa
muito diferente é experimentar o que estas palavras significam. Estou
apenas descrevendo a natureza de nossa mente; e para a pessoa que
não está cônscia de seus próprios pensamentos e atividades, essa des­
crição se torna muito superficial. Mas se, penetrando as palavras, a
pessoa começa a compreender a si mesma, percebe que na realidade
está em busca de segurança e o que esta busca implica, isso, sem
dúvida, tem extraordinário significado. Deixar-se satisfazer apenas
com palavras e explicações, como o faz a maioria de nós, parece-me
extremamente fútil. Nenhum homem que sente fome se satisfaz com
a palavra “ comida” .
Assim, podemos examinar esta questão do medo, mas sem inte­
resse no que devemos fazer contra ele? Mais tarde, poderemos tratar
deste ponto, ou talvez nem seja isso necessário. Por que surge o
medo? E por que está a mente sempre a buscar segurança, não apenas
fisicamente, exteriormente, mas também interiormente?
Estamos falando de “ exterior” e “ interior” ; mas, para mim, há
só um movimento, que se expressa ora exteriormente, ora' interior­
mente. É um movimento de vaivém, como o da maré. Não existem
coisas tais como mundo exterior e mundo interior, e esta separação

36
dos dois cria divisão, conflito. Mas, para compreender a “ maré” inte­
rior, o movimento interior, precisamos compreender também o movi­
mento que se dirige para fora. E se estamos cônscios das coisas exter­
nas e não há reação a elas, na forma de resistência, defesa ou fuga.
pode-se então ver que o mesmo movimento se torna interior, pro­
fundo; mas a mente só poderá segui-lo, se não houver divisão ne­
nhuma.
Se refletimos um pouco a esse respeito, podemos ver que as
pessoas ditas religiosas separam o exterior e o interior; a atividade
exterior é considerada como muito superficial, desnecessária e mesmo
má, e a interior considerada muito significativa. Por isso, há conflito
—- questão que estivemos examinando, há dias, com certa profundeza.
Estamos agora investigando a questão do medo, não só o medo cau­
sado pelos eventos exteriores, mas também pelas interiores exigências
e compulsões, e pela perpétua busca de certeza. Toda experiência,
evidentemente, é uma busca de certeza. Uma experiência de prazer
leva-nos a desejar mais prazer, e este mais é o impulso para pôr-nos
em segurança em nosso prazer. Se amamos alguém, queremos ter
toda a certeza de que esse amor é correspondido, e procuramos firmar
um estado de relação que — assim esperamos, pelo menos — seja
permanente. Toda a nossa sociedade se baseia nesta qualidade de rela­
ções. xMas existe coisa permanente? Existe, de fato? O amor é
permanente? Nosso desejo constante é tornar permanentes as sensa­
ções, não é verdade? Considere-se a questão da virtude. O cultivo
da virtude, o desejo de ser permanentemente virtuoso é, essencialmen­
te, desejo de estar em segurança. E a virtude pode ser permanente?
Por favor, senhor, não aceneis apenas com a cabeça, concordando, mas
segui isso interiormente, em vós mesmos.
Digamos: uma pessoa sente cólera, ou sente que lhe falta bon­
dade, compaixão, afeição. Pelo cultivo do oposto da cólera, pelo
cultivo da tolerância, espera ela produzir um estado de virtude, sendo
assim a virtude meramente um “ artigo” adequado a nossa conveniên­
cia, um meio para um certo fim. Mas a virtude, a bondade, por
certo não são cultiváveis, absolutamente. A bondade, tal como a
humildade, só pode manifestar-se quando há atenção completa, não
visando a nenhum ganho. Considere-se a questão de ser amado ou de
amar. É possível a mente ambiciosa amar ou ser amada? O funcio­
nário que deseja tornar-se chefe, o chamado “ santo que aspira a

37
realizar Deus” , são ambiciosos, porque estão interessados no próprio
aperfeiçoamento; e a mente deles, é óbvio, não pode conhecer o amor.
A mente desejosa de compreender a natureza da palavra “ amor” deve,
sem dúvida, estar totalmente livre daquele desejo de segurança, pois
assim nos tornamos essencialmente vulneráveis, sensíveis. É possível,
pois, nos tornarmos verdadeiramente livres do medo?
Desejamos ter segurança neste mundo, materialmente, e dese­
jamos estar seguros em nossa respeitabilidade, em nossas idéias; dese­
jamos ser informados sobre o que será de nós após a morte; e podereis
observar, se o quiserdes, que nossa mente está sempre e sempre culti­
vando esse desejo de certeza. Mas não vejo como possa a mente ficar
livre do medo e das respectivas frustrações, quando está a buscar
segurança. Evidentemente, há necessidade de um certo grau de segu­
rança física: precisamos saber de onde nos virá a próxima refeição,
ter um lugar onde dormir, ter roupas, etc. etc.; e qualquer sociedade
razoavelmente justa procura prover estas condições. Talvez, dentro
de uns cinqüenta anos haverá no mundo inteiro uma certa forma de
segurança. Oxalá assim seja, mas não é isso que nos interessa neste
momento. Nós desejamos segurança tanto em nossas ações como
interiormente; e não é esta a causa do medo?
O medo sempre nos acompanha, não é verdade? Medo do escuro,
medo dos outros, medo da opinião pública, medo de perdermos a
saúde, de perdermos nossas capacidades, medo de não sermos ninguém
neste mundo monstruoso, aquisitivo, agressivo; medo de não alcan­
çarmos o objetivo, de não “ realizarmos” um estado de suprema feli­
cidade, bem-aventurança, Deus, ou o que quer que seja. E também,
naturalmente, há o medo fundamental à morte. Não estamos tratando
da morte, por ora, porém apenas tentando ver, descobrir o medo.
Sem dúvida, o medo está sempre em relação com alguma coisa. Não
existe medo sozinho, per se. Há dúzias de manifestações de medo,
todas em relação com alguma coisa. E é possível ficar-se só, comple­
tamente? É possível a mente ficar de todo só, sem isolar-se, sem
edificar muralhas, torres de marfim, ao redor de si? Á mente está
só, quando já não busca segurança. E pode ela libertar-se totalmente
do medo?
Note-se que o medo supõe o tempo. Vamos examinar isso. O
tempo — ontem, hoje e amanhã — é um fator de medo. Estou enve­
lhecendo e a morte me espera, desde agora e por todos os dias vin-

38
douros. E o pensamento relativo à morte e pensamento de medo.
Haveria medo à morte, ao fim, se não houvesse pensamento referente
ao amanhã, ao futuro? Não concordeis comigo, por favor. Concordar
com uma explicação não tem valor. Se examinastes verdadeiramente,
diretamente, esta questão do medo, deveis ter encontrado a questão
do tempo, que compreende não só o amanhã, mas também o passado,
o qual significa — não achais? — experiência. Pode a mente ficar
tão só, tão desligada do passado e do futuro, que não esteja encerrada
de modo nenhum na esfera do tempo?
A mente busca segurança, identificando-se com uma idéia, crença,
determinada norma de ação, pertencendo a um grupo, ao cristianismo,
ao hinduísmo, ao budismo, a isto ou àquilo — e tudo isso é o con­
trário de estar só. Quase todos temos horror a estar sós. A seguir,
temos o conflito proveniente da contradição, e a raiz desta contradição
é a ânsia de preenchimento. Há, pois, essa ânsia constante de preen­
chimento, de ser, de “ vir a ser” algo permanente; e apresenta-se, assim,
a questão do tempo. Eis todos os fatores do medo; e acho que
não há necessidade de pormenorizarmos mais.
Ora, depois de vermos a totalidade do quadro, de o sentirmos
totalmente, surge a questão: Pode a mente abandonar o medo, de
todo? Isso significa, com efeito — se assim podemos dizer sem ser
mal compreendidos — pode a mente estar só, não relacionada? Ha­
verá uma solitude que não seja mero oposto do conflito, da contra­
dição criada pelas relações? Eu creio que nesta solitude se encontra
o verdadeiro estado de relação, e não na outra. No “ estar só” não
existe medo.
Afinal, há séculos que o homem se ocupa com o problema do
medo, e ainda não estamos livres dele. E o medo, em suas formas
extremas, leva a diferentes manifestações de neurose, etc. Ora, a
questão é se vós e eu, percebendo tudo isso, podemos ficar total e
instantaneamente livres do medo —• mas não pelo hipnotizar-nos a
nós mesmos, dizendo: “ Agora estou livre do medo” — porque isso
é puro absurdo. O percebimento da totalidade do medo significa,
essencialmente, um estado de “ não ser” .
Aparte : Parece-me que tenho medo de me ver forçado a viver
em certas circunstâncias, como, por exemplo, morar numa
grande cidade ou trabalhar numa fábrica onde nada existe
que eu possa amar ou considerar valioso.

39
K rishnamurti: Como procedereis em tal caso, senhor? Digamos
que eu tenho de trabalhar da manha à noite num pequeno escritório,
aqui em Londres, com um chefe desagradável. A ida diária para o
trabalho, de ônibus ou pelo “ metrô” , a incessante rotina, o contato
constante com pessoas que aborrecem e atormentam — todas essas
detestáveis condições. . . Que devo fazer? As circunstâncias rne
estão forçando. Tenho responsabilidades: minha mulher, meus filhos,
minha mãe etc. Não posso afastar-me, fugir para um mosteiro; e isso
seria outra coisa horrorosa: a rotina de erguer-se às duas da madru­
gada, recitar as mesmas e velhas orações para as mesmas e velhas
divindades etc. Neste mundo de rotina, monotonia e sordidez, tudo
fazemos para fugir, todos perguntamos: “ que posso fazer para livrar-
-me disso?”
Em primeiro lugar, nós somos educados erroneamente — nunca
somos educados para amar aquilo que fazemos. Assim, vendo-nos
presos na rede, sem possibilidade de fuga, perguntamos: Que devo
fazer? Não é exato, senhores? Fugir para o sentimentalismo, para
crenças, igrejas, organizações, idéias utópicas, é evidentemente absurdo.
Percebo a futilidade dessa fuga e, portanto, abandono-a. Já não há
a tentação de fugir e fico em presença do fato, o fato duro e brutal.
Que devo fazer? Dizei-mo, senhores!
A parte : Por certo, nada podeis fazer.
K rishnamurti: Senhores, já “ vivemos com alguma coisa” sem resis­
tência nenhuma? Já “ vivi” com minha cólera, sem resistência? —
o que não é a mesma coisa que aceitá-la, pois isso significaria apenas
a continuação dela. “ Viver” com a cólera, conhecer-lhe a natureza
íntima; “ viver” com a inveja, sem procurar dominá-la, reprimi-la ou
transformá-la. . . já tentastes isto? Já tentastes alguma vez “ viver”
com algo realmente belo, um quadro, uma bela paisagem, uma mon­
tanha majestosa com soberbo panorama? E que acontece se viveis
com essa coisa? Depressa vos acostumais com ela, não é verdade?
Vendo-a pela primeira vez, ela vos comunica um certo sentimento de
desafogo, de percepção, com o qual vos habituais; passados dias, ele
se desvanece. Vede os camponeses, em todas as partes do mundo,
que vivem rodeados de maravilhosos cenários; acostumaram-se com
eles. E a esqualidez das cidades de todo o mundo, a sordidez, a podri­
dão, a fealdade, a crueldade, a tremenda brutalidade... com tudo
isso nos acostumamos também. “ Viver” com o belo ou com o feio,

40
sem se acostumar — isso requer espantosa energia, não? Não se
deixar acabrunhar pelo feio nem embotar pelo belo, e ser capaz de
“ viver” com ambos, requer extraordinária sensibilidade e energia. E
isso é possível? Por favor, senhores, refleti um pouco sobre isso.
O problema da energia é muito complicado. O alimento não
dá a energia a que me estou referindo. Dá uma certa qualidade de
energia; mas o “ viver” com uma coisa, o “ viver” com o amor exige
energia de qualidade completamente diferente. E como se adquire
essa energia que constitui, essencialmente, a natureza da mente nova?
Ela se adquire, por certo, quando não existe medo, quando não existe
conflito, quando não desejamos ser algo, quando vivemos totalmente,
anonimamente.
Mas, que bem se faz falando sobre essas coisas? Elas supõem
um extraordinário percebimento da busca de segurança, exterior e
interiormente. E os mais de nós já estamos muito cansados, muito
velhos, obrigados a viver no passado, em nossa ocupação, ou em
alguma escura masmorra de nosso ser. Assim, que fazer?
Voltemos à nossa primeira pergunta. Pode a mente libertar-se,
instantaneamente, de toda ânsia e exigência de segurança? Pode-se
viver num estado de completa incerteza, sem enlouquecer, no mínimo
que seja?
Aparte : Se uma pessoa gosta muito de seu trabalho, também aí
há medo?
K rishnamurti: Há, sim, senhor, porque há o risco de perder a capa­
cidade para esse trabalho. A capacidade, senhor, é uma coisa terrível
porque nos proporciona um esplêndido meio de fuga. Se um homem
é bom pintor, bom orador, se tem a capacidade de coordenar palavras,
escrever, se é competente engenheiro, ou possui um talento qualquer,
isso lhe dá um extraordinário sentimento de segurança, confiança em
si, neste mundo de competição e aquisição. E, se não tem confiança em
suas aptidões, sente-se totalmente perdido. Mas, sem dúvida, para
encontrar Deus — ou o nome que lhe quiserdes dar — a mente deve
estar de todo vazia, não? Deve estar livre do conhecimento, da expe­
riência, da capacidade e, por conseguinte, livre do medo, inteiramente
purificada {innocent) , fresca, jovem.
A parte : Isso parece que seria o fim de mim mesmo, tal como
me conheço.

4X
K rishnamurti: Sim, senhor, justamente. Não sei se já tentastes
viver um dia inteiro tão completamente que não houvesse nem ontem
nem amanhã. Isso requer muita compreensão do passado. O
passado não é apenas a palavra, a língua, o pensamento, mas tam­
bém o retrospecto do ontem e suas raízes que se cravam no presente.
Alijar completamente o passado — as iniquidades cometidas, as
inverdades proferidas, as ofensas e danos causados — abandonar todos
os prazeres, dores e lembranças. Não sei se já tentastes isso, se já
tentastes arredar-vos do passado. E ninguém pode arredar-se dele,
se há mágoas ou prazeres nas coisas lembradas. Experimentai isso,
de quando em quando, não porque vo-lo estou dizendo ou porque
espereis daí alguma recompensa ou maravilhosa experiência, pois isso
seria mera troca, barganha. Mas para a mente, resultado do tempo,
constitui uma coisa deveras extraordinária, estar completamente livre
do tempo.
A parte : O hábito constitui uma parte considerável disso de que
estais falando, não?
K rishnamurti: Temos de averiguar isso, não? Não estou aqui ape­
nas para responder a perguntas: estamos investigando. Vemos a mente
sempre ocupada. Com a maioria de nós, é isso que se passa. Acha-se
a mente ocupada em ensinar, cuidando das crianças, da casa, do empre­
go; ocupada com suas próprias vaidades e virtudes. . . sabeis com
quantas coisas ela vive ocupada. E ocupação supõe hábito. Ora,
porque tem de estar ocupada? Quer ocupada com o sexo, quer com
Deus, quer com a virtude — tudo é a mesma coisa. Não há ocupa­
ção nobre ou ignóbil. Não é assim? Não sei se percebeis isso real­
mente. A mera substituição da ocupação não constitui libertação da
ocupação. Ora, porque tem a mente de estar ocupada?

A parte : I sso pode ser um meio de fuga.


K rishnamurti: Sim, senhor, não há dúvida que é um meio de fuga;
mas as explicações não nos podem levar muito longe. Ide um pouco
mais longe, senhor. Penetrai mais.
A parte : É por medo, não? Por avidez também, talvez.
K rishnamurti: Podemos prosseguir indefinidamente, adicionando
explicações e mais explicações: fuga, medo, avidez. E qual o resul­

42
tado? Não me estou mostrando intransigente, rude ou indelicado.
Mas já demos explicações e, contudo, a mente não ficou livre da
ocupação.
A parte : Porque a mente é ocupação.
K rishnamurti: Dizeis que a mente é ocupação; e isso significa —
não é verdade? — que a mente que não está ocupada, que não está
ativa, pensando, funcionando, indagando, respondendo, desafiando
(pois tudo isso são manifestações da mente) não é mente. Isso é
exato? A palavra “ porta” não é a porta, e a palavra “ mente” não
é a mente. A mente “ se realiza” na ocupação? Ou existe uma mente
que diz: “ Estou ocupada” ?
Desejo averiguar porque a mente persiste ocupada. Porque dize­
mos que, se a mente não está ocupada, ativa, buscando, defendendo,
nutrindo ansiedades, medo, culpa, não é mente? Se não existem
todas essas coisas, não existe mente?
A parte : Essas coisas são a mente, num certo nível, não consti­
tuem a mente total.
K rishnamurti: Ansiedade, culpa, medo, reações — é só isso que
conhecemos, não? E que é a totalidade da mente, como a conhe­
cemos? A totalidade da mente, como a conhecemos, são o inconsciente
e o consciente. Voltemos um pouco atrás. Por que está ocupada a
mente? E que aconteceria se a mente não estivesse ocupada?
A parte : Se a mente não está ocupada, há atenção profunda.
K rishnamurti: Não digais “ se” , que é especulação. Como vedes,
não estamos penetrando devidamente a questão.
A parte : A mente está sempre reagindo a estímulos vários. É
esse o processo de “ estar ocupada” .
K rishnamurti: Sem dúvida, senhor, sem dúvida nenhuma. Já'algu­
ma vez experimentastes ficar sem pensamento algum? Pois todo pen­
samento é ocupação com uma ou outra coisa.
Aparte : Isso é impossível, porque, se a mente está vazia, nada
se pode experimentar.
K rishnamurti: Não, não, senhor! Aqui também não se trata de
nenhum “ se” ; e não empreguei “ experimentar” nesse sentido. Nós

43
vivemos enredados nas palavras, já vos aconteceu alguma vez ter
cessado o pensamento? Não, “ ter terminado um pensamento” por­
que saístes a seu encontro dispostos a liquidá-lo; não é isso o que
quero dizer. Mas, quando há pensamento, há ocupação. O pensa­
mento põe a funcionar o hábito. Já olhastes para uma coisa, sem
pensamento? Não me refiro a um estado de vazio, e, sim, a um
estado em que estais presente com todo o vosso ser, e plenamente
atento. Já olhastes para alguma coisa nesse estado em que não
existe pensamento? Já olhastes para uma flor, sem dizerdes o seu
nome, sem dizerdes quanto é bela, que linda a sua cor etc.? Sabeis
quanto a mente “ tagarela” . Já olhastes para alguma coisa, sem julga­
mento, sem avaliação?
Se pudéssemos “ olhar” o medo sem resistência, sem aceitá-lo ou
condená-lo ou julgá-lo, observando simplesmente a sua presença em
nós e “ vivendo com ele” , isso seria então medo? Mas o “ viver com
ele” exige imensa energia, para que a mente preste completa atenção.
Suponhamos que alguém rne diga: “ Sois um homem muito arro­
gante” . Muitas pessoas me dizem coisas — que sou isto, que sou
aquilo. Cada declaração que fazem, eu “ vivo com ela” . Relevai-me
falar rapidamente sobre minha pessoa: Eu “ vivo com ela” , não lhe
resisto; não digo que é certa nem que é errada. E o “ viver com ela”
requer atenção, para ver se é verdadeira. Atenção é energia. Aten­
ção, energia, é o universo inteiro; mas não é disso que estamos tra­
tando agora. Pode-se “ viver com a coisa” , não desfigurá-la; não dizer:
“ Já me disseram isto antes” , “ Eu não sou assim” ou “ Eu sou assim
e preciso mudar” . Entendeis? Não é possível viver com o agradável
e o desagradável; viver com o sofrimento — seja uma dor de dentes
ou outra espécie de sofrimento — viver com o medo, sem se tornar
desequilibrado? Gostamos de viver com as coisas agradáveis, as expe­
riências deleitáveis que tivemos. São coisas mortas e idas, mas que­
remos “ viver com elas” , e, assim, ficamos vivendo apenas com uma
lembrança morta. Com o sofrimento não queremos viver, desejamos
achar uma saída. . . Mas não é possível viver com ambas as coisas,
sem pedir solução, sem pedir resposta, e sem nos pormos a dormir
em relação a elas?
Vede: istó é meditação.

9 de maio de 1961.

44
LONDRES V
L ibertação do T emor

D A ú lt im a vez estivemos falando a respeito do


medo e sobre se é possível a mente libertar-se dele, completamente e
não parcialmente, gradualmente: lançá-lo fora, inteiramente. Gosta­
ria de continuar a investigar esta questão nesta tarde.
Nossa mente é influenciada, em todos os sentidos, pelos livros que
lemos, a alimentação que tomamos, o clima, a tradição, e por inume­
ráveis desafios e reações. Todas essas impressões constituem o condi­
cionamento da mente. Somos o resultado de influências: as que são
chamadas “ boas” e as que são chamadas “ más” , as superficiais e as
profundas, impensadas, irreconhecidas, desconhecidas. Mas, em geral,
não estamos cônscios desse fato. Com a expressão “ influências desco­
nhecidas” não me estou referindo a nenhuma coisa misteriosa. De
fato, quando viajo num ônibus ou no caminho de ferro subterrâneo,
não estou cônscio dos ruídos, dos anúncios, da propaganda dos jornais
e dos discursos dos políticos, não estou cônscio de nada do que se
está passando. No entanto, nós somos moldados por essas coisas; e
quando começamos a notá-lo, isso nos parece algo aterrador, pertur­
bador. A questão, pois, é se a mente é capaz de tornar-se realmente
livre da influência — tanto das influências inconscientes como das
conscientes. Todos sabemos que, na América, se não me engano,
andaram experimentando um método de propaganda, nos cinemas, no
rádio e noutros lugares, método consistente em dizer as coisas com
tanta rapidez que a mente consciente não as percebe, mas são perce­
bidas pelo inconsciente; a impressão fica gravada. Deu-se-lhe o nome
de “ propaganda subliminal” e, por felicidade, o governo a sustou. Mas,

45
infelizmente, embora sustada numa de suas formas, todos somos escra­
vos dessa propaganda inconsciente, “ subliminal” . Passamo-la adiante
a nossos filhos, de geração para geração, e permanecemos aprisionados
na estrutura da influência.
Não estamos fazendo propaganda aqui: que isto nos fique bem
claro. Para mim, qualquer forma de influência é destrutiva do que
é verdadeiro. Se se deseja que a mente se torne livre para descobrir
o incognoscível, aquilo que se não pode medir, que não pode ser
“ juntado” pela mente humana, temos então de penetrar através de
todas essas influências. O medo tem suas raízes na marca gravada
pelo tempo; e a bondade não pode florescer no campo do medo.
Assim, pode-se investigar a influência — a influência da palavra, da
palavra “ comunista” , da palavra “ crença” e da palavra “ descrença”
— para se descobrir diretamente se á mente pode libertar-se da pala­
vra, do símbolo?
Acho importante investigar esse ponto; mas estou incerto sobre
o que entendemos por “ investigação” . Como investigamos? De que
maneira penetramos as coisas? Que supõe a investigação? Observais
conscientemente o medo, as várias formas de influência, o efeito hipnó­
tico da palavra; olhais as coisas conscientemente, deliberadamente? E
quando as olhais dessa maneira, elas vos revelam algo? Ou há outra
maneira de ver, de olhar, de investigar? Pelo exercício da vontade,
a ânsia, o desejo, a compulsão a investigar, a buscar, podeis esclarecer-
-vos a respeito do medo? Podeis descobrir todas as suas implicações?
Podeis acumular conhecimento a respeito dele, a pouco e pouco, página
por página, capítulo por capítulo? Ou pode-se compreendê-lo em sua
totalidade, imediatamente? Existem dois modos de investigar, não?
Não sei se já pensastes sobre isto. Há o chamado processo positivo,
pelo qual nos aplicamos deliberadamente a investigar cada manifes­
tação do medo, pela observação de cada passo, cada palavra, com o
perceber cada movimento do pensar. E tal processo é extremamente
destrutivo, não achais? — pois é uma constante dissecação de nós
mesmos, com o fim de descobrirmos o que desejamos. Esse é o
processo analítico, introspectivo.
Existe outro método de investigação? Notai, por favor, que não
estou procurando levar-vos a pensar numa certa direção, como o
fazem os propagandistas. Mas podemos ver diretamente o que é
verdadeiro e o que é falso, sem estarmos sujeitos a nenhuma influên­

46
cia, nenhuma orientação verbal? Podemos ver a verdade no falso, e
como verdadeiro o que é verdadeiro? A questão é esta: Pode o
processo analítico de investigação libertar a mente de toda e qualquer
forma de medo? E é possível mesmo ficar-se livre do temor? Fisi­
camente, há o medo autoprotetório, quando, por exemplo, deparamos
com uma serpente, um cão raivoso, um ônibus que avança para nós
a toda velocidade. Este medo autoprotetório é são, naturalmente.
Mas todas as outras formas de reação protetória baseiam-se no medo.
E pode a mente, pelo processo positivo de investigação, esclarecer
todas as complicações, todo o mecanismo do medo?
Deve ficar bem claro, antes de prosseguirmos, que não se trata
aqui de aceitar ou rejeitar o que se está dizendo. Não estamos inves­
tigando na base de argumentação; estamos tentando ver o fato real.
Quando se vê um fato, não há necessidade de discutir ou de deixar-se
convencer a seu respeito.
A questão, pois, é esta: Pelo exame introspectivo, pelo exercício
da vontade, mediante esforço, pode a mente libertar-se, esclarecer as
causas do medo e dele libertar-se?
Tendes tentado, por certo, disciplinar-vos contra o medo ou pro­
curado racionalizá-lo — o medo do escuro, medo do que os outros
digam de vós, medo de mil-e-uma coisas. Todos nós já experimen­
tamos a disciplina e, no entanto, o temor continua existente. A resis­
tência não pode eliminá-lo. Assim sendo, se o processo positivo —
se me é permitida esta expressão, pois a palavra “ analítico” não é
suficientemente descritiva — se o processo positivo é ineficaz para
a libertação da mente, existe outro caminho?
Não estou empregando a palavra “ caminho” , no sentido de movi­
mento gradual de um ponto para outro, implicando, portanto, distân­
cia daqui até lá. É no chamado método positivo que existe “ gradua-
lidade” , o intervalo de adiamento, o “ tempo intermediário” , o “ che­
garei oportunamente” , o “ isso há de ser conquistado mais cedo ou
mais tarde” , etc. Nesse processo existe sempre um intervalo entre o
fato — o que é ■— e a idéia — o que deveria ser. Esse método, para
mim, não libertará a mente de modo nenhum, porquanto implica o
tempo, que se toma então de suma importância. A meu ver, o tempo
supõe medo. Se não houvesse amanhã nem ontem, e todas as influên­
cias de ontem levando-nos, através de hoje, para amanhã — o que
implica não só tempo cronológico, mas também tempo psicológico,

47
ou seja, a vontade de alcançar, de chegar, de conquistar — não exis­
tiria medo, porque, então, só há o movimento vivo, o Intervalo onde
o tempo não existe.
Assim, o chamado método positivo — investigação positiva, ati­
vidade positiva — é, essencialmente, uma prolongação do medo. Não
sei se isto está bem compreendido — não as simples palavras que
estou dizendo, que não são importantes, porém o fato real.
Ora, se o processo positivo não constitui o fator libertador, qual
é então esse fator? Mas, primeiro cumpre compreender que a inves­
tigação desse fator libertador não representa meramente uma reação
do processo positivo. Isso precisa ser percebido com toda a clareza.
Esperai, por favor, um minuto apenas, e olhai bem. Estou pensando
em voz alta. Não pensei nisso de antemão. Precisamos dar tempo
uns aos outros, para olhar.
Pode-se ver que a espécie de investigação que denominamos “ mé­
todo positivo” não liberta a mente do temor, porquanto conserva o
tempo: o tempo, como o amanhã moldado pelas influências do passado,
atuando através do presente. Por favor, não vos limiteis a aceitar isso:
vede-o. Se virdes a verdade ou a falsidade aí contida, então vossa
ulterior investigação não será uma simples reação ao processo positivo.
Sabeis o que entendo por “ reação” . Não gosto do cristianismo
por uma dúzia de razões, e por isso me torno budista. Não gosto do
sistema capitalista, porque não posso adquirir uma fortuna imensa ou
por outra razão qualquer; assim, em reação, torno-me fascista, comu­
nista, o que quer que seja. Se sou medroso, trato de cultivar a
coragem; mas isso é ainda reação e, portanto, continua dentro da
mesma esfera do tempo.
E vemos, assim, surgir um fato: que quando se vê uma coisa
como falsa — e isso não é reação — torna-se existente um novo pro­
cesso. . . não um processo, um novo germe.
Não sei se me estou fazendo claro. Em primeiro lugar, para
ver que uma coisa é falsa ou que uma coisa é verdadeira, necessita-se
de uma mente muito vigilante: mente de todo livre de qualquer
motivo.
Percebemos agora o que entendemos por processo analítico; e
se se lhe percebe a falsidade ou a verdade, ou se se percebe a verdade
contida no falso — como trataremos, então, do problema do medo?

48
Se aquele método não representa o verdadeiro caminho, cumpre-nos
então voltar-lhe as costas inteiramente, não é verdade? O voltar-lhe
as costas não é uma reação; não tem nenhum motivo; é, simples­
mente, que o percebestes como falso e, portanto, o abandonastes. Não
sei se compreendestes bem isso. Acho importantíssimo compreendê-lo,
porque, então, estais cortando as próprias raízes do esforço e da
vontade.
Ora, qual o estado da mente que abandonou o processo analítico
com todas as suas implicações? Por favor, não vos limiteis a ouvir
minhas palavras, mas olhai para vossa própria mente.
A parte : A mente está completamente incerta.
K rishnamurti: Senhor, não respondais, por favor! Não lhe deis,
por enquanto, expressão verbal. Tende a bondade de esperar! Não
o expresseis, nem sequer para vós mesmos, porquanto se trata de
coisa inteiramente nova, entendeis? Por conseguinte, ainda não ten­
des palavras para representá-la. Se já tendes estas palavras, ainda não
estais olhando verdadeiramente.
É este o estado de revolução, não achais? — a revolta que não
é reação, a revolta que nos afasta de toda tradição referente a “ como
ser livre” , “ como alcançar” , “ como chegar” . Não sei se estais apreen­
dendo isso. Mudemos de assunto por um instante; deixemos aquilo
momentaneamente “ em ebulição” .
Em geral, sabemos o que significa sentir-se ansioso, sentir-se
“ culpado” . . . vestir roupas limpas, quando há milhões no Oriente
que nada têm para vestir; tomar uma substancial refeição, enquanto
milhões padecem fome. Talvez, porque viveis numa comunidade onde
tendes segurança, do ventre materno ao túmulo, não conheçais esse
sentimento. Só há a “ culpa” coletiva da raça; a “ culpa” da família
— o nome, o nome importante e o nome insignificante; a “ culpa”
dos V IP ’s 1 e a dos que não são ninguém; e a “ culpa” do indivíduo,
as coisas que fizemos incorretamente, as coisas que dissemos e pensa­
mos, o desespero que tudo isso desperta. E, por causa desse deses­
pero, praticamos os atos mais estranhos. Andamos numa roda vida,
aderindo a isto e àquilo, tornando-nos isto e rejeitando aquilo, sempre

(1) V IP : iniciais de “ v ery im p o r ta n t p e r s o n s " (pessoas muito importan­


tes). (N. do T.)

49
esperançosos cie eliminar o desespero interior. E o desespero, por
sua vez, tem suas raízes no medo. O desespero gera muitas filosofias;
e por causa dele passamos por muitas mortes. Não me estou fazendo
dramático ou romântico. Esse é o estado comum pelo qual todos
passam, intensamente ou superficialmente, quando, por exemplo, liga­
mos o rádio, abrimos um livro, vamos ao cinema, à igreja, ou assis­
timos a um desfile. Se for muito profundo, a pessoa “ perde o pé” ,
tornando-se neurótica ou aderindo a um dos novos e “ modernos” movi­
mentos intelectuais.
É isso o que está acontecendo em todo o mundo. Negamos Deus,
as igrejas perderam sua significação, a autoridade do sacerdote desva­
neceu-se. Quanto mais a pessoa reflete, tanto mais purifica sua mente
de todos esses absurdos.
É necessário, pois, estudar o medo, comprender o temor. Enten­
deis? É necessário descobrir. Porque não existe apenas o medo à
morte, o medo das coisas que fizemos e das coisas que não fizemos,
mas existe também o desespero, a ansiedade, e a “ culpa” , nascidos do
medo. Tudo são manifestações do medo. Assim, para que a mente
não se despedace ou deteriore, para que permaneça ativa, rica, ela tem
de eliminar o temor. Enquanto não o fizermos, acho que não pode­
remos saber o que significa amar e o que significa ter paz — não a
paz política, etc. e tal, porém um genuíno sentimento de tranqüiü-
dade interior, inatingível pelo tempo, incorruptível; esse sentimento
nenhuma relação tem com aquela coisa chamada paz, construída pela
mente humana.
E, portanto, imperioso que a mente se liberte do medo, porque
só a mente livre pode descobrir se algo existe além. Algo que se pode
chamar a Verdade, Deus — ou o nome que preferirdes: aquilo que
o homem vem buscando há séculos, há milênios.1

11 de maio de 1961.

50
LONDRES VI
D as I nfluências Condicionantes

E STIVEMOS falando a respeito da total libertação do


medo; e, evidentemente, é necessário estar-se livre dele, porquanto o
medo cria inúmeras ilusões, inúmeras formas de automistificação. Sob
o domínio, consciente ou inconsciente, do medo, jamais descobriremos
o que é verdadeiro ou que é falso. Se não estamos livres do temor,
a virtude pouco significa. E eu gostaria de averiguar junto convosco
o que é virtude, se tal coisa existe realmente ou se é simplesmente uma
convenção social, sem nenhuma relação com a realidade. Cumpre
abeirar-nos desta matéria compreendendo a necessidade de a mente
estar livre do medo. Quando nenhum medo existe, existe virtude?
Moralidade e virtude são puras convenções sociais, sujeitas a alterar-se
periodicamente? Para a maioria de nós, a virtude é uma qualidade,
um padrão moral resultante de resistência, conflito; mas eu sinto que
a virtude, se pudermos descobrir-lhe o verdadeiro significado, deve
ser coisa muito diferente.
Podemos varrer para o lado toda a moralidade social, a qual é
mais ou menos necessária — assim como o é ter o seu quarto bem
arrumado, vestir roupas limpas etc.; mas, independentemente dessas
coisas, virtude ou moralidade é, em geral, uma capa de respeitabilidade.
A mente que se ajusta, a mente que obedece, que segue a autoridade,
a convenção, não é, por certo, uma mente livre; é uma mente vulgar,
estreita, limitada. Cabe-nos, pois, indagar se a mente pode libertar-se
de todas as formas de imitação. E para compreender esse problema,
temos de eliminar de nossa mente o medo, em qualquer forma que
seja. A moralidade social se baseia essencialmente na autoridade e na

.51
imitação. Assim, consideremos por ora se a mente pode compreender
as limitações próprias da imitação, do ajustamento a determinado
padrão. E se é possível a mente descondicionar-se.
Parece-me que a bondade, a florescência da bondade, nunca se
verificará enquanto a mente for apenas “ respeitável” , adaptada ao
padrão social, a certo padrão ideológico ou religioso, quer imposto de
fora, quer interiormente cultivado. Resulta daí a questão: Por que é
que o homem segue? Por que segue não apenas o padrão social
mas também o padrão que estabeleceu para si próprio, pela experiên­
cia, pela constante repetição de certas idéias, certas normas de con­
duta? Temos a autoridade do livro, a autoridade do que se diz sabe­
dor, a autoridade da igreja e a autoridade da Lei; e onde traçar a linha
que indica quando não se pode seguir e quando se deve seguir?
O seguir a Lei é evidentemente necessário, pois cumpre “ conser­
var a direita” ou “ a esquerda” , na estrada (conforme o país em que
que nos achamos) etc.; mas, quando se torna a autoridade prejudicial,
um verdadeiro mal?
Examinando bem esta matéria, pode-se ver que a maioria de
nós busca o poder. Social, política, econômica, religiosamente, esta­
mos em busca de poder; o poder que o saber, a técnica, conferem;
o extraordinário poder que um homem sente possuir quando tem per­
feito controle do próprio corpo: o poder que o ascetismo dá. Tudo
isso, por certo, é processo imitativo; significa ajustamento a um padrão,
com o fim de adquirir um certo poder, uma certa posição, vitalidade.
Assim, parece-me que, se não compreendemos toda a anatomia do
poder, a ânsia, o desejo dele, nunca poderá a mente encontrar-se
naquele estado de humildade, que não é a humildade inventada pelo
homem.
Ora, por que é que o homem segue? Por que seguis a mim, o
orador — se me estais seguindo? Estais-me seguindo, ou estais pres­
tando atenção, escutando? Estes são dois estados completamente dife­
rentes, não? Seguis, quando vosso desejo é realizar, alcançar ou ganhar
algo que julgais este orador pode oferecer. Mas, se o orador de fato
está oferecendo alguma coisa, ele é então um propagandista, e não
um investigador da verdade. E se estais seguindo alguém, isso indica
claramente que tendes medo, que estais incerto: desejais ser encora­
jado, ser informado sobre como alcançar, ser bem sucedido.

52
Mas se, ao contrário, escutais realmente — e isso é muito dife­
rente de seguir a autoridade ou buscar o poder — estais então
escutando para descobrir o que é verdadeiro e o que é falso, e esse
descobrimento não depende de opinião nem de saber. Ora, como
descobris o que é falso e o que é verdadeiro, se estais escutando?
É bem óbvio que se a mente está apenas argumentando, interiormente
ou com uma pessoa que está expondo certas idéias, não está desco­
brindo o que é verdadeiro ou falso. O indivíduo não está escutando,
absolutamente, quando esse escutar apenas provoca uma reação em
conformidade com seu saber, sua experiência, opinião, educação, isto é,
seu condicionamento. Não escuta, igualmente, ao forcejar por desco­
brir o que outra está dizendo', porque então seu interesse está intei­
ramente absorvido pelo esforço. Mas se todos esses estados puderem
ser postos de parte, existirá, então, o estado de escuta, que é atenção.
Atenção não é, de modo nenhum, a mesma coisa que concen­
tração. Concentração significa obrigar a mente a focar determinado
ponto, pelo processo de exclusão. A atenção, ao contrário, é inclusão
total. Há atenção, quando não apenas estais escutando o orador, mas
também a música que estão tocando na igreja vizinha, e os ruídos do
tráfego, lá fora — quando a mente está de todo atenta, sem nenhum
limite e, portanto, sem nenhum centro. Está ela, então, escutando
e, portanto, vendo o que é verdadeiro e o que é falso, imediatamente,
sem reação alguma, sem o emprego de qualquer forma de dedução,
indução, ou outro artifício qualquer. Ela está escutando realmente e
há, por conseguinte, nesse próprio ato de escutar, revolução, transfor­
mação fundamental.
Essa atenção, para mim, é virtude; só nessa atenção floresce a
bondade simples, a bondade que não é produto da educação, da socie­
dade e de todos os atavios intelectuais criados pela influência. E,
talvez, essa atenção é também amor. O amor não é virtude — a vir­
tude que conhecemos. E onde existe esse .amor, não existe pecado;
o homem pode então fazer o que quer; está fora do alcance dos tentá­
culos da sociedade e de todos os horrores da respeitabilidade.
Assim, deve o homem descobrir por si mesmo por que segue,
por que aceita essa tirania da autoridade — autoridade do sacerdote,
autoridade da palavra impressa, da Bíblia, das Escrituras indianas
etc. etc. Pode-se rejeitar completamente a autoridade da sociedade?

53
Não me refiro à renúncia dos beatniks 1 mundanos; esta é mera reação.
Mas, pode-se realmente perceber que esse ajustamento exterior a um
padrão é fútil e de efeitos destrutivos para a mente que deseja desco­
brir o que é verdadeiro, o que é real? E, se se rejeita a autoridade
externa, é igualmente possível rejeitar a autoridade interna, a autori­
dade da experiência? Pode-se renunciar à experiência? Em regra,
a experiência é “ guia do saber” . Dizemos: “ Sei por experiência” ,
ou “ A experiência me indica que devo fazer isto” ; a experiência se
torna, assim, nossa autoridade interna. E esta é, talvez, muito mais
destrutiva, muito mais maligna do que a autoridade externa. 'É a
autoridade de nosso condicionamento, o qual nos conduz a ilusões
de todas as formas. O cristão tem visões do Cristo, e o hinduísta
tem visões de seus próprios deuses — cada um em virtude de seu
próprio condicionamento. E pelo próprio fato de ter tais visões, de
experimentar tais ilusões, ele se torna altamente respeitado, “ um
santo” .
Ora, pode a mente eliminar todo o seu secular condicionamento?
Afinal de contas, condicionamento é produto do passado. As reações,
os conhecimentos, as crenças, as tradições de muitos milhares de dias
passados concorreram para moldar a mente. E pode-se eliminar tudo
isso? Deveis pensar nisso seriamente, em lugar de afastardes de vós
a questão, dizendo “ Não é possível” , ou “ Se é possível, como poderei
fazê-lo?” O “ como” não existe. “ Como” implica tempo intermediá­
rio; e a mente para a qual é importante o tempo intermediário está
em verdade adiando. Pode-se pensar que, embora se possa “ banhar”
a mente para torná-la comunista, capitalista ou o que quer que seja
— e isso significa apenas uma diferente forma de condicionamento —
é impossível estar-se livre de todos os condicionamentos. Não sei se
percebeis bem isso. Não sei se estais cônscios de vosso condiciona­
mento, o que ele implica, e se há, ou não, possibilidade de libertação.
O condicionamento é a própria raiz do medo; e onde existe medo, aí
não há virtude.
Para se penetrar profundamente nesta questão requer-se muita
inteligência, e por inteligência entendo a compreensão libertadora de
toda e qualquer influência. A influência é a causa do condiciona-

(1 ) B e a tn ik s', seita de “ intelectualistas” (Califórnia) — pretensos culto­


res do Budistno-Zen. (N. do T.)

54
mento. Fostes criados para crer em Deus, em Crísto, para repetir
certas coisas todos os dias; ao passo que na índia se despreza tudo
isso, porquanto, lá, eles foram criados-com seus próprios santos e
deuses. A questão, pois, é esta: Pode a mente, depois de influenciada
por tantos séculos pelo peso esmagador da tradição, desfazer-se desta
completamente e sem esforço algum? Podeis sair daí, dessa estrutura,
tão facilmente como podeis sair deste salão? E esse fundo ( bak-
ground) não é a própria mente? A história da mente é a mente.
Não sei se isto está para vós bem claro.
A mente é o próprio fundo ( background). A mente é tradição.
Ela resulta do tempo. E reconhecendo a inutilidade de suas atividades,
diz, por fim, que existe “ a graça de Deus” , que é preciso esperar,
aceitar, receber — e isso é outra forma de influência. Essa mente
não é uma mente inteligente.
Que fazer, então? Estou certo de que já examinastes bem isso.
Deveis tê-lo experimentado: não aceitar, não confiar na autoridade,
não se deixar influenciar. Deveis ter chegado à compreensão de que
a mente, ela própria, nada pode fazer. Ela é escrava de si própria;
criou seu próprio condicionamento; e toda reação a esse condiciona­
mento o fortalece mais ainda. Todo movimento, todo pensamento,
toda ação que se verifica no interior da mente continua dentro da
limitada esfera de seus próprios valores. Se já penetramos até este
ponto, não teoricamente, não intelectual ou verbalmente, porém de
modo real, que acontece, então? Espero compreendais o resultado
disso. O resultado é que, para a mente que deseja compreender o
que é verdadeiro e saber se existe o imensurável, o “ indenominável” ,
toda espécie de autoridade deve cessar — tanto a autoridade da Lei
como a autoridade da experiência. Mas isso não significa “ conduzir
o carro pelo lado errado da estrada” : significa que a mente rejeita a
autoridade de toda experiência, que é conhecimento, que é a palavra,
e rejeita todas as sutilíssimas formas de influência, o “ esperar para
receber” , todas as expectativas. A mente é então deveras inteligente.
Penetrar em si mesmo tão profundamente, tão cabalmente, é
trabalho dificílimo. Para nos aplicarmos a qualquer coisa requer-se
energia, não esforço. E se chegamos até esse ponto, resta ainda alguma
coisa da mente, tal como a conhecemos? E não é necessário alcançar
esse estado? Porque, sem dúvida, ele é o único estado criador. Escre­
ver um poema, pintar um quadro, construir um edifício, etc. — isto

55
por certo não pode ser chamado ação criadora, no verdadeiro sentido
da palavra.
Sente-se que a criação, a coisa que chamamos Deus, ou a Ver­
dade, ou como quiserdes chamá-la, não é apenas para uns poucos
eleitos. Não é apenas para os indivíduos dotados de certa capacidade,
certo dom, tal um Miguel Ângelo ou Beethoven, ou os modernos
poetas, arquitetos e artistas. Eu sinto que .ela está ao alcance de
todos — esse extraordinário sentimento da imensidade, de algo que
não conhece obstáculos nem fronteiras, que não pode ser medido
pela mente ou expresso em palavras. Sinto que a criação está ao
alcance de todos. Porém, não é um resultado. Ela nasce, penso,
quando a mente começa pelo que está mais próximo, ou seja por si
própria — e não quando busca o que está mais remoto, o inimagi­
nável, o desconhecido.- O autoconhecimento, conhecimento de nosso
“ eu” , significa abri-lo, examiná-lo, ver o que ele é — e, não, buscar
algo fora de nós. A mente é de fato uma coisa extraordinária. Como
a conhecemos, ela é resultado do tempo; e o tempo é autoridade —
a autoridade do bom e do mau, do que se deve fazer e do que não se
deve fazer, da tradição, das influências, do condicionamento.
Pode, pois, a vossa mente — não vos falo individualmente —
descobrir todo o seu condicionamento, tanto o consciente como o
inconsciente, e dele sair? “ Sair” é apenas expressão verbal: pois
quando a mente se vê condicionada e compreende todo o mecanismo
desse condicionamento, então, de repente, ela se encontra “ do outro
lado” .
A parte : Percebe-se o condicionamento por meio das “ provoca­
ções” , dos desafios da vida?
K rishnamurti: Percebe-se realmente alguma coisa por meio de “ pro­
vocação” ? Se reagis a uma provocação, diríeis que isso é ver?
A parte : Estou apenas alvitrando que essa espécie de lucidez, de
percebimento em alto grau, a que vos referis, ocorre, às
vezes, quando presenciamos um acidente.
K rishnamurti: Esse súbito “ congelamento” , essa “ contração” da
atenção vos faz ver — ver, no sentido que estamos apreciando? Esta­
mos falando a respeito do condicionamento e da percepção desse con­
dicionamento. Que significa essa percepção? Estais tentando ver o
vosso condicionamento só porque eu estou dizendo que se vossa mente
está condicionada não podeis ver o que é verdadeiro? Esperais que,
como resultado de perceberdes o vosso condicionamento, encontrareis
a eterna bem-aventurança? Ora, a experiência é algo extraordinário.
Ou bem uma pessoa tenta experimentar porque outra lhe está falando
a respeito de uma certa coisa, ou bem experimenta realmente, por
si mesma, a própria coisa. Ninguém vos precisa expor o que é fome,
inveja ou cólera. O descobrimento de vosso condicionamento, por­
que alguém vo-lo expõe, não é um descobrimento feito por vós mesmo.
Não sei se estais percebendo. Considerai uma coisa muito simples:
o nacionalismo é uma forma de condicionamento. A mente naciona­
lista é uma mente rústica, medíocre. Percebeis, por vós mesmo, essa
verdade, esse fato? Ou dizeis: “ Talvez seja. Preciso descobrir isso.
É bem possível que ele tenha razão” .
Expressar-me-ei de outra maneira. Percebo muito claramente que
pertencer a qualquer religião organizada destrói a possibilidade de des­
cobrir Deus — ou o nome que lhe quiserdes dar. A mente não pode
entregar-se a qualquer forma de pensamento, crença, ou dogma, orga­
nizados. Isso eu percebo com toda a clareza, ninguém mo precisa dizer.
Para mim, o fato é esse, e o digo. Então, porque eu gozo de uma
certa reputação etc., dizeis para vós mesmos: “ Preciso abandonar isto” .
E eis-vos apanhado na rede: desejando pertencer e ao mesmo tempo
dizendo que não deveis pertencer. Portanto, não se trata de expe­
riência vossa. No percebimento direto não há conflito. A mente que
percebe a realidade de uma coisa, falsa ou verdadeira, está percebendo
diretamente, sem conflito, sem causa, sem busca de resultado. Esse
percebimento é, assim, de qualidade bem diferente da experiência
imitativa, copiadora, que tem sempre um motivo remoto.
Estivemos, pois, falando a respeito do medo, da autoridade, da
virtude e do condicionamento. Vedes o fato de vosso próprio condi­
cionamento? E quando o vedes, vedes-lo totalmente ou apenas parcial­
mente? Percebeis o volume inteiro ou apenas uma página do volume?
Se não estais vendo a totalidade, porém apenas uma página, haverá
então uma batalha, uma guerra, em vosso interior.

Aparte : Como podemos saber se estamos vendo o volume inteiro


ou apenas uma página?
K rishnamurti: Quereis que vos seja dada a certeza de que estais
vendo o todo e não uma parte? Se desejais que se vos dê certeza,

57
não estais então buscando a autoridade? Vossa pergunta é errônea,
perdoai-me dizê-lo. A pergunta é: Pode-se perceber o todo?
A parte : Posso alvitrar que, para se encontrar a resposta correta,
não se deve fazer perguntas nem esperar respostas?
K rishnamurti: Isto não é Budismo-Zen? Ora, senhor, procurar des­
cobrir diretamente é muito mais importante, muito mais real do que
ler um livro.
A parte : Todos temos certos momentos de percebimento total,
e então nossa vontade é a de prendê-lo e conservá-lo con­
tinuamente.
K rishnamurti: Pode-se prender a compreensão? E pode-se conser­
vá-la continuamente? O que tem continuidade não é o Real; é sim­
plesmente um hábito. Todos dizemos: “ Preciso conservar ‘tal coisa’
continuamente, conservar vosso amor, vossa afeição por todo o sem­
pre” . Dizemos isso a nosso marido, nossa esposa, e também a Deus.
O que tem continuidade não é novo; não é o estado de criação. Só
quando há “ morrer para cada minuto” , existe o novo.
Voltemos ao nosso ponto. Qual o estado da mente que percebe
o todo, a totalidade? Por favor, não tenteis responder. Estais pro­
curando descobrir por vós mesmo. Vedes alguma vez uma coisa total­
mente? Eu sei, por exemplo, que uma árvore é uma coisa muito
simples, uma coisa comum; mas vedes a totalidade da árvore, a “ quali­
dade-árvore” , se assim posso expressar-me? Quando vedes um rio,
vedes apenas “ o Tâmisa” , ou vedes a “ totalidade dos rios” , a “ quali­
dade-rio” ?
Ora bem, senhores, desejo descobrir agora, antes de sairmos
deste salão, o que significa ver totalmente, e se já vi alguma coisa
totalmente. Falamos de uma coisa, sem sabermos, talvez, o que ela
significa. Já observastes uma flor — sem dar-lhe nome, apenas, e
deixá-la para trás? Já a observastes, vendo, escutando, sentindo, com
todo o vosso ser? Por certo, o observar, o ver uma flor, o rio,
a pessoa, as árvores, o condicionamento, requer — não é verdade?
— que estejamos cônscios, sem nenhum centro, nenhuma palavra.
Vede: Quando uma pessoa está enraivecida, ou sexualmente exci­
tada, nesse estado não existe centro, existe? No mesmo momento da
cólera, não há centro. Sois todo cólera. Não é exato isso? Mas, no

58
minuto seguinte, o centro se manifesta, dizendo: “ Eu não devia ter-me
encolerizado. Insensatez minha” .
A parte : Isso não acontece porque a cólera é um estado ego­
cêntrico?
K rishnamurti: Um momento, por favor, parece que não estais per­
cebendo bem. No momento exato da cólera não há a reação conde­
na tória de chamá-la “ egocêntrica” ; isso vem depois. Estamos pergun­
tando se a mente pode perceber a totalidade de seu condicionamento
— as influências conscientes e inconscientes da tradição, dos valores,
das crenças, dos dogmas, do nacionalismo, da palavra “ britânico” —
a coisa total.
Aparte : E u diria que nunca vemos coisa alguma.
K rishnamurti: Provavelmente tendes toda a razão, senhor. Mas
estamos fazendo agora esta pergunta.
Aparte : S ó se pode sentir totalmente.
K rishnamurti: E no momento em que sentis totalmente, existe um
centro a dizer: “ Estou sentindo totalmente” ? Não respondais, por
favor. Prossegui, até o fim. É muito importante ficar livre desse
condicionamento, é claro, porque, de qualquer maneira que o consi­
dereis, ele se apresenta extremamente estúpido. Estais condicionado
como católico, protestante, hinduísta, comunista, isto ou aquilo\ estar
condicionado por um rótulo, uma palavra, e tudo o que se contém
atrás desse rótulo e dessa palavra — é sumamente estúpido. Ora,
pode a mente varrer tudo isso, de um só golpe? Vede, a virtude
reside nesse percebimento. O único homem virtuoso é aquele que,
percebendo a totalidade de seu condicionamento, o elimina. Os outros
não são virtuosos, absolutamente; estão tão-só a entreter-se com os
brinquedos da chamada civilização.
Isso significa, na realidade: Pode a mente tornar-se de todo
atenta? Podeis estar totalmente cônscio, com todos os vossos senti­
dos, todo o vosso corpo, toda a vossa mente? Ainda que/estejais
cônscio dessa maneira por um minuto apenas, nunca mais perguntareis:
“ Como posso ficar totalmente cônscio? Isso é possível?” Perdemos
tanta beleza e tanto amor e um tão profundo sentimento da imensi­
dade, quando nos rodeamos de nossas palavras, disputas, crenças, dog­
mas e outras coisas que tais. Não as sacudimos para longe de nós;
e por isso somos escravos do tempo.
14 de maio de 1961.

59
LONDRES VII
P ensar e Sentir

E m nossas últimas reuniões estivemos falando a


respeito do medo, e vejamos se podemos considerá-lo agora de um
ângulo diferente.
O medo gera toda espécie de ilusão e automistificação e parece-
-me que, a menos que a mente esteja totalmente livre dele, em qual­
quer de suas formas, então, cada pensamento, cada ação, recebe o seu
colorido. Embora já tenhamos falado a seu respeito pormenorizada­
mente, acho que valeria a pena considerá-lo agora de diferente modo.
Desejável seria uma pessoa descobrir por si mesma a maneira de
examinar uma coisa tal como o medo, a possibilidade de esclarecê-la,
não apenas no nível consciente, mas também nas camadas mais pro­
fundas, nos recessos ocultos da consciência. Como, por exemplo,
penetrar o desejo? Pois o desejo, com todas as suas incitações, sua
incessante exigência de preenchimento, gera medo e autocontradição.
Ora, que significado tem o desejo? E no processo de o desco­
brirmos, podemos chegar a compreender a ânsia de preenchimento,
com suas frustrações e sofrimentos? E pode-se compreender o pro­
cesso da comparação? Porque, assim me parece, onde há comparação,
há ânsia de poder. Todas estas coisas estão ligadas entre si, e talvez
possamos nesta tarde examinar esta questão mais ou menos profun­
damente.
No meu sentir, existe um estado mental que está acima e além
do sentimento e do pensamento; mas, para o alcançarmos, requer-se
extraordinária compreensão do processo do sentir e também do pro­
cesso do pensar. A única coisa que possuímos é nosso sentir e nosso

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pensar. O sentimento é inspirado pelo desejo, reforçado e mantido
pelas instâncias do desejo; e o desejo se restringe sempre a nutrir o
prazer e evitar a dor e o sofrimento. Por essa razão, atrás do desejo
está sempre a sombra do medo. Assim sendo, parece-me que, para
que a mente possa pensar com precisão, sem perversão, nem desvio
de espécie alguma, ela deve investigar de maneira completa a questão
do desejo.
Ora, como investigar? Como aplicar-nos ao trabalho de escla­
recer essa coisa sutilíssima que se chama desejo, base de todas as inci­
tações psicológicas? O impulso para nos preenchermos causa, inva­
riavelmente, frustração, medo e sofrimento; e as pessoas chamadas
religiosas sempre disseram que devemos expulsar o desejo; por conse­
guinte, esforçamo-nos por dominá-lo, reprimi-lo, sublimá-lo, ou trata­
mos de fugir por meio da identificação com alguma coisa. Desejo
significa conflito. Eu desejo ser algo, e no próprio processo de tentar
tornar-me essa coisa, existe conflito, e vem-me então a ânsia, o esforço
de fugir a esse conflito. Exteriormente, na sociedade, o desejo se
expressa como ânsia de aquisição, busca de mais; e interiormente ele
se expressa como movimento em busca da certeza.
E pode-se controlar o desejo? Ele deve ser controlado, ou deve­
mos soltar-lhe as rédeas, conceder-lhe plena expressão? Eis o pro­
blema. Se lhe damos expressão plena, existe sempre a incerteza
quanto ao resultado e, portanto, o sentimento de frustração, de medo.
Se o disciplinamos, controlamos, moldamos, isso também supõe con­
flito entre o que é e o que deveria ser. E, naturalmente, se o repri­
mimos, sublimamos, por meio de várias formas de identificação —
com determinado grupo, determinado conjunto de idéias, uma crença,
etc. — existe ainda conflito. O desejo parece gerar sempre conflito, e
acho que a maioria está bem cônscia disso. Se somos um tanto ou
quanto intelectuais, procuramos uma válvula de segurança, a fim de
lhe não soltarmos as rédeas, e nossos desejos assumem então a forma
de presunções, vaidades e pretensões intelectuais, aquisição de conhe­
cimentos, de competência.
E o desejo, na esperança de realizar, preencher, está sempre
comparando. Não sei se já notastes como estamos sempre a comparar
— a comparar-nos com outro, a comparar nossa roupa, nossa aparên­
cia, nossas experiências, a comparar idéias, quadros etc. Compreen­
de-se realmente alguma coisa pela comparação? E pode a mente

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deixar completamente de comparar? Pode uma pessoa, porventura,
começar a compreender o que é o desejo, em vez de procurar repri­
mi-lo? A represão do desejo, parece-me bem óbvio, c fútil, embora
seja uma prática muito generalizada no mundo inteiro, principalmente
entre aqueles que procuram pôr em evidência sua própria “ santidade” .
Não importa se o reprimimos um pouco ou completamente, ele con­
tinua existente, e a diferença é só que se expressa de outra forma.
Agora, a paixão e a lascívia são duas coisas diversas, embora
ambas sejam formas de desejo. Nós precisamos de paixão. Para
“ viver” com algo belo ou com algo feio, necessita-se de paixão por­
que, do contrário, o belo embota a mente e o feio a perverte. Paixão
é energia; e o mero reprimir do desejo não produz esse extraor­
dinário sentimento de intensidade, paixão. Naturalmente, se o desejo
se identifica com uma idéia, um símbolo, uma filosofia, produz-se uma
“ intensidade” de certa natureza. Sabeis de pessoas que percorrem o
mundo a praticar “ boas obras” de toda espécie, a pregar o que as
pessoas devem ser e o que não devem ser. Não me refiro a essa
espécie de intensidade; porque, se essas pessoas deixassem de falar,
de praticar boas obras etc., elas próprias se veriam aprisionadas na
rede de suas tribulações e agonias. Mas há uma intensidade que
aparece quando se compreende o desejo e se percebe, o inteiro signi­
ficado da represão, da substituição, da fuga.
Espero não estejais apenas ouvindo minhas palavras, mas estejais
também cônscios de vossas próprias formas de desejo, percebendo
rapidamente, prontamente, o caminho que ele segue, e aonde leva
esse caminho; e que vejais como tendes reprimido o desejo, como o
tendes identificado com tal ou tal coisa. Afinal de contas, a finalidade
destas reuniões não é a de me ouvirdes falar, mas, sim, de escutardes
de tal maneira que possais descobrir a vós mesmo, conhecer todo o
“ mapa” do “ eu” , suas extraordinárias complexidades, seus desvios e
trilhas, suas ambições, ânsias, compulsões, crenças, dogmas. Pois se
a pessoa não vê tudo isso, não está cônscia de tudo isso, tornam-se
absolutamente inúteis estas reuniões; convertem-se simplesmente numa
nova modalidade de entretenimento, talvez um pouco mais intelec­
tual, mas, no fim de tudo, só restam cinzas. Palavras são cinzas, e viver
de explicações, de palavras, é viver uma vida vazia, uma existência
árida.

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Acho, pois, que seria proveitoso se pudéssemos, no decorrer des­
tas reuniões, travar realmente batalha com nós mesmos, desvendar
coisas e, depois, talvez, transcender esse processo de sentimento e de
pensamento. Eu gostaria que chegássemos até esse ponto, nesta tarde;
mas isso não será possível se não compreendermos realmente — não
apenas verbal ou intelectualmente — a vastidão do desejo e todo o
seu significado.
Pode-se ver que qualquer forma de disdplinamento, controle,
repressão, substituição ou sublimação, perverte a beleza do desejo e,
por conseguinte, torna a mente incapaz de ser nova, ágil. Penso que
isso precisa ser percebido muito claramente. E é possível percebê-lo
claramente, quando fomos educados numa sociedade cujos valores se
baseiam na aquisição, cujos dogmas e crenças religiosas impõem tantas
maneiras de desviar, reprimir o desejo? Desejo, evidentemente, signi­
fica comparação; e a comparação, se a examinamos mais profunda­
mente, conduz à ânsia de poder.
Muito se fala a respeito de paz, de amor, e por aí além. Todo
político, em qualquer parte do mundo, proclama incessantemente o
seu deus, sua paz, seu amor. E pode a mente que ainda não com­
preendeu o inteiro significado do desejo saber o que é amor? E as
pessoas religiosas consideram o desejo como coisa má — exceto, é
claro, o desejo de Deus, de Jesus, ou de alguém; e os mosteiros estão
cheios de tais pessoas. Pode a mente dessas pessoas ver a imensidão
dessa coisa que ocultamos debaixo da palavra “ amor” ?
Assim, se se percebe o significado da repressão e, portanto, já
não há ânsia de reprimir, de “ transmutar” etc., que se deve então
fazer? O desejo lá está, ardente, impelindo-nos ao preenchimento, a
avançar, a comprar um carro, uma casa maior, etc. Ele lá está; que
fazer, pois? Não sei se já alguma vez fizemos a nós mesmos esta
pergunta. Já nos acostumamos a controlá-lo, a moldá-lo, a moderá-lo,
a acrescentar-lhe “ lastro” , a confrontá-lo com outra coisa qualquer,
isto é, compará-lo. E pode-se deter esse processo? É só quando
esse processo foi detido completamente, que se pode perguntar o que
se deve fazer com o desejo. Não sei se já alcançastes este ponto.
Isso, realmente, significa: Pode-se viver neste mundo sem ambi­
ção? Podeis ter vosso emprego e trabalhar sem ambição? E, se o
fizésseis, vosso rival não trataria de “ liquidar-vos” ? E, também, não
temos medo de que, se não houvesse ambição, a pessoa se apagaria

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de todo? Se me permitis sugerir, fazei a vós mesmos esta pergunta.
— Quando é que perguntais: Que devo fazer com o desejo? É
necessário passar primeiramente por todas as formas de preenchimento,
com as respectivas frustrações, aflições, temores, “ culpa” e ansiedade?
Ou, talvez, nunca fizestes esta pergunta e só cuidais de reprimir,
constantemente. Se porventura não encontrastes felicidade, posição,
prestígio, numa direção, virais noutra direção; são estas as expressões
exteriores e interiores do desejo. Quando nada somos neste mundo
que está a desintegrar-se, voltamo-nos para o interior, em busca de
preenchimento. Ninguém faz tal pergunta quanto está justamente
em busca de preenchimento.
Para a mente que está deveras investigando, que deseja verdadei­
ramente descobrir se há Deus, a Verdade, algo além de todas as pala­
vras, não há dúvida de que é importantíssimo compreender essa coisa
chamada desejo. É correto viver sem desejos? E se matais o desejo,
não matais também o sentimento e todas as suas qualidades sensi­
tivas? O sentimento faz parte do desejo, não?
Assim, quando uma pessoa penetrou todas as implicações da
repressão, não é certo que essa pessoa já não está a reprimir, a subs­
tituir? Não se trata aqui apenas de vos hipnotizardes verbalmente;
trata-se de uma coisa realmente difícil, como o sabeis, se chegastes até
aí. Porque uma parte desse desejo é descontentamento com aquilo
que somos; e por trás desse descontentamento está a ânsia de poder,
de ser alguma coisa, de preencher de alguma maneira. Os mais
de nós nos vemos presos a essa roda do preenchimento e da frustra­
ção; e, na incessante batalha da autocompaixão, acabamos trans­
pondo a porta do desespero.
Ora, pode-se ver tudo isso realmente, sem se precisar levar nisso
dias, meses ou anos? Pode-se ver essa incessante busca de preenchi­
mento, e como nela persistimos, apesar dos sofrimentos que nos
causa? Podemos vê-la como o próprio conteúdo de nossa vida, e cor­
tá-la pela raiz? E, então, se chegamos tão longe — ou, melhor, tão
perto — que devemos fazer com o desejo? Há então necessidade de
fazer alguma coisa em relação ao desejo? Entendeis?
Até agora temos sempre feito alguma coisa em relação ao desejo,
encaminhando-o pelo “ canal correto” , dando-lhe a tendência correta,
o alvo correto, o fim correto. E se a mente — que está condicionada,
que só pensa em termos de realização, em virtude de sua educação,

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formação, etc. etc. — já não procura moldar o desejo como coisa sepa­
rada dela própria; se já não interfere no desejo, se posso empregar tal
palavra, que mal há então no desejo? É ele, então, a coisa que
sempre conhecemos como desejo? Por favor, senhores, acompanhai-m©
Sempre pensamos no desejo em termos de preenchimento, reali­
zação, ganho — nos tornarmos ricos, interior ou exteriormente; em
termos de fuga; em termos de mais. E quando se vê tudo isso, então
o sentimento até agora chamado “ desejo” assume um significado total­
mente diferente, não? Podeis então olhar para um belo carro, uma
bela vivenda, um bonito vestido, sem a reação de desejar, identificar.
Conheceis o ponto de vista social, em relação à existência — que
é o ponto de vista em que fostes criados, desde a infância: entreteni­
mento com idéias, busca de preenchimento, a luta de cada um para
se tornar melhor do que outro. Quando percebeis o verdadeiro signi­
ficado de tal conflito e este, conseqüentemente, deixo de existir em
vosso interior, “ vos caiu da mão” , o desejo é então o que antes era?
Afinal de contas, sentir é pensar, não? As duas coisas são inse­
paráveis. Quando vejo uma criança na miséria, a padecer fome, tenho
o desejo de repudiar a sociedade, o político etc., e fazer alguma coisa
a esse respeito. O sentimento sempre acompanha o pensamento. E
sentimento é percepção-sensação-contato etc. Sentir é ser sensível; e
quanto mais sensível a pessoa, tanto mais sofre e, por conseguinte,
começa a construir uma defesa, um abrigo. Tudo isso é uma forma
de desejo. Deixar de ser sensível significa, obviamente, ficar parali­
sado interiormente, morrer. Talvez a maioria de nós esteja paralisada;
é isso que nos acontece em virtude da educação, das relações e con­
tatos sociais, do conhecimento — tudo nos torna embotados, estú­
pidos, insensíveis. E, vivendo num túmulo, queremos sentir!
Compreendido isso, há então limite ao desejo? Não sei que
outra palavra empregar para designar a coisa que chamávamos “ dese­
jo” . Vedes o que sucedeu — se penetrastes devidamente? “ Ele” já
não é sentimento ou pensamento; é algo completamente diferente, em
que estão incluídos o sentir e o pensar. Procurai compreender isso.
A vida da maioria de nós é terrivelmente monótona, toda de rotina
e tédio — conheceis muito bem todos os horrores de vossa existência,
sua mediocridade; e não se pode compreender um dia, um mínuto,
sequer, de nossa vida, se se não compreenderem algumas de suas

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coisas. E talvez seja por essa razão que todos somos tão “ espirituais”
e tão medíocres!
Chegamos, pois, a esse resultado, realmente muito interessante —
se examinastes bem. A coisa que chamávamos desejo, com todas as
suas corrupções, suas tribulações, misérias, sofrimento, impotência,
entusiasmo, interesses etc. — essa coisa, vemo-la agora, em toda a
sua profundeza, com uma simples olhada. Sabeis que uma pessoa
não precisa embriagar-se para conhecer o “ estado de sobriedade” . Do
mesmo modo, se se percebe completamente o processo do preenchi­
mento, ele está acabado; toda forma de preenchimento, toda forma
de ser ou “ vir a ser” algo acabou-se definitivamente.
A parte : Mas eu acho que uma pessoa necessita embriagar-se
para saber o que é a embriaguez.
K rishnamurti: Não é um tanto despropositado, senhor, dizer que
uma pessoa necessita saber o que é a embriaguez e, portanto, precisa
beber, para sabê-lo? É preciso assassinar alguém, para se saber o que
é “ assassínio” ? Senhor, deixemo-nos de sutilezas. Apliquemos deve­
ras a mente a este nosso exame.
A parte : São as contradições do desejo que nos impedem de
compreendê-lo.
K rishnamurti: Por que existem contradições, senhor? Refleti bem
nisso. Desejo ser rico, poderoso, importante, e ao mesmo tempo per­
cebo a futilidade de tal coisa, pois vejo que as pessoas importantes, com
todos os seus títulos etc., em verdade não são ninguém. Existe, pois,
uma contradição. Ora, por quê? Por que essa atração em diferentes
direções, e não concentrada numa só direção? Estais entendendo o
que quero dizer? Se desejo ser político, por que não me torno polí­
tico e me contento em sê-lo? Por que recuo?
Examinemos isso alguns minutos, se vos apraz.
A parte : Tememos o que possa acontecer se nos entregamos a
um só desejo.
K rishnamurti: Já alguma vez vos entregastes a alguma coisa, total­
mente, completamente?
Aparte : Sim, uma vez ou outra, por pouco minutos.
K rishnamurti: Completamente absorvido nela? Talvez sexual­

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mente; mas, afora isso, sabeis quando estais de todo entregue a uma
coisa? Duvido.
Aparte : Talvez ao ouvir música.
K rishnamurti: Vede, senhor, um brinquedo absorve uma criança.
Dai um brinquedo a um menino, e ei-ío completamente feliz; já não
está irrequieto, toda a sua atenção se fixou no brinquedo, nele se
absorveu completamente. Chamais isso “ entregar-se a uma coisa” ?
Os políticos, os indivíduos religiosos devotam-se, “ entregam-se” a
uma dada coisa. Por quê? Porque significa poder, posição, prestígio.
A idéia de se tornarem alguém absorve-os, tal como o brinquedo absor­
ve a criança. Quando vos identificais com uma coisa, isso é “ entre­
gar-vos” a ela? Há pessoas que se identificam com seu país, sua
Rainha, seu Rei etc., sendo isso uma outra forma de absorção. Isso
é “ entregar-se a uma coisa” ?
A parte : É possível nos entregarmos realmente a alguma coisa,
quando há sempre cisão?
K rishnamurti: Isto mesmo, senhor. Perfeitamente exato. Como
vedes, não podemos entregar-nos a uma coisa.
A parte : Podemos “ entregar-nos” a uma pessoa?
K rishnamurti: Tentamos fazê-lo. Tentamos identificar-nos com o
marido, a esposa, o filho, nosso nome — mas sabeis melhor do que eu
o que acontece; portanto, por que falar nisso? Estamo-nos desviando
de nosso assunto.
A parte : Um desejo é correto e bom quando não prejudica a
ninguém.
K rishnamurti: Há desejo “ errado” e desejo “ correto” ? Vede, estais
voltando ao começo, depois de termos apreciado toda a matéria do
desejo. Estais vendo como o traduzimos: desejo bom e desejo mau,
valioso e desvalioso, nobre e ignóbil, prejudicial e benéfico? Obser­
vai profundamente. Vós o dividistes, não? Esta mesma divisão é
a causa do conflito. Criando o conflito, com a divisão, criastes um
novo problema: Como livrar-me do conflito?
Ora, senhor, estamos falando há cinqüenta minutos, para vermos
se é possível perceber realmente o significado do deseio. E
quando se percebe realmente o significado do desejo o qual inclui

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tanto o bom como o mau desejo — quando se percebe o total signi­
ficado desse conflito — não apenas verbalmente, mas compreenden­
do-o completamente, “ cravando-lhe os dentes” — então só existe
desejo. Mas, vede, persistimos em avaliá-lo, como bom ou mau,
benéfico e não benéfico. Pensei, no começo, que se podia eliminar essa
divisão, mas vejo que não é tão fácil assim; o assunto requer aplicação,
percepção, penetração.

Aparte : É possível nos livrarmos do objeto e conservarmos a


essência do desejo?
K rishnamurti: Por que nos livrarmos do objeto? Que bá de mau
num belo carro? Estais criando conflito para vós mesmo, com essa
divisão de “ essência” e “ objeto” . A direção que a essência toma modi­
fica o objeto a todo instante. Na mocidade, desejamos possuir o
mundo; na velhice, estamos fartos do mundo.
Notai que estamos tentando compreender o desejo para, assim,
fazermos o conflito morrer, desaparecer. Tocamos de leve em muitos
tópicos, nesta tarde. A ânsia de poder, tão forte em todos nós, tão
firmemente arraigada, e que inclui domínio sobre o criado, o marido,
a mulher. . . vós bem a conheceis. Talvez alguns de vós, durante nossa
investigação desta tarde, penetrastes bem a questão e vistes que,
quando a mente busca preenchimento, há frustração, e conseqüente-
mente, sofrimento e conflito. O próprio ato de ver a coisa fá-la cair.
Alguns de vós, talvez, não vos limitastes a seguir as palavras, mas
compreendestes as implicações do sentimento de desejar prencher-se,
ser algo, e quanto é ignóbil esse sentimento. O político busca o preen­
chimento, o sacerdote o busca, todo o mundo o busca, e percebe-se
quanto isso é vulgar, se assim me posso expressar. Pode-se realmente
abandonar tudo isso? Se o vedes do mesmo modo que vedes uma
coisa venenosa, isso é como ser-vos retirado de sobre os ombros um
peso tremendo. Estais livre dele; foi-se, num abrir e fechar de olhos.
Alcançais, então, aquele ponto que é verdadeiramente de extraordi­
nária significação. Não se trata do que estivemos dizendo — que tem
seu significado próprio — porém de outra coisa mais, ou seja, uma
mente que compreendeu o desejo, o pensamento e o sentimento e,
portanto, se tornou capaz de transcendê-lo. Compreendeis a natureza
dessa mente — não, sua descrição verbal? A mente é então altamente

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sensível, capaz de intensas reações, sem conflito, sensível a toda espé­
cie de solicitação; essa mente está acima de todo pensar e sentir, e
sua atividade já não está restrita à esfera do chamado desejo.
Para a maioria, isso é só “ espuma” , um estado desejável ou que
deve ser criado. Mas este estado não pode ser alcançado dessa maneira
nem por meio algum. Ele surge quando compreendemos realmente
tudo isso e não há mais necessidade de fazer coisa alguma.
Compreendei: Se se tiver o cuidado de não tocar no desejo, dei­
xando-o “ voar livremente” ou consumir-se — não tocá-lo, simples­
mente — eis a verdadeira essência de uma mente libertada de todo
conflito.

16 de maio de 1961.

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LONDRES VIII
Sentimento de Solidão

J \ o pensar-se a respeito do medo, deve-se consi­


derar a sua relação com o conflito. Para mim, qualquer forma de
conflito, interno ou externo, é muito destrutiva; perverte o pensamen­
to. Quando existe conflito, cada problema deixa sua marca na mente;
a mente se torna o solo em que medra a raiz do problema. Para a
maioria de nós, o conflito se afigura tão natural e inevitável, que o
aceitamos sem questionar. Lutamos contra ele, dizemos que não
devemos viver em conflito, mas invariavelmente assim vivemos. Nesta
tarde, pois, poderíamos examinar esta matéria, para ver se é possível
à mente, neste mundo insano em que vive, ficar totalmente livre de
conflito.
Mas, antes de entrarmos em nosso exame, desejo considerar se
existe uma maneira de pensar que não seja positiva. Porque todo
o nosso pensar é, em verdade, pura reação. Entendo por pensamento
positivo o dizer-se “ devo” , “ não devo” , “ devo ser” , “ não devo ser” ;
e esse pensamento positivo provoca a respectiva reação de resistência,
rejeição. Não sei se posso comunicar-vos facilmente o meu pensa­
mento a esse respeito; requer-se muita compreensão para se entender
o que está implicado nisso que chamamos “ maneira positiva de aten­
der aos nossos problemas” .
O método positivo busca uma explicação para o problema, sua
racionalização, a maneira de fugir-lhe ou de fazer alguma coisa para
não se ficar preso em sua rede. É o que fazemos em nossa vida diária.
A esse processo chamo “ pensar positivo” ; ele é uma reação ao pro­
blema.

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O problema é o conflito. Parecemos viver em perene conflito,
a muitos respeitos — nas relações com nosso marido, nossa esposa,
nossos filhos, a sociedade; e em nossas relações com idéias, crenças,
dogmas. Estamos em conflito, na busca de preenchimento e sua conse-
qüente frustração, na busca da verdade, de Deus, do que se deve
fazer, do que se deve pensar, de como proceder, de como corrigir
algo errado: trava-se esta guerra constante dentro de nós. E, pare­
ce-me, nossa maneira de atuar contra o conflito é sempre positiva:
fazer alguma coisa a seu respeito, fugir-lhe, ingressar em sociedades,
recorrer a determinada droga, calmante, ou o que quer que seja.
E esse método positivo é, com efeito, uma reação ao problema, não
achais?
Ora, eu sinto que existe uma maneira negativa de proceder, a
qual não é reação, nem é o oposto do método positivo. Atualmente,
quando tenho um problema que envolve conflito, não sei como resol­
vê-lo; por isso, recorro a várias formas de fuga, com a ajuda da
memória, refletindo maduramente no caso, batalhando comigo mesmo,
esperando alcançar determinado resultado, esperando que algo suceda.
Para mim, tal maneira de proceder não nos ajuda a libertar-nos do
conflito. E eu acho que existe uma maneira que não é a maneira
positiva, tal como a conhecemos, porém, antes, um processo negativo
de compreensão, e não de reação. Examinemos isso.
Notai que a mente precisa estar totalmente vazia para ver uma
coisa nova. E essa novidade não pode ser produzida pela investi­
gação do problema, sua análise. Se sois matemático, cientista, enge­
nheiro etc., e tendes um problema, tratais de analisá-lo, examiná-lo de
todos os ângulos, até a mente se tornar exausta e adormecer ou esque­
cê-lo temporariamente; e, nesse intervalo de poucas horas, ou dias,, a
solução pode apresentar-se. Todos conhecemos esse fato. Mas essa
solução não é fornecida por uma mente nova, fresca, vazia. Uma
mente nova é totalmente livre de conflito. Não tem problema de
espécie alguma. E qualquer problema que surge, qualquer desafio
que se lhe depara, não deixa marca nenhuma, por um segundo sequer;
porque a marca que dura mesmo um segundo deixa sua impressão
e. pois, condiciona a mente. Notai que só a mente vazia — não, “ em
branco” — a mente cheia de vitalidade, que “ responde” a cada desafio
não com uma reação, não com um problema, porém absorvendo-o com­
pletamente — pode penetrá-lo e dar cabo dele imediatamente. E só

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uma mente vazia dessa qualidade, dessa natureza, pode viver livre de
conflito. Só essa mente é apaixonada. Esta palavra “ apaixonado”
tem para mim significado completamente diferente da acepção comum.
Penso que uma pessoa deve estar apaixonada, ser intensa, mas não
a respeito de alguma coisa. Essa intensidade difere do entusiasmo, que
é só temporário. A mente em conflito nunca pode ser apaixonada; e
só a mente apaixonada pode ver a beleza da vida, a beleza de todas
as coisas; e essa beleza é extraordinária!
A questão, pois, c esta: É possível viver livre de conflito, não
teoricamente, intelectualmente, verbalmente, não num estado auto-
-hipnótico em que a pessoa sugere a si mesma que “ é possível” ou
“ não é possível” , porém realmente? É mesmo possível a um homem,
vivendo neste mundo, tendo relações, trabalhando, pensando, sentindo,
sujeito às brutalidades da sociedade, ser livre de conflito? Não sei se
já respondestes a esta pergunta para vós mesmos. Ou eu vo-la estou
impondo à força? Talvez já aceitamos o conflito como coisa inevi­
tável e fizemos de Deus o refúgio supremo onde se encontra a paz,
a tranqüilidade e tudo o mais.
Mas, se de fato perguntamos a nós mesmos se a mente pode
viver realmente livre de conflito, neste caso, penso eu, temos de pro­
fundar o problema muito mais — e espero possamos fazê-lo nesta
tarde. Por que surge o conflito? Por que surge conflito entre mim e
minha mulher, meu marido, meu vizinho, entre mim e uma idéia?
Eu responderei à minha maneira; mas, se puderdes descobrir por
vós mesmos por que vos achais em conflito, acho que minha expli­
cação e o vosso sentimento se harmonizarão entre si. De outra ma­
neira, é impossível a comunhão. Espero estejais entendendo o que
quero dizer.
Assim, desejo saber por que me acho em conflito; desejo não
apenas a explicação superficial, mas, sim, penetrar-lhe a raiz. Existe
conflito conscientemente e também inconscientemente, nos mais pro­
fundos e íntimos recessos de minha mente — os secretos conflitos
dos quais ninguém sabe; e desejo penetrar o conflito em toda a sua
profundeza. Ora, isso se faz analisando-o, examinando as razões, ou
vendo-o num súbito clarão?
Como sabeis, os próprios discípulos de Freud e de Jung, e os
analistas, estão começando a modificar suas idéias. Começam a achar
que não é necessário levar meses e anos a analisar um indivíduo de

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poucos recursos financeiros. Isso custa muito dinheiro; só os ricos
podem fazer tais despesas. Por isso, andam à procura de novos méto­
dos. Em vez de fazerem o paciente “ tagarelar” , dia por dia, mês
por mês, alguns deles estão experimentando drogas, agentes químicos,
secundados por um método de acesso direto, pessoal. Isso não quer
dizer que já li livros a esse respeito, mas tenho amigos, analistas e
não-analistas, que me visitam e falam acerca dessas coisas. No tra­
balho de análise, a menos que o analista seja muito cauteloso, obser­
vando minuciosamente e nunca deformando o que observa, está arris­
cado a deixar passar ou a interpretar falsamente alguma coisa, e o
exame subseqüente acentuará mais ainda o erro. Prestai atenção a
isso, e vereis que a análise, a “ retalhação” , não é a maneira correta
de proceder. Tão pouco o é o controlar, o fugir.
Desejo saber por que há conflito, por que essa massa de contra­
dições. Ora, como encontrar a verdadeira raiz da coisa? Porque, se
se puder descobrir a raiz, esse descobrimento produzirá um método
negativo de acesso e não criará uma reação de efeitos positivos no
que se descobriu. Entendeis? Continuemos examinando.
Desejo saber qual é a causa do conflito, do conflito total — das
contradições, dos desejos que nos puxam para um lado e para o
outro, e do medo que daí resulta. Ora, saber é uma coisa, e experi­
mentar, outra. Saber algo a respeito de Deus ou da verdade é uma
coisa, mas experimentar realmente algo daquela imensidade é muito
diferente. Os mais de nós estamos cônscios de que funcionamos par­
tindo de um centro, esse centro que se tornou conhecimento, o centro
que é experiência, o centro de onde procede todos os impulsos e
resistências, o centro que busca sempre a segurança. Por favor, não
aceiteis as minhas palavras mas procurai experimentar realmente o
centro de onde parte o vosso pensar — o “ eu” . E onde há um centro,
há uma periferia; e a batalha tem por fim alcançar a periferia, o que
deveria ser. A periferia difere sempre do que é. Não achais?
Sabemos de tudo isso, sabemos — depois de experimentarmos
que todas as nossas atividades, pensamentos e sentimentos são proje­
tados, moldados, condicionados pelo centro — sabemos que esse cen­
tro logo diz: “ Preciso libertar-me disso” . E temos, assim, separação
entre o centro e a coisa que deveria ser ou a coisa que foi. Existe
sempre esta divisão, e o conflito é, essencialmente, a guerra travada
entre o que deveria ser e o que <?. O que é, o centro, sempre está

73
tentando modelar-se, para ser o que deveria ser; e dessa dualidade
resulta conflito.
Ora, o centro é as memórias acumuladas da experiência, resul­
tado de conflito com o oposto — o que deveria ser. Sou homem sen­
sual e sinto que não deveria sê-lo; e o conflito entre os dois estados
cria a memória, que constitui o centro. Não é exato isto? O centro
é memória. Ora, a memória é sem realidade, não é um fato; é coisa
morta, ida, acabada, embora, em determinado nível, possamos fazer
uso dela, quando necessário. Mas ela é morta; no entanto, vossa vida
é guiada por essa coisa morta, essa coisa irreal. Nós funcionamos desse
ponto de partida, e nasce assim o medo; e temos, pois, a contradição
do desejo.
Deixemos, agora, por enquanto, estas considerações e passemos a
examinar a questão de maneira diferente.
Acho que a maioria de nós sabe o que é solidão. Conhecemos
esse estado em que todos os laços de relação foram cortados, em que
não há senso do futuro nem do passado, em que prevalece um com­
pleto sentimento de isolamento. Podeis achar-vos no meio de uma
multidão, num ônibus superlotado, ou estar sentado ao lado de um
amigo, de vosso marido ou esposa, e eis que subitamente vos assalta
essa onda, esse sentimento de vácuo, vazio, de um abismo. E a
reação instintiva é de fugir. Assim, tratais de ligar o rádio, de taga­
relar, de ingressar em alguma associação, ou de pregar Deus, a ver­
dade, o amor etc. Vosso meio de fuga pode ser Deus ou pode ser
o cinema; todos os meios de fuga são idênticos. E a reação é de
medo a esse sentimento de total isolamento e, por conseguinte, a fuga.
Conheceis todos os meios de fuga: o nacionalismo, a pátria, os fílhps,
o nome, a propriedade, — e por todas essas coisas estais disposto a
lutar e a morrer.
Ora, se se reconhece que todos os meios de fuga são iguais, e
se percebe realmente a significação de um dado meio de fuga. pode-se
ainda fugir? Ou não há mais fuga? E, se não estais fugindo, há
ainda conflito? Estais-me seguindo? É a fuga ao que é, o. esforço
para alcançar uma coisa diferente do que é, que cria o conflito. Assim,
para que a mente possa transcender esse sentimento de solidão, essa
súbita cessação da lembrança de todas as relações, as quais envolvem
ciúme, inveja, ânsia de aquisição, esforço para ser virtuoso etc. —
primeiro ela tem de enfrentá-lo, passar por ele, de modo que o

74
medo em todas as suas formas definhe até desaparecer de todo. Des-
sarte, pode a mente perceber, num dado meio de fuga, a futilidade
de todas as fugas? Não há então conflito, há? Porque já não há
nenhum observador da solidão: há só o experimentar dela. Estais
seguindo? Essa solidão é o cessar de todas as relações; as idéias já
não têm importância; o pensamento perdeu toda a valia. Estou des­
crevendo as coisas, mas não vos limiteis a ouvir, pois, assim, ao sairdes
daqui, levareis somente cinzas. Afinal de contas, estas nossas inves­
tigações têm por fim libertar-nos de todas estas terríveis complicações,
dar-nos na vida algo mais do que apenas conflito, medo, fadigas e
tédio.
Onde não existe o medo, está a beleza — não a beleza de que
falam os poetas, aquela que os artistas pintam etc., porém coisa bem
diferente. E para descobrir a beleza, um homem terá de conhecer
esse isolamento completo — ou, melhor, não terá de conhecê-lo, pois
ele já existe. Vós fugistes dele, mas ele continua existente e vos segue
sempre. Ele lá está, em vosso coração e em vossa mente, nos mais pro­
fundos recessos de vosso ser. Vós o encobristes, fugistes dele; mas
ele continua existente. E a mente tem de passar por ele, como quem
se submete à purificação pelo fogo. Ora, pode a mente passar por
ele sem reação, sem dizer que é um estado horrível? No momento em
que há reação, torna-se existente o conflito. Se vós o aceitais, conti­
nuareis debaixo de seu peso; e se o rejeitais, tornareis a encontrá-lo
na primeira volta do caminho. A mente, pois, tem de passar por ele.
Estais-me acompanhando? A mente é então aquela solidão, não pre­
cisa de passar por ela; ela é a solidão. Quando pensais em termos
de “ passar por uma coisa” para alcançar outra, já estais em conflito.
No momento em que dizeis: “ De que maneira devo passar pela soli­
dão, de que maneira devo olhá-la?” — nesse momento já vos achais
de novo em conflito.
Existe, pois, vazio, uma solidão extraordinária que nenhum Mes­
tre, nenhum guru ou idéia, nenhuma atividade poderá afastar de vós»
Já andastes “ mexendo” com essas coisas, já vos entretivestes com
todas elas; mas elas não podem preencher esse vazio; ele é um abismo
sem fundo. Mas deixa de ser esse “ abismo sem fundo” no momento
em que o experimentais. Compreendeis?
Para que a mente possa ficar inteiramente livre de conflito, total
e completamente livre de apreensão, medo e ansiedade, torna-se neces­

75
sário o experimentar desse extraordinário sentimento de não relação
com alguma coisa; daí provém o sentimento de solidão. Não imagineis
que já o tendes; isso é muito difícil. Só quando temos esse senti­
mento de solidão em que não há medo é que existe o movimento
para o imensurável; porque então não há ilusão, não há fabricante de
ilusão, não há o poder de criar a ilusão. Enquanto existe conflito,
existe o poder de criar ilusão; e com a total cessação do conflito,
o temor deixa de existir completamente, e, portanto, não há mais
buscar.
Não sei se compreendestes. Afinal, todos vós estais aqui porque
andais a buscar. E se examinardes isso, que é que estais buscando?
Estais em busca de algo existente além de todo esse conflito, miséria,
sofrimento, agonia, ansiedade. Buscais uma saída. Mas, se se com­
preende isso de que estivemos falando, cessa então toda a busca —
e esse é um extraordinário estado mental.
Como sabeis, a vida é um processo de desafio e reação, não?
Temos o desafio exterior: o desafio da guerra, da morte, de dúzias
de coisas diferentes, e reagimos. O desafio é novo, mas todas as
nossas reações são sempre velhas, condicionadas. Não sei se isto está
claro. Para reagir ao desafio, eu preciso reconhecê-lo, não? E se
o reconheço, é porque o interpreto em termos do passado; portanto,
ele é “ o velho” , evidentemente. Vede bem isso, por favor, porque
desejo ir um pouco mais longe.
Para o homem que vive muito interiormente, os desafios exte­
riores perderam toda a importância; mas ele continua a ter seus desa­
fios e reações interiores. Porém, eu estou falando a respeito da
mente que já não busca, e, portanto, já não tem desafio e reação. E
este não é um estado de satisfação, de contentamento, um estado de
placidez qual a de uma vaca. Quando compreendemos o significado do
desafio e da reação exteriores, e o significado do desafio interior que
apresentamos .a nós mesmos, e a respectiva reação, e rapidamente
passamos por tudo isso — sem levarmos nisso meses e anos — a
mente, então, já não está sendo moldada pelo ambiente; já não é
influenciável. A mente que passou por essa extraordinária revolução
pode enfrentar todo e qualquer problema, sem que nenhum problema
deixe marca nem raízes. Desapareceu, então, todo sentimento de
medo.

76
Não sei até que ponto percebestes o que estive explicando
Notai que escutar não significa apenas ouvir; escutar é uma arte. Faz
parte do autoconhecimento; e se uma pessoa escutou realmente, e
penetrou profundamente em si mesma, isso é uma purificação. E o
que foi purificado recebe uma bênção que não é a bênção das igrejas.

18 de maio de 1961.
LONDRES IX
T empo e Morte

N esta manhã, desejo falar a respeito do tempo e


da morte. E, tratando-se de assunto algo complexo, acho que con­
viria compreender o significado de “ aprender” . A vida é um vasto
complexo, com toda a sua agitação, sofrimentos, ansiedades, amor,
ciúmes, acumulações; e aprendemos através de tribulações. Esse
“ aprender” é um processo de acumulação. Para todos, “ aprender”
é sempre processo de aquisição; e quando há adição, “ armazenamento” ,
existe aprender? Acumular é aprender? Ou só há aprender quando
a mente está despojada de tudo? Penso que devemos investigar isso,
porque para compreender o tempo e a morte é preciso aprender, é
preciso experimentar, e experimentar nunca é processo acumulativo.
Do mesmo modo, o amor não é acumulação. É sempre coisa
nova. Não é coisa nascida da lembrança; de modo nenhum se rela­
ciona com o retrato colocado sobre a lareira. Assim, talvez, se puder­
mos, com cuidado e inteligência, compreender o que significa apren­
der, estaremos então aptos a investigar a questão do tempo e da
morte e, quiçá, também descobrir o que significa amar.
Para mim, aprender implica um estado em que a mente não
está recolhendo, acumulando. Se aprendemos com uma mente que
antes acumulou, esse aprender é então aquisição de mais conheci­
mento, não achais? A acumulação de conhecimentos não é aprender.
As máquinas eletrônicas são capazes disso, de acumular “ conheci­
mentos” . Mas, são incapazes de aprender: Aquisição de conheci­
mento é processo mecânico, e o aprender nunca poderá ser tal coisa.
A mente precisa estar sempre fresca, nova, purificada ( innocent) para

78
aprender. E aquela que está aprendendo se acha sempre, por certo,
num estado de humildade — não a humildade cultivada pelo monge,
pelo santo, pelo erudito. A mente que está aprendendo tem sua
especial dignidade, porque se acha num estado de humildade.
Estou empregando a palavra “ aprender” num sentido inteira­
mente diferente: não como significando um processo de adquirir
conhecimentos. “ Viver com uma coisa” e adquirir conhecimentos a
seu respeito são dois estados diferentes. Para aprendermos tudo o
que se refere a uma dada coisa, temos de “ viver com ela” ; mas, se
já tendes conhecimentos a seu respeito, não podeis “ viver com ela” ,
porquanto estais então “ vivendo” com vossos conhecimentos. Para
descobrirmos por nós mesmos os fatos relativos ao extraordinário e
complexo problema do tempo e da morte, temos de aprender e, por­
tanto, “ viver com ele” ; mas estaremos completamente impedidos de
fazê-lo, se dele nos abeiramos com um acúmulo de coisas sabidas,
conhecimentos. Examinarei isso um pouco, e espero possamos por­
mos em comunhão uns com os outros.
Há dias estivemos falando sobre o desejo. Penetramos mais ou
menos suficientemente esta matéria, mas parece-me que omitimos
uma certa coisa: que o desejo está intimamente relacionado com a
vontade. A vontade, por certo, implica não apenas desejo, mas tam­
bém escolha. Onde está a escolha, aí se acha a vontade e, conse­
quentemente, o problema do tempo.
Tende a bondade — se permitis sugerir — de ouvir com aten­
ção tudo o que vou dizer, até o fim. Não vos segureis a certas partes,
concordando ou discordando, mas considerai a totalidade, o conteúdo
total destas ponderações. Isso é questão de percebimento, de ver
as coisas diretamente; e quando se vê uma coisa diretamente, não há
então concordar nem discordar: é o fato.
Como dizia, pelo conflito, exterior e interior, desenvolvemos a
vontade. E a vontade, evidentemente, é uma forma de resistência,
seja a vontade de realizar, ou a vontade de ser, seja o impulso a rejei­
tar ou a determinação de conservar uma dada coisa. A vontade são
os muitos fios do desejo, e com ela vivemos. E quando investigamos
o tempo, necessitamos de uma penetração muito diferente da vontade
de aprender. Não sei se isto está claro, mas continuarei e espero que
percebereis. Esta é uma palestra despretensiosa, não preparada de
antemão; é mais ou menos uma auto-investigação; e examinar essa

79
matéria publicamente é uma coisa, e examiná-la sozinho, outra coisa.
O que estamos tentando é empreender em comum esta “ viagem de
exploração” do tempo. Investigação implica tempo, também, e a
concatenação de palavras implica tempo, e toda e qualquer comuni­
cação se baseia no tempo. Mas, talvez exista uma compreensão do
que é o tempo, não através de palavras, não através de comunicações
verbais ou intelectuais, porém contornando todo esse processo. Entre­
tanto, infelizmente, temos primeiro de investigar o tempo verbal­
mente, intelectualmente. E esta investigação tem o sentido de “ apren­
der” o que ele é — e isso não significa lembrar o que se leu, ou
apenas ouvir as palavras que estou pronunciando, mas, sim, perceber
a coisa, vê-la diretamente, por vós mesmos. E isso pode ter um
valor extraordinário.
Há tempo cronológico e tempo psicológico, exterior e interior.
E o conflito se apresenta quando o tempo se introduz em nossas vidas
como “ serei” , “ não serei” , “ tenho de alcançar” . E, se a mente pudes­
se eliminar esse processo por inteiro, ver-se-ia, então, que a mente já
não é mensurável, já não tem fronteiras, e ao mesmo tempo pode
viver neste mundo totalmente, completamente, com todos os seus
sentidos.
Para a maioria de nós, o tempo cronológico, entendido como
“ ontem” , “ amanhã” e “ hoje” , é essencial. Envolve tempo o apren­
der uma técnica para ganhar a vida. Esse tempo existe e não pode
ser evitado; é uma realidade. Levou tempo o virdes aqui; leva tempo
aprender uma língua; leva-se tempo para passar da juventude à velhice.
Leva tempo — implicando distância e espaço — para se ir daqui à
Lua. Tudo isso são fatos, e seria absurdo e insensato negá-los.
Ora, existe algum “ outro tempo” , como fato? Ou a mente inven­
tou o tempo psicológico como meio de realização, como meio de se
tornar alguma coisa? Sou invejoso, ambicioso, brutal; mas, se me
derem tempo, gradualmente me livrarei da inveja, serei “ não-vio­
lento” . Isto é uma realidade, um fato, como a distância entre Lon­
dres e Paris? Existe algum outro fato tão positivo e real como o
espaço e a distância? Por outras palavras, existe tempo psicológico?
Embora o tenhamos inventado, embora “ vivamos com ele” , embora
para nós seja um fato, tal coisa existe? Aceitamos o tempo crono­
lógico e aceitamos também o tempo psicológico; e os dois, dizemos,
são fatos. Um deles, o tempo cronológico, é um fato; mas estou

80
contestando que o outro seja um fato. É necessário tempo para se
ver uma coisa claramente, imediatamente? Para se ver a ambição, a
inveja, todas as coisas, o sofrimento inerente à inveja, perceber a
verdade disso, é necessário tempo? Ou a mente inventa o tempo
psicológico para poder gozar os frutos da inveja e evitar as suas penas?
O tempo, pois, pode ser o refúgio da mente indolente. É a mente
indolente que diz: “ Não posso ver isto imediatamente; dai-me tempo,
deixai-me observar por um período mais longo; depois tratarei de
fazer algo” ; ou “ sei que sou violento; mas, gradualmente, quando
isso não mais me agradar, quando já não me der lucro, quando já
não me der prazer, então o abandonarei” . Daí nasceu o ideal: a
idéia do que deveria ser é posta a uma certa distância do fato — o
que é. Apresenta-se assim um intervalo entre o fato e o que deveria
ser. E eu pergunto: O ideal, o que deveria ser, é um fato? Ou é
uma cômoda invenção da mente, visando a continuar com os prazeres
e as dores, a indolência do adiamento?
Ora, ver uma coisa imediatamente — quanto é absurda a inveja,
a competição, a moralidade social — perceber de imediato a falsidade
disso exige tempo? Para transformar a mente, para a mente se liber­
tar de seu condicionamento, requer-se tempo? Revolução, como geral­
mente se entende, significa pôr em prática um dado programa econô­
mico, social, político ou de outra ordem, em reação ao que existia
anteriormente. Para mim, reação não é revolução. A revolução é
instantânea, e não está relacionada com nenhuma reação.
A mente, afinal de contas, resulta de muitos milhares de dias
passados; e sendo ela própria resultado do tempo, sempre pensa em
termos de ontem, hoje e amanhã. E para se descobrir se existe
“ atemporalidade” , descobri-lo realmente, aprender o que ela é, neces­
sita-se de uma revolução completa na própria mente. Estou-vos comu­
nicando alguma coisa, ou nada?
Vede: vós sois inglês, italiano, francês, hindu, ou o que quer
que seja; e a isso está ligado o nacionalismo — a atitude condicio­
nante, separativa, divisória, perante a vida. E esse condicionamento
foi elaborado através do tempo, da educação, da propaganda. Há
dois mil anos a Igreja vos vem condicionando a mente para serdes
cristãos. Não há dúvida de que esse condicionamento da religião, do
nacionalismo, do separatismo, tem de ser destruído, já que essas coisas

81
são fronteiras, limitações da mente. E a destruição delas é questão de
tempo?
Consideremos este ponto de outra maneira. Onde está o tempo?
O tempo — tanto cronométrico como interior — onde está ele?
Notai, por favor, que não estou fazendo uma pergunta . retórica,
uma pergunta argüitiva, ou uma pergunta destinada a estimular-vos a
mente — pois isso seria pura tolice. Faço esta pergunta porque o
espaço, o tempo e a distância devem existir num estado em que é
completamente inexistente o tempo. Esse estado deve existir primei­
ramente, e tudo o mais nele se integra. Sem “ atemporalidade” , eter­
nidade, não pode existir espaço, nem distância. Por favor, não con­
cordeis nem rejeiteis: temos de tatear o caminho para penetrarmos
nesse estado. Ainda não vos comuniquei o sentimento desse estado
e, portanto, não digais que ele é assim ou que não é assim, ou que o
que estou dizendo nada significa para vós.
Vós sabeis que existis no espaço. Sem o espaço, não existireis.
Sem o espaço entre duas palavras, estas nada significam. Sem
espaço entre duas notas, não haveria música. O espaço é o “ desco­
nhecido” , no qual tem existência o “ conhecido” . Sem o “ desco­
nhecido” , não pode existir o “ conhecido” . Não sei se vos estou
transmitindo claramente meu pensamento. Vede que isto não é maté­
ria “ sentimental” , portanto não precisais rir, nem concordar. Prosse­
guirei, examinando outro tópico. Se tudo o que dizemos se torna
coisa morta, não há vida.
Os mais de nós desejamos uma vida que tenha continuidade, ou
seja tempo e espaço. A morte, portanto, é uma coisa horrorosa, que
se deve evitar, e a vida algo que cumpre prolongar com o auxílio
de medicamentos, de médicos, etc. Ou, ante a inevitabilidade da
morte, dizemos: “ Quero crer em alguma coisa: que eu continuarei
existente e vós continuareis existente, sempre no espaço” .
Nessas condições — se assim podemos expressar-nos — no seio
do “ desconhecido” existe o espaço e o tempo. Mas, se não procura­
mos o caminho para o desconhecido, a mente se torna escrava do
tempo e do espaço. Levou tempo até chegarmos aqui: mas preci­
sa-se de tempo para perceber alguma coisa, ver algo que não depende
do tempo? Para ver uma coisa como falsa, precisa-se de tempo?
Para ver a falsidade do nacionalismo, sua índole venenosa, precisa-se
de tempo? Um minuto, por favor, não concordeis. Não me refiro ao

82
percebimento intelectual, verbal, mas, sim, ao percebimento real, ao
sentimento real do fato — de modo que nunca mais o toquemos —•
isso, por certo, não requer tempo. Só se conta com o tempo quando
a mente é inerte, indolente.
E a morte. . . por que tanto medo à morte? Esse medo existe
não só para os velhos, porém para todos. Por quê? E, sentindo medo.
inventamos tantas teorias agradáveis e confortadoras: reencarnação,
karma, ressurreição, etc. etc. É ao medo que cumpre compreender. . .
mas não voltemos a esta questão do medo. Estamos tentando com­
preender o que significa morrer.
A maioria de nós deseja a continuidade física — lembranças de
coisas passadas, esperanças, satisfações, preenchimentos; vivemos, em
geral, com nossas lembranças, associações, quadros, retratos. E tudo
pode findar, ao perecer o corpo físico. Isto é muito perturbador.
Já vivi tanto — cinqüenta ou sessenta anos; tenho lutado para cul­
tivar certas virtudes, adquirir conhecimentos; e que vale a vida, se
tenho de- separar-me de tudo, acabar num dado momento? Origina-se,
assim, o tempo-espaço. Entendeis? Tempo, compreendido como
espaço e distância. Mas tudo o que tem continuidade, que não
conhece findar, não pode renovar-se nunca, ser jovem, viçoso, “ ino­
cente” . Só aquilo que morre tem a possibilidade de conhecer a
criação, de ser novo, fresco. Assim, é possível morrer em vida,
conhecer a vitalidade, a energia da morte, com todos os sentidos plena-
mente despertos? Que significa a morte? Não a morte de velhice,
doença ou acidente, porém a morte de uma mente em plena ativi­
dade, que provou, que experimentou e adquiriu conhecimento; quer
dizer, a morte do passado. Compreendeis?
Não sei se já alguma vez experimentastes — ainda que por diver­
timento — morrer para todas as coisas conhecidas. Direis, então:
“ Se morro para todas as minhas lembranças, para minha experiência,
meu saber, meus retratos, meus símbolos, meus apegos e ambições,
que resta?” Nada. Mas, para saber o que é a morte, a mente, por
certo, deve estar reduzida a nada. Consideremos uma coisa. Já expe­
rimentastes morrer, não só para o sofrimento, mas também para o
prazer? Desejamos morrer para o sofrimento, para as lembranças
desagradáveis; mas morrer também para o prazer, as alegrias, as coisas
que vos conferem um extraordinário senso de vitalidade — já expe­
rimentastes isto? Se o fizerdes, vereis que se pode morrer para o

83
passado. Morrer para todas as coisas, de modo que, ao dirigir-vos
para vosso escritório, para vosso trabalho, tenhais a mente nova —
por certo, isto é amor e não coisas lembradas.
Assim, a mente foi construída através do tempo; a mente é tempo.
Todo o pensamento molda a mente no tempo. E para não ser mol­
dado pelo tempo, o pensamento deve cessar completamente. Não
um cessar forçado, um cessar mecânico, não uma interrupção, porém
o findar consistente em perceber a verdade de que ele deve cessar.
Assim, para sabermos o que é a morte, precisamos “ viver com a
morte” . Se desejais conhecer uma criança, tendes de viver com a
criança, e não temê-la. Mas, em maioria, nós morremos mil mortes,
antes da morte real. “ Viver com a morte” é morrer para ontem, de
modo que ontem não produza marca no dia de hoje. Experimentai-o.
Percebendo-se o que há de verdadeiro nisso, tem então o viver signi­
ficado todo diferente; não há então separação entre o viver e a morte.
Mas, nós temos medo de viver e temos medo de morrer; e não com­
preendemos nem o viver, nem a morte. Para “ vivermos com uma
coisa” temos de amá-la; e amar é morrer para ontem — porque então
se pode viver. Viver não é continuidade da memória, ou volver ao
passado, dizendo: “ Como eu era feliz em minha infância!”
Não conhecemos a morte e não conhecemos a vida. Conhecemos
as agitações, as ansiedades, as “ culpas” , os temores, as terríveis con­
tradições e conflitos; mas não sabemos o que é viver. E só conhe­
cemos a morte como coisa aterradora, temível; afastamo-la do pensa­
mento e evitamos falar a respeito dela, buscamos refúgio numa dada
crença, como sejam discos voadores, reencarnação ou outra coisa
qualquer.
Há, pois, um morrer e, portanto, um viver, quando o tempo,
o espaço e a distância são compreendidos em termos do “ desconhe­
cido” . Ora, nossa mente funciona sempre no campo do “ conhecido” ,
e nós nos movemos do conhecido para o conhecido; e nada mais conhe­
cemos; e quando a morte interrompe esta continuidade “ do conhecido
para o conhecido” , aterramo-nos e nenhum consolo encontramos. O
que desejamos é consolo, não a compreensão de algo que não conhe­
cemos, não o viver com algo que não conhecemos.
Assim, o conhecido é o “ ontem” . Eis tudo o que sabemos. Não
sabemos o que é o “ amanhã” . Projetamos o passado, através do

84
presente, no futuro; e daí nasce a esperança e o desespero. Mas,
para compreender realmente a coisa chamada “ morte” , que deve ser
algo extraordinário, incognoscível, impensável, inimaginável, precisa­
mos procurar conhecê-la, “ viver com ela” , precisamos chegar-nos a ela
sem conhecimento e sem medo. E eu digo que isso é possível, que
uma pessoa pode morrer para todos os dias passados. Afinal de
contas, todos os dias passados são constituídos de prazer e de dor.
E quando morremos para o passado, a mente está vazia; e, assustan-
do-se com esse vazio, ela de novo começa a mover-sc de um conhe­
cido para outro. Mas, se se puder morrer para o prazer e a dor —
não determinado prazer ou determinada dor — a mente está então
fora do tempo e do espaço. E essa mente contém então o tempo e
o espaço, sem o conflito do tempo e do espaço, não sei se estais com­
preendendo. Nossa linguagem é muito limitada. Vejamos se sobre
isto podemos conversar.
A parte : Sempre pensei que onde há espaço, tem de haver tempo,
mas, pelo que dizeis, a coisa parece ser um tanto diferente.
O espaço entre duas palavras não é tempo?
K rishnamurti: Senhor, nós conhecemos o tempo psicológico e o
tempo cronométrico. E como pode a mente — ligada que está a
estes dois “ tempos” (que também supõem espaço e distância) —
descobrir se existe tempo sem espaço e distância? Entendeis? Desejo
verificar se há uma “ atemporalidade” , na qual é inexistente qualquer
medida de tempo e espaço. É possível, antes de mais nada, descobrir
tal coisa? Pode não ser possível. Se não é possível, então a mente
se acha condenada a ser sempre escrava do espaço e do tempo; e
está, então, liquidada. . . Agora é só questão de ajustamento, pro­
curar sofrer menos etc. Compreendido isso, pode a mente, sem ajuda
de autoridade alguma, descobrir por si mesma se existe um estado
atemporal? E como descobri-lo? Só poderá descobri-lo, abandonando
o tempo psicológico — ou seja, quando vê algo imediatamente. E
isso significa — não é verdade? — que a mente se liberta do centro
em torno do qual gravita; que há um morrer para esse centro que
sempre acumulou o prazer e repeliu a dor. E penso que isso tem
relação direta com nosso viver de cada dia.
Aparte : Tempo cronológico não é a mesma coisa que tempo
psicológico?

85
K rishnamurti: Em certo sentido, ambos são idênticos! Não existe
o impulso para pôr a mente num certo estado, permanentemente?
Para nós, a permanência é coisa muito importante, não é verdade?
Mas tal coisa, permanência, não existe, pois temos a guerra, temos
a morte, minha mulher foge de casa com outro homem etc. O impulso
para a permanência é o desejo de estar em segurança. Pois a mente
é contra a insegurança; por isso inventa esperanças e a idéia de Deus
permanente. Um Deus que se torna permanente no espaço e no
tempo não pode ser Deus. Assim, se a mente puder perceber, ime­
diatamente, a verdade, o fato de que nada existe permanentemente,
acho que então o tempo, a morte e o amor assumirão significado total­
mente diferente.
A parte : Quando o coração pára, existe pensamento pessoal?
K rishnamurti: Que ânsia temos de saber isso! Como nos mostra­
mos interessados a esse respeito!
Examinemos este ponto. Existe pensar pessoal e pensar coletivo?
Ou tudo é pensamento coletivo, mas acontece que o “ personalizamos” ?
Vós sois ingleses: isto é pensamento coletivo. Todos sois cristãos:
isto é pensamento coletivo. Só há pensar individual quando um homem
se liberta do “ coletivo” , quando já não está confinado, limitado, con­
dicionado. Assim, por certo, nós só somos indivíduos no sentido de
haver um organismo separado de outro organismo, no sentido de haver
um espaço, uma distância entre nós. Todo o nosso pensar não é
coletivo? É uma idéia algo aterradora, esta, mas não é exato isto?
A parte : Se vos dissessem que iríeis morrer amanhã, isso teria
algum efeito em vós, pessoalmente?
K rishnamurti: Nenhum, absolutamente, eu continuaria do mesmo
modo. Mas a questão é: existe pensar individual separado do cole­
tivo? O que estou tentando dizer é isto: Sou educado como hin-
duísta, como cristão, budista ou seja o que for, e creio em tudo que
a sociedade crê, sendo eu uma parte dela. Existe pensamento sepa­
rado desse todo? Todo pensamento separado só pode ser uma rea­
ção, não é verdade? Posso libertar-me da estrutura do “ coletivo” e
me declarar separado, mas isso, em verdade, é apenas uma reação
dentro daquela estrutura, não achais? Eu estou falando a respeito
da rejeição total da estrutura. É isso possível? Se é possível, há
então pensamento individual que não é mera reação ao “ coletivo” .

86
Afinal, a morte é a libertação cio :<coletivo” . A morte é um
libertar-se da estrutura em que existe pensar coletivo e reação a esse
pensar coletivo, a qual chamamos “ pensar individual” , mas que con­
tinua a fazer parte do “ coletivo” . Morrer para tudo isso pode e deve
ser algo completamente diferente, algo que se não pode medir em
termos do “ coletivo” ou em termos do “ individual” , algo incognos-
cível, desconhecido. E eu digo que, se o conhecido não existe dentro
do “ desconhecido” , somos então meros escravos do conhecido e daí
não há saída. O incognoscível só se torna possível quando morremos
para o conhecido.

21 de maio de 1961.

87
LONDRES X
Mente M editativa

F alarei hoje sobre a qualidade da mente medita­


tiva. Esta pode ser um tanto complexa e abstrata, porém, se a
examinarmos atentamente, não tanto em suas minúcias, mas com o
propósito de descobrir sua natureza, sua índole, sua essência, então
talvez valha bem a pena fazê-lo. Então, talvez, com esforço cons­
ciente e propósito deliberado, estaremos aptos a ultrapassar a mente
superficial, que tão vazias torna as nossas vidas — tão sem profun­
deza que é, tão senhoreada pelos hábitos.
Antes de tudo, valeria a pena reconhecermos por nós mesmos o
quanto somos superficiais. A mim me parece que quanto mais super­
ficiais, tanto mais ativos e mais “ coletivos” nos tornamos, e tanto mais
nos entregamos às atividades de reforma social. Colecionamos obras
de arte, tagarelamos interminavelmente, dedicamo-nos a atividades
sociais, freqüentamos concertos, bibliotecas, galerias de arte, e submer­
gimos na interminável rotina do emprego e dos negócios. Estas coisas
tornam-nos embotados; e quando percebemos esse embotamento, pro­
curamos fazer-nos mais penetrantes, por meio de palavras, do inte­
lecto, das coisas da mente. E, reconhecendo-nos superficiais, tentamos
fugir a esse vazio, entregando-nos a práticas religiosas, às orações, à
contemplação, à busca de saber; tornamo-nos idealistas, adornamos de
quadros as paredes etc. Acho que estamos suficientemente cônscios
de sermos muito superficiais, bem cônscios de que a mente que segue
um hábito ou pratica uma disciplina a fim de “ vir a ser algo” torna-se
cada vez mais embotada e estúpida, perdendo toda penetração e sensi­
bilidade. É dificílimo a uma mente superficial despedaçar sua própria

88
estreiteza, suas próprias limitações, sua própria insignificância. Não
sei se já pensastes nisso alguma vez.
O assunto de que vou tratar nesta tarde requer, não só certa
atividade mental, intelectual, mas também uma clara compreensão da
palavra e de suas limitações. E, se pudermos entrar em comunhão
uns com os outros, não apenas verbalmente, porém ultrapassando o
símbolo que a palavra evoca na mente e, também, prosseguindo juntos
e cautelosamente o nosso caminho, então, sem dúvida, começaremos
a descobrir, por nós mesmos, o que é meditar e qual é a qualidade
da mente capaz de meditação.
Parece-me que, se não compreendemos a extraordinária beleza
da meditação, por mais que pareçamos inteligentes, prendados, compe­
tentes, penetrantes, nossa vida tem de ser muito superficial e mui
pouco significativa. E, reconhecendo quão pouco significativa é nossa
vida, tratamos de buscar uma “ finalidade da vida” ; e quanto mais
grandiosa a “ finalidade” que nos oferecem, tanto mais nobres julga­
mos serem os nossos esforços. Penso que a busca de “ finalidade”
é procedimento absolutamente errôneo. Não há finalidade; o que há
é o viver sem limitações. E para se descobrir esse estado isento de
limitações, requer-se uma mente muito perspicaz, muito clara, pene­
trante e precisa, e não uma mente embotada pelo hábito.
Evidentemente, nossas vidas são vazias, superficiais. E a mente
superficial facilmente se satisfaz. Ao ver-se descontente, põe-se a
seguir uma estreita rotina, fixa um ideal, sai atrás do que deveria ser.
E essa mente, não importa o que faça — quer estejamos sentados de
pernas cruzadas, a contemplar meditativamente o umbigo, quer medi­
temos a respeito do Supremo — permanecerá sempre vazia, porque
sua mesma essência é sem profundeza. Uma mente estúpida nunca
se tornará uma mente superior. O que ela pode fazer é compreender
sua própria estupidez; e, no momento em que perceber, por si mesma,
o que ela própria é, sem imaginar o que deveria ser, “ quebra-se” então
a estupidez. Com esta compreensão, toda busca termina — mas isto
não significa que a mente se torna “ estagnada” , adormentada. Pelo
contrário, está enfrentando o que é, em sua realidade; e isso não é
processo de busca, porém de compreensão.
Afinal, a maioria das pessoas está em busca de Deus, da Verdade,
do eterno amor, de uma eterna morada celestial, um amor permanente.
E a mim me parece que a mente que busca é muito superficial. Acho

89
que devemos compreender mais ou menos este ponto, investigá-lo,
ver quanto são absurdas a mente superficial e suas atividades, pois
não poderemos penetrar fundo, em nossas investigação desta tarde,
se continuarmos a pensar em termos de busca, de esforço para desco­
brir. Ao contrário, necessitamos de uma mente sobremodo pene­
trante, quieta, tranqüila. A mente sem profundeza, que se esforça
para tornar-se silenciosa, continua a ser apenas qual uma poça d’água,
sem profundidade. A mente limitada, sempre tão sabedora, tão sagaz,
tão empolgada da ambição de achar Deus, a Verdade, ou um santo
qualquer, porque seu desejo é chegar a alguma parte — essa mente
continua superficial, porquanto todo esforço é superficial, produto da
mente limitada, estreita. Jamais pode ser sensível essa mente; e pare­
ce-me necessário encararmos esta verdade. O esforço para ser, “ vir a
ser” , rejeitar, resistir, cultivar a virtude, reprimir, sublimar — tudo
isso, em essência, constitui a natureza da mente superficial. Prova­
velmente a maioria não concordará com isso, mas não importa. A
mim me parece um óbvio fato psicológico.
Ora, quando uma pessoa percebe isso, se torna cônscia disso,
percebe a sua verdade, realmente e não verbal nem intelectualmente
— e não deixa a mente fazer perguntas sem conta sobre como modi­
ficar este fato, como libertar-se desta superficialidade — sendo que
tudo isso envolve esforço — reconhece então a mente que nada pode
fazer contra esse estado. O que pode faze. apenas perceber, ver as
coisas cruamente, tais como são, sem deformação, sem invocar opiniões
a respeito do fato; quer dizer, observar simplesmente. E é dificílimo
observar pura e simplesmente, porque nossa mente foi exercitada para
condenar, comparar, competir, justificar ou identificar-se com o que vê.
Por esta razão, nunca vê as coisas tais como são. “ Viver com um
sentimento” tal qual ele é — seja ciúme, inveja, ambição, ou. seja
o que for — “ viver com ele” sem o deformar, sem emitir opinião ou
julgamento a seu respeito, isso requer uma mente dotada de energia
para seguir todos os movimentos do fato. Um fato nunca é estático;
ele se movimenta, vive. Mas nós o queremos estático, aprisionando-o
com uma opinião, um juízo.
Assim, a mente que está vigilante, que é sensível, percebe a
futilidade de todo esforço. Mesmo na educação, a criança, o estudante
que forceja para aprender, nunca aprende realmente. Poderá adquirir
conhecimento, tirar um diploma; mas aprender é coisa que transcende

90
o esforço. Talvez possamos nesta tarde aprender juntos, sem esforço,
em lugar de ficarmos presos na esfera do conhecimento.
Estar cônscio do fato, sem o desfigurar, sem o colorir, sem lhe
dar nenhuma tendência — observar a nós mesmos tais como somos
— com todas as nossas teorias, esperanças, desesperanças, sofrimentos,
fracassos e frustrações — isso torna a mente em extremo penetrante.
O que torna a mente embotada são as crenças, os ideais, os hábitos,
a busca de seu próprio engrandecimento, desenvolvimento, seu pró­
prio vir a ser ou ser. Como disse, para se seguir o fato requer-se uma
mente precisa, sutil, ativa, porquanto o fato nunca é estático.
Não sei se já alguma vez olhastes a inveja como um fato, seguin-
do-a. Todas as nossas sanções religiosas baseiam-se na inveja, do arce­
bispo ao ínfimo clérigo; e toda a nossa moralidade social, nossas rela­
ções, estão baseadas na aquisição e na comparação, e esta, por seu
turno, significa inveja. E seguir isso até o fim, em todos os seus
movimentos, em todas as nossas atividades diárias, requer uma mente
muito alertada. É muito fácil — não achais? — reprimi-lo, dizendo:
“ Vejo que não devo ser invejoso” , ou “ Já que estou aprisionado nesta
sociedade, corrompida, tenho de aceitar esta condição” . Mas seguir
todos os movimentos do fato, cada curva, cada linha, cada nuança,
cada sutileza — esse próprio “ processo” de segui-lo torna a mente
sensível, sutil.
Ora bem, se fazemos isso, se seguimos o fato sem tentar alterá-lo,
não existe então contradição entre o fato e o que deveria ser, e, por­
tanto, nenhum esforço existe. Não sei se estais percebendo isto real­
mente; que se a mente está seguindo o fato, não está então empe­
nhada em alterá-lo, em torná-lo diferente. Isto, também, é uma ver­
dade psicológica. E esse seguimento do fato precisa ser feito a todas
as horas, noite e dia, mesmo durante o sono. Pois a atividade da
mente quando o corpo dorme é muito mais deliberada, positiva, e
essas atividades são descobertas pela mente consciente através de sím­
bolos, sugestões, sonhos.
Mas se a mente se conserva vigilante, no correr do dia, obser­
vando a todas as horas cada movimento, cada gesto, cada movimento
de pensamento, não há então sonhar; pode então a mente ultrapassar
a própria consciência. Não prosseguiremos nisso, por ora, porque o
que desejamos salientar é a necessidade de uma mente sensível. Para
se descobrir o que é a Verdade, Deus, ou o nome que preferirdes, é

91
absolutamente necessário ter uma mente lúcida — não no sentido de
talentosa, intelectual, argüitiva; uma mente capaz de raciocinar, de
examinar, de duvidar, de indagar e investigar, a fim de descobrir. A
mente que tem fronteiras, que está condicionada, não é sensível. O
nacionalista, o crente, por certo não tem uma mente sensível, por­
quanto sua crença, seu nacionalismo lhes limita a mente. Assim, no
seguir o fato, a mente se torna sensível. O fato a torna sensível e
não há necessidade de fazermos a mente sensível.
Se está mais ou menos claro isso, qual é então a natureza da
beleza que essa mente descobre? A beleza, para a maioria de nós,
reside nas coisas que vemos objetivamente — um edifício, um quadro,
uma árvore, um poema, um rio, uma montanha, o sorriso de um belo
rosto, a criança que vemos na rua. E existe também, para nós, a
negação da beleza, a reação à beleza, que é o dizermos: “ Isto é feio” .
Mas a mente sensível é sensível tanto para o feio como para o belo
e, por consequência, não há nenhuma busca daquilo a que chama belo
e nenhuma evitação do feio. E com essa mente descobrimos que
existe uma beleza inteiramente diferente das avaliações feitas pela
mente limitada. Deveis saber que a beleza requer simplicidade, e a
mente muito simples, que vê os fatos tais como são, é uma mente
muito bela. Mas não podemos ser simples se não houver passividade,
e não há passividade se não há austeridade. Não me refiro à auste­
ridade da tanga, das longas barbas, do monge, do tomar só uma
refeição por dia, porém à austeridade da mente que se vê como é e
segue infinitamente aquilo que vê. E esse seguir é passividade, por­
quanto a mente a nada está apegada. A mente deve ficar comple­
tamente passiva, para ver “ o que é” .
Assim, o percebimento da beleza requer a paixão da austeridade.
Estou empregando propositadamente as palavras “ paixão” e “ auste­
ridade” . Já expliquei o que é austeridade; e da paixão necessitamos
obviamente para ver a beleza. Necessita-se de intensidade, e neces­
sita-se de penetração. A mente embotada não pode ser austera, não
pode ser simples e, por conseguinte, é sem paixão. É na chama
da paixão que se percebe a beleza, que se pode “ viver com a beleza” .
Talvez tudo isso, para vós, não passe de palavras, para serem lem­
bradas, invocadas, sentidas, mais tarde. Não há “ mais tarde” ; não há
“ ínterim” . Isso tem de acontecer agora, enquanto conversamos,
enquanto estamos em comunhão uns com os outros. E esse percebi-

92
mento da beleza não reside apenas nas coisas — em vasos, estátuas,
o céu — mas começa-se também a descobrir a beleza da meditação,
e a intensidade, a paixão da mente meditativa.
Desejo agora apreciar a meditação, porquanto a meditação é neces­
sária, e estamos aqui lançando as suas bases. Para a meditação, neces­
sita-se de uma mente capaz de permanecer em silêncio — não uma
mente posta em silêncio por meio de artifícios, de disciplina, de per­
suasão, de repressão, porém uma mente completamente tranqüila.
Isso é absolutamente essencial à mente que se acha num estado de
meditação. Por conseguinte, a mente deve estar libertada de todos os
símbolos e palavras. Ela é escrava das palavras, não? Os ingleses
são escravos da palavra “ rainha” , os indivíduos religiosos escravos da
palavra “ Deus” , etc. A mente atravancada de símbolos, de palavras,
de idéias, é incapaz de estar em silêncio, quieta. E a emaranhada
em seus pensamentos é incapaz de estar tranqüila. Essa tranqüilidade
não é estagnação, um estado “ em branco” , um estado de hipnose: mas
ela pode ser alcançada “ no escuro” , inesperadamente, sem volição e
sem desejo, quando compreendemos o processo do pensamento.
O pensamento, afinal de contas, é reação da memória; e a memó­
ria é o resíduo da experiência; e o resíduo da experiência é o centro,
o “ eu” . Assim se forma o centro, o “ eu” , que é essencialmente acumu­
lação de experiência, passada e presente, em relação tanto à coletivi­
dade como ao indivíduo. Desse centro, o resíduo da memória, emana
o pensamento; e esse processo precisa ser compreendido completa­
mente — e isso é autoconhecimento. Assim, sem autoconhecimento,
consciente e inconsciente, a mente nunca estará tranqüila. Só poderá
hipnotizar-se para tornar-se tranqüila, mas isso é infantil, sem madu­
reza.
O autoconhecimento, portanto, é imediato, é necessário e urgente,
porquanto a mente que conhece a si própria e a todos os seus arti­
fícios, imaginações e atividades, pode chegar sem esforço, sem exigên­
cia, sem premeditação, ao estado de completa quietude. Conhecer a
si mesmo é conhecer a totalidade do pensamento e saber como este
divide a si próprio em “ eu superior” e “ eu inferior” . É o percebi-
mento da totalidade desse movimento de experiência, memória, pensa­
mento, e também do centro — pois o centro se torna pensamento,
memória e experiência; e a experiência, por sua vez, se torna memó­
ria mediante o ulterior condicionamento da experiência.

93
Espero me estejais seguindo, pois, se vos observardes atenta­
mente, podeis perceber isso. O centro nunca é estático. O que era
“ centro” se toma experiência, e a experiência se torna “ centro” , e
“ o centro” se transforma em memória. E tal como causa e efeito.
O que era causa se toma efeito, e o efeito se torna causa. E esse
processo não é só consciente, mas também inconsciente. O incons­
ciente é o resíduo da raça, do bomem, oriental ou ocidental; essas
tradições herdadas, no encontro com o presente, se transformam nou­
tra tradição. Para se perceberem as múltiplas camadas do inconsciente
e o seu movimento, necessita-se de uma mente bem penetrante e viva,
que nunca esteja, por um momento sequer, a buscar segurança, con­
forto. Porque, no momento em que se busca segurança, conforto,
está tudo acabado, vemo-nos atolados, aprisionados. A mente anco­
rada na segurança, no conforto, na crença, num padrão, num hábito,
não pode ser ágil.
Eis, pois, o que é autoconhecimento; e conhecer a si mesmo signi­
fica descobrir o fato e seguir o fato sem nenhum interesse em modi­
ficá-lo. E isso requer atenção. Atenção é uma coisa, concentração
outra coisa muito diferente. A maioría dos que desejam meditar espera
adquirir o poder da concentração. Todo colegial sabe o que é concen­
tração. Ele deseja olhar pela janela, e o mestre lhe diz: “ Olha para
teu livro” ; e trava-se uma batalha entre o desejo de olhar para fora
e a compulsão do medo, da competição, que o força a olhar para o
livro. Concentração, pois, é uma forma de exclusão, não achais? E
embora em tal “ processo” possais tornar-vos perspicazes, vossa mente
está sendo limitada. Tende a bondade de ir seguindo isso, sem aceitar
nem rejeitar, porém, simplesmente, observando.
A mente que se limita a concentrar-se conhece a distração; mas
a que está atenta, não tolhida pela concentração, não conhece distração.
Tudo, então, é movimento vivo. Compenetrai-vos bem disso e vereis
como lançareis fora toda a carga de mandamentos religiosos que vos
foi imposta e olhareis a vida de diferente maneira. Torna-se a vida
então algo maravilhoso, extraordinariamente significativo — o verda­
deiro vivery que não é fugir.
Quando se dá a uma criança um brinquedo, cessa completamente
o seu desassossego e ela se torna quieta, toda absorvida no brinquedo.
E o mesmo acontece conosco; temos também nossos brinquedos: Mes­

94
tres, salvadores, obras de arte; e, neles se absorvendo, a mente se
torna quieta. Mas, essa absorção é morte para a mente.
Pois bem, a atenção não é o oposto da concentração; não está
em relação com a concentração, e, por conseguinte, não é reação à
concentração. Atenção é estar a vossa mente cônscia de cada movi­
mento que se verifica dentro e fora dela própria. Significa, não ape­
nas ouvir os barulhos do tráfego, mas também o que se está dizendo,
e estar cônscio da reação ao que se está dizendo, cônscio sem esco­
lha, para que não haja limitações à mente. Quando a mente está
atenta dessa maneira, a concentração tem, então, significado comple­
tamente diferente; pode, então, a mente concentrar-se, mas tal concen­
tração não é esforço, não é exclusão, porém parte do percebimenío.
Não sei se estais compreendendo bem.
Essa atenção é bondade; essa atenção é virtude; e nessa atenção
encontra-se o amor e, portanto, aconteça o que acontecer, lá não pode
existir o mal. O mal só se torna existente quando há conflito. A'
mente atenta, completamente cônscia de si mesma e de todas as
coisas que se passam nela própria, é capaz de transcender a si própria.
A meditação, pois, não é um “ processo” de “ saber meditar” , de
se ser ensinado a meditar; isso é completamente infantil, pois daí
provém hábito, e todo hábito torna a mente embotada. Aprisionada
em seu próprio condicionamento poderá a mente ter visões do Cristo
ou dos deuses indianos, ou do que quer que seja, mas, sem embargo,
está condicionada. O cristão só pode ter visões do Cristo, e o hindu
só pode ter visões dos seus deuses prediletos. A mente meditativa
não é imaginativa; portanto, não tem visões.
Assim, quando a mente, depois de agitar-se inutilmente na esfera
de seus próprios movimentos, começa a seguir a atividade de seus
pensamentos, a amar o seu centro, seu movimento, suas experiências,
só então é capaz de compreensão, só então está quieta.
Agora, um momento, Este orador pode comunicar-vos verbal­
mente o que então sucede, mas isso é muito sem importância, porque
vós é que tendes de descobri-lo. Deveis chegar àquele estado, abrindo
vós mesmo a porta. Se outro vos abre a porta, ou procura abri-la,
então esse outro se torna vossa autoridade, e vós o seu seguidor. Por
conseguinte, isso significa morte para a verdade; morte para a pessoa
que diz que “ sabe” , e morte para aquele que pede “ dizei-me” . Á
ânsia de saber gera a autoridade; dessarte, tanto o guia como o segui­
dor se acham presos na mesma rede.
Ora bem. Este que vos fala está-vos expondo isto tudo, não
com o intuito de convencer-vos, ou estimular-vos, ou demonstrar-vos
algo, ou coisa parecida, mas, sim, porque, quando o compreenderdes,
vereis a relação existente entre o tempo e o espaço.
Quando a mente está completamente livre de barreiras, de limi­
tações, acha-se então num estado de plenitude: e, nesta plenitude, está
vazia: e nesse vazio pode conter o tempo — tempo como espaço e
distância; tempo como ontem, hoje e amanhã. Mas, não havendo
aquele vazio, não há tempo, nem espaço, nem distância. Por causa
daquele vazio, existe o tempo e, portanto, distância e espaço. E
quando a mente descobre isso, experimenta-o, não verbalmente, porém
realmente, não como coisa lembrada — ela sabe, então, o que é cria­
ção — criação e não coisa criada. E vereis então que, ao dobrardes
uma esquina, ao passeardes na floresta ou por uma rua imunda, ou
onde quer que seja, sempre vos encontrareis com o Eterno.
A mente, pois, jornadeou pelo seu próprio interior, pela últimas
profundezas de si própria. Esta não é jornada semelhante à viagem à
Lua num foguete, que é relativamente fácil, mecânica; e a jornada
interior, a visão interior não é mera reação ao exterior. É um só
movimento: interior e exterior. E quando há essa visão profunda,
interior, essa atenção interior, esse movimento interior, a mente, então,
já não está separada do Sublime. Por conseguinte, toda busca, toda
ânsia, tudo terminou.
Por favor, não vos deixeis hipnotizar, influenciar por minhas
palavras. Se estais influenciados, não podeis saber por vós mesmos
o que é o amor. A meditação é o descobrimento dessa coisa extraor­
dinária que se chama Amor.

23 de maio de 1961.
LONDRES XI
A E n erg ia do A mor

D a ú lt im a vez estivemos falando sobre a medi­


tação e a beleza, e seria bom voltarmos a este assunto por momentos,
antes de entrarmos em nossa discussão de hoje.
Dissemos que existe a beleza, um sentimento do belo inacessível
aos sentidos, sentimento não provocado pelas coisas feitas pelo homem
ou pela natureza. A beleza transcende tudo isso; e para efetuarmos
a investigação da beleza — que não é meramente subjetiva ou objetiva
— temos de alcançar o percebimento intenso da beleza que se alcança
por meio da meditação. Considero a meditação, a mente meditativa,
um requisito essencial. Já examinamos esta matéria com bastante pro­
fundeza e vimos que a mente meditativa é aquela que investiga, que
percorre todo o processo do pensamento e é capaz de ultrapassar-lhe
as limitações.
Talvez, para alguns dentre nós seja dificílimo meditar; e é mesmo
provável que não tenhamos sequer pensado nesta questão. Mas quem
examina atentamente esta questão da meditação — a qual não é auto-
-hipnotismo, nem imaginação, nem evocação de visões, e outras infan­
tilidades que tais — alcança, invariavelmente, penso eu, aquele mes­
mo sentimento, aquela mesma intensidade própria da mente que per­
cebe o belo sem “ provocação’'. E a mente que está em silêncio,
tranqüila, naquele estado de intensidade, descobre um estado não limi­
tado pelo tempo e pelo espaço.
Desejo agora falar sobre o significado da mente religiosa. Como
vimos dizendo, desde o começo destas despretensiosas falas, estamos
procurando entrar em comunhão uns com os outros, fazer juntos uma
jornada. Por conseguinte, vós não estais escutando a este orador com
preconceitos, com parcialidade, com preferências ou “ despreferências” ;
estais escutando com o fim de descobrir por vós mesmos o que é
verdadeiro. E para se descobrir o que é verdadeiro quando se está
enleado em tantas coisas falsas, pensamentos superficiais, esperanças
e desesperanças, cumpre não aceitar nada, absolutamente, do que está
dizendo o orador. É preciso investigar, explorar; e isso requer mente
livre e não a mera reação de uma mente tolhida por preconceitos e
opiniões; necessita-se de uma mente verdadeiramente livre, quer dizer,
não ancorada em determinada crença, dogma ou experiência, uma
mente capaz de seguir um fato com muita clareza e -precisão. Para
seguir fatos, a mente precisa ser muito sutil. Como já dissemos, um
fato nunca é estático; está sempre em movimento — seja um fato que
observamos em nós mesmos, seja um fato objetivo. A observação
de um fato exige mente capaz, precisa, lógica e, sobretudo, livre para
seguir.
Parece-me que neste nosso mundo atual, onde vemos tanta con­
fusão, aflição e agitação, são necessárias a mente científica e a mente
religiosa. Estes dois, sem dúvida, são os únicos estados mentais reais;
pois não é real o estado da mente que crê, da mente condicionada,
quer pelo dogma do cristianismo, do hinduísmo, quer por qualquer
outra crença ou religião. Afinal, temos problemas imensos e a vida
se tornou muito mais complexa. Exteriormente, talvez haja um maior
sentimento de segurança, o sentimento de que talvez não tenhamos
guerras atômicas no futuro, dado o terror que inspiram. Sente-se
que, conquanto possa haver guerra em data remota, não será na
Europa; e, assim, podemos sentir-nos mais seguros, física e emocional­
mente. Mas, parece-me, a mente que busca segurança se torna embo­
tada, medíocre; e, em tais condições, ela é incapaz de resolver seus
próprios problemas.
Assim, para vivermos neste mundo — com suas rotinas, seu tédio,
a existência superficial da clase média, da classe superior ou da infe­
rior —• e resolvermos os nossos problemas, ultrapassá-los, penetrar
profudamente em nós mesmos, só há dois caminhos: o científico ou o
religioso. O “ caminho” religioso inclui o científico, mas o científico
não contém em si o religioso. Mas necessitamos do espírito científico,
uma vez que este é capaz de examinar rigorosamente todas as causas

98
da miséria liumana; o espírito científico poderá promover a paz mun­
dial, objetivamente — alimentar a humanidade, dar-lhe casas para
morar, roupas etc. — não apenas aos ingleses ou aos americanos, mas
a todo o mundo. Não se pode viver na prosperidade numa extremi­
dade da terra, enquanto na outra extremidade existe degradação,
doença, fome e esqualidez. Talvez a maioria de vós ignoreis isso,
mas o deveis saber. Para se resolverem todos esses imensos problemas,
perceber toda a estupidez do nacionalismo, dos conchavos políticos,
das ambições, da avidez de poder, necesista-se do espírito cientifico.
Mas, infelizmente, como se vê, o espírito científico está agora interes­
sado em viagens à Lua ou mais além, em aumentar nossos confortos
com geladeiras melhores, carros melhores, et coetera. Isto está certo,
de modo geral, mas afigura-se-me um ponto de vista muito limitado.
Sabemos o que é “ espírito científico” : espírito de investigação,
nunca satisfeito com seus achados, sempre variável, nunca estático.
Foi o espírito científico que criou o mundo industrial; mas esse mundo
industrial, sem revolução interior, produz uma medíocre maneira de
viver. Sem essa revolução interior, todas as glórias e belezas da cha­
mada vida intelectual só podem tornar a mente mais embotada, mais
contentada, satisfeita, segura. O progresso em certos sentidos é essen­
cial, mas também destrói a liberdade. Não sei se já notastes que,
quanto maís coisas tendes, tanto menos sois livres. E, por isso, os
homens religiosos do Oriente têm dito: “ Renunciemos às coisas mate­
riais, pois não importam. Busquemos a outra coisa; mas eles não
acharam também essa “ outra coisa” . Sabemos, pois, mais ou menos,
o que é espírito científico — o espírito que existe no laboratório. Não
me refiro ao cientista como indivíduo; este é provavelmente igual a
vós e a mim, entediado da existência de cada dia, avarento, ávido
de poder, posição, prestígio.
Agora, muito mais difícil é averiguar o que é espírito religioso.
Como proceder, quando se deseja descobrir algo verdadeiro? Quere­
mos saber o que é espírito religioso — não esse estranho espírito que
prevalece nas religiões organizadas, porém o genuíno espírito religioso.
Como proceder?
Só se começa a descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso
por meio do pensar negativo, porquanto, para mim, o pensar nega­
tivo é o pensamento em sua forma mais elevada. Entendo por pen­
sar negativo aquele que despreza, que rompe e destroça as coisas
falsas construídas pelo homem para sua própria segurança, seu sossego
interior; que destroça todas as defesas e o mecanismo de pensamento
construtor dessas defesas. É preciso destroçar tudo isso, ultrapassá-lo,
rapidamente, celeremente, para ver se algo existe além. E o ultrapassar
dessas coisas falsas não é uma reação ao que existe. Certo, para des­
cobrirmos o que é o espírito religioso e dele nos abeirarmos negativa­
mente, precisamos ver no que cremos, e porque cremos, porque acei­
tamos todos os inumeráveis condicionamentos que as religiões orga­
nizadas do mundo inteiro impõem à mente humana. Por que credes
em Deus? Por que não credes em Deus? Por que tendes tantos dog­
mas e crenças?
Direis, porventura, que se ultrapassarmos todas essas chamadas
estruturas positivas atrás das quais a mente se abriga, ultrapassá-las
sem desejar encontrar algo mais —• nada mais restará senão deses­
pero. Mas eu acho que temos de passar também pelo desespero. Só
existe desespero quando há esperança — a esperança de nos pormos
em segurança, permanentemente confortados, perpetuamente medío­
cres, perenemente felizes. Para a maioria de nós, o desespero é reação
à esperança. Mas, para se descobrir o que é o espírito religioso, acho
que essa investigação deve realizar-se sem nenhuma provação, nenhu­
ma reação. Se vossa busca é apenas uma reação — porque desejais
mais segurança interior — nesse caso vossa busca visa apenas a um
conforto maior, seja numa crença, numa idéia, seja no conhecimento,
na experiência. E a mim me parece que tal modo de pensar nascido
da reação só pode produzir mais reações, e, por conseguinte, não
oferece a libertação do processo de reação que impede o descobri­
mento. Não sei se está claro o que estou dizendo.
Deve haver uma maneira negativa de proceder, e isso significa
que a mente necessita tornar-se cônscia do condicionamento imposto
pela sociedade, em relação à moralidade; cônscia das inumeráveis san­
ções impostas pela religião; e. cônscia, também, de como, rejeitando
essas imposições exteriores, cultivamos certas resistências internas,
crenças conscientes e inconscientes, baseadas na experiência, no conhe­
cimento, e que se tomam fatores diretores.
Assim, para descobrir o que é o verdadeiro espírito religioso, a
mente deve achar-se num estado de revolução, e este significa a
destruição de todas as coisas falsas que lhe foram impostas, seja por

100
pressão externa, seja por ela própria; pois a mente está sempre em
busca da segurança.
Afigura-se-me, pois, que o espírito religioso encerra esse constante
estado mental que nunca constrói para sua própria segurança. Por­
que se a mente constrói com essa ânsia de segurança, então ela fica
vivendo atrás de seus próprios muros e, portanto, é incapaz de desco­
brir algo novo.
Por conseguinte, a morte, a destruição do “ velho” , é necessária:
destruição da tradição, libertação total do que foi, abandono das coi­
sas acumuladas como memória através de séculos. Então, direis, por­
ventura: “ Que mais resta? Tudo o que sou é constituído por todo
esse conjunto de fatos, essa “ história” , a experiência; se tudo isso
desaparece, se apaga, que resta?” — Em primeiro lugar, pode-se apa­
gar tudo isso? Podemos falar a esse respeito, mas é verdadeiramente
possível apagá-lo? Eu digo que é possível — mas não por influência
ou coerção, pois isso é insensatez, falta de madureza. É possível, se
o penetrarmos profundamente, afastando de nós toda autoridade. E
esse “ limpar da lousa” — que significa morrer todos os dias e de
momento em momento, para as coisas acumuladas — requer abun­
dante energia e profundo discernimento; e isso faz parte do espírito
religioso.
Outra parte do espírito religioso é o “ espírito-força” , que inclui
a ternura e o amor. Estou tentando expressar-me por meio de pala­
vras, mas tende a bondade de não vos contentardes com palavras,
apenas. Eu disse que outra parte do espírito religioso é a força prove­
niente do amor. E com a palavra “ força” quero referir-me a algo
completamente diferente do impulso para ser poderoso, do desejo de
dominação, controle; do poder que a abstinência confere; ou do
poder de uma mente sagaz, cheia de ambição, avidez, inveja, ávida de
perfeição. Este poder é maligno. O domínio de uma pessoa sobre
outra, o poder do político, o poder de influenciar outros para pensa­
rem de certa maneira, seja exercido pelos comunistas, pelas igrejas,
seja pelos sacerdotes ou pela imprensa — este poder, para mim, é
extremamente nocivo. Estou-me referindo a coisa muito diferente,
tanto em grau como em qualidade, algo sem nenhuma relação com o
poder dominador. Existe essa força, esse poder, uma coisa “ exterior” ,
não produzida por nossa vontade ou desejo. Nesse poder reside aquela

101
coisa extraordinária que é o amor; e este faz parte do espírito reli­
gioso.
O amor não é sensual; nenhuma relação tem com a emoção;
não é reação ao medo; não é amor materno, amor conjugal etc.
Segui bem isso, por favor, penetrai-o, sem nada aceitar, nem
rejeitar, pois estamos jornadeando juntos. Direis, talvez: “ Um tal
amor, um tal estado mental não baseado em lembrança, é impossível” .
Mas eu acho que ele pode ser encontrado. Encontramo-lo por vias
obscuras, ao investigarmos no seu todo o processo do pensamento, as
peculiaridades da mente. É um poder existente por si só; é energia
não causada. Difere inteiramente da energia gerada pelo “ eu” em
sua ânsia de alcançar as coisas que deseja. E aquela energia existe,
mas só será encontrada pela mente livre, não vinculada ao tempo e
ao espaço. Nasce aquela energia quando o pensamento — como expe­
riência, conhecimento, como “ ego” , centro — o “ eu” — gerador de
sua própria energia, volição e concomitantes pesares, aflições etc. —
se dissolve. Dissipado esse centro, manifesta-se aquela energia, aquela
força que é o amor.
E há, também, outra camada da mente religiosa que é movi­
mento — movimento não dividido em exterior e interior. Tende a
bondade de seguir isso por instantes. Conhecemos os movimentos
exteriores, objetivos; e desse conhecimento resulta uma reação que
chamamos movimento interior, um afastamento do exterior, renúncia
ao exterior, ou, também, aceitação dele como inevitável, resistência a
ele pelo cultivo de uma reação de “ movimento interior” , com suas
crenças, experiências etc. Existe o movimento para o exterior, o
impulso para fera — ser ambicioso, ávido etc.; e quando esse movi­
mento falha, nos voltamos para o interior. Não se busca a verdade
quando a mente é feliz. Quando a mente se acha contentada, delei­
tada, tamanha é sua própria vitalidade que não precisa murmurar,
sequer, o nome de Deus. Só quando nos sentimos infelizes, quando
as coisas exteriores falharam, quando já não temos êxito, quando temos
desgostos domésticos, quando há morte, conflito etc., só então nos
voltamos para o interior, como costumam fazer os velhos. Nunca
recorremos à religião quando somos jovens, porque então as nossas
glândulas estão funcionando “ a toda velocidade” . Encontramos satis­
fação no sexo, na posição, no prestígio, no dinheiro, na fama etc.
Quando essas coisas começam a falhar-nos, só então nos voltamos

102
para o interior; ou, se ainda somos jovens, nos tornamos beatniks.
Tudo isso é reação: e revolução não é reação.
Ora, se se percebe com toda a clareza a verdade contida em tudo
isso, ocorre então um movimento que é tanto exterior como interior;
não há divisão. É um movimento: movimento que consiste em ver
as coisas exteriores precisa, clara e objetivamente, tais como são; e
esse mesmo movimento se verifica também interiormente, não como
reação, porém como o movimento das marés, que é o fluxo e refluxo
das mesmas águas. O movimento para fora significa ter os olhos, os
sentidos, todo o nosso ser, abertos, vivos. E o movimento para den­
tro é o fechar dos olhos — emprego esta expressão como meio de
comunicação; ninguém precisa ficar de olhos fechados. O movimento
para dentro é a visão interior. Depois de compreender o exterior, os
olhos se voltam para dentro; mas não como reação. E a visão interior,
a compreensão interior significa quietude, tranqüilidade, completas;
porque nada mais há para buscar, para comprender.
Não gosto de empregar a palavra “ interior” , mas espero tenha­
mos entendido. Esse estado interior é que é criação. Ele nada tem
em comum com o poder humano de inventar, de produzir coisas, etc.
É o estado de criação. Esse estado de criação só se manifesta quando
a mente compreendeu a destruição, a morte. E só quando a mente
vive esse estado de energia, que é amor, só então há criação.
Agora, a parte nunca é o todo. Temos descrito as partes; mas
os raios de uma roda não constituem a roda, embora a roda contenha
os raios. Não podemos alcançar o todo por meio de uma parte. O
todo só pode ser comprendido ao perceber-se tudo o que estivemos
dizendo sobre as várias partes da mente religiosa. Ao terdes esse
percebimento total, então, nesse sentimento total está incluída a morte,
a destruição, o sentimento de força pelo amor, e a criação. E isso
é a mente religiosa. Mas para alcançar esse estado religioso, a mente
deve ser precisa, pensar com clareza, logicamente, nunca aceitando as
coisas externas ou as coisas internas que para si mesma criou, como
conhecimento, experiência, opinião, etc.
Vemos, pois, que a mente religiosa encerra em si a mente cien­
tífica; mas a mente científica não contém a mente religiosa. O mundo
vem tentando consorciar as duas, mas isso é impossível; assim sendo,
tratarão de condicionar o homem para aceitar a separação. Mas esta­
mos falando de coisa totalmente diferente. Estamos tentando uma

103
jornada de descobrimento, e isso significa que tendes de descobrir.
Aceitar o que se está dizendo não tem valor algum, pois, assim, estais
de volta à velha rotina, sois escravos da propaganda, da influência e
tudo o mais.
Mas, se empreendestes também a jornada e sois capazes de des­
cobrir, vereis então que podeis viver neste mundo; então, as agita­
ções deste mundo têm significação. Porque, neste conteúdo total,
neste sentimento total, há ordem e desordem. Não é assim? É
preciso destruir, para criar. Mas não é a destruição à maneira dos
comunistas. A desordem, se podemos empregar tal palavra, existente
na mente religiosa, não é o contrário da ordem. Sabeis como gosta­
mos da ordem. Quanto mais burgueses somos, quanto mais limitados
e medíocres, tanto mais amamos a ordem. A sociedade precisa de
ordem; quanto mais corrupta se torna, tanto mais deseja ordem. É
o que querem os comunistas: um mundo em perfeita ordem. E nós
outros desejamos a mesma coisa: temos medo à desordem. Compreen­
dei, por favor, que não estou advogando um mundo em desordem;
não estou absolutamente empregando a palavra “ desordem” em sen­
tido reacionário. A criação é desordem; mas essa desordem, sendo
criadora, contém a ordem. Isto é muito difícil de transmitir. Per­
cebeis?
A mente religiosa, pois, não é escrava do tempo. Onde existe
o tempo — ontem, com todas as suas lembranças, movendo-se através
de hoje e criando, assim, o futuro e condicionando a mente — não
existe aquela desordem criadora. A mente religiosa, portanto, é uma
mente que não tem futuro, não tem passado, e tampouco não está
vivendo no presente, compreendido como oposto de ontem e de ama­
nhã, porquanto nesta mente religiosa não está contido o tempo. Não
sei se estais entendendo.
A mente, pois, pode alcançar aquele estado religioso. Estou
empregando a palavra “ religioso” com um novo sentido, indicando
algo não relacionado com as religiões do mundo, todas elas mortas,
moribundas, decadentes. Assim, a mente religiosa é aquela que só
pode “ viver com a morte” , com a extraordinária e poderosa energia
do amor. Não traduzais isto. Não façais perguntas sobre o “ amar um”
ou “ amar todos” ; isto é infantil. Só a mente religiosa pode voltar-se
para dentro; e esse “ voltar-se para dentro” não está em relação com
o tempo e o espaço. É ilimitado, infinito, não pode ser medido por

104
uma mente aprisionada no tempo. E só a mente religiosa resolverá
os nossos problemas, porque ela não tem problemas. E só a mente
que não tem problemas, uma mente realmente religiosa, pode resol­
ver todos os problemas. Essa mente, por conseguinte, está em relação
íntima com a sociedade; mas a sociedade não está em relação com ela.
Assim, no sentido da palavra “ religioso” , é necessária uma revo­
lução em cada um de nós — revolução total e não parcial. Toda
reação é parcial; e a revolução a que nos referimos não é parcial e,.,
sim, uma coisa total. E só essa mente pode ter intimidade com a
Verdade. Só essa mente pode ter “ amizade” com Deus — ou o
nome que preferirdes. Só essa mente pode participar da Realidade.
A parte : A mesma mente cria a ordem e a desordem?
K rishnamurti: Está-me parecendo, senhor, que não empreendestes
a jornada. Deve haver morte, para que algo novo possa existir. Pala­
vras, frases, a formulação intelectual de perguntas — nada disso tem
relação com aquilo de que falamos. Como sabeis, quando se vê algo
verdadeiramente belo, imenso — as montanhas, os rios — a mente
se torna silenciosa, não é verdade? A beleza do que se está vendo
varre-nos da mente toda indagação, todo sentimentalismo, todo sus­
surro de pensamento; naquele segundo tudo isso é varrido da mente,
porque a coisa que se vê é sumamente grande. Mas, se esse “ varrer”
é efetuado por algo externo a vós, nesse caso é uma reação, e voltareis
posteriormente a vossas lembranças. Porém, se realmente empreen­
destes a jornada, vossa mente se acha então naquele estado em que
não faz perguntas, em que não tem problemas. Senhor, a mente que
está a morrer, que está morta, tem problemas; mas não os tem a
mente ativa, viva, fluente como um rio, intensa.
Aparte : Penso que concordareis que o estado da sociedade hu­
mana deixa muito a desejar. É possível uma pessoa reli­
giosa atuar sobre essa sociedade de maneira eficiente, contra
todos os outros que estão atuando diferentemente?
K rishnamurti: Pretendíamos falar a este respeito na próxima reu­
nião. Que valor tem tudo isso para a sociedade? Que vantagem há
em uns poucos, ou um ou dois alcançarem aquele estado? Que é a
sociedade e que deseja a sociedade? Ela deseja posição, prestígio,
dinheiro, sexualidade; sua própria estrutura baseia-se na aquisição,
na competição, no êxito. Se dizeis algo contra tudo isso, eles não

105
vos quererão. Não podeis evitá-lo. Se algumas das chamadas pessoas
religiosas, sacerdotes, etc., começassem a falar sobre a necesidade de
não ser ambicioso, de não se fazerem guerras, nem se praticarem vio­
lências, pensais que teriam seguidores? Ninguém lhes daria ouvidos.
E estou certo de que não dareis ouvidos ao que se está dizendo aqui,
porque continuareis a palmilhar o caminho da ambição, da frustração,
da segurança, que na verdade é o caminho da morte. Levareis con­
vosco, daqui, uns “ pedacinhos” do que ouvistes, para acrescentá-los
ao que já sabeis. Mas nós estamos falando de coisa inteiramente dife­
rente, de coisa verdadeiramente extraordinária, pela sua beleza e pro­
fundidade. Porém, para a alcançardes, compreenderdes, “ viverdes
com ela” , requer-se imenso trabalho — trabalho de penetração, a fim
de esclarecer a mente consciente e inconsciente, e o mundo que nos
circunda. Ou podeis ver tudo num súbito clarão e eliminá-lo de vez.
Tanto uma coisa como outra requer extraordinária energia.

25 de maio de 1961.
LONDRES - XII
R enovação Mental

E STA é a última palestra desta série de reuniões,


em que estivemos considerando a atitude ou ação que se torna neces­
sária para se enfrentar o desafio de um mundo tão completamente
confuso e destrutivo como este. Nota-se em toda a parte um pro­
cesso de destruição, degeneração, não apenas na sociedade, mas ainda
no indivíduo. A onda de deterioração parece estar sempre a alcan­
çar-nos e arrastamos. Há divisões entre as pessoas, tanto no domínio
econômico, como também no racial e religioso. No Oriente, nota-se
sofrimento e esqualidez, isso no campo físico, emocional e psicoló­
gico. Há tensão, conflito, confusão, por toda a parte.
Considerando-se tudo isto, parece-me necessária uma mente total­
mente nova; não mente “ recondicionada” , não mente “ banhada”
pelos comunistas, pelos capitalistas, pelos cristãos ou hinduístas e, sim,
uma mente nova. E estivemos considerando como fazer nascer essa
mente nova.
Estudamos a questão praticamente de todos os pontos de vista,
interior e exterior, e vimos que, quanto mais tentamos modificar a
mente exteriormente, pela propaganda, como o está fazendo a maioria
das religiões, ou mediante pressão econômica ou social — tanto mais
a mente fica condicionada, tanto mais superficial, vazia, embotada e
insensível se torna. É bastante óbvio, parece-me, a qualquer um que
já observou estas coisas, que a mente condicionada, consciente ou
inconscientemente, a mente que está sendo influenciada, ainda que
muito sutilmente, é incapaz de atender aos numerosos problemas que
surgem na moderna civilização.

107
Interiormente, psicologicamente, somos em geral muito vulgares,
limitados, sob o peso de nossa ilustração e saber. E temos tantos
problemas — problemas de relação, problemas que surgem em nossa
vida de cada dia — o que se deve fazer e o que se não deve fazer,
o que se deve crer e o que se não deve crer — interminável busca
de conforto, segurança e de um meio de fuga ao sofrimento — temos
tantos problemas que, se os víssemos todos, em conjunto, poderíamos
perder as esperanças. Assim, evidentemente, o que se torna neces­
sário, o desejável e essencial é uma mente nova; porque, em verdade,
tudo o que tocamos faz surgir um novo problema.
Assim, como dissemos na última reunião, é necessária uma mente
religiosa. E, sem dúvida, a mente religiosa é aquela que se depurou
de todas as crenças e de todos os dogmas; esta mente é capaz de um
percebimento, uma compreensão interior que dá uma certa tranqüi-
lidade, serenidade. E, quando a mente está interiormente tranqüila,
há intenso percebimento de tudo o que se passa fora dela. Isto por­
que, compreendendo todos os conflitos, frustrações, perturbações, agi­
tações e sofrimentos interiores, ela está serena e, por conseguinte,
exteriormente ela se torna intensamente ativa, com todos os sentidos
bem despertos, capaz, portanto, de observar sem nada desfigurar, de
seguir cada fato de maneira não tendenciosa.
A mente religiosa, pois, não só é capaz de observar as coisas
externas com clareza, lógica e precisão, mas também, graças ao auto-
conhecimento, ela se tornou interiormente tranqüila, de uma tranqüi-
lidade que tem seu movimento próprio. E dissemos que essa mente
religiosa se acha, por conseguinte, num estado de revolução constante.
Não estamos interessados em nenhuma espécie de revolução parcial,
nenhuma revolução comunista, socialista ou capitalista. Os capita­
listas, em geral, não desejam revolução alguma, mas os outros a dese­
jam; e a revolução deles é sempre de natureza parcial — econômica,
etc. Mas a mente religiosa promove a revolução total, não só interior­
mente, mas também exteriormente; e, no meu sentir, só a revolução
religiosa, e nenhuma outra, pode resolver os múltiplos problemas da
humana existência.
E que pode fazer essa mente? Que podemos fazer, vós e eu,
como dois indivíduos, neste mundo monstruoso e insano? Não sei se
já pensastes nisto, alguma vez. Que pode fazer uma mente religiosa?

108
Já explicamos com muita clareza que a mente religiosa não é a
mente cristã, hinduísta ou budista, ou pertencente a alguma seita
extravagante ou sociedade com fantásticas crenças e idéias; a mente
religiosa é aquela que, tendo percebido interiormente sua própria vali­
dade, a verdade de suas percepções, sem desfiguração, é capaz de
resolver lógica, racional e sãmente os problemas que surgem, não
permitindo que nenhum deles crie raízes. Desde que deixamos um
problema lançar raízes na mente, existe conflito; e onde há conflito,
está presente o “ processo” de deterioração, não só exteriormente, no
mundo objetivo, mas também interiormente, no mundo das idéias, dos
sentimentos, das afeições.
Que pode, então, fazer a mente religiosa? Provavelmente muito
pouco. Porque o mundo, a sociedade é constituída de indivíduos
ambiciosos, ávidos, “ aquisitivos” , facilmente influenciáveis e que dese­
jam pertencer a alguma coisa, crer em alguma coisa, filiando-se a certas
correntes de pensamento e padrões de ação. Essas pessoas não podem
ser modificadas senão pela influência, a propaganda, o oferecimento
de novas formas de condicionamento. Mas a mente religiosa lhes diz
que se despojem, interiormente, de tudo. Porque é só em liberdade
que se pode descobrir o que é verdadeiro e se existe a Verdade, Deus.
A mente que crê nunca descobrirá o que é verdadeiro ou se existe
Deus; só a mente livre pode descobri-lo. E para sermos livres, temos
de penetrar todas as servidões que a mente a si mesma impôs. Isto
é dificílimo, pois requer muita penetração, exterior e interiormente.
Quase todos, sabemo-lo, andamos às voltas com o sofrimento.
Sofremos de uma ou de outra maneira, física, intelectual, ou interior­
mente. Somos torturados e nos torturamos a nós mesmos. Conhe­
cemos o desespero, e a esperança, e o medo sob todos os seus aspectos;
e nesse vórtice de conflito e contradições, preenchimentos e frustra­
ções, ciúmes e ódio, debate-se a mente. Aprisionada que está, sofre,
e todos sabemos que sofrimentos são estes: o sofrimento ocasionado
pela morte, o sofrimento da mente insensível, o sofrimento da mente
muito racional e intelectual, que conhece o desespero, porque reduziu
tudo a pedaços e nada mais lhe resta. A mente sofredora faz nascer
várias filosofias do desespero; busca refúgio através de numerosas vias
de esperança, confiança, conforto, através do patriotismo, da política,
das argumentações verbais, das opiniões. E para a mente sofredora

109
existe sempre uma igreja, uma religião organizada pronta a acolhê-la
e torná-la mais embotada ainda, com suas promessas de consolo.
Conhecemos tudo isso; e quanto mais refletimos, tanto mais
intensa a mente se torna e nenhuma saída se encontra. Fisicamente,
é possível fazer algo contra o sofrimento, tomar uma pílula, procurar
o médico, alimentar-se melhor, mas aparentemente nenhuma saída
existe senão pela fuga. Mas a fuga torna a mente muito embotada.
Ela poderá ser penetrante em seus argumentos, em suas defesas; mas
a mente em fuga está sempre temerosa, porque precisa proteger a coisa
em que se refugiou, e, evidentemente, tudo aquilo que protegemos,
que possuímos, faz nascer o medo.
E, assim, o sofrimento continua; conscientemente, talvez, possa­
mos afastá-lo, mas interiormente ele continua existente, corrompendo,
putrefazendo. Mas podemos ficar livre dele, totalmente, completa­
mente? Esta me parece a pergunta correta que se deve fazer; porque,
se perguntamos “ Como ficar livre do sofrimento?” , então, o “ como”
cria o padrão” do que se deve fazer e do que não se deve fazer” ,
e isso significa seguir por uma via de fuga, em vez de enfrentar o
problema, a causa-efeito do próprio sofrimento. Assim, antes de come­
çarmos a discutir, gostaria de investigar esta questão.
O sofrimento perverte e deforma a mente. O sofrimento não é
o caminho da Verdade, da Realidade, de Deus (ou como quiserdes
chamá-lo). Temos tentado enobrecê-lo, dizendo-o inevitável, neces­
sário, alegando que traz a compreensão, etc. Mas a verdade é que,
quanto mais intensamente uma pessoa sofre, tanto mais ansiosa se
torna de fugir, de criar uma ilusão, de encontrar uma saída. Parece-
-me, pois, que a mente sã, saudável, deve compreender o sofrimento
e ficar completamente livre dele. E isso é possível?
Ora, como compreender por inteiro o sofrimento? Não èstamos
tratando de uma única qualidade de sofrimento por que acaso estejais
passando ou eu esteja passando; existem, como sabeis, muitas varie­
dades de sofrimento. Mas estamos falando sobre o penar em geral,
estamos falando da totalidade da coisa; e como compreender ou sentir
o todo? Espero me esteja fazendo claro. Através da parte nunca é
possível sentir o todo; mas, se se compreende o todo, a parte pode
então ajustar-se nele e tornar-se, assim, significativa.
Ora, como se sente o todo? Entendeis o que quero dizer? Sen­
tir, não apenas como inglês, mas sentir a totalidade da humanidade;

110
sentir não apenas a beleza das paisagens da Inglaterra, que são real­
mente belas, porém a beleza de toda a Terra; sentir o amor total —
não apenas o amor por minha mulher e meus filhos, mas o senti­
mento total de amor; conhecer o sentimento total da beleza, não da
beleza de um quadro pendente da parede, ou de um sorriso num
rosto belo, ou de uma flor, de um poema, porém aquele sentimento
de beleza que transcende todos os sentidos, todas as palavras, toda
expressão. Como sentir assim?
Não sei se alguma vez já vos fizestes esta pergunta. Porque,
vede, satisfazemo-nos tão facilmente com um quadro na parede, com
nosso jardim particular, uma árvore que num campo nos atrai a aten­
ção. E como alcançar esse sentimento da inteireza da Terra e do
céu, e da beleza da humanidade? Percebeis o que quero dizer — o
sentimento profundo disso?
Prosseguirei examinando este tópico, se desejais seguir-me, mas
deixemo-lo de parte, por enquanto. Deixemos a questão em “ fervura” ,
em ebulição, e entremos numa diferente ordem de considerações.
A mente que está em conflito, em batalha, em guerra, interior­
mente, se toma embotada; não é uma mente sensível. Ora, que é
que torna a mente sensível, não apenas para uma ou outra coisa,
porém sensível como um todo? Quando é ela sensível não apenas
para o belo, mas também para o feio, para tudo? Só o é, por certo,
quando não há conflito; isto é, quando a mente está tranqüila interior­
mente e, por conseguinte, é capaz de observar todas as coisas exte­
riores com todos os seus sentidos. Ora, que é que gera o conflito?
E existe conflito não apenas na mente consciente, exterior — a mente
que está sumamente cônscia de seus raciocínios, seus conhecimentos,
sua proficiência técnica, etc. — mas também a mente interior, incons­
ciente, a qual, provavelmente se acha no “ ponto de fervura” a todas
as horas. Que é pois, que cria o conflito? Por favor, não respondais,
porquanto a mera análise mental ou investigação psicológica não resol­
ve o problema. O exame verbal pode mostrar intelectualmente as cau­
sas do sofrimento, mas nós estamos falando sobre o “ estar de todo
livre do sofrimento” . Cabe-nos, pois, experimentar ao mesmo tempo
que falamos, sem nos deixarmos ficar no nível verbal.
O que cria o conflito é, obviamente, o “ puxão” em diferentes
direções. O homem que se deixou comprometer completamente com
alguma coisa é, em geral, insano, desequilibrado; para ele não há

111
conflito: ele é essa coisa. O homem que crê inteiramente numa dada
coisa, sem duvidar, sem interrogar, que se identificou completamente
com aquilo que crê — esse homem não tem conflito nem problema.
Tal é mais ou menos o estado de uma mente doente. E a maioria
de nós gostaria muito de identificar-se, de “ comprometer-se” com
alguma coisa de tal maneira que não houvesse mais problema algum.
Em geral, por não termos compreendido o processo do conflito, só
desejamos evitar o conflito. Mas, como já assinalamos, o evitar só
produz mais sofrimentos.
Assim, percebendo tudo isso, faço a mim mesmo e, portanto, tam­
bém a vós, esta pergunta: Que cria o conflito? E conflito implica
não só desejos contraditórios, vontades, temores e esperanças contra­
ditórias, mas tudo quanto é contradição.
Ora, por que existe contradição? Espero estejais escutando, atra­
vés de minhas palavras, a vossas mentes e corações. Espero vos este­
jais servindo de minhas palavras como um portal através do qual estais
observando, escutando a vós mesmos.
Uma das causas principais do conflito é a existência de um centro,
um ego, “ eu” , resíduo de todas as lembranças, todas as experiências,
todos os conhecimentos. E esse centro está sempre tratando de ajus­
tar-se ao presente ou de absorvê-lo: sendo o presente o hoje, cada
momento de nosso viver, que envolve sempre desafio e reação. Está
sempre a traduzir tudo o que encontra nos termos daquilo que já
conhece. O que ele já conhece é todo o conteúdo de milhares de dias
pretéritos, e com esse resíduo procura enfrentar o presente. Por
conseguinte, ele modifica o presente, e nessa própria atividade modifi­
cadora alterou o presente, criando assim o futuro. E nesse processo
do passado que traduz o presente e cria o futuro, se acha aprisionado
o “ eu” , o ego. E nós somos isso.
Assim, a fonte do conflito é o “ experimentador” e a coisa que
está “ experimentando” . Não é assim? Quando dizeis “ amo-vos” ou
“ odeio-vos” , existe sempre esta separação entre vós e aquilo que amais
ou odiais. Enquanto houver separação entre pensador e pensamento,
experimentador e coisa experimentada, observador e coisa observada,
tem de haver conflito. Divisão é contradição. Ora, pode-se anular
esta divisão ou separação, de modo que sejais o que vedes, sejais o
que sentis?

112
Importa compreender, primeiramente, que enquanto há divisão
entre pensador e pensamento, tem de haver conflito, porque o pen­
sador está sempre tentando fazer alguma coisa em relação ao pensa­
mento, procurando alterá-lo, modificá-lo, controlá-lo, dominá-lo, ten­
tando tornar-se bom, não ser mau, etc. Enquanto perdurar a divisão
geradora de conflito, tem de haver esta agitação da existências humana,
não só internamente, mas também externamente.
Ora, existe pensador separado do pensamento? Está clara esta
pergunta? O pensador é uma entidade separada, algo distinto, algo
permanente, separado do pensamento? Ou existe só pensamento, o
qual cria o pensador, porque assim poderá dar-lhe (ao pensador) per­
manência? Entendeis? O pensamento é impermanente, acha-se num
constante fluir, e a mente não gosta desse estado de fluidez. Deseja
criar algo permanente, em que possa ficar em segurança. Mas, se
não há pensamento, não há pensador, há? Não sei se já alguma vez
exprimentastes isto, se já seguistes esta ordem de reflexões, ou inves­
tigastes inteiramente o processo do pensar e quem é o pensador. O
pensamento declarou que o pensador é supremo, que existe a alma, o
“ eu superior” , conferindo assim ao pensador existência permanente
— mas tudo isso continua a ser resultado do pensamento.
Assim, se observamos este fato, se o percebemos realmente, vê-se
então que não há centro.
Notai, por favor, que isto pode ser muito simples de declarar,
verbalmente; mas penetrar o fato, vê-lo, experimentá-lo, isto é muito
difícil. No meu sentir, a fonte do conflito é esta separação entre o
pensador e o pensamento. Esta seperação cria conflito; e a mente em
conflito não pode viver, no mais elevado sentido desta palavra: não
podé viver totalmente.
Não sei se já notastes alguma vez que, quando tendes um senti­
mento muito forte, seja do belo, seja do feio, provocado do exterior
ou despertado interiormente, nesse estado imediato de intenso sentir
não existe, momentaneamente, observador, nem divisão. O observa­
dor só se apresenta quando o sentimento se atenuou. Entra então
em ação todo o processo da memória: Dizemos: “ Devo repetir este
estado” ou “ devo evitá-lo” — e tem início o processo do conflito.
Podemos ver a verdade aí? E que entendemos por ver? Como vedes
a pessoa que está sentada aqui, neste tablado? Não a vedes apenas
visualmente, mas também intelectualmente; estais vendo a pessoa com

113
vossa memória, vossas simpatias e antipatias, vossas diferentes formas
de condicionamento; e, por conseguinte, não estais vendo, não é ver­
dade? Quando vedes alguma coisa realmente, vós a vedes sem nada
daquilo (condicionamento, simpatias, antipatias, etc.) É possível
olharmos para uma flor sem lhe dizermos o nome, sem “ colar-lhe”
uma etiqueta: olhá-la, simplesmente? E não é possível, ao ouvirdes
algo grato aos ouvidos — não apenas música organizada, mas o canto
de uma ave na floresta, etc. — escutá-lo com todo o vosso ser? E
pode-se, pela mesma maneira, perceber realmente um coisa? Porque,
se a mente é capaz de perceber, de sentir realmente, então só há expe­
rimentar e não existe experimentador; pode-se então ver que o con­
flito, com todas as suas angústias, esperanças, defesas, etc., termina.
Quando se percebe a verdade integral de uma coisa; ao vermos
a verdade de que o conflito só pode cessar quando não há divisão
entre o observador e a coisa observada; quando se experimenta real­
mente este estado, sem nos socorrermos da memória nem dos dias
passados, então está terminado o conflito. Então seguis fatos e não
estais tolhido pela divisão que a mente faz entre o observador e o
fato.
O fato é: sou estúpido, estou cansado, preso à monótona rotina
da existência diária. Isto é um fato, mas não gosto dele; por isso,
há divisão. Detesto o que estou fazendo, e põe-se, assim, em movi­
mento o mecanismo do conflito, com todas as defesas e fugas e sofri­
mentos que ocasiona. Mas o fato é que minha vida é feia, superficial,
vazia, cruel, escrava dos hábitos.
Ora, se a mente não criar esse senso de divisão e, por conse­
guinte, conflito, pode então seguir simplesmente o fato; seguir toda a
rotina, todos os hábitos; seguir tudo, sem procurar alterar nada? Isto
é percepção, no sentido em que estamos empregando a palavra. E
vereis que o fato nunca é estático, nunca se acha imóvel. É uma
coisa que se move, uma coisa viva; mas a mente preferiria torná-lo
estático e daí é que vem o conflito. Eu vos amo, desejo apegar-me
a vós, possuir-vos; mas vós sois uma coisa viva, que se modifica, com
existência própria; por isso, existe conflito e todos os sofrimentos
dele decorrentes. E pode a mente ver o fato e segui-lo? Isso, em
verdade, significa uma mente muito ativa, muito viva, muito intensa,
exteríormente, e ao mesmo tempo muito tranquila interiormente. A
mente que no interior não está de todo quieta não pode seguir um

114
fato, pois este é muito rápido. Só a mente interiormente tranqüila
é capaz desse “ processo” , capaz de seguir continuamente cada fato
que se apresenta, sem dizer que o fato devia ser “ deste jeito” ou
“ daquele jeito” , sem criar separação, conflito, sofrimento: só essa
mente pode cortar todas as raízes do sofrimento.
Podeis ver, então, se alcançastes este ponto — não no espaço e
no tempo, mas na compreensão — que a mente entra num estado em
que se vê completamente só.
Como sabeis, para a maioria de nós “ estar só” é uma coisa ter­
rível. Não me refiro aqui à solidão, que é coisa diferente. Refiro-me
ao “ estar só” : estar só com alguém ou com o mundo: estar só com
um fato. Só, no sentido de que a mente não está sujeita a influências,
já não se acha presa ao passado, nem tem futuro, nem busca, nem
teme: está só. O que é puro está só; a mente que está só conhece
o amor, porque já não se enreda nos problemas do conflito, do sofri­
mento e do preenchimento. Só essa mente é uma mente nova, uma
mente religiosa. E, talvez, só ela pode curar as feridas deste mundo
caótico.

A parte : Podeis falar-nos um pouco mais sobre o que é o amor?


K rishnamurti: Isto supõe duas coisas, não? —- A definição verbal,
de acordo com o dicionário, a qual, evidentemente, não é o amor. Essa
é a primeira coisa, que envolve todos os símbolos, palavras, idéias,
concernentes ao amor. A outra coisa é que só se pode encontrar o
amor por meio da negação; ele só pode ser descoberto pela negação.
E, para descobrir, a mente deve primeiramente libertar-se da escra­
vidão das palavras, idéias e símbolos. Isto é, para descobrir o amor,
a mente precisa varrer tudo o que já sabe a respeito do amor. Não
é necessário “ varrer” tudo o que é conhecido para se poder descobrir
“ o desconhecido” ? Não é necessário varrermos todas as nossas idéias,
por mais que nos deleitem, todas as nossas tradições, por mais nobres
que sejam, para descobrir o que é Deus, descobrir se existe Deus?
Deus, aquela imensidão, deve ser incognoscível, não mensurável pela
mente. Assim, precisamos cortar completamente o processo de medi­
ção, de comparação, e o proceso de reconhecimento, para podermos
descobrir.
Do mesmo modo, para saber, experimentar, sentir o que é o
amor, a mente deve estar livre para descobri-lo; estar livre para sen­
ti-lo, para “ viver com ele” , sem a divisão entre observador e coisa
observada. Precisa ultrapassar as limitações da palavra; perceber tudo
o que a palavra sugere: amor pecaminoso e amor divino; amor nobre
e amor ignóbil — todos os preceitos e sanções e tabus sociais com
que temos cercado esta palavra. E isso representa empreendimento
dificílimo, não? — amar um comunista, amar a morte. E o amor
não é o oposto do ódio, porque todo oposto é parte do outro oposto.
Amar, compreender a brutalidade que impera no mundo, a brutali­
dade dos ricos e dos poderosos; ver o sorriso no rosto do pobre por
quem passais na estrada e participar da felicidade dessa pessoa —
experimentai isso uma vez, para verdes o que sucede. Amar requer
uma mente que esteja sempre a purificar-se das coisas que conhece,
que experimentou, recolheu, acumulou, e às quais se apegou. Sendo
assim, não há possibilidade de descrever esta palavra; só podemos
senti-la em sua totalidade.
A parte : Por outras palavras, nesse momento o indivíduo é amor.
K rishnamurti: Infelizmente, acho que não, meu senhor, porque não
há um momento reconhecível como “ esse momento” . Não há “ pro­
cesso” de reconhecerdes que sois amor. Já não sentistes raiva, já não
odiastes alguém? Dizeis então “ Eu sou isso (a raiva, o ódio etc.)?
Não há “ um momento” reconhecível, há? Vós sois a coisa, comple­
tamente. Só então a mente é capaz de descobrir o que é verdadeiro,
porquanto a mente livre pode seguir o fato. Para seguirdes o fato
de que odiais, não necessitais de autoridade alguma; necessitais de
uma mente livre de medo, livre de opiniões, e que não condena. Tudo
isso exige muito trabalho. Para se “ viver” com uma coisa bela ou com
uma coisa feia, requer-se intensa energia. Já notastes que o aldeão,
o montanhês que “ vive” com uma majestosa montanha, nem sequer
a vê, pois se acostumou com ela? Mas para “ viver com uma coisa”
e nunca se acostumar com ela, necessita-se de muita intensidade, da­
quela extraordinária energia. E essa energia se manifesta quando a
mente é livre, quando não há medo, quando não há autoridade.
A parte : O processo de purificar a mente é processo de pensa­
mento?
Krishnamurti: O pensamento pode ser puro? Todo pensamento
não é impuro? Porque o pensamento, nascendo da memória, já está
contaminado. Por mais lógico, por mais racional que seja, está conta-

116
minado, é mecânico. Por conseguinte, não existe pensamento puro,
ou pensamento “ livre” . Ora, o percebimento desta verdade exige
penetração de todo o processo da memória, isto é, ver que a memória
é mecânica, e se baseia em muitos dias passados. O pensamento nunca
pode tornar a mente pura; e o percebimento deste fato é a purificação
da mente. Por favor, não concordeis nem discordeis. Examinai, pro­
curai, como quem procura dinheiro, posição, autoridade e poderio; daí
nascerá uma mente maravilhosa, uma mente purificada, “ inocente” ,
fresca, uma coisa nova e, portanto, num estado de criação, ou seja,
em revolução.

P ergunta : N o momento da percepção de o que ê, podeis dizer­


mos o que acontece?
K rishnamurti: Posso dar-vos uma descrição, mas de que servirá ela?
Consideremos a questão. O fato é que amamos, que somos ciumentos,
invejosos. E vós condenais o fato, dizendo “ Não devo ser assim” ;
portanto, há divisão. Ora, que é que cria a divisão? Primeiro que
tudo, a palavra. A palavra “ ciúme” é, em si, separativa, condenatória.
A palavra é invenção da mente, cheia de conhecimentos acumulados
através de séculos e, portanto, incapaz de considerar o fato sem a
palavra. Mas, quando a mente considera o fato sem condenação, quer
dizer, sem a palavra, então o sentimento não é o mesmo da descrição
verbal, não é a palavra. Considerai a palavra “ beleza” . Todos pare­
ceis suspirar quando se pronuncia esta palavra! Para a maioria de nós,
a beleza é coisa dos sentidos. Também descritiva: “ Ele é um homem
de agradável aparência” ou “ Que edifício feio!” . Também compa­
ração: “ Isto é mais bonito do que aquilo” . Sempre a palavra é empre­
gada para descrever algo que percebemos através dos sentidos, a coisa
manifestada, o quadro, a árvore, o céu, a estrela, a pessoa.
Ora bem. Há beleza sem a palavra, transcendente à palavra,
aos sentidos? Se perguntais ao artista, ele responderá que, sem a
expressão, a beleza é inexistente; mas é exato isto? Para se descobrir
o que é a beleza, descobrir sua imensidade, sua totalidade, precisa-se
de aguçar os sentidos, ultrapassar as coisas que rotulamos como “ bele­
za” e “ fealdade” . Não sei se me estais seguindo. De modo idêntico,
para se seguir um fato como o ciúme, requer-se uma mente que lhe
dê toda a atenção. Quando vemos o fato, no próprio percebimento
dele, no próprio instante de vê-lo, o ciúme desapareceu, foi-se comple-

117
tamente. Mas nós não desejamos o desaparecimento total do ciúme.
Fomos educados para gostar dele, para “ viver com ele” , e pensamos
que, se não há ciúme, não existe amor.
Assim, o seguir um fato requer atenção, vigilância. E, depois,
que sucede? O que sucede ao estardes verdadeiramente vigilante
imposta mais que o resultado final. Entendeis? A própria vigilância
é mais significativa do que o estar livre do fato.
A parte : Pode haver pensamento sem a memória?
K rishnamurti: Por outras palavras: existe pensamento sem a pala­
vra? Isto é muito interessante, se o examinamos, Este orador está-se
servindo do pensamento? O pensamento, como palavra, é necessário
para a comunicação, não? O orador tem de servir-se de palavras —
palavras inglesas — para comunicar-se convosco, que entendeis o
inglês. E as palavras, evidentemente, promanam da memória. Mas,
qual é a fonte, o que existe atrás da palavra? Vou expressar-me de
outra maneira.
Ali está um tambor; ele emite um certo som. Quando a pele
está bem esticada, na tensão correta, vós o bateis e ele emite o tom
correto, que podeis reconhecer. O tambor, que é vazio e foi posto
na tensão correta, é como vossa mente pode ser. Quando há atenção
correta e se faz a pergunta correta, então ela dá a resposta correta.
A resposta pode ser em termos verbais — reconhecíveis; mas o que
provém daquele vazio, isto, por certo, é criação. A coisa criada por
meio do conhecimento é mecânica; porém, a coisa que provém do
vazio do desconhecido, esta é o “ estado de criação” .

28 de maio de 1961.

118
SAANEN I
Ver as Coisas Como S ão

D evemos saber bem claramente, desde já, com que


fim viemos aqui. Estas reuniões são para mim muito sérias — e
estou dando a esta palavra um significado especial. Seriedade, para
a maioria de nós, significa adotar uma certa linha de pensamento, um
determinado modo de vida, obedecendo a um padrão de conduta pre­
viamente escolhido; e esse padrão, esse modo de vida, se torna gra­
dualmente a regra do nosso viver. Isso para mim não é seriedade e
penso que seria muito útil e conveniente se tentássemos, cada um de
nós, averiguar o que é que realmente levamos a sério.
Quase todos nós, talvez, consciente ou inconscientemente, anda­
mos em busca da segurança, nesta ou naquela forma: segurança nas
posses, nas relações e nas idéias. E consideramos tais atividades muito
sérias. Isso para mim, mais uma vez, não é seriedade.
Para mim a palavra seriedade implica uma certa purificação da
mente. Estou empregando a palavra “ mente” num sentido geral, não
específico, e mais adiante examinaremos o significado dessa palavra.
Uma mente séria está sempre desperta, e, portanto, sempre a purifi-
car-se, e nela não existe busca de nenhuma espécie de segurança. Não
está ela a perseguir uma certa fantasia, não pertence a nenhuma escola
de pensamento, nenhuma religião, dogma, nacionalidade ou pátria; e
não a preocupam, tampouco, os problemas imediatos da existência,
embora seja necessário atender aos eventos de cada dia. A mente ver-
dadeiramente séria tem de estar sobremodo vigilante, sumamente aten­
ta, para que não tenha ilusões e não se deixe envolver em experiências
aparentemente proveitosas, convenientes ou aprazíveis.

119
Seria, pois, muito acertado se, exatamente no começo destas reu­
niões, ficasse bem claro para todos nós até que ponto e até que pro­
fundidade somos sérios. Com a mente alertada, inteligente e séria,
penso que estaremos habilitados a considerar o inteiro padrão da exis­
tência humana em todo o mundo e, dessa compreensão total, chegar­
mos ao particular, ao indivíduo. Consideremos, pois, a totalidade do
que se está passando no mundo, não simplesmente a título de infor­
mação ou de investigação de certo problema — problema atinente a
um dado país, ou seita, ou sociedade, seja democrática, seja comunista
ou liberal — mas, sim, consideremos o que realmente está sucedendo
no mundo. E daí, depois de percebermos o todo, de apreendermos o
significado dos sucessos externos — não como conhecimento, opinião,
porém percebendo os fatos, tais como estão realmente sucedendo —
daí chegaremos ao indivíduo. É isso que desejo fazer.
Vede: opinião, julgamento, avaliação, são verdadeiras futilidades
diante de um fato. O que pensais, as opiniões que tendes, a religião
ou seita a que pertenceis, as experiências que tivestes — tudo isso
nenhuma significação tem perante um fato. O fato é muito mais
importante do que o que pensais a seu respeito; tem significado muito
mais amplo do que vossa opinião, que se baseia em vossa educação,
religião; melo cultural, condicionamento. Por conseguinte, não vamos
tratar de opiniões, idéias, julgamentos; o que vamos fazer, se puder­
mos, é ver os fatos como são. Isso requer uma mente livre, uma
mente capaz de olhar.
Não sei se já pensastes alguma vez no que significa olhar, ver.
Trata-se simplesmente da percepção visual, ou o ver, olhar, é algo
muito mais profundo do que a percepção visual? Para nós, em geral,
“ ver” implica algo imediato: o que hoje está sucedendo e o que irá
suceder amanhã; e o que amanhã sucederá terá o colorido de ontem.
Nosso modo de olhar, portanto, é muito estreito, muito aproximado,
muito circunscrito, e nossa capacidade de olhar muito limitada. Eu
sinto que, se desejamos olhar, ver — além das colinas, além das mon­
tanhas, além dos rios e dos campos verdejantes, além do horizonte —
necessita-se de uma certa qualidade de liberdade. Necessita-se de uma
mente muito firme; e não é firme a mente que não está livre. E
considero importantíssimo termos essa capacidade de ver, não apenas
aquilo que desejamos ver, não apenas o que é agradável e conforme as
nossas estreitas e limitadas experiências, porém ver as coisas como

120
são. O ver as coisas como são liberta a mente. É algo realmente
extraordinário — perceber diretamente, simplesmente, totalmente.
Pois bem, desse modo geral prosseguiremos, observando tudo
que se está passando no mundo; e, a esse respeito, provavelmente
estais muito melhor informados do que eu, pois ledes os jornais, as
revistas, os artigos — tudo produzido em conformidade com os pre­
conceitos do autor, do editor, do partido. A palavra impressa se
tornou sumamente importante para a maioria de nós. De minha parte,
não leio jornais, mas tenho viajado muito e visto muita gente. Per­
corri os becos estreitos onde habita a extrema pobreza, conversei com
políticos e pessoas muito importantes — pelo menos se consideram
importantes — e sabeis, também, pessoaímente o que está sucedendo.
Há fome, miséria, degradação, pobreza, no Oriente. Lá, são capazes
de tudo para obterem uma refeição completa, substancial; e, assim,
estão dispostos a deitar abaixo as barreiras do pensamento, dos cos­
tumes, da tradição. E, em seguida, temos o outro extremo, lugares
onde existe imensa prosperidade, prosperidade como o mundo jamais
conheceu, lugares onde a comida é abundante, onde há muita roupa,
habitações limpas, confortáveis, como neste país. E nota-se que esses
confortos criam uma certa satisfação, uma mediocridade, uma certa
atitude de aceitação das coisas e de não se desejarem perturbações.
O mundo está dividido em fragmentos — política, religiosa e eco­
nomicamente, na religião e na filosofia. E os eventos que se passam
no mundo são fragmentários. As religiões e os governos buscam
apossar-se da mente dos homens; querem controlá-los, moldá-los em
técnicos, soldados, engenheiros, físicos, matemáticos, para assim tor­
ná-los úteis à sociedade. E a religião ou crença organizada — tal o
catolicismo ou o comunismo — está a expandir-se. Deveis estar bem
a par disso. A crença organizada está moldando a mente do homem —
seja a crença organizada da democracia, seja o comunismo, o cristianis­
mo ou o islamismo. Considerai tudo isso, mas não digais: “ Estais per­
dendo tempo, repetindo essas coisas” . Não estou perdendo tempo, pois
desejo em primeiro lugar ver o que realmente está sucedendo, para,
depois, ver se será possível destruir tudo isso dentro em nós, destruí-lo
totalmente. Porque esse movimento exterior que chamamos o mundo
é o mesmo movimento existente interiormente. O mundo exterior
não difere do mundo interior; e, quando não há compreensão do
mundo exterior, nenhuma significação tem voltarmo-nos para o mundo

121
interior. Considero essencial compreender o movimento exterior do
mundo, a brutalidade, a crueldade, a tremenda ânsia de êxito, cada
um desejando tornar-se algo, aderir a certos grupos de idéias, de pen­
samentos e sentimentos. Se pudermos compreender todos os eventos
exteriores, não em suas particularidades, porém apreendendo a sua
totalidade com um olhar livre de preconceito, livre de medo, não
buscando segurança, não procurando refúgio em teorias favoritas, espe­
ranças e fantasias, então o mundo interior terá significado todo dife­
rente. Quando o movimento interior comprendeu o movimento exte­
rior — é isso que chamo seriedade.
No mundo inteiro a mente do homem está sendo moldada e con­
trolada — pelas religiões, em nome de Deus, em nome da paz, da
vida eterna, etc.; e também pelos governos, mediante incessante pro­
paganda e compulsões econômicas; e pela ocupação, pela conta ban­
cária, pela educação, etc. E, assim, vos vedes afinal transformados
em simples máquinas, embora não tão boas, a certos respeitos, como
os computadores eletrônicos. Estais repletos de conhecimentos: é o
que a educação faz por vós. Estamo-nos tornando cada vez mais
mecanizados. Sois suíço, americano, ou russo, ou alemão, etc. Estais
todos “ padronizados” para a vida, e só pouquíssimos conseguem sal­
var-se dessa horrorosa condição sem se refugiarem em alguma religião
extravagante ou crença fantástica.
Eis a vida — isto é, o ambiente em que vivemos. Nela pode
encontrar-se uma esperança ocasional, um breve deleite; mas atrás de
tudo se esconde o medo, o desespero, a morte. E de que maneira
nos encontramos com esta vida? Que é a mente que se encontra com
a vida? Comprendeis esta pergunta? Nossa mente aceita essas coisas
como inevitáveis; ajusta-se a esse padrão e, lenta, porém seguramente,
ela se deteriora. O problema real, por conseguinte, consiste em como
despedaçar tudo isso —• não no mundo exterior, pois tal não é possível:
não se pode deter o proceso histórico. Não é possível impedir os
políticos de fazerem guerras. Provavelmente teremos guerras — espero
que não, mas provavelmente as haverá. Não talvez aqui ou ali, mas
em algum desgraçado país longínquo. Não se pode pôr cobro a isso.
Mas nós podemos — penso eu — destruir dentro em nós mesmos
todos os absurdos que a sociedade nos inculcou; e essa destruição é
criação. O que é criador é sempre destrutivo. Não me refiro à cria­
ção de um novo padrão, uma nova sociedade, uma nova ordem, um

122
novo Deus ou uma nova Igreja. O que estou dizendo é que o estado
criador é destruição. Ele não cria uma norma de conduta, um modo
de vida. A mente criadora não tem padrão. A cada momento ela
destrói o que criou. E só essa mente pode enfrentar os problemas do
mundo; não a mente astuta, não a mente ilustrada, não a mente que
pensa na pátria, não aquela que funciona de maneira fragmentária.
O que deve interessar-nos, pois, é destroçar a mente, para que
algo novo possa ocorrer. E é disto que vamos tratar em todas estas
reuniões: como promover uma revolução na mente. Há necessidade
dessa revolução; torna-se necessária a total destruição de todos os
dias passados, pois, do contrário, não teremos a possibilidade de nos
encontrarmos com o novo. E a vida é sempre nova, tal como o
amor. O amor não tem ontem ou amanhã; é sempre novo. Mas a
mente que conheceu a saciedade, a satisfação, trata de conservar esse
amor na memória, para adorá-lo, ou coloca a fotografia sobre o piano
ou a lareira, como símbolo do amor.
Assim, se estais dispostos, e se é também vossa intenção, exami­
naremos a questão de como transformar a mente embotada, cansada,
assustada, a mente dominada pela tristeza, que tantas lutas conheceu,
tantos desesperos, tantos prazeres, a mente já tão envelhecida sem
nunca ter conhecido juventude. Se o desejardes, examinaremos esta
questão. Eu pelo menos vou examiná-la, quer desejeis, quer não. A
porta está aberta e sois livres para entrar e sair. Este auditório não
é uma prisão; portanto, se isso não vos agradar, será melhor não
ouvi-lo; porque o que se ouve sem se desejar ouvir, se torna deses­
pero, veneno. Já sabeis, pois, logo de início, qual é a intenção deste
orador: que não deixaremos uma só pedra por virar, que todos os
recessos secretos da mente serão explorados, abertos e seu conteúdo
destruído, e que dessa destruição resultará algo novo, algo de todo
diferente de qualquer coisa criada pela mente.
Para isso se requer seriedade, empenho. Teremos de proceder
com vagar, cautelosa, porém inflexivelmente. E, talvez, no final de
tudo — ou exatamente no começo, porquanto não há começo nem
fim no processo destrutivo — possamos encontrar o imensurável,
abrir repentinamente a porta da visão, a janela da mente, para rece­
bermos aquilo a que se não pode dar nome. Essa coisa existe, além
do tempo, além do espaço, além de toda medida; ela não pode ser

123
descrita nem expressa em palavras. Sem o seu descobrimento, a vida
é completamente vazia, superficial, estúpida e fútil.
Dessarte, talvez agora possamos discutir um pouco, fazer pergun­
tas. Mas cumpre primeiramente averiguar o que significa “ discutir” , e
o que se entende por “ uma pergunta” . Uma pergunta errônea recebe
resposta errônea. Só a pergunta correta recebe a resposta correta, e
fazer uma pergunta correta é dificílimo. Fazer uma pergunta correta
— não apenas a mim, mas a vós e a qualquer de nós — requer
mente penetrante, mente perspicaz, atenta, vigilante, disposta a desco­
brir. Portanto, peço-vos não façais perguntas que não sejam perti­
nentes à matéria que estamos discutindo. E, discutindo, não o faça­
mos como colegiais, vós tomando posição de um lado e eu do outro
lado — isso está muito bem nas academias e sociedades de debates
— mas discutamos para descobrir, pois essa é a maneira de proceder
da mente científica e da mente que não teme. Dessa maneira nossa
discussão se tornará vantajosa; dessa maneira iremos para a frente e
descobriremos, por nós mesmos, o que é verdadeiro e o que é falso.
E cessa, também, a autoridade do orador; porque o descobrir não
necessita de autoridade. Só a mente embotada, indolente, exige a
autoridade. Mas a mente que deseja esclarecer-se, experimentar algo
totalmente, completamente, essa mente tem de descobrir, tem de abrir
caminho vigorosamente. E espero que estas reuniões ajudem cada
um de nós a ver com os nossos próprios olhos — e não com os olhos
de outrem — o que é valioso, o que é verdadeiro e o que é falso.
Pergunta : Por que achamos difícil fazer uma pergunta correta?
K rishnamurti: Achais difícil fazer uma pergunta correta? Ou dese­
jais fazer uma pergunta? Percebeis a diferença? A nós não importa
fazer uma “ pergunta correta” , não é verdade? Fui eu quem disse
que só a pergunta correta recebe a resposta correta. O que vos
importa, decerto, é apresentar o problema que tendes; portanto, não
vos deve preocupar o que seja uma “ pergunta correta” . Mas, se desejais
compreender vosso problema, cabe-vos então investigar o que é que
realmente constitui esse problema; e essa própria investigação do pro­
blema produzirá a pergunta correta. Compreendeis? Não tendes obri­
gação de fazer uma pergunta correta. Não podeis fazê-la; não o sabeis.
Porém, se o problema é intenso, se foi devidamente considerado, então,
inevitavelmente, fareis uma pergunta correta. Em geral não estudamos
o problema, não o examinamos de perto. Roçamos-lhe apenas a super­

124
fície e, daí, fazemos a pergunta; e a pergunta superficial só provocará
resposta superficial. Se temos medo, perguntamos: “ Como poderei
livrar-me do medo?” Se nos falta dinheiro, perguntamos: “ Como
poderei obter emprego melhor, prosperar?” Mas, se começardes a
investigar o problema total atinente ao êxito que todo ente humano
ambiciona; se procurardes penetrá-lo, descobrir o seu significado, o
porquê desse impulso, desse medo de não ter êxito na vida — e
espero que o investigaremos aqui — então, nessa própria operação
de investigar o problema, não podeis deixar de fazer a pergunta correta.
Pergunta : Que é que nos está impedindo de examinar profun­
damente um dado problema?
K rishnamurti: O que nos está tolhendo? Uma porção de coisas,
não é verdade? Desejais de fato examinar muito profundamente o
problema do medo? Sabeis o que isso significa? Significa sondar
todos os recantos da mente, deitar abaixo todos os abrigos, despedaçar
todos os refúgios da mente. E desejais fazer isso, desejais abrir-vos
a vós mesmos? Por favor, não digais tão prontamente “ sim” . Isso
significa abandonar muitas coisas a que estais apegados. Poderá signi­
ficar abandonar vossas famílias, vossos empregos, vòssas ígrejas, vossos
deuses e tudo mais. Mui poucos desejam tal coisa. Por isso, fazem
perguntas superficiais — por exemplo, “ como ficar livre do medo?”
— e pensam que assim fica resolvido o problema. Ou perguntam se
existe Deus — refleti na estupidez de tal pergunta! Para se descobrir
se existe Deus, cumpre abandonar todos os deuses, não achais? Pre­
cisais estar despojado de tudo, para o descobrirdes; todos os absurdos
que o homem edificiou, concernentes a Deus, precisam ser reduzidos
a cinzas. Isso significa ser sem medo, jornadear sozinho; e mui poucos
estão dispostos a tal.
Pergunta : É muito doloroso examinar um problema?
K rishnamurti: Não é, minha senhora. É difícil, mas não doloroso.
Vede, empregamos uma palavra — “ doloroso” , por exemplo — e essa
própria palavra nos impede de examinar o problema. Assim, em pri­
meiro lugar, antes de nos pormos a examinar um problema, devemos
compreender como a mente está escravizada a palavras. Prestai aten­
ção a isso, por favor. Nós somos escravos das palavras. A palavra
“ suíço” faz vibrar uma pessoa dessa nacionalidade, assim como o cris­
tão vibra ao ouvir a palavra “ Cristo” , e o inglês ao ouvir a palavra

125
“ Inglaterra” . Somos escravos das palavras, dos símbolos e das idéias.
E como pode uma mente nessas condições examinar um problema?
Para que o possa, ela deverá primeiramente averiguar o que a palavra
significa. E isso não é coisa fácil; requer uma mente capaz de com­
preender de todo, uma mente que não pensa de modo fragmentário.
Vede, senhores, o problema é simples. Há fome no mundo —
provavelmente não tanto aqui, na Suíça, ou na Europa, mas no
Oriente. Não fazeis idéia de quanta pobreza, quanta fome e degra­
dação, e todos os respectivos horrores. O problema não está sendo
resolvido porque todos o querem resolver de acordo com seu padrão
especial, o padrão comunista ou o padrão democrático, ou segundo
suas próprias concepções nacionais. A ele se estão aplicando parcela-
damente, e por isso nunca o resolverão. O problema só terá solução
quando a ele nos aplicarmos de maneira total, sem consideração de
nacionalidade, partidos políticos e tudo o mais.
P ergunta : Mas, para assim atendermos a essa situação mundial,
necessita-se de ordem.
K rishnamurti: Um minuto, senhor. Desejais ordem no mundo?
Pensai nisso a fundo. Afinal, ordem é o que os comunistas estão ofe­
recendo. Cria-se primeiramente um estado de. desordem, confusão,
miséria, para depois produzir-se a ordem em conformidade com deter­
minado padrão de idéias. Desejais ordem em vossa vida, senhor?
Pensai nisso, completamente.
Pergunta : Mas, para assim atendermos a essa situação mundial,
K rishnamurti: O problema não é este. Podeis ter ordem e pagar-
-Ihe o preço — ditadura militar, sujeição de vossa mente, subordi­
nação à autoridade, etc. E estais-lhe também pagando o preço quando
pertenceis a determinado grupo, determinada sociedade religiosa, não
é verdade? Temos Jesus, temos Maomé, temos um outro qualquer
na índia, e os seguimos; e existe ordem — cujo preço estamos pagando
há séculos. Ora, desejais ordem? Refleti nisso, para verdes tudo o
que implica. Ou o fato é que na própria ação de viver, que é destru­
tiva, encontra-se a ordem?
P ergunta : O medo é, sem dúvida, um dos mais formidáveis tro­
peços ao nosso progresso. Mas, de saída, não se pode deitar
tudo abaixo. Não deveríamos satisfazer-nos, por ora, com
meias-medidas?

126
K rishnamurti: Dizeis que deitar tudo abaixo, a fim de rios liber­
tarmos do medo, é difícil demais às pessoas comuns como nós; e,
não existe porventura um meio mais suave, mais lento de fazer as
coisas? Acho que não. Vede — empregastes a palavra “ progresso”
e a palavra “ medo” . O progresso exterior gera o medo, não? Quanto
mais possuís — quantos mais carros, mais luxo, mais confortos, etc.,
tanto maior o vosso medo de perder tudo isso. Mas se vos aplicais à
compreensão do medo, então o progresso já não torna a mente embo­
tada e satisfeita. E interiormente existe progresso? Para mim não
existe. Só há percepção direta, e para perceber diretamente, a mente
não deve ser indolente. Não, por favor, não concordeis comigo, por­
que esta questão é muito difícil. Segui apenas o que estou dizendo.
Para ver claro, quer dizer, de modo direto, a mente já não deve ter
a capacidade de escolher. Para ver as coisas como são, diretamente,
deve a mente deixar de condenar, avaliar, julgar. Isso não exige pro­
gresso, não exige tempo. Senhor, vós vedes as coisas diretamente
quando se apresenta algo perigoso; então vossa reação é imediata.
Nela não há progresão. Quando amais uma coisa com todo o vosso
ser, o percebimento é direto.
Pergunta : Mas, para se alcançar essa possibilidade de ver dire­
tamente . . .
K rishnamurti: Senhor, a palavra “ alcançar” também implica tempo
e distância. Assim, a mente está escravizada à palavra “ alcançar” . Se
ela puder libertar-se das palavras “ conseguir” , “ alcançar” , “ chegar” ,
então o percebimento poderá tornar-se direto.

25 de julho de 1961.

127
SAANEN II
O I ntelecto

( C onsidero bem importante, principalmente no


decorrer destas reuniões, aprendermos a escutar. Mui poucos escutam,
dentre nós; limitamo-nos a ouvir. Ouvimos superficialmente, como
estamos ouvindo aquele barulho na rua, e o que assim se ouve entra­
mos muito pouco no cérebro. O que ouvimos apenas superficialmente,
enunciamos à menor provocação. Mas existe uma maneira diferente
de escutar, em que o cérebro está vigilante sem esforço, interessado,
sério, empenhado em descobrir o que é verdadeiro e o que é falso,
sem emitir opinião, juízo, e sem traduzir ou comparar o que se diz
com o que ele já sabe. Por exemplo, a última moda agora é interes­
sar-se pelo Zen\ é a mania atual. E se, durante estas palestras, pro­
curardes comparar o que se está dizendo com o que tendes lido, assim
procedendo não estareis escutando verdadeiramente. Estareis unica­
mente comparando, e esse comparar é uma espécie de indolência. Já
se escutardes sem ser por intermédio do que tendes aprendido, ouvido
ou lido, estareis então escutando diretamente e reagindo diretamente,
sem preconceito algum. Estareis vendo a verdade ou a falsidade do
que se disse, e isso é muito mais importante do que vos limitardes a
comparar, avaliar, julgar.
Espero, pois, não vos causar desagrado com repetir continua­
mente quanto é difícil aprender a arte de escutar — arte tão difícil
como o ver. E tanto ver como escutar são coisas necessárias.
Dissemos da última vez que existe grande confusão no mundo.
Exteriormente, existe pobreza, fome e corrupção; interiormente, tam­
bém, existe confusão, sofrimento e pobreza do ser. Existe contra-

Í2 8
dição no mundo. Os políticos se declaram em favor da paz e prepa­
ram a guerra; fala-se de união da humanidade, e ao mesmo tempo
estamos assistindo à sua desintegração. E do meio desses caos, dessa
desordem, todos desejamos que saia a ordem. Temos paixão pela
ordem. Assim como temos paixão por manter nossos quartos limpos
e bem arrumados, assim também temos paixão por pôr o mundo
em ordem. Não sei se temos refletido profundamente nessa pala­
vra, no que ela implica. Queremos ordem interiormente, queremos
viver sem contradição, sem luta, sem confusão, de maneira que
exclua todo sentimento de desarmonia e luta; e, assim, recorremos
aos líderes espirituais, para que nos deem a ordem, ou aderimos a
grupos, ou seguimos um certo sistema de idéias, de disciplinas. Eis
como erigimos autoridades; queremos que nos mostrem o que deve­
mos fazer. Tentamos produzir a ordem pelo ajustamento, pela imi­
tação.
Do mesmo modo desejamos ter a ordem externa, na política,
no mundo dos negócios. Por essa razão existem ditadores, tiranos,
governos totalitários que prometem a ordem total, na qual a ninguém
é permitido pensar. Ensinam-vos o que deveis pensar, da mesma ma­
neira como vos ensinam o que pensar quando pertenceis a uma igreja
ou a um grupo que crê num certo sistema de idéias. A tirania da
igreja é tão brutal como a tirania dos governos. Mas gostamos dela,
porque desejamos a ordem a qualquer preço. E temo-la. A guerra
produz uma ordem extraordinária num Estado. Todos cooperam para
a mútua destruição.
Cumpre, assim, comprender essa obsessão pela ordem. A sujei­
ção de nossa própria confusão à autoridade, interna ou externa, produz
a ordem? Compreendeis esta pergunta?
Vejo-me confuso e não sei o que faça. Minha vida é estreita,
limitada, confusa, infeliz — encontro-me num estado de contradição
e não sei o que faça. Assim sendo, dirijo-me a alguém, instrutor,
guru, santo, salvador; e provavelmente alguns de vós viestes aqui
com igual propósito. Assim, por causa de vossa confusão escolheis
vosso líder, e quando atuais por motivo de confusão, vossa escolha
só pode criar mais confusão. Abandonais-vos à autoridade — e isso
significa que não desejais pensar, não desejais descobrir por vós mes­
mos o que é verdadeiro e o que é falso. Descobrir o que é verda­
deiro e o que é falso é dificílimo; temos de estar muito ativos, muito

129
vigilantes. Mas, como em geral somos preguiçosos, insensíveis, não
profundamente sérios, preferimos que nos digam o que devemos fazer;
e para isso temos os santos,1os salvadores, os instrutores, para diri­
girem nossa conduta interior; e exteriormente temos os governos, os
tiranos, os generais, os políticos, os especialistas. E esperamos que,
seguindo-os, nossas tribulações se acabarão gradualmente e, por conse­
guinte, teremos ordem.
Por certo, a palavra “ ordem” implica tudo isso, não? Ora, a
exigência de ordem produz ordem? Considerai isso, por favor, pois
desejo examinar este ponto. A meu ver, a autoridade e o poder, de
qualquer espécie que sejam, são destrutivos. O poder, em qualquer
forma, é coisa má, porque estamos confusos; porque não sabemos,
queremos ser ensinados.
Penso, pois, que desde o início destas palestras deve ficar bem
entendido que este orador não é nenhuma autoridade; tampouco o
sois vós, que ouvis e acompanhais o que se está dizendo. Nós estamos
procurando investigar, descobrir juntos. Se aqui viestes com a idéia
de que se vos irá dizer o que deveis fazer, partireis de mãos vazias.
A mim o que importa é perceber a existência da desordem exte­
rior e interior, e que a exigência de ordem é simplesmente exigência
de segurança, garantia, certeza. E infelizmente não existe segurança,
nem interna, nem externa. Os bancos poderão falir, poderá haver
guerra, há a morte, os valores da bolsa poderão sofrer uma queda
desastrosa — tudo pode acontecer, e coisas terríveis já estão acon­
tecendo. Como vemos, a exigência de ordem é exigência de segu­
rança; e é isso o que todos, velhos e moços, queremos. Não temos
muita preocupação quanto à segurança interior, porque não sabemos
como proceder para obtê-la, mas esperamos alcançar pelo menos a
segurança exterior, com bons bancos, bons governos, uma tradição
perdurável. Torna-se, assim a mente gradualmente satisfeita, embo­
tada, segura, confinada na tradição, e essa mente, como é bem óbvio,
nunca descobrirá o que é verdadeiro ou o que é falso; é incapaz de
enfrentar o tremendo desafio da existência.
Espero não vos estejais deixando mesmerizar pelas minhas pala­
vras, mas que estejais escutando de maneira tal que possais descobrir
por vós mesmos se realmente existe coisa tal como a segurança. Este
é um problema formidável. Viver num mundo exterior onde não
existe segurança, e viver num mundo interior onde nenhuma tradi-

130
ção existe, onde não existe amanha nem hoje — isso significa que a
pessoa ou se torna desequilibrada, completamente insana, ou extraor­
dinariamente viva e sã.
Isso não é questão de escolha. Não se pode escolher entre a
segurança e a insegurança; mas é fácil perceber que não existe segu­
rança interior, psicológica. Nenhum estado de relação oferece segu­
rança; e por mais fortemente que estejamos apegados a uma certa
doutrina, crença, a isso está sempre associada a dúvida, a suspeição,
o medo. Uma investigação desta natureza é necessária, quando há
paixão pela ordem.
Não é verdadeiro, tampouco, o contrário disso: que devamos
viver na desordem, no caos. Isso é apenas uma reação. Sabeis que
vivemos e atuamos por efeito de reação. Todas as nossas ações são
reações. Não sei se já notastes isto. E se vemos que a ordem não
é possível, pensamos então, invariavelmente, que deve haver o oposto,
a desordem, a reação à ordem. Mas se se percebe a verdade de que
a exigência de ordem implica tudo o que acabamos de apontar, então,
do descobrimento do que é verdadeiro resulta a ordem verdadeira.
Estou-me fazendo claro? Vou expressá-lo de diferente maneira.
A paz, por certo, não é a ausência da guerra. A paz é coisa
diversa. Não é o intervalo entre duas guerras. Para descobrirmos o
que é a paz, precisamos estar completamente libertados da violência.
Para nos libertarmos da violência, requer-se tremenda investigação da
violência. Isso significa perceber realmente que na violência estão
implicados compulsão, ambição, desejo de êxito, perfeita eficiência,
autodisciplinamento, e o seguimento de certas idéias e ideais. Por
certo, forçar a mente a ajustar-se —■ não importa se a um padrão
nobre ou ignóbil — implica violência.
Dizemos que, se não nos ajustarmos, haverá caos. Mas tal afirma­
tiva é uma reação, não achais? A violência não é uma coisa super­
ficial; o sondá-la requer muita investigação. A cólera, o ciúme, o
ódio, a inveja, tudo isso são expressões da violência. Estar livre da
violência é estar em paz, não achar-se num estado de desordem. Eis
por que o conhecimento de -si mesmo não é questão simplesmente de
se considerarem as coisas ocasionalmente, pelo espaço de uma manhã,
e não cuidar mais disso pelo resto da semana. É uma questão muito
séria.

131
Assim, compreender a ordem é muito mais importante do que
a reação pela qual dizemos: “ Se não houver ordem, haverá caos” —
como se o mundo em que vivemos fosse uma maravilha, belo e des­
lumbrante, sem caos nem sofrimento! Basta-nos olhar a nós mesmos,
para vermos como somos pobres interiormente. Somos vazios de afei­
ção, de simpatia, de amor, somos feios, e mui facilmente persua­
didos; e há sempre essa busca de companhia, a impossibilidade de
estarmos mr.
Importa, pois, considerarmos a ordem em sua totalidade, e não
apenas pedacinhos dela, aqueles que preferimos. E é dificílimo ver­
mos uma coisa totalmente — como se vê a árvore inteira. Falei um
pouco extensamente a respeito da ordem, da autoridade, e do ajusta­
mento; e, se puderdes ver isso de maneira total, vereis então como
o cérebro, a mente, se livra dessa exigência de ordem e, portanto, do
desejo de seguir — seja a um herói nacional, à lenda ou a outros
absurdos que tais, seja ao- vosso instrutor preferido, guru, santo, etc.
Pois bem. Que é “ ver totalmente” ? Em primeiro lugar, que é
“ ver” ? É só a palavra? Tende a bondade de acompanhar-me com
um pouco de atenção, se vos apraz. Quando dizeis “ vejo” , que que­
reis dizer? Não me respondais, por favor; acompanhai-me, apenas.
Não me estou erigindo em vossa autoridade, e vós não sois meus
seguidores. Não tenho nenhum, graças a Deus! Estamos, juntos,
investigando a questão relativa a “ ver” , uma vez que ela é muito
importante, como por vós mesmos descobrireis.
Quando dizeis: “ vejo aquela árvore” , a estais vendo realmente,
ou vos estais satisfazendo, apenas, com a palavra “ vejo” ? Pensai
nisso. Vamos devagar! Dizeis: “ Aquilo é um carvalho, um pinheiro,
um olmo — o que quer que seja — e passais adiante? Se assim é,
isso denota que não estais vendo a árvore, porque estais confinado
na palavra. Só quando compreendeis que a palavra não é importante
e podeis pôr de parte o símbolo, o termo, o nome, é só então que
podeis olhar. Isso é muito difícil — olhar — porquanto significa
que o nome, a palavra, com todas as lembranças, reminiscências asso­
ciadas à palavra, têm de ser postos de parte. Vós não olhais para
mim. Tendes certas idéias a meu respeito. Tenho uma certa repu­
tação, etc., e isso vos impede de me verdes. Se puderdes despojar a
mente de todo esse absurdo, podereis então ver — e esse “ ver” é
completamente diferente de ver através da palavra.

132
Podeis agora olhar para os vossos deuses, vossos prazeres favo­
ritos, vossos sentimentos de nobreza, de espiritualidade, etc. — des­
pojados da palavra? Isso é dificílimo, e são muito poucos •os que
se sentem dispostos a olhar assim. Esse ver é total, porque já não
está associado com a palavra e as lembranças, os sentimentos que a
palavra evoca. Destarte, o ver uma coisa totalmente significa que não
existe divisão, que não há reação ao que se está vendo: há, apenas,
ver. E a percepção do fato em si provoca uma série de ações disso­
ciadas da palavra, da memória, das opiniões e idéias. Isso não é uma
façanha intelectual, embora o pareça. Ser intelectual ou ser emotivo
é um tanto estúpido. Mas o ver totalmente o medo liberta a mente
do medo.
Ora, nunca vemos uma coisa totalmente, porque estamos sempre
olhando as coisas com o intelecto. Isso não significa que não se deva
fazer uso do intelecto; pelo contrário, temos de fazer uso do intelecto
em sua capacidade máxima. Mas a função do intelecto é fracionar as
coisas; foi ele educado para observar por partes, não totalmente. Estar
inteiramente cônscio do mundo, da Terra, isso não implica nenhum
senso de nacionalidade, nem tradições, nem. deuses, nem igrejas, nem
repartidção das terras, nem divisão da Terra em mapas coloridos. E
ver a humanidade como constituída de entes humanos não significa
segregá-los em europeus, americanos, russos, chineses ou indianos. Mas
o intelecto recusa-se a ver totalmente a Terra e o homem que a habita,
porque o intelecto foi condicionado através de séculos de educação,
tradição e propaganda. Assim o intelecto com todos os seus hábitos
mecânicos, seus instintos animais, seu impulso para permanecer em
segurança, protegido, jamais pode ver coisa alguma em sua totalidade.
Entretanto, é o intelecto que nos domina; é o intelecto que está
sempre funcionando.
Por favor, não salteis logo à idéia de que deve haver algo além
do intelecto, de que em nós deve habitar um espírito, com o qual
devemos entrar em contato, e outros absurdos de igual jaez. Estou
caminhando passo a passo; assim, tende a bondade de seguir-me, se
o desejardes.
O intelecto, pois, foi condicionado — pelo hábito, pela propa­
ganda, pela educação, por todas as influências diárias, pela insignifi­
cância da vida e por seu próprio e incessante tagarelar. E é com esse
intelecto que olhamos. Esse intelecto, ao escutar o que se diz, ao

133
contemplar uma árvore, um quadro, ao ler um poema ou ouvir um
concerto, é sempre fracionário; sempre reage em termo de “ gosto”
e “ não gosto” , em termos de vantagem ou desvantagem. A função
do intelecto é reagir e, se assim não fosse, seríamos destruídos da noite
para o dia. É, portanto, o intelecto, com todas as suas reações, lem­
branças, impulsos e compulsões — tanto conscientes como incons­
cientes — que olha, vê, escuta e sente. Mas o intelecto, sendo, em
si, parcial, produto do tempo e do espaço, da educação — conforme
já descrevemos — não pode ver totalmente. Está sempre compa­
rando, julgando, avaliando. Mas a função do intelecto é reagir, avaliar;
por conseguinte, para poder ver as coisas totalmente, o intelecto tem
de suspender sua atividade. Espero me esteja explicando claramente.
Deste modo, o percebimento total de uma coisa só se pode veri­
ficar quando o intelecto é altamente receptivo à razão, à dúvida, à
indagação, mas ao mesmo tempo reconhece as limitações do racio­
cinar, do duvidar, do indagar e, portanto, não permite a si mesmo
interferir no que está vendo. Se desejais realmente descobrir algo
que seja mais do que produto do intelecto, este deve em primeiro lugar
alcançar os seus limites, interrogando, argumentando, examinando,
desejando descobrir e conhecer sua existência limitada, parcial; e essa
própria experiência, esse conhecer da limitação, quieta a menta, o
intelecto. Há então a visão total.
Quando se puder ver a totalidade da ordem — com todas as
implicações que já examinamos — ver-se-á também surgir, dessa com­
preensão total, uma ordem de qualidade inteiramente diferente. Por
certo, só poderá apresentar-se a ordem correta com a destruição da
mente que exige ordem para sua própria satisfação e segurança. De­
pois de o intelecto despedaçar tudo o que ele próprio criou, de des­
truir o solo em que cultiva toda espécie de fantasias, ilusões, desejos,
então surgirá, em conseqüência dessa destruição, um amor que criará
sua ordem própria.
P e r g u n t a : Penso que uma atividade escolar mais criadora con­
tribuiria para descondicionar a mente.
K r is h n a m u r t i : É preciso compreender o que entendemos por “ cria­
ção” . Vede, empregamos a palavra “ criador” tão irrefletidamente, tão
facilmente! Um pintor, um poeta, um inventor, um professor na
escola — todos dizem que são criadores. Sabeis quando sois criadores,

134
e pode-se fazer uso de “ atividade criadora” numa escola? O que
acontece é mais ou menos isto: um píntor tem um momento de luci­
dez, no qual vê, experimenta; a seguir trata de representá-lo na tela.
Prestai a isto um pouco de atenção. E quando o está expressando
na tela, começa a perceber que perdeu aquele momento de lucidez;
e, ao tornar-se impossível recuperá-lo, sai a buscá-lo com a ajuda de
bebidas, mulheres, entretenimentos, distrações, esperando que assim
ele voltará. E, depois de abandonar tudo isso, está ele um dia a
passear tranqüilamente, à margem de um regato ou por uma vereda,
quando, de súbito, se lhe apresenta de novo o mesmo sentimento, o
qual ele torna a expressar na tela. E essa expressão se torna coisa
mercadejável, vendável. E o homem se torna ambicioso, deseja pro­
duzir, criar mais.
Ora, o homem ambicioso, o homem que deseja popularidade,
fama — seja na escola, no mundo dos negócios,-seja como inventor
ou artista — esse homem é criador? Imediatamente ele deseja fazer
algo com sua “ capacidade criadora” , imediatamente tem a ambição
de servir-se dela e servir a outros com ela, etc. Nesse momento não
destruiu ele toda a possibilidade de criar? Vede, queremos pôr a
capacidade de criar, ou Deus, ou o que quer que seja, a nosso serviço;
queremos tirar lucros dela; e eu acho que isso não é possível. Podeis
ter uma capacidade, um dom, em certo sentido; mas não o chameis
“ ação criadora” , pensar criador. O pensar nunca é criador, porque pen­
sar é puramente reação. E a criação pode ser reação?
P e r g u n t a : Como se pode ver a totalidade do medo?
K r is h n a m u r t i : Talvez hoje não possamos entrar nesta questão, pois
já é hora de pararmos, mas considerá-la-emos no decurso de nossas
palestras. O importante é compreender o que se entende por “ ver
totalmente” , e não apenas ver totalmente uma coisa, tal como o medo,
o amor, o ódio, isto ou aquilo. Quando desejais ver o medo total­
mente, vosso desejo é de vos livrardes do medo, não é verdade? E
o próprio desejo de “ livrar-se” ou de “ ganhar” impede a visão total.
Como sabeis, tudo isso implica uma grande soma de autoconhecimento
— conhecimento de tudo o que vos diz respeito, de todos os esca­
ninhos de vós mesmo. Quando vedes ao espelho o vosso rosto, o
conheceis muito bem, cada curva, cada linha, cada ângulo; e da mesma
maneira uma pessoa deve conhecer-se profundamente, não apenas seu
“ eu” consciente, mas também todas as camadas ocultas do inconsciente.

135
O que desejo transmitir-vos nesta manhã, se possível, é só uma
coisa — não idéias, nem sentimentos, nem uma certa coisa extraor­
dinária, “ espiritual” , porém o quanto importa ver totalmente. E ver
totalmente significa ver sem julgamento, sem condenação, sem ava­
liação. Significa também que o intelecto não está reagindo àquilo
que vê, porém, tão-só, observando, naquele estado em que não existe
pensador separado da coisa observada. Isso é sumamente difícil e,
portanto, não penseis alcançar esse estado por meio de palavras.
Significa compreender por inteiro a questão da contradição, porque
todos nós nos achamos num estado contraditório.

27 de julho de 1961.

136
SAANEN - III
Do C o n fl it o

omo disse no começo destas palestras, acho


sobremodo importante ser sério. Não estamos falando aqui acerca de
idéias; e, infelizmente, em geral, parece que nos achamos mais em
comunhão com idéias do que com o que ê — o fato, nosso verdadeiro
estado de ser. Investigar o real até o fim e descobrir a essência das
coisas, isso, afinal, é seriedade. Gostamos de discutir, de argumentar,
de estar em contato com idéias, mas parece-me que as idéias não nos
levam a parte alguma, porquanto são muito superficiais, meros símbo­
los; e estar apegado a símbolos leva a uma existência bem superficial.
É árdua tarefa abandonar ou seguir idéias e ao mesmo tempo nos
mantermos em contato com o que é, o estado real de nossa mente,
nosso coração; e, para mim, penetrar aí muito profundamente, comple­
tamente, isso é que constitui seriedade. Por esse processo de “ ir até
o fim” verifica-se o descobrimento da essência e, portanto, a experiên­
cia da totalidade; e têm então os nossos problemas significado todo
diferente.
Esta manhã, pretendo examinar a questão do conflito, conside­
rá-lo de maneira cabal, “ até o fim” , se possível, não apenas como
idéia, mas experimentando por nós mesmos se a mente é capaz de
estar completa e totalmente livre de todos os conflitos. Para descobrir
isso realmente, por si mesma, uma pessoa não pode permanecer no
nível das idéias.
É óbvio que nada se pode fazer em relação ao conflito existente
no mundo exterior; ele é gerado por uns poucos descontrolados, atra­
vés do mundo, e por eles podemos ser destruídos, ou, quiçá, continua-

137
remos a viver. A Rússia, a América, ou qualquer nação que seja,
poderá precipitar-nos na guerra, e a esse respeito não podemos fazer
muita coisa. Mas acho possível fazer-se algo muito radical acerca de
nossos próprios conflitos interiores, e é sobre isso que desejo discorrer.
Por que interiormente, pessoalmente, psicologicamente, nos achamos
em tais conflitos? É necessário isso? E é possível viver uma vida
inteiramente isenta de conflito, sem nos deixarmos ficar a vegetar, a
dormir? Não sei se tendes pensado a esse respeito e se isso é pro­
blema para vós. A meu ver, o conflito destrói toda forma de sensi­
bilidade, deforma todo pensamento; e onde existe conflito, não existe
amor. O conflito é essencialmente ambição, adoração do êxito. E
nós nos achamos num estado de conflito, interiormente, não apenas
no nível superficial, porém muito profundamente em nossa consciên­
cia. Estaremos cônscios disso? E, se estamos, que fazemos a esse
respeito? Tratamos de fugir a esse estado, frequentando igrejas,
ouvindo rádio, buscando distrações, entretenimentos, deleites sexuais,
e tudo o mais, inclusive os deuses que cultuamos? Ou somos capazes
de arrostar o conflito, “ ir até o fim” , e descobrir se a mente pode ficar
de todo livre dos conflitos?
O conflito implica, sem dúvida nenhuma, contradição: con­
tradição no sentimento, no pensamento e na conduta. Existe contra­
dição quando desejamos fazer uma coisa e somos forçados a fazer o
contrário. Para a maioria de nós, quando existe amor, existe tam­
bém ciúme, ódio; e isso é também contradição. No apego, há angús­
tia e dor, portanto contradição, conflito. Parece-me que tudo o que
tocamos produz conflito, e tal é nossa vida, da manhã à noite; e
mesmo quando dormimos, nossos sonhos são os símbolos perturba­
dores de nossa vida cotidiana.
Assim, ao considerarmos o estado total de nossa consciência, veri­
ficamos que nos achamos no conflito da autocontradição — a eterna
luta para sermos bons, nobres, isto e não aquilo. Por que será assim?
Tudo isso é necesário, ou é possível viver sem esse conflito?
Como disse, estamos examinando esta questão, não ideologica­
mente, porém concretamente, isto é, pondo-nos cônscios de nosso
estado de conflito para compreendermos o que ele implica e nos man­
termos em contato real com ele — não através de idéias, de palavras,
porém pelo contato real. É possível isso? Como sabeis, podemos
pôr-nos em contato com o conflito através da idéia; e, com efeito,

138
estamos mais em contato com a idéia do conflito do que com o pró­
prio fato. E a questão é se a mente pode abandonar a palavra e
pôr-se em contato com o sentimento. E pode-se descobrir por que
existe esse conflito, se não estamos cônscios do processo total do pen­
sar — não do processo total do pensar de outrem, porém de nosso
próprio pensar?
Indubitavelmente, há divisão entre o pensador e o pensamento,
com o pensador lutando perenemente por controlar, moldar o pensa­
mento. Sabemos que é isso que está acontecendo, e enquanto existir
tal divisão, terá de haver conflito. Enquanto houver experimentador
e experiência como dois estados diferentes, haverá conflito. E o con­
flito destrói a sensibilidade, destrói a paixão, a intensidade. E sem
paixão, sem intensidade, não podemos “ ir até o fim” de nenhum sen­
timento, nenhum pensamento, nenhuma ação.
Para irmos “ até o fim” e descobrirmos a essência das coisas,
necessitamos de paixão, intensidade, de uma mente sobremaneira sen­
sível — não mente instruída, mente repleta de conhecimentos. Sem
paixão, ninguém pode ser sensível; e a paixão, esse impulso para o
descobrimento, se embota na batalha constante que se trava dentro
em nós. Infelizmente, aceitamos como inevitáveis a luta e o conflito,
e dia a dia nos tornamos mais insensíveis, mais embotados. E esse
estado, em sua forma extrema, leva-nos à insanidade mental; mas,
em geral, buscamos refugio nas igrejas, nas idéias, e em coisas super­
ficiais de toda ordem. Mas, é possível viver sem conflito? Ou esta­
mos tão condicionados pela sociedade, por nossas próprias ambições,
nossa avidez, inveja, a busca de êxito, que aceitamos o conflito como
algo bom, coisa nobre, e de finalidade precisa? Seria vantajoso, penso,
se cada um de nós pudesse averiguar o que realmente sentimos a res­
peito do conflito. Aceitamo-lo ou nos deixamos enredar por ele, sem
sabermos como livar-nos dele, ou estamos satisfeitos com nossos múl­
tiplos meios de fuga?
Isso significa, realmente, investigar toda a questão do autopreen-
chimento e o conflito dos opostos, e ver se tem alguma realidade o
pensador, o experimentador, com seu perene ansiar por mais expe­
riência, mais sensação, horizontes mais amplos.
Só existe pensar, e nenhum pensador; só um estado de experi­
mentar, e nenhum experimentador? No momento em que nasce o
experimentador, graças à memória, tem de haver conflito. Isso se

139
me afigura bem simples, se já pensastes a seu respeito. Essa é a
verdadeira raiz da autocontradição. Para a maioria de nós o pensador
se tornou sumamente importante, e não o pensamento, o experimen­
tador, não o estado de experimentar.
Isso, com efeito, implica na questão de que estivemos tratando
noutro dia, ou seja, o que entendemos por ver. Vemos a vida, uma pes­
soa, uma árvore, através de idéias, opiniões, lembranças? Ou estamos
em comunhão direta com a vida, a pessoa, ou a árvore? Penso que nós
vemos através de idéias, lembranças e juízos e que, por conseguinte,
nunca vemos nada. Assim, vejo-me a mim mesmo tal como “ eu real­
mente sou” , ou vejo-me como “ eu deveria ser” ou como “ eu fui” ?
Por outras palavras, a consciência é divisível? Falamos com muita
facilidade a respeito da mente consciente e da mente inconsciente, e
das muitas camadas entre ambas existentes. Existem essas camadas,
essas divisões, e elas se acham opostas umas às outras. Temos de
percorrer todas essas camadas, uma a uma, para nos livrarmos delas ou
tentarmos compreendê-las — maneira muito cansativa e ineficaz de
resolver um problema — ou é possível varrermos todas as divisões,
todo esse conjunto, e tomarmos conhecimento da consciência total?
Como dizia noutro dia, para nos tornarmos cônscios totalmente de
uma coisa, necessita-se de percepção, vísão, não colorida por idéia
alguma. Ver uma coisa inteiramente, totalmente, não é possível quando
existe motivo, um propósito. Se estamos interessados em alguma alte­
ração, nao estamos vendo o que realmente é. Se estamos interessados
na idéia de que devemos ser diferentes, de que devemos melhorar o
que vemos, torná-lo mais belo, etc., não somos então capazes de ver a
totalidade do que ê. A mente só está então interessada em mudança,
alteração, melhoria, aperfeiçoamento.
Mas posso ver-me assim como sou, como consciência total, sem
ficar enredado nas divisões, nas camadas, nas idéias opostas, existen­
tes na consciência? Não sei se já alguma vez praticastes a meditação
— por ora não discorrerei sobre esta matéria. Mas, se já o fizestes,
deveis ter observado o conflito que se verifica na meditação — a
vontade lutando para controlar o pensamento, e o pensamento a esca­
par-lhe sempre. É uma parte de nossa consciência — esse impulso
para controlar, moldar, satisfazer-se, ter êxito, encontrar segurança;
e ao mesmo tempo a compreensão do absurdo, da inutilidade, da
futilidade de tudo isso. A maioria de nós tenta desenvolver uma ação,

140
uma idéia, uma vontade de resistência, para servir como uma espécie
de muralha em torno de nós mesmos, e dentro dessa muralha espera­
mos permanecer num estado de ausência de conflito.
Ora bem. É possível percebermos a totalidade desse conflito e
permanecermos em contato com essa totalidade? Isso não significa
permanecer em contato com a idéia da totalidade do conflito, ou vos
identificardes com as palavras que estou empregando; mas, sim, signi­
fica estar em contato com o fato da totalidade da existência humana,
com todos os seus conflitos de tristeza, sofrimento, aspiração e luta.
Significa enfrentar o fato, “ viver com ele” .
Como sabeis, “ viver com uma coisa” é extremamente difícil.
“ Viver com aquelas montanhas” que nos cercam, com a beleza das
árvores, com as sombras, a luz matinal, a neve, “ viver com isso” real­
mente, é muito difícil. Todos tomamos conhecimento dessas coisas,
não é verdade? Mas, vendo-as dia por dia, embotam-nos diante delas,
como acontece com os camponeses, e nunca mais tornamos a olhá-las
realmente. Mas “ viver com a coisa” , vê-la cada dia como nova, com
clareza, com sensibilidade, com apreciação, com amor — isso requer
enorme soma de energia. E “ viver com uma coisa feia” sem que essa
coisa feia possa perverter, corroer a mente — isso requer por igual
muita energia. “ Viver tanto com o belo como com o feio” — como
temos de viver, em nossa existência — requer descomunal energia. E
essa energia é rejeitada, destruída, quando nos encontramos num esta­
do de perpétuo conflito.
Assim, pode a mente olhar a totalidade do conflito, “ viver com
ele” , sem aceitá-lo, nem rejeitá-lo, sem permitir que o conflito nos
deforme a mente, porém observando realmente todos os movimentos
internos de nossos próprios desejos, geradores de conflito? Acho que
isso é possível — não apenas possível, mas, quando penetramos mui
profundamente o conflito, quando nossa mente está apenas a observar
e não a resistir, a rejeitar, a escolher, eis o que acontece. Então,
depois de chegardes até aí, não em termos de tempo e espaço, porém
com a experiência real da totalidade do conflito, descobrireis por
vós mesmos que a mente é capaz de viver muito mais intensa, apaixo­
nada e vitalmente; e uma mente assim é essencial para que possa
surgir na existência aquela “ certa coisa imensurável” . A mente em
conflito jamais descobrirá o verdadeiro. Poderá tagarelar incessante­
mente acerca de Deus, da bondade, da espiritualidade e tudo o mais,

141
mas só a mente que compreendeu de maneira completa a natureza do
conflito e, por conseguinte, se acha fora dele, só ela pode receber
aquilo a que se não pode dar nome, aquilo que não pode ser medido.
Talvez possamos agora discutir ou fazer perguntas a respeito de
tudo isso. Fazer uma pergunta correta é muito difícil, e no próprio
ato de fazermos uma pergunta correta encontramos por nós mesmos
a resposta. Quando fazemos a pergunta correta, isso significa que
estamos em contato com o fato e não com idéias e opiniões.
P e r g u n t a : Qual é a natureza da “ criação” ?
K r is h n a m u r t i : Senhor, qual é a natureza do belo?
Qual a natu­
reza do amor? Qual a natureza da mente que não se acha em conflito?
Desejais uma descrição dela? E se a descrição vos satisfaz e a aceitais,
estais então meramente aceitando palavras, não estais, na realidade,
experimentando pessoalmente. Vede, satisfazemo-nos tão facilmente
com explicações, com idéias intelectuais! Mas todo esse processo é
apenas jogar com palavras — e daí resulta a pergunta incorreta. Se­
nhor, não desejais descobrir por vós mesmo se é possível viver no
mundo sem conflito?
P e r g u n t a : Sentimo-nos na necessidade de tomar posição contra
o mundo exterior; e, no próprio ato de nos opormos ao
mundo, há conflito?
K r is h n a m u r t i : Não sei se realmente fazemos uma coisa só porque
gostamos de fazê-la. Sabeis o que quero dizer? Eu gosto de fazer
isto que estou fazendo — não porque me dê uma sensação especial
estar sentado neste palanque, falando a numeroso auditório; não é
por essa razão que o estou fazendo. Faço-o porque gosto de fazê-lo,
e o faria mesmo que aqui só se encontrasse uma única pessoa — ou
ninguém. E se isso cria conflito — que importa? Afinal de contas,
ninguém deseja ser perturbado. Preferimos isolar-nos confortavel­
mente, com nossas idéias, nossos maridos, nossas mulheres, nossos
filhos e nossos deuses. E, um dia surge alguém, uma coisa — a vida,
uma tormenta, um terremoto, a guerra — e abala-nos. Logo reagimos,
tratando de construir muros mais sólidos, opor uma resistência maior,
a fim de não sermos perturbados; e Deus vem a ser nosso derradeiro
refúgio, no qual esperamos ficar para sempre a salvo de perturbações.
Se nos vemos perturbados, e em virtude dessa perturbação surgem
tribulações, que importa isso? Não vos forço a ouvir-me; alí está a

142
porta, aberta. O que aqui estamos tentando é compreender o conflito.
E que mal há em contrapor-nos ao mundo? Afinal de contas, o mundo
a que nos contrapomos é o mundo da respeitabilidade, de inúmeros
deuses falsos, igrejas e idéias; estamos impugnando o ódio, a inveja,
a avidez e outras coisas que tais, que inventamos com o fim de nos
protegermos. Se assim agis e cria-se perturbação, que mal há nisso?

P e r g u n t a : Acho que não há conflito, se vivemos momento por


momento.
K r is h n a m u r t i : Um minuto, senhor.
Estais vendo como nos deixa­
mos levar pelas idéias? Esse “ se vivemos momento por momento”
é uma cláusula condicional, uma idéia — e isso significa que nunca
morremos para coisa alguma, nunca morremos para o prazer, a dor,
nossas ânsias e ambições. Podeis morrer realmente para tudo isso?

P e r g u n t a : Como podemos saber se estamos em presença do


fato real ou da idéia relativa ao fato?
K r is h n a m u r t i : Ora, isso é um problema que tendes de resolver,
não achais? Como ireis averiguar isso? Já alguma vez olhastes para
uma coisa ou tivestes um sentimento desacompanhado de idéia? Supo­
nha-se que tenho um sentimento de cólera; só tomo conhecimento
desse sentimento através da palavra?
Sentimos através de idéias? Se digo que sou hindu — e isso
é uma idéia — vem-me uma certa emoção de nacionalidade; portanto,
é a idéia que cria a emoção, não achais? Porque fui educado para
pensar em mim mesmo como hindu e porque me identifiquei com
determinada porção de terra, determinada tez, isso me proporciona
certas sensações; e essas sensações me bastam. Mas, se eu tivesse
sido educado de diferente maneira, para ser apenas um ente humano,
não identificado com determinada raça ou grupo, meu sentimento seria
inteiramente diverso, não achais? Assim, palavras tais como “ comu­
nista” , “ crente” , “ incréu” , “ cristão” têm para nós significados suges­
tivos, porquanto nos sugerem certos sentimentos, certas sensações.
Para a maioria de nós, as palavras são muito importantes. Estou pro­
curando averiguar se a mente pode libertar-se da palavra; e, quando
libertada, qual o estado da mente que sente? Estou-me fazendo claro?
Vede, senhor, estivemos falando nesta manhã a respeito do con­
flito e desejo verificar, sem jogar com palavras, se a mente é capaz

143
de ficar livre de conflito. Desejo verificar, “ ir até o fim” — o que
significa que devo pôr-me realmente em contato com meu próprio
conflito, e não com idéias. Está certo? Por conseguinte, não devo
deixar-me desviar por idéias, tenho de ir tateando o caminho até à
totalidade da coisa, pôr-me em contato com a dor, o sofrimento, a
frustração, o conflito inteiro, sem procurar escusas ou justificações,
porém penetrando-lhe toda a profundidade. Isso se faz verbalmente,
com palavras? Percebeis o ponto que desejo ressaltar? Foi por isso
que perguntei esta manhã como vemos as coisas — através da cortina
das palavras ou pelo contato direto? É possível sentir, sem a palavra?
Afinal de contas, um homem faminto quer comida; não satisfaz a
descrição da comida. E vós, igualmente, desejais descobrir tudo o
que diz respeito ao conflito, “ ir até o fim” ? Ou satisfaz-vos a descri­
ção verbal do estado da mente que não se acha em conflito? Se
desejais “ ir até o fim” , deveis experimentar o conflito, conhecer tudo
o que com ele se relaciona. Um só conflito — se fordes capaz de
“ viver com ele” , estudá-lo, dormir com ele, sonhar com ele, absor­
vê-lo completamente — vos revelará a totalidade de todos os conflitos.
Mas isso exige paixão, intensidade. Viver e discutir na superfície
não conduz a parte alguma e dissipa o pouco de energia de que dis­
pomos.
P e r g u n t a : Se, para mim mesmo, eu for “ até o fim” do conflito,
devo então aceitar o conflito existente no mundo?
K r is h n a m u r t i : Podeis separar o mundo tão precisa e positivamente
de vós mesmo? O mundo é tão diferente assim de vós? Vede, senho­
res, parece-me, se posso dizê-lo, que há alguma coisa que não com­
preendemos bem. Para mim, o conflito é coisa muito destrutiva, tanto
interior como exteriormente; e desejo verificar se há alguma maneira
de viver sem ser em conflito. Portanto, não digo de mim para mim
que o conflito é inevitável, nem explico para mim mesmo que, enquan­
to eu for ávido, terá de haver conflito. Eu desejo compreendê-lo,
passar por ele, ver se posso despedaçá-lo, ver se é possível viver sem
ele. “ Tenho fome” disso; e não há quantidade de descrição nem de
explicação que me possa satisfazer essa fome — o que significa que
tenho de compreender o inteiro processo da consciência, que é o
“ eu” , e quando o compreendo, compreendo o mundo. As duas coisas
não são separadas. Meu ódio é o ódio do mundo; meu ciúme, minha
avidez, minha ânsia de sucesso — tudo isso pertence ao mundo.

144
Pode, pois, minha mente despedaçar tudo isso? Se digo: “ Ensinai-me
a maneira de despedaçá-lo” , quero então apenas servir-me de um
método para dominar o conflito; e isso não é compreensão do con­
flito.
Assim, vejo que preciso estar desperto para o conflito,
estar cônscio dele, observar cada um de seus movimentos, em minhas
ambições, minha avidez, minhas ânsias, etc. E se os observo, é pos­
sível então que descubra; mas não há garantia. Creio que sei perfei­
tamente o que é essencial, para que eu possa descobrir — isto é,
paixão, intensidade, desprezo das palavras e explicações, para que a
mente se torne muito penetrante, vigilante, atenta para toda forma
de conflito. Aí está, sem dúvida, a única maneira de “ ir até o fim”
do conflito.

30 de julho de 1961.

145
SAANEN IV
A I nvestigação R ea l

i u M nossa última reunião dissemos que seriedade


é aquele impulso, aquela intenção de “ ir até o fim das coisas” , para
descobrir-lhes a essência; e se não existe essa energia impulsora que
nos estimula a descobrir o que é verdadeiro, acho que estas palestras
terão muito pouca significação. É pena termos de falar em tão linda
manhã, mas desejo examinar a questão da humildade e do aprender.
Por humildade, não entendo naturalmente aquela pretensiosa vai­
dade que se cobre com o nome de “ humildade” . A humildade não
é virtude; porque tudo o que cultivamos, extraímos penosamente de
nós mesmos, disciplinamos, controlamos, é coisa falsa. A humildade
não é coisa que se semeia para colher; ela tem de surgir na existência.
E não é a subjugação daquele desejo que busca seu preenchimento no
êxito. Não é tampouco a humildade religiosa do monge, do santo,
do sacerdote, nem aquela que se produz pela austeridade cultivada.
É coisa inteiramente diferente. Para a experimentarmos realmente,
penso que temos de “ ir até o fim” , de modo que todos os recantos
da mente, todos os recessos obscuros, secretos, ocultos, do coração e
da mente, fiquem abertos a essa humildade, dela se embebam. E se
desejamos desvelar a verdadeira essência da humildade, importa con­
siderar o que é aprender.
Aprendemos, de fato, alguma vez? Não é mecânica a nossa
instrução? Aprender, para nós, é um processo de adição, não achais?
Esse processo de adição constitui um centro, o “ eu” , e este centro
experimenta; e a experiência se torna memória -— é memória; e a
memória dá colorido a -todas as experiências ulteriores. Ora, apren­

146
der é processo de acumulação, como o é o conhecimento? E se há
processo de acumulação de experiência, conhecimento, ser e “ vir a
ser” , existe então humildade? Se a mente está repleta de conheci­
mentos, de experiência, de memória, ela de modo nenhum pode rece­
ber o novo. Não é, portanto, necessário o total esvaziamento da
mente, para que possa surgir o atemporal? E não implica isso total
e completo sentimento de humildade, um estado em que a mente não
se esteja “ tornando alguma coisa” , não esteja acumulando, já não esteja
buscando ou aprendendo?
Eu quisera saber se temos aprendido alguma coisa. Nós temos
acumulado; temos tido numerosas experiências, numerosos acidentes
ocorreram, deixando-nos suas marcas e ficando armazenados como lem­
branças. Posso aprender uma nova língua, aprender uma nova maneira
de explorar os espaços; mas tudo isso são processos acumulativos,
mecânicos, a que chamamos “ aprender” . Ora, esse processo mecânico
de aprender deixa um centro, não é verdade? E esse centro acumu­
lador de conhecimentos, experiências, resiste, deseja ser livre, afirma,
aceita e rejeita, está sempre empenhado numa batalha, sempre em
conflito. E é esse centro que está sempre a acumular e a esvaziar-se;
há o movimento positivo de aquisição e o movimento negativo de
rejeição. A esse processo chamamos “ aprender” .
Se me perdoais dizê-lo, estou bem certo de que desejais aprender
algo deste que vos fala. Mas nada podeis aprender de mim, por­
quanto só podeis aprender coisas mecânicas, como idéias. Mas nós
não estamos tratando de idéias; não estamos interessados na descrição
de qualquer outra coisa; o que nos interessa é o fato, “ o que é” .
E compreender “ o que é” não constitui processo mecânico, nem pro­
cesso de olhar as coisas com o fim de acumular, nem processo de acres­
centar ou tirar algo ao centro. É partindo desse centro, acumulado
através de séculos, condicionado pela sociedade, pela religião, pelas
experiências, pela educação, que estamos sempre procurando fazer
modificações. Funcionando nesse centro, procuramos alterar nossas
qualidades, modificar nossa maneira de pensar, implantar novo sis­
tema de idéias e abandonar o velho. Esse centro, pois, está sempre
procurando reformar-se ou destruir-se, a fim de obter outra coisa; e
é isso o que estamos fazendo continuamente.
Tende a bondade de prestar atenção: Esse centro é o que cha­
mamos “ ego” , “ eu” — ou qualquer nome que preferirdes. O nome

147
é sem importância, mas o fato é importante, pois é “ o que é” , E
no processo de modificação há violência. Toda alteração implica vio­
lência, e pela violência nada de novo pode surgir. Quando uma pes­
soa diz: “ Preciso controlar-me, preciso dominar-me” (o que significa
ajustar-se a um padrão), isso implica violência. Os santos, os líderes,
os instrutores, os profetas — todos falam a respeito de mudança e
controle. E, evidentemente, o processo pelo qual o centro se disci­
plina para ajustar-se a um padrão, implica violência. E quando fala­
mos de “ não violência” , isso significa a mesma coisa.
Mudança, portanto, implica violência, dentro da esfera do tempo
— “ eu sou isto e vou obrigar-me a ser aquilo” . Q “ aquilo” está dis­
tanciado de nós: é o ideal, o exemplo, a norma. Nesse processo de
tentar transformar a violência em paz, está, inteiramente, o conflito
dos opostos. Assim, quando dizemos: “ Preciso aprender tudo o que
me diz respeito” , estamos ainda enredados no processo de acumulação,
o qual só serve para fortalecer o centro. Pode-se, pois, ver, não ape­
nas verbalmente, intelectualmente, mas experimentar realmente o fato
de que onde existe um centro a exigir mudança (e isso implica vio­
lência) nunca haverá paz.
Para mim, portanto, não há aprender; só há ver. Ver não pro­
duz acumulação; não é processo de recolher ou rejeitar. Ver “ o que
é” tem efeito destruidor; e da destruição surge a paz, e não a vio­
lência. Existe violência, revolução ou modificação, no processo de
acumulação, da manutenção do centro. Mas, quando percebemos esse
processo total e completamente, com todo o nosso ser, então o fato
— o que é — é radicalmente destrutivo; e destruição é criação.
A humildade, por conseguinte, é o estado em que a mente aban­
donou de todo o processo de acumulação e o seu oposto, e está côns­
cia, de momento a momento, do que é. Portanto, ela não tem opinião
nem juízo formado; e essa mente sabe o que é liberdade. A mente
senhoreada pela violência não tem liberdade; e a mente que busca
a liberdade nunca será livre, porque, para ela, liberdade significa mais
acumulação.
A humildade implica destruição total, não das coisas externas,
sociais, mas a dissolução completa do centro, do “ eu” , de nossas
idéias, experiências, conhecimentos, tradições — com o que a mente
se esvazia de tudo o que já conhece. Por conseguinte, essa mente já
não pensa em termos de modificação. Isso é realmente uma coisa

148
maravilhosa, quando se é capaz de senti-la. E isso faz parte da
meditação.
Assim, em primeiro lugar, temos de compreender perfeitamente
o processo de mudança; porque é isso o que em geral desejamos —
mudar. O mundo se está transformando muito rapidamente, nas
coisas exteriores. Pretendemos ir à lua, inventar foguetes, etc.; os
valores se estão alterando; a “ Coca-Cola” conquistou todo o mundo;
as velhas civilizações estão desabando. A rapidez da mudança é maior
do que o fato da mudança. Todos os velhos deuses, tradições, salva­
dores, Mestres, estão-se indo, ou já se foram. Uns poucos ainda se
aferram a eles, erguendo muros defensivos ao redor de si mesmos —
mas tudo se vai. E a mente não se interessa pela destruição, não se
interessa pela criação; só lhe interessa defender-se, buscar sempre
outros abrigos, um novo refúgio.
Assim, se aprofundardes seriamente a questão da humildade, não
deixareis de pôr em dúvida todo esse processo de aprender — o apren­
der no nível verbal, que nos veda a percepção das coisas como são.
A mente que já não se preocupa com mudança nada teme e, portanto,
é livre. E, a meu ver, a mente que compreendeu essa coisa — essa
mente, decerto, é essencial; porque com essa compreensão a mente
já não luta para ajustar-se a outro padrão, já não se abre a novas
experiências, nada mais pede nem exige — porque é livre. E, então,
talvez possa surgir aquilo que não tem nome. A humildade, portanto,
é essencial, mas não a humildade artificial, cultivada. Devemos estar
desprovidos de capacidades, de dons; devemos, interiormente, ser o
mesmo que nada. E, parece-me, se se percebe isso, sem se tentar
aprender como ser “ o mesmo que nada” — pois isso é muito estulto
e absurdo — parece-me que, então, ver é experimentar; e, assim, tal­
vez possa manifestar-se “ a outra coisa” .
Podemos palestrar a esse respeito — unicamente a respeito dessa
coisa, e não sobre como iremos transformar o mundo ou qual será o
próximo ato de certo político poderoso?

Pergunta : A compreensão é uma capacidade?


K r is h n a m u r t i : Compreensão é capacidade, algo que se precisa cul­
tivar, que se precisa nutrir pacientemente? Capacidade implica pro­
cesso de tempo; e compreende-se alguma coisa através do tempo, atra­
vés de uma longa série de dias? Ou compreendo a coisa imediata-

149
mente, vejo-a imediatamente? Compreendo que ser nacionalista, iden­
tificar-se com determinado grupo, seita ou crença, é evidente estupidez?
Percebo perfeitamente o que significa pertencer a uma dada coisa,
comprometer-se com uma certa coisa? Como sabeis, todos gostamos
de pertencer a um certo grupo, sociedade, raça ou família, nome;
desejamos ligar-nos a um certo movimento — comunista, socialista,
religioso ou moral. E por que acontece isso? Várias causas estão aí
implicadas, não? Gostamos de atuar “ cooperativamente” , em con­
junto. Isso poderá estar certo, em determinado nível; mas estar inte­
riormente vinculado a uma dada coisa, isso, sem dúvida, impede a
compreensão, a busca do esclarecimento. A percepção disso exige
tempo? Exige porque sou indolente, porque assumi compromissos e
temo que, se fugir aos meus compromissos, isso causará perturbações.
Por isso, digo: “ Precisarei de tempo para refletir sobre o assunto” .
A mente preguiçosa impede a si própria de ver de modo direto, claro,
real. Ora, para eu perceber que sou estúpido não se requer tempo.
Posso vê-lo diretamente; sobre isso ninguém precisa dizer-me nada.
Mas, quando desejo modificar esse estado, quando desejo tornar-me
inteligente, quando desejo ser mais isto e menos aquilo, isso natural­
mente requer tempo, implica violência. Mas o ver que sou estúpido,
vê-lo e deixar-me “ ficar aí” , inteiramente, disso não só resulta com­
preensão, mas também esse próprio fato de ver destrói automatica­
mente todas as coisas que construí em mim e ao redor de mim. E
é isso o que temo.
Assim, ver que sou estúpido, limitado, de mentalidade inferior,
vulgar, medíocre, e “ viver com isso” sem tentar modificá-lo, sem pro­
curar aperfeiçoá-lo e dar-lhe novo nome, novo título, etc.; observar-
-Ihe todos os movimentos e pretensões, perceber a estupidez de tentar
tornar-me inteligente — nada disso requer tempo nem capacidade.
O que requer é o sério intento de “ ir até o fim” .
Vós o sabeis, senhores, quando há perigo agimos imediatamente,
sentimos imediatamente. Todos os nossos instintos e sentidos estão
totalmente vigilantes, e não falamos de tempo.

P e r g u n t a : Parece que, ao vermos a estupidez do'desejo, ficamos


livres dele; mas, depois, ele reaparece?
K r is h n a m u r t i : E u nunca disse que a mente libertada não tem dese­
jos. Afinal, que mal há no desejo? O problema só se apresenta

150
quando ele cria conflito, quando desejo possuir aquele belo carro que
não posso comprar. Mas admirar o carro, a beleza de suas linhas, a
cor, a velocidade que pode desenvolver, que mal há nisso? O desejo
de olhá-lo, admirá-lo, é coisa má? O desejo só se torna importuno,
imperioso, quando quero possuir a coisa. Vemos que ser escravo de
alguma coisa, do fumo, da bebida, de determinada maneira de pensar,
implica desejo e que o esforço que fazemos para nos libertarmos desse
molde implica também desejo, e por essa razão dizemos ser necessário
alcançarmos um estado isento de desejo. Vede como moldamos a vida
com nossa pequenez! E por isso nossa vida se torna coisa medíocre,
cheia de estranhos temores e recantos obscuros. Mas, se compreen­
dermos tudo isso de que estivemos falando, percebendo-o realmente,
penso que o desejo terá então significado completamente diferente.
P ergunta : É possível distinguir entre “ estar identificado com
o que vemos” e “ viver com o que vemos” ?
K r is h n a m u r t i : Por que desejamos identificar-nos com alguma coisa?
A fim de nos tornarmos mais importantes, mais nobres, mais interes­
santes, não é exato? Queremos dar significação à vida, porque a vida
nenhuma significação tem para nós. Por que deve uma pessoa identi­
ficar-se com a família, o amigo, uma idéia, uma nação? Por que não
abandonar completamente a identificação e viver a todas as horas com
“ o que é” — sempre cambiante, nunca estático?
Pergunta : Se não nos identificamos com coisas, então, supo­
nho eu, podemos viver completamente alheios a tudo.
K r is h n a m u r t i : O fato é que vivemos dentro de nosso estreito cír­
culo, com nossos mesquinhos ciúmes, nossas vaidades, nossas práticas
estúpidas. Tal é nossa vida; e temos de enfrentá-la, em vez de nos
identificarmos com os deuses, as montanhas, etc. É muito mais difícil,
requer mais intensidade e inteligência viver com a coisa que ê, sem
tentar modificá-la, do que viver com Jesus — que é mera fuga.
P ergunta : No descobrimento encontra-se alegria e prazer; e
descobrir não é aprender?
K rishnamurti: Quando descobrimos o significado de nossa aflição,
achamos alegria e prazer em “ viver com isso” ? Podemos descobrir
as belezas da Terra e com elas nos deleitarmos, ou descobrir as ações
estúpidas dos políticos, e repudiá-las; mas descobrir o inteiro signi-

m
ficado do sofrimento é coisa muito diferente, não? Significa desco­
brir minha própria aflição e a aflição do mundo. Estudar o livro do
sofrimento para aprender algo a seu respeito, significa que queremos
aprender o que se deve fazer e o que não se deve fazer, a fim de nos
protegermos. Conversemos sobre esta questão; eu não sou autoridade.
Não creio que se possa aprender alguma coisa a respeito do sofrimento.
Porque então o aprender se torna mecânico. Mas a mente que per­
cebe o perigo da acumulação mecânica desiste de aprender; ela observa,
vê, percebe — coisa completamente diferente de aprender. “ Ficar”
com a aflição, “ viver com ela” , sem aceitar nem justificar; conhecer
seu movimento como coisa viva — isso requer grande soma de ener­
gia e de penetração.
P ergunta : Parece-me que uma das primeiras coisas necessárias
é saber de que é constituída a mente.
K rishnamurti: De que se constitui a mente? Cérebro, sentidos,
capacidade, julgamento, dúvida, superstição, medo; a mente que divide
a si mesma, que nega, que anseia, que tem aspirações, que busca segu­
rança, permanência; essa consciência total que herdamos e na qual se
implantou o presente, com sua educação, suas experiências, etc. —
tudo isso, sem dúvida, é a mente. É este o centro que percebe, que
evolve, se transforma, luta, sofre; o pensador e o pensamento — e
o pensador sempre a esforçar-se por controlar o pensamento.
E há possibilidade de a mente esvaziar-se de tudo isso? Não se
pode responder “ sim” nem “ não” . O que se pode fazer é só descobrir
se é possível, ou não, ver as fronteiras da consciência e suas limitações,
ver se há necessidade de fronteiras e se podemos ultrapassá-las.
A mente séria conhece suas próprias limitações, está cônscia de
sua própria mediocridade, sua estupidez, irritações, ciúmes, ambições;
e, porque compreendeu essas coisas, permanece tranqüila, sem buscar,
sem tatear no escuro, em busca de mais alguma coisa. Só essa mente
estabeleceu a ordem em seu interior e, assim, se acha tranqüila; e só
ela, talvez, pode receber algo que não é produto mental.

Pergunta : O autoconhecimento exige certo esforço?


K rishnamurti: É certo isso? Senhores, já não estais fazendo esfor­
ços? Estamos sempre forcejando para sermos algo, adquirirmos algo,
realizarmos algo. O ver requer esforço? Interessa-me olhar aquela
montanha, sua verdejante encosta — olhá-la simplesmente. Isso só
exige esforço quando não me interessa, quando me mandam olhar. E,
se não me interessa olhar nem ninguém me manda olhar, então —
por que me preocupar com isso?
P ergunta : Como obter a energia necessária a todas essas coisas?
K rishnamurti: E u disse que “ viver com o que é” requer energia;
pergunta-se: “ Como obter essa energia?” Procurai investigar isso.
Adquire-se energia quando não há conflito, quando não há contradição
na mente, nem luta, nem violência, quando não nos vemos arrastados
em diferentes sentidos por desejos inúmeros. Essa energia se dissipa
quando adoramos o bom êxito, quando desejamos ser algo, ser famo­
sos, preencher-nos — sabeis quantas coisas fazemos e que sempre pro­
duzem contradições. Dissipamos nossa energia ao visitar o psiquiatra,
as igrejas, buscando refúgio por inúmeras maneiras. Se não existe
contradição, se não há medo aos deuses, à extrema realidade, ou a
nosso vizinho, ou ao que dizem de nós, temos então energia, não em
dose modesta, porém em abundância. E necessitamos dessa energia,
dessa paixão, para seguirmos “ até o fim” cada um de nossos pensa­
mentos e sentimentos, cada pressentimento e sugestão íntima.1

1 de agosto de 1961.

1.53
SAANEN V
O que É M e d it a r

E sta manhã desejo apreciar convosco um pro­


blema bastante complexo; mas, antes disso, e como já disse anterior­
mente, acho necessária uma certa dose de seriedade. Não a seriedade
de uma “ cara solene” , ou a da excentricidade, mas aquele intento impe­
tuoso de “ ir até o fim” , cedendo quando necessário, mas nunca se
detendo. Desejo tratar esta manhã de um assunto que exige toda a
vossa seriedade e atenção; o Oriente chama-o meditação, e não estou
nada certo de o Ocidente entender o que esta palavra significa. Não
estamos representando o Ocidente nem o Oriente; mas vamos tentar
investigar o que é meditar, porque isso para mim é importantíssimo.
Abarca a totalidade da vida, e não apenas um fragmento dela. Infeliz-
mente, os mais de nós cultivamos o fragmento e nele nos tornamos
altamente eficientes. Empreender o trabalho de desvendar os recessos
obscuros da mente; explorar, sem visar a nenhum alvo ou fim; alcan­
çar a total compreensão da mente integral e, quiçá, passar além •—
isso para mim é meditação.
Desejo proceder de maneira cautelosa, porquanto cada passo
revela alguma coisa. E espero que nós — todos nós — não nos deixe­
mos ficar no mero nível verbal ou no nível da análise intelectual,
nem nos limitemos — emocional e sentimentalmente — a reunir uns
poucos fragmentos de nosso agrado, mas, sim, com um certo grau de
seriedade, caminhemos até o fim. E talvez se torne necessário pros­
seguirmos nisso, da próxima vez.
Todos buscamos alguma coisa, não só no nível físico, mas tam­
bém no nível intelectual e nos níveis mais profundos de nossa cons­

154
ciência. Estamos sempre em busca da felicidade, do conforto, da
segurança, da prosperidade, e de certos dogmas e crenças em que a
mente possa instalar-se confortavelmente. Se observardes vossa pró­
pria mente, vosso intelecto, vereis que está sempre buscando e nunca
satisfeito, sempre esperando encontrar, de alguma maneira, satisfação
permanente, eterna. Buscamos o bem-estar físico; e, infelizmente, em
geral nos contentamos com os confortos físicos, um pouco de prospe­
ridade, um pouco de saber, relações medíocres, etc. Se nos achamos
insatisfeitos — e talvez alguns de nós, aqui, o estejamos — com as
coisas físicas, tratamos de buscar confortos e garantias de ordem psico­
lógica, interior, ou desejamos mais amplos horizontes intelectuais,
mais saber. Esse buscar, esse indagar é explorado pelas religiões de
todo o mundo. Os cristãos, os hinduístas, os budistas oferecem-nos
os seus deuses, suas crenças, suas garantias, que a mente aceita e,
por elas se tornando condicionadas, não mais busca. Dessarte é cana­
lizado e explorado o nosso buscar. Se nos sentimos completamente
desditosos, insatisfeitos com o mundo e com nós mesmos, com nossa
falta de aptidões, procuramos então identificar-nos com algo maior,
mais vasto. E quando encontramos algo que por ora nos satisfaz,
logo nos vemos forçados a abandoná-lo e a empenhar-nos em nova
busca.
Esse “ processo” de descontentamento, de nos apegarmos a uma
dada coisa até que um abalo nos faz soltar dela, cria — não é
verdade? — o hábito de seguir, o hábito de estabelecermos uma auto­
ridade para nós mesmos — a autoridade das igrejas e dos vários
sacerdotes, santos, sanções, etc., existentes no mundo inteiro.
Ora, a mente que está tolhida pela autoridade — seja a autori­
dade de uma religião, a autoridade da capacidade, da experiência ou
do saber — nunca será livre para descobrir. Para descobrir, a mente
tem de ser livre. E um de nossos imensos problemas é libertarmos
a mente da autoridade. Não me refiro à autoridade do policial e da
lei. Quem vai pela rua na contramão pode provocar acidentes, e quem
infringe a lei está sujeito a ir para a cadeia. O furtar-se à autoridade,
neste sentido — sonegar impostos, etc. — é proceder de maneira muito
tola e absurda. Refiro-me à autoridade que nós mesmos criamos ou
que nos é imposta pela sociedade, pela religião, pelos livros, etc., pelo
nosso desejo de achar, de buscar.

155
Parece-me, pois, que uma das coisas essenciais, uma necessidade
absoluta, é a mente libertar-se completamente do “ senso” da autori­
dade. Isso é dificílimo, porquanto cada palavra, cada experiência,
cada imagem, cada símbolo, deixa sua marca, i.e., conhecimento, que
se torna nossa autoridade. Podeis furtar-vos à autoridade externa,
mas cada um de nós tem sua autoridade própria, secreta, a autoridade
que diz “ sei” . A autoridade, o seguimento de um padrão, gera ação
fragmentária. Pode uma pessoa ser muito proficiente na música ou
noutra coisa qualquer, mas, de qualquer maneira, sua ação é sempre
fragmentária. E estamos falando de uma ação total, na qual está
incluído o fragmento. Essa ação total abrange o todo da vida, o
todo físico-emocional-intelectual. É a ação que se verifica quando
penetramos profundamente no inconsciente e descobrimos todos os
arcanos de nossa mente, e quando a mente de lá emerge de todo puri­
ficada. Essa ação total é que é meditação.
Exige-se, pois, grande soma de estrénuo trabalho, de penetração,
para se descobrirem todos os caminhos laterais, todos os becos de
autoridade (szc) que para nós mesmos estabelecemos, através dos
séculos, e pelos quais estamos consíantemente vagueando. Esta é uma
das coisas mais difíceis: ser livre — esquecer tudo o que interiormente
se sabe, proveniente de ontem; morrer para cada experiência que tive­
mos, agradável ou dolorosa. Pois é só então que a mente está livre
para agir de maneira total.
Para tanto, requer-se percebimento sem escolha, um percebimento
passivo em que se revelam todas as ânsias secretas, todos os secretos
impulsos e desejos; em que a mente não escolhe, porém observa ape­
nas. Quando escolhemos, nesse mesmo momento estabeleceu-se a
autoridade e, por conseguinte, a mente já não é livre. Estar cônscio,
interiormente, de cada movimento de pensamento, do significado de
cada palavra, cada desejo; e não rejeitar ou aceitar, porém prosseguir,
observando sem escolha — isso é que liberta a mente da autoridade.
Só quando a mente está livre pode descobrir o que é verdadeiro e o
que é falso, e não antes; essa liberdade não se encontra no fim,
porém no começo. A meditação, por conseguinte, não é processo de
controlar, disciplinar, moldar a mente pelo desejo, pelo saber.
Espero estejais seguindo o que estou dizendo. Provavelmente
algumas coisas serão novas para vós, e as rejeitareis. Aceitar ou rejei­
tar indica incapacidade de “ seguir até o fim” o que outro está dizendo;

U6
e, uma vez que vos destes o incômodo de uma longa viagem até aqui,
acho que seria absurdo dizerdes, simplesmente: “ Ele tem razão” ou
“ Ele não tem razão” . Assim, tende a bondade de escutar para desco­
brir, não o que pensa a vossa mente, mas se o que este orador está
dizendo é falso ou verdadeiro; para perceber o falso na verdade ou
a verdade como verdade, como fato. Isso é impossível, se lestes algum
livro sobre meditação ou sobre psicologia e estais agora comparando
o que se está dizendo com o que sabeis. Pois nesse caso estais seguin­
do por uma linha lateral, não estais escutando. Mas, se escutardes,
não com esforço, porém com o desejo de descobrir, encontrareis então
uma certa alegria no escutar. O próprio ato de escutar o que é verda­
deiro constitui a chave. Nada tendes de fazer senão escutar realmente;
mas isso não significa identificar. Na meditação, não há identificação,
não há imaginação.
Quando a mente começar a compreender o processo de seu pró­
prio pensar, ver-se-á de que maneira o pensamento se torna autori­
dade; como o pensamento, baseando-se na memória, no conhecimento,
na experiência, e o pensador, guiando o pensamento, se tornam auto­
ridade. A mente, portanto, deve tornar-se cônsria de seus próprios
pensamentos, dos “ motivos” dos quais eles nasceram, de sua causa.
E, nesse profundo investigar, vereis que a autoridade do pensamento
deixa de existir. Temos, pois, de lançar os alicerces adequados, para
erguermos o edifício da meditação. Evidentemente, qualquer forma
de inveja — que é essencialmente comparação: vós tendes algo belo
e eu não tenho; sois inteligente e eu não sou; tendes um certo dom
e eu não o tenho — deve desaparecer de todo. A mente invejosa
— invejosa de posses, invejosa de capacidades — não pode ir muito
longe, e não o pode, tampouco, a mente ambiciosa. Em geral somos
ambiciosos; e a mente ambiciosa está sempre desejando sucesso, preen­
chimento, não só no campo mundano, mas ainda no espiritual. A
mente amadurecida não conhece sucesso nem insucesso.
Deve, pois, a mente ser livre, de todo — livre não apenas de
maneira casual, fragmentária, porém totalmente livre. E isso tam­
bém é dificílimo. Significa purificar a mente que há séculos vem
sendo educada para competir, para desejar o sucesso.
Deveis saber que o libertar-se da inveja não é questão de tempo.
Não é questão de nos libertarmos gradualmente da inveja, ou de
criarmos o oposto e com ele nos identificarmos, ou de tentarmos uma

157
integração com o oposto, porquanto tudo isso implica um processo
gradativo. Se sois ambicioso e estabeleceis o ideal da não ambição,
então, para percorrerdes a distância e realizardes o ideal, necessitais
de tempo. A meu ver, esse processo denota absoluta falta de madu­
reza. Quando vemos uma coisa claramente, ela cai por si. Perceber
totalmente a inveja com tudo o que ela implica — e isso por certo
não é muito difícil — não exige tempo. Se a olhardes, se estiverdes
atento, d a se vos revelará rapidamente; e percebê-la é desembara­
çar-se dela.
É óbvio que a mente invejosa, ambiciosa, egocêntrica, não pode
ver a plenitude da beleza; não pode conhecer o amor. Um homem
pode ser casado, ter filhos, possuir casas e perpetuar o seu nome; mas
a mente que é invejosa e ambiciosa não pode conhecer o amor. Ela
conhece sentimento, emoção, apego; mas apego não é amor.
E se alcançardes aquele ponto, não apenas intelectual ou verbal­
mente, encontrareis a chama da paixão. A paixão é necessária. E ;
com essa chama da paixão, podem-se ver as montanhas e as longas
encostas cobertas de verdes árvores, pode-se ver a miséria existente
em toda a parte, as horríveis divisões que o homem criou, na sua
ânsia de segurança; pode-se, então, sentir intensamente, não egocen-
tricamente. Esta, portanto, é a base; e, lançada a base, a mente está
livre; pode prosseguir — e talvez não haja mais prosseguir. Assim,
a menos que essa totalidade se instale por inteiro na mente, todo
buscar, todo meditar, todo seguir da palavra — não importa quem a
tenha pronunciado — só conduz à ilusão, a visões falsas. A mente
condicionada no cristianismo terá por certo visões de Jesus, mas estará
vivendo em ilusões baseadas na autoridade; e essa mente, portanto,
será muito limitada e estreita.
Quando se chegou até esse ponto, interiormente — o que inte­
ressa então é o momento imediato, não o depois-de-amanhã, não o
mês vindouro. As palavras que estou empregando não exprimem a
realidade; as palavras não são a coisa. E se estais meramente acompa­
nhando o orador, não estais acompanhando a vós mesmo, interior­
mente. A meditação, pois, é essencial. Meditação não significa sen­
tar-se de pernas cruzadas, respirando de certa maneira, repetindo frases
ou observando determinada fórmula; tudo isso são artifícios, embora
se possam obter os resultados que o sistema promete. Mas o que
se obtiver será um fragmento e, portanto, coisa inútil. É possível,
decerto, ver num relance todo o proceso da disciplina, do seguír, do
ajustamento, e abandoná-lo imediatamente, já que foí compreendido
completamente. Mas a compreensão imediata é impedida quando a
mente é preguiçosa. Em geral, nós somos indolentes; quer dizer,
preferimos métodos, sistemas que nos indiquem o que devemos fazer.
Há certa forma de indolência que é muito boa: a que consiste
numa certa passividade. Ser passivo é bom, porque então se vêem
as coisas com clareza, distintamente. Mas ser física ou mentalmente
preguiçoso embota o corpo e o espírito, incapacitando-nos de olhar,
de ver.
Assim, pois, lançada a base — e isso significa, realmente, rejeitar
a sociedade e sua moral — pode-se ver que a virtude é uma coisa
maravilhosa, uma coisa bela, uma coisa pura. Não podemos cultivá-la,
assim como não se pode cultivar a humildade. Só o homem vaidoso
cultiva a humildade; e fazer esforços para se tomar humilde é a maior
estupidez. Mas um homem pode atingir a humildade facilmente,
quando a mente começa a compreender a si mesma, começa a com­
preender todos os recantos obscuros e inexplorados da consciência.
Pelo autoconhecimento atinge-se a humildade, e essa humildade é o
próprio solo, os próprios olhos, o próprio alento que vos permitem
ver, dizer, comunicar. Não podeis conhecer a vós mesmo, se conde­
nais, se julgais e avaliais; mas observar, ver “ o que é” , sem distorção,
observar como se observa uma flor, sem a fazer em pedaços, isso é
autoconhecimento. Sem o autoconhecimento, todo pensamento con­
duz à perversão e à ilusão. Assim, com o autoconhecimento come­
çamos a lançar a base da verdadeira virtude, a qual não pede ser
reconhecida pela sociedade ou por outra pessoa. No momento em
que a sociedade ou outra pessoa a reconhece, isso significa que estais
no padrão delas e, por conseguinte, vossa virtude é a virtude da respei­
tabilidade, e, portanto, já não é virtude.
O autoconhecimento, pois, é o começo da meditação. Há muito
ainda que dizer acerca da meditação; isto aqui é apenas uma introdu­
ção, por assim dizer, apenas o primeiro capítulo. E o livro não tem
fim; não há terminar, atingir. E a maravilha de tudo isso, a beleza
de tudo isso é que quando a mente — na qual se inclui o intelecto,
tudo — viu e se esvaziou de todos os descobrimentos que fez, quando
está inteiramente livre do conhecido, sem “ motivo” de esnécie alguma,
poderá, então, talvez, surgir na existência o incognoscíveí.

159
P ergunta : Não compreendo bem a asserção de que a liberdade
deve estar no começo e não no fim, porque no começo está
o passado inteiro, e não liberdade.
K r is h n a m u r t i : Vede, senhor, esta pergunta implica a questão do
tempo. Sereis livre no fim? Sereis livre daqui a muitos dias, muitos
séculos? Por favor, não se trata aqui de argumentar convosco ou de
aceitardes o que estou dizendo; nós temos de ver as coisas. Estou
condicionado como hinduísta, como cristão, como comunista ou seja
o que for; sou moldado pela sociedade, pelos acontecimentos, por
influências inumeráveis. O descondicionamento é questão de tempo?
Tende a bondade de refletir sobre isso. Se dizeis que é questão de
tempo, isso significa que, no intervalo, estais aumentando cada vez
mais o condicionamento, não é verdade?
Vede bem, senhor: Toda causa é também um efeito, não? Causa
e efeito não são duas coisas separadas e estáticas, são? O que foi
efeito se torna causa, por sua vez; é uma cadeia sujeita a contínua
modificação e influências, que evolui, que diminui ou aumenta, atra­
vés do tempo, etc. Estais condicionado como inglês, ou judeu, ou
suíço, ou seja o que for — e achais que se precisa de tempo para ver
quanto isso é absurdo? E, percebido o absurdo, precisa-se de tempo
para o abandonar? O fato é que não desejamos ver a natureza perni­
ciosa do condicionamento, porque gostamos dele, fomos criados nele.
A bandeira significa algo para nós, porque nos beneficia. Se dizeis:
“ Já não sou suíço, ou isto ou aquilo” , exponde-vos a perder o emprego,
a ser expulso da sociedade, a não poder casar respeitavelmente vosso
filho ou filha. Por isso, nos apegamos a tudo isso e ficamos impedidos
de ver a coisa imediatamente e de a abandonar.
Vede, senhor, se trabalhei a vida toda para alcançar um alvo,
tornar-me famoso, ter êxito, achais que estou disposto a abandonar
isso? Achais que estou disposto a abandonar o proveito que me dá,
o prestígio, o nome, a posição? Posso abandoná-lo imediatamente, se
vejo realmente o absurdo que encerra, a brutalidade, a crueldade, a
falta de afeição e amor e a existência, tão-só; da ação calculada e
egoísta. Mas ninguém o quer ver e, por isso, inventam-se desculpas,
tais como: “ Fá-lo-ei eventualmente, com o tempo, mas por favor não
me perturbeis agora” . É o que estamos dizendo, quase todos nós,
parece-me. Não apenas os bem-dotados, mas também nós, a gente
comum, medíocre, assim estamos procedendo. Para se cortar esse

160
fio não é necessário tempo. O que é necessário é a percepção imediata,
a ação imediata, tal como sucede quando nos vemos à beira de um
precipício ou de uma serpente.
P ergunta : Como se pode ver tão claramente e esquecer toda a
experiência?
K rishnamurti: Não deveis ter uma mente purificada, para poderdes
ver qualquer coisa com clareza? Toda experiência, é óbvio, molda a
mente, aumenta-lhe o condicionamento; e através de todo esse condi­
cionamento tentamos ver algo novo. Não estou dizendo que existe
algo novo, não é disso que estamos tratando. Mas, se desejamos ver
se existe algo totalmente novo, algo que é criação, necessita-se por
certo de uma mente purificada, uma mente jovem, nova. Não digo
que devemos esquecer toda a experiência; isso é obviamente impossível.
Mas é possível perceber que o processo aditivo da experiência toma
a mente mecânica, e uma mente mecânica não é criadora.

3 de agosto de 1961.

161
SAANEN VI
Sofrimento

M uito temos falado sobre a importância de


enfrentar o fato, observá-lo sem condenação ou justificação, abeirar­
mos dele sem opinião alguma a seu respeito. Principalmente quando
se trata de fatos psicológicos, costumamos encará-los com todos os
nossos preconceitos, nossos desejos, nossas ânsias, que deformam “ o
que é” e produzem um certo sentimento de culpa, de contradição, uma
rejeição do que é. Falamos também sobre a importância da destruição
completa de todas as coisas que construímos para nos servirem de
refúgio, de defesa. A vida se nos afigura vasta demais, célere demais,
e nossas mentes lerdas, nossa maneira lenta de pensar, nossos hábitos
criam invariavelmente uma contradição dentro em nós, e procuramos
impor condições à vida. E, gradualmente, enquanto continua e cresce
essa contradição e conflito, as nossas mentes se vão tornando mais e
mais embotadas. Desejo, pois, nesta manhã, falar sobre a simples
austeridade da mente e sobre o sofrimento.
É-nos muito difícil pensar diretamente, ver as coisas diretamente
e seguir atentamente o que vemos, “ até o fim” , de maneira lógica,
racional, sã. É muito difícil ver as coisas com clareza e, por isso,
muito difícil ser simples. Não me refiro à simplicidade exterior do
vestir, do possuir poucas coisas; quero referir-me à simplicidade inte­
rior. A meu ver, a simplicidade é essencial quando se considera um
problema muito complexo, como o sofrimento. Assim, antes de come­
çarmos a apreciar o sofrimento, temos de estar bem esclarecidos quanto
ao significado da palavra “ simples” .

162
A mente, como agora a conhecemos, é muito complexa, infini­
tamente solerte, sutil; teve experiências mui numerosas; e contém em
si todas as influências do passado, da raça, o resíduo dos tempos.
Reduzir essa imensa complexidade à simplicidade é dificílimo; mas
acho necessário fazê-lo, pois, do contrário, nunca seremos capazes de
ultrapassar o conflito e o sofrimento.
A questão, pois, é esta: Considerando-se toda esta complexidade
— de saber, experiências, memória — existe alguma possibilidade de
olharmos o sofrimento e dele nos livrarmos?
Em primeiro lugar, parece-me que, quando se trata de investigar,
por nossos próprios meios, como pensar de maneira simples e direta,
as definições e explicações são verdadeiramente prejudiciais. Uma
definição verbal não torna a mente simples, e as explicações não pro­
duzem a clareza de percebimento. Parece-me, pois, que devemos estar
bem cônscios de nossa escravização às palavras, sem perdermos de
vista, entretanto, que as palavras são necessárias para as comunicações.
Mas o que se comunica não é meramente a palavra; comunicam-se
sentimentos, visões, que não podem ser formulados em palavras.
Mente simples não significa mente ignorante. Mente simples é aquela
que está livre para seguir todas as sutilezas, todas as variações, todos
os movimentos de um dado fato. E para tanto deve a mente, sem
dúvida, estar emancipada das palavras. Essa liberdade produz uma
austeridade feita de simplicidade. Se há essa simplicidade no consi­
derar as coisas, pode-se então tentar compreender o que é o sofrimento.
Penso que a simplicidade da mente e o sofrimento estão relacio­
nados entre si. Viver no sofrimento em todos os dias de nossa vida
é, sem dúvida, dizendo-o delicadamente, a coisa mais insensata que
um homem pode fazer. Viver em conflito, na frustração, sempre
enleado no medo, na ambição, enredado na ânsia de preenchimento,
de êxito — passar a vida toda num tal estado, isso me parece de
todo em todo fútil e desnecessário. E para nos livrarmos do sofri­
mento, devemos aplicar-nos de maneira simples a este complexo pro­
blema.
Há várias qualidades de sofrimento físico e psicológico. Há a
dor física ocasionada pela doença — uma dor de dentes, a perda de
um membro, deficiência visual, etc.; e o sofrimento interior que nos
vem quando perdemos alguém que amamos, quando não temos apti­
dões e vemos pessoas que as têm, quando não temos talento e vemos

163
pessoas de talento, de dinheiro, posição, prestígio, poder. Há sempre
ânsia de preenchimento; e, à sombra do preenchimento, se encontra a
frustração, e com esta o sofrimento.
Temos, pois, esses dois aspectos do sofrimento — o físico e o
psicológico. Perdemos porventura um braço, e surge o problema do
sofrimento. Voltamos mentalmente ao passado, lembrando-nos do que
já fizemos, que já não poderemos jogar tênis, já não poderemos fazer
muitas coisas; a mente compara, e nesse processo gera-se sofrimento.
Conhecemos bem esse gênero de coisa. O fato é que perdi meu braço
e, por mais teorias e explicações que formule, por mais que compare,
que me lamente, nada disso me restituirá o braço. Mas a mente gosta
de lamentar-se, de volver ao passado. E fica, assim, o fato presente
em contradição com o que foi. Essa comparação produz invariavel­
mente conflito, e por causa dele sofremos. Esta é uma modalidade do
sofrimento.
Em seguida, temos o sofrimento psicológico. Meu irmão, meu
filho morreu, foi-se deste mundo. Não há quantidade de teorias, de
explicações, de crenças, de esperanças que mo posssam restituir. A
realidade cruel, inexorável, é o fato de que ele se foi. E outro fato
é que me sinto sozinho, porque ele se foi. Éramos amigos, passeá­
vamos juntos, conversávamos, ríamos, divertíamo-nos, e essa camara­
dagem acabou-se e fiquei sozinho. A solidão é um fato e a morte
também. Sou forçado a aceitar o fato — sua morte — mas não
quero aceitar o fato de ter ficado só no mundo. Por isso, começo
a inventar teorias, esperanças, explicações, como meios de fuga ao
fato, e são essas fugas que produzem sofrimento, e não o fato de
achar-me sozinho, não o fato de ter morrido meu irmão. O fato
nunca pode produzir sofrimento e parece-me importante compreender
isso, se se quer a mente verdadeira, total e completamente livre do
sofrimento. Só acho possível a libertação do sofrimento quando a
mente já não busca explicações e refúgios, quando encara o fato de
frente. Não sei se já tentastes isso.
Sabemos que existe a morte e conhecemos o grande medo que
ela provoca. É um faio que temos de morrer, cada um de nós, quer
queiramos, quer não. E, assim, racionalizamos a morte ou nos refu­
giamos em crenças — karma, reincarnação, ressurreição, etc. — e, por
conseqüência, sustentamos o medo e fugimos ao fato. E a questão
é se à mente interessa de feito “ ir até o fim” , para descobrir se é

164
possível nos libertarmos completamente do sofrimento, não no correr
do tempo, porém no presente, agora.
Ora, pode cada um de nós, com inteligência, sanidade, enfrentar
o fato? Posso enfrentar o fato de que meu filho, meu irmão, minha
irmã, meu marido ou esposa, ou quem quer que seja, morreu e eu
fiquei sozinho — em vez de tentar escapar a essa solidão por via de
explicações, crenças e teorias sutis, etc.? Posso olhar o fato, qualquer
que seja ele: o fato de não ter eu talento, de ser estúpido, de estar
sozinho, de que minhas crenças, minhas estruturas religiosas, meus
valores espirituais são apenas defesas? Posso encarar esses fatos e
não buscar meios e modos de fugir? É possível isso?
Só o acho possível quando já não nos preocupamos com o tempo,
o amanhã. Nossa mente é preguiçosa e, por isso, estamos sempre a
pedir tempo — tempo para nos recuperarmos, tempo para melhorar­
mos. O tempo não apaga o sofrimento. Podemos esquecer um dado
sofrimento, mas o sofrimento existe sempre, profundamente oculto em
nós. Mas eu acho possível extinguir de todo o sofrimento, não ama­
nhã, não no decurso do tempo, porém percebendo a realidade no
presente, e passando além.
Afinal, por que sofrer? O sofrimento é doença. Procuramos o
médico para nos livrarmos de uma doença. Por que temos de suportar
o sofrimento, de qualquer espécie que seja? Vede, por favor, que
não estou fazendo retórica, pois isso seria insensato. Por que have­
mos nós, cada uma de nós, de suportar qualquer sofrimento, se é pos­
sível nos libertarmos disso completamente?
Essa pergunta implica outra: Por que vivermos em conflito? O
sofrimento é conflito. Dizemos que o conflito é necessário, que faz
parte da existência, que na natureza e em tudo o que nos cerca existe
conflito, e que é impossível existir sem conflito. Conseqüentemente,
aceitamos o conflito como inevitável interiormente, em nós mesmos,
e exteriormente, no mundo.
Para mim, o conflito, de qualquer espécie que seja, é desneces­
sário. Podeis dizer: “ Esta é uma idéia pessoal, vossa, e sem validade.
Sois um homem só, solteiro — para vós isso é fácil! Mas nós outros
temos de viver em conflito com os nossos vizinhos e a respeito de
nossas ocupações; tudo o que tocamos gera conflito” .

165
Á meu ver, isso é questão cíe educação correta, e nossa educação
não foi correta; ensinaram-nos a pensar em termos de competição,
em termos de comparação. Tenho dúvidas sobre se é possível uma
pessoa compreender, ver realmente, diretamente, por meio de compa­
ração. Ou só se pode ver claramente, com simplicidade, depois de
cessar a comparação? Decerto, uma pessoa só pode ver claro, quando
a mente já não é ambiciosa, já não se esforça para tornar-se alguma
coisa — mas isso não significa que a pessoa deva ficar satisfeita com
o que é. Penso que um homem pode viver sem comparação, sem
comparar-se com outro homem, sem comparar o que ele é com o que
deveria ser. Enfrentar “ o que é” , a todas as horas, suprime as avalia­
ções comparativas e, por conseguinte, penso eu, pode-se, assim, elimi­
nar o sofrimento. Acho importantíssimo que a mente esteja livre do
sofrimento. Porque a vida tem então significado bem diferente.
Outra coisa desastrosa que fazemos é buscar o conforto: não
apenas conforto físico, mas também conforto psicológico. Desejamos
abrigar-nos numa idéia, e quando essa idéia falha, ficamos desespe­
rados, e isso, por sua vez, gera sofrimento. A questão, pois, é esta:
Pode a mente viver, funcionar, existir sem abrigo, sem nenhum refú­
gio? Pode um homem viver, dia por dia, enfrentando cada fato que
surge e nunca buscando refúgio; enfrentando “ o que é” a todas as
horas, todos os minutos do dia? Porque então, penso eu, descobrire­
mos que não só o sofrimento termina, mas também a mente se torna
sobremodo simples e clara, apta a perceber diretamente, sem ajuda
das palavras, do símbolo.
Não sei se alguma vez já pensastes sem palavras. Existe pensar
sem verbalização? Ou todo pensar consiste apenas em palavras, sím­
bolos, quadros, imaginação? Todas essas coisas — palavras, símbolos,
idéias, são prejudiciais ao percebimento claro. Acho que quem deseja
investigar o sofrimento “ até o fim” , para descobrir se é possível ficar
livre dele (não eventualmente, porém viver cada dia livre de sofri­
mento), deverá penetrar em si mesmo muito profundamente, para
libertar-se de todas essas explicações, palavras, idéias e crenças, de
modo que a mente fique verdadeiramente purificada e capacitada para
perceber “ o que é” .
P ergunta : Quando há sofrimento, é decerto inevitável desejar­
mos fazer alguma coisa contra ele.

166
K rishnamurti: Senhor, como já dissemos, nós desejamos viver com
prazer, não é verdade? Ninguém procura modificar o prazer; quere­
mos que ele continue dia e noite, perenemente. Não desejamos alterá-
-lo, não desejamos sequer, tocá-lo, “ soprá-lo” , de medo que se nos
vá; queremos ficar-lhe apegados, não é mesmo? Agarramo-nos à coisa
que nos dá deleite, que nos dá alegria, prazer, sensação — coisas tais
como frequentar a igreja, “ ir à missa” , etc. Essas coisas causam-nos
muita vibração, sensação, e não desejamos alterar tal sentimento; ele
nos faz sentir mais aproximados da fonte das coisas, e precisamos
dessa sensação, não é verdade? Por que não podemos “ viver com o
sofrimento” , da mesma maneira e com a mesma intensidade, e sem
desejarmos fazer algo contra ele? Já tentastes isso? Já tentastes
“ viver com a dor física?” Já tentastes “ viver com o barulho” ?
Simplifiquemos as coisas. Quando um cão ladra à noite e vós
desejais dormir — mas ele continua ladrando, ladrando — que fazeis?
Resistis, não é verdade? Atirai-lhe coisas, praguejais contra ele,
enfim fazeis tudo o que podeis contra ele. Mas se, em lugar disso,
“ acompanhásseis” o barulho, escutásseis o ladrar do cão sem resis­
tência nenhuma, haveria incômodo? Não sei se já tentastes fazê-lo.
Tentai, ao menos uma vez, não resistir! Assim como não repelis o
prazer, não podeis igualmente “ viver com o sofrimento” , sem nenhuma
resistência, sem escolha, sem procurar refúgio, sem acalentardes espe­
ranças e, desse modo, abrirdes a porta ao desespero — viver, simples­
mente, com ele?
“ Viver com uma coisa” significa amá-la. Quando amais alguém,
desejais viver com essa pessoa, estar em sua companhia, não? Da
mesma maneira pode uma pessoa “ viver com o sofrimento” , não sadi-
camente, porém sentindo-lhe a força, a intensidade, e também sua
absoluta superficialidade; e isso significa nada poder fazer contra ele.
Afinal de contas, ninguém deseja fazer alguma coisa contra algo que
lhe dá prazer intenso; ninguém deseja alterá-lo: deseja-se que con­
tinue. De modo idêntico, “ viver com o sofrimento” significa, real­
mente, amar o sofrimento, e isso exige muita energia e compreensão;
significa vigilância contínua, para não deixar a mente fugir ao fato.
É facílimo fugir; pode-se tomar uma droga, uma bebida, ligar o rádio,
abrir um livro, tagarelar com outros, etc. Mas “ viver com uma coisa”
— prazer ou dor — inteiramente, totalmente, requer mente bem vigi­
lante. E quando a mente é assim vigilante, ela cria sua ação própria

167
— ou, melhor, a ação nasce do fato, e a mente nada tem que fazer
contra o fato.
P ergunta : Quando se trata de dor física, não devemos procurar
o médico?
K rishnamurti: Naturalmente; se tenho dor de dentes, procuro o
dentista. Se tendes um incômodo físico, não deveis procurar o médico?
Não denota certa superficialidade o fazer-se uma pergunta destas? Não
estamos falando apenas da dor física, mas também da dor psicológica,
de todas as torturas mentais por que passamos por causa de uma certa
idéia, crença, pessoa; e estamos perguntando a nós mesmos se é
possível ficarmos totalmente livres do sofrimento interior. Senhor, o
organismo físico é simples máquina e sujeito a desarranjar-se, e temos
de cuidar dele da melhor maneira e com ele nos arranjarmos como
pudermos; mas podemos cuidar de que esse organismo físico não
tenha interferência na mente, não a perverta, não a deforme, de modo
que a mente permaneça sã, apesar dos males físicos. E nossa questão
é se a mente — fonte de todo esclarecimento e ao mesmo tempo de
todos os conflitos, misérias e sofrimentos — pode existir livre de
sofrimento, não contaminada por nosso males físicos, etc.
Afinal, todos nos tornamos mais velhos em cada dia, mas decerto
é possível conservar a mente jovem, nova, “ inocente” , não oprimida
pelo peso tremendo da experiência, do conhecimento, do sofrimento.
Tenho que uma mente nova, purificada, é absolutamente necessária
para se poder descobrir o que é verdadeiro, se existe Deus — ou o
nome que quiserdes dar-lhe. Uma mente envelhecida, torturada, cheia
de sofrimento, nunca poderá descobri-lo. E fazer do sofrimento coisa
necessária, coisa que eventualmente nos levará ao céu, é absurdo. Q
Cristianismo enaltece o sofrimento como o caminho da iluminação.
Mas é necessário estarmos livres do sofrimento, da escuridão; porque
só então poderá brilhar a luz.
P ergunta : É-me possível existir livre de sofrimento, vendo tanto
sofrimento ao redor de mim?
K rishnamurti: Que achais? Ide ao Oriente, à índia, à Ásia, e lá
encontrareis o sofrimento em vasta escala — sofrimento físico, fome,
degradação, pobreza. Esse é um aspecto do sofrimento. Visitai o
mundo moderno, e aí encontrareis todos muito ocupados em deco­
rarem sua prisão externa — imensamente ricos, prósperos, mas todos

168
também muito pobres interiormente, muito vazios; aí também se
encontra o sofrimento. Que se pode fazer em presença desse fato?
Que podeis fazer diante de meu próprio penar? Podeis socorrer-me?
Pensai nisso a fundo, senhores!
Já falei cerca de uma hora, nesta manhã, a respeito do sofri­
mento e de como nos livrarmos dele. Estou-vos ajudando, ajudando­
- o s de fato, isto é, tornando-vos livres dele, ajudando-vos a não o
levar de um dia para o outro, a viver totalmente livres de sofrimento?
Estou-vos ajudando? Acho que não. Decerto, esse trabalho compete
a vós mesmos, inteiramente. Só estou a indicar-vos o caminho. Um
indicador de direção nenhum valor tem se ficamos sentados a estu­
dá-lo, indefinidamente. Cada um tem de enfrentar a solidão, percor-
rê-la “ até o fim” , observando todas as suas implicações. Posso evitar
os sofrimentos do mundo? Conhecemos não apenas nossa própria
angústia e desespero, mas também os vemos estampados nos rostos
dos outros. Podemos mostrar a porta por onde um homem pode
tornar-se livre, mas quase todos querem transpor essa porta carregados.
Rendem culto ao homem que, segundo pensam, os carregará; fazem-no
o Salvador, o Mestre — e tudo isso é puro contra-senso.
P ergunta : Que utilidade tem para outra uma pessoa livre, se
não pode prestar-lhe ajuda?
K rishnamurti: Como somos utilitários! Desejamos fazer uso de
outros em nosso próprio benefício, ou desejamos beneficiar a outros.
De que serve uma flor à beira da estrada? De que serve uma nuvem
atrás das monhanhas? De que serve o amor? Pode-se fazer uso do
amor? A caridade tem alguma utilidade? A humildade tem utilidade?
Existir sem ambição num mundo cheio de ambições, de que serve
isso? Ser bondoso, delicado, generoso — isso nenhuma utilidade tem
para o homem que não é generoso. Um homem livre nenhuma utili­
dade tem para o homem dominado pela ambição. E como quase todos
nós vivemos dominados pela ambição, pelo desejo de êxito, aquele
homem pouco significa para nós. Poderá falar-nos de liberdade, mas
o que nos interessa é o êxito. Ele só poderá convidar-nos a passar à
outra margem do rio, a ver a beleza do céu, a beleza do ser simples;
a amar, ser bondosos, generosos, sem ambição. Mas são muito poucos
os que passam para a outra margem; portanto, o homem que lá se
encontra é de pouquíssima utilidade. Provavelmente o poreis num
altar e o adorareis. E a isso vos limitais, mais ou menos.

169
Pergunta : “ Viver com o sofrimento” implica prolongamento do
sofrimento, e tememos prolongá-lo.
K rishnamurti: Não foi isso, naturalmente, o que eu quis dizer.
Para “ viver com uma coisa” — a beleza ou a fealdade — requer-se
muita intensidade. “ Viver com estas montanhas” , dia por dia — se
não as sentirmos, se as não amarmos, se não lhe admirarmos a beleza,
a todas as horas, igualar-nos-emos aos camponeses, que a elas se tor­
naram insensíveis. O belo, se não lhe somos sensíveis, corrompe tanto
como o feio. “ Viver com o sofrimento” é “ viver com as montanhas” ,
porque o sofrimento torna a mente embotada, estúpida. “ Viver com
o sofrimento” implica vigilância infinita, e isso não prolonga o sofri­
mento. No momento em que se percebe a totalidade da coisa, esta se
desvanece. Quando uma coisa é percebida totalmente, está acabada,
Ao conhecermos a estrutura completa do sofrimento, sua anatomia,
sua “ interioridade” , sem formular teorias a seu respeito, porém obser­
vando o fato realmente, a sua totalidade — então o fato cai por si.
A rapidez, a presteza do percebimento depende da mente. Mas se
vossa mente não é simples, direta, se está repleta de crenças, esperan­
ças, temores, desesperos, desejando modificar o fato, “ o que é” ,
nesse caso estais prolongando o sofrimento.
P ergunta : Nossos preconceitos barram-nos o caminho, e temos
de vencê-los; e isso pode levar tempo.
K rishnamurti: Senhor, ao perceber que está só, a pessoa percebe
também, instantaneamente, que deseja fugir desse estado, não é ver­
dade? O fato de que estou só e o fato de desejar fugir desse estado
podem ser percebidos imediatamente, não? Posso também perceber
instantaneamente que qualquer espécie de fuga é uma maneira de
evitar o fato da solidão, a qual devo compreender. Não posso pô-la
de parte.
A meu ver, nossa dificuldade consiste em estarmos muito ape­
gados às coisas nas quais nos refugiamos; elas são para nós bem impor­
tantes, tornaram-se sumamente respeitáveis. Achamos que, se deixar­
mos de ser respeitáveis, só Deus sabe o que aconteceria. Por essa
razão, torna-se de suma importância o apego à respeitabilidade, e
deixa de ser relevante o fato de que precisamos compreender a solidão,
ou o que quer que seja, totalmente.

170
Pergunta : Se não temos a necessária intensidade, que podemos
fazer para a conseguirmos?
K rishnamurti: Não estou certo se desejamos aquela intensidade.
Ser “ intenso” implica destruição, não é exato? Significa despedaçar
todas as coisas que estamos acostumados a considerar tão importantes
na vida. E, assim, o medo, talvez, nos impede de ser “ intensos” .
Todos nós, velhos e jovens, desejamos ser altamente respeitáveis,
não é verdade? Respeitabilidade implica reconhecimento por parte
da sociedade; e a sociedade só reconhece o que teve êxito, o que se
tornou importante, famoso, e despreza o resto. Por isso, adoramos o
êxito e a respeitabilidade. E quando pouco vos importa se a socie­
dade vos considera respeitável ou não, quando não buscais o êxito,
não desejais tornar-vos alguém, existe então intensidade — e isso
significa que não existe medo, nem conflito, nem contradição, interior­
mente; por conseguinte, dispondes de abundante energia para acompa­
nhardes o fato “ até o fim” .

6 de agosto de 1961.

171
SAANEN - VII
Do Pensar N egativo

S e perm itis , prosseguiremos com o que estávamos


falando anteontem, ou seja sobre o significado da meditação. No
Oriente, a meditação é uma prática diária de suma importância para
aqueles que a exercem profundamente; mas talvez não seja tão impor­
tante nem tão séria no Ocidente. Mas, por ela envolver o processo
total da vida, convém considerar o seu significado.
Seria de todo fútil limitarmo-nos a seguir palavras ou frases, per­
manecendo no mero nível verbal. Se apenas seguimos esta questão
intelectualmente, isso é o mesmo que acompanhar um ataúde até a
cova. Mas, se deveras a aprofundardes, ela vos revelará as coisas
mais extraordinárias da vida. Como disse, não estamos lendo o pri­
meiro capítulo de um livro, porquanto não tem fim o processo total
da vida. Temos, porém, de considerar cada ponto que for surgindo.
Examinaremos a matéria com. certa profundeza e amplitude, como
o vereis; mas, antes disso, acho necessário compreender o que é pensa­
mento negativo e o que é pensamento positivo. Não estou empre­
gando as palavras “ positivo” e “ negativo” em sentidos opostos. Os
mais de nós pensamos positivamente, acumulamos, adicionamos; ou,
quando achamos conveniente, proveitoso, subtraímos. O pensamento
positivo é imitativo, acomodatício, ajustando-se ao padrão da socie­
dade ou àquilo que deseja; e com esse pensamento positivo estamos
quase todos satisfeitos. Para mim, tal pensamento não conduz a parte
alguma.
Mas o pensamento negativo não é o oposto do pensamento posi­
tivo; constituí um estado, um processo completamente diferente; e,

172
a meu ver, impede compreender isso claramente, antes de prosseguir­
mos. Pensar negativamente é desnudar a mente de todo; pensar nega­
tivamente é quietar o intelecto, o repositório de reações.
Deveis ter notado que o intelecto está constantemente muito ati­
vo, constantemente reagindo; o intelecto tem de reagir, senão morre.
E, no seu reagir, ele cria “ processos” positivos a que chama “ pensar” ;
e todos esses processos são defensivos, mecânicos. Quem observa seu
próprio pensar poderá ver que o que estou dizendo é muito simples,
nada complicado.
O mais importante é manter-se o intelecto plenamente desperto
e sensível, sem reagir; por essa razão, considero necessário pensar nega­
tivamente. Poderemos depois apreciar isso mais extensamente, mas,
se compreendestes o que acabo de dizer, vereis que o pensamento
negativo não implica esforço algum, ao passo que o pensamento posi­
tivo exige esforço; e esforço é conflito e implica consecução de obje­
tivo, repressão, contradição.
Observai vossa própria mente, vosso próprio intelecto a fun­
cionar; não vos limiteis a ouvir minhas palavras. As palavras não
têm significação profunda, servindo unicamente para transmitir, comu­
nicar algo. Se permanecerdes no nível verbal, não podereis ir muito
longe.
Sabemos, pois, que — por motivo de nossa educação, meio cul­
tural, influências sociais, religiosas, etc. — todos nós temos o inte­
lecto muito ativo, mas a totalidade da mente está bem embotada. E
tornar o intelecto tranqüilo e ao mesmo tempo plenamente sensível,
ativo mas sem cultivar meios de defesa, isso é tarefa verdadeiramente
árdua, como deveis saber se já considerastes esta matéria. E manter
o intelecto extraordinariamente ativo, porém totalmente tranqüilo, isso
nenhum esforço exige.
Q esforço afigura-se à maioria de nós como uma parte de nossa
existência; aparentemente, não podemos viver sem ele: o esforço para
sairmos da cama de manhã, o esforço de irmos para a escola, o escri­
tório, o esforço para sustentar uma atividade contínua, o esforço para
amarmos alguém. Toda a nossa vida, do momento de nascermos ao
momento de baixarmos à sepultura, é uma série de esforços. Esforço
implica conflito; e nenhum esforço existe no observar as coisas tais
como são, o fato, tal qual é. Mas nós nunca nos observamos como
somos, consciente ou inconscientemente. Sempre tratamos de modi­

173
ficar, substituir, transformar, reprimir o qué vemos em nós mesmos.
Tudo isso gera conflito; e a mente, o intelecto que se acha em con­
flito nunca está quieto. E para pensarmos profundamente, penetrar­
mos mui profundamente, necessitamos de um intelecto que não esteja
embotado, que não esteja disposto a dormir, que não se deixe narco­
tizar pela crença, pelas suas defesas — necessitamos de um intelecto
intensamente ativo e ao mesmo tempo tranqüilo.
É o conflito que embota a totalidade da mente; assim, se dese­
jamos investigar a questão da meditação, se desejamos penetrar pro­
fundamente a vida, temos, desde o início, de compreender o conflito
e o esforço. Se tendes observado, deveis saber que nosso esforço é
sempre para alcançarmos um alvo, tornar-nos alguma coisa, termos
êxito; e por essa razão existe conflito e frustração, com o inerente
sofrimento, esperança e desespero. E o que está sempre, a todos os
momentos, em conflito, embota-se. Não conhecemos pessoas que
vivem em contínuo conflito, e não sabemos como estão embotadas?
Assim, para podermos ir muito longe e muito profundamente, temos
de compreender perfeitamente a questão do conflito e do esforço. O
esforço, o conflito resulta do pensamento positivo; quando há pensar
negativo — a mais elevada forma do pensar — não há esforço, nem
conflito.
Ora, todo pensar é mecânico, porquanto todo o pensar constitui
uma reação de nosso fundo de experiência, nosso fundo de memória
E, sendo mecânico, o pensar nunca pode ser livre. Poderá ser razoá­
vel, sensato, lógico, conforme o seu fundo {background) , sua educa­
ção, seu condicionamento; mas o pensar nunca pode ser livre.
Não sei se já experimentastes descobrir o que é pensar, não me
refiro à definição lexicológica da palavra, ou à respectiva idéia filosó­
fica, mas pergunto se já observastes que o pensar é reação.
Prestai atenção, porquanto temos de examinar esta matéria.
Quando vos faço uma pergunta familiar, respondeis imediatamente,
porque estais familiarizado com a resposta. Se se faz pergunta um
pouco mais complicada, há um retardamento da resposta, enquanto o
intelecto está funcionando, a buscar na memória a resposta. Se a
pergunta é mais complicada ainda, mais longo se torna o intervalo de
tempo, durante o qual o cérebro está a pensar, a buscar, esforçando-se
por achar a resposta. E se vos fazem uma pergunta com a qual não
estais absoíutamente familiarizado, dizeis: “ Não sei” . Mas esse “ não

174
sei” representa um estado em que o intelecto está esperando achar
uma resposta, seja consultando livros, seja perguntando a alguém; ele
espera achar a resposta. Todo esse processo de pensar é, acho eu,
muito fácil de perceber; é o que estamos fazendo a todas as horas, é
a reação do Intelecto, provinda de nosso depósito de experiências,
conhecimentos.
Ora, o estado da mente que diz “ não sei” e aguarda uma resposta
difere por inteiro do estado da mente que diz “ não sei” e não fica à
espera de resposta. Espero estejais entendendo, porquanto, se isso
não ficar bem claro, receio que não podereis compreender o que vem
a seguir. Ainda estamos falando sobre meditação e penetrando o pro­
blema do intelecto e da mente. Se não se compreende a raiz do
pensamento, é completamente impossível transcender o pensamento.
Há dois estados: o intelecto que diz “ não sei” e procura resposta,
e o outro estado de “ não saber” , por não haver resposta. Se isso
ficar bem claro, podemos então passar a investigar a questão da aten­
ção e da concentração.
Todos sabem o que é concentração. Sabe-o o colegial, quando
deseja olhar para a janela e o professor lhe diz: “ olhe para seu livro” .
O colegial obriga sua mente a olhar para o livro, quando seu desejo
real é olhar pela janela; por conseguinte, há conflito. É familiar à
maioria de nós esse processo de obrigar o intelecto a concentrar-se.
E tal processo de concentração é processo de exclusão, não achais?
Vedais o acesso, fechais a porta a qualquer coisa que perturbe a con­
centração. Por conseguinte, onde há concentração, há distração. Estais
entendendo? Poís educam-nos para nos concentrarmos — que é pro­
cesso de excluir, vedar — e por isso há distração, conflito.
Ora bem, a atenção não é processo de concentração, e nela não
há distração. À atenção é coisa bem diversa, e vou agora apreciá-la.
Notai, por favor, que estamos falando de assunto muito sério; e
vir aqui não é como ir a um concerto para divertimento. Este assunto
requer grande trabalho de vossa parte, significa examinar sem nenhu­
ma tendência para desejar ou não desejar. Se não podeis acompanhar-
-me seriamente, nesse caso ficai tranqüilamente a escutar, escutai as
palavras e esquecei-as. Mas, se penetrardes profundamente, há muita
coisa para descobrir. Porque vereis — enquanto vou aprofundando
a questão — que a liberdade é necessária. Quando a mente está em
conflito, fazendo esforço, não há liberdade; não a há, tampouco,

175
quando há concentração e resistência à distração. Mas, se compreen­
demos o que é a atenção, estamos então, também, começando a com­
preender que o conflito cessou completamente, existindo portanto a
possibilidade de ficar a mente de todo livre — não apenas a mente
superficial, senão também a mente inconsciente, onde se ocultam nos­
sos secretos pensamentos e desejos.
Já sabemos o que é concentração; mas, que é atenção? Faço
esta pergunta e a reação instintiva de cada um é achar a resposta,
dar uma explicação, uma definição; e quanto mais engenhosa a expli­
cação, mais satisfeitos ficamos. Não estou dando nenhuma definição;
estamos investigando negativamente. Se se investiga com o pensar
positivo, nunca se descobrirá a beleza da atenção. Mas, se compreen­
destes o que é pensar negativo — que não é pensar em termos de
reação, e, nele, o intelecto não pede resposta alguma — descobrireis
então o que é atenção. Vou examinar isso um pouco.
Atenção não é concentração; nela não há distração; na atenção
não há conflito, não há busca de fim; o intelecto, portanto, está atento,
o que significa que não tem fronteiras; está tranqüilo. Atenção é o
estado mental em que desapareceu todo o conhecimento, e só há inves­
tigação.
Tentai, uma vez, uma coisa simples. Ao sairdes a passeio, ficai
atento. Notareis como ouvireis, como vereis muito mais do que com
o intelecto concentrado; porque atenção é um estado de “ não saber”
e. portanto, de investigação. O intelecto, então, investiga, sem causa,
sem motivo — e essa é a investigação pura, a qualidade da verdadeira
mente científica. Ela pode ter conhecimentos, mas seus conhecimentos
não interferem na investigação. Por conseguinte, uma mente ativa é
capaz de concentrar-se; mas sua concentração não é resistência nem
exclusão. Estais-me seguindo?
Esse estado de atenção é próprio da mente que não está atulhada
de informações, conhecimentos, experiências; o estado da mente que
vive no “ não saber” . Isso significa que o intelecto, a mente, aban­
donou todas as influências, todos os preconceitos, todas as sanções;
compreendeu a autoridade, dissolveu a ambição, a inveja, a avidez e
está totalmente oposta à sociedade e sua moral. Ela já não segue.
Essa mente já pode investigar.
Ora, para se investigar profundamente, requer-se silêncio. Se
desejo admirar aquelas montanhas e ouvir a correnteza do rio, não

176
só o meu intelecto deve estar tranqüilo, mas também minha mente
inteira — consciente e inconsciente — deve estar de todo quieta,
para ouvir. Se o intelecto está a tagarelar, se a mente deseja apreen--
der, segurar, então já não está vendo, escutando a beleza do som da
corrente. A investigação, portanto, implica liberdade e silêncio.
Como sabeis, já se escreveram livros sobre como alcançar uma
mente serena por meio da meditação e da concentração. Volumes já
foram escritos acerca desta matéria — mas isso não significa que eu
tenha lido qualquer deles. Pessoas que me procuram me têm falado
a respeito deles. Exercitar a mente para se tornar silenciosa é puro
contra-senso. Se treinais vossa mente para se tornar silenciosa, achal-
-vos então num estado de decadência, porquanto a mente que se
ajusta por medo, por avidez, inveja ou ambição, é mente morta, embo­
tada, estúpida. A mente embotada, estúpida, pode tornar-se quieta,
mas permanecerá limitada e medíocre, e nada novo chegará a ela.
Assim, a mente atenta está isenta de conflito e, portanto, é livre;
e essa mente é tranqüila, silenciosa. Não sei se já alcançastes este
ponto; se o alcançastes, deveis saber que isso de que estou falando
é meditação.
Nesse processo de autoconhecimento, descobrireis que a mente
silenciosa não é mente morta, porém em extremo ativa. Sua atividade
não é a atividade que visa a um objetivo, nem atividade de somar e
subtrair; porque esse estado intensamente ativo se tornou existente
sem busca e sem esforço algum; em todo o percurso, ela tudo com­
preendeu, cada fase de seu existir. Não houve repressão de espécie
alguma e, portanto, não há medo, nem imitação, nem ajustamento.
E se a mente faz estas coisas, não há possibilidade de silêncio.
Agora, que acontece depois disso? Até agora empregamos pala­
vras para efeito de comunicação; mas a palavra não é a coisa. A
palavra “ silêncio” não é o silêncio. Portanto, compreendei isto: para
existir o silêncio, a mente deve estar livre da palavra.
Ora, quando a mente está verdadeiramente tranqüila, portanto,
ativa e livre, e não se está importando com a comunicação, a expressão,
a realização — é então que há criação. Essa criação não é uma visão.
Os cristãos têm visões do Cristo; e os hínduístas têm igualmente
visões de seus pequenos deuses ou grandes deuses. Estão reagindo
de acordo com seu condicionamento; estão projetando suas visões, e o
que eles vêem nasce de seu próprio fundo ( background); o que vêem

177
nâo é o fato, porém coisa “ projetada” de seus desejos, ânsias, espe­
ranças. Mas a mente atenta e silenciosa não tem visões, porque se
libertou de todo o seu condicionamento. Destarte, essa mente sabe
o que é a criação — que é coisa bem diferente da chamada “ ação
criadora” do músico, do pintor, do poeta.
Em seguida, se já alcançastes este ponto, vereis que há um estado
mental fora do tempo e do espaço, em que, por conseguinte, se pode
ver ou receber o imensurável. E o que se vê e se sente, tal como o
estado de experimentar, pertencem ao momento e não são para guar­
dar na memória.
Assim, aquela realidade imensurável, indenominável, que nenhuma
palavra tem, aquela realidade só se manifesta quando a mente está
toda livre e silenciosa, num estado de criação. O estado de criação
não é um simples estado alcoólico, estimulado; mas quando uma
pessoa compreendeu e passou por esse processo de autoconhecimento,
e se acha livre de todas as reações de inveja, ambição e avidez, ver-se-á,
então, que a criação é sempre nova e, por conseguinte, sempre destru­
tiva. E a criação nunca pode existir dentro da estrutura da socie­
dade, dentro da estrutura de uma individualidade limitada. Por conse­
guinte, a individualidade limitada a buscar a realidade nenhuma signi­
ficação tem. E, quando há aquela criação, dá-se a total destruição
de todas as coisas que um homem acumulou, e, por conseguinte, existe
sempre o novo. E o novo é sempre verdadeiro, imensurável.

Pergunta : O “ estado de atenção total” e o “ desejo sem motivo”


são a mesma coisa?
K rishnamurti: Senhores, o desejo é uma coisa extraordinária, não
achais? O desejo, para nós, é cheio de torturas; conhecemos o desejo
como conflito e, por isso, lhe impusemos limitações. E nossos desejos
são tão insignificantes, tão estreitos, tão mesquinhos, tão medíocres!
Desejamos um carro, desejamos ser mais belos, desejamos conseguir
algo. Vede como tudo isso é insignificante! E eu pergunto se existe
desejo sem torturas, sem esperança e desespero. Existe. Mas isso
não pode ser compreendido enquanto o desejo gerar conflito. Mas,
havendo compreensão total do desejo, dos motivos, das torturas, das
renúncias, da disciplina, dos tormentos que atravessamos — quando
tudo isso fci compreendido, dissolvido, de modo que desapareceu
completamente — então, talvez o desejo seja coisa diferente. Poderá

178
ser Amor. E o amor pode ter sua expressão própria. O amor não
tem amanhã e não pensa no passado; e isso significa que o intelecto
não atua sobre o amor. Não sei se já observastes isto: como o inte­
lecto interfere no amor, diz que ele deve ser respeitável, divide-o
como divino e pecaminoso, está sempre a moldá-lo, controlá-lo, guiá-lo,
ajustando-o ao padrão da sociedade ou da própria experiência.
Há, porém, estado de afeição, de amor, no qual não interfere o
intelecto; e esse amor talvez possa ser encontrado. Mas, por que
comparar? Por que dizer “ ele é assim ou assado” ?
Senhores, não sei se já observastes uma gota de chuva que caí
do céu. Essa gota é da mesma natureza que todos os ríos e todos os
oceanos, todas as torrentes, e da água que bebeis. Mas aquela gota
de chuva não está pensando que irá ser o rio. Ela cai, completa, total.
Da mesma maneira, quando a mente passou por todo esse processo
de autoconhecimento, ela está completa. Nesse estado não há compa­
ração. A criação não é comparativa; e porque é destrutiva, não con­
tém em si nada de velho.
Sendo assim, devemos, não verbal ou intelectualmente, porém
realmente, empenhar-nos nesse processo de autoconhecimento, agora e
por todo o sempre, pois não há fim do autoconhecimento. E como
não tem fim, não tem começo e, por conseguinte, está no presente.
Outra coisa sobre a qual desejo falar é esta: por que gostamos de
adorar? Como sabeis, todos gostamos de adorar um símbolo, um
Cristo, um Buda. Por quê? Eu poderia apresentar-vos uma multidão
de explicações: gostamos de identificar-nos com algo que é maior do
que nós; gostamos de entregar-nos a algo que pensamos ser verdadeiro;
gostamos de estar na presença de algo sagrado, etc. Mas a mente
que adora é mente que está a morrer, a declinar. Quer cultueis o
herói que vai alcançar a Lua, o herói do passado ou do presente, quer
cultueis o homem que vos fala de um palanque, tudo vem a ser a
mesma coisa; se rendeis culto, o estado criador nunca se tornará exis­
tente, nunca poderá aproximar-se de vós. E a mente que não conhece
esse estado extraordinário sofre perenemente. Assim, uma vez com­
preendido o problema do culto, ele morre, como o cair de uma folha
no outono. Pode então a mente prosseguir, livre de barreiras.

8 de agosto de 1961.

179
SAANEN VIII
P roblemas e T emores

O NTEM estivemos falando sobre a natureza da


meditação e dissemos que, havendo liberdade, a mente pode penetrar
muito fundo em si mesma. E esta manhã, pretendo considerar várias
questões. Primeiramente, o medo, a seguir o tempo e a morte. Penso
que essas coisas se relacionam entre si e que sem compreensão de
uma delas não será possível compreender as outras. Se não compreen­
dermos o processo integral do medo, não haverá possibilidade de com­
preendermos o que é o tempo; e no “ processo” da compreensão do
tempo estaremos aptos a examinar a importante questão da morte.
A morte deve ser um fato extraordinário. Assim como é a vida, com
sua exuberância, sua riqueza, sua variedade e plenitude, assim deve
ser a morte. A morte, sem dúvida, deve ser portadora de novidade,
verdor, purificação. Mas, para compreender tão vasta questão, é óbvio
que a mente deve estar livre do temor.
Cada um de nós tem muitos problemas, tanto externos como
internos, e os problemas interiores excedem os exteriores. Se com­
preendermos os problemas interiores, se os penetrarmos profunda­
mente, os problemas exteriores se tornarão então bastante simples e
claros. Mas o problema exterior não difere do problema interior. É
um só movimento, como o das marés. E se seguimos apenas o movi­
mento exterior e por aí ficamos, não poderemos compreender o movi­
mento interior dessa' maré. Tampouco compreenderemos o movi­
mento interior, se simplesmente evitamos ou abandonamos a com­
preensão do exterior. É um só movimento, que chamamos exterior e
interior.

180
Em geral, somos preparados para observar a maré exterior, o
movimento que se dirige para fora; mas, nessa direção, o problema
cresce mais e mais. E, sem a compreensão desses problemas, é impos­
sível o movimento para dentro, a observação interior.
Infelizmente, tanto temos problemas externos — sociais, econô­
micos, políticos, religiosos, etc. — como temos os problemas interiores
atinentes ao que devemos fazer, como nos devemos comportar, como
corresponder aos vários desafios da vida. Parece que tudo o que
tocamos, exterior ou interiormente, cria mais problemas, mais angús­
tias, mais confusão. É bem evidente à maioria de nós, que estamos
observando, vivendo, que tudo o que tocamos com nossas mãos, com
nossa mente, com nosso coração, aumenta os nossos problemas: críam-
-se mais sofrimentos, mais confusão. E, a meu ver, poderemos com­
preender todos os nossos problemas ao compreendermos o medo.
Não estou empregando a palavra “ compreender” intelectual ou
verbalmente, porém referindo-me ao estado de compreensão que nasce
quando percebemos, vemos o fato, não apenas vistualmente, mas tam­
bém interiormente. Ver o fato implica um estado em que não bá
justificação ou condenação, porém, tão-só, observação, percepção de
uma coisa sem interpretá-la. Porque toda interpretação deforma, A
compreensão é instantânea quando não há justificação, condenação ou
interpretação.
Isso é difícil para a maioria de nós, porque pensamos que a
compreensão é questão de tempo, de comparação, de acumulação de
mais informações, mais conhecimento. Mas a compreensão nada disso
exige. Só uma coisa ela exige, que é o percebimento direto, o ver
diretamente, sem interpretação ou comparação. Assim, não havendo
compreensão do medo, os nossos problemas crescem, invariavelmente.
Ora, que é o medo? Cada um de nós tem sua “ série” própria
de temores. Posso ter medo do escuro, medo da opinião pública,
medo da morte, medo de não ter êxito na vida, de não ter capacidade,
de me sentir inferior. A cada volta que dá, a mente encontra o
temor; cada sussurro do pensamento gera, consciente ou inconscien­
temente, essa coisa terrível que chamamos medo.
Que é, pois, o medo? Fazei, por favor, esta pergunta a vós mes­
mos. É algo isolado, só, não relacionado, ou está sempre em relação
com alguma coisa? Espero estejais compreendendo o que quero dizer,
pois não nos estamos entretendo com psicanálise. Estamos tentando

181
descobrir se é possível libertar a mente do medo — nao aos poucos,
porém totalmente, completamente. E para o descobrirmos, cabe-nos
investigar o que é o temor, como nasce; e para averiguarmos isso
devemos investigar o pensamento, não apenas o pensar consciente,
mas também o inconsciente, as camadas profundas de nosso próprio
ser. Investigar o inconsciente, por certo, não é processo de análise;
porque, quando eu analiso, ou outro analisa, há sempre o observador,
o analista que está analisando, e por conseguinte há divisão, dissirni-
laridade e, portanto, conflito.
Desejo investigar como nasce o medo. Não sei se estamos côns­
cios de nossos temores, e como deles estamos conscientes. Estamos
cônscios apenas de uma palavra, ou estamos diretamente em contato
com a causa do medo? A causa do medo é fragmentária? Ou é
uma totalidade, com várias expressões de medo? Eu posso ter medo
da morte, vós podeis temer vosso vizinho ou a opinião pública, outrem
pode temer o domínio da mulher ou do marido; mas a causa deve ser
uma só. Não existem, por certo, várias causas diferentes a produzirem
diferentes variedades de medo. E o descobrimento da causa do medo
liberta a mente do medo? Se sei, por exemplo, que temo a opinião
pública, isso me liberta a mente do temor? O descobrimento da
causa do medo não é libertação do medo.
Procurai compreender isso, por favor; não dispomos de tempo
para entrarmos em muitas particularidades a esse respeito, pois temos
hoje uma vasta matéria para considerar.
O conhecimento da causa, ou das numerosas causas geradoras de
temor, descarregará a mente do temor? Ou há necessidade de algum
outro elemento?
Ao investigar o que é o medo, nao só temos de estar cônscios
das reações exteriores, mas também temos de observar o inconsciente.
Estou empregando a palavra “ inconsciente” num sentido muito sim­
ples, não filosófico, psicológico ou analítico. O inconsciente são os
motivos ocultos, os pensamentos sutis, os secretos desejos, cumpul-
sões, ânsias, exigências. Pois bem. Como examinamos ou observamos
o inconsciente? É bastante simples observar o consciente, pelas suas
reações de gosto e desgosto, dor e prazer; mas como investigar o
inconsciente sem a ajuda de outrem? Porque, se temos ajuda de
outrem, este outrem pode ter preconceitos, limitações, pervertendo
assim tudo o que interpreta. Por conseguinte, como iremos examinar,

182
sem interpretação, essa coisa vastíssima que se chama a mente oculta
— examiná-la, absorvê-la, compreendê-la totalmente, e não a pouco
e pouco? Porque, se a examinarmos fragmentariamente, cada exame
deixará sua marca, e com esta marca iremos examinar o próximo
fragmento, agravando assim a deformação. Por conseguinte, nenhuma
clareza se alcança pela análise. Não sei se estais percebendo o que
estou dizendo.
Podemos ver, sem dúvida, que o descobrimento da causa do
medo não liberta a mente do medo, e que a análise não traz, tam­
pouco, a libertação dele. Há necessidade de compreensão total, desco­
brimento completo da totalidade do inconsciente; e como iniciar esta
investigação? Percebeis o problema?
A mente inconsciente, decerto, não pode ser observada por meio
da mente consciente. A mente consciente é coisa recente; “ recente”
no sentido de que foi condicionada para ajustar-se ao ambiente; foi
recentemente moldada, pela educação, para adquirir certas técnicas a
fim de viver, obter o sustento pessoal; ela contém memórias cultivadas,
sendo, portanto, capaz de levar uma vida superficial, numa sociedade
intrinsecamente apodrecida e estúpida. A mente consciente pode ajus­
tar-se, pois esta é sua função. E quando é incapaz de adaptar-se ao
ambiente, manifesta-se então uma neurose, um estado de contradição,
etc. Mas a mente educada, a mente recentemente formada, não pode
de modo nenhum investigar o inconsciente, que é antigo, que é resíduo
do tempo, de todas as experiências raciais. O inconsciente é o repo­
sitório de ilimitado conhecimento das coisas que foram. Assim, como
pode a mente consciente observá-lo? Não pode, porque está condicio­
nada, limitada pelos conhecimentos recentes, pelos recentes incidentes,
experiências, lições, ambições e ajustamentos. Essa mente consciente
de modo nenhum pode olhar o inconsciente, e isso me parece bastante
compreensível. Por favor, isto aqui não é questão de concordar ou
discordar; se começais a dizer “ Tendes toda a razão” ou “ Não tendes
razão” — isso nada significa, e ficamos na mesma confusão. Se se
percebe ímediatamente a importância que isso tem, não há concordar
nem discordar, porque estamos então investigando.
Pois bem. Que é necessário para investigarmos o inconsciente,
trazermos à luz todo o resíduo, purificarmos totalmente o inconsciente,
de modo que não crie as contradições geradoras de conflito? Como
proceder à investigação do inconsciente, sabendo-se que uma mente

183
educada é incapaz de observá-lo, e também o é o analista, com seu
exame fragmentário? Como olhar essa mente prodigiosa que encerra
tão vastos tesouros, repositório de experiências, de influências raciais
e climáticas, de tradições, de impressões constantes? Como trazer
tudo isso à luz, fragmentária ou totalmente? Se não compreendeis o
problema, nesse caso nenhuma significação tem prosseguirmos investi­
gando. O que estou dizendo é que, se o inconsciente for examinado
fragmentariamente, isso nunca terá fim, porque o próprio fato de o
examinar e interpretar fragmentariamente fortalece as camadas da
mente oculta. Ela deve ser examinada como um quadro total. Por
certo, o amor não é fragmentário; ele não pode ser dividido em divino
e profano, ou posto em várias categorias de respeitabilidade. O amor
é coisa total, e a mente que disseca o amor nunca saberá o que é o
amor. Para se sentir, compreender o amor, não devemos considerá-lo
de maneira fragmentária.
Assim, se isso está realmente claro — isto é, que a totalidade não
pode ser compreendida mediante fragmentação — operou-se, então,
uma mudança, não achais? Não sei se estais alcançando a idéia que
estou transmitindo.
Pois bem. Temos de abeirar-nos da mente inconsciente de ma­
neira negativa, pois não sabemos o que ela é. Sabemos o que outras
pessoas têm dito a seu respeito e ocasionalmente temos conhecimento
dela por meio de sugestões interiores, intuições. Mas não lhe conhe­
cemos todos os meandros e voltas, a qualidade extraordinária do
inconsciente, todas as raízes. Por conseguinte, para compreendermos
uma coisa que não conhecemos, temos de abeirar-nos dela de maneira
negativa, com uma mente que não está em busca de resposta.
Falamos há dias acerca do pensar positivo e do pensar negativo.
Eu disse então que o pensar negativo é a mais elevada forma do pen­
sar; e que todo pensar, positivo ou negativo, é limitado. O pensa­
mento positivo nunca é livre; mas o pensamento negativo pode ser
livre. Por conseguinte, a mente negativa, ao observar o inconsciente,
que desconhece, está em relação direta com ele.
Vede, por favor, isto não é algo de estranho, um novo culto,
uma nova maneira de pensar — pois tudo isso é sem madureza, infan­
til. Mas, quando desejamos descobrir por nós mesmos o que é o medo e
ficar totalmente livres dele, não fragmentariamente, porém de maneira

184
completa, cabe-nos investigar as profundezas de nossa mente. E esse
investigar não é um processo positivo. Nenhum instrumento de cavar
pode ser criado ou fabricado pela mente superficial. O que a mente
consciente pode fazer é apenas ficar quieta, abandonar voluntaria­
mente, facilmente, todos os seus conhecimentos, capacidades, dons,
tornar-se independente de todas as suas técnicas. Assim fazendo, ela
se põe num estado negativo. Mas, para fazê-lo, é preciso compreen­
der o pensamento.
O pensamento, — a totalidade do pensamento e não apenas um
ou dois pensamentos — não gera medo? Se não houvesse amanhã,
ou o próximo minuto, haveria temor? O morrer para o pensamento
é o fim do medo. E todo estado consciente é pensamento.
Chegamos, agora, à coisa que se chama tempo. Que é o tempo?
Existe o tempo? Existe o tempo marcado pelo relógio e pensamos
que existe também tempo interior, psicológico. Mas existe o tempo,
afora o tempo cronométrico? É o pensamento que cria o tempo; por­
que o pensamento também é produto do tempo, de muitos dias pas­
sados: “ Fui aquilo, sou isto e serei aquilo” . Para se ir até à Lua,
necessita-se de tempo; precisa-se de muitos dias, muitos meses para
montar o foguete; e adquirir os conhecimentos necessários para montar
o foguete, também requer tempo. Mas tudo isso é tempo mecânico,
tempo cronométrico. Há uma distância a transpor para se ir à Lua,
e a distância está também compreendida na esfera do tempo, na esfera
das horas, dias, meses. Mas, afora esse tempo, existe o tempo? Por
certo, o pensamento criou o tempo. Há pensamento: preciso tornar-
-me mais inteligente, descobrir como competir, tentar alcançar êxito;
como poderei tornar-me respeitável, subjugar minhas ambições, minha
cólera, minhas brutalidades? E esse constante processo de pensar, que
constitui parte do intelecto mecânico, gera o tempo. Mas, se o pensa­
mento cessa, existe o tempo? Entendeis? Se cessa o pensamento,
existe medo? Temo, por exemplo, a opinião pública — o que digam
a meu respeito, o que pensem sobre mim. O pensar nisso gera medo.
Se não houvesse pensamento, eu pouco me importaria com a opinião
pública e, por conseguinte, não haveria temor. Começo, pois, a desco­
brir que o pensamento gera o medo, que o pensamento resulta do
tempo. E o pensamento, que é o resultado de muitos dias passados,
modificado por todas as experiências do presente, cria o futuro -—•
que é ainda pensamento.
Assim, todo o conteúdo da consciência é processo de pensamento;
portanto, está confinado no tempo. Espero me estejais seguindo.
Ora, pode a mente libertar-se do tempo? Não falo em ser livre
do tempo cronológico — pois isso significaria insanidade, desequilí­
brio mental. Refiro-me ao tempo como meio de realização, de sucesso,
ser algo amanhã, “ vir a ser” ou “ não vir a ser” ; como preenchimento
e frustração, como renúncia a uma coisa e aquisição de outra. E isso
significa que a questão é a seguinte: Pode o pensamento — que é
a totalidade da consciência, tanto a revelada como a não revelada, —
morrer completamente, deixar de existir? Quando isso acontece, com­
preendestes a totalidade da consciência.
Conseguintemente, morrer para o pensamento — para o pensa­
mento que conhece prazeres, que sofre, o pensamento que conheceu a
virtude, que conheceu relações, que se tinha tomado existente e expres­
sado de várias maneira, sempre dentro da esfera do tempo — é morte
total. Não me refiro à morte mecânica, orgânica, à morte corporal.
Poderão os cientistas inventar uma droga que possibilite a existência
orgânica do corpo por cento e cinqüenta ou duzentos anos — para
quê, meu Deus! — mas não é disso que estamos tratando. Estamos
tratando do morrer em que não há medo.
Pode, pois, a mente morrer para tudo o que conheceu, isto é,
o passado, que é morte? É disso que todos temos medo — da morte,
de cessar subitamente, sobre o que não adianta argumentar. Não se
pode argumentar com a morte: ela é o fim. E cessar significa morrer
para o pensamento e, por conseguinte, para o tempo.
Não sei se já experimentastes isso alguma vez. É relativamente
fácil morrer para o sofrimento; todos desejam isso. Mas não é pos­
sível morrer para os prazeres, as coisas que temos acalentado, as lem­
branças que nos dão estímulo, que nos dão um sentimento de bem-
•estar, morrer para tudo o que está contido no tempo? Se investi­
gastes isso, se fizestes isso, vereis que a morte tem significado comple­
tamente diferente da morte resultante do declínio físico.
Mas nós não morremos para todas essas coisas; em vez disso,
de momento a momento nos estamos decompondo, corrompendo, dete­
riorando, fenecendo. Morrer implica descontinuidade do pensamento.
Podemos dizer: “ Isso é muito difícil e, se o fazemos, que valor tem ?”
— Mas não é difícil; só requer enorme energia e capacidade de pene­
tração. Exige uma mente jovem, fresca, destemida e, portanto, livre

186
do tempo. E que valor tem isso? Talvez nenhum valor utilitário;
morrer para o pensamento e, portanto, para o tempo, significa desco­
brir o estado criador, o estado que constantemente destrói e a cada
segundo cria tudo de novo. Nisso não há deterioração, não há fene­
cer. Só o pensamento fenece — o pensamento gerador do centro que
se torna “ eu” e “ não-eu” , só ele conhece declínio.
Assim, morrer para todas as coisas que a mente acumulou, juntou,
experimentou, cessar instantaneamente, isto é, criação na qual não
existe continuidade. O que tem continuidade está sempre em declínio.
Não sei se já notastes esse perene ansiar pela continuidade, que quase
todos temos, o desejo de continuidade de uma dada relação entre
marido e mulher, pai e filho, etc. As relações, quando são contínuas,
se estão decompondo, estão mortas, não têm valia. Mas, quando
morremos para a continuidade, há renovação, frescor.
Pode, pois, a mente experimentar diretamente o que é a morte,
sendo isso deveras extraordinário. Em geral não sabemos o que é
o viver; e, por conseguinte, não conhecemos o morrer. Sabemos o
que é lutar, sabemos o que é inveja, conhecemos as brutalidades da
existência, a vulgaridade de tudo, os rancores, ambições, corrupções,
conflitos. Conhecemos tudo isso; é nossa vida. Mas não conhecemos
a morte, e, por isso, a tememos. Talvez, se soubéssemos o que é viver,
saberíamos o que é morrer. Viver, por certo, é um movimento atem­
poral em que a mente já não está acumulando. No momento em que
acumulamos, entramos num estado de decadência. Porque, seia uma
experiência importante, seja uma experiência insignificante, em torno
dela construímos a muralha da segurança.
Assim, saber o que é viver significa morrer a cada minuto para
as coisas que adquirimos, os prazeres interiores, as dores íntimas -—
não no progredir do tempo, porém morer para cada coisa que surge.
Vereis então, ao alcançardes esse ponto, que a morte é como a vida.
O viver não está então separado do morrer, e isso proporciona um
extraordinário sentimento de beleza. Esta beleza transcende o
pensamento e o sentimento; e ela não pode ser usada como um com­
posto, para pintar um quadro, escrever um poema ou tocar um instru­
mento. Essas coisas são irrelevantes. Há uma beleza que desponta
quando a vida e a morte são a mesma coisa, quando viver e morrer são
termos sinônimos; porque então a vida e a morte tornam a mente
rica, total, completa.

187
Pergunta : Podemos fazer perguntas acerca deste ponto?
K rishnamurti: Alguns parecem tão dispostos a fazer perguntas, que
fico em dúvida sobre se estiveram escutando o orador. Estivestes
escutando, ou estivestes ocupado, formulando vossas perguntas? Com­
preendeis? Já que estáveis formulando as perguntas, não estáveis
escutando. Não o digo por indelicadeza, crede-o; estou apenas assina­
lando o fato. Se estivésseis escutando esta palestra, vossas perguntas
já estariam respondidas.

Pergunta : Na investigação do medo, não há perigo de desordem


mental?
K rishnamurti: Pode haver maior perigo de desordem mental do que
na mentalidade com que estamos vivendo hoje em dia? Não estamos
todos — se me perdoais assinalá-lo — um tanto ou quanto mental­
mente desordenados? Não quero ser indelicado; não é minha inten­
ção ou idéia julgar-vos. Mas existe essa grande procupação sobre o
perigo de aumento das doenças mentais. Sabeis o que nos está pondo
doentes? Não é a investigação do temor. As guerras, o comunismo,
o fanatismo religioso, a ambição, a competição, o esnobismo — essas
coisas são sintomas de uma pessoa mentalmente doente. Por certo,
a investigação do medo e o libertar a mente do medo é a mais sã
das coisas. Essa pergunta indica — não é exato? — que consideramos
a atual sociedade uma coisa maravilhosa. Os que têm um substancial
depósito no banco e estão bem de vida devem achar que está tudo
certo, e não desejam perturbações. Mas a vida é bem perturbadora,
sobremodo destrutiva; e é disso que temos medo. Não estamos inte­
ressados no viver, no ser livre de medo; mas desejamos encontrar um
cantinho onde ficar em segurança e conforto, a decompor-nos sossega­
damente. Senhores, isto não é retórica; é nosso desejo interior, nosso
desejo secreto. Buscamos essa segurança em todas as relações. Quanto
ciúme e quanta inveja existem em nossas relações! Quanto ódio,
quanta esposa abandona o marido ou o marido “ foge com outra” !
Como buscamos o beneplácito da sociedade e as bênçãos da igreja!
Senhor, são todas essas coisas que ocasionam a deterioração, a des­
truição da sanidade mental.
P ergunta : Estas coisas são inteiramente novas para nós e acho
que temos de “ continuar .com elas” .

188
K rishnamurti: Senhor, não podeis “ continuar com elas” . Se o
fazeis, elas se tornam meras idéias, e as idéias não podem criar nada
novo. Estamos falando sobre a destruição total das coisas que a mente
construiu interiormente. Não se pode “ continuar” com a destruição;
se o fizerdes, isso será, meramente, construção, levantamento de uma
nova estrutura contra aquilo que deve ser destruído.
Nós necessitamos de uma mente nova, uma mente jovem, um
novo coração, uma mente purificada, juvenil, decidida; e para se ter
essa mente, tem de haver destruição; tem de haver criação sempre
nova.

10 de agosto de 1961.

189
SAANEN
Mentalidade R eligiosa

E stá é a última palestra desta concentração. Du­


rante estas palestras, estivemos tratando de muitos assuntos e penso
que deveríamos considerar nesta manhã o que é a mente religiosa.
Desejo examinar esta questão com certa profundeza, porque creio que
só essa mente pode resolver os nossos problemas, não só os problemas
políticos e econômicos, mas também os problemas mais fundamentais
da existência humana. Antes de começarmos, acho oportuno repetir
o qué já dissemos noutra ocasião, ou seja, que a mente séria é a mente
que está decidida a penetrar até à raiz das coisas, para descobrir o
que, nelas, há de verdadeiro e de falso; a mente que não se detém
a meio caminho e não se deixa distrair por considerações de outra
ordem. Espero que nesta concentração tenha ficado suficientemente
demonstrado existirem pelo menos uns poucos que são ardorosos e
capazes disso.
Estamos todos bem familiarizados com a presente situação mun­
dial, sendo desnecessário nos falem dos embustes, da corrupção, das
desigualdades sociais e econômicas, do perigo de guerras, da perene
ameaça do Oriente contra o Ocidente, etc. Para se compreender toda
esta confusão e produzir a claridade, deve haver uma radical transfor­
mação da mente em si, e não apenas uma reforma de remendos ou
mero ajustamento. Para abrirmos caminho através dessa confusão
existente não apenas no exterior, mas também dentro em nós; para
enfrentarmos eficazmente as crescentes tensões e exigências, neces­
sitamos de uma revolução radical na própria psique, de uma menta­
lidade inteiramente nova.

m
Para mim, revolução é sinônimo de religião. Com a palavra
“ revolução” não me refiro a imediatas reformas econômicas ou sociais,
porém a uma revolução na própria consciência. Todas as outras for­
mas de revolução, seja comunista, seja capitalista, seja qual for, são
puramente reacionárias. Uma revolução na mente — que significa
total destruição do que foi, para que a mente se torne capaz de ver
sem deformação e sem ilusão o que é verdadeiro — essa é a ação
própria da religião. Penso que a mente real, a verdadeira mente reli­
giosa, existe, pode existir. E ela pode ser descoberta por quem nisso
penetrou com profundeza. A mente que deítou abaixo, que destruiu
todas as barreiras, todas as mentiras que lhe impôs a sociedade, a reli­
gião organizada, o dogma, a crença, e passou além para descobrir o
verdadeiro, essa é a verdadeira mente religiosa.
Consideremos, pois, em primeiro lugar, a questão da experiência.
Nosso intelecto resulta de experiência secular; o intelecto é o depósito
da memória. Sem essa memória, sem essa acumulação de experiência
e conhecimento, ser-nos-ia completamente impossível funcionar como
entes humanos. A experiência, a memória, são obviamente necessárias
num certo nível. Mas, por igual me parece óbvio que toda experiência
baseada no condicionamento pelo saber, pela memória, é necessaria­
mente limitada. Por conseguinte, a experiência não é fator de liber­
tação. Não sei se já pensastes nisso.
Toda experiência é condicionada pelas precedentes. Portanto,
não há experiência nova, porque cada experiência traz sempre o colo­
rido do passado. No próprio processo de experimentar existe a defor­
mação proveniente do passado, sendo o passado: conhecimento, memó­
ria, várias experiências acumuladas, não só as individuais, mas também
as da raça, da coletividade.- Ora, é possível rejeitarmos toda essa expe­
riência?
Não sei se já considerastes a questão da rejeição, o que significa
rejeitar uma coisa. Significa capacidade para rejeitar a autoridade do
conhecimento, rejeitar a autoridade da experiência, rejeitar a autori­
dade da memória, rejeitar sacerdotes, igrejas, tudo que foi imposto à
psique. Para a maioria de nós, só há duas maneiras de reieitar — por
meio do saber ou por meio de reação. Rejeitais a autoridade do sacer­
dote, da igreja, da palavra escrita, do livro, ou porque estudastes,
investigastes, acumulastes outros conhecimentos, ou porque não gostais
da coisa e reagis contra ela. Mas a verdadeira rejeição significa rejeitar

191
sem saber o que acontecerá depois, sem esperanças para o futuro. Di­
zer: “ Não sei o que é verdadeiro, mas isto é falso” , isso, decerto,
representa a única rejeição verdadeira, porquanto não provém do
conhecimento calculista nem de reação. Afinal de contas, se sabeis
de antemão o resultado de vossa rejeição, trata-se então de mera troca,
mera transação; por conseqüência, isso não é de modo nenhum a
verdadeira rejeição.
Acho necessário compreender isso um pouco, examiná-lo com
certa profundeza, porquanto desejo averiguar, por meio de rejeição,
o que é a verdadeira mente religiosa. Tenho para mim que por meio
da rejeição se pode descobrir o que é verdadeiro. Não se pode desco­
brir o que é verdadeiro por meio de asserção. É preciso limpar comple­
tamente a lousa de tudo o que é conhecido, antes que se possa desco­
brir o verdadeiro.
Vamos, pois, averiguar o que é a mente religiosa, por meio da
rejeição, isto é, por meio da negação, por meio do pensar negativo.
E, evidentemente, não há investigação negativa quando a rejeição se
baseia no conhecimento, na reação. Espero esteja bem claro isso.
Se rejeito a autoridade do sacerdote, do livro ou da tradição, porque
não gosto dela, isso é mera reação, porquanto substituo por outra
coisa aquilo que rejeitei; e se rejeito porque possuo suficientes conhe­
cimentos, fatos, informações, etc., nesse caso o meu saber se torna o
meu refúgio. Mas existe uma rejeição que não é produto do conhe­
cimento, porém proveniente da observação, do perceber uma coisa
como é, o fato que ela é; e essa é a rejeição verdadeira, porquanto
deixa a mente purificada de todas as suposições, ilusões, autoridades,
desejos.
É possível, pois, rejeitar a autoridade? Não me refiro à autori­
dade do policial, da lei do país, etc.; rejeitá-la seria estúpido, infantil,
e nos levaria à prisão. Refiro-me, sim, à rejeição da autoridade imposta
pela sociedade à psique, à consciência, muito profundamente; rejeitar
a autoridade de toda experiência, todo conhecimento, de modo que a
mente fique num estado de não saber o que acontecerá, sabendo ape­
nas o que não é verdadeiro.
Se penetrardes até aí, isso vos dará um extraordinário sentimento
de integração, de não vos estardes debatendo entre desejos contradi­
tórios, em conflito. Ver o que é verdadeiro, o que é falso, ou ver

192
o verdadeiro no falso, isso vos dá um sentimento de percepção real,
vos dá clareza. Está a mente então numa posição — uma vez que
destruiu todas as seguranças, temores, ambições, vaidades, visões, pro­
pósitos, tudo — num estado em que se acha completamente só, não
influenciada.
Por certo, para encontrar a realidade, encontrar Deus — ou o
nome que preferirdes — a mente deve estar só, livre de influências,
porque ela é então uma mente pura; e uma mente pura pode pros­
seguir. Ao ocorrer a destruição completa de todas as coisas que a
mente criou em si mesma, como segurança, como esperança e como
resistência contra a esperança — que é o desespero — etc., surge
então, seguramente, um estado de destemor no qual a morte não existe.
A mente que está só, está vivendo integralmente e nesse viver há
um morrer a cada minuto; por conseguinte, para essa mente não existe
a morte. Isso é realmente extraordinário para quem penetrou nesse
estado; descobris, então, por vós mesmo, que a morte não existe.
Existe, tão-só, aquele estado de austeridade pura, da mente que
está só.
Essa solidão não é isolamento; não é fuga para uma torre de
marfim; não é abandono. Tudo isso ficou para trás, foi esquecido,
dissipado, destruído. Essa mente, por conseguinte, sabe o que é des­
truição; e precisamos conhecer a destruição, senão não poderemos achar
nada novo. E que medo temos de destruir tudo o que acumulamos!
Há um ditado sânscrito: “ As idéias são os filhos das mulheres
estéreis” . E parece que a maioria de nós gosta de se entreter com
idéias. Podeis estar considerando estas nossas palestras como uma
troca de idéias, “ processo” de aceitar idéias novas e abandonar idéias
velhas, ou “ processo” de rejeitar idéias novas e conservar as velhas.
Não nos estamos ocupando com idéias, absolutamente. Estamo-nos
ocupando com fatos. E quando estamos interessados nos fatos, não
há ajustamento; ou aceitamos o fato, ou o rejeitamos. Podeis dizer:
“ Não gosto destas idéias, prefiro as velhas, e continuarei a viver no
meu próprio padrão” — ou podeis aceitar o fato. Não podeis tran­
sigir, não podeis ajustar. Destruição não é ajustamento. Ajustar,
dizer: “ Devo ser menos ambicioso, não devo ser tão invejoso” — isso
não é destruição. E devemos, decerto, perceber a verdade de que a
ambição, a inveja, é feia, estúpida, e que é necessário destruir todos
esses absurdos. O amor nunca ajusta. Só o desejo, o medo, a espe-

193
rança, ajustam. Eis por que o amor é uma coisa destrutiva, pois se
recusa a adaptar-se, a ajustar-se a qualquer padrão.
Começamos, pois, a descobrir que, havendo destruição de toda
autoridade que o homem criou para si mesmo, no desejo de se pôr
em segurança interiormente, há criação. Destruição é criação.
Em seguida, se abandonastes as idéias, e não vos estais ajustando
a vosso próprio padrão de existência ou a um novo padrão que, pen­
sais, este orador está criando — se alcançastes esse ponto, descobrireis
que o intelecto pode e deve funcionar unicamente em relação às coisas
exteriores, corresponder tão-só às exigências exteriores; por conse-
qüência, o intelecto se torna completamente tranqüilo. Isso significa
que a autoridade de suas experiências terminou e, portanto, é incapaz
de criar ilusões. E descobrir o que é verdadeiro, isso é essencial, para
que termine o poder de criar a ilusão, em qualquer forma que seja.
E o poder de criar a ilusão é o poder do desejo, do desejar ser isto
e não desejar ser aquilo.
O intelecto, pois, deve funcionar neste mundo com raciocínio,
com sanidade, com clareza; mas, interiormente, ele deve estar comple­
tamente quieto.
Dizem os biologistas que o cérebro levou milhões de anos para
evolver até o seu estado atual, e levará outros milhões de anos para
evolver mais. Mas a mente religiosa não depende do tempo para
sua evolução. Eu gostaria que compreendêsseis isto. O que desejo
transmitir é que quando o cérebro, o intelecto — que deve funcionar
com suas reações à existência externa — se torna quieto interiormente,
não existe mais o mecanismo de acumulação de experiência e conhe­
cimento e, por conseguinte, o intelecto está completamente quieto,
porém plenamente vivo e pode então saltar por sobre milhões de anos.
Vemos, pois, que para a mente religiosa o tempo não existe.
Só existe o tempo quando um estado de continuidade passa para outro
estado de continuidade e de realização. Quando a mente religiosa
destruiu as autoridades do passado, as tradições, os valores que lhe
foram impostos, é ela então capaz de existir sem o tempo. Está então
plenamente desenvolvida. Porque, ao negarmos o tempo, negamos
todo o desenvolvimento através do tempo e do espaço. Notai, por
favor, que isto não é uma idéia; não é uma coisa para com ela nos
entretermos. Se passastes por isso, sabeis o que é o amor, achai-vos

194
naquele estado; mas, se não passastes por isso, podeis então apossar-
vos destas idéias e entreter-vos com elas.
Vedes, pois, que destruição é criação; e na criação não existe o
tempo. A criação é aquele estado em que o intelecto, tendo destruído
todo o passado, está completamente quieto e, portanto, no estado em
que não existe tempo nem espaço, para crescer, expressar-se, “ vir a
ser’\ E esse estado de criação não é a criação de uns poucos indi­
víduos prendados — pintores, músicos, escritores, arquitetos. Só a
mente religiosa pode encontrar-se num estado de criação. E a mente
religiosa não é aquela que pertence a certa igreja, crença, dogma —
essas coisas só podem condicionar a mente. Ir à igreja todas as ma­
nhãs e render culto a este ou àquele não vos torna uma pessoa reli­
giosa, embora a sociedade respeitável possa considerar-vos como tal.
O que faz a pessoa religiosa é a destruição total do conhecido.
Nessa criação há um sentimento de beleza; uma beleza não cons­
truída pelo homem; uma beleza que transcende o pensamento e o
sentimento. Afinal, o pensamento e o sentimento são puras reações;
e a beleza não é roação. Possui a mente religiosa aquela beleza —
que não é a mera apreciação das montanhas graciosas, da torrente
impetuosa, porém um sentimento bem diferente da beleza — e de
par com ela está o amor. Não se me afigura possível separar a beleza
do amor. Como sabeis, para a maioria de nós o amor é coisa dolo­
rosa, porque é sempre acompanhado do ciúme, do ódio e dos instintos
de posse. Mas esse amor de que falamos é um estado em que se acha
presente a chama sem fumo.
A mente religiosa, pois, conhece essa destruição completa, total,
e sabe o que significa achar-se num estado de criação, estado que não
se pode comunicar. E nela existe o sentimento da beleza e do amor,
que são inseparáveis. O amor não é divisível em amor divino e amor
físico. É Amor. E não é necessário dizer que ele se acompanha,
naturalmente, de um sentimento de paixão. Não se pode ir muito
longe sem paixão — paixão, que é intensidade. Não a intensidade do
desejar alterar algo, fazer algo, a intensidade que tem causa, de modo
que se se remove a causa a intensidade desaparece. Não é um estado
de entusiasmo. A beleza só pode existir quando há a paixão, que é
austera; e a mente religiosa, encontrando-se nesse estado, tem uma
força de qualidade peculiar.

195
Sabeis que, para nós, força é o resultado da vontade, de muitos
desejos entrelaçados que formam a corda da vontade. E essa vontade,
para a maioria de nós, significa resistência. O processo de resistir a
uma coisa ou de buscar um resultado desenvolve a vontade e essa von­
tade é geralmente chamada força. Mas a força a que nos referimos
nada tem em comum com a vontade. É força sem causa. Não pode
ser utilizada, mas sem ela nada pode existir.
Assim, quando uma pessoa penetrou profundamente no descobri­
mento de si mesma, existe a mente religiosa; e esta não pertence a um
dado indivíduo. Ela é a mente, a mente religiosa, separada de todas as
humanas lutas, exigências, ânsias e compulsões individuais, etc. Esti­
vemos apenas descrevendo a totalidade da mente, que poderá parecer
dividida pelo emprego de diferentes palavras; mas ela é uma coisa
total, na qual tudo se contém. Por conseguinte, essa mente religiosa
pode receber aquilo que não é mensurável pelo intelecto. Essa coisa
é indenominável; nenhum templo, nenhum sacerdote, nenhuma igreja,
nenhum dogma pode conter. Rejeitar tudo isso e viver naquele estado,
essa é que é a verdadeira mentalidade religiosa.
P ergunta : Pode a mente religiosa ser adquirida pela meditação?
K rishnamurti: A primeira coisa que se deve compreender é que nin­
guém pode adquiri-la, ninguém pode obtê-la, e que ela não pode ser
produzida pela meditação. Nem virtude, nem sacrifício, nem medi­
tação, nada sobre a Terra pode comprá-la. O senso de alcançar, reali­
zar, adquirir, comprar, deve cessar totaímente, para que ela seja. Não
se pode fazer uso da meditação. A coisa de que estive falando é a
meditação. Descobrir a cada momento da vida diária o que é verda­
deiro e o que é falso, isso é meditação. A meditação não é uma certa
coisa para a qual fugimos, uma certa coisa em que se nos dão visões
e toda sorte de sensações; isso é auto-hipnose, infantilidade. Mas
observar cada momento do dia, ver como o vosso pensamento está
funcionando, ver o mecanismo de defesa em ação, ver os temores,
ambições, a avidez, a inveja — observar tudo isso, investigá-lo a
todas as horas, isso é meditação, ou faz parte dela. Sém se lançar a
base adequada, não há meditação, e o lançamento da base adequada
consiste em ser livre de ambição, inveja, avidez e todas as coisas que
criamos em defesa própria. Não precisais procurar ninguém para
dizer-vos o que é a meditação ou para receberdes um método. Posso
descobrir com muita simplicidade, pela observação de mim mesmo,

196
quanto sou ou não sou ambicioso. Ninguém mo precisa dizer; eu o
sei. Extirpar a raiz, o tronco, o fruto da ambição, vê-la e destruí-la
totalmente — eis o que é absolutamente necessário. Vede, queremos
ir muito longe, sem darmos o primeiro passo. E vereis, se derdes o
primeiro passo, que ele é também o último passo — não há outro
passo.
Pergunta : É verdade que não podemos servir-nos da razão para
descobrir o que é verdadeiro?
K rishnamurti: Senhor, que se entende por razão? A razão é pen­
samento organizado, como a lógica são idéias organizadas, não é exato?
E o pensamento, por mais inteligente, por mais vasto, por mais eru­
dito que seja, é limitado. Todo pensamento é limitado. Podeis obser­
vá-lo vós mesmo; isso não é novidade. O pensamento nunca pode
ser livre. O pensamento é reação, reação da memória; é “ processo”
mecânico. Ele poderá ser razoável, poderá ser são, poderá ser lógico,
mas é limitado. É como os computadores eletrônicos. E o pensa­
mento nunca pode descobrir o que é novo. O intelecto adquiriu,
acumulou, através de séculos, experiências, reações, lembranças; e
quando essa coisa pensa, está condicionada e, portanto, não pode des­
cobrir o novo. Quando, porém, esse intelecto compreendeu todo o
processo da razão, da lógica, do investigar, do pensar — não rejeitou,
mas compreendeu — então ele se torna quieto. E, então, esse estado
de quietude pode descobrir o que é verdadeiro.
Senhor, a razão vos diz que deveis ter líderes. Tendes tido líde­
res políticos ou religiosos. Eles não vos conduziram a parte alguma,
a não ser a mais sofrimento, mais guerras, maior destruição e corrupção.
P ergunta : Vê-se o absurdo de condenar as coisas, interior e
exteriormente; mas continuamos a condenar. Assim sendo,
que se deve fazer?
K rishnamurti: Quando dizemos: “ Vejo que não devo condenar” ,
que entendemos pela palavra “ vejo” ? Tende a bondade de acompa­
nhar-me com vagar. Estou examinando a palavra “ ver” . Que enten­
demos por essa palavra? Como vemos uma coisa? Vemos o fato
através de palavras? Quando digo: “ Vejo que a condenação é um
absurdo” , vejo-o realmente? Ou estou “ olhando” para as palavras
“ Não devo condenar” ? Não vejo o fato verdadeiro de que a conde­
nação não conduz a parte alguma, vejo-o? Não sei se me estou fazendo

197
claro. A palavra “ porta” não é a porta, é? A palavra não é a coisa;
e se confundimos a coisa com a palavra, nesse caso não a estamos
vendo. Mas, se puderdes deitar fora a palavra, podereis então olhar
para a própria coisa. Se vejo o verdadeiro significado do catolicismo,
do hinduísmo, do comunismo — se vejo a coisa, não a palavra —
então a compreendi e o caso está encerrado. Mas, se me apego à
palavra, esta se torna então um empecilho ao ver.
Assim, para ver, a mente deve estar livre da palavra, mas deve
ver o fato. Deve ver o fato de que toda espécie de condenação impede
a mente de olhar uma coisa realmente. Se simplesmente condeno a
ambição, impeço-me de ver a anatomia, a estrutura da ambição. Se
a mente deseja compreender a ambição, deve cessar a condenação;
deve haver o percebimento do fato, sem resistência a ele, sem rejeição
dele. O ver o fato tem, então, sua ação própria. Se percebo o fato
— a estrutura da ambição — o próprio fato revela então à mente o
absurdo, a insensibilidade, a natureza infinitamente destrutiva da ambi­
ção; e a ambição desaparece; nada preciso fazer nesse sentido.
E se, interiormente, percebo o inteiro significado da autoridade,
se a estudo, observo, examino, nunca rejeitando, nunca aceitando,
porém vendo, cai então por si a autoridade.

13 de agosto de 1961.

198
PARIS I

O D escobrimento do V erdadeiro

jEL sempre difícil comunicar-nos uns com os outros


sobre assuntos sérios, e mais difícil ainda o será nas presentes reuniões,
pois vós falais o francês e eu, infelizmente, terei de falar-vos em inglês.
Mas espero que cheguemos a entender-nos com suficiente clareza, se
não permanecermos no nível puramente verbal. As palavras têm o
fim de comunicar, transmitir algo e, em si mesmas, não são signifi­
cativas. Mas nós, em maioria, parece-me, permanecemos no nível ver­
bal e, por isso, a comunicação se torna mais difícil, porque as coisas
a respeito das quais pretendemos falar se acham também no nível
intelectual e emocional. Desejamos entender-nos totalmente; e, por­
tanto, devemos considerar nossos problemas de maneira total — ver­
bal, emocional e íntelectualmente. Façamos juntos nossa jornada,
caminhemos juntos, considerando nossos problemas totalmente, embora
isso seja extremamente difícil.
Em primeiro lugar, este orador não vos fala como hindu nem
como representante do Oriente — embora tenha nascido num certo
lugar e seja portador de um certo passaporte. Nossos problemas são
problemas humanos e, como tais, não têm fronteiras; não são nem
hindus, nem franceses, nem russos, nem americanos. Estamos ten­
tando compreender o problema humano em sua inteireza — e estou
empregando a palavra “ compreender” num sentido muito preciso. O
mero emprego de palavras não produz compreensão, e tampouco a
compreensão é questão de concordar ou discordar. Se desejamos com­
preender o que nos é dito, devemos considerá-lo sem preconceito, não
duvidando nem aceitando, porém escutando reaímente.

199
Ora, quando escutamos — e isso é uma verdadeira arte — é
necessária uma certa tranquilidade do intelecto. Como acontece com
a maioria de nós, o intelecto está incessantemente ativo, sempre a
reagir ao desafio de uma palavra, idéia ou imagem; e esse constante
processo de reação e desafio não produz compreensão. O que produz
compreensão é estar com o intelecto muito tranqüilo. O intelecto,
afinal, é o instrumento que pensa, que reage; é o reservatório da me­
mória, resultado do tempo e da experiência; e a compreensão é impos­
sível se esse instrumento está sempre agitado, reagindo, comparando
o que se diz com o que antes acumulou. Escutar, se posso dizê-lo,
não é processo de concordar, de condenar, interpretar, mas, sim, de
olhar cada fato totalmente, globalmente. Para isso, o intelecto deve
estar quieto, porém muito vivo, capaz de seguir (o que se diz) correta
e racionalmente, não sentimental ou emocíonalmente. Só então é
possível considerar os problemas da existência humana como um
processo total e, não, fragmentariamente.
Como quase todos sabemos, os políticos de todo o mundo, na
atualidade, são infelizmente os senhores de nossos destinos. Nossa
própria vida, talvez, depende de uns poucos políticos — franceses,
ingleses, russos, americanos ou hindus; e isto é muito triste. Mas é
um fato. E ao político só interessam as realidades imediatas — seu
país, sua posição, seu programa de ação, seus ideais nacionalistas. E,
por conseguinte, existem os problemas imediatos da guerra, do con­
flito entre o Oriente e o Ocidente, da luta do comunismo contra o
capitalismo, da oposição do socialismo a qualquer outra forma de
autocracia; e, assim, o problema imediato é um problema de guerra
e de paz, e de como manejarem as nossas vidas de modo que não
sejamos esmagados por esse descomunal processo histórico.
Mas parece-me que seria muito lamentável nos preocuparmos
unicamente com a realidade imediata — a posição da França na Argé­
lia, o que está para suceder em Berlim, se irá haver guerra e como
sobreviveremos a ela. São estes os problemas que nos estão sendo
impostos pela imprensa e pela propaganda; mas acho muito mais
importante considerarmos o que irá suceder ao intelecto humano, à
mente humana. Se cuidamos unicamente dos acontecimentos atuais e
não do desenvolvimento total da mente e do intelecto humanos, nos­
sos problemas só haverão de crescer e multiplicar-se.

200
Pode-se ver — não achais? — que nossa mente, nosso intelecto
se tornou mecânico-. Somos influenciados em todos os sentidos. Tudo
o que lemos deixa-nos sua impressão e toda propaganda sua marca;
o pensamento é sempre convencional e, assim, o intelecto e a mente
se tornaram mecânicos, tal qual uma máquina. Exercemos mecanica­
mente nossas ocupações, mecânicas são nossas mútuas relações, e
nossos valores meramente tradicionais. Os computadores eletrônicos
são muito semelhantes à mente humana, só que nós somos um pouco
mais engenhosos — pois somos seus criadores; mas eles funcionam
exatamente como nós funcionamos, por meio de reação, repetição,
memória. E parece que só desejamos saber como fazer esse meca­
nismo radicado no hábito e na tradição funcionar mais suavemente,
sem perturbações; e isso, talvez, virá a ser a extinção da vida humana.
Tudo isso implica — não achais? — não, liberdade, porém busca de
segurança. Os ricos exigem segurança; e os pobres da Ásia, que mal
conseguem uma refeição diária, esses também desejam segurança. E
a reação da mente humana, diante de tanta desdita, é puramente mecâ­
nica, “ habitual” , indiferente. Por conseguinte, o problema urgente é
este: Como libertar o intelecto e a mente? Porque, se não há liber­
dade, não pode haver ação criadora. Temos invenções mecânicas,
viagens à Lua, descobrimento de novos meios de locomoção, etc.; mas
isso não é criação, é invenção. Só há criação quando há liberdade. Á
liberdade não é uma simples palavra; a palavra é bem diferente do
estado real. Tampouco a liberdade não pode ser convertida em ideal,
porque todo ideal não passa de simples adiamento. Assim, o que
desejo examinar durante estas reuniões é se há possibilidade de liber­
tar a mente e o intelecto. Dizer apenas que é ou que não é possível,
é ocioso; mas o que podemos fazer é descobrir, nós mesmos, direta­
mente, pelo experimentar, pelo autoconhecimento, pela investigação,
pela busca intensa. E isso exige capacidade de raciocinar, de sentir,
para quebrarmos a tradição e destroçarmos todas as muralhas que
erguemos para nossa segurança. Se não estais dispostos a isso, da
primeira à última destas nossas palestras, penso então que estais per­
dendo tempo em vir aqui. Os problemas que se nos apresentam são
muito graves; são os problemas do medo, da morte, da ambição, da
autoridade, da meditação, etc. Todo problema deve ser atendido realis­
ticamente — não emocional, intelectual ou sentimentalmente. E isso
requer um pensar preciso, uma grande energia, a fim de podermos

201
levar ínteiramente a cabo cada investigação e descobrirmos a essência
das coisas. Isso me parece indispensável.
Se observamos, não apenas os fatos mundanos externos, mas tam­
bém o que está sucedendo interiormente, em nós mesmos, descobrimos
— não é verdade? — que somos escravos de certas idéias, escra­
vos da autoridade. Há séculos que somos moldados pela propaganda
para sermos cristãos, budistas, comunistas ou o que mais seja. Mas,
certamente, para descobrirmos a verdade, não devemos pertencer a
religião alguma. É muito difícil não nos deixarmos comprometer com
um dado padrão de ação ou de pensamento. Não sei se já alguma vez
tentastes não pertencer a coisa alguma, rejeitar completamente a tradi­
cional aceitação de Deus — o que não significa tornar-se ateísta, coisa
tão estúpida quanto crer, porém rejeitar a influência da Igreja, com
toda a sua bimilenar propaganda.
Tampouco é fácil negardes que sois francês, hindu, russo ou ame­
ricano; isso talvez seja até mais difícil. É relativamente fácil rejeitar­
mos uma coisa quando sabemos aonde nos levará a rejeição; mas isso
é meramente trocar de prisão. Mas se rejeitais todas as prisões, e
não sabeis aonde a rejeição vos levará, então vos vedes só. E pare­
ce-me absolutamente essencial que nos vejamos completamente sós,
livres de influências; porque só então seremos capazes de descobrir
'por nós mesmos o que é verdadeiro — não só neste mundo em que
decorre nossa existência diária, mas também além dos valores mun­
danos, além do pensamento e do sentimento, além de todas as medidas.
Só então saberemos se existe um realidade transcendente ao espaço e
ao tempo; e este descobrimento é criação. Mas, para se descobrir o
que é verdadeiro, necessita-se desse sentimento de solidão, de liber­
dade. Não podemos viajar com rapidez se estamos ligados a alguma
coisa — nossa pátria, nossas tradições, nossas habituais tendências de
pensamento. Isso é o mesmo que estar preso a uma estaca.
Assim, se desejais descobrir o que é verdadeiro, deveis quebrar
todos os elos que vos prendem, para investigardes não só o exterior,
vossas relações com coisas e pessoas, mas também o interior, i.e.,
conhecer a vós mesmo —• tanto superficialmente, na consciência des­
perta, como no inconsciente, nos ocultos recessos do intelecto e da
mente. Requer isso observação constante; e se observardes dessa
maneira, vereis que não existe uma separação real entre o exterior e
o interior; porque o pensamento, como a maré, tanto flui para fora

202
como para dentro. Tudo constitui um. só processo de autoconheci-
mento. Não podeis rejeitar o exterior, porquanto não sois uma enti­
dade separada do mundo. O problema do mundo vos concerne, e o
“ exterior” e o “ interior” são as duas faces da mesma moeda. Os
eremitas, os monges, e os chamados religiosos que renunciam ao mundo
estão apenas, com todas as suas disciplinas e superstições, fugindo
para suas próprias ilusões.
Pode-se ver que exteriormente não somos livres. Em nossos
empregos, nossas religiões, nossas pátrias, em nossas relações com
esposa, marido, filhos, em nossas idéias, crenças e atividades políticas,
não somos livres, Interiormente, também, não somos livres, porque
não conhecemos nossos “ motivos” , nossos impulsos, compulsões, exi­
gências inconscientes. Assim, não há liberdade, nem interior nem
exteriormente, e este é que é o fato. Mas, em primeiro lugar, cum­
pre-nos perceber esse fato, pois em geral recusamo-nos a percebê-lo;
sofismamos a respeito dele, encobrimo-lo com palavras, com idéias, etc.
O fato é que, tanto na esfera psicológica, como na exterior, desejamos
segurança. Exteriormente, desejamos estar seguros em nosso emprego,
nossa posição, nosso prestígio, nossas relações; e quando um reduto
é destruído, passamos a outro.
Assim, reconhecendo as condições extremamente complexas em
que o intelecto e a mente funcionam, que possibilidade temos de rom­
per essas muralhas? Espero estejais vendo o impasse a que chegamos.
A questão é esta: Tratamos alguma vez de enfrentar realmente o fato?
O fato é que o intelecto e a mente buscam a segurança numa dada
forma, e quando existe essa ânsia de segurança, existe medo. Nunca
encaramos realmente esse fato; ou dizemos que ele é inevitável ou,
ainda, perguntamos como nos libertarmos do temor. Já se pudermos
encarar o fato, sem tentar fugir-lhe, interpretá-lo ou transformá-lo,
então o fato atua por si mesmo.
Não sei se, psicologicamente, chegastes até este ponto, experi­
mentastes até este ponto, pois me parece que a maioria de nós não
percebe o quanto a nossa mente, o nosso intelecto, se mecanizou;
e não perguntamos a nós mesmos se é possível encarar esse fato com­
pletamente, com intensidade. Desejo fique bem claro que não estou
procurando convencer-vos de coisa alguma; isso seria muito infantil.
Não estamos aqui fazendo propaganda — deixemos isso aos políticos,
às Igrejas e a todos aqueles que “ oferecem” coisas. Não estamos a

203
oferecer-vos novas idéias, porquanto as idéias nada significam; pode­
mos entreter-nos com elas intelectualmente, porém elas não nos levam
a parte alguma. O que é significativo, o que tem vitalidade, é enfren­
tar um fato; e o fato é que a mente, todo o nosso ser está sendo meca­
nizado há séculos. Todo pensamento é mecânico; e para compreen­
dermos esse fato e transcendê-lo, precisamos primeiramente vê-lo.
Pois bem; como podemos entrar em contato, emocionalmente,
com um fato? Intelectualmente eu posso dizer que tenho o hábito
de beber e que é muito nocivo beber — física, emocional e psicolo­
gicamente — e, no entanto, continuar a beber. Mas entrar em contato
com o fato emocionalmente é coisa bem diferente. Pois o contato
emocional com o fato tem ação própria. Sabeis como — quando guiais
um carro por muito tempo — começais a cochilar e, então, dizeis:
“ Preciso despertar” — mas continuais a guiar. Depois, ao passardes
perígosamente próximo a outro carro, dá-se então, repentinamente, um
contato emocional direto e despertais imediatamente, e levais o carro
para a margem da estrada, a fim de descansardes um pouco. Já alguma
vez vistes um fato repentinamente, da mesma maneira, entrando em
contato com ele totalmente, completamente? Já apreciastes realmente
uma flor? Duvido, porque nunca olhamos realmente para uma flor;
o que fazemos é classificá-la imediatamente, dar-lhe um nome, chamá-la
“ rosa” , cheirá-'la, dizer “ como é bela!” e pô-la de lado, como coisa já
conhecida. A denominação, a classificação, a opinião, o julgamento,
a escolha — tudo isso vos impede de efetivamente olhá-la.
Da mesma maneira, para entrarmos emocionalmente em contato
com um fato não deve haver denominação, nem classificação, nem
julgamento; todo pensar e toda reação devem cessar. Só então podeis
olhar. Experimentai, de vez em quando, olhar para uma flor, uma
criança, uma estrela, uma árvore ou o que quer que seja, livre de
todo o processo do pensar, pois, se o fizerdes, vereis muito mais.
Não haverá então nenhuma cortina de palavras entre vós e o fato e,
portanto, estareis em contato direto com ele. H á séculos que somos
educados para avaliar, condenar, aprovar, classificar; e tornar-se côns­
cio de todo esse processo é começar a ver o fato.
Atualmente, a totalidade de nossa vida está confinada no tempo
e no espaço, e os problemas imediatos nos absorvem. Nossos empre­
gos, nossas relações, os problemas do ciúme, do medo, da morte,
da velhice, etc. tudo isso nos enche a vida. A mente, o intelecto,

204
é capaz de libertar-se de todos esses problemas? Digo que sim, pois
já o experimentei, já desci até’ suas últimas profundezas e deles me
libertei. Mas de modo nenhum deveis aceitar o que vos diz este ora­
dor, porquanto a simples aceitação nenhum valor tem. A única coisa
valiosa é empreenderdes também a jornada; mas, para a empreen­
derdes, necessitais de liberdade desde o começo, necessitais do impulso
para descobrir — não, aceitar, não, duvidar, mas, sim, descobrir. Ve­
reis, então, ao aprofundardes a questão, que a mente pode ser livre;
e só essa mente livre pode descobrir o que é verdadeiro.
Talvez alguns dentre vós desejeis fazer perguntas sobre o que
estivemos dizendo. Como sabeis, investigar, fazer perguntas, é muito
difícil. Para fazerdes a pergunta correta precisais conhecer o vosso
problema. Em geral, não conhecemos nossos problemas; roçamos-lhes
a superfície, mas não atacamos o próprio problema; por isso, fazemos
perguntas incorretas. Se pudermos discutir corretamente, isso poderá
tornar-se até bastante divertido; aprende-se mais “ brincando” com o
problema correto do que assumindo uma atitude muito séria a respeito
de coisas superficiais, como o faz a maioria de nós.
Pergunta : Como podemos entrar em contato com um fato emo­
cionalmente?
K rishnamurti: Para se entrar em direto contato com uma coisa,
requer-se que dela nos abeiremos de maneira total, isto é, não apenas
intelectual, emocional ou sentimentalmente. Requer-se compreensão
total.

Pergunta : Não devemos manter-nos atentos ao processo dual,


sempre em ação dentro em nós, e isso não é autoconheci-
mento?
K rishnamurti: Foram empregadas as palavras “ atento” , “ dualidade”
e “ autoconhecimento” . Consideremos estas três palavras, uma a uma,
pois se não as compreendermos, não haverá possibilidade de comuni­
cação entre nós.
Ora, que significa estar “ atento” ? Prestai atenção, por favor,
pois não desejo parecer-vos pedante; só quero certificar-me de que
nós dois compreendemos as palavras que estamos empregando. Para
vós elas podem ter um significado e para mim outro. Para mim,
quando prestamos atenção total, não há concentração, nem exclusão,

20d
nem nada. Sabeis como um colegial que deseja olhar pela janela é
forçado a olhar para seu livro; mas isso não é atenção. Atenção é
ver o que se está passando do lado de fora e também o que se acha
à nossa frente. Observar sem exclusão de nada é muito difícil.
E, agora, que entendemos por “ processo dual” ? Sabemos que
existe um processo dual, o bom e o mau, o ódio e o amor, etc.; e
manter-se atento para essas coisas é muito difícil, não achais? E
por que criamos esse processo dual? Ele existe realmente ou é uma
invenção do intelecto, a fim de fugir ao fato? Sou violento, digamos,
ou ciumento, e isso me incomoda. Não gosto desse estado; digo, por­
tanto, que não devo ser ciumento, violento — e isso é uma fuga ao
fato, não achais? O ideal é uma invenção do intelecto, que quer
fugir ao que <?; por isso, existe dualidade. Mas, se enfrento integral­
mente o fato de que sou ciumento, então já não há dualidade. Enfren­
tar o fato significa penetrar completamente o problema da violência
e do ciúme; e, então, ou descubro que isso me agrada (ser violento,
ciumento) e neste caso o conflito continua necessariamente, ou, ainda,
percebo tudo o que o problema implica e fico livre do conflito.
E, agora, que entendemos por “ autoconhecimento” ? Que signi­
fica “ conhecer a si mesmo” ? Conheceis a vós mesmo? O “ eu” é
uma coisa estática, ou uma coisa em constante mutação? Posso conhe­
cer-me? Conheço minha mulher, meu marido, meu filho, ou conheço
apenas o retrato feito pela minha mente? É bem de ver que não
posso conhecer uma coisa viva, não posso reduzir uma coisa viva a
uma fórmula; o que posso fazer é, tão-somente, segui-la, aonde quer
que leve; e se a sigo, nunca poderei dizer que a conheço. Assim, o
conhecimento do “ eu” significa seguir o “ eu” , seguir todos os pensa­
mentos, sentimentos, motivos, sem nunca dizer “ conheço” . Só se
pode conhecer o que é estático, morto.
Estais vendo, pois, a dificuldade relativa às três palavras contidas
nesta pergunta: “ atenção” , “ dualidade” e “ autoconhecimento” . Se
puderdes compreender todas estas palavras e passar adiante, transcen­
dê-las, conhecereis então o inteiro significado de enfrentar um fato.
P ergunta : Existe algum meio de quietar a mente?
K rishnamurti: Em primeiro lugar, ao formulardes esta pergunta,
estais percebendo que vossa mente está agitada? Estais cônscio de que
vossa mente nunca está quieta, que está constantemente a “ tagarelar” ?

206
Eis um fato. A mente fala incessantemente, seja a respeito de alguma
coisa, seja para si própria; está >constantemente ativa. Por que fazeis
esta pergunta? Pensai até o fim junto comigo. Se a fazeis porque
estais parcialmente cônscio da “ tagarelice” e desejais livrar-vos dela,
neste caso podeis também tomar uma droga, uma pílula que faça a
mente dormir. Mas, se estais investigando e desejais realmente desco­
brir porque tagarela a mente, o problema se torna então muito dife­
rente. No primeiro caso trata-se de uma fuga, no segundo de seguir
a tagarelice até o fim.
Pois bem; por que tagarela a mente? Com “ tagarelar” queremos
dizer que ela está sempre ocupada com alguma coisa •—• o rádio, seus
problemas, seu emprego, suas visões, suas emoções, seu mitos. Ora,
por que está ela ocupada e que aconteceria se não estivesse ocupada?
Já tentastes alguma vez não estar ocupado? Se já o fizestes, tereis
visto que no mesmo instante em que o intelecto deixa de estar ocupa­
do, manifesta-se o medo. Porque isso significa “ estar só” . Se vos
vedes sem ocupação alguma, esta é uma experiência muito dolorosa,
não? Já estivestes só, alguma vez? Duvido. Podeis passear a sós,
sentar-vos sozinbo num ônibus ou em vosso quarto, mas vossa mente
está sempre ocupada, vossos pensamentos sempre a fazer-vos compa­
nhia. O cessar da ocupação faz-vos descobrir que estais completa­
mente só, isolado, e isso gera medo; eis por que a mente prossegue
tagarelando, tagarelando.. .

5 de setembro de 1961.

207
PARIS II
I nfluências Condicionantes

D esejo apreciar junto convosco a questão da auto­


ridade e da liberdade. E pretendo penetrá-la muito profundamente,
pois considero bem importante compreender toda a anatomia da auto­
ridade.
Assim, em primeiro lugar, preciso assinalar que não estou dis­
cursando academicamente, superficialmente, verbalmente; mas, se
estamos real e seriamente interessados, então, penso eu, pelo simples
ato de escutar corretamente, ocorre não só a compreensão, mas tam­
bém. a libertação imediata da autoridade. Por certo, o tempo não
liberta a mente de coisa alguma. Só é possível a libertação quando
há percepção direta, compreensão completa, sem esforço, sem contra­
dição, sem conflito. Essa compreensão liberta a mente, de pronto,
de qualquer problema que a acabrunha. Se seguirmos o problema e
a mente for capaz de penetrá-lo •de modo cabal, por inteiro, ver-nos-
-emos então livres desse peso.
Não sei se já refletistes com profundeza sobre a questão da auto­
ridade. Se o fizestes, deveis saber que a autoridade destrói a liber­
dade, impede a criação, gera medo e, de fato, entrava o pensamento.
Autoridade implica submissão, imitação, não achais? Existe não ape­
nas a autoridade exterior da polícia, da Lei — a qual até certo ponto
é compreensível — mas também a autoridade interior do saber, da
experiência, da tradição, da observância de um padrão estabelecido
pela sociedade, por um instrutor, determinando como devemos pro­
ceder, comportar-nos, etc.

208
Vamos tratar inteiramente da compreensão da autoridade interior,
psicológica; da psique, que estabelece um padrão de autoridade para
sua própria segurança.
Já vos perguntastes alguma vez por quê, através das idades, os
entes humanos sempre confiaram a outros o estabelecer seus padrões
de conduta? Queremos — não é verdade? — que nos digam o que
devemos fazer, como devemos portar-nos, o que devemos pensar,
como devemos agir em certas circunstâncias. Esta busca de autoridade
é constante, porque a maioria de nós teme o erro, o malogro. Vós
adorais o êxito,' e a autoridade oferece o êxito. Se seguis uma deter­
minada linha de conduta, se vos disciplinais consoante certas idéias,
dizem-vos que, no fim, encontrareis a salvação, a perfeição, a liber­
dade. Para mim, a idéia de que a disciplina, o controle, a repressão,
a imitação e o ajustamento podem conduzir à liberdade, é totalmente
absurda. Decerto não podemos cercear a mente, moldá-la, pervertê-la
e, graças a esse processo, encontrar a liberdade. As duas coisas são
incompatíveis, mutuamente se repelem.
Ora, por que é que a mente e o intelecto humano buscam sempre
um padrão ao qual ajustar-se? E permiti-me dizer aqui que minha
explicação não tem valor nem significado se não estais, cada um de
vós, cônscios de vossa própria inclinação para seguir — seguir uma
idéia ou um instrutor. Mas, se a explicação vos está realmente desper­
tando o percebimento do estado de vossa própria mente, então as
palavras têm significação. Assim, por que existe esse impulso para
seguir? Não resulta ele do desejo de certeza, de segurança? Sem
dúvida, o desejo de segurança é o motivo, a razão fundamental dessa
ânsía de seguir. E isso subentende não é verdade? — o sentimento
de que pelo bom êxito, pelo ajustamento, evitaremos completamente
o medo. Mas, existe segurança interior? Ora, a própria busca de
segurança é medo, não? Exteriormente, talvez seja necessário um
certo grau de segurança — teto, três refeições por dia, roupas, etc.;
mas, interiormente, existe segurança? Estais seguro em vossa família,
em vossas relações? Não ousais duvidar disso, não é verdade? Achais
que sim, pois isso se tornou tradição, costume. Entretanto, no mo­
mento em que pondes em dúvida vossas relações com vosso marido,
vossa esposa, vosso filho, vossos vizinhos, esse próprio duvidar se
torna perigoso.

209
Todos nós buscamos segurança, nesta ou naquela forma; e, por­
tanto, necessitamos da autoridade. Assim, dizemos que existe Deus
e que Ele, quando tudo mais falhar, nos dará a segurança fínal. Vive­
mos apegados a certos ideais, esperanças, crenças, que nos garantirão
a permanência, neste mundo e no outro. Mas, existe segurança? E
eu acho que cada um de nós precisa descobrir, precisa lutar para com­
preender claramente se há, ou não, tal coisa — segurança.
Exteriormente, pouca segurança existe hoje em dia. As coisas
estão mudando com rapidez; mecanicamente, temos novas invenções,
bombas atômicas; e, socialmente, temos revoluções externas, princí-
palmente na Ásia, a ameaça de guerra, o comunismo, etc. Mas as
ameaças à nossa segurança interior criam em nós uma resistência
muito maior. Quando credes em Deus ou numa certa espécie de per­
manência interior, é quase impossível quebrar tal crença, porque nessa
esperança estais firmemente enraizado. Já aderimos, cada um de nós,
a uma certa maneira de pensar e, se ela é verdadeira ou falsa, se tem
alguma realidade ou racionalidade, isso parece não nos importar; acei­
tamo-la e a ela nos atemos.
Abrir caminho através de tudo isso, descobrir sua verdade intrín­
seca, implica uma revolução muito mais importante do que qualquer
revolução comunista, socialista ou capitalista. Isso significa o começo
da libertação da autoridade, e o descobrimento de que positivamente
não existe permanência ou segurança interior. Significa, por conse­
guinte, descobrir que a mente deve estar a todas as horas num estado
de incerteza. E nós tememos a incerteza, não é verdade? Pensamos
que, se se visse num estado de incerteza, o intelecto se despedaçaria,
se tornaria doente. Infelizmente, existem tantos casos de insanidade
mental por causa dessa impossibilidade de encontrar a segurança.
Arrancadas de suas amarras, suas crenças, ideais, fantasias, mitos, as
pessoas se tornam mentalmente doentes. A. mente que está realmente
incerta não conhece medo. Só a mente medrosa segue, exige a auto­
ridade. E é possível perceber bem isso e lançar fora, completa e
totalmente, a autoridade e o medo?
E que se entende por ver? Ver ê uma simples questão de expli­
cação intelectual? As explicações, os raciocínios, a lógica sutil, vos
ajudarão a perceber o fato de que a autoridade, a obediência, a acei­
tação, o conformismo entravam a mente? Considero muito impor­
tante esta pergunta. Ver nenhuma relação tem com palavras nem

210
com explicações. Estou 'certo de que se pode ver qualquer coisa
diretamente, independente de persuasão verbal, argumentação ou racio­
cínio intelectual. Se rejeitais a persuasão, a influência — que são
coisas elementares, infantis — que poderá impedir-vos de ver e, por­
tanto, de ser livre imediatamente? Para mim, ver é uma ação de
caráter imediato, independente do tempo. E, portanto, a libertação
da autoridade não depende do tempo; não é dizer: “ Serei livre” . Mas,
enquanto a autoridade vos dá prazer, enquanto o processo de seguir
vos parece atraente, não estais permitindo que o problema se vos
mostre diretamente e, por conseguinte, se torne urgente, de vital
importância.
O fato é que a maioria de nós gosta do poder — o poder da
mulher sobre o marido ou deste sobre a mulher, o poder que a capa­
cidade dá, o sentimento de se ser talentoso, o poder que dão a auste­
ridade e o controle do corpo. Qualquer forma de poder representa
autoridade —• seja o poder do ditador, o poder político, o poder reli­
gioso, seja o domínio de um indivíduo sobre outro. O poder é extre­
mamente nocivo, e porque não podemos ver isso, simples e direta­
mente? Com ver, refiro-me a um percebimento total, livre de hesi­
tação: uma “ correspondência” ( response) total. Que é que impede
essa correspondência total?
Isso suscita a questão da autoridade da experiência, do saber,
não é verdade? Está visto que, para se ir à Lua, para se construir
um foguete, necessita-se de conhecimentos científicos; e à acumulação
de saber chamamos experiência. Externamente, necessita-se do saber.
Precisamos saber onde moramos, precisamos saber construir, juntar
coisas e separar coisas. Esse conhecimento externo é superficial, mecâ­
nico, puramente adicional, um contínuo descobrir de coisas e mais
coisas. Mas acontece que o saber e a experiência se tornam nossa
interna autoridade. Podemos rejeitar a autoridade externa como infan­
til; podemos deixar de pertencer a determinada nação, grupo ou famí­
lia, de estar apegados a uma dada sociedade com seus peculiares cos­
tumes, códigos, etc.; mas, renunciar às experiências que acumulamos,
à autoridade do saber que acumulamos, isso é extremamente difícil.
Não sei se já tendes considerado este problema; mas, se o fizer­
des, vereis que a mente que está carregada, pejada de saber e de expe­
riência, não é uma mente “ inocente” , uma mente nova; é uma mente
velha, decadente, que nunca será capaz de entrar em contato — livre-

211
mente, plenamente, totalmente — com uma coisa viva. E no mundo
atual, tanto interior como exteriormente, urge que tenhamos uma
mente nova, fresca, uma mente jovem, para podermos resolver todos
os nossos problemas — não um dado problema específico da ciência,
da medicina, da política, etc., mas o problema humano total. A mente
velha é uma mente cansada, entravada; mas a mente nova vê pronta­
mente, sem distorção, sem ilusão: é penetrante, precisa, livre das
limitações do conhecimento acumulado e da passada experiência.
Afinal, que é essa experiência que nos proporciona um tão forte
sentimento de nobreza, de sabedoria, de superioridade? “ Experiência” ,
sem dúvida, é a reação de nosso “ fundo mental1’ ( background) a um
“ desafio” . A reação é condicionada por esse “ fundo” e, portanto.,
cada experiência torna mais forte o “ fundo” . Se sois membro de
alguma igreja, devoto de determinada seita, tendes experiências e
visões de acordo com esse fundo — e essas experiências e visões, por
sua vez, reforçam o fundo. Não é verdade isso? E esse condiciona­
mento, essa propaganda religiosa — seja velha de dois mil anos, seja
moderna — nos está moldando a mente, influenciando a reação de
nosso intelecto. São inegáveis essas influências; elas prevalecem sem­
pre. A influência comunista, socialista, católica, protestante, hinduísta
e dúzias e centenas de influências outras invadem-nos a mente a todas
as horas, consciente ou inconscientemente, moldando-a, controlando-a.
A experiência, pois, não liberta a mente, não a torna jovem, fresca,
“ inocente” . O que se faz necessário é a destruição total do fundo.
A compreensão, disso não é questão de tempo. Se empreenderdes
a tarefa de compreender cada influência separadamente, estareis morto
antes de terdes compreendido todas elas. Mas, se compreenderdes
plenamente, completamente, uma só influência, destroçareis todas as
formas de influência. Todavia, para compreenderdes uma influência
deveis examiná-la cabalmente, completamente. Limitar-se a dizer que
ela é boa ou má, é insuficiente. E para podermos penetrá-la comple­
tamente, não devemos ter medo. Penetrar inteiramente esta questão
da autoridade é muito perigoso, não achais? Estar livre da autoridade
é atrair o perigo, pois ninguém deseja viver na incerteza. Porém, a
mente que está certa é uma mente morta; só a mente incerta é nova,
ftesca.
Para se compreender a autoridade, tanto interior como exterior,
não se necessita do tempo. Um dos piores erros, um dos maiores

212
empecilhos, é depender do tempo. Tempo, na realidade, significa
adiamento. Significa que estamos gostando da segurança, da imitação,
do seguir, e só dizemos isto: “ Não me perturbeis. Ainda não estou
disposto a ser perturbado” . Não vejo razão para não sermos pertur­
bados; que há de errado em estar perturbado? Na realidade, quando
uma pessoa não deseja ser perturbada, está justamente atraindo per­
turbações. Mas o homem que quer descobrir, não lhe importando se
isso será perturbador ou não, esse homem está livre do medo à per­
turbação. Sei que isso fará sorrir a alguns de vós, mas a questão é
muito grave, não é para rir. É fato que nenhum de nós deseja ser
perturbado. Mas caímos numa rotina, num estreito canal — intelec­
tual, emocional ou ideológico — e não desejamos ser perturbados. Em
nossas relações e tudo mais, só queremos viver vida confortável, não
perturbada, respeitável, burguesa. E desejar ser o contrário de bur­
guês, o contrário de respeitável, é a mesma coisa.
Agora, se enquanto escutais estais atentos a vós mesmos, podeis
ver que estar livre da autoridade não é uma coisa temível. É como
aliviar-se de um pesado fardo. A mente experimenta de imediato uma
extraordinária revolução. Para o homem que não busca a segurança
em forma nenhuma, não há perturbações; há um contínuo movimento
de compreensão. Se isso não se está passando convosco, neste caso
não estais escutando, não estais vendo; estai-vos unicamente compra»
zendo em aceitar ou em rejeitar um certo conjunto de explicações.
Assim, seria muito interessante descobrirdes por vós mesmo qual é
vossa verdadeira reação.
P ergunta : A mente traz em si mesma os elementos de sua pró­
pria compreensão?
K rishnamurti: Acho que sim; não achais também? Que é que
impede a compreensão? Os obstáculos não são criados pela própria
mente? Por conseguinte tanto a compreensão como as próprias bar­
reiras são elementos mentais.
Vede, senhor, para se viver numa base de incerteza, sem se tornar
mentalmente doente, requer-se grande dose de compreensão. Não
achais que uma das barreiras é o insistente desejo de segurança inte­
rior? Exteriormente, vejo qué não existe segurança; assim, a mente
cria, interiormente, a sua própria segurança, numa crença, num deus,

213
numa idéia. A mente, portanto, cria sua própria escravidão, mas
tem, também, os elementos de sua própria libertação.

Pergunta : Por que não pode ser perturbado um homem livre?


K rishnamurti: É correta esta pergunta? Como nada sabeis acerca
do homem livre, vossa pergunta se reduz a simples especulação; não
tem — perdoai-me dizê-lo — significação nem para mim nem para
vós. Mas, se inverterdes a pergunta, formulando-a assim: “ Por que sou
perturbado?” —• então ela tem validade e pode ter resposta correta.
Por que é perturbada uma pessoa — se meu marido me repudia, se
me morre um ente querido, se experimento um fracasso, se sinto que
não estou tendo êxito na vida? Se realmente investigásseis isto até o
fim, podereis ver toda a sua essência.

P ergunta : A crença em Deus se baseia sempre no medo?


K rishnamurti: Por que credes em Deus? Qual a necessidade? Inte­
ressa-vos a crença em Deus quando sois muito feliz ou só quando se
vos apresentam tribulações? Vós credes, porque fostes condicionado
para crer? Como bem sabemos, há dois mil anos que nos dizem que
existe Deus; e no mundo comunista estão condicionando a mente para
não crer em Deus. É a mesma coisa; tanto num como noutro caso a
mente está sendo influenciada. A palavra “ Deus” não é Deus; e o
descobrirdes verdadeiramente, por vós mesmo, se tal coisa — Deus —
existe, é muito mais significativo do que vos apegardes a uma crença
ou descrença. E o descobrir por si mesmo requer enorme energia —
energia para libertar-se de todas as crenças; porém isto não importa
um estado de ateísmo ou de dúvida. Mas a crença é uma coisa muito
confortante, e poucos estão dispostos a despedaçar-se interior­
mente. A crença não vos conduz a Deus. Nenhum templo, nem
igreja, nem dogma, nem ritual pode conduzir-vos à Realidade. Essa
Realidade existe; mas para descobri-la precisais de uma mente imen­
surável. A mente pequena, limitada, só pode encontrar os deuses
pequeninos e limitados que ela mesma cria. Portanto, devemos estar
prontos a perder toda a nossa respeitabilidade, todas as nossas cren­
ças, para podermos descobrir o que é real.
Acho que não podeis continuar escutando. Se estivestes escutando
indolentemente, ouvindo puramente as palavras, neste caso, sem dú­
vida, poderíeis continuar ouvindo por mais algumas horas. Mas, se

214
escutastes corretamente, atentamente, com o propósito de aprofundar,
então dez minutos bastariam, porque neste espaço poderíeis destroçar
as barreiras que a mente criou para si própria e descobrir o que é
Verdade.

7 de setembro de 1961.
PARIS III
P az

REio que a maioria de nós deseja fruir uma certa


paz. Muito falam os políticos a esse respeito; isso se tomou sua
fraseologia predileta, seu tema favorito. Cada um de nós, também,
deseja a paz. Mas, parece-me, a espécie de paz a que aspiram os
entes humanos representa maís uma fuga; desejamos encontrar um
estado no qual a mente se possa recolher e nunca refletimos se é
realmente possível nos libertarmos de nossos conflitos e alcançarmos,
assim, a verdadeira paz. Desejo, pois, falar a respeito do conflito,
porque acho que se o conflito pudesse ser eliminado — fundamental­
mente, profundamente, interiormente, além do nível mental consciente
— então, talvez, haveria paz.
A paz a que me refiro não é a paz que buscam o intelecto e a
mente; é coisa inteiramente diferente. Ela se torna um fator alta­
mente perturbador, tanto é criadora e, por conseguinte, destrutiva.
Para chegarmos a essa compreensão da paz, parece-me essencial que
compreendamos o conflito, porquanto, se não penetrarmos fundo, radi­
calmente, o problema do conflito, não teremos paz nem exterior nem
interior, por mais que a busquemos, ainda que a desejemos com ardor.
Para conversarmos a respeito de alguma coisa — sem distinção
entre orador e ouvintes, pois esta é uma relação absurda — cumpre
que vós e eu estejamos pensando e sentindo no mesmo nível, inves­
tigando do mesmo ponto de vista. Se vós e eu pudermos examinar
juntos esta questão do conflito, com excepcional ardor e vitalidade,
é bem possível que venhamos a descobrir uma paz completamente
diferente daquela que a maioria de nós está a buscar.

216
Existe conflito quando existe um problema, não? Todo pro­
blema redunda em conflito, porquanto implica ajustamento, esforço
para compreender algo, livrar-se de algo, encontrar uma solução. E
temos, quase todos nós, uma grande variedade de problemas —• pro­
blemas sociais, econômicos, problemas atinentes às relações, ao con­
flito entre as idéias etc. E esses problemas permanecem sem solução,
não é verdade? De fato, nunca pensamos neles de maneira completa,
até o fim, para deles nos libertarmos; mas continuamos a levar de dia
para dia, de mês para mês, pela vida afora, toda espécie de problema,
como um fardo na mente e no coração. Parecemos incapazes de gozar
a vida, de ser simples, porque tudo o que tocamos — o amor, Deus,
as relações, tudo — se reduz, por fim, a um problema medonho,
inquietador. Se tenho apego a uma pessoa, isso se torna um problema
e desejo, então, saber como desapegar-me. E se amo, vejo que nesse
amor há ciúme, ansiedade e medo. E não podendo resolver os nossos
problemas, vamo-los levando conosco, pois não nos sentimos aptos
a solucioná-los.
Em seguida, temos a competição, que também suscita problemas.
Competição é imitação, é tentar igualar a outro. Temos o modelo de
Jesus, o modelo do herói, do santo, do vizinho mais rico, e há tam­
bém o padrão interior que a pessoa estabelece para si própria e pro­
cura seguir, viver de acordo com ele. A competição, pois, faz nascer
muitos problemas.
E há também a ânsia de preenchimento. Cada um deseja preen­
cher-se de uma ou de outra maneira — por meio da família, da esposa,
do marido, do filho. E, passando um pouco mais além, encontramos
o desejo de nos preenchermos socialmente, escrever um livro, tornar-
-nos famosos de alguma maneira. E quando existe esta ânsia de preen­
chimento, de nos tornarmos alguma coisa, existe também a frustração,
e com a frustração vem o sofrimento. E apresenta-se então o pro­
blema de como evitar o sofrimento e, ao mesmo tempo, termos a
possibilidade de preencher-nos. E ficamos, assim, aprisionados neste
círculo vicioso, em que tudo se converte num problema, num conflito.
E já nos acostumamos a admitir o conflito como coisa inevitável;
consideramo-lo, até, respeitável e necessário à evolução, ao desenvol­
vimento, ao “ vir a ser” algo. Cremos que se não houvesse competição,
conflito, estaríamos condenados à estagnação, à deterioração; assim,
mental e emocionalmente, estamos sempre tratando de nos tornar mais

217
sagazes, sempre lutando, perpetuamente em conflito com nós mesmos,
nosso próximo, e o mundo. Isto não é exageração; é um fato. E
acho que todos sabemos que fardo tremendo esse conflito representa.
Assim, parece-me que a questão urgente é esta: se percebeis a
real importância de se ficar livre do conflito — mas não com o fim
de alcançar outra coisa. É verdadeiramente possível ser livre, simples­
mente, intrinsecamente, de modo que a mente não mais esteja em
conflito, quaisquer que sejam as circunstâncias? No momento não
sabemos se isso é possível ou não. O que sabemos é só que estamos
em conflito, e conhecemos as penas que ocasiona, o sentimento de
“ culpa” , o desespero, o irremediável da moderna existência; é só o
que sabemos.
Assim, como poderemos descobrir, não no nível verbal, intelec­
tual ou puramente emocional, mas descobrir realmente se é possível
ser livre? Como começar? Certo, se não se compreender inteiramente
esse conflito, em todos os níveis da consciência, não será possível nos
libertarmos dele e compreendermos o que é a Verdade. A mente em
conflito está confusa. E quanto maior a tensão do conflito, tanto
maior a produtividade de ação. Deveis ter notado como os escritores,
os oradores, os chamados intelectuais, estão sempre a produzir teorias,
filosofias, explicações. Se são dotados de algum talento, então, quanto
maior a tensão e a frustração, tanto mais produzem; e o mundo os
chama grandes autores, grandes oradores, grandes líderes religiosos, etc.
Ora, se observarmos atentamente, veremos que o conflito desfi­
gura, perverte; ele é, em essência, confusão, e destrutivo da mente. Se
pudermos perceber isso verdadeiramente — sem dizer que o conflito
da competição é inevitável, que a estrutura social é edificada sobre
esta base, e que temos de tê-lo, etc. — então penso que nossa atitude
em relação ao problema será bem diferente. Penso ser esta a coisa
primordial: ver o fato, não intelectualmente, verbalmente, mas, sim,
entrando realmente em contato com o fato. Desde o momento de
nascermos até o momento de morrermos, existe esta incessante batalha
interior e exterior; e somos capazes de ver realmente o fato de que
esse conflito é ininteligente? Que é que nos dá energia e vitalidade
para entrarmos em contato emocional com um fato?
Vede, há séculos que somos educados para viver em conflito,
para aceitar ou encontrar uma maneira de fugir-lhe. E, como sabeis,
existem inúmeras vias de fuga — contrair o hábito de beber, freqüen-

213
tar mulheres, igrejas, buscar a Deus, tornar-se altamente intelectual,
repleto de saber, ligar o rádio, comer em excesso. E sabemos também
que nenhuma dessas fugas resolve o problema do conflito; só serve
para aumentá-lo. Mas estamos dispostos a enfrentar deliberadamente
o fato de que não existe fuga de espécie alguma? Creio que nossa prin­
cipal dificuldade resulta de termos criado tantos meios de fuga, que
nos tornamos incapazes de ver o fato diretamente.
É preciso, pois, examinarmos profundamente esta questão relativa
a nossas fugas conscientes e inconscientes. Parece bastante fácil des­
cobrir as fugas conscientes. Delas estais cônscios — não é verdade?
— ao ligardes o rádio, ao vos dirigirdes à Igreja no domingo, depois
de terdes levado na semana inteira uma vida brutal, ambiciosa, inve­
josa, repulsiva. Mas é muito mais difícil descobrir quais são as fugas
ocultas, inconscientes.
Desejo examinar um pouco este problema da consciência. A
consciência, na sua totalidade, é formada através do tempo, não?
Resulta de milhares de anos de experiência; é constituída de influên­
cias raciais, culturais, sociais, provindas do passado e mantidas pela
família, pelo indivíduo, pela educação, etc. Á totalidade disso é a
consciência; e, se examinardes vossa própria mente, vereis que na
consciência existe sempre uma dualidade, “ o observador e a coisa
observada” . Tal fato não é de difícil percepção. Isto aqui não é
uma aula de psicologia, nem um entretenimento analítico, intelectual.
Estamos falando de uma experiência viva, real, que devemos — vós
e eu — examinar deliberadamente, a fim de não ficarmos no nível
puramente verbal.
Há necessariamente conflito na totalidade da consciência quando
nela existe divisão entre pensador e pensamento. Esta divisão ocasiona
a contradição; e onde há contradição é inevitável o conflito. Sabemos
— não é verdade? — que estamos em contradição, tanto exterior
como interiormente. Exteriormente, existe contradição em nossas
ações, pois deseiamos viver de certa maneira e vemo-nos obrigados a
exercer atividades de outra ordem; e, interiormente, existe contra­
dição em nossos pensamentos, sentimentos e desejos. Sentimento,
pensamento, desejo, vontade, e a palavra, constituem a totalidade de
nossa consciência, e nesta totalidade existe contradição, porque nela
há sempre divisão — o censor, o observador sempre a observar, espe­

219
rar, modificar, reprimir, e o sentimento ou pensamento sobre o
qual (o censor ou observador) atua.
Quando examinamos este problema, nós mesmos — não através
de livros, filosofias e leituras de tudo o que foi dito por outras pessoas,
que é apenas palavras ocas, — quando o examinamos muito profunda­
mente, persistentemente, sem escolha, sem rejeição ou aceitação ■—•
descobre-se, então, necessariamente, o fato de que a totalidade da
consciência é, em si, um estado de contradição, porque lá existe sem­
pre o pensador a atuar sobre o pensamento, e a criar, por conseqüên-
cia, intermináveis problemas.
Surge assim a questão sobre se é inevitável esta divisão da cons­
ciência. Existe realmente um pensador separado, ou foi o pensamento
que criou o “ pensador” , a fim de ter'um centro permanente, de onde
pensar e sentir?
Vede, senhores, que para compreendermos o conflito temos de
examinar bem isto. Não basta dizer-se: “ Desejo libertar-me do con­
flito” . Se é só isso que se deseja, então podemos também tomar uma
droga, um calmante — coisa muito simples, e barata. Mas, se se
deseja realmente penetrar a fundo na questão e extirpar completa­
mente todas as fontes de conflito, cumpre investigar a totalidade da
consciência — todos os obscuros recantos da mente e do coração, onde
se embosca a contradição. E só podemos compreender profundamente
ao-começarmos a indagar porque existe esta divisão entre pensador e
pensamento. É preciso indagar se existe realmente um pensador, ou
se apenas existe pensamento. E se só existe pensamento, onde está
o centro de onde procedem todos os pensamentos?
Pode-se ver — não é verdade? — porque o pensamento criou
um centro que se tomou “ eu” , “ ego” — o nome que se lhe dê é
sem importância, desde que se reconheça que existe um centro de
onde promana o pensamento. O pensamento anseia pela permanência;
e vendo que suas próprias expressões são impermanentes, cria o centro
— o “ eu” . E logo surge a contradição.
Para se perceber tudo isso realmente — e não apenas aceitá-lo
verbalmente — é necessário em primeiro lugar rejeitar todas as fugas;
eliminar, como um cirurgião, toda forma de fuga. Requer isso intenso
percebimento, sem escolha, sem apego às fugas agradáveis e evitando-se
as desagradáveis. Isso requer energia, vigilância constante, porque o
intelecto de tal maneira se acostumou à fuga, que esta se tornou mais

220
importante do que o fato concreto do qual está a fugir. Mas só
quando há a total rejeição da fuga, estamos em condições de encarar,
de enfrentar o conflito.
Então, se chegamos até esse ponto, se, física, emocional e inte-
lectualmeníe rejeitamos toda forma de fuga, que acontece? Existe
então problema? Por certo, é a fuga que cria o problema. Quando
já não estais competindo com vosso vizinho, já não estais tentando
preencher-vos, nem transformar-vos noutra coisa, existe então con­
flito? Estais apto a enfrentar o fato — o que sois realmente —
como quer que ele seja. Não há então julgamento como “ bom”
ou “ mau” . Sois então o que sois. E o próprio fato tem efeito atuante:
não há mais “ vós” a atuar sobre o fato.
Tudo isso é realmente muito interessante, como vereis se deveras
o examinardes. Considere-se o ciúme. Em geral somos ciumentos,
invejosos, em grau agudo ou tolerável. Ao perceberdes efetivamente
que sois ciumento, sem rejeitar nem condenar esse estado, que sucede?
O ciúme é então mera palavra ou um faio? Espero estejais prestando
atenção, porquanto, como sabeis, a palavra tem extraordinária impor­
tância para a maioria de nós. A palavra “ Deus” , a palavra “ comu­
nista” , a palavra “ negro” têm imenso conteúdo emocional neuroló­
gico. Do mesmo modo, a palavra “ ciúme” já está “ carregada” . Ora,
se se põe de parte a palavra, resta então o sentimento. Este é que é
o fato, não a palavra. E encarar o sentimento sem a palavra requer
completa isenção de condenação e justificação.
Quando, alguma vez, sentirdes ciúme, cólera, ou, mais especial­
mente, quando sentirdes deleite a respeito de alguma coisa, vede se
podeis distinguir a palavra do sentimento, se a palavra é o mais impor­
tante, se o sentimento. Descobrireis, então, que, no olhar o fato sem
a palavra, há uma ação que não é processo intelectual; o próprio fato
está operando e, por conseguinte, não há contradição, nem conflito.
É verdadeiramente extraordinário o descobrirmos diretamente que
só há pensar e não há pensador. Porque se vê, então, que se pode
viver neste mundo sem contradição, já que se necessita de muito pouca
coisa. Se se necessita de muita coisa — sexual, emocional, psicológica
ou intelectualmente — há dependência de outrem; e no momento em
que começa a dependência, começa a contradição e o conflito. Quando
a mente se liberta do conflito, eom essa liberdade se manifesta um
movimento de caráter de todo diferente. A palavra “ paz” , como a

221
conhecemos, não tem aí aplicação, porque esta palavra tem para nós
diferentes significados, conforme a pessoa que a emprega — um
político, um sacerdote, ou quem quer que seja. Não é a prometida
paz celestial, após a morte; ela não se encontra em nenhuma igreja,
nenhuma idéia, nem na adoração de nenhum Deus. Ela surge quando
ocorre a cessação total de todo conflito interior; e isso só é possível
quando não há nenhuma necessidade. Não há então necessidade, nem
mesmo de Deus. Só há um movimento imensurável que não pode ser
corrompido por ação alguma.

P ergunta : Como é possível dar liberdade ao desejo, sem des­


truí-lo ou reprimi-lo; e o olhar o desejo sem condenação
fá-lo desaparecer?
K rishnamurti: Em primeiro lugar, temos a idéia de que o desejo
é coisa errada porque produz várias formas de conflito e contradição.
Existem, dentro de cada um de nós, muitos desejos contraditórios.
Isto é um fato; temos desejos e eles criam conflito. A questão é:
como viver intensamente com o desejo, sem o destruir? Se cedemos
ao desejo, se o preenchemos, nesse próprio ceder encontra-se também
a dor da frustração. Não quero aduzir um exemplo, porque qualquer
explicação por meio de exemplo perverte a compreensão da totalidade
do desejo.
Primeiramente cumpre ver com clareza que toda forma de con­
denação do desejo é simplesmente uma maneira de evitar sua com­
preensão. Se se percebe claramente este fato, surge então a questão
relativa ao que fazer com o desejo. Até agora o temos condenado, ou
aceitado, ou sentido prazer nele; e nesse próprio prazer que ele dá,
há dor. Também há dor na repressão, no controle do desejo. Mas,
se não condenamos nem avaliamos, ele subsiste então, vivo e ardente;
e que fazer com ele? Ora, pode-se alcançar esse estado? Porque,
nesse estado, vós sois o desejo; já não há “ vós e o desejo” como duas
entidades separadas.
O que sempre acontece é que desejamos fazer desaparecer os
desejos dolorosos e reter os agradáveis, não é verdade? Considero
completamente errônea tal maneira de proceder. Pergunto: “ Pode-se
observar o desejo, sem condenar, sem julgar, sem escolher entre os
diferentes desejos? Já fizestes isto alguma vez? Duvido.”

222
Para se entender o significado do desejo, viver com ele, compreen­
dê-lo, vê-lo realmente, sem julgamento de espécie alguma — requer-se
imensa paciência, interiormente. Penso que nunca fizestes isso. Mas,
se o experimentardes, vereis que não há então contradição, nem con­
flito. Tem então o desejo significado completamente diferente. O
desejo, então, pode ser vida.
Mas, enquanto disserdes “ O desejo é errado” , “ O desejo é certo” ,
“ Devo ceder?” , “ Não devo ceder?” — nesse processo estais criando
uma divisão entre vós e o desejo e, por conseguinte, é inevitável o
conflito. O que dá compreensão é vos examinardes calmamente, vos
examinardes profundamente, inquirindo, procurando averiguar por­
que condenais, o que estais buscando. Então, nessa investigação inte­
rior, na qual nenhuma escolha existe, descobrireis que se pode viver
com o desejo e que ele tem significado completamente diferente. Para
“ viver com uma coisa” necessita-se de energia, vitalidade; e não nos
resta nenhuma energia quando vivemos condenando e julgando.
“ Viver com o desejo” é descobrir um estado completamente livre de
contradição. Significa isso que há então amor sem ciúme, sem ranco­
res, sem corrupção em nenhuma forma; e é realmente maravilhoso
descobrirmos essa coisa por nós mesmos, diretamente.
P ergunta : Que queríeis dizer ao declarardes, há dias, que deve­
mos ser perturbados?
K rishnamurti: Peço-vos não considerar-me como uma autoridade;
isso seria uma coisa terrível. Mas podeis ver por vós mesmo que o
desejo de não sermos perturbados é uma de nossas principais neces­
sidades. E é possível que a mente, o intelecto, ao deter seu inces­
sante “ tagarelar” , descubra uma grande perturbação interior. Podeis
ver por vós mesmo que vossa mente vive ocupada — com a esposa, o
marido, o sexo, a nacionalidade, Deus, sobre onde obter a próxima
refeição, etc. E já procurastes averiguar por que ela vive ocupada, e
que aconteceria se não estivesse ocupada? Se o fizerdes, vos vereis
frente a frente com algo em que nunca pensastes; e esse algo pode
ser um fato extremamente perturbador. E é realmente. Esta cons­
tante ocupação da mente pode ser uma simples fuga ao fato, ou seja,
nossa tremenda solidão e vazio. E essa perturbação precisa ser enfren­
tada e profundamente examinada.

10 de setembro de 1961.

223
PARIS
D e s e j o , P aixão , A mor

J r í Á dias estivemos falando sobre o desejo e o con­


flito resultante do desejo; e gostaria de continuar com esse mesmo
assunto e falar também sobre a necessidade, a paixão e o amor, pois
acho que tudo isso está relacionado entre si. Se pudermos examinar
esta matéria profunda e fundamentalmente, talvez então possamos
compreender todo o significado do desejo. Mas, antes de podermos
compreender o desejo, com todos os seus conflitos e torturas, acho
necessário compreender-se a questão da necessidade.
Naturalmente, temos necessidade de certas coisas exteriores,
superficiais, tais sejam roupas, teto e alimentos. Estas coisas são
essenciais para todos nós. Mias, necessitamos realmente de mais alguma
coisa? Psicologicamente, existe uma necessidade real de sexo, de
fama, do imperioso impulso da ambição, do perpétuo ansiar por mais
e mais? De que necessitamos, psicologicamente? Pensamos que neces­
sitamos de muitas coisas, e daí é que resulta todo o sofrimento da
dependência. Mas, se examinarmos realmente, se investigarmos pro­
fundamente a questão, existe alguma necessidade essencial, psicologi­
camente, interiormente? Acho que valería a pena fazermos seriamente
esta pergunta a nós mesmos. A dependência psicológica de outra pes­
soa nas relações, a necessidade de estar em comunhão com outro, a
necessidade de aderir a um dado padrão de pensamento e de atividade,
a necessidade de preenchimento, de nos tornarmos famosos — todos
conhecemos essas necessidades e constantemente estamos cedendo a
elas, E penso que seria significativo se pudéssemos, cada um de nós,
tentar descobrir quais são realmente as nossas necessidades e até que

224
ponto delas dependemos.. Porque, se não compreendermos a neces­
sidade, não seremos capazes de compreender o desejo, não seremos
capazes de compreender a paixão e, por conseguinte, o amor. Seja
rico, seja pobre, um homem necessita evidentemente de comida, de
roupa e de teto, embora, mesmo aí, a necessidade possa ser limitada,
pequena, ou expansível. Mas, além dessa, existe realmente alguma
necessidade? Por que se tornaram tão importantes as nossas neces­
sidades psicológicas, por que se tornaram uma força tão imperiosa e
compulsiva? São elas, meramente, uma fuga de algo muito mais
profundo?
Em nossa investigação não estamos procedendo analiticamente.
Estamos tentando encarar o fato, ver exatamente o que é; e isso não
requer nenhuma espécie de análise, de psicologia, de engenhosas e
digressivas explicações. O que estamos tentando é ver por nós mes­
mos quais são as nossas necessidades psicológicas, e não explicá-las,
não racionalizá-las, e sem perguntar: “ Que faremos sem elas? Eu
tenho de tê-las” . Isso fecha a porta à ulterior investigação. E, evi­
dentemente, a porta está também hermeticamente fechada quando a
investigação é puramente verbal, intelectual ou emocional. A porta
está aberta quando desejamos realmente enfrentar o fato, e isso não
requer um intelecto extraordinário. Para se compreender um pro­
blema muito complexo, necessita-se de uma mente clara, simples; mas
nega-se a simplicidade e a clareza quando temos uma quantidade de
teorias e estamos tentando evitar o problema.
A questão, pois, é: Por que temos essa imperiosa necessidade de
preencher-nos, por que somos tão cruelmente ambiciosos, por que tem
o sexo tão extraordinária importância em nossa vida? Não importa
a qualidade ou a quantidade de nossas necessidades, ou se alguém
tem “ o máximo” ou “ o mínimo” ; mas, por que existe esse tremendo
impulso para nos preenchermos, na família, num nome, numa posição,
etc., com todas as respectivas ansiedades, frustrações e sofrimentos —
impulso que a sociedade estimula e a igreja abençoa?
Ora, se examinardes isso, pondo de parte a reação de dizer:
“ Que me aconteceria se eu não tivesse êxito na vida?” — descobrí­
reis, sem dúvida, algo muito mais profundo, ou seia o medo de “ nao
ser” , do isolamento completo, do vazio e da solidão. Ele lá está,
profundamente oculto, esse anseio tremendo, esse medo de se ver
isolado de tudo. Eis a razão por que nos apegamos a todas as formas

225
de relação. Eis por que existe a necessidade de pertencer a alguma
coisa, a um culto, uma sociedade, de entregar-se a certas atividades,
de ater-se a determinada crença; porque, dessa maneira, podemos
fugir da realidade interior, profunda. É esse medo, por certo, que
força a mente, o intelecto, nosso ser inteiro, a aderir a uma dada
forma de crença ou de relação, a qual se torna, então, necessidade.
Não sei se alcançastes este ponto, nesta investigação, — não
verbalmente, porém realmente. Isso significa descobrir diretamente
e enfrentar o fato de se ser nada, de se estar interiormente vazio como
uma concha e coberto das jóias do saber e da experiência que, na
realidade, nada mais são do que palavras e explicações. Ora, para
enfrentar esse fato sem desespero, sem sentir quanto ele é terrível,
porém, simplesmente, “ ficar com ele” , é necessário em primeiro lugar
compreender a necessidade. Se compreendermos o significado da neces­
sidade, ela não terá mais tanta preponderância, em nossa mente e
coração.
Voltaremos a este tópico mais tarde. Mas passemos a considerar
o desejo. Conhecemos — não é verdade? — o desejo que se contradiz,
se tortura, se lança em diferentes direções; a dor, a agitação, a ansie­
dade do desejo, e o disciplinar, o controlar dele. E, em nossa eterna
batalha com ele, torcemo-lo, desfiguramo-lo, tornamo-lo irreconhecível;
mas ele subsiste, vigilante, expectante, premente. O que quer que se
faça — sublimá-lo, fugir-lhe, rejeitá-lo ou aceitá-lo, soltar-lhe as rédeas
— ele está sempre presente. E sabemos que os instrutores religiosos
e outros têm dito que devemos ser isentos de desejos, cultivar o desa­
pego — coisa realmente absurda, porquanto o desejo tem de ser
compreendido e, não, destruído. Se destruís o desejo, podeis destruir
a própria vida. Se pervertemos o desejo, se o moldamos, controlamos,
dominamos, reprimimos, podemos estar destruindo algo extraordina­
riamente belo.
Temos de compreender -o desejo; mas é dificílimo compreender
essa coisa tão cheia de vitalidade, tão exigente e premente, pois no
próprio preenchimento do desejo gera-se a paixão, com os prazeres e
dores respectivos. E para se compreender o desejo não deve, natural­
mente, haver escolha. Não se pode julgar o desejo chamando-o “ bom”
ou “ mau” , “ nobre” ou “ ignóbil” , ou dizer: “ Conservarei este desejo
e rejeitarei aquele” . Tudo isso deve ser posto de parte para podermos
descobrir a verdade relativa ao desejo — sua beleza, fealdade, ou o

226
de adquirir conhecimentos e acumular vários tipos de experiência, ao
que quer que seja. Este é um assunto muito interessante, mas aqui
no Oeste, ou Ocidente, muitos desejos podem ser preenchidos. Ten­
des carros, prosperidade, melhor saúde, a possibilidade de ler livros,
ao passo que no Oriente existe ainda carência de alimentos, de roupa e
de morada, bem como a desdita e a degradação da pobreza. Mas
tanto no Ocidente como no Oriente, o desejo sempre arde em todos
os sentidos; ele está sempre presente, exteriormente e também inte­
riormente, bem entranhado. O homem que renuncia ao mundo está
tão tolhido pelo seu desejo de buscar Deus, como o está o homem
que busca a prosperidade. Assim, o desejo está presente a todas as
horas, ardente, contraditório, criando agitação, ansiedade, culpa e de­
sespero.
Não sei se já fizestes experiências a esse respeito; mas que acon­
teceria se não condenássemos o desejo, se não o julgássemos “ bom”
ou “ mau” , porém ficássemos simplesmente cônscios dele? Será que
sabeis o que significa “ estar cônscio de alguma coisa” ? Em geral,
não estamos “ cônscios” , porque nos acostumamos a condenar, a jul­
gar, a avaliar, a identificar, a escolher. A escolha, evidentemente,
impede o percebimento, porque a escolha é sempre feita como resul­
tado de conflito. Estar cônscio, ao entrar numa sala, ver os móveis,
o tapete ou a falta dele, etc. — ver, simplesmente, estar cônscio de
tudo sem tendência para julgar — é dificílimo. Já experimentastes
olhar para uma pessoa, uma flor, uma idéia, uma emoção, sem fazer
escolha, sem emitir julgamento?
E se fizermos o mesmo com o desejo, se “ vivermos com ele”
— sem rejeitá-lo ou dizer “ Que farei com este desejo? Ele é tão
feio, veemente, violento” , sem lhe aplicar um nome, um símbolo, sem
encobri-lo com uma palavra — existe então ainda a causa da agitação?
É então o desejo algo que se deve lançar fora, destruir? Desejamos
destruí-lo porque um desejo está em antagonismo com outro, criando
conflito, sofrimento e contradição; e pode-se ver como tentamos fugir
desse conflito perene. Assim, pode-se estar cônscio da totalidade do
desejo? O que entendo por “ totalidade” não é simplesmente um
desejo ou muitos desejos, mas a “ qualidade total” do próprio desejo.
E só se pode estar cônscio da totalidade do desejo, quando não há
opinião a seu respeito, nem palavra, nem julgamento, nem escolha.
Estar cônscio de cada desejo ao surgir, não se identificar com ele nem

227
condená-lo — nesse estado de aleitamento existe desejo ou o que
existe é uma chama, uma paixão, que nos é necessária? A palavra
“ paixão” é de ordinário reservada para uma coisa: o sexo. Mas, para
mim, paixão não é sexo. Precisamos de paixão, intensidade, para
podermos viver realmente com uma coisa; para vivermos plenamente,
contemplarmos uma montanha, uma árvore, olharmos realmente para
um ente humano, devemos ter intensidade apaixonada. Mas essa
paixão, essa chama é negada, quando estamos tolhidos por vários
impulsos, exigências, contradições, temores. Como pode sobreviver
uma chama se a sufocamos com uma quantidade de fumo? Nossa
vida é só fumaça; buscamos a chama, mas a estamos negando pelo
reprimir, controlar, moldar a coisa que chamamos desejos.
Sem a paixão, como pode haver beleza? Não me refiro à beleza
de quadros, edifícios, pinturas de mulheres, etc., que têm suas peculia­
res formas de beleza, mas não estamos tratando da beleza superficial.
Uma coisa construída pelo homem, como uma catedral, um templo,
um quadro, um poema, ou uma estátua, pode ser ou pode não ser bela.
Mas existe uma beleza superior ao sentimento e ao pensamento e
que não pode ser percebida, compreendida ou conhecida se não existe
paixão. Mas não interpreteis erroneamente a palavra “ paixão” . Não
é uma palavra feia; não é uma coisa adquirível no mercado ou de que
se pode falar romanticamente. Não tem absolutamente nenhuma rela­
ção com a emoção, o sentimento. Não é coisa respeitável; é uma
chama destruidora de quanto é falso. E temos sempre tanto medo
de deixar essa chama consumir as coisas que nos são caras, as coisas
que chamamos importantes!
Afinal de contas, a vida que atualmente levamos, baseada em
necessidades, desejos e métodos de controlar o desejo, faz-nos mais
superficiais e vazios do que nunca. Podemos ser talentosos, ilustrados,
e capazes de repetir tudo o que aprendemos; mas as máquinas eletrô­
nicas fazem a mesma coisa e já, em certos setores, as máquinas se
tornaram mais capazes do que o homem, mais exatas e rápidas em
seus cálculos. E assim estamos sempre voltando a este mesmo tópico,
ou seja, que a vida que vivemos atualmente é bem superficial, estreita,
limitada, e isso porque, profundamente, estamos vazios, sós, e sempre
tentando encobrir, preencher esse vazio; por isso, a necessidade, o
desejo se torna uma coisa terrível. Nada pode preencher esse pro­
fundo vazio interior — nem deuses, nem salvadores, nem o saber,

228
nem as relações, nem os filhos, nem o marido, nem a esposa — nada.
Mas se a mente, o intelecto, a totalidade de vosso ser, é capaz de
encará-lo, de “ viver com ele” , vereis então que, psicológica, interior­
mente, não há necessidade de coisa alguma. Esta é a verdadeira liber­
dade.
Isso, porém, requer profundo discernimento, profunda investi­
gação, incessante vigilância; e desse modo talvez venhamos a saber
o que é o amor. Como pode haver amor quando há apego, ciúme,
inveja, ambição e todas as hipocrisias que acompanham esta palavra?
Mas, se tivermos passado por aquele vazio — que é uma realidade e
não um mito nem uma idéia — veremos que o amor e o desejo e a
paixão são uma mesma coisa. Se se destrói uma, destrói-se a outra;
se se corrompe uma, corrompe-se a beleza. Para se penetrar tudo isso
requer-se, não uma mente desapegada, dedicada ou uma mente reli­
giosa, mas uma mente disposta a investigar, uma mente nunca satis­
feita, que está sempre a olhar, a vigiar, a observar a si própria —
a conhecer a si mesma. Sem o amor, nunca será possível descobrir
o que é a verdade.

P ergunta : Como se pode descobrir qual é o nosso problema


principal?
K rishnamurti: Por que dividir os nossos problemas em principais e
secundários? Não é tudo problema? Por que fazer deles pequenos
problemas ou grandes problemas, problemas essenciais ou não essen­
ciais? Se pudéssemos compreender um só problema, examiná-lo muito
profundamente, por maior ou menor que ele seja, esclareceríamos
todos os outros problemas. Esta não é uma resposta retórica. Consi­
deremos um problema qualquer: cólera, ciúme, inveja, ódio — conhe­
cemo-los todos muito bem. Se examinardes com profundeza a cólera,
em vez de procurardes expulsá-la, que encontrais então? Por que se
encoleriza uma pessoa? Porque se sente magoada: alguém lhe disse
algo ofensivo; e se lhe dizemos algo que a lisonjeia, sente-se satisfeita.
Por que se ofende uma pessoa? Porque atribui importância a si mes­
ma, não é verdade? E por que existe essa importância própria? Por­
que cada um tem de si mesmo uma idéia, um símbolo, uma imagem
— uma idéia do que deveria ser, do que é, do que não deveria ser. Por
que cria uma pessoa uma imagem a respeito de si própria? Porque
nunca estudou o que ela é realmente. Pensamos que devemos ser

229
isto ou aquilo, o ideal, o herói, o exemplo. O que nos desperta a
cólera é ver que está sendo atacado o nosso ideal, a idéia que temos
de nós mesmos. E a idéia que temos de nós mesmos representa
nossa fuga ao fato, ao que somos realmente. Mas, quando estais
observando o fato real, o que sois realmente, ninguém vos pode
ofender. Então, se uma pessoa é mentirosa e lhe dizem que ela é
mentirosa, isso não pode significar uma ofensa, porque se trata de um
fato. Mas, se queremos aparentar que não somos mentirosos e alguém
nos diz que o somos, tornamo-nos encolerizados, violentos. Assim,
estamos sempre vivendo num mundo imaginário, mítico, e nunca no
mundo da realidade. Para se observar o que é, vê-lo, familiarizar-se
com ele, não deve haver julgamento, nem avaliação, nem opinião,
nem medo.
P ergunta : Pode uma pessoa libertar-se com o seguir uma certa
religião?
K rishnamurti: Decerto que não. Dois mil anos ou cinco mil anos
de instrução e persuasão para crer numa certa coisa não é religião. É
propaganda. Há séculos que vos dizem que sois francês, inglês, cató­
lico, hinduísta, budista ou muçulmano — e repetis interminavelmente
estas palavras. E pretendeis afirmar que uma mente de tal modo
condicionada e influenciada, de tal modo escravizada à propaganda e
ao espetáculo da religião, pode, dentro desse condicionamento, ser
libertada?
P ergunta : Dizeis que crer em Deus não faz achar Deus; mas
pode-se achar Deus pela revelação?
K rishnamurti: Por que desejais vos sejam reveladas coisas, quando
não conheceis a vós mesmos? Vosso próprio “ eu” vos foi revelado
nesta tarde: vossa maneira de pensar, vossa maneira de agir, vossos
motivos, ambições, ânsias, vossas incessantes batalhas com vós mesmo.
Isso vos foi revelado, mas nada sabeis a seu respeito. Só conheceis
vossas teorias e visões. E se não conheceis o que se acha em vossa
proximidade imediata, ao alcance de vossa mão, como podeis conhecer
algo que é imenso? Portanto, é muito melhor começardes com o
que está mais perto — vós mesmo. E quando todos os enganos e
ilusões tiverem sido eliminados, descobrireis por vós mesmo o que é
o Real. Não precisareis então de crer em Deus, não precisareis de
nenhuma doutrina; estais em presença do Sublime, do Indenominável.

230
P ergunta : Por que nos assalta o medo ao nos tornarmos côns­
cios de nosso próprio vazio?
K rishnamurti: O medo só se manifesta quando estamos fugindo
da coisa que ê\ quando a estamos evitando, repelindo. Se vos adiais
verdadeiramente em presença da coisa, olhando-a de frente, existe
medo então? Fugir, movimentar-se para longe do fato, atemoriza. O
temor é “ processo” de pensamento, e o pensamento origina-se do
tempo; e se não compreenderdes todo o “ processo” do pensamento e
do tempo, não compreendereis o medo. Olhar o fato, sem procurar
evitá-lo, é pôr fim ao temor.

Pergunta : Dissestes que nossas necessidades essenciais são


comida, roupa e morada, e que o sexo pertence ao mundo
dos desejos psicológicos. Podeis dar mais explicações sobre
isso?
K rishnamurti: Estou certo que esta é uma pergunta cuja resposta
todos aguardam com interesse! Que é o sexo? É o ato ou as ima­
gens agradáveis, os pensamento, as lembranças que o rodeiam? Ou
é simplesmente um fato biológico? E existe lembrança, imagem,
excitação, necessidade, quando existe amor — se posso empregar esta
palavra sem a desvirtuar? Acho necessário compreender o fato físico,
biológico, Esta é uma coisa. Todo o romantismo e excitação, o
sentimento de nos termos dado inteiramente a outra pessoa, nossa
identificação com ela nessa relação, o desejo de continuidade, de
satisfação — tudo isso é outra coisa. Quando o que nos concerne
é realmente o desejo, que papel tem o sexo e qual a sua importância?
É ele uma necessidade psicológica, tanto quanto uma necessidade bio­
lógica? Requer-se um intelecto muito claro, muito penetrante, para
diferençar entre a necessidade física e a necessidade psicológica. O
sexo implica muitas coisas, e não simplesmente o ato. O desejo de
esquecimento de si mesmo noutra pessoa, a continuidade dessa rela­
ção, os filhos, o buscar a imortalidade através dos filhos, da esposa,
do marido, a idéia de “ nos darmos” a outrem, com todos os proble­
mas do ciúme, do apego, do medo — a agonia inerente a tudo isso —
é amor isso? Se não houver compreensão da necessidade, basicamente,
completamente, no mais profundo de nosso ser, nos obscuros recessos
de nossa consciência, então o sexo, o amor e o desejo causarão devas­
tações em nossa vida!

231
P ergunta : A libertação pode ser realizada por todos?
K rishnamurti: Decerto. Ela não é dada só a uns poucos. O estado
de libertação não é uma espécie de “ aristocracia” ; está ao alcance de
quantos queiram investigá-lo. Lá está, com beleza e força sempre mais
ampla e profunda, quando há autoconhecimento. E cada um pode
começar a conhecer-se observando a si próprio, como quem se vê ao
espelho. O espelho não mente; mostra-vos vossas feições exatamente
como são. Da mesma maneira podeis observar-vos, sem desfiguração.
Começais então a descobrir-vos. É uma coisa extraordinária o autoco­
nhecimento. O caminho da realidade, daquela imensidão desconhe­
cida, não passa pela porta de uma igreja nem por livro nenhum, mas
apenas pela porta do autoconhecimento.

12 de setembro de 1961.

232
PARIS V
P ensamento G era Medo

S ERIA proveitoso se pudéssemos experimentar ver­


dadeiramente o que vamos dizer. Para a maioria de nós a experiência
é uma coisa muito superficial. Correspondemos a cada desafio quase
indiferentemente, languidamente; há hesitação, medo às conseqüêncías.
Jamais correspondemos de maneira completa a um “ desafio” , com
todo o nosso ser. Assim, há a contínua falta de atenção total ao apre­
sentar-se um “ desafio” e, por conseguinte, nossas reações são limitadas,
restritas; nunca são livres, completas. Já deveis ter notado isso. E
afigura-se-me bem importante considerar este assunto cuidadosamente,
porquanto temos numerosas experiências no correr de cada dia, muitas
influências atravessam-nos, deixando-nos cada uma sua marca. A pala­
vra fortuita, um gesto, uma idéia, uma frase casual, um olhar, — tudo
deixa-nos sua marca e nunca lhe damos inteira atenção. Para se expe­
rimentar compíetamente qualquer coisa, requer-se atenção total; e cum­
pre notar que a atenção difere sobremodo da concentração. Concen­
tração é processo de exclusão, restrição, supressão, ao passo que a
atenção tudo absorve.
Como vou falar sobre matéria complexa, importa compreender
que o experimentar exige toda atenção; não significa ouvir meramente
as palavras, mas também experimentar realmente a coisa. Escutar é
muito difícil. Quase nunca escutamos deveras uma coisa, uma ave,
uma voz, o marido, a esposa ou o filho; acolhemos descuidadamente
umas poucas palavras e desprezamos o resto, sempre interpretando,
modificando, condenando e escolhendo. O escutar requer uma certa

23J
qualidade de atenção plena em que nada disso acontece, em que aplí=
camos todo o nosso ser ao descobrir.
Assim, para se investigar o medo, sobre o qual vou agora falar
convosco, para examiná-lo com certa profundeza, requer-se atenção
constante, e não escutar apenas umas poucas frases e seguir seu cami­
nho, com o pensamento nas próprias idéias e problemas; significa
investigar de princípio a fim o problema do medo. Ser realmente
sério é possuir a capacidade de investigar cada questão até o fim, quais­
quer que sejam as conseqüêncías, qualquer que seja o resultado final.
Desejo falar sobre o medo, porque o medo perverte todos os
nossos sentimentos, pensamentos e relações. Ê o temor que impele
a maioria de nós a tornar-nos isso que se chama “ espiritual” ; é ele
que nos impulsiona para as soluções intelectuais que tantos oferecem;
é ainda o temor que nos leva a praticar ações estranhas e peculiares,
E não sei se já experimentamos em sua realidade, não o sentimento
que ocorre antes ou após um certo fato! O medo existe por si só?
Ou só há medo em conseqüência do pensamento no amanhã ou no
ontem, no que aconteceu ou poderá acontecer? Existe medo no pre­
sente vivo, ativo? Quando vos vedes em presença da coisa que dizeis
temer, nesse instante mesmo existe medo?
Para mim, é importantíssima esta questão do medo. Porque, se
a mente não estiver total, completa e absolutamente livre do medo em
qualquer forma — medo da morte, da opinião pública, da separação,
de nao ser amado — sabeis quantas variedades existem de medo —
se a consciência total não estiver livre do medo, é impossível ir-se
muito longe. Uma pessoa pode agitar-se ansiosamente, em todos os
sentidos, dentro das clausuras de seu próprio intelecto; mas para se
penetrar muito profundamente em si mesmo e ver o que existe lá e
além, não deve haver temor de espécie alguma, nem temor da morte,
nem da pobreza, nem de não alcançar alguma coisa.
Q medo, em virtude de sua própria natureza, inevitavelmente
impede a investigação. E, a menos que a mente, que todo o nosso
ser esteja livre do medo, não só dos temores conscientes mas também
dos profundos, secretos, ocultos temores, de que mal temos consciên­
cia — não haverá possibilidade de se descobrir o que existe realmente,
o que é verdadeiro, positivo, e se de fato existe aquele senso do subli­
me, do imenso, de que o homem vem falando há séculos e séculos.

234
Creio ser possível estar totalmente livre do meòo, não durante
um certo período, não ocasionalmente, porém verdadekamente livre
dele, de maneira completa. A experiência desse estado total isento
de medo, eis o que desejo examinar junto convosco.
Desejo tomar claro que não estou falando de memória. Não pen­
sei de antemão na questão do medo e, portanto, não vim aqui repetir
coisa ensaiada; isso seria horrivelmente enfadonho para mim e para
vós. Eu também estou investigando. Deve tratar-se sempre de coisa
nova, todas as vezes. E espero estejais empreendendo junto comigo
a jornada da investigação e não apenas preocupados com vosso medo
especial — medo do escuro, do médico, do inferno, da doença, de
Deus, do que digam vossos país, do que diga vossa esposa ou marido,
ou uma qualquer das numerosas formas de medo. Estamos investi­
gando a natureza do medo e não uma determinada manifestação do
medo.
Ora, se examinardes, vereis que só há medo quando o pensa­
mento se fixa no dia de ontem ou de hoje, no passado ou no futuro.
No verbo ativo não há temor, mas no passado e no futuro do verbo
ele sempre existe. Não há medo no presente real; e esta é uma coisa
extraordinária para a própria pessoa descobrir. Não existe medo de
espécie alguma em face do momento real e vivo, do presente ativo.
O pensamento, portanto, é a origem do medo, o pensamento no ama­
nhã ou no ontem. A atenção está no presente ativo. O pensamento
no que ontem aconteceu, ou poderá acontecer amanhã, é desatenção,
e a desatenção gera temor. Não é verdade isso? Quando posso aplicar
toda a minha atenção a um dado problema, sem nenhuma reserva,
sem rejeitar, sem julgar, avaliar — nesse estado de atenção não há
medo. Mas, se há desatenção, isto é, se digo: “ Que acontecerá ama­
nhã?” , ou se estou todo ocupado com o que ontem aconteceu, aí, sem
dúvida, gera-se medo. A atenção é o presente ativo. O medo é o
pensamento enredado no tempo. Na presença de algo real, concreto,
em presença do perigo, neste momento não existe pensamento, porém
ação. E essa ação pode ser positiva ou negativa.
Assim, o pensamento é tempo — não o tempo marcado pelo
relógio, mas o tempo psicológico do pensamento. Q tempo, por
conseguinte, produz medo: tempo como distância daqui até lã, como
processo de “ vir a ser algo” ; tempo representado pelas coisas que eu
disse e fiz ontem, as coisas ocultas que não desejo que ninguém saiba;

235
tempo representado peío que acontecerá amanhã, pelo que será de
mim quando eu morrer.
O pensamento, pois, é tempo. E existe, no presente ativo, tempo
e pensamento? Pode-se ver que o medo só existe quando o pensa­
mento se “ projeta” para diante ou para trás, e que o pensamento
resulta do tempo — tempo representado pelo “ vir a ser” ou “ não vir
a ser” algo, tempo como preenchimento ou frustração. Não estamos
falando do tempo cronológico; seria evidente desatino dispensá-lo.
Estamos falando do tempo como pensamento. Se está claro isto, pas­
semos a investigar o que é pensamento e o que é pensar. E espero
não estejais apenas ouvindo minhas palavras, mas também prestando
atenção ao desafio que elas vos apresentam e reagindo individual­
mente. Estou perguntando: “ Que é pensar?” . Se não conheceis o
mecanismo do pensar e não o investigastes muito profundamente, não
podeis responder, vossa reação será inadequada. E se é inadequada
a reação, haverá conflito, e tentar livrar-se do conflito é fuga ao fato
— o fato que desconheceis. No momento em que reconheceis que
não podeis responder, que não sabeis, apresenta-se o medo. Não sei
se me estais seguindo.
Assim, que é pensar? Evidentemente, pensar é a reação que
ocorre entre o “ desafio” e a “ resposta” , não é verdade? Pergunto-vos
uma coisa e há um intervalo de tempo antes de responderdes; neste
intervalo o pensamento está em ação, procurando a resposta. É bas­
tante simples ouvir esta explicação; mas o real experimentar, pela
própria pessoa, do processo do pensar, o investigar como o intelecto
reage a um “ desafio” e qual é o processo de fabricação da resposta,
isso requer atenção ativa, pois não? Observai qual é vossa reação à
pergunta: “ Que é pensar?” Que está ocorrendo? Não sabeis respon­
der; nunca investigastes isso; estais aguardando uma resposta de vossa
memória. E nessa “ demora” , no intervalo entre a pergunta e a res­
posta, está em ação o processo do pensamento; não é assim? Se vos
faço uma pergunta com que estais familiarizado, por exemplo: “ Como
é vosso nome?” , respondeis instantaneamente porque, pela repetição
constante, tendes a resposta na ponta da língua. Se a pergunta é um
pouco mais séria, ocorre um intervalo de tempo de vários segundos —
não é verdade? — durante o qual o intelecto é posto em movimento
para procurar na memória a resposta. Se vos fazem uma pergunta
mais complexa, maior é o intervalo de tempo, mas o processo é o

236
mesmo — consultar a memória, procurar as palavras apropriadas,
achá-las e em seguida responder. Segui isso com vagar, pois é real­
mente muito divertido e interessante observar o funcionamento desse
processo. Tudo isso faz parte do autoconhecimento.
Pode-se também perguntar, por exemplo, “ Quantas milhas há
daqui a Nova Iorque?” — pergunta à qual, após consultar a memória,
sois obrigado a responder: “ Não sei, mas posso verificar” . Isso leva
mais tempo. E pode-se também fazer uma pergunta que vos obrigue
a dizer: “ Não sei a resposta” ; porém, ao mesmo tempo ficais espe­
rando uma resposta, esperando que vo-la digam. Assim, temos a per­
gunta familiar e a resposta imediata; a pergunta menos familiar, que
exige algum tempo; a coisa de que não tendes certeza, mas que podeis
verificar e para isso precisais de tempo; e, por fim, a coisa que não
sabeis mas achais que, se esperardes, tereis a resposta.
Agora, se alguém pergunta: “ Existe ou não existe D eus?’'' —
que acontece? Nenhuma resposta pode ser encontrada na memória,
pode? .Embora vos agrade crer, embora vos tenham ensinado a crer,
deveis varrer esses disparates. Investigar na memória não dá resul­
tado; esperar que vos dêem a resposta é inútil, porque ninguém pode
dá-la; e o intervalo de tempo para nada serve. Há só o fato no
presente ativo, a certeza absoluta de que não sabeis. Esse estado de
“ não saber” é atenção completa, não? E qualquer outra forma de
saber ou de não saber procede do tempo e do pensamento, e é desa­
tenção.
Estais seguindo tudo isso e aprendendo? Aprender, por certo,
supõe “ não saber” . Aprender não é adicionar, acumular. No pro­
cesso de acumular, o que se faz é apenas aumentar o conhecimento,
que é estático. O aprender é constante variação, mudança, viver.
Sendo assim, que acontece quando estais aprendendo a respeito
do medo? Estais investigando o medo, não é verdade? Estais “ ata­
cando” o medo, não é o medo que vos está atacando. E descobris
então que não existe esta coisa: “ vós e o medo” . Esta divisão não
existe. A atenção, pois, é o presente ativo, no qual a mente, o inte­
lecto, diz: “ Não sei, absolutamente” . E nesse estado não existe
medo. Mas existe medo quando dizeis: “ Não sei, mas espero saber” .
Eis um ponto essencial que importa compreender. Consideremo-lo de
diferente maneira.

237
Sem dúvida, o medo surge quando buscamos a segurança, exte­
rior ou interiormente; quando se aspira a um estado permanente, dura­
douro, nas relações, nas coisas mundanas, na confiança, que o saber
proporciona, na experiência emocional. E, finalmente, dizemos que
existe Deus, absoluta e eternamente permanente, em cujo seio encon­
traremos imperturbável paz e segurança para todo o sempre. Cada
um está a buscar segurança nesta ou naquela forma, e sabemos como
cada um atua — buscando a segurança no amor, na propriedade, na
virtude, jurando a si mesmo ser bom, casto. Todos conhecemos os
horrores inerentes à busca, secreta ou aberta, da segurança. E isso é
medo, porquanto nunca averiguastes se existe segurança. Não o sabeis.
Emprego estas palavras para denotar que se trata de um fato que
desconheceis absoluta e completamente. Vós não sabeis se Deus
existe ou não existe. Não sabeis se haverá ou não outra guerra. Não
sabeis o que irá acontecer amanhã. Não sabeis se existe, interior­
mente, alguma coisa permanente. Ignorais o que irá suceder em vos­
sas relações, com vossa esposa, vosso marido, vossos filhos. Não sa­
beis; mas deveis verificar isso, não achais? Deveis descobrir por
vós mesmo que ignorais. E esse estado de não saber, esse estado de
completa incerteza, não é medo; é a atenção plena, na qual podeis
descobrir.
Vê-se, pois, que a totalidade da consciência — a qual inclui o
superficial, o consciente, o oculto, e as extremas profundezas dos resí­
duos raciais, os “ motivos” , tudo o que constitui pensamento — vê-se
que a totalidade da consciência é, essencialmente, medo. A consciên­
cia é tempo, resultado de muitos dias, meses, anos e séculos. Vossa
consciência de serdes francês se formou, historicamente, através de
muitas gerações de propaganda. O fato de serdes cristão, católico, o
que quer que seja, representa dois mil anos de propaganda durante os
quais fostes obrigado a crer, a pensar, a funcionar e atuar segundo
um certo padrão chamado “ cristão” . E não ter crença alguma, ser o
mesmo que nada parece coisa temível. Assim, a totalidade da consciên­
cia é medo. Isto é um fato, e não há concordar ou discordar sobre
um fato.
Agora, que acontece quando vos vedes em presença de um fato?
Ou tendes opiniões a respeito do fato, ou simplesmente o observais.
Se tendes opiniões, juízos, avaliações do fato, então não o estais vendo.
E não o vedes porque entra em cena o tempo, pois vossa opinião é

238
produto do tempo, do ontem, de vossos conhecimentos anteriores.
O ver realmente está no presente ativo, e nesse ver não existe medo.
Isso é um fato real. O experimentar de um fato real é que liberta
do medo a consciência total. Espero que não estejais muito cansados
e possais experimentar isto, pois não podeis levá-lo para casa para lá
refletir a seu respeito. Porque então não tem valor. O que tem valor
é enfrentar o fato diretamente, e penetrá-lo. Vereis então que o todo
de nosso mecanismo pensante, com seus conhecimentos, suas sutilezas,
suas defesas e renúncias — que esse todo constitui o pensamento e é
a causa real do temor. E vemos também que, quando há atenção total,
não há pensamento; há, só, percepção, o ato de ver.
Havendo atenção, há completa tranqüilidade; porque nessa aten­
ção não há exclusão. Quando o intelecto pode estar completamente
sereno — não adormecido, porém ativo, sensível, vivo, — nesse estado
de atenta serenidade não existe medo. H á então uma qualidade de
movimento que não é pensamento, absolutamente, que não é senti­
mento, emoção ou sentimento. Não é uma visão, nem uma ilusão; é
um movimento de qualidade toda diferente, que conduz ao Indeno-
minável, ao Imensurável, à Verdade.
Mas, infelizmente, não estais escutando, experimentando deveras,
pois não examinastes isto realmente, não investigastes até este ponto.
Por conseguinte, o medo não tardará a precipitar-se novamente sobre
vós, qual uma vaga, submergindo-vos. Tendes, portanto, de examinar
isto; e no examiná-lo está a solução. Esta é a base; e uma vez lançada
a base, nunca mais buscareis, porque toda busca da Realidade se baseia
no medo. Libertada do medo a mente, o intelecto, então podereis
descobrir.

P ergunta : Li um livro de vossa autoria sobre educação. Não


se poderia fundar uma escola desse gênero, enquanto estais
aqui, em Paris?
K rishnamurti: Em primeiro lugar, senhor, estivemos falando acerca
do medo e não sobre fundação de escolas. Se desejais fundar uma
escola desse gênero, é a vós que compete esta tarefa, e não a mim,
pois parto no fim da próxima semana. E, também, não é tão fácil
assim fundar escolas. É necessário o impulso do entusiasmo. Esta
pergunta é boa, no seu lugar próprio; mas vejamos se se podem fazer
perguntas mais pertinentes.

239
P ergunta : Por que temem as crianças?
K rishnamurti: Não é mais certo perguntar: “ Por que temos medo?”
É bastante óbvio por que as crianças temem. Estão rodeadas por uma
sociedade baseada no temor. Os pais temem; e a criança necessita
essencialmente de segurança e, quando se vê privada dela, sente medo.
Vede, não estais enfrentando o fato de que há temor em vós.

P ergunta : É possível estar sempre no estado de atenção plena


que excluí o medo?
K rishnamurti: Na atenção não há exclusão; ela não é um processo
de resistência. Examinamos a questão do medo e vimos que não existe
medo quando estamos atentos. Na atenção não há processo de pensa­
mento “ exclusivo” . Pode-se fazer uso do pensamento, mas não há
então exclusão. Não sei se percebeis. Eu estou atento; neste momento
sou todo atenção. Mas tenho de empregar palavras para comunicar-me
convosco. Ás palavras só servem para a comunicação, e não para se
experimentar o fato real.
E apresenta-se aí a questão de como manter a atenção plena.
Ora, “ manter” implica tempo e, portanto, a destruição da atenção.
Se a atenção cessa, é deixá-la ir-se, e esperar que volte. Nunca digais:
“ preciso mantê-la” ; porque isso significa esforço, tempo, pensamento
e tudo o mais.
P ergunta : A memória está inteiramente associada ao conheci­
mento, ou é “ aquele silêncio” uma memória de diferente
qualidade?
K rishnamurti: De todo o processo de conhecer, acumular experiên­
cia, resulta a memória, que é tempo. Conhecemos o processo mecâ­
nico da acumulação das lembranças. Toda experiência incompreen­
dida, incompleta, deixa sua marca, que chamamos memória.
E “ aquela tranqüilidade” é uma memória de qualidade diferente?
A memória, por certo, implica continuidade: o passado, o presente e
o futuro. A tranqüilidade não tem continuidade, e é importante com­
preender isto. Pode-se induzir, disciplinar o intelecto para se tornar
tranquilo, e esse disciplinar tem uma continuidade; mas a tranqüili­
dade resultante da disciplina, da memória, não é tranqüilidade ne­
nhuma.

240
Nós nos referimos a uma tranquilidade que vem sem ser cha­
mada, quando não existe medo de espécie alguma, declarado ou secreto.
E quando existe essa tranqüilidade, que é uma necessidade absoluta,
independente da memória, verifica-se então um movimento de quali­
dade totalmente diferente.

14 de setembro de 1961.

241
PARIS VI
D a Mutação R adical

13 ESEjo falar sobre um tópico que me parece


importante: a questão da mudança, mutação. Que se entede por
“ mudança” ? Em que nível e até que profundidade podemos mudar?
Evidentemente, a mudança é necessária; não só o indivíduo, mas tam­
bém a coletividade deve mudar. Não creio na existência de uma
mente coletiva, salvo os instintos raciais e conhecimentos hereditários,
armazenados no inconsciente; mas, sem dúvida, a ação coletiva é neces­
sária. No próprio ato da mudança individual o coletivo também, por
certo, mudará. O individual e o coletivo não são duas coisas sepa­
radas, opostas uma à outra, embora certos grupos políticos procurem
separá-lo, a fim de forçarem o indivíduo a ajustar-se à chamada massa
coletiva.
Se pudéssemos esclarecer juntos todo o problema de mudança,
como produzir uma mudança no indivíduo, e o que esta mudança
implica, então, talvez, no próprio ato de escutardes, tomardes parte
na investigação, poderá ocorrer uma mudança independente de vossa
volição. Para mim, a mudança deliberada, a mudança compulsória,
disciplinar, de ajustamento, não é mudança nenhuma. A coerção, a
influência, uma nova invenção, a propaganda, um temor, um motivo
impele-vos a mudar — mas isso não é mudança nenhuma. E embora
intelectualmente possais concordar muito facilmente com isso, assegu­
ro-vos que penetrar e compreender a verdadeira natureza da mudança
sem motivo é uma coisa maravilhosa!
Quase todos nós temos hábitos de pensamento, idéias, gostos
físicos, tão profundamente fixados e arraigados que parece-nos quase

242
impossível abandoná-los. Estabelecemos certos bábitos de comer —
exigir determinados alimentos — certos hábitos de vestir, e hábitos
físicos, hábitos emocionais, hábitos de pensamento, etc.; e é real­
mente difícil promover-se uma modificação profunda, radical, sem o
emprego da compulsão e da ameaça. A mudança que conhecemos é
sempre muito superficial. Uma palavra, um gesto, uma invenção pode
fazer-nos quebrar um hábito e ajustar-nos a um novo padrão; e pen­
samos que mudamos. Deixar uma igreja para ingressar noutra, deixar
de chamar-se “ francês” para intitular-se “ europeu” ou “ internaciona-
lista” , esta espécie de mudança é bem superficial; é puro “ comércio” ,
barganha. Uma mudança no modo de viver, fazendo uma viagem ao
redor do mundo, uma modificação das próprias idéias, atitudes, valo­
res — todo esse processo me parece superficial, porque resultado de
coerção, exterior ou interior.
Assim, pode-se ver muito claramente que mudar em virtude de
uma dada influência exterior, do medo, ou em virtude do desejo de
alcançar um certo resultado, não constitui mudança radical. E nós
necessitamos deveras de uma mudança completa, de uma tremenda
revolução. O de que necessitamos não é uma mudança de idéias, de
padrões, mas, sim, da demolição, da destruição total de todos os pa­
drões. Historicamente, pode-se ver que toda revolução, por mais
promissora e por mais violenta que seja no começo, acaba invariavel­
mente no velho e repetido padrão; e que toda mudança promovida
sob a compulsão do medo ou promessa de recompensa, vantagens, é
apenas mais uma adaptação. E a mudança é necessária, pois não
podeis continuar a viver com essas atitudes, crenças e dogmas tão
insignificativos, estreitos, limitados. Tudo isso précisa ser destroçado,
destruído. E como destruí-los? Quais os processos que quebrarão
totalmente a formação de hábitos? É possível passarmos completa­
mente sem padrões: não deixarmos um hábito para formarmos outro?
Se tudo está bem entendido até aqui, podemos então prosseguir,
para averiguar se é possível desenvolver uma qualidade que torne a
mente, o intelecto, sempre fresco, sempre jovem, novo, de modo que
nunca forme hábitos de pensamento nem se deixe apegar a qualquer
dogma ou crença. Parece-me, pois, necessário investigar toda a estru­
tura dentro da qual funciona nossa consciência. A totalidade de nossa
consciência, — a oculta e a superficial — funciona dentro de uma
estrutura, uma linha divisória; e quebrar esta linha divisória é o pro­

243
blema que se nos depara. Não se trata apenas de mudança na maneira
de pensar; pois podemos pensar de nova maneira, como os mais moder­
nos comunistas, ou adotar uma nova crença; mas isso está ainda den­
tro da estrutura da consciência, do pensamento; e o pensamento é
sempre limitado. Assim, mudança do padrão de pensamento não
constitui quebra das limitações da consciência.
Os mais de nós nos satisfazemos completamente com um ajusta­
mento superficial e achamos que é melhoramento aprender uma nova
técnica, adquirir uma nova língua, obter um novo emprego, ou for­
mar um novo estado de relação quando o velho se nos tornou inco­
modo. Para a maioria de nós a vida está neste nível: ajustamento,
compulsão, quebra de velhos padrões para nos enredarmos em novos.
Mas isso, absolutamente, não é mudança e os atuais problemas huma­
nos exígem uma revolução completa, mudança total. Portanto, releva
penetrarmos muito mais profundamente na consciência, para vermos
se é possível promover uma mudança radical, de modo que sejam
quebradas as limitações do pensamento e libertada a consciência.
Talvez superficialmente, conscientemente, possamos passar um
pouco a esponja sobre o que está na superfície da lousa; mas limpar
os recessos profundos do coração e da mente, o oculto, o inconsciente,
isso parece quase impossível, não é verdade? — pois não se sabe o
que lá existe; a mente superficial não pode penetrar no obscuro depó­
sito da memória. Mas isso precisa ser feito.
Espero que não estejais acompanhando apenas verbal, intelectual­
mente, pois isso seria um jogo muito estúpido, como brincar com
cinzas. Mas, se estais acompanhando experimentalmente, realmente
— seguindo, não o orador, porém a experiência que vós mesmo estais
fazendo — penso que isso terá então muito valor. Assim, como pene­
trar o inconsciente, os recessos ocultos do coração, da mente, do inte­
lecto? Os psicólogos e analistas procuram reconduzir-vos até à infân­
cia, etc., mas isso de modo nenhum resolve o problema fundamental,
porquanto é então existente o interpretador, o avaliador, e estais, tão
só, vos ajustando de novo a um padrão. Nós estamos falando sobre
a completa destruição do padrão, porquanto o padrão é meramente a
experiência de milhares de anos inculcada à força de repetição, no
intelecto, que é sumamente sensível e adaptável.
Dessarte, como iniciar a quebra do padrão? Primeiramente deveis
estar certos de que o processo analítico do psicólogo, do analista ou

244
de vós mesmo, nenhum valor tem quando se trata da completa trans­
formação, da mutação completa. Poderá ter algum valor para tornar
a pessoa mentalmente doente capaz de ajustar-se melhor à atual e
malsã sociedade; mas não é dísso que estamos falando. Antes de con­
tinuarmos, devemos estar perfeitamente certos de que a análise não
pode promover revolução total na consciência. Que implica a análise?
Quer procedida por outro, quer por vós mesmo, nela há sempre o
observador e a coisa observada, não é verdade? Há o observador,
que observa, que critica, que censura; e que interpreta tudo o que
observa conforme um sistema de valores que ele já possui. Há, assim,
separação entre observardor e coisa observada, portanto conflito; e,
se o observador não está observando acuradamente, há falsa interpre­
tação, e esta falsa interpretação é levada para diante indefinidamente,
causando incompreensão mais profunda. Assim, um equívoco, em aná­
lise, não tem fim. Disso deveis estar perfeitamente certos; certos, no
sentido de que podeis ver que não é esse o caminho certo para se
alcançar a livre consciência.
Assim, quando não sabemos qual é o caminho certo, mas somos
capazes de discernir e rejeitar o caminho errado, nossa mente está
então num estado de negação, não é verdade? Não sei se já experi­
mentastes algumas vez o pensar negativo. Nosso pensar é pela maior
parte pensar positivo, o qual inclui também uma certa forma de nega­
ção. Nosso pensar se baseia atualmente no medo, no lucro, na recom­
pensa, na autoridade; pensamos consoante uma fórmula; e tal é o
pensar positivo, com suas negações próprias. Mas nós estamos falando
sobre a rejeição do falso, sem se saber qual é o verdadeiro. Pode uma
pessoa dizer a si mesma: “ Sei que a análise é falsa e não quebrará as
limitações da consciência nem produzirá transformação; portanto, não
farei uso dela” . Ou, “ Sei que o nacionalismo é um veneno, seja da
França, seja da Rússia ou da índia; conseqüentemente, rejeito-o. Não
sei se há outra coisa, mas percebo que o nacionalismo é falso” . E
perceber que os deuses, os salvadores, as cerimônias que os homens
inventaram, quèr remontem a dez ou a dois mil anos atrás, quer sejam
dos últimos quarenta anos — perceber que tudo isso não tem validade
e negá-lo completamente, isso exige uma mente, um intelecto bem
esclarecido, destemeroso de negá-lo. Então, ao rejeitardes o falso, já
estais começando a ver o que é verdadeiro, não achais? Para ver o

245
que é verdadeiro é necessária, primeiramente, a rejeição, a negação
do falso. Eu gostaria de saber se estais acompanhando isto!
Para descobrir o que é a beleza, impende rejeitar toda a beleza
que o homem criou. Para se experimentar a essência da beleza é
preciso, antes, destruir tudo o que até agora se criou; porque a expres­
são, por mais maravilhosa que seja, não é a beleza. Só se descobre o
que é a virtude, essa coisa extraordinária, pondo abaixo toda a mora­
lidade social de respeitabilidade, com seus estúpidos tabus sobre o
que se deve fazer e o que se não deve fazer. Quando se vê e se nega
o que é falso, sem se saber de antemão o que é verdadeiro, começa
então o real estado de negação. Só a mente e o intelecto que estão
vazios do que é falso podem descobrir o que é verdadeiro.
Assim, se o processo analítico não pode quebrar a estrutura den­
tro da qual funciona a consciência, e se rejeitastes esse processo, deveis
então perguntar a vós mesmo quais são as outras coisas falsas que
devem ser rejeitadas. Espero estejais seguindo.
Por certo, a segunda coisa que se deve rejeitar é a exigência de
mudança. Por que se exige mudança? Nunca exigis mudança se as con­
dições presentes vos são convenientes, satisfatórias. Ninguém deseja
uma revolução quando possui um milhão de dólares. Não deseja revo­
lução quem está confortável e comodamente instalado na sociedade,
com sua mulher, seu marido, seus filhos. Diz-se, então: “ Por Deus,
deixai tudo como está” . Só deseja revolução quem se vê perturbado,
descontente, quem deseja mais dinheiro, uma casa melhor. Assim, se
examinardes esta questão com profundeza, vereis que nossa exigência
de mudança é exigência de uma vida mais confortável, mais proveitosa.
Está baseada num motivo: adquirir um novo padrão de conforto, de
segurança. Agora, se percebeis que esse processo é falso, como deveis
perceber, e desejais descobrir o que é verdadeiro, há então busca de
mudança? Existe qualquer busca que seja?
Afinal, todos vós aqui estais porque desejais descobrir, não é
verdade? Quê buscais, e por que buscais? Se bem examinardes isso,
descobrireis que estais insatisfeito com as coisas como são e desejais
algo novo. E o novo tem de ser sempre satisfatório, confortável, con­
fortador, seguro. As pessoas chamadas religiosas estão em busca de
Deus. Pelo menos o dizem. Mas uma busca implica sempre algo
que se perdeu, ou algo que se conheceu e se deseja recuperar. Como
se pode buscar Deus? Nada sabeis, absolutamente, a respeito de

246
Deus, a não ser o que vos disseram — e isso é só propaganda. A
Igreja faz uso da propaganda, e os comunistas também o fazem. Mas
nada sabeis a respeito de Deus; e, para descobrir, deveis negar, rejei­
tar totalmente todas as formas de propaganda, todos os ardis de que
se têm servido as Igrejas e outros.
Assim, para haver completa transformação na consciência é neces­
sário rejeitar a análise, a busca e não mais estar sujeito a nenhuma
influência, sendo isso imensamente difícil. A mente, percebendo o
que é falso, rejeita completamente o falso, sem saber o que é verda­
deiro. Se já sabeis o que é verdadeiro, neste caso estais apenas tro­
cando o que considerais falso pelo que imaginais verdadeiro. Não
há renúncia se já se sabe o que se vai obter em troca. Só há renún­
cia quando abandonamos uma coisa sem saber o que irá acontecer.
Este estado de negação é completamente necessário. Acompanhai isto
com atenção, porque, se chegastes até este ponto, podeis ver que
nesse estado de negação se descobre o verdadeiro; porque negação é
despejar da consciência o conhecido.
A consciência, afinal de contas, se baseia no conhecimento, na
experiência, na herança racial, na memória, nas coisas que foram expe­
rimentadas. As experiências são sempre do passado, e estão operando
no presente, sendo modificadas pelo presente e continuando para o
futuro. Tudo isso é a consciência, o vasto reservatório dos séculos.
Ela tem sua utilidade tão-só no viver mecânico. Seria absurdo rejei­
tar todos os conhecimentos científicos adquiridos através do longo
passado. Mas, para se produzir uma mutação na consciência, uma
revolução em toda essa estrutura, há necessidade de um vazio com­
pleto. E esse vazio só se torna possível com o descobrimento, o real
percebimento do que é falso. Pode-se então ver, se tiverdes chegado
até aí, que o próprio vazio produz uma revolução completa na cons­
ciência: ela já se realizou.
Como sabeis, muitos de nós temos medo, terror de estar sós.
Queremos sempre uma mão para segurar, uma idéia a que apegar-nos,
um deus para adorar. Nunca estamos sós. Em nosso quarto, no ôni­
bus, estamos sempre acompanhados de nossos pensamentos, nossas
ocupações; e, quando no meio de outras pessoas, ajustamo-nos ao
grupo, à companhia. Nunca estamos deveras sozinhos, e só pensar
nisso faz-nos medo. Mas só a mente, o intelecto que está completa­
mente só, vazio de toda exigência, toda forma de ajustamento, toda

247
influência, completamente vazio, só essa mente descobre que esse
próprio vazio é mutação.
Eu vos garanto que todas as coisas nascem do vazio; todas as
coisas novas procedem desse vasto, imensurável, insondável sentimento
de vazio. Isto não é romantismo, não é nenhuma idéia, nem imagem,
nem. ilusão. Quando se rejeita completamente o falso, sem se saber
o que é verdadeiro, ocorre uma mutação na consciência, uma revolu­
ção, uma transformação total. Talvez então já nem haja a consciência
tal como a conhecemos, porém algo inteiramente diferente; esta cons­
ciência, este estado pode viver neste mundo, porque não há rejeição
do conhecimento mecânico. Assim, se penetrastes bem, o encontrastes.
P ergunta : Se percebemos visualmente o falso como falso e o
abandonamos, isso é renúncia ou há algo mais?
K rishnamurti: Penso que na renúncia há mais alguma coisa. Que
nos faz rejeitar, renunciar, qual a razão, o motivo? O que vos impele
a rejeitar algo ou é o medo ou a vantagem. Se já não encontrais
conforto na vossa Igreja, ingressais noutra ou em alguma seita estúpida.
Mas, se rejeitais toda e qualquer Igreja, toda e qualquer maneira de
apegar-vos a algo confortante, sem saberdes aonde vos levará esse
estado de incerteza, esse estado de perigo, isso, sim, é renúncia. É
necessário um claro percebimento de que toda organização religiosa é
prejudicial, é algo feio, escravizante; e quando rejeitais tal coisa, rejei­
tais todas as organizações espirituais. E isso significa que tereis de
ficar só, não? Mas todos vós desejais pertencer a tal ou tal coisa,
denominar-vos franceses, ingleses, alemães, católicos, protestantes e
tudo o mais. Ser completamente estranho a tudo isso é renúncia.
Pergunta : Ao alcançar esse sentimento de vazio, como pode a
pessoa viver praticamente neste mundo?
K rishnamurti: Em primeiro lugar, vós o alcançastes? E quando o
alcançamos, não rejeitamos os conhecimentos mecânicos, não é ver­
dade? Precisamos dos conhecimentos mecânicos para podermos viver
neste mundo, exercer nosso emprego, funcionar como engenheiros, ele­
tricistas, violinistas, etc. Estamos falando acerca de uma revolução
na consciência, na psique, em nosso ser integral. Os conhecimentos
técnicos superficiais, o equipamento mecânico das atividades diárias,
desses nós necessitamos. Mas se a mente que se serve desses conhe­
cimentos técnicos não está completamente livre, não se encontrar num

248
estado de mutação, então o mecanismo superficial se tornará destru­
tivo, nocivo, feio, brutal; e é isso que está acontecendo no mundo.
Pergunta : Podeis expíicar-nos de novo por que a análise é erra­
da? Eu não o percebi bem.
K rishnamurti: Consideremo-lo de maneira diferente. Que são os
sonhos? Por que sonhamos? Não me estou desviando da pergunta.
Vós sonhais porque durante o dia vosso intelecto está tão ocupado
que não tem tranquilidade, na qual e com a qual possa penetrar fundo.
E sabeis como ele está ocupado — com o emprego, a competição,
milhares de coisas. Assim, enquanto dormis apresentam-se sugestões,
comunicações do inconsciente, sob a forma de símbolos, sonhos; e ao
despertardes vos lembrais desses sonhos e procurais interpretá-los ou
mandar interpretá-los. Conheceis todo esse processo. Ora, por que
sonhamos? Por que deveis sonhar? Sonhar não é, se posso usar a
palavra, errado? Porque, se estais em observação, se estais atento
para tudo o que ocorre ao redor de vós ou dentro de vós, durante
todas as horas em que estais despertos, então, nessa vigilância, ides
descobrindo todas as coisas enquanto caminhais; todos os motivos,
desejos e impulsos inconscientes emergem na mente consciente e são
compreendidos. Então, quando dormis, não é possível sonhar. Tem
então o sono significado completamente diferente. O mesmo acon­
tece com a análise. Se se puder perceber, num relance, o processo
total da análise — e isto é possível — ver-se-á então que enquanto
há um observador, um censor que interpreta, a análise é sempre
errada. Porque a condenação ou aprovação pelo censor baseia-se no
seu condicionamento.
Pergunta : Falais da libertação de todas as influências; mas estas
reuniões não nos estão influenciando?
K rishnamurti: Se estais sendo influenciado por este orador, neste
caso tanto faz virdes aqui como irdes ao cinema, à igreja, à missa. Se
estais sendo influenciado pelo orador, estais criando uma autoridade;
e qualquer espécie de autoridade impede-vos a comprensão do real, do
verdadeiro. E se estais sendo influenciado pelo orador, não compreen­
destes o que ele esteve dizendo nesta última hora e nestes últimos
trinta anos. Estar livre de toda influência — dos livros que ledes,
dos jornais, do cinema, da educação que recebestes, da sociedade a
que pertenceis, da influência da Igreja — estar cônscio de todas as

249
influências e não se deixar apanhar por nenhuma delas, isto é inteli­
gência. Requer atenção, vigilância, percebimento de todas as coisas
que se passam interiormente, todas as reações, e isso significa não
deixar passar um só pensamento sem lhe conhecer o conteúdo, o
fundo, o motivo.

17 de setembro de 1961.

250
PARIS VII
N ada E xigir da V ida

C_v OM vossa permissão, desejo hoje tratar de um


assunto um tanto complexo, que é a morte. Mas, antes de entrarmos
na matéria desejo sugerir àqueles que estão tomando notas que não
o façam. Este orador não está pronunciando uma conferência, para
fazerdes anotações e depois interpretardes, vós ou outro, o que se
está dizendo. Intérpretes são exploradores, não importa se bem inten­
cionados ou se meramente desejosos de “ fazer nome” . Assim, desejo
sugerir-vos com toda a seriedade que presteis atenção e experimenteis
agora, em vez de deixardes para refletir mais tarde sobre o que se
disse, ou ouvir comentários de outras pessoas a tal respeito, pois tudo
isso é extremamente fútil.
Desejo também salientar que as palavras, em si mesmas, pouco
significam. São apenas símbolos de que nos servimos para fins de
comunicação. Tenho de empregar certas palavras, mas faço-o apenas
com o fim de comunicar-vos algo; e cada um deve procurar através
delas o seu caminho para a compreensão de coisas não explicáveis
verbalmente; e, já que temos a tendência de interpretar as palavras
consoante aos nossos gostos e aversões, existe o perigo de perdermos
o verdadeiro significado do que se está dizendo. Estamos tentando
averiguar o que é falso e o que é verdadeiro; e, para isso, temos de
transcender as palavras. E, no transcender as palavras, estamos expos­
tos ao perigo de nossa interpretação pessoal, individual, nas palavras.
Assim, se desejamos realmente penetrar fundo nesta questão da morte,
como pretendo fazer, devemos estar cônscios das palavras e seus signi­
ficados e ter o cuidado de não as interpretar de acordo com nossos

251
gostos e desgostos. Se nossa mente está livre da palavra, do símbolo,
estamos então aptos a comungar uns com os outros além do nível das
palavras.
A morte é um problema muito complexo, difícil de experimentar
realmente e penetrar fundo. Por isso, ou tratamos de racionalizá-la,
explicá-la e nos quedamos satisfeitos; ou, ainda, temos crenças, dog­
mas, idéias, nas quais nos refugiamos. Mas dogmas, crenças e racio­
nalizações não resolvem o problema. A morte existe; está sempre
presente. Ainda que os médicos e cientistas logrem prolongar a vida
do organismo físico por mais cinqüenta anos ou além, a morte nos
aguarda. E para a compreendermos não devemos considerá-la verbal,
intelectual ou sentimentalmente, porém enfrentando realmente o fato
e penetrando-o. Isso requer muita energia, muita clareza de percebi-
mento; e a energia e a clareza são-nos negadas quando há medo.
Em maioria, jovens ou velhos, temos pavor da morte. Embora
vejamos passar todos os dias o coche fúnebre, a morte nos aterroriza;
e, havendo medo, não há compreensão. Assim, para se penetrar a
questão da morte, o primeiro requisito essencial é que se esteja livre
do medo. E com “ penetrar” quero dizer “ viver com a morte” — não
verbalmente, não intelectualmente, mas conhecer de fato o sentimento
de viver com uma coisa tão brutal, tão peremptória, com a qual é
escusado discutir ou barganhar. Mas, para fazê-lo, devemos primeira­
mente estar livres do medo; e isso é dificílimo.
Não sei se já tentastes ficar livre do medo de alguma coisa:
medo da opinião pública, de perder o emprego, de não ter crença
alguma. Se o fizestes, deveis saber como é difícil nos livrarmos com­
pletamente do medo. Conhecemos realmente o medo? Ou há sempre
um intervalo entre o “ processo de pensamento” e a realidade? Se
temo a opinião pública, o que outros dizem, esse temor é simplesmente
um processo de pensamento, não? Mas, ao apresentar o momento
real de enfrentar o fato — o que se está dizendo de nós — nesse
exato momento não existe medo. No percebimento total não há
experimentador. Não sei se já tentastes alguma vez ficar completa­
mente cônscio sem escolha, completamente perceptivo sem nenhuma
barreira à atenção. Com essa percepção podemos ver que estamos
sempre fugindo das coisas que tememos, sempre a escapar-nos. Esta
fuga à coisa que o pensamento chama temível é que cria o medo, essa

252
fuga é medo — e isso significa, realmente, que o medo é causado pelo
tempo e o pensamento.
E que é o tempo? Afora o tempo cronológico ou cronométrico,
representado pelo ontem e o hoje, existe o tempo, interiormente,
psicologicamente? Ou o pensamento inventou o tempo como meio
de alcançar, de ganhar, a fim de preencher o intervalo entre o que é
e o que deveria ser? O que deveria ser é meramente uma expressão
ideológica; não tem validade, é simples teoria. O real, o fato, é o
que é. Quando estamos frente a frente com o que é, não há medo.
Tememos saber o que efetivamente somos, mas, se enfrentamos real­
mente o que é, não há temor. O pensamento, o pensar acerca do
que é, eis o que gera o medo. E o pensamento é processo mecânico,
reação mecânica da memória, e a questão é se o pensamento pode
morrer para si mesmo. Pode uma pessoa morrer para todas as lem­
branças, experiências, valores, juízos, que acumulou?
Já alguma vez tentastes morrer para alguma coisa? Morrer, sem
argumentar, sem escolher, morrer para uma dor ou, mais especial­
mente, para um prazer? No morrer não há argumentação; não se
pode argumentar com a morte; ela é peremptória, absoluta. Da mesma
maneira devemos morrer para a memória, morrer para um pensamento,
para todas as coisas, todas as idéias que acumulamos. Se já experi­
mentastes isso, deveis saber quanto é difícil; deveis saber como a
mente, o intelecto, se apega à memória. Para se abandonar uma dada
coisa totalmente, completamente, sem nada exigir em troca, neces­
sita-se de claro percebimento, não achais?
Enquanto houver continuidade de pensamento, como tempo,
como prazer e dor, tem de haver medo; e onde há medo, aí não há
compreensão. Isso me parece bem simples e claro. Tememos tantas
coisas! Mas, se tomardes uma dessas coisas e morrerdes para ela,
completamente, descobrireis que a morte não é o que imagináveis
que fosse; é algo completamente diferente. Mas nós desejamos a
continuidade. Tivemos experiências, acumulamos conhecimentos,
acumulamos várias formas de virtude, formamos nosso caráter, etc.; e
tememos que isso se acabe e, assim, perguntamos: “ Que me aconte­
cerá quando vier a morte?” E este é realmente o problema. Conhe­
cendo a inevitabilidade da morte, recorremos à crença na reincarnação,
na ressurreição, e a todas as fantasias contidas na crença — e isso, na
realidade, é uma continuação do que somos. E, com efeito, que sois

253
vós? Dor, esperança, desespero, várias formas de prazer; sois entes
confinados no tempo e no sofrimento. Fruímos uns poucos momen­
tos de alegria, mas o resto de nossa vida é vazio, superficial, uma
batalha constante, cheia de canseiras e misérias. Isto é tudo o que
conhecemos da vida e é isto que desejamos continue. Nossa vida.é
uma continuidade do conhecido; movemo-nos e agimos do conhecido
para o conhecido; e quando se destrói o conhecido, manifesta-se o
sentimento de medo, medo de enfrentar o desconhecido. A morte é
o desconhecido. Ora, pode-se morrer para o conhecido, e enfrentá-lo?
Eis o problema.
Não estou falando de teorias. Não estou oferecendo idéias. Esta­
mos procurando averiguar o que significa viver. Viver sem medo
bem pode significar imortalidade, ficar livre da morte. Morrer para
as lembranças, para o ontem e para o amanhã, isso, por certo, é “ viver
com a morte” ; e nesse estado não existe o medo à morte e todas as
absurdas invenções criadas pelo temor. E que significa “ morrer inte­
riormente” ? O pensamento é a continuação do ontem no futuro, não?
O pensamento é reação da memória. A memória resulta da experiên­
cia. E experiência é o processo de “ desafio” e “ reação” . Pode-se
ver que o pensamento está sempre funcionando na esfera do conhe­
cido; e enquanto estiver funcionando o mecanismo do pensamento,
tem de haver medo. Porque é o pensamento que impede a investi­
gação do desconhecido.
Notai que estamos procurando pensar juntos na questão. Não
vos falo como uma pessoa que descobriu algo novo e vos está con­
tando o que descobriu, para acompanhardes verbalmente a descrição.
Deveis acompanhá-la investigando vossa mente e coração. Há neces­
sidade de autoconhecimento; porque o conhecimento de si mesmo é
o começo da libertação do medo.
Estamos perguntando se é possível “ viver com a morte” , não
no último instante, quando a mente está debilitada, ou na velhice ou
quando se sofre um acidente, porém agora mesmo. “ Viver com a
morte” deve ser uma experiência extraordinária, algo totalmente novo,
nunca pensado e que o pensamento jamais poderá descobrir. E para
descobrir o que significa “ viver com a morte” , necessita-se de imensa
energia, não achais? Viver com vossa esposa, vosso marido, vossos
filhos, e não vos deixardes perverter, deformar; viver com uma árvore,
com a natureza — necessita-se de energia para se conseguir isso. Para

254
viver com uma coisa feia necessita-se de energia; porque, do contrário,
a coisa feia vos deformará ou com ela vos acostumareis, mecanica­
mente; e o mesmo se aplica à beleza. Se não viveis intensamente,
completamente, plenamente num mundo desta espécie, onde se encon­
tra toda espécie de propaganda, de influência, de pressão, de controle,
de falsos valores, vos acostumareis com tudo e isso vos embotará a
mente, o espírito. E para se ter energia, não deve haver medo; o que
significa que nada absolutamente se deve exigir da vida. Não sei se
podeis chegar tão longe: nada exigir da vida.
Há dias falamos sobre a “ necessidade” . Temos necessidade de
certos confortos físicos, de alimento, de morada; mas fazer exigências
psicológicas à vida significa mendigar, ter medo. Há necessidade de
intensa energia para se estar só. Compreender isso não é questão de
refletir a seu respeito. Só há compreensão quando não há escolha,
julgamento, porém, apenas, observação. Morrer cada dia significa
não transportar de ontem para hoje todas as vossas ambições, vossos
pesares, vossas lembranças de preenchimento, vossas mágoas, vossos
ódios. A maioria de nós definha, mas isso nãó é morrer. Morrer é
conhecer o amor. O amor não tem continuidade, não tem amanhã.
O retrato de uma pessoa na parede, a sua imagem em vossa mente —
isso não é amor, é só memória. Assim como o amor é o desconhecido,
assim também a morte é o desconhecido. E para ingressarmos no
desconhecido — que é a morte e o amor — precisamos, primeira­
mente, morrer para o conhecido. Só então a mente está nova, jovem,
“ inocente” ; e nela não existe a morte.
Se vos observardes, assim como vos mirais num espelho, vereis
que nada mais sois que um feixe de lembranças, não é verdade? E
todas essas lembranças pertencem ao passado; são coisas passadas e
acabadas, não é mesmo? Assim, não se pode morrer para tudo isso,
instantaneamente? Tal é possível, mas exige muita investigação de
si mesmo, percebimento de cada pensamento, cada gesto, cada nalavra,
para que não haja acumulação. Por certo, isso se pode fazer. Pode-se
então saber o que significa morrer todos os dias; e talvez- saibamos
então o que é amar todos os dias, e, não, conhecer o amor apenas
como lembrança. Tudo o que agora conhecemos é só fumo — o
fumo do apego, do cíume, da inveja, da ambição, da avidez, etc. Não
conhecemos a chama que está a arder por trás da fumaça. Mas. se
pudermos dissipar completamente o fumo, descobriremos então que

255
viver e morrer são a mesma coisa, não teoricamente, mas de fato.
Afinal de contas, tudo o que continua, que não chega a um fim, não
é criador. O que tem continuidade nunca pode ser novo. Só na
destruição da continuidade encontra-se o novo. Não me estou refe­
rindo à destruição social ou econômica, que é muito superficial. E
se penetrardes isso bem fundo, não apenas no nível consciente, mas
ainda nas profundezas existentes além dos limites dq tempo, além da
consciência — a qual está sempre contida na estrutura do pensamento
— descobrireis então que morrer é uma coisa extraordinária. O mor­
rer é, então, criação. Não é criação escrever poemas, pintar quadros,
inventar novidades mecânicas. A criação só pode vir depois de morrer­
mos para todas as técnicas, todo o saber, todas as palavras.
A morte, pois, como a concebemos, é medo. E quando não
existe medo, porque estamos acolhendo a morte a cada minuto, então
cada minuto é uma coisa nova; ele é novo porque, interiormente, “ o
velho” foi destruído. E para destruir não deve haver medo, porém,
tão só, o sentimento de completa solidão; a possibilidade de estar com­
pletamente só, sem Deus, sem família, sem nome, sem tempo. Mas
isso não significa desespero. A morte não é desespero. Pelo contrário,
ela é viver cada minuto completamente, totalmente, sem as limitações
do pensamento. Descobre-se então que a vida é morte, e que a morte
é criação e amor. A morte, que é destruição, é criação e amor; essas
três coisas estão sempre juntas, são inseparáveis. Ao artista só preo­
cupa a expressão, coisa muito superficial, e ele não é criador. A
criação não é expressão, transcende o pensamento e o sentimento, é
livre da técnica, livre da palavra e da cor. E essa criação é amor.

Pergunta : Como poderão viver as futuras gerações, se o indi­


víduo morrer a cada minuto?
K rishnamurti: Parece-me, se permitis dizê-lo, que entendestes mal.
Preocupa-vos realmente o que irá acontecer às gerações vindouras?
O amor é incompatível com o gerar filhos? Sabeis o que significa amar
realmente alguém? Não me refiro à concupiscência. Nem à identi­
ficação completa, de um com outro, em que a pessoa se sente arreba­
tada, enlevada. Isso é relativamente fácil quando somos impelidos pela
emoção. Não é disso que estou falando. Refiro-me àquela chama que
existe quando vós e o outro finais completamente. Mas parece que
mui poucos de vós tendes conhecido esse estado; muito poucos de vós

256
tendes findado, ainda que por um momento. Se sabeis realmente o
que isso significa, não há questão nenhuma relativa às gerações futu­
ras. Em verdade, se as ulteriores gerações vos preocupassem real­
mente, teríeis escolas diferentes, uma espécie de educação completa­
mente diversa, sem emulação e sem todas as outras coisas que tolhem.

P ergunta : Se, enquanto vivemos, não sabemos o que é a Ver­


dade, como poderemos sabê-lo depois de mortos?
K rishnamurti: Senhor, que é a Verdade? A Verdade não é uma
coisa que vos foi descrita pela Igreja, pelo sacerdote, pelo vizinho, ou
por um livro; não é uma idéia ou uma crença. É algo vital, novo; vós
tendes de descobri-la; ela está para a descobrirdes. E para a desco­
brirdes deveis morrer para as coisas que já conheceis. Para verdes
uma coisa com muita clareza, verdes a roca, a flor, outra pessoa, sem
interpretação, deveis morrer para a palavra, para as lembranças da
pessoa. Sabereis então o que é a Verdade. A verdade não é uma
coisa remota, algo misterioso que só poderá ser descoberto quando
estivermos fisicamente mortos, no céu ou no inferno. Se deveras sen­
tísseis fome, não poderíeis satisfazer-vos com explicações sobre a
comida. Desejaríeis alimento, e não a palavra “ comida” . Do mesmo
modo, se desejais descobrir a verdade, então a palavra, o símbolo, as
explicações são meras cinzas, sem nenhuma significação.

P ergunta : Percebo que a pessoa precisa estar livre do medo


para possuir essas energia; entretanto, a certos respeitos, o
medo me parece necessário. Como sair deste círculo vicioso?
K rishnamurti: Ora, uma certa porção de medo físico é necessária,
pois, do contrário, poderíamos acabar sob um ônibus. Em certo grau,
a autoproteção instintiva é necessária. Mas, além desse ponto, não
deve haver temor de espécie alguma. Não estou empregando a pala­
vra “ deve” como uma ordem, mas porque é inevitável o seu emprego.
Parecemos não perceber a importância, a necessidade de nos libertar­
mos interiormente do medo. A mente que teme não pode marchar,
para descobrir, em direção alguma. E a razão por que não percebemos
isso é o termos erguido tantas muralhas de segurança em torno de
nós e temermos o que poderá acontecer se essas garantias, essas defe­
sas forem destruídas. Dizemos: “ Que me acontecerá se nenhuma
defesa tenho contra minha mulher, meu marido, meu vizinho, meu

257
patrão?” . Pode não acontecer nada, ou pode acontecer tudo. Para
se descobrir a verdade a esse respeito, é preciso estar-se livre da resis­
tência, do medo.

P ergunta : Quando vos estamos ouvindo, talvez estejamos


vivendo nesse estado, mas por que não vivemos nele sempre?
K rishnamurti: Vós me estais escutando porque sou perseverante;
porque sou enérgico e gosto disso de que estou falando — não é
verdade? Não é, apenas, que eu goste de falar a um auditório, pois
isso nenhuma importância tem para mim. Descobrir o que significa
“ viver com a morte” é amar a morte, compreendê-la, penetrá-la com­
pletamente, totalmente, a cada minuto do dia. Assim, vós me estais
escutando, porque vos estou forçando a observardes a vós mesmos.
Mas, depois, vos esquecereis de tudo. Retornareis à velha rotina e
direis: “ Como poderei sair desta rotina?” . Assim, é reàlmente muito
melhor não escutar nada do que criar outro problema sobre como con­
tinuar noutro estado. Vós tendes bastantes problemas: guerras, os
vizinhos, os maridos, esposas, filhos, vossa ambições. Não lhes acres­
centeis mais um. Ou deveis morrer completamente, conhecendo a
necessidade, a importância, a urgência disso; ou podeis continuar do
mesmo modo. Não crieis mais uma contradição, mais um problema.

Pergunta : E que dizeis da morte física?


K rishnamurti: Toda máquina não se gasta? Um maquinismo, ainda
que precisamente ajustado, ainda o melhor lubrificado, não deixa de
se desgastar. Alimentando-se corretamente, fazendo exercícios, toman­
do medicamentos adequados, o homem poderá viver cento e cinquenta
anos; mas a máquina acaba tornando-se imprestável, e tereis de enfren­
tar então este problema da morte. Tendes o problema no começo,
e tendes o problema no fim. Portanto, é muito mais judicioso, mais
sensato, mais racional resolver o problema agora e ficar livre dele
de uma vez.
Pergunta : Que devemos responder à criança que faz perguntas
sobre a morte?
K rishnamurti: S ó podeis responder à criança se vós mesmo sou­
berdes o que é a morte. Só podeis dizer à criança que o fogo queima,
porque já vos queimastes, vós mesmo. Mas não podeis dizer à criança

258
o que é o amor, ou o que é a morte, podeis? Tampouco podeis dizer-
-Ihe o que é Deus. Se sois católico, cristão, cheio de crenças e dogmas,
respondereis de acordo com isso; mas isso é puramente vosso condi­
cionamento. Se, interiormente, vós mesmo tiverdes entrado na “ man­
são da morte” , sabereis então realmente o que dizer à criança. Mas,
se nunca experimentastes o que significa morrer, verdadeiramente, inte­
riormente, então qualquer resposta que derdes à criança não terá vali­
dade alguma; será apenas um amontoado de palavras.

19 de setembro de 1961.

259
PARIS VIII
Autoconhecimento

N ESTA palestra temos de falar sobre matéria muito


vasta e isto poderá ser um tanto difícil, ou melhor, talvez “ estranho” .
Vou servir-me de certas palavras que poderão ter para vós um signi­
ficado e, para mim, significado inteiramente diferente. Para comun­
garmos realmente em todos os níveis devemos ter compreensão mútua
das palavras que empregamos e dos seus significados. A meditação,
que pretendo examinar junto convosco, tem para mim imensa signifi­
cação, ao passo que, para vós, talvez seja uma palavra comum. Talvez,
para vós, signifique um método para se alcançar um resultado, chegar
a alguma parte; e poderá constar de repetição de palavras e frases
para serenar a mente, e de uma atitude súplice. Mas, para mim, a
palavra “ meditação” tem extraordinário significado; e para examiná-la
a fundo, como pretendo fazer, temos primeiramente de compreender
à faculdade de criar ilusões.
Quase todos nós vivemos num mundo quimérico. Todas as nos­
sas crenças são ilusões, sem validade alguma. E para se despojar a
mente de todas as formas de ilusão e do poder de criar ilusões, requer-
-se percebimento claro e penetrante, capacidade de raciocinar com
acerto, sem fugas nem desvios. Um intelecto sem temor, que não
se oculta atrás de desejos secretos, um intelecto tranqüílo, sem con­
flito algum — esse intelecto, essa mente é capaz de perceber o que
é verdadeiro, de ver se Deus existe. Não me refiro à palavra “ Deus” ,
mas ao que esta palavra representa, algo que transcende as medidas
das palavras e do tempo — se tal coisa existe. Para se descobrir, é
óbvio que devem terminar todas as formas de ilusão e o poder de

260
criar ilusões. E despojar a mente de todas as ilusões é, para mim,
a propriedade da meditação. Eu sinto que através da meditação se
penetra num vasto campo de extraordinários descobrimentos — não
invenções, não visões, porém algo inteiramente diferente, realmente
existente além do tempo, além das coisas fabricadas pela mente huma­
na em sua busca secular. Se uma pessoa deseja realmente descobrir,
por si própria, deverá lançar a base correta, e a base correta é a
meditação. O copiar um padrão, o seguir um sistema, o observar um
dado método de meditação — tudo isso é sobremodo infantil, imaturo
demais; é mera imitação e não conduz a parte alguma, ainda que pro­
duza visões.
A base correta para se descobrir se existe uma realidade além das
crenças que a propaganda inculcou na mente de cada um, essa base
só pode ser criada pelo autoconhecimento. O conhecer a si mesmo
é, exatamente, meditação. Conhecer a si mesmo não é conhecer o
que se deveria ser-, pois isso não tem validade, nem realidade, e não
passa de mera idéia ideal. Mas compreender o que é, compreender
o fato real — o que somos — momento por momento, isso requer
que se liberte a mente de seu condicionamento. Pela palavra “ condi­
cionamento” entendo tudo o que a sociedade nos impôs, tudo o que
a religião nos inculcou, pela propaganda, pela insistência, pela crença,
pelo medo do céu e do inferno. Inclui o condicionamento referente
à nacionalidade, ao clima, aos costumes, à tradição, à cultura como
francês, hindu ou russo, e às inumeráveis crenças, superstições, expe­
riências que constituem todo o fundo ( background) em que vive a
consciência e que se consolidou em conseqüência de nosso desejo de
segurança. É a investigação e a destruição desse fundo que constitui
a base correta para a meditação.
Sem liberdade não se pode ir muito longe; apenas divagamos
para a ilusão, e isso nada significa. Se desejamos descobrir se existe
ou não a Realidade, deveras almejamos levar a cabo este descobri­
mento — sem ficarmos apenas a brincar com idéias, por mais agra­
dáveis, intelectuais, razoáveis ou aparentemente sensatas que sejam
— necessitamos de liberdade, cumpre estar livre de conflito. E isso
é dificílimo. É relativamente fácil fugir ao conflito; pode-se seguir
um método, tomar uma pílula, um calmante, uma bebida, e perder a
consciência do conflito. Mas o penetrar profundamente a questão do
conflito' requer atenção.

261
Atenção e concentração são duas coisas diferentes. Concentração
é exclusão, é estreitar a mente ou o intelecto, para focá-la na coisa
que se deseja estudar, observar. Isso é facilmente compreensível. E
a concentração de exclusão cria distrações, não é verdade? Quando
desejo concentrar-me e minha mente foge para outra coisa, essa outra
coisa é uma distração e, por conseguinte, há conflito. Toda concen­
tração implica distração, conflito e esforço. Por favor, não vos limi­
teis a seguir minhas palavras, minhas explicações, mas segui real­
mente vossos próprios conflitos, vossas distrações, vossos esforços.
Esforço implica conflito, não? E só há esforço quando se deseja
ganhar, alcançar, evitar, buscar ou rejeitar.
Este — se se me permite dizer — é um ponto muito importante,
que cumpre compreender, isto é, que a concentração é exclusão, resis­
tência, limitação da força pensante. A atenção não é idêntico “ pro­
cesso” , absolutamente. A atenção é “ inclusiva” . Só se pode estar
atento quando não há barreiras para a mente. Isto é, posso ver os
rostos de todos vós na minha frente, ouvir vozes lá fora, notar o
ruído ou o silêncio do ventilador, ver os vossos sorrisos e acenos de
cabeça — a atenção abrange tudo isso e mais ainda. Mas, se mera­
mente vos concentrais, não podeis incluir tudo isso, porquanto isso
seria distração. Na atenção não há distração. Na atenção pode haver
concentração, mas esta concentração é sem exclusão. A concentração,
ao contrário, exclui a atenção. Isso talvez seja algo novo para vós;
mas, se o experimentardes vós mesmos, vereis que existe uma quali­
dade de atenção capaz de escutar, de ver, de observar sem nenhum
senso de identificação; nela, há visão completa, observação completa
e, por conseguinte, nenhuma exclusão.
Estendo-me um pouco a este respeito porque acho muito impor­
tante compreender que quando a mente, o intelecto, está em conflito
a respeito de qualquer coisa — a respeito de si própria, de seus pro­
blemas, seu vizinho, sua segurança — não pode ser livre. Assim,
deveis vós mesmos descobrir se é possível, vivendo-se neste mundo
— tendo-se de ganhar a vida, de viver a vida de família, com sua
entediante rotina diária, suas ansiedades, o “ sentimento de culpa” —
se é possível penetrar muito profundamente, ultrapassar a consciência
e viver sem conflito interior.
O conflito, por certo, existe quando desejamos “ vir a ser” alguma
coisa. Existe, quando há ambição, avidez, inveja. E é possível viver

262
neste mundo sem ambição, sem avidez? Ou o homem está destinado
inapelavelmente a ser perpetuamente ávido, ambicioso, desejoso de
preenchimento e sentindo-se frustrado, ansioso, “ culpado” , etc.? E
é possível eliminar tudo isso? Porque, se não for eliminado, não se
pode ir muito longe, uma vez que isso restringe o pensamento. E
eliminar da consciência todo esse processo de ambição, inveja, avidez,
é meditação. A mente ambiciosa não tem nenhuma possibilidade de
saber o que é o amor; a mente entibiada pelos desejos mundanos
nunca pode ser livre. Não quer isso dizer que a pessoa deva viver
sem teto, sem comida, sem roupa, sem um certo grau de conforto
físico; significa apenas que a mente ocupada com a inveja, o ódio,
a avidez — seja avidez de conhecimentos, de Deus, seja de mais rou­
pas — por se achar em conflito, jamais pode ser livre. E só a mente
livre pode ir muito longe.
Conhecer a si mesmo é o começo da meditação. Sem conhecer­
des a vós mesmos, o repetirdes uma quantidade de palavras da Bíblia,
do Gita, ou de qualquer dos chamados livros sagrados, nenhuma signi­
ficação tem. Isso poderá satisfazer a mente, mas uma pílula dá o
mesmo resultado. Pelo repetir uma frase mais e mais vezes, torna-se
o cérebro naturalmente quieto, sonolento e embotado; e como resul­
tado desse estado de insensibilidade, de embotamento, pode-se ter
alguma espécie de experiência, obter certos resultados. Mas a pessoa
continua ambiciosa, invejosa, ávida, e cria inimizade. Assim, o apren­
der a conhecer a si própria, aquilo que a pessoa realmente é, é o
início da meditação. Estou empregando a palavra “ aprender” porque
quando se está aprendendo, no sentido em que emprego a palavra,
não há acumulação. O que chamais “ aprender” é o processo de acres­
centar mais e mais ao que já se sabe. Mas, para mim, no momento
em que adquirimos, acumulamos, essa acumulação se torna conheci­
mento, e conhecimento não é “ aprender” . O aprender nunca é acumu-
lativo; ao passo que a aquisição de conhecimento é um processo de
condicionamento.
Se desejo aprender a conhecer-me, descobrir realmente o que sou,
tenho de estar vigilante a todas as horas, a todos os minutos do dia,
para ver como me estou exprimindo. Estar vigilante não é condenar
ou aprovar, porém ver o que somos de momento a momento. Pois
o que nós somos está sempre a modificar-se, — não é verdade? —
nunca é estático. O conhecimento é estático; já o aprender a conhe-

263
cer o movimento da ambição nunca é estático, senão vivo, sempre
movediço. Dessarte, aprender e adquirir conhecimento são duas coi­
sas diferentes. O aprender é infinito, é um movimento em liberdade;
o conhecimento tem um centro que está sempre acumulando e só
conhece um movimento, que é o de acumular mais, de escravizar-se
mais.
Para seguir esta coisa a que chamo “ eu” , com todas as suas nuan­
ças, suas expressões, seus desvios, suas sutilezas, sua astúcia, deve a
mente estar muito clara e vigilante, porquanto o que sou está sempre
a mudar, a modificar-se, não é assim? Eu não sou o mesmo de ontem
ou de há um minuto, porque cada pensamento e cada sentimento está
modificando, moldando a mente. E se só vos interessa condenar ou
julgar, de acordo com vossos conhecimentos acumulados, vosso condi­
cionamento, não estais então seguindo a coisa, não a estais acompa­
nhando, observando. Por conseguinte, o aprender a conhecer-vos
importa muito mais que o adquirir conhecimentos acerca de vós mes­
mos. -Não se pode ter um conhecimento estático a respeito de uma
coisa viva. Pode-se ter conhecimento de algo passado e acabado,
porque todo conhecimento está no passado; é estático, já morto. Mas
uma coisa viva está sempre a mudar, sempre a sofrer modificações;
ela difere a cada minuto, e vós tendes de segui-la, para conhecê-la. Não
podeis compreender o vosso filho se continuamente o estiverdes con­
denando, justificando, ou com ele vos identificando; tendes de obser­
vá-lo, sem julgamento, quando ele dorme, quando chora, quando brinca
—• a todas as horas.
Assim, o aprender a conhecer a vós mesmo é o começo da medi­
tação; aprendendo a conhecer-vos, ir-se-ão eliminando todas as ilu­
sões. E isso é absolutamente essencial, pois, para se descobrir o que
é verdadeiro — se existe a verdade, algo imensurável — não pode
haver ilusão. E há ilusão quando há desejo de prazer, de conforto, de
satisfação. Esse processo, naturalmente, é bem simples. Desejando
satisfação, criais a ilusão e aí ficais atolado para o resto da vida. Aí
estais satisfeitos; e a maioria das pessoas estão satisfeitas com o crerem
em Deus. Assusta-as a vida, a insegurança, a agitação, a agonia, a
“ culpa” , a ansiedade, as misérias e tristezas da vida; assim estabelecem,
finalmente, algo a que chamam Deus, aonde se acolhem. E tendo-se
rendido à crença, têm visões, e se tornam santos, etc. Isto não é
investigar se existe ou não uma realidade. Ela poderá existir e poderá

264
não existir; compete-vos descobri-lo. E para o descobrirdes, precisais
de liberdade no começo e não no fim — livres de todas essas coisas;
tais como a ambição, a avidez, a inveja, a fama, o desejo de ser impor­
tante e todas as demais infantilidades.
Deste modo, ao aprenderdes sobre a vossa pessoa, estais pene­
trando em vós mesmo, não apenas no nível consciente, mas também
no nível profundo, inconsciente, e trazendo à luz todos os secretos
desejos, buscas, impulsos, compulsões. Destrói-se então o poder de
criar ilusões, porque está lançada a base correta. Quando a mente,
o intelecto, se examina, se observa a si mesmo no movimento do
viver, nunca deixando sem exame e compreensão um só pensamento
ou sentimento, então tudo isso, em sua totalidade, é percebimento. É
estardes cônscio de vós mesmo, inteiramente, sem condenação, sem
justificação, sem escolha — como quem olha o próprio rosto ao espe­
lho. Não podeis então dizer: “ Eu desejava ter um rosto diferente” ;
ele lá está, tal como é.
E com essa autocompreensão, o intelecto — que é mecânico e
está sempre “ tagarelando” , reagindo a todas as influências) todos os
desafios — se torna muito quieto, embora sensível e vivo. Ele não
está morto; tornou-se um intelecto ativo, dinâmico, vigilante, mas,
ao mesmo tempo, tranqüilo, silencioso, porque nenhum conflito tem.
Está em silêncio porque eliminou, compreendeu todos os problemas
que para si criara. Afinal, um problema só se torna existente quando
uma dada questão não foi bem compreendida. Quando o intelecto exa­
minou e compreendeu perfeitamente a ambição, acabou-se o problema
da ambição. E, assim, o intelecto se tranqüilizou.
Podemos agora prosseguir, juntos, deste ponto, ou verbalmente
ou fazendo realmente a viagem, e experimentando deveras — e isso
significa eliminar completamente a ambição. Não se pode eliminar
a ambição ou a avidez a pouco e pouco; aqui não há “ mais tarde”
nem “ no ínterim” . Ou a eliminamos totalmente, ou ela de modo
nenhum é eliminada. Mas, quando se alcança o ponto em que não
há mais avidez, nem inveja, nem ambição, o intelecto está então suma­
mente tranqüilo, sensível e, portanto, livre — e tudo isso é meditação;
e então, mas não antes, pode-se ir mais longe. Ir mais longe, sem se
ter chegado a este ponto, é mera especulação, sem nenhuma signi­
ficação. Para se ir mais longe, cumpre estabelecer esta base, a qual

265
é realmente virtude. Não é a virtude da respeitabilidade, a morali­
dade social de uma dada coletividade, porém uma coisa extraordinária,
pura, verdadeira, a qual se torna existente sem nenhum esforço e é,
essencialmente, humildade. A humildade é essencial, mas não pode
ser cultivada, desenvolvida, praticada. Dizer para si mesmo: “ Serei
humilde” é pura insensatez; é vaidade encoberta pela palavra “ humil­
dade” . Mas há uma humildade que vem à existência naturalmente,
inesperadamente, sem ser buscada; e nela não existe conflito, porque
essa humildade nunca está subindo degraus, nunca está desejando.
Ora, quando se alcança este ponto, onde reina silêncio completo,
onde o intelecto está inteiramente tranqüilo e é, portanto, livre, veri-
fica-se um movimento todo diferente.
Ora, compreendei, por favor, que esse estado é, para vós, espe­
culativo. Estou falando de algo que não conheceis e que, por conse­
guinte, pouco vos significa. Mas falo porque ele tem significação em
referência ao todo, à totalidade da vida. Porque, se não soubermos
distinguir entre o que é verdadeiro e o que é falso, se não descobrir­
mos se existe ou não a verdade, a vida se toma extremamente super­
ficial. Quer nos denominemos cristãos ou budistas, quer nos deno­
minemos hinduístas ou seja o que for, a vida da maioria de nós é
bem superficial, vazia, monótona, mecânica. E com a mente mecani­
zada queremos descobrir algo inefável. Uma mente insignificante a
buscar o imensurável continua insignificante. Por conseguinte, a mente
embotada deve transformar-se. Estou, pois, falando a respeito de
algo que podeis ter visto ou não ter visto; mas importa aprendê-lo,
porquanto essa realidade inclui a totalidade da consciência, inclui toda
a ação de nossa vida. Para descobrir isso, a mente deve tornar-se
completamente quieta, não mesmerizando a si própria, não por meio
de disciplina, repressão, ajustamento; tudo isso significa, apenas, subs­
tituir um desejo por outro.
Não sei se já vos ocorreu isto: estar com a mente serena. Não
aquela espécie de tranqüilidade encontrável na igreja, ou o sentimento
superficial que experimentais quando caminhais pela rua ou passeais
num bosque, ou quando estais ocupado com o rádio ou a cozinha.
Essas coisas exteriores podem absorver-vos — e de fato absorvem —•
produzindo uma certa forma de serenidade temporária. Isso é seme­
lhante ao que acontece com o garoto entretido com um brinquedo;

266
o brinquedo é tão interessante que absorve sua energia e pensamento;
mas isso não é tranqüilidade. Refiro-me à tranqüilidade que se veri­
fica quando a totalidade da consciência foi compreendida e já não há
buscar, desejar, tatear no escuro e, por conseguinte, ela se tornou per­
feitamente serena. Nessa serenidade há um movimento completa­
mente diferente; esse movimento é atemporal. Não tenteis reter estas
frases, porque elas em si nada significam. Nosso intelecto, nossos pen­
samentos resultam do tempo; assim, pensar a respeito do atemporal
nenhuma significação tem. Só quando o intelecto se tranqüilizou,
quando já não busca, nem evita, nem resiste, porém se acha totalmente
tranqüilo por ter compreendido todo este mecanismo, só então, nessa
tranqüilidade, se manifesta uma vida de espécie diferente, um movi­
mento que transcende o tempo.
Pergunta : Não existe esforço correto?
K rishnamurti: Para mim não existe esforço correto nem esforço
incorreto. Todo esforço produz conflito, não é verdade? Quando
amais uma coisa, nisso não existe esforço nem conflito, existe? Per­
cebo que se torna necessária uma imensa transformação neste mundo.
Com tantos líderes políticos em toda a parte — comunistas, capitalis­
tas, autoritários — é indispensável a transformação interior do homem.
Há necessidade de mutação; e desejo averiguar exatamente o que
significa a transformação. Ela pode ser produzida por meio de esforço?
Quando empregais a palavra “ esforço” , ela implica — não é verdade?
— um centro de onde estais fazendo um esforço para modificar algo.
Eu desejo modificar minha ambição, destruí-la. Ora, qual a entidade que
deseja destruir a ambição? A ambição é coisa separada da entidade?
A entidade que está observando a ambição e procurando modificá-la,
transformá-la noutra coisa, é, por conseguinte, ainda ambiciosa; por­
tanto, isso não é modificação nenhuma. O que produz mutação é,
simplesmente, o observar, o ver, sem julgar, sem avaliar — o simples
observar. Mas esse ver, esse observar é impedido porque estamos
condicionados para condenar, justificar, comparar. É o descondicio-
namento do intelecto que produz mutação.
É preciso perceber todo o absurdo de se estar condicionado,
influenciado — pelos pais, pela educação, pela Igreja, pela propaganda
de dez mil anos ou de dois mil anos. Interiormente, existe um centro
que se formou em torno de tudo isso; o centro é isso mesmo. E quan­
do esse centro verifica que uma coisa é desvantajosa, procura tornar-se

267
outra coisa que lhe parece mais vantajosa. Mas nós somos impedidos
de perceber isso por causa de nosso condicionamento como cristãos,
ingleses, alemães; da influência de outras pessoas; de nosso próprio
escolher; do exemplo, dos heróis, etc. Tudo isso impede a mutação.
Mas o compreender que estamos condicionados, o perceber o fato,
sem astúcia, sem desejo de vantagem — perceber, simplesmente, não
verbal ou intelectualmente, porém realmente, em contato emocional
com esse condicionamento — depende de escutarmos o que se está
dizendo. Se agora escutais, no momento em que se está dizendo
a coisa, estais em contato emocional com o fato; e então não
há escolha: é um fato, tal como um choque elétrico. Mas vós não
desejais esse choque emocional, porque vós vos defendeis, vos pro­
tegeis verbalmente, dizeis: “ Que será de mim, se eu tudo perder, psico­
logicamente?” Mas o homem que deseja realmente descobrir, que tem
fome disso, tem de libertar a mente de todas as influências e de toda
a propaganda.
Estranha ver como a propaganda se tornou importante em nos­
sas vidas. Ela existe há séculos, mas atualmente se está tornando cada
vez mais generalizada — as falas insinceras — o proselitismo — a
Igreja a martelar incessantemente as suas palavras. . . E estar livre
de tudo isso significa observar cada pensamento, cada emoção que
surge de momento a momento, tratar de conhecer tudo isso. Vereis
então que, quando observais completamente, não há nenhum processo
de prolongar deíiberadamente o período do descondicionamento: este
se verifica imediatamente e, por conseguinte, não há necessidade de
esforço algum.

P ergunta : Como podem as pessoas, inclusive eu próprio, ter


esse amor da realidade?
K rishnamurti: V ós não o podeis ter, senhor; não o podeis comprar.
Para os que não conhecem o amor, não há sacrifício ou barganha que
o traga. Como se obtém o amor? Por meio de exercício, de esforço,
da ordem de amar, dia após dia, ano após ano? A simples amabilidade
não é amor; mas o amor inclui a amabilidade, a delicadeza, a consi­
deração para com outro. Vede, o amor não é um resultado final; e
no amor não há apego. Só vem o amor quando não há medo. Um
homem pode ser casado, viver com sua família, e amar sem apego.
Mas isso é incrivelmente difícil; requer vigilância de todas as horas.

268
P ergunta : A energia necessária à investigação sobre a morte
difere da energia requerida para a meditação?
K rishnamurti: Expliquei há dias que para se viver com a morte ou
viver com qualquer coisa — com a esposa, o marido, os filhos, o vizi­
nho — necessita-se de energia. Requer-se energia para se viver com
uma coisa bela ou com uma coisa feia. Se não tendes energia para viver
com a beleza, vos acostumais com a beleza. E se não tendes energia
para viver com uma coisa feia, essa fealdade vos corrompe, vos corroe.
E da mesma maneira, o viver com a morte — que significa morrer
para todas as coisas, cada dia, cada minuto — requer energia. E
então não há medo à morte, conforme já examinamos antes. Essa
mesma energia é necessária à autocompreensão. Como podeis com­
preender-vos, se para tanto não tendes energia? Nasce essa energia
quando não há medo, nem apego à vossa propriedade, vosso marido,
vossa esposa, vossos filhos, vossa pátria, vossos deuses e crenças. Tal
energia não pode ser dosada; precisamos dela toda inteira para exami­
narmos esta coisa. Não há diferença entre energias: só há energia.
P ergunta : Qual a diferença entre concentração e atenção?
K rishnamurti: Este cavalheiro deseja saber qual a diferença entre
concentração e atenção. Entrarei na questão muito sucintamente.
Onde há concentração há “ pensador” , e o pensador se separa do pen­
samento e, por conseguinte, tem de concentrar-se no pensamento a
fim de modificá-lo. Mas o próprio pensador resulta do pensamento.
O pensador não difere do pensamento. Não havendo pensamento, não
há pensador.
Ora, na atenção nao há pensador, nem observador; a atenção não
parte de um centro. Experimentai isso; prestai atenção a tudo o que
vos cerca; escutai os vários ruídos, vede os movimentos das pessoas
enquanto falamos, o tirar um lenço do bolso, o olhar para um livro
— tudo isso se está passando agora. Nesta atenção não há pensador,
e, por conseguinte, não há conflito, nem contradição, nem esforço.
Observar exteriormente é relativamente fácil, mas estar atento inte­
riormente para cada pensamento, cada gesto, cada palavra, cada senti­
mento, isso requer energia. Com essa atenção, estamos livres de todo
o mecanismo do pensar;- e só então é possível transcender a consciência.

21 de setembro de 1961.

269
PARIS - IX
Perenidade E spiritual

E sta é a última palestra. Discorrerei sobre o sofri­


mento e a mente religiosa. Há sofrimento em toda a parte, exterior
e interiormente. Vemo-lo tanto nas altas como nas baixas camadas
sociais. Ele existe há milhares de anos, diversas teorias já se conce­
beram a seu respeito e as religiões dele já falaram muito; entretanto,
ele continua. É possível extinguir o penar, ficar realmente, interior­
mente, de todo livre dele? Não existe só o sofrimento da velhice e
da morte, mas também o sofrimento do insucesso, da ansiedade, da
culpa, do medo, o sofrimento causado pela contínua brutalidade, pela
crueldade do homem para com o homem. Pode-se extirpar a causa
desse sofrimento — não em outrem, mas em nós mesmos? Ora, por
certo, se desejamos efetuar qualquer transformação, ela deve começar
em nós mesmos. Afinal, não há separação entre o indivíduo e a socie­
dade. Nós somos a sociedade, o “ coletivo” . Como franceses, russos,
ingleses, hindus, somos o resultado de reações coletivas, desafios e
influências coletivos. E no transformar esse centro individual, talvez
se possa alterar a consciência coletiva.
A meu ver, a presente crise não é tanto uma crise do mundo
exterior, mas uma crise existente na consciência, no pensamento, em
nosso ser inteiro. E acho que só a mente religiosa pode resolver esse
sofrimento, pode dissipar inteira e completamente todo o processo do
pensamento e o resultado que o pensamento produz, na forma de
sofrimento, medo, ansiedade e culpa.
Já tentamos tantas maneiras de nos livrarmos do sofrimento: fre-
qüentar a igreja, refugiar-nos em crenças e dogmas, aderir a várias

270
atividades sociais e políticas — e inumeráveis outras maneiras de fugir
a essa perpétua corrosão do medo e do sofrimento. Só a mente reli­
giosa pode resolver o problema. E por “ mente religiosa” entendo
algo completamente diferente da mente, do intelecto que crê na reli­
gião. Não há religião onde há crença. Não há religião se existe dogma,
perpétua repetição de palavras, palavras, palavras, sejam em sânscrito,
sejam em latim, sejam noutra língua qualquer. “ Ir à missa” é uma
forma de entretenimento como outra qualquer; não é religião. Reli­
gião não é propaganda. Quer vosso intelecto seja condicionado pela
“ gente da igreja” , quer pelos comunistas, é a mesma coisa. Religião
é algo inteiramente diferente de crença e não crença; e desejo penetrar
bem na questão relativa à mente religiosa. Fique, portanto, bem claro
para nós que religião não é a fé que professais: isso é muito infantil.
E onde não há madureza, não pode deixar de haver sofrimento. Re­
quer-se muita madureza para se descobrir o que é uma mente verda­
deiramente religiosa. Esta não é, por certo, a mente que crê, nem
aquela que segue qualquer espécie de autoridade, seja a do maior dos
instrutores, seja a do chefe de determinada seita. Assim, evidente­
mente, a mente religiosa está livre de todo sectarismo e, por conse­
guinte, de toda autoridade.
Posso digressionar agora um pouco, para dizer umas breves pala­
vras a respeito de outra coisa? Alguns de vós vindes escutando estas
palestras com bastante assiduidade, nestas últimas semanas. E se vos
fordes daqui com uma grande coleção de conclusões, com um novo
conjunto de idéias e frases, ir-vos-eis de mão vazias, ou com as mãos
cheias de cinzas. Conclusões e idéias, de qualquer espécie que sejam,
não resolvem o sofrimento. Assim, espero sinceramente que não
fiqueis apegados às palavras mas viajeis junto comigo, a fim de poder­
mos ultrapassar as palavras e descobrir, por nós mesmos, o que é real
e, daí, empreender viagem para mais longe. O descobrimento do que
existe em nós mesmos, como fato e realidade, faz nascer uma reação
e ação de natureza completamente diferente. Espero, pois, não leveis
convosco as cinzas das palavras, da memória.
Como dizia, a mente religiosa está livre de toda autoridade. E é
muito difícil estar livre da autoridade — não só da autoridade imposta
por outrem, mas também da autoridade da experiência que acumu­
lamos, que é do passado, que é tradição. E a mente religiosa não
tem crenças, não tem dogmas; ela se move de fato para fato e é, por-

271
tanto, uma mente científica. Mas a mente científica não é a mente
religiosa. A mente religiosa inclui a mente científica; mas a mente
treinada no saber científico não é mente religiosa.
A mente religiosa se interessa pela totalidade — não por uma
determinada função mas, sim, pelo total funcionamento da existência
humana. O intelecto se interessa por determinada função; especiali­
za-se. Ele funciona especializadamente, como cientista, médico, enge­
nheiro, músico, artista, escritor. São estas técnicas especializadas, limi­
tadas, que criam a divisão, não só exterior, mas também interiormente.
O cientista, provavelmente, é considerado como a pessoa mais impor­
tante de que necessita a sociedade hoje em dia, tal como o é o médico.
A função, portanto, se torna de suma importância; e a ela está ligada
a posição, e posição é prestígio. Assim, onde há especialização tem
de haver contradição e uma limitação, e esta é a função do intelecto.
Cada um de nós, por certo, funciona dentro de uma estreita rotina
de reações autoprotetórias. É aí que tem nascença o “ eu” , o “ ego”
— no intelecto, com suas defesas, agressões, ambições, frustrações e
sofrimentos.
Há, pois, uma diferença entre o intelecto e a mente. O intelecto
é “ separativo” , “ funcional” , não pode ver o todo; ele funciona dentro
de um padrão. E a mente é a totalidade que pode ver o todo. O
intelecto está contido na mente; mas o intelecto não contém a mente.
E por mais que o pensamento se purifique, se requinte e se controle,
ele de modo nenhum pode conceber, formular ou compreender o todo.
É a capacidade da mente que percebe o todo, e não o intelecto.
Mas nós desenvolvemos o intelecto num grau espantoso. Toda
nossa educação se restringe ao cultivo do intelecto, porque há vanta­
gem no cultivo de uma técnica, na aquisição de conhecimento. A
capacidade de perceber o todo, a totalidade da existência — esta per­
cepção não tem o móvel da vantagem; por esse motivo a desprezamos.
Para nós, função importa mais que a compreensão. E só há compreen­
são quando há o percebimento do todo. Ainda que o intelecto seja
capaz de discernir a razão, o efeito, a causa das coisas, o sofrimento
não pode ser resolvido pelo pensamento. É só quando a mente per­
cebe a causa, o efeito, o processo total, e passa além, é só então que
tem fim o sofrimento.
Para a maioria de nós, a função se tomou muito importante por­
que a ela está ligada a posição, a situação, a classe. E quando a

212
posição se torna existente em virtude da função, há contradição e
conflito. Como respeitamos o cientista e desprezamos o cozinheiro!
Como veneramos o Primeiro Ministro, o General, e desconsideramos
o soldado! Vemos, pois, que há contradição quando a posição está
aliada à função; há distinção de classes, lutas de classes. Uma socie­
dade poderá procurar extirpar as classes, mas enquanto a posição acom­
panhar a função, tem de haver classes. E é isso o que todos desejamos.
Todos desejamos posição, que significa poder.
Como sabeis, o poder é uma coisa extraordinária. Todos o ambi­
cionam: o eremita, o general, o cientista, a dona-de-casa, o marido.
Todos desejamos o poder: o poder que o dinheiro confere, poder
para dominar, o poder do saber, o poder da capacidade. Ele nos dá
posição, prestígio, e é isso que desejamos. E o poder é coisa má, seja
o poder do ditador, seja o poder da esposa sobre o marido ou do
marido sobre a esposa. É mau, porque força outrem a submeter-se,
a ajustar-se; e nesse processo não há liberdade. Mas nós o ambicio­
namos, muito sutilmente ou muito cruelmente; e é por isso que bus­
camos o saber. O conhecimento é importantíssimo para a maioria de
nós, e temos na mais alta consideração o homem ilustrado, com suas
sutilezas intelectuais, porque ao saber se associa o poder.
Tende a bondade de escutar, não apenas a mim, mas à vossa
mente, vosso intelecto e coração. Observai-os, para verdes com que
avidez a maioria de nós deseja esse poder. E, quando há busca de
poder, não há aprender. Só a mente “ inocente” pode aprender; só
a mente jovem, fresca, se deleita em aprender, e não a mente, o inte­
lecto pejado de saber, de experiência. A mente religiosa, pois, está
sempre aprendendo, e não há fim ao aprender. Aprender não é
acumulação de conhecimentos. No conservar e aumentar o saber, dei­
xamos de aprender. Segui isto até o fim.
Quando se observam todas essas coisas, pode-se ficar cônscio de
um extraordinário sentimento de isolamento, solidão. Em geral, temos
experimentado ocasionalmente esse sentimento de estar completamente
só, fechado, sem relação com nenhuma coisa ou pessoa. E ao se
perceber isso, sente-se medo; ■& quando existe medo, apresenta-se
imediatamente o impulso, a ânsia de fugir-lhe. Segui tudo isso inte­
riormente, porque não estou aqui pronunciando uma conferência;
estamos, reaímente, jornadeando juntos. E se puderdes fazer essa

273
viagem, saireis daqui com uma mente bem diversa, um diferente inte­
lecto.
Temos de passar por esse sentimento de solidão, mas não o
podeis fazer se tendes medo. Essa solidão é, em verdade, criada pela
mente, com suas reações autoprotetórias, suas atividades egocêntricas.
Se observardes vosso próprio intelecto, vereis como vos estais isolando
em tudo o que fazeis e pensais. Tudo isso que se relaciona com “ meu
nome, minha família, minha posição, minhas qualidades, minhas apti­
dões, minha propriedade, meu trabalho” — vos está isolando. Assim,
tendes a solidão, e não a podeis evitar. Vós tendes de passar por ela
de maneira tão real como passais por uma porta. E para passardes
por ela, tendes de “ viver com ela” . E “ viver com a solidão” , “ passar
pela solidão” , significa alcançar uma coisa muito superior, um estado
muito mais profundo, que é o “ estar só” — completamente só, sem
conhecimento. Com isso não quero dizer que nos privemos do conhe­
cimento mecânico superficial, necessário à existência diária; o intelecto
não precisa ser completamente drenado, mas o que quero dizer é que
o conhecimento que adquirimos e armazenamos não deve ser usado
para nossa própria expansão e segurança psicológica. Com a palavra
“ solidão” me refiro a um estado não atingível por nenhuma espécie
de influência. Já não é um estado de isolamento, porque o isola­
mento foi compreendido; compreendeu-se todo o processo mecânico
do pensar, da experiência, do desafio e reação.
Não sei se já refletistes alguma vez sobre este problema do desa­
fio e reação. O intelecto está sempre reagindo a toda espécie de
desafio, consciente ou inconsciente. Toda influência se imprime no
intelecto, e o intelecto reage. Tende a bondade de seguir isto, por­
que, se penetrardes mais profundamente, vereis que não há mais desa­
fio nem reação — mas isso não significa que a mente se acha adorme­
cida. Pelo contrário, está completamente desperta, tão desperta que
já não necessita de nenhum desafio e nem há necessidade de nenhuma
reação. Esse estado, em que não há na mente desafio ou reação,
porque ela compreendeu todo o processo — esse estado é “ solidão” .
Assim, a mente religiosa compreende tudo isso, passa por tudo isso,
não através do tempo, mas pelo imediato percebimento.
O tempo traz compreensão? Tereis compreensão amanhã? Ou
só há compreensão no presente ativo, agora? Compreensão é ver uma
dada coisa totalmente, imediatamente. Mas essa compreensão é impe­

274
dida pela avaliação, sob qualquer, forma. Todo verbalizar, condenar,
justificar, etc., impede o percebimento. Dizeis: “ Precisa-se de tempo
para compreender. Preciso de muitos dias para isso” . E durante
“ estes muitos dias” o problema vai lançando raízes mais profundas na
mente, e se torna muito mais difícil erradicado, seja qual por esse
problema. A compreensão, pois, está no presente imediato e não em
prazos de tempo. Quando percebo uma coisa com toda a clareza, ime­
diatamente, há compreensão. O “ imediato” é que importa, e não o
adiamento. Se bem percebo o fato de que sou colérico, ciumento, ambi­
cioso, etc., se o percebo sem emitir opinião, avaliação, ou juízo, então
o próprio fato começa a operar imediatamente.
Assim, a qualidade da “ solidão” é o estado próprio de uma
mente de todo desperta. Ela não está pensando em termos de tempo.
E isso é verdadeiramente extraordinário, como vereis se o investigar­
des. A mente religiosa, pois, não é uma mente “ evolucionária” ; por­
que à Realidade está fora do tempo. Importa realmente compreender
isso, se chegastes até aí em vossa viagem de descobrimento.
Notai que o tempo cronológico e o tempo psicológico são duas
coisas diferentes. Nós estamos falando sobre o tempo psicológico, a
exigência interior de mais dias, mais tempo para realizar algo — e
isso sugere o ideal, o herói, o intervalo entre o que sois e o que
deveríeis ser. Dizeis que para transpor esse intervalo, lançar uma pon­
te sobre ele, necessita-se de tempo; mas tal atitude é uma forma de
indolência, porque podereis ver essa coisa imediatamente, se lhe derdes
toda a vossa atenção.
À mente religiosa, portanto, não interessa o progresso, o tempo;
ela se acha num estado de constante atividade, mas não no sentido
de “ vir a ser” ou “ ser” . Podeis verificar isso agora, embora prova­
velmente não o desejeis fazer. Porque, se o fizerdes, vereis que a
mente religiosa é destrutiva; pois sem destruição não há criação. Há
destruição, quando a totalidade da mente aplicou sua atenção ao que
ê. O perceber o falso como falso, percebê-lo completamente, é a des­
truição do falso. Não é a ação destrutiva dos comunistas, dos capi­
talistas — nenhuma dessas infantilidades. A mente religiosa é destru-
triva e, por ser destrutiva, é criadora. Criação é destruição.
E não há criação quando não há amor. Para nós, o amor é uma
coisa estranha. Vós dividistes o amor em paixão, concupiscência, amor
carnal e amor divino, amor da família, amor da pátria, e continuais

275
por aí além a dividi-io e tomar a dividir. E na divisão, há contradição,
conflito e sofrimento.
O amor, para a maioria de nós, é paixão, concupiscência; e neste
próprio processo de identificação com outro há contradição, conflito,
e o começo do sofrimento. E, para nós, o amor se extingue. O
fumo (criado por esse processo) — o ciúme, o ódio, a inveja, a avi­
dez — destrói a chama. Mas onde está o amor, aí está a beleza e a
paixão. Deveis ter paixão, mas não traduzais prontamente esta pala­
vra em “ paixão sexual” . Por “ paixão” entendo a “ paixão da inten­
sidade” , essa energia que de pronto percebe as coisas, claramente,
ardentemente. Sem paixão, não há austeridade. A austeridade não
é mera renúncia, nem o possuir restrito, ou autocontrole, pois tudo
isso é sem importância, insignificante. A austeridade vem com o
desprendimento, e no desprendimento, há paixão e, por conseguinte,
beleza. Não a beleza criada pelo homem; não a beleza artística, embora
eu não queira dizer que aí não haja beleza. Mas refiro-me a uma beleza
que transcende o pensamento e o sentimento. E esta só pode surgir
quando há alta sensibilidade intelectual, bem como corpórea e mental.
-E não pode haver sensibilidade dessa natureza e qualidade quando não
há completo desprendimento, quando o intelecto não se está abando­
nando inteiramente à totalidade daquilo que a mente percebe. Por­
que só com esse abandono há paixão.
A mente religiosa, pois, é a mente destrutiva. E é a mente reli­
giosa que é mente criadora, porque o que a interessa é a totalidade
da existência. O seu criar não é como a ação criadora do artista,
porque a este só interessa um certo segmento da existência e ele pro­
cura expressar o que aí sente, assim como o homem mundano procura
expressar-se nas atividades de seus negócios — embora o artista se
considere superior a qualquer outro. A criação, pois, se verifica quando
há compreensão da totalidade da vida, e não de uma única parte dela.
Agora, se o intelecto alcançou este ponto e compreendeu todo
o processo da existência, descartando-se de todos os deuses que o
homem fabricou, de seus salvadores, seus símbolos, seu céu, seu infer­
no, então, como há completa solidão, poder-se-á empreender uma jor­
nada de todo diferente. Mas é necessário chegar até aí, antes de se
poder negar ou afirmar a existência de Deus. Daí por diante, há o
verdadeiro descobrimento, porque o intelecto, a mente destruiu com­
pletamente tudo o que conhecia. Só então é possível penetrar no

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“ desconhecido” ; só então se apresenta o Incognoscível. Ele não é
o Deus das igrejas, dos templos, das mesquitas; não é o Deus de
vossos temores e crenças. Existe uma realidade que só pode ser encon­
trada na compreensão total do processo integral da existência, e não
de apenas uma parte dela.
Então a mente, como vereis, se torna sobremodo quieta e tran-
qüiía, e o intelecto também. Não sei se já alguma vez notastes o
vosso intelecto em funcionamento, se vosso intelecto já alguma vez
percebeu a si mesmo em ação! Se estivestes assim atento, sem esco­
lha, negativarnente, deveis ver que o intelecto está perenemente “ taga­
relando” , “ falando sozinho” ou sobre alguma coisa, acumulando e
armazenando conhecimentos. Está em ação a todas as horas, conscien­
temente, nos níveis superficiais, e também profundamente, em sonhos,
sugestões, comunicações de idéias, etc. Ele está sempre em movimento,
mudando, atuando; jamais tranquilo. E é necessário que a mente, o
intelecto se mantenha sereno, quieto, sem nenhuma contradição,
nenhum conflito. Do contrário, é inevitável a “ projeção” da ilusão.
Mas, quando a mente e o intelecto estão completamente tranqüilos,
sem movimento algum — após terem-se apagado todas as formas de
visão, influência e ilusão — então, nessa tranqüilidade, a totalidade irá
mais longe, em sua jornada, para receber aquilo que não é mensurável
pelo tempo, o Indenominável, o Eterno, o Imperecível.
P ergunta : O problema todo não consiste em eliminar algo que
não é, a fim de receber aquilo que ê?
K rishnamurti: Ora, buscar confirmação é um tanto absurdo, se per­
mitis dizê-lo. Isso de que estivemos falando não necessita ser confir­
mado. Ou assim é — e está certo; ou não é assim — certo está
também. Mas não podeis buscar confirmação da parte de outro, vós
mesmo tendes de descobrir.
P ergunta : O estado mental em que não há desafio e reação é
equivalente à meditação?
K rishnamurti: E u disse muito precisamente que não há meditação
quando não há autoconhecimento. O lançamento da base correta, que
é a meditação, significa estar livre da ambição, da inveja, da avidez,
e í^da adoração do êxito. E se, depois de lançada a base correta, formos
mais longe, mais profundamente, não haverá mais desafio nem reação.

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Mas esta é uma longa jornada, que não se faz no tempo, que não se
faz em dias e anos, porém no rigoroso autoconhecimento.

P ergunta : Não existe um medo não resultante do pensamento?


K rishnamurti: Dissemos que existe o medo instintivo, físico. Quan­
do vemos uma cobra, ou um ônibus passa em disparada, recuamos
— e esta é uma autoproteção natural, salutar. Mas todas as formas
de autoproteção psicológica conduzem à insanidade mental.

Pergunta : N o morrer, não há um novo existir?


K rishnamurti: N o morrer, conforme verificamos, não há “ vir a ser” ,
e não há ser. É um outro estado, em todos os sentidos.
P ergunta : Por que não nos encontramos sempre nesse estado
maravilhoso?
K rishnamurti: O fato verdadeiro é que não vos encontrais nele. O
que sois é tudo resultado de vosso condicionamento. Investigar, com
total compreensão do que sois, é lançar a base correta para novos des­
cobrimentos.
Receio que o que sucedeu foi que não escutastes nada do que
estivemos falando. Esta é a última palestra, e seria lamentável se
escolhêsseis as partes que vos agradam e levásseis para casa essas
cinzas. O que estivemos dizendo, da primeira à última palestra, é um
só todo. Não pode haver escolhas ou preferências. Ou tendes de levar
tudo, ou nada absolutamente. Mas, se tiverdes lançado a base correta,
podereis ir muito longe — mas não, como eu disse, em prazos de
tempo; “ longe” , no sentido da realização de uma imensidade não defi­
nível em palavras, nem em tintas, nem no mármore. Sem este desco­
brimento nossa vida é vazia, sem profundidade e insignificante.

24 de setembro de 1961.

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KRISH NAM URTI

Jiddu Krishnamurti nasceu na índia do Sul, em 1895, e foi


educado na Inglaterra. Embora não tenha ligações com nenhuma
organização filosófica ou religiosa nem se apresente com títulos uni­
versitários, vem fazendo conferências para grupos de líderes inte­
lectuais, nás maiores cidades do mundo, há já várias dezenas 'de anos.
Além dos volumes editados pela Cultrix, numerosas publicações,
de palestras e conferências suas, já foram lançadas em português pela
Instituição Cultural Krishnamurti, com êxito igual ao obtido quando
lançadas em espanhol, francês, alemão, holandês, finlandês e em
vários outros idiomas além do original inglês.

O bras de K rishnamurti
P ublicadas pela
E D I T O R A C U L T R I X
{e m tr a d u ç õ e s d e H u g o V e lo s o )

A E ducação e o S ignificado da V ida


A P rimeira e Ú ltima L iberdade
Comentários Sobre o V iver
R eflexões S obre a V ida
D iálogos S obre a V ida
A C ultura e o P roblema H umano
U ma N ova M aneira de A gir
L iberte -se do P assado
A S uprema R ealização
O M istério da Compreensão
A I mportância da T ransformação
O P asso D ecisivo
F ora da V iolência
A M utação I nterior
O H omem L ivre
O D escobrimento do A mor

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