P-037 - o Planeta Louco - Clark Darlton - Projeto Futurâmica Espacial

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P37

1
O Planeta Louco
Clark Darlton

Tradução
Richard Paul Neto

Digitalização
Pescado Na Net

Revisão
Arlindo_San

Formatação
ÐØØM SCANS

PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL

2
Finalmente chegou a grande hora do peque-
no Gucky — e o sargento Harnahan descobre
uma coisa inacreditável.

Estamos no ano de 1983. O conflito entre


a Terceira Potência e os mercadores galácti-
cos deslocou-se para o planeta de Goszul, um
mundo que se faz de louco para expulsar de
vez a frota dos mercadores...

3
Personagens Principais:

Perry Rhodan — Comandante da Stardust e


administrador da Terra.
Reginald Bell — Amigo e confidente de
Perry Rhodan.
Sargento Harnahan — Que tem na solidão
do espaço um encontro marcado pelo destino.
Borator — Que vê cair em mãos estranhas a
obra de sua vida.
Topthor — Patriarca dos “superpesados”.
Tako Kakuta, Kitai Ishibashi, Tama Yokida e
John Marshall — Um comando que terá muito
trabalho, mesmo depois da libertação do plane-
ta.

4
1

Os raios de sol que penetravam pelas janelas


amplas da grande sala eram refletidos pela su-
perfície da mesa comprida em torno da qual es-
tavam sentados treze homens. Esses homens ti-
nham várias coisas em comum, que revelavam
pertencerem eles ao mesmo grupo.
Todos tinham barba espessa, que cobria me-
tade do rosto. Sob as sobrancelhas hirsutas via-
se um par de olhos em que havia uma expres-
são de austeridade misturada com um ligeiro
abatimento, e que emitiam um brilho de orgu-
lho disfarçado, que talvez chegasse à presun-
ção. Ainda tinham em comum o grande nariz e
os lábios estreitos que se estendiam por cima de
um queixo barbudo.
As enormes cabeças assentavam sobre cor-
pos que naquele instante pareciam encolhidos,
não revelando a força que costumavam encer-
rar. Os punhos robustos descansados sobre a
mesa pareciam ter perdido a energia que lhes
era peculiar.
Eram os antigos donos do mundo que, der-
rotados, aguardavam o homem que os subjuga-
ra.
O patriarca Ragor, que ainda continuava a
ser o governador do planeta de Goszul, estava
5
sentado no centro do grupo de treze homens.
Tal qual os outros, fugira para o interior do edi-
fício abandonado do governo, quando o flagelo
do esquecimento fez com que os nativos se re-
belassem, e os comandantes das naves da frota
dos saltadores fugissem em pânico, submetendo
o planeta de Goszul a uma quarentena de cin-
qüenta anos.
Ao que tudo indicava, os saltadores, também
conhecidos como mercadores galácticos, havi-
am perdido uma base importante.
Ragor pigarreou.
— Eles nos fazem esperar muito — obser-
vou em tom sombrio, procurando disfarçar a
impaciência através de uma fingida calma exte-
rior.
— É o direito do vencedor — disse seu vizi-
nho, um gigante de cabelos escuros e maxilares
salientes. — Não podemos sair do edifício; te-
mos de esperar. Não nos deixam outra alterna-
tiva.
— Em compensação temos tempo para
pensar — resmungou Ragor, cerrando os pu-
nhos. — Ocuparam o posto de comando de
nossos robôs; isso nos deixa indefesos. Somos
apenas treze e temos um mundo contra nós.
— Um mundo que dominávamos — murmu-
rou um gigante de cabelos escuros em tom pro-
6
fético. — Que condições nos serão impostas
pelos goszuls?
Ninguém respondeu. No corredor ouviram-
se passos. A porta foi aberta e três homens en-
traram na sala, acompanhados por um robô de
mais de dois metros de altura que, sem receber
qualquer ordem nesse sentido, assumiu seu pos-
to junto à porta.
Os recém-vindos eram muito diferentes dos
treze homens que se mantinham à espera.
Eram homens como eles, mas distinguiam-se
pela pele vermelha. Além disso, faltava neles a
barba e o aspecto grosseiro do corpo. Eram es-
beltos, quase delicados, embora fossem do mes-
mo tamanho dos saltadores. Até então perten-
ciam a uma raça desprezada, a dos nativos da-
quele mundo, mas de uma hora para outra vi-
ram-se transformados nos senhores e pela pri-
meira vez defrontavam-se com os antigos go-
vernantes na qualidade de vencedores. Seus
rostos eram francos e simpáticos. A alegria pela
liberdade recém-conquistada sobrepujava o or-
gulho da vitória. Os trajes simples davam mos-
tras do estado primitivo de sua civilização, para
cujo rebaixamento os antigos dominadores ha-
viam contribuído bastante. Com o auxílio de
um exército de robôs submissos os saltadores
subjugaram e exploraram o planeta de Goszul,
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até que um dia surgiu a epidemia que atacou
sete dos governantes, colocando-os fora de
ação. Os doentes continuavam no hospital,
com o rosto coberto de manchas coloridas e a
memória apagada. O medo da contaminação fi-
zera com que os demais governantes se reunis-
sem. Mas no momento em que quatro naves es-
tranhas pousaram no planeta e colocaram fora
de ação o exército de robôs, não lhes restou ou-
tra alternativa senão a capitulação.
As quatro naves continuavam no grande
campo de pouso espacial. Eram naves de um
tipo que nunca antes havia pousado naquele
mundo. Tratava-se de gigantescas esferas com
oitocentos e duzentos metros de diâmetro. Fo-
ram elas que intervieram na luta.
Ragor fitou os três homens com os olhos se-
micerrados e não fez menção de levantar-se.
Com um movimento indiferente apontou para
as cadeiras livres que se encontravam do outro
lado da mesa. Sabia que os goszuls eram os
vencedores, mas não aceitava a idéia de que os
mesmos o tivessem subjugado pessoalmente.
Estava redondamente enganado.
Os três homens continuaram de pé. O velho
telepata Enzally, que se encontrava no centro
do grupo, investigou os pensamentos dos go-
vernantes. Ao lado da resignação encontrou si-
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nais de resistência e de esperança secreta. No
momento não pôde constatar no que se basea-
va essa esperança.
Por enquanto Ralv, chefe da rebelião contra
os saltadores e futuro chefe do governo do pla-
neta unido, mantinha-se em atitude de expecta-
tiva. Deixou as primeiras palavras por conta de
Enzally.
O terceiro homem do grupo não era goszul.
Tinha pele morena, e a altura de sua figura
magra excedia a de Enzally e Ralv por mais de
dez centímetros. Nos seus olhos não havia o
brilho mortiço produzido pelos anos de medo e
escravidão; bem ao contrário, os mesmos fulgu-
ravam com a consciência da força e do poder e
a certeza de uma imensa superioridade mental.
Os treze governantes não conheciam o unifor-
me simples que aquele homem trajava. Nunca o
haviam visto naquele planeta.
Só havia uma explicação: aquele homem
não era um nativo. Viera numa das quatro na-
ves, pertencendo à raça que havia infligido a
derrota aos saltadores.
Ragor chegou à mesma conclusão, que não
o deixou muito feliz.
Sentir-se-ia ainda menos feliz se soubesse
que se encontrava diante de Perry Rhodan, que
tinha bons motivos para não revelar sua identi-
9
dade. Nem todas as tarefas a serem cumpridas
no planeta de Goszul estavam concluídas. Muito
embora, ao que tudo indicava, os treze gover-
nantes não mantivessem qualquer espécie de
contato com os companheiros de raça que havi-
am fugido para o espaço, preferiu não assumir
riscos.
Fez um sinal para Enzally, que se mantinha
na expectativa.
— Obrigado; preferimos ficar de pé — disse
o telepata, que era o único jamais nascido na-
quele mundo. — Se aceitarem nossas condi-
ções, não demoraremos em chegar a um acor-
do. Os senhores perderam e estão indefesos.
Nem mesmo os robôs lhes prestarão obediên-
cia, pois foram reprogramados. Sabem perfeita-
mente o que isso significa. Daqui em diante
obedecerão às nossas ordens, e trabalharão
para nós. O resto dos saltadores fugiu com suas
naves, deixando-os desamparados. Não preten-
demos matá-los, mas vamos isolá-los. Pensa-
mos numa ilha do oceano ocidental, onde pas-
sem bastante tempo em um clima saudável. Ali
poderão passar o resto dos seus dias num ambi-
ente de paz e tranqüilidade. O regresso ao seu
mundo não é possível, já que não possuem ne-
nhuma nave.
Enzally calou-se e olhou para Ragor. Sem
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que os ex-governantes soubessem, seus pensa-
mentos estavam sendo estudados até as profun-
dezas do subconsciente. Nada ficava oculto ao
telepata.
Os treze homens cochicharam entre si. Al-
guns deles falaram, mas a um gesto de Ragor
calaram-se.
— O que será feito dos sete governantes que
foram atacados pelo flagelo do esquecimento?
— perguntou. — Devemos deixá-los para trás?
— Irão para a ilha com vocês.
— Querem que eles nos contaminem? —
disse Ragor indignado. — Se é que a epidemia
ainda não chegou à tal da ilha, isso não demo-
rará muito.
Perry Rhodan fez um sinal para Enzally e to-
mou a palavra.
— Trouxemos um soro, Ragor. A epidemia
foi rebaixada ao nível de uma doença inofensi-
va. Ainda bem que isso só aconteceu depois da
fuga dos comandantes dos saltadores. Aplicare-
mos uma injeção em vocês, e nunca adoecerão.
Os sete governantes que encontramos no hos-
pital já sararam. Irão à ilha com vocês.
Ragor lançou um olhar atento para Rhodan.
— Vocês não são deste mundo, não é?
— Não. Meu planeta fica a mais de mil
anos-luz daqui.
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— Por que intervieram no conflito?
— Porque estamos interessados em que os
povos oprimidos alcancem o auto governo. Ou,
em outras palavras, ajudamos os goszuls a liber-
tar-se do colonialismo.
— Será que não terão nenhum lucro com
isso?
— Teremos, sim, Ragor. Mas não há de
pensar que eu lhes conte tudo. O que têm de
fazer é apenas responder a uma pergunta: que-
rem submeter-se voluntariamente à decisão do
novo governo deste mundo, que lhes concede o
exílio?
Antes de responder, Ragor lançou um rápi-
do olhar para os companheiros:
— Se possuíssemos uma nave, poderíamos
sair do planeta de Goszul?
Rhodan confirmou com um gesto.
— Se possuíssem, sim; acontece que não
possuem.
Mais uma vez Ragor hesitou; mas já era tar-
de.
Subitamente Enzally sorriu e, dirigindo-se a
Rhodan, disse:
— Já sei onde está a nave, senhor. Pode-
mos encerrar a palestra.
Ragor lançou um olhar de perplexidade para
o telepata, que sem mais aquela revelava o mais
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precioso dos seus segredos. Parecia que o mun-
do acabara de desabar, soterrando suas espe-
ranças. Pretendia conseguir uma pausa, e possi-
velmente alguns robôs de serviço. Com isso
dentro de poucos dias o enorme couraçado que
se encontrava no estaleiro escondido nas mon-
tanhas poderia decolar. Nesse caso executaria
uma operação de retaliação e fugiria para o es-
paço juntamente com seus companheiros de
raça.
E agora...
Enzally parou de sorrir. Com a voz fria disse:
— Obrigado, Ragor, já basta. Estou vendo
que nossas intenções foram boas demais. Serão
levados à ilha ainda hoje. — Dirigindo-se a
Rhodan, prosseguiu: — Pretendiam apoderar-
se de um couraçado dos saltadores, destruir o
planeta de Goszul e voltar para o setor da Via
Láctea de onde vieram. São umas criaturas ado-
ráveis.
— A mentalidade deles não sabe conformar-
se com a idéia da derrota, por isso as idéias de
Ragor não podem servir de padrão para toda a
raça dos saltadores. Tenho certeza de que um
dia chegaremos a um acordo com eles. Não
será aqui, nem será com estes governantes,
mas com outros de sua raça. É preferível encer-
rarmos este capítulo. Ralv, cumpra sua tarefa.
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Enzally, vamos embora. Não temos mais nada
com o que acontecerá daqui em diante. Com
passos firmes Rhodan e Enzally saíram da sala.
Passaram pelo robô imóvel, cujas lentes de
cristal estavam rigidamente fixadas sobre os tre-
ze saltadores aos quais já obedecera.
E agora os levaria para o exílio.
O planeta de Goszul era o segundo dos sete
mundos que gravitavam em torno da estrela
221-Tatlira. Era o nome sob o qual constava
nos mapas estelares dos saltadores. Distava
1.012 anos-luz da Terra, sendo desconhecido
dos astrônomos do planeta.
Numa ação incruenta, o Exército de Mutan-
tes de Perry Rhodan conseguira reconquistar
aquele mundo transformado numa base dos sal-
tadores, devolvendo-o aos seus donos. Os qua-
tro mutantes dirigidos por John Marshall, o te-
lepata, fizeram irromper uma epidemia artifici-
al, que no primeiro estágio fazia surgir manchas
na pele e posteriormente parecia atacar o cére-
bro. As pessoas atacadas pela moléstia perdiam
a memória. Naturalmente havia um soro contra
a doença, mas os saltadores não sabiam disso.
Dominados de pavor, puseram-se em fuga e
deixaram os vinte governantes entregues ao seu
destino.
Algumas semanas depois do início da epide-
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mia, seus efeitos cessaram. As pessoas atacadas
recuperaram a memória, e o cérebro passou a
funcionar melhor que antes. As manchas na
pele desapareceram. Mesmo as pessoas que
não recebiam a injeção de soro recuperavam a
saúde, embora isso demorasse algumas sema-
nas.
Os saltadores que haviam fugido não deixari-
am de notar isso; Rhodan sabia disso. Mas tam-
bém sabia do estado de pânico que devia apo-
derar-se daquela raça tão evoluída no terreno
da medicina. Acreditariam que o restabeleci-
mento não passava de um simples acaso, e por
algum tempo prefeririam não pisar no planeta
de Goszul.
Nesse ponto Rhodan estava enganado, mas
soube disso em tempo. No momento estava tão
ocupado com os problemas do presente que
não tinha tempo para pensar no futuro.
Em algum lugar nas montanhas ficava o es-
taleiro secreto dos saltadores, onde os robôs de
serviço estavam dando os últimos retoques num
gigante do espaço como nunca fora construído
igual. Pelo que Enzally lera nos pensamentos de
Ragor, essa nave, construída segundo os proje-
tos mais recentes dos engenheiros mais capazes
dos saltadores, deixava para trás até mesmo as
conquistas dos arcônidas.
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Rhodan tinha que apossar-se dessa nave.
Só por isso ainda não saíra daquele mundo
para retornar à Terra, onde tarefas muito im-
portantes o aguardavam.

***

A conferência de campanha foi realizada na


ampla sala de comando da Stardust. A gigantes-
ca esfera espacial de oitocentos metros de diâ-
metro, cercada pelos cruzadores Terra, Solar
System e Centauro, encontrava-se no campo
de pouso da Terra dos Deuses, nome que os
nativos davam ao continente em que os saltado-
res haviam instalado suas bases.
Reginald Bell estava sentado ao lado de
Perry Rhodan. Seus rebeldes cabelos ruivos cor-
tados à escovinha estavam deitados para trás,
mas revelavam uma tendência irresistível de as-
sumir a posição vertical.
Os mutantes John Marshall, Tako Kakuta,
Kitai Ishibashi e Tama Yokida estavam um pou-
co mais afastados, sentados em dois sofás. À
sua frente encontravam-se os representantes do
governo do planeta de Goszul. Ralv, o chefe da
rebelião contra os saltadores, já desempenhava
as funções de chefe do governo do mundo re-
cém-libertado. Ao lado dele encontrava-se, qui-
16
eto e humilde como sempre, o telepata Enzally,
um goszul de certa idade. Era o único mutante
que o planeta havia produzido. O terceiro re-
presentante dos nativos era Geragk, um dos
subchefes dos grupos de resistência que se opu-
nham ao domínio dos saltadores e eram dirigi-
dos por Ralv.
Ainda estavam presentes os comandantes
dos três cruzadores, que com seus duzentos me-
tros de diâmetro pareciam anões perto da Star-
dust, mas eram construções de uma perfeição
técnica quase inconcebível. Sentado entre o
major Nyssen e o major Deringhouse, o capitão
MacClears nem se parecia dar conta de sua pa-
tente inferior.
— Os vinte governantes já se encontram na
ilha e com isso devem estar fora de jogo —
principiou Rhodan, lançando um ligeiro olhar
para Ralv. — Espero que ninguém os ajude a
fugir, nem procure praticar qualquer ato de vin-
gança contra eles. Com isso o planeta de Gos-
zul está livre e encontra-se nas mãos de seus le-
gítimos donos. Espero que saibam transformá-
lo num belo mundo.
Ralv sentiu que essas palavras eram dirigidas
a ele. Com um gesto de autoconfiança disse:
— Confie em nós. Saberemos ser gratos,
restituindo a liberdade ao nosso povo. E não te-
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mos nada a opor a que instalem uma base nes-
te planeta e negociem conosco.
— Nesse caso poderíamos despedir-nos —
disse Bell com um gesto grandioso. — Apenas
aquela nave enorme dos saltadores...
— Apenas? — interrompeu-o Rhodan em
tom enfático. — Essa nave me preocupa bas-
tante. Enzally vigiou os governantes e descobriu
que o estaleiro fica nas montanhas, a uns cin-
qüenta quilômetros daqui. Cerca de trinta robôs
e especialistas em robôs trabalham no mesmo.
Gozam de independência total, não dependen-
do de nenhum organismo de controle. O esta-
leiro é protegido por um contingente de cem
robôs de combate, que foram programados,
para atacar qualquer coisa que não se pareça
com um saltador. Por isso não existe a menor
possibilidade de colocá-los fora de ação por
meio da desativação de algum posto central.
Devem ser dominados e desativados um por
um. É um trabalho e tanto.
— Por que faz tanta questão de apoderar-se
dessa nave dos saltadores? — perguntou Bell.
— É simples, Bell. Sabemos que é a nave
mais moderna que já foi construída. Suas insta-
lações e sua sofisticação técnica ultrapassa qual-
quer coisa que possamos imaginar. Para nós a
civilização arcônida é o padrão que nos serve
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de guia, mas não se esqueça de que os arcôni-
das dormiram durante oito mil anos. Isso não
aconteceu com os saltadores, que se separaram
de seu império. Continuaram a desenvolver sua
tecnologia e sob certos aspectos alcançaram
uma nítida superioridade sobre os arcônidas.
Tenho certeza absoluta de que essa nave repre-
sentará uma surpresa para todos. Estou curioso;
é só isso.
Bell sorriu.
— Será que realmente está apenas curioso?
Rhodan sorriu de volta, mas logo voltou a
tornar-se sério.
— Vê-se, portanto, que precisamos dessa
nave, nem que seja apenas para examiná-la.
Não podemos recorrer à força, pois isso levaria
os robôs a destruir a nave quando não tivessem
mais nenhuma saída. Não tenho a menor dúvi-
da de que sua programação inclui instruções
nesse sentido.
— Como poderemos impedir que ajam as-
sim?
— Devemos usar a surpresa e blefar. Ainda
não sei como faremos isso. Antes de mais nada
precisamos saber a quantas andamos. Gucky
nos dará algumas informações. Está no estalei-
ro desde hoje de manhã.
As palavras de Rhodan provocaram certa
19
surpresa, pois nenhum dos presentes sabia que
o rato-castor havia recebido esse tipo de incum-
bência.
— Gucky? — gemeu Bell. — Gucky está no
estaleiro?
Rhodan fez que sim.
— Quem melhor que nosso amiguinho para
executar uma tarefa desse tipo? Primeiro, é o
mutante mais perfeito que conhecemos. Além
da telepatia domina a telecinésia e a teleporta-
ção. Saberá defender-se e colocar-se num lugar
seguro sempre que a situação se torne crítica.
Além disso, não se parece com um homem;
tem o aspecto de um rato superdimensionado.
É bem possível que os robôs acreditem terem
diante de si um animal inofensivo e nem se in-
teressem por ele.
— Pelo que conheço de Gucky — disse Bell
— ele ficará furioso se os robôs o ignorarem.
— Acho que é muito inteligente para tomar
uma atitude dessas — objetou Rhodan. — Seja
como for, aguardo Gucky de um momento para
outro. Sabe que estamos aqui na Stardust,
aguardando as informações que ele nos trará.
Um dos oficiais que se encontrava num pon-
to mais afastado pigarreou.
— Pois não — disse Rhodan, convidando-o
a dar sua opinião.
20
O major Deringhouse, que comandava o
cruzador recém-construído Centauro e o núme-
ro reduzido de caças capazes de desenvolver a
velocidade da luz que se encontravam nos seus
hangares deu um sorriso um tanto matreiro.
— Permite uma sugestão? Não vejo por que
complicar as coisas. A qualquer momento pos-
so colocar os robôs fora de ação, atacando o
estaleiro com cinqüenta caças espaciais.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Isso seria um procedimento puramente
militarista e pouco inteligente. Um único robô
seria suficiente para detonar a carga explosiva
que talvez já tenha sido preparada, mandando
para os ares o estaleiro e a nave. Precisamos de
um estratagema. E o senhor há de reconhecer
que nesse terreno conseguimos acumular algu-
ma experiência.
Deringhouse esteve a ponto de responder,
mas o sorriso zombeteiro de Bell fez com que
preferisse ficar calado. Mais uma vez aquele su-
jeito ruivo que se encontrava ao lado de Bell pa-
recia saber alguma coisa que não queria contar.
— Quando Gucky deverá voltar? — pergun-
tou John Marshall, o telepata do pequeno gru-
po de mutantes que já havia atuado no planeta
de Goszul. Rhodan deu de ombros.
— Aguardo-o a qualquer momento, mas
21
uma porção de acontecimentos pode retardar
seu regresso. Se for necessário, Tako também
terá que arriscar o salto para ver por onde
anda.
O japonês Tako também era um teleporta-
dor. Bastava a força de sua vontade para que se
desmaterializasse e voltasse a transformar-se em
matéria no local em que escolhesse. Isso acon-
tecia numa fração de tempo, motivo por que
Tako podia vencer instantaneamente qualquer
distância. Exibiu seu sorriso tranqüilo e humilde
e respondeu:
— Se for necessário, poderei ir imediata-
mente. Quem sabe se Gucky não caiu em algu-
ma armadilha e está precisando de auxílio?
— Vamos esperar mais trinta minutos, Tako
— disse Rhodan, sacudindo a cabeça. — Só de-
pois disso terminará o prazo que Gucky e eu
combinamos. Até lá teremos que dar-lhe uma
chance.
Bell lançou um olhar pensativo para as telas
apagadas dos aparelhos de controle. Ao que
parecia sua mente estava ocupada com um pro-
blema e procurava a resposta. Finalmente falou,
saindo por completo do tema até então tratado:
— Não sei por que tanto mistério. Bem que
poderiam saber quem lhes infligiu a derrota.
— Há vários motivos para que não saibam.
22
Como sabemos, o clã do patriarca Etztak faz
muita questão de presentear-nos com seu regi-
me colonial. Uma vez já conseguimos expulsá-
lo do sistema solar. Não pense que com isso o
assunto está liquidado. Um belo dia voltará, e
estou interessado em adiar esse fato o mais que
posso. Se acreditar que neste sistema tem dian-
te de si outro inimigo, também muito poderoso,
isso lhe dará o que pensar. Dois inimigos num
espaço relativamente reduzido representam
uma situação bastante crítica. Quando souber
que também aqui foi a Terra que lhe estragou
os planos, não contará tempo para mobilizar
todo o poderio dos saltadores a fim de destruir
nosso planeta.
— É verdade — respondeu Bell, captando
um olhar encorajador do major Deringhouse
que, segundo parecia, também gostaria de co-
nhecer os motivos da atitude de Rhodan. —
Mas será que temos motivos para temer os sal-
tadores?
Rhodan esboçou um sorriso frio.
— A superioridade numérica nos esmagaria.
Além disso, sempre acho preferível realizar ne-
gociações com um inimigo que um dia poderá
conduzir a um acordo que assumir a responsa-
bilidade por milhões de mortes. No momento
não podemos concretizar nenhuma dessas alter-
23
nativas, já que Etztak e seus amigos fugiram da
terrível epidemia que nem existe. Levará muito
tempo para descobrir que a doença não é peri-
gosa.
— E os outros saltadores? — perguntou
John Marshall. — Há muitos clãs e todos eles
mantêm contato entre si, embora não possuam
uma pátria propriamente dita além de suas na-
ves. Será que não voltarão para salvar as insta-
lações técnicas aqui existentes?
— O senhor se esquece da quarentena a que
o planeta está submetido — lembrou Rhodan.
— Ninguém tem permissão para pousar no pla-
neta de Goszul. Ao menos nenhum saltador. —
Seu sorriso aprofundou-se. — Além disso, não
acredito que qualquer saltador teria coragem de
enfrentar uma doença desconhecida apenas
para resgatar alguns robôs, muito embora estes
representem um elevado valor material.
— E a nave? — lembrou Bell.
Naquele momento ninguém desconfiava de
que Rhodan se esquecera de muita coisa além
da nave. Só saberiam disso bem mais tarde...

***

Gucky teve bastante inteligência para pousar


a uma boa distância do misterioso estaleiro es-
24
pacial, em meio à selva montanhosa.
Teve sorte. O salto para o desconhecido le-
vou-o para um planalto pedregoso em que cres-
ciam algumas árvores raquíticas, que lhe pro-
porcionariam abrigo se aparecesse alguém. Pe-
los seus cálculos o estaleiro não devia ficar a
mais de dois ou três quilômetros. Como tivesse
preguiça de andar, pretendia vencer essa distân-
cia com alguns saltos bem calculados. Quem
visse Gucky compreenderia por que não fazia
muita questão de andar. Parecia um gigantesco
rato com o rabo achatado de um castor.
As grandes orelhas afinavam nas pontas e
geralmente se mantinham de pé. O pêlo ruivo
era liso e flexível. As perninhas do animal, que
tinha mais de um metro de altura, pareciam de-
sajeitadas. Sua inteligência era muito superior à
de um homem normal.
Em seu mundo frio, que girava em torno de
um sol solitário, era considerado um fenômeno,
pois os indivíduos de sua raça possuíam apenas
o dom da telecinésia, enquanto Gucky ainda era
um telepata e sabia deslocar-se por meio da te-
leportação.
Agachado sobre as patas traseiras, o rato-
castor deixou que seus olhos penetrantes cor-
ressem para todos os lados, examinando os de-
talhes do terreno que oferecia pouca visibilida-
25
de. Não captou nenhum pensamento, e isso
nem era possível. Um robô não pensa como
um ser orgânico. Seus impulsos não podem ser
captados, ao menos por um cérebro telepático.
Os raios de sol dardejavam sobre a super-
fície rochosa. Gucky, que apreciava o frio, co-
meçou a transpirar. Para enxergar melhor, su-
biu e, depois de ter atingido a altura de vinte
metros, parou no ar. Ali em cima era mais fres-
co. O estaleiro devia ficar ao norte. Gucky não
viu outra coisa senão encostas rochosas íngre-
mes e grotas entrecortadas. Por que os saltado-
res haviam escolhido um local desolado como
este para construir uma nave? Provavelmente
se sentiam seguros por aqui.
Subitamente um relampejo atingiu seus
olhos, vindo de longe. Parecia o reflexo de um
raio de sol sobre uma superfície de metal poli-
do.
Gucky forçou a vista e reconheceu um robô
que a menos de mil metros de distância patru-
lhava lentamente o terreno. Encontrava-se exa-
tamente na entrada de um dos numerosos va-
les.
Não era nenhuma coincidência!
O rato-castor fixou a direção e deixou-se
descer ao solo. Concentrou-se cuidadosamente
sobre uma rocha pontuda que ficava a pequena
26
distância da entrada do vale... e saltou.
No mesmo instante rematerializou-se atrás
da rocha, respirou profundamente e saiu a pas-
sos balouçantes, como se fosse um coelho gi-
gante radicado nessa área que estivesse à pro-
cura de comida. O procedimento não tinha
nada de estranhável. Era quase certo que os ro-
bôs haviam sido programados no sentido de ve-
rem seus inimigos apenas nos goszuls nativos.
O monstro metálico prosseguiu no patrulha-
mento da entrada do vale que media menos de
cinqüenta metros de largura, sem interessar-se
por Gucky, para quem o espetáculo representa-
va uma experiência vital. Se o robô não reagis-
se à sua aproximação, poderia deslocar-se livre-
mente. Era bem verdade que a idéia de não ser
levado a sério não era nada agradável, mas em
outra oportunidade ele se vingaria.
A menos de trinta metros do robô Gucky fi-
cou sentado, estudando atentamente o inimigo.
Os braços angulosos terminavam nos canos em
espiral dos mortíferos radiadores energéticos. O
rato-castor sabia perfeitamente que os mesmos
o volatilizariam numa questão de segundos, se o
cérebro positrônico do gigante de mais de dois
metros o considerasse como inimigo. Felizmen-
te isso não acontecia. O robô nem sabia o que
era um rato-castor. Enquanto Gucky mantivesse
27
uma atitude pacífica, nunca seria identificado
como possível inimigo.
A antena encolhida do robô indicava que ele
não estava em contato com qualquer central de
comando, mas era dirigido por meio de coman-
dos individuais armazenados em seu cérebro.
Bastaria aproximar-se dele para desativá-lo e
paralisá-lo. Mas isso não era tão simples assim,
pois assim que o robô constatasse a presença
de inteligência num ser que não se parecesse
com um saltador, esboçaria uma reação hostil.
Gucky não soube lidar com o problema. Resol-
veu verificar se o cérebro positrônico o registra-
ria como ser não dotado de inteligência.
Pôs os quatro pés no chão e foi saltitando
diretamente para o vigilante silencioso, que
prosseguiu na sua ronda. Manteve-se preparado
para um salto de teleportação, a fim de poder
colocar-se em segurança assim que isso se tor-
nasse necessário.
Se Bell visse seu amiguinho nessa situação,
teria soltado uma gargalhada de escárnio.
Gucky, o mutante todo-poderoso, transformado
num supercoelho! Era uma idéia mais que es-
quisita. Felizmente Bell não estava por perto e
assim não pôde deleitar-se com o espetáculo,
que não despertou o menor interesse no robô.
Este simplesmente ignorou Gucky.
28
O rato-castor teve vontade de recorrer às
suas energias telecinéticas para levantá-lo a
uma altura de cinqüenta metros e fazê-lo cair ao
chão, como já fizera com outros robôs. Mas ti-
nha que ater-se à tarefa que lhe fora confiada
por Rhodan. De sua parte também ignorou o
robô e, passando junto dele, saltitou vale a den-
tro.
Assim que tinha passado pelo monstro me-
tálico foi saltitando de costas, para não ser liqui-
dado de surpresa. Mas a precaução revelou-se
inútil. O robô achava que se tratava dum animal
inofensivo que ia procurar comida no vale, ou
se dirigia a alguma das raras fontes existentes
naquela área desolada.
O vale logo se abriu, mas continuou seco.
Apenas a vegetação mais abundante revelava a
maior umidade do solo. Gucky continuou a sal-
titar até que uma curva o colocasse fora do al-
cance da visão do robô.
Sentiu-se aliviado. Pôde dedicar sua atenção
ao que havia pela frente, e viu que valia a pena.
O vale abriu-se a ponto de se transformar
numa bacia de mais de um quilômetro de diâ-
metro. As encostas rochosas íngremes forma-
vam um obstáculo intransponível para qualquer
visitante indesejado. Ninguém poderia entrar ali
e, uma vez lá dentro, não conseguiria sair, a
29
não ser que possuísse asas. Havia pavilhões bai-
xos que abrigavam as máquinas e as usinas,
mas isso Gucky só percebeu em segunda linha.
A abertura existente na encosta de mais de
quinhentos metros ocupou toda sua atenção.
Tinha uma altura de mais de duzentos me-
tros e sua largura era ao menos igual à altura.
Uma luz abundante saía da escuridão da monta-
nha, deixando perceber o envoltório metálico
reluzente da nave espacial quase concluída, in-
teiramente oculta das vistas dos curiosos. Se as
informações de Rhodan fossem corretas, o tú-
nel que penetrava na montanha devia ter pelo
menos oitocentos metros de comprimento.
Os saltadores não poderiam ter escolhido
um esconderijo melhor que esse.
Uma fileira de robôs de combate bloqueava
a única saída da bacia. Mantinham-se imóveis,
de frente para Gucky que, agachado entre algu-
mas moitas, fez de conta que se deleitava com
o capim escasso que crescia entre as pedras,
sem interessar-se pelos robôs ou pela nave.
Ao que parecia, até mesmo os cérebros po-
sitrônicos acreditavam que um vegetariano é
uma criatura que não pode fazer mal a nin-
guém. Mais uma vez Gucky teve de notar, cheio
de ressentimento, que não era levado a sério e
ninguém via nele um intruso.
30
Mas de certo modo isso o deixava satisfeito.
Era bem verdade que não poderia recorrer à
teleportação, pois os robôs interpretariam tal
atividade como um sinal de inteligência e reagi-
riam de forma adequada. Por isso o rato-castor
não teve outra alternativa senão continuar a
pastar e aproximar-se lentamente da reluzente
linha de defesa.
Talvez conseguisse chegar mesmo à própria
nave espacial. Quanto maior o volume de infor-
mações que conseguisse levar a Rhodan, mais
fácil se tornaria a ação que pretendiam lançar
contra o estaleiro.
Saltitou para diante, sem sentir-se muito à
vontade.
Cerca de trinta robôs bloqueavam o vale.
Como se formassem em semicírculo dirigido
para fora, a distância entre um e outro era de
cerca de cinco metros. Era um desperdício tre-
mendo, pois o poder defensivo de um robô é
enorme. Bastava um deles para defender o vale
contra um exército que pretendesse invadi-lo.
Concluía-se que os saltadores davam muita
importância àquela nave.
Gucky não teve muito tempo para refletir.
Enojado, enfiou o feixe de capim atrás do dente
roedor, esperando poder cuspi-lo dali a pouco.
Tinha que guardar as aparências. No planeta de
31
Goszul existia um tipo de coelho, e teria que
imitar o mesmo.
Gucky não pôde impedir que os pêlos da
nuca se arrepiassem à vista das máquinas de
guerra, agora tão próximas, que mantinham os
radiadores energéticos firmemente apontados
para a frente. Era bem possível que os robôs já
estivessem há meses no mesmo lugar, mas era
evidente que não se importavam com isso. Não
tinham a menor idéia de tempo e de espaço
quando incumbidos de uma tarefa de expectati-
va e vigilância. Dali a mil anos ainda estariam
no mesmo lugar, se não recebessem qualquer
ordem em contrário. Bem, para Gucky tudo
isso não importava, desde que não tomassem
conhecimento da sua presença. Saltitou mais al-
guns metros e parou junto a um suculento feixe
de capim.
O robô mais próximo, que se encontrava a
uns vinte metros de distância, executou um mo-
vimento preguiçoso, dirigindo suas lentes cinti-
lantes sobre o intruso. Seus vizinhos não esbo-
çaram qualquer reação.
Gucky teve uma sensação esquisita no estô-
mago, o que não foi devido apenas à deglutição
do capim. Reuniu toda a coragem que possuía
e pôs-se a devorar maiores quantidades daquela
comida repugnante, para conseguir uma seme-
32
lhança ainda maior com um coelho nativo.
Quem dera que pudesse teleportar-se! Mas
com isso poderia estragar os planos de Rhodan.
Os robôs saberiam que o estaleiro fora desco-
berto por seres inteligentes. Reagiriam em con-
formidade com esse fato, e seria bem possível
que destruíssem a nave, se não tivessem outra
saída. Gucky tinha certeza de que já tinham co-
nhecimento da fuga dos comandantes dos salta-
dores.
O sabor do capim era horrível.
O feixe mais próximo encontrava-se exata-
mente entre os dois robôs postados diante de
Gucky. O rato-castor reuniu as últimas energias
e foi saltitando em direção ao mesmo. Conteve
a respiração, para poder se desmaterializar a
qualquer momento. Mas essa medida extrema
de salvação teria de ser evitada enquanto isso
fosse possível.
O robô mais próximo girou lentamente em
sua direção. O braço esquerdo fechou-se num
ângulo e apontou exatamente na direção de
Gucky, que ainda não se atreveu a respirar e
continuou a saltitar em movimentos seguros,
procurando atingir a moita de capim que subita-
mente parecia bastante apetitosa.
Eram segundos de tensão quase insuportá-
vel. Será que o robô julgaria conveniente des-
33
truir o animal aparentemente inofensivo? Se
fosse assim, ele não o faria para matar o tem-
po, pois um robô não conhece o tédio. Nesse
caso a programação incluiria uma proibição de
entrar no vale que abrangia todo e qualquer ser
vivo.
Mas, por que o robô postado na entrada
não agira dessa forma?
O gosto não melhorara nem um pouco, mas
Gucky teve a impressão de nunca ter comido
nada que fosse mais saboroso. Essa impressão
só durou até o momento em que o dente-roe-
dor iniciou sua tentativa inútil de triturar o ca-
pim.
O robô dedicou um interesse visível à pasta-
gem de Gucky. Seu braço armado manteve-se
estendido, pronto para disparar, mas se tivesse
a intenção de destruir o pequeno roedor, já o
teria feito. Não havia nenhum fundamento lógi-
co para a demora.
O raciocínio ágil de Gucky logo compreen-
deu isso. Num gesto heróico engoliu o capim
sem mastigar. Seu estômago quis revoltar-se,
mas isso não durou muito. Estremecendo por
dentro, ignorou o robô que continuava vigilante
e continuou a comer.
O cérebro positrônico do guarda metálico
registrou o fato: era um ser vivo que não se pa-
34
recia com um saltador, mas também não se pa-
recia com um goszul ou qualquer outro ser inte-
ligente. Era um animal que não possuía inteli-
gência, pois de outra forma evitaria a vizinhan-
ça das máquinas de combate. Não pensa; logo,
não é perigoso. Ainda acontece que come ca-
pim; logo, é um ser nativo deste mundo. E,
como os goszuls são os únicos inimigos que os
saltadores têm neste planeta...
A conclusão era evidente: o herbívoro era
um ser inofensivo.
Aliviado, Gucky notou que o braço armado
se abaixou e o robô voltou a dirigir seu olhar
para a entrada do vale. O pior, que era a expe-
riência para valer, havia sido vencido.
Agora não devia precipitar nada.
Guiando-se por essa regra, continuou a pas-
tar tranqüilamente e quase chegou a estourar o
estômago. Saltitou em direção ao edifício mais
próximo.Sentiu um estranho calafrio nas cos-
tas, mas resistiu à tentação de olhar para trás.
O que aconteceria se o robô colocasse em fun-
cionamento outro circuito de seu mecanismo e
tomasse uma decisão diferente? O rato-castor
não se tranqüilizou muito com a idéia de que
não sentiria sua morte repentina.
Ignorou a moita de capim mais próxima e
continuou a saltar. Com um alívio indescritível
35
dobrou pela quina do edifício alongado, colo-
cando-se fora das vistas do robô.
Soltou um suspiro de alívio.
A entrada do estaleiro escavado na rocha fi-
cava a uns duzentos metros do lugar em que se
encontrava. Nesse trecho havia vários pavilhões
e objetos empilhados ao ar livre. Eram arma-
ções metálicas, peças reluzentes do casco, pe-
quenos andaimes e caixas enormes. Robôs de
trabalho com uma programação especial prede-
terminada moviam-se entre os pavilhões, execu-
tando suas tarefas. Do túnel saíam ruídos dos
mais diversos tipos, que não permitiam a me-
nor dúvida de que ainda se estava trabalhando
na construção da nave.
Os robôs não haviam recebido contra-
ordem; por isso concluiriam o trabalho.
Ninguém sabia o que aconteceria depois.
Rhodan não podia assumir o risco de permi-
tir que os robôs saíssem para o espaço com a
nave recém-concluída, dirigindo-se para um lo-
cal de encontro predeterminado.
Gucky sabia disso. Precisava descobrir quan-
do começaria o estágio crítico.
Dez metros à esquerda abriu-se uma porta e
um robô de trabalho saiu de um pavilhão. Segu-
rava alguns desenhos, que deviam reproduzir a
nave concluída. Não trazia armas como os ro-
36
bôs de combate, que Gucky via em todos os
cantos. Mas nem por isso era menos perigoso.
Sentado sobre as patas traseiras, Gucky
mastigava uma folha de capim, que parecia re-
presentar a própria imagem da bem-aventuran-
ça. Os estaleiros, os depósitos, os pavilhões e
os robôs — tudo isso não o interessava nem um
pouco. Para ele só existia o delicioso capim que
encontrara naquele vale.
O robô devia ter chegado à mesma conclu-
são. Sem tomar conhecimento da presença de
Gucky, deslocou-se numa série de movimentos
abruptos em direção ao túnel, onde se encon-
trou com outros robôs, com os quais encetou
uma palestra.
“Ainda bem”, pensou Gucky, cuspindo o ca-
pim com uma sensação de alívio. Pelo menos
desta vez não teve de engoli-lo. Enquanto isso
não tirou os olhos do trecho que ia até a entra-
da do túnel. Infelizmente isso fez com que não
prestasse atenção ao que se passava atrás de-
le.Ouviu passos, mas antes que tivesse tempo
de virar-se, uma ponta de bota atingiu-o pelo
lado e atirou-o alguns metros para cima. Por
um instante Gucky pensou ter quebrado todos
os ossos do corpo, especialmente quando ater-
rizou no chão de rocha e ficou deitado, quase
sem fôlego. Estava tão surpreso que nesse mo-
37
mento de perigo não conseguiu teleportar-se
para um lugar seguro. Além disso, conseguiu
ver quem lhe dera o pontapé.
Era um saltador.
A barba ruiva constituía indício seguro de
que não se tratava de um goszul. E o corpo ma-
ciço também revelava que pertencia à classe
dos mercadores que já dominaram o planeta.
Usava botas pretas e calça apertada. Pela capa
branca concluía-se que era um cientista. Uma
cabeleira desgrenhada cobria sua cabeça.
Murmurou algumas palavras num dialeto que
Gucky não entendeu e continuou a andar tran-
qüilamente, sem interessar-se por sua vítima.
Finalmente o rato-castor teve oportunidade de
usar suas capacidades telepáticas, que há pou-
cos segundos negligenciara tanto. Se não tives-
se procedido assim, teria notado a aproximação
do saltador.
— Era só o que faltava, esses bichos anda-
rem pelo vale. — Foi o que o saltador disse em
sua língua desconhecida. Falando em intercos-
mo, acrescentou: — Terei que dar outras instru-
ções aos robôs, senão acabamos tropeçando
sobre esses comedores de capim.
Enquanto prosseguia na sua caminhada,
Gucky acompanhou seus pensamentos e desco-
briu que o nome do saltador era Borator e que
38
exercia as funções de diretor-técnico do projeto,
sendo o único saltador que se encontrava no lo-
cal.
Isso tinha suas vantagens. Agora, que pas-
sou a prestar atenção aos pensamentos do sal-
tador, não teve a menor dificuldade em seguir e
captar os pensamentos do saltador, pois não
havia necessidade de classificar e interpretar um
fluxo de impulsos. Em todo o vale só havia os
pensamentos daquele saltador; o resto era silên-
cio. Tinha que procurar um esconderijo onde
ninguém o perturbasse e pudesse perceber os
pensamentos do saltador.
Levantou devagar. Ainda sentia dores no
lado. Teve de controlar-se para não vingar-se
logo do grosseirão, mas este não perderia por
esperar. Aquele saltador ainda se arrependeria
amargamente da sua crueldade, foi o que
Gucky prometeu a si mesmo para acalmar seu
gênio. Faria esse Borator subir para o ar cin-
qüenta metros e o deixaria pendurado lá um dia
inteiro. E depois...
Suas visões de futuro e de vingança foram
interrompidas por novos passos. Um robô de
trabalho passou junto dele com o olhar estúpi-
do, sem dar-lhe a menor atenção. Aí está, pen-
sou o rato-castor amargurado. Os robôs são
mais humanos que os seres inteligentes. Ao me-
39
nos deixavam-no em paz.
Gucky encontrou um esconderijo seguro
atrás de uma pilha de caixas. Ali não teria que
temer qualquer surpresa, pois antes que pudes-
sem encontrá-lo teriam de remover a maior
parte das caixas, e ele não deixaria de perceber
isso, mesmo que estivesse dormindo.
Finalmente teve tempo e tranqüilidade para
cuidar do tal do Borator. Com a maior capaci-
dade captou os pensamentos do mesmo, e as-
sim conseguiu “ouvir” o que dizia aos robôs.
Não entendia as respostas destes, pois sem um
receptor especial Gucky não poderia perceber
os impulsos positrônicos emitidos pelos mes-
mos. Assim mesmo conseguiu descobrir coisas
que eram muito importantes para os planos de
Rhodan.
Soube, principalmente, que dali a seis dias o
gigantesco cruzador espacial guardado no túnel
devia estar pronto e em condições de decolar.
Em condições de decolar?
Seria no dia 25 de maio de 1.984 do calen-
dário terrestre. Era um lapso extremamente
curto, pois havia muito que fazer. Não podia
perder um minuto. Gucky não perdeu tempo.
Concentrou-se para a Stardust, que se encon-
trava a cinqüenta quilômetros dali... e saltou.
Materializou-se bem no colo de Bell.
40
2

Exatamente vinte horas-luz da estrela 221-


Tatlira, doze naves de duzentos metros de com-
primento, construídas em formato cilíndrico, sa-
íram do hiperespaço e retornaram ao universo
normal.
Havia mais uma nave, que se mantinha um
tanto afastada. Media mais cem metros que as
outras, mas seu formato também lembrava o de
um cilindro arredondado na extremidade. No
casco abriam-se vigias redondas e iluminadas,
atrás das quais se moviam sombras distorcidas,
que assumiam proporções gigantescas. Seriam
apenas distorcidas?...
Topthor, o comandante da frota, acomodara
o peso de mais de meia tonelada de seu corpo
junto aos controles de comando. Seu corpo ti-
nha mais de metro e meio de altura, mas a cir-
cunferência do mesmo media mais de cinco
metros. Em outras palavras, a largura era igual
a altura. O crânio liso era o de um saltador, o
que se via pela barba ruiva aparada.
As telas iluminaram-se, retratando o sistema
do qual a frota se aproximava à velocidade da
luz.
As mãos pesadas de Topthor descansavam
41
sobre uma folha de plástico coberta de caracte-
res estranhos. Nessa folha estavam os motivos
por que mais uma vez teve de imiscuir-se nos
problemas alheios. Afinal, era este seu dever...
e sua profissão.
É que o clã de Topthor, geralmente conheci-
do como o clã dos superpesados, assumira na
comunidade dos mercadores galácticos o papel
dos bombeiros. Não negociavam com mercado-
rias, mas com a guerra. Sempre que em algum
lugar irrompia um incêndio, eram chamados.
Além disso, forneciam naves de comboio, medi-
ante pagamento de quantias predeterminadas
pelos membros dos clãs interessados.
Nunca Topthor chegara a temer um inimi-
go, quanto mais fugir dele — com exceção de
uma única vez. Foi quando tentou atacar um
planeta chamado Terra. Nessa oportunidade
suas forças foram quase totalmente destruídas
pela nave esférica de Perry Rhodan.
Topthor resolvera que jamais voltaria a lutar
contra Perry Rhodan. Não era covarde, mas
gostava de viver.
Topthor esboçou um sorriso feroz quando se
lembrou de Perry Rhodan. O terrano estava
longe e nada tinha que ver com aquilo que esta-
va planejando. No planeta de Goszul se defron-
taria com outro inimigo: uma doença. Bastava
42
precaver-se contra a infecção. O resto seria
uma tarefa de rotina. Os nativos rebeldes seri-
am castigados, os robôs e o equipamento técni-
co contaminado seriam guardados nos porões
hermeticamente fechados da nave, e providen-
ciaria para que a nave superavançada fosse le-
vada ao destino.
O planeta de Goszul estava submetido à qua-
rentena. Só em circunstâncias muito especiais
alguém poderia pousar nele. E a tarefa que lhe
fora confiada representava uma circunstância
desse tipo.
Topthor ainda estava sorrindo quando vol-
tou a pegar o escrito e leu o texto lacônico:

“Para Topthor, comandante e patriarca do


clã dos superpesados. O planeta de Goszul está
sob quarentena. Há uma epidemia que produz
uma amnésia total. É incurável. Resgatar o
equipamento técnico. Os nativos se rebelaram e
devem ser punidos. Couraçado construído em
segredo, uma vez concluído, será encaminhado
para as coordenadas XXM-17. Os governantes
e dirigentes do estaleiro devem ser deixados
para trás.
Em nome de todos os clãs — Etztak.”

Topthor colocou a folha de plástico sobre a


43
mesa. A tela que se estendia acima dela mostra-
va com toda nitidez o sol pequeno e amarelento
de Tatlira, cercado de vários pontos luminosos.
Eram os planetas.
Um deles era o planeta de GoszuL.
Inclinou-se para a frente e, com um simples
movimento, ligou o comunicador, que o coloca-
ria em contato com a sala de comando das ou-
tras naves. Dali a uns trinta segundos outra tela
subdividida em doze campos distintos começou
a iluminar-se.
Em cada um desses campos surgiu um rosto
que o fitava numa atitude de expectativa.
Todos eram saltadores superpesados. Há
muitos milênios, quando os saltadores ainda vi-
viam em planetas, não em naves, o clã dos su-
perpesados escolhera um mundo em que a gra-
vitação era muito elevada. Em virtude disso, no
curso das gerações surgiram alterações físicas,
que facilitavam a adaptação às condições rei-
nantes no novo mundo. Foi assim que surgiu o
clã dos superpesados.
Os doze saltadores cujos rostos surgiram na
tela usavam barbas aparadas e tinham olhos in-
teligentes, mas frios e perscrutadores. Os lábios
cerrados pareciam traços vermelhos. As cente-
nas de quilos de seus corpos não eram retrata-
das na tela.
44
Topthor não pôde reprimir um ligeiro sorri-
so quando fitou os rostos de seus comandantes.
Sabia que não temiam a morte nem o diabo,
mas tinham um medo terrível de uma doença
incurável. Mas, para falar com franqueza, ele
mesmo também não se sentia muito bem. Mas
nunca confessaria uma coisa dessas.
— O objetivo está à nossa frente — disse
com sua voz retumbante, que já fizera com que
muitos patriarcas aumentassem espontanea-
mente a oferta para a proteção aos seus com-
boios. — Vocês conhecem a tarefa e sabem
que a mesma não é fácil. Antes de mais nada
temos de ocupar o estaleiro espacial, para evi-
tar que ele seja atacado ou mesmo destruído
pelos nativos. Não sei como esses habitantes
primitivos de Goszul poderiam enfrentar cem
robôs de combate, mas alguém preveniu Etztak
para que não os subestimasse. Só depois de
cumprida essa parte poderemos cuidar do res-
gate do equipamento técnico e dos robôs. —
Esboçou um sorriso preguiçoso. — Acho estra-
nho que Etztak não faça muita questão do lucro
material. Isso me dá o que pensar.
Um dos doze saltadores gesticulou violenta-
mente, mostrando que apoiava as palavras de
Topthor. Realmente a atitude de Etztak era sus-
peita e dava o que pensar. Topthor fez um sinal
45
ao comandante.
— Pois não, Rangol. O que houve?
— Será que subestimamos os goszuls? Em
nossos fichários constam como subdesenvolvi-
dos pacíficos e sem ambições. Sua tecnologia é
antiquada e muitíssimo inferior à nossa. Não
compreendo por que Etztak teve que fugir...
— Esqueceu-se da epidemia? — lembrou
Topthor. — Quando me lembro dela, também
não me sinto muito feliz. Pode-se perder a me-
mória.
— Assim mesmo vamos pousar lá? — per-
guntou outro.
— Recebemos licença especial do conselho
do clã. Nossos trajes especiais nos protegerão
contra a contaminação. E por enquanto deixa-
remos sair exclusivamente os robôs, que farão o
trabalho mais pesado. Ainda teremos que provi-
denciar para que ninguém consiga sair do siste-
ma.
— Sempre pensei que os goszuls não possu-
íssem naves espaciais.— E não possuem mes-
mo. Mas ordens são ordens. Deve haver outras
naves, além daquela que vamos buscar. Seja
como for, vamos bloquear o sistema e mantere-
mos contato entre nós. Apenas duas das nossas
naves pousarão. A de Rangol e a minha.
Rangol não parecia muito satisfeito. A distin-
46
ção com que fora agraciado não parecia deixá-
lo muito alegre, mas manteve-se calado. Era
preferível não irritar Topthor.
— Mais alguma pergunta?
Ninguém teve perguntas.
— Muito bem — disse Topthor. — Meu na-
vegador lhes fornecerá as coordenadas que cal-
culou. Daqui a quatro horas nos separaremos.
As estações de rádio ficarão permanentemente
em recepção. Fim.
A tela de doze campos apagou-se no mesmo
instante em que a comunicação foi interrompi-
da. O restante da palestra foi conduzida pelo
navegador que se encontrava na sala de telegra-
fia.
Topthor reclinou-se na poltrona e com os
olhos semicerrados contemplou o sistema solar
de Tatlira, do qual se aproximava à velocidade
da luz.
Com uma certa preocupação perguntou de
si para si o que o aguardaria por lá.

***

Quando Gucky contou que chegara a comer


capim para convencer os robôs de que era uma
criatura inofensiva, Bell irrompeu numa garga-
lhada homérica. Não conseguiu acalmar-se e
47
provavelmente teria morrido sufocado se tivesse
tempo para isso. Acontece que não teve.
Subitamente a voz de Gucky tornou-se agu-
da e estridente.
— Você acha que gostei disso? Se você não
parar logo de se divertir à custa da situação mi-
serável que tive de enfrentar, você vai ver uma
coisa, seu monstro ruivo. Então?
O “então” estava tão carregado de expecta-
tiva que Bell logo estacou, lembrando-se de situ-
ações semelhantes, em que levara a pior. Afinal
era um homem normal, não dotado de capaci-
dades telecinéticas. Respirando com dificuldade,
parou de rir e disse com a voz ofegante:
— Não tive a intenção de ofendê-lo. E de-
pois? Os robôs caíram nessa, acreditando que
você fosse uma espécie de coelho?
Gucky confirmou com o rosto muito sério.
— Mais ou menos. De qualquer maneira
consegui atravessar a fileira de guardas e entrar
no estaleiro. O projeto está sendo dirigido por
um certo Borator. É um saltador.
Era uma surpresa.
— Quer dizer que não teremos que lidar
apenas com os robôs — disse Rhodan em tom
pensativo. — Isso dificulta a solução do proble-
ma, mas não muito. Antes de mais nada tere-
mos que reduzir esse Borator à impotência; só
48
depois disso poderemos pensar em colocar os
cento e trinta robôs fora de combate sem cha-
mar a atenção. Acho que conseguiremos isso
com o novo radiador de impulsos de reprogra-
mação. Infelizmente a ação do aparelho é ape-
nas individual, isto é, temos que pegar os robôs
um por um e dar-lhes outra programação. Se
os outros perceberem, e não há a menor dúvida
de que perceberão, haverá dificuldades.
— Ainda sou de opinião que devemos lançar
um ataque de surpresa com os nossos caças e
destruir os robôs — interveio o major Dering-
house.
Rhodan nem sequer deu uma resposta.
E essa resposta não faria o menor sentido,
pois naquele instante uma luzinha vermelha
acendeu-se junto ao intercomunicador. Ouviu-se
um zumbido. E a tela iluminou-se. Nela surgiu o
rosto preocupado do tenente Fisher, que estava
de plantão na sala de telegrafia.
Rhodan apertou um botão, estabelecendo o
contato.
— O que houve, Fisher? É alguma coisa im-
portante? Estamos em conferência e...
— É importante, sim senhor. Nossos rastre-
adores estruturais registraram transições nas
imediações do sistema. Ao que parece, os salta-
dores que fugiram estão de volta.
49
Rhodan ficou perplexo por dois segundos,
mas logo recuperou o autocontrole.
— Acho que isso não é possível. Fisher. Ve-
rifique as coordenadas exatas das transições e
seu número. Avise-me assim que houver algu-
ma novidade.
— Sim senhor.
O contato entre a sala de comando e a sala
de telegrafia foi mantido. Ao que tudo indicava,
Rhodan não estava disposto a perder-se em es-
peculações vazias; por isso Gucky prosseguiu
no seu relato. Evidentemente os presentes não
lhe dedicavam a mesma atenção. Todos pensa-
vam nas naves espaciais surgidas tão de repen-
te, e que se aproximavam do planeta de Goszul.
Quem seriam? O que queriam?
O tenente Fisher não os deixou na incerteza
por muito tempo.
— São treze naves. Comprimento de cerca
de duzentos metros e o formato típico das uni-
dades dos saltadores. Saíram do hiperespaço a
uma distância aproximada de um dia-luz. Pela
intensidade dos abalos conclui-se que executa-
ram um salto de mais de três mil anos-luz.
Aproximam-se em formação compacta e à ve-
locidade da luz. Voltarei a entrar em contato
com o senhor.
Rhodan fitou os presentes.
50
— Então são os saltadores! Não compreen-
do. Será que são os mesmos?
— Não devem ser — disse Bell em tom con-
victo. — O pessoal de Etztak deve estar farto da
lição; não voltará. Além disso, pegaram a doen-
ça e não se lembram de nada.
— Acontece que já tiveram tempo de man-
dar algumas naves de guerra. Mas acredito que
ainda não saibam com quem estão lidando.
Gostaria de saber o que querem por aqui.
Subitamente Gucky interveio com a voz ner-
vosa e estridente:
— Querem a nave que está para ser concluí-
da. É claro que vem buscar a nave.
Rhodan não conseguiu disfarçar a surpresa.
— Talvez você tenha razão, Gucky. Mas
você não disse que de qualquer maneira os ro-
bôs enviariam a nave para as coordenadas já fi-
xadas? Estou pensando numa coisa. A nave se-
ria tripulada pelos robôs? Ou será que estes fi-
cariam para trás?
— Não sei. Não tive tempo para descobrir
tudo.
— Esse detalhe seria muito interessante. Se
os robôs receberam a incumbência de abando-
nar o planeta de Goszul no couraçado recém-
construído, já saberíamos o motivo do surgi-
mento dessa frota. Ela deve impedir que os ro-
51
bôs executem a tarefa.
Os saltadores não querem que a epidemia...
não, não havia nenhuma lógica nisso. Se os sal-
tadores supõem que o transmissor da moléstia
também se fixa sobre o metal, terão que con-
cluir fatalmente que a nave está contaminada.
Não sei por quê, mas acho que há algum bicho
escondido em tudo aquilo. Bem que gostaria de
saber onde está esse bicho.
— Não gosto de bichos menos ainda que de
capim — chiou Gucky em tom confiante —
mas estou disposto a colaborar para a boa cau-
sa e procurar o bicho.
Rhodan sorriu.
— Isso pode ser fácil, mas também pode ser
muito difícil, pois a mentalidade dos saltadores
é completamente diferente da nossa. Talvez a
verdade nos decepcione quando a descobrir-
mos. Um momento, a sala de telegrafia está
chamando. O que houve, Fisher?
— Captamos sinais de telegrafia. Ainda não
foram decifrados, mas se parecem com os dos
saltadores. Se não estiverem transmitindo em
código, poderei fornecer o texto dentro de dez
minutos.
Bell encostou o indicador esquerdo ao nariz,
o que era um sinal de que refletia profundamen-
te. Rhodan lançou-lhe um olhar curioso. Gucky
52
exibiu o dente roedor e deu um sorriso de debo-
che. Para o rato-castor um Bell pensante pare-
cia uma coisa muito engraçada. Os outros man-
tiveram-se na expectativa.
— Então? — perguntou Rhodan.
Bell levantou os olhos.
— Lembrei-me de uma coisa — anunciou ao
auditório que ouvia ansiosamente. — Se é que
uma frota dos saltadores se aproxima desse pla-
neta, e se esses saltadores não sabem que esta-
mos aqui, devemos pensar em dar o fora. Resta
saber para onde poderíamos ir. Não podemos
cogitar de uma transição, pois ela trairia nossa
presença. Os hangares do espaçoporto são
muito pequenos. Então, o que vamos fazer?
Mergulhar na terra?
Os outros ocupantes da sala olharam-se sur-
presos. Bell acertara em cheio. Estavam por ali,
desenvolvendo seus planos, esquecidos de que,
dentro de vinte horas o mais tardar, os antigos
donos desse mundo estariam de volta para exe-
cutar seus planos ainda desconhecidos. Os sal-
tadores ainda estavam acreditando que tudo
aquilo não passara duma epidemia que infetara
os nativos. E Rhodan pretendia fazer com que
continuassem nessa crença.
— Os três cruzadores cabem nos hangares
subterrâneos — disse Rhodan. — Gostaria de
53
tê-los por perto, mesmo que os saltadores resol-
vam pousar. Teremos meios de evitar que veri-
fiquem o que há nos hangares. Qualquer indica-
ção da presença da epidemia será suficiente
para isso. Resta a Stardust. Para ela não existe
nenhum hangar. E se fosse para o espaço, os
instrumentos dos saltadores logo constatariam
sua presença — por alguns segundos Rhodan
concentrou-se nas suas reflexões. Subitamente
olhou para Ralv. — Conhece seu planeta? — o
goszul confirmou com um lento aceno de cabe-
ça. — Muito bem. Qual é a profundidade dos
seus mares?
O rosto de Ralv não parecia muito inteligen-
te, pois não compreendia por que Rhodan esta-
va interessado em conhecer a profundidade dos
mares. Mas Bell já havia compreendido.
— Quer deitar a Stardust no oceano? —
perguntou espantado. — É uma idéia simples
que nunca me teria ocorrido. Ótimo. Assim po-
derei dedicar-me à pesquisa submarina. Sempre
tive vontade de fazer isso.
— Você não terá tempo para isso — disse
Rhodan.
Ralv confabulou com Enzally e Geragk.
— A trinta quilômetros da costa ocidental
começa o grande fosso. Sua profundidade mé-
dia é de três mil metros.
54
— É exatamente do que precisamos — con-
firmou Rhodan. — Se a Stardust estiver coberta
por uma camada de água de dois quilômetros
de espessura, ninguém conseguirá localizá-la. E
para a tripulação é indiferente que a nave seja
cercada pela água ou pelo espaço vazio.
Gucky atravessou a sala a passos balouçan-
tes e plantou-se diante de Rhodan. O dente roe-
dor parecia brilhar numa atitude provocadora,
mas os olhos castanhos de cão pareciam expri-
mir a fidelidade e a ternura de sempre.
— Será que sou um rato da água? — piou
em tom recriminador.
Rhodan esboçou um sorriso condescenden-
te.
— Pela sua cauda achatada poderíamos ser
levados a concluir que seu habitat é a água —
disse em tom irônico. — Aliás, é de admirar
que você venha de um mundo em que quase
não existe água. Bem, vou tranqüilizá-lo. Nin-
guém disse que você mergulhará junto com a
Stardust. Preciso de você na superfície.
Bell interrompeu-o.
— O que vamos fazer? Os três cruzadores
serão escondidos nos hangares subterrâneos, e
a Stardust ficará embaixo da água. Até aí muito
bem. Mas o que acontecerá conosco?
— Conosco? — Rhodan exibiu um sorriso
55
franco.
Parecia divertir-se a valer, o que deixou Bell
ainda mais aborrecido. Também Deringhouse,
Nyssen e MacClears pareciam não ver motivo
para alegrar-se pelo simples fato de que, por as-
sim dizer, teriam de bater em retirada.
Apenas Enzally, Marshall e Gucky, que eram
telepatas, sorriram como que por comando.
— O que acontecerá conosco? — prosse-
guiu Rhodan. — É muito simples, meus caros.
Nós nos faremos de loucos.
Mal os cruzadores Solar System, Terra e
Centauro haviam desaparecido nos gigantescos
pavilhões subterrâneos existentes embaixo do
campo de pouso, o tenente Fisher veio com
uma nova notícia que não deixou que o nervo-
sismo esfriasse.
— Outra novidade. A frota se divide. Ainda
estão a quinze horas-luz, mas já se dividem. Ao
que parece querem bloquear todo o sistema.
Rhodan, que ouviu a notícia por meio de um
pequeno aparelho embutido na pulseira, espe-
rou alguns segundos antes de responder. En-
contrava-se numa das extremidades do campo
de pouso, olhando como as portas camufladas
dos hangares se fechavam lentamente.
Os cruzadores haviam desaparecido da su-
perfície do planeta, e alguns robôs reprograma-
56
dos dos saltadores foram colocados nos contro-
les. Quem quisesse abrir o hangar, teria que en-
tender-se com eles.
— Diga ao major Deringhouse que me man-
de um bom piloto em um caça espacial.
Quando a Stardust estivesse no fundo do
oceano, não seria possível acompanhar os mo-
vimentos da frota inimiga. No entanto, Rhodan
não pretendia deixar entregues ao acaso os
acontecimentos que se aproximavam. Ao que
tudo indicava, sua suposição de que a frota dos
saltadores iria pousar em formação compacta
não se realizaria.
Dali a um minuto, uma abertura relativamen-
te pequena abriu-se no envoltório da Stardust.
Um torpedo esguio saiu por ela e pousou a
poucos metros de Rhodan. A carlinga abriu-se e
um rosto masculino ainda jovem contemplou
Rhodan com um sorriso de expectativa.
— O sargento Harnahan apresentando-se
para a missão especial.
Rhodan retribuiu o sorriso.
— As coisas não serão nada fáceis para o
senhor, sargento. Mantenha contato pelo rádio
com o tenente Fisher. Observe a frota dos salta-
dores e mantenha-nos informados sobre sua
movimentação. Permaneça no espaço, evitando
qualquer encontro com os saltadores. É muito
57
importante que ninguém desconfie da sua pre-
sença. O senhor será nosso olho, Harnahan,
pois nossos instrumentos de observação estarão
cegos. Muitas felicidades.
— Obrigado — respondeu o sargento, fe-
chando a carlinga. Dali a um segundo o campo
antigravitacional fez com que o caça disparasse
para o alto. Pouco depois Harnahan ligou os
propulsores e num instante desapareceu na at-
mosfera azul.
Rhodan seguiu-o com os olhos e sentiu-se
um pouco melhor. Os caças espaciais, peque-
nos e pouco numerosos, eram foguetes que de-
senvolviam a velocidade da luz e só podiam
abrigar um piloto. Seu armamento consistia
num canhão de impulsos rigidamente montado
na proa e numa instalação para a criação de
campos protetores. A cabine pressurizada pos-
suía equipamento de condicionamento de ar e
uma minúscula comporta de ar. As pequenas
asas do aparelho de proa pontuda permitiam
vôos na atmosfera, isso se o piloto não preferis-
se utilizar o equipamento antigravitacional, que
fora acrescentado recentemente.
Alguns dos caças ainda possuíam equipa-
mentos de observação ultra-sensíveis. Era o
caso do aparelho do sargento Harnahan.
Bell aproximou-se. Viu que Rhodan olhava
58
para cima e seguiu seu exemplo. Depois de al-
gum tempo sacudiu a cabeça.
— Você acaba abrindo um buraco no ar de
tanto olhar, meu caro. Harnahan já se encontra
a muitos quilômetros de distância e não o ouvi-
rá mais se você chamar. Acho que devemos
cuidar da Stardust. Está na hora de fazê-la desa-
parecer.O comando da nave esférica foi confia-
do ao major Nyssen, que logo a levou ao lugar
indicado, situado a cerca de trinta quilômetros
da costa. Dentro de poucos minutos fez o
monstro mergulhar nas ondas do oceano. A
precária ligação pelo rádio mantida com Rho-
dan representava o único contato com o mundo
exterior, que foi preparado febrilmente para en-
trar em cena.
Entraria em cena para apresentar uma co-
média, que tinha um fundo muito sério.
Rhodan distribuiu os papéis.
— Gucky vai assumir a direção do comando
que se encarregará do estaleiro. O teleportador
Tako Kakuta e o telecineta Tama Yokida irão
com ele. Levem o novo aparelho e tratem de
paralisar os robôs. As novas instruções podem
esperar. Eu mesmo providenciarei essa parte.
Ralv e seus homens receberão instruções de
Marshall, que já sabe o que deve fazer. Não sa-
bemos quais são os planos dos saltadores. Até
59
ignoramos se pretendem pousar. Por isso deve-
mos estar preparados. Ficarão admirados ao
notar o que pode acontecer quando a popula-
ção de um planeta perde a memória — e com
ela o medo.
— Será a moléstia de novo? — perguntou
Kitai Ishibashi, o sugestor do Exército de Mu-
tantes.
— Não é bem isso — disse Rhodan com um
sorriso. — Seria muito complicado e levaria
muito tempo. Desta vez temos de agir depressa,
pois dentro de dez horas os saltadores poderão
estar aqui. Marshall pedirá a Ralv e seus ho-
mens que apliquem uma tatuagem em cerca de
dez mil goszuls e...
— Uma tatuagem? — disse Bell, respirando
com dificuldade.
— Isso mesmo — confirmou Rhodan. — O
líquido que será usado é inofensivo mas, uma
vez aplicado na pele, faz com que dentro de
uma hora a pele apresente lindas manchas. Até
parece que a pessoa caiu numa lata de tinta.
Foi mais ou menos o aspecto que tiveram os
nativos quando apanharam a doença. Se as
pessoas pintadas se fizerem de doidas, a im-
pressão causada será perfeita. Kitai providenci-
ará para que os goszuls sejam bons artistas.
O sugestor japonês sorriu.
60
— É a coisa mais fácil deste mundo. Os sal-
tadores ficarão admirados ao verem do que é
capaz um homem sem memória.
Podia mesmo contar sua vantagem. Como
sugestor que era, podia impor sua vontade aos
goszuls, ajudando-os a representar o seu papel.
Se fosse necessário, os goszuls desempenhari-
am o papel de artistas sem saberem.
O major Deringhouse olhou pela janela do
edifício de um pavimento em que se haviam
instalado. O sol já se encontrava junto ao hori-
zonte e não demoraria a desaparecer.
Os saltadores deviam chegar ao raiar do dia.
Suspirou.
— O que devo fazer?
Rhodan lançou-lhe um olhar ligeiro.
— É possível que o senhor não tenha nada a
fazer. Isso depende da evolução dos aconteci-
mentos, especialmente dos planos que os salta-
dores pretendem executar e o risco que estão
dispostos a assumir. O senhor dispõe de cinco
caças espaciais bem escondidos nas montanhas
mais próximas e de cinco pilotos. Com isso o
senhor não pode enfrentar as naves dos salta-
dores, mas sim uma expedição que os mesmos
resolvam colocar no planeta. Aguarde minhas
ordens; em hipótese alguma deve agir por con-
ta própria.
61
Bell empertigou-se.
— E eu? O que é que eu vou fazer?
— Sinto decepcioná-lo — disse Rhodan. —
Você ficará comigo, e perto de mim provavel-
mente não acontecerá muita coisa.
— Quer dizer que mais uma vez vou ficar no
quartel-general — resmungou Bell, contrariado.
— Enquanto os outros vivem aventuras e saem
da batalha com a auréola de heróis, nós fica-
mos mofando por aqui. Vamos ficar mesmo
por aqui? — de repente parecia muito preocu-
pado. — Não venha me dizer que vamos ficar
no campo de pouso. O que acontecerá se os
saltadores pousarem e vierem até aqui?
— Nesse caso você terá sua aventura — dis-
se Rhodan com um sorriso amável.
— Vamos dar o fora — disse Gucky, lançan-
do um olhar convidativo para Tako.
Tama, o telecineta, levantou-se. Como não
soubesse executar a teleportação, dependia da
carona de Gucky ou de Tako.
— Tenham cuidado — recomendou Rhodan
e deu a Tako uma pequena caixa metálica em
forma de cubo, na qual havia vários botões e
escalas. — Peguem os robôs um por um. —
Fez um sinal para Gucky: — Não devem des-
confiar de nada, senão darão o alarma.
— Não se preocupe. Agiremos que nem os
62
ratos — chilreou Gucky.
Bell sorriu.
— Para você isso não deve ser nada difícil.
Gucky lançou-lhe um olhar de desprezo an-
tes de segurar a mão de Tako e Tama. Subita-
mente uma parede reluzente parecia interpor-se
entre eles e os outros membros do grupo, e
logo desapareceram.
No mesmo instante materializaram-se nas
montanhas, atrás de uma pilha de caixas.
Rhodan fez sinal para que Marshall se apro-
ximasse.
— Inicie imediatamente o seu trabalho. Ralv
está informado. Se os saltadores pousarem em
outro ponto do planeta, o azar será nosso, mas
dificilmente isso acontecerá. A única coisa que
lhes interessa é este continente. Afinal, este es-
paçoporto é o único que existe no planeta de
Goszul.
Marshall confirmou com um aceno de cabe-
ça e retirou-se. Um carro que já o aguardava le-
vou-o, juntamente com seu equipamento, à ci-
dade portuária não muito distante, onde Ralv já
o esperava com seu grupo de homens dedica-
dos.
As únicas pessoas que ficaram para trás fo-
ram Rhodan, Bell, Deringhouse e Kitai, o su-
gestor, que só mais tarde seguiria Marshall.
63
— E agora? — perguntou Deringhouse, en-
tediado. — Será que vamos criar raízes aqui?
— Não — respondeu Rhodan. — Só ficare-
mos aqui até que os saltadores pousem.

— Estava escurecendo quando Gucky e seus


dois companheiros materializaram-se junto à pi-
lha de caixas. Felizmente não havia ninguém
por perto. Correram para trás das caixas e es-
conderam-se. Por enquanto estavam em segu-
rança.
— Será que trabalham de noite? — cochi-
chou Tama.
Aquele ambiente estranho deixava-o apavo-
rado. Tinha a impressão de ser observado cons-
tantemente por olhos invisíveis.
— Os robôs não conhecem cansaço — es-
clareceu o rato-castor. — Tenho certeza de que
Borator não faz nenhuma pausa. Sabe o que
aconteceu no planeta de Goszul e fará o possí-
vel para colocar-se em segurança. A nave se
enquadra perfeitamente em seus planos, que
não são difíceis de adivinhar.
— Você acha que pretende fugir nela?
— Naturalmente. Fique quieto, ouço alguém
que se aproxima — aguardou alguns segundos
64
e cochichou: — É o saltador. Estou captando
seus pensamentos. Ainda não está dormindo.
Os três transformaram-se em sombras imó-
veis agachadas atrás das caixas. Gucky perscru-
tou a escuridão.
“Mais cinco dias”, pensou Borator num mis-
to de satisfação e impaciência. “Aí terá chega-
do a hora. Malditos patriarcas! Deixaram-me
aqui, esperando que contraísse a doença e es-
quecesse que estou construindo uma nave para
eles. Estão redondamente enganados. Se acre-
ditam que entregarei isto conforme o figurino
estão fazendo um cálculo errado. A doença não
chegou até aqui. Logo, posso levar alguns ro-
bôs de combate e alguns especialistas. Não há
perigo... ficarão admirados... que baixeza...”
Satisfeito, Gucky sorriu. Não havia motivo
para preocupar-se: a suposição de que dali a
cinco dias a nave fosse dirigir-se para as coor-
denadas preestabelecidas não tinha fundamen-
to. Borator pretendia fazer um negócio todo
seu. Talvez pretendesse mesmo usar a nave
para fundar um novo clã.
Aos cochichos informou os companheiros e
acrescentou:
— Borator vai para a cama. Talvez consiga
descobrir mais alguma coisa. Poderíamos deixar
que concluísse tranqüilamente a sua obra, mas
65
infelizmente não temos tempo. Quando os sal-
tadores pousarem, o estaleiro deverá estar em
nosso poder. Esperem aqui. Vou sondar a situa-
ção.
Era uma expressão ensinada por Bell. Havia
várias, mas esta ao menos era publicável.
Os dois japoneses não se sentiram muito à
vontade ao saberem que ficariam sós naquele
ambiente desconhecido. Prometeram que em
hipótese alguma sairiam do lugar. Face a isso,
Gucky teleportou-se tranqüilamente atrás de
Borator.
O saltador estava dobrando a quina de um
depósito; passando por alguns robôs que patru-
lhavam a área, dirigiu-se à pequena casa que
lhe servia de residência, situada em local um
pouco distante. Gucky julgou preferível não pôr
mais uma vez à prova a indiferença dos robôs
diante dos coelhos. Teleportou-se diretamente
para a casa, onde aguardou o saltador na som-
bra de algumas moitas ressequidas.
Borator pensava ininterruptamente enquan-
to atravessava a área fronteira iluminada pelas
lâmpadas.
Pensava numa porção de coisas, menos nos
planos que pretendia executar. Despreocupado,
mas dominado pela impaciência, foi caminhan-
do, sem desconfiar de que seus pensamentos
66
estavam sendo captados. Passou a poucos me-
tros de Gucky, abriu a porta do bangalô e acen-
deu a luz. A luminosidade atingiu a moita em
que Gucky estava escondido. Mas Borator só
pensava numa coisa: dormir. Estava cansado.
“Ainda bem”, pensou ligeiramente, “que os
robôs não sabem o que é cansaço. Quem sabe
se não conseguiriam colocar a nave em condi-
ções de decolar no prazo de quatro dias.”
Gucky aguardou impaciente. Concentrando-
se muito, quase chegava a enxergar através dos
olhos de Borator, vendo o que este fazia: Uma
refeição ligeira, um chuveiro frio e a cama.
Os pensamentos tornaram-se cada vez mais
confusos até resvalarem para o irreal.
Borator estava dormindo.
Gucky não perdeu mais tempo. Preferiu não
usar suas faculdades especiais. Como qualquer
outra criatura, entrou pela janela aberta e des-
ceu cautelosamente para o soalho da casa. Bo-
rator roncava, fazendo um barulho terrível, que
para o rato-castor vinha a calhar. Antes de
acordar o saltador tinha que tomar algumas
precauções. Teve a impressão de ter ouvido um
ruído no corredor.
Será que Borator arranjara um robô particu-
lar de vigilância?
A porta estava apenas encostada. Gucky es-
67
gueirou-se pela penumbra. Por uma fresta de
porta a luz penetrou no corredor, refletindo-se
nas costas metálicas do robô, que se mantinha
imóvel.
Gucky segurou firmemente o radiador de im-
pulsos. O novo instrumento seria posto à pro-
va. Tomara que fosse bom. Sem mover-se,
apontou diretamente para a parte traseira do
crânio do monstro e comprimiu o botão. Dei-
xou-o nessa posição exatamente cinco segun-
dos, depois voltou a soltá-lo.
Se o negócio estivesse funcionando, o robô
devia estar desativado. Não reagiria mais e, a
qualquer momento, poderia ser reprogramado
sem o menor problema. Não poderia intervir
mais nos acontecimentos.
E quem poderia intervir senão Borator?
Antes de cuidar do saltador, Gucky precisava
ter certeza de que seu tratamento fora coroado
de êxito.
Segurando firmemente o aparelho, dirigiu-se
para o corredor e plantou-se bem à frente do
robô. Contemplou suas lentes amortecidas e
procurou descobrir qualquer sinal de vida nas
mesmas. Mas o cérebro positrônico não regis-
trou sua presença. O robô não reagiu.
Muito satisfeito, Gucky resolveu cuidar de
Borator.
68
Naquele mesmo instante notou que o salta-
dor não estava roncando mais. Reforçou sua
potência de recepção telepática a fim de captar
os pensamentos de Borator. Era isso mesmo. O
saltador acabara de acordar e estava desconfia-
do. Pretendia verificar o que estava havendo.
Pelo que Gucky pôde constatar, estava armado
com um radiador energético.
Era claro que o rato-castor poderia colocar-
se em segurança através da teleportação, mas
isso seria contrário à sua natureza e representa-
ria um perigo, pois o saltador poderia ver nisso
uma advertência e tomar medidas adequadas.
A luz acendeu-se. Borator surgiu na porta e
seus olhos piscaram ao contemplar a cena que
se oferecia diante dele. Seu robô estava imóvel
no meio do corredor, e diante do monstro esta-
va sentado o bicho no qual hoje dera um ponta-
pé. O que estava segurando nas patas? Uma
caixa? Desde quando um animal tem inteligên-
cia suficiente para penetrar numa casa com
uma caixa nas patas?
Borator formulou tantas perguntas que se
esqueceu de agir. Foi o que Gucky fez por ele.
Uma força irresistível tirou a pistola de radia-
ções da mão do saltador e fez com que ela flu-
tuasse em direção ao teto, onde se acomodou
no canto superior, apontando o cano para Bo-
69
rator, que acompanhou o fenômeno com os
olhos arregalados. Os fragmentos confusos de
idéias que Gucky conseguiu captar revelavam
que começava a duvidar da sua sanidade men-
tal. Bem, essa impressão podia ser reforçada.
Amargurado, Gucky lembrou-se do pontapé
que levara e resolveu unir o útil ao agradável.
Borator nem compreendeu o que estava acon-
tecendo quando subitamente perdeu o apoio
dos pés. Depois de executar um giro de noven-
ta graus ficou pendurado na horizontal, acima
do chão, sem conseguir mover-se. Numa fasci-
nação desesperada contemplou o brilho emitido
pelo dente roedor do “coelho” e, com o que
ainda lhe restava de raciocínio, refletiu se o
mesmo poderia ser responsável pelas coisas in-
compreensíveis que estavam acontecendo.
Devia ser assim, pois o animal saltitou bem
por baixo dele e pôs-se a rasgar metodicamente
a coberta, transformando-a em tiras, que foram
amarradas umas às outras, formando uma cor-
da. Enquanto isso a estranha caixa metálica foi
colocada no chão.
Gucky voltou para junto de Borator e come-
çou a amarrar o mesmo segundo todas as re-
gras da arte. Isso não representou nenhum pro-
blema para ele, pois o saltador continuava a flu-
tuar um metro acima do chão.
70
Enquanto isso, o robô manteve-se imóvel,
como se não tivesse nada com isso, o que de
certa forma não deixava de ser verdade.
A corda foi enrolada em torno de Borator.
Gucky teve a cautela de deixar livre um pedaço
de corda, a fim de segurar o saltador. Depois
bateu amistosamente na parte traseira do robô,
enfiou a caixa embaixo de um dos braços, a pis-
tola de radiações, que desceu lentamente, em-
baixo do outro, e saiu caminhando tranqüila-
mente.
Borator seguiu-o como um balão. Parecia
seguro apenas pela corda que Gucky tinha na
mão. Os fluxos de energia telecinética emitidos
pelo rato-castor deixaram-no duro, mas Gucky
tinha certeza de que o pavor que o saltador sen-
tia bastava para produzir esse efeito.
Tako e Tama quase morreram de susto
quando viram o pacote flutuar em sua direção.
Gucky segurava-se na corda, como se receasse
ser arrastado para longe. O dente roedor brilha-
va de contentamento.
— Este está bem guardado — chilreou satis-
feito. — Tama o vigiará. Enquanto isso Tako e
eu inutilizaremos os robôs.
Borator baixou ao solo onde permaneceu
imóvel. Mantinha os olhos fechados.
— Desmaiou. É uma pena. Ainda terei tem-
71
po de ocupar-me com ele. Não durma, Tama.
— O nervosismo não me deixaria dormir —
protestou o telecineta diante da suspeita. —
Não demorem muito.
— São noventa e nove robôs. Isso não pode
ser liquidado de um instante para outro.
Gucky segurou a mão de Tako... e os dois
desapareceram.
Tama, que não se sentia muito bem, ficou
para trás; e também o saltador, que naquele
momento não sentia coisa alguma.
O primeiro robô de combate não represen-
tou nenhum problema. Estava postado junto do
maior dos depósitos e formava o início de uma
fileira bastante espalhada. Gucky e Tako conse-
guiram aproximar-se a poucos metros sem se-
rem vistos. Ainda bem que as lentes do robô es-
tavam dirigidas para a saída do vale, pois nin-
guém pensava que pudesse haver um inimigo
no interior do mesmo.
Rhodan os avisara de que o alcance do apa-
relho ainda era limitado; sua eficiência só era
garantida num raio de trinta metros. Mas havia
uma vantagem. A atuação de cada robô era in-
dependente da dos outros, mas orientavam-se
pelos atos dos demais. Se um deles deixasse
Gucky passar sem problemas, o guarda mais
próximo concluiria que Gucky não representava
72
nenhum perigo. Face a isso sua vigilância seria
reduzida.
Foi nesse fato que Gucky baseou seus pla-
nos.
— Fique aqui — cochichou para Tako quan-
do estavam parados na sombra do depósito. —
Daqui você vê tudo. Se houver algo de impre-
visto, teleporte para junto de Tama. Providen-
cie para que o saltador seja levado para junto
de Rhodan. Depois traga Tama. Ninguém deve-
rá preocupar-se comigo. Saberei cuidar de
mim.
Tama segurou-o pela mão.
— Não vejo o que poderia acontecer. Afinal,
tenho o radiador. Com ele posso inutilizar qual-
quer...
— Você não vai fazer nada disso — inter-
rompeu-o Gucky. — Se usarmos o radiador, até
o mais estúpido dos robôs saberá o que está
acontecendo. Se nos limitarmos a teleportar na
semi-escuridão, desaparecendo sem mais aque-
la, talvez pensem que somos fantasmas. De
qualquer maneira, não saberão o que fazer. Te-
nha paciência! Conseguiremos.
Os arcos voltaicos esparsos lançavam uma
luz débil sobre o terreno cheio de obstáculos.
Era claro que as armaduras reluzentes dos robôs
eram mais fácil de ser percebida que o pêlo rui-
73
vo de Gucky, que. até parecia uma camuflagem
especialmente feita para a oportunidade.
Como já se disse, o primeiro robô não re-
presentou nenhum problema.
Com um ligeiro feixe de radiações, Gucky
transformou-o numa estátua inútil. Ficou para-
do aguardando novos impulsos, que não surgi-
ram.
A mesma coisa aconteceu com o segundo
robô, com o terceiro e com os demais que esta-
vam espalhados pela área do estaleiro, esperan-
do que acontecesse alguma coisa. Quando
aconteceu, não o perceberam mais.
Em menos de trinta minutos Gucky colocou
fora de ação cinqüenta robôs de combate. Era a
metade. Além de mais cinqüenta robôs de com-
bate havia os trinta trabalhadores que, segundo
supunha com toda razão, estariam no interior
do estaleiro, trabalhando a toda potência na
conclusão da nave.
— Vamos cuidar da fila de guardas postados
na entrada do vale. Infelizmente a distância en-
tre um e outro é de apenas cinco metros. Mas
descobri um jeito de pô-los a dormir.
Colocaram-se em posição e o rato-castor ini-
ciou seu trabalho. Vindo de trás, aproximou-se
da fila de guardas, cuidando para não ser visto.
Isso não era muito difícil, pois no local a escuri-
74
dão era muito maior que no estaleiro.
Até a metade da fileira tudo correu bem.
Mas no momento em que Gucky estava aplican-
do seu tratamento ao robô número 15, o nú-
mero 16 virou-se pesadamente e dirigiu o raio
do holofote embutido na testa para a fonte do
ruído que devia ter “ouvido”.
De um instante para outro Gucky viu-se ba-
nhado em luz.
Numa fração de segundo o robô constatou
que era o mesmo animal que vira durante o dia
e que, portanto, devia ser inofensivo. Acontecia
que segurava uma caixinha brilhante entre as
patas, e a lente de cristal da mesma estava
apontada de forma bastante suspeita para o
robô vizinho.
O animal devia ser dotado de inteligência;
logo, era um inimigo.
A reação do robô foi instantânea, mas o raio
energético fulminante só atingiu o chão resse-
quido e o capim crestado pelo sol.
Gucky materializou junto a Tako, que estava
duro de pavor.
— Tivemos azar — cochichou para o japo-
nês. — Tomara que não dêem o alarma.
Os primeiros quinze robôs da fila não se in-
teressaram pelo que estava acontecendo. Manti-
veram-se imóveis e apáticos, enquanto os de-
75
mais ligaram os holofotes e puseram-se a exa-
minar o terreno. Não encontraram nada, mas
isso não os tranqüilizou. De qualquer maneira,
nenhum deles fez menção de sair do lugar.
— Não posso aparecer mais por ali — mur-
murou Gucky, decepcionado, mas logo assobi-
ou baixinho. — Tako, afinal sou um telecineta
— era uma afirmativa chocante, e Tako reagiu
de forma adequada.
— Todo mundo sabe disso. E daí?
— Ainda não compreendeu? Posso fazer o
nosso instrumento, o tal do radiador de impul-
so, sair por aí sozinho. Os robôs são estúpidos;
limitam sua busca ao solo. Acontece que esta
caixa sabe voar. Usarei o controle remoto para
narcotizá-los. Como é que não me lembrei disso
antes!
— A necessidade estimula a criatividade —
comentou Tako.
Admirado, viu como Gucky lidava com a si-
tuação.
O próprio Gucky não fez nada. Agachado
na sombra do depósito, mantinha os olhos fitos
na caixinha brilhante, que subitamente perdeu o
peso e, deslocando-se alguns metros acima do
solo, foi-se aproximando da fileira de guardas.
Repentinamente o número 16 suspendeu as
buscas e ficou reduzido à imobilidade. O vizinho
76
logo o imitou. Não demorou cinco minutos
para que toda a fileira de robôs de combate es-
tivesse transformada num grupo de inofensivas
estátuas metálicas que já não possuíam vida
própria. Numa tranqüilidade estóica aguardari-
am o momento em que alguém lhes concedesse
uma nova programação e uma nova vida.
Nem que demorasse mil anos.
Gucky trouxe o aparelho de volta. Pediu a
Tako que não saísse do lugar e no mesmo ins-
tante desapareceu. Dali a um minuto, quando
voltou, a entrada do vale também estava livre
de guardas.
— Ainda faltam dezenove que estão no esta-
leiro. Não teremos dificuldade em liquidá-los.
Por enquanto não mexeremos nos robôs espe-
cializados. Queremos que terminem a constru-
ção da nave. Vamos embora! É o último round!
Já era meia-noite quando Gucky conseguiu
terminar o trabalho. Noventa e nove robôs ha-
viam sido reduzidos à inatividade. Apesar de to-
dos os esforços não conseguiu encontrar o últi-
mo deles. Em algum ponto da área ainda havia
uma dessas perigosas máquinas. Mas o tempo
era muito precioso para que se pudessem gas-
tar algumas horas na busca.
Os robôs de trabalho não se deixaram per-
turbar pelos acontecimentos. Sem preocupar-se
77
com nada, executavam suas tarefas, esfor-
çando-se para manter-se dentro do prazo fixado
por Borator, o diretor do projeto.
Não seria Gucky que iria impedi-los.Tama
suspirou aliviado quando Tako e Gucky volta-
ram. Durante uma hora tivera que ouvir o fala-
tório de Borator, que despertara do desmaio.
No princípio o saltador proferiu ameaças absur-
das, passando depois a formular ofertas tenta-
doras em troca da libertação. Tama preferiu
não responder, para evitar que o saltador des-
cobrisse sua identidade. Que Borator quebrasse
a cabeça para descobrir quem pusera as mãos
nele.
Quando o saltador viu Gucky, calou-se
abruptamente. Provavelmente sua consciência
o acusava por causa do pontapé.
— Podemos dar o fora — disse o rato-cas-
tor, ocultando a preocupação causada pelo
robô que ainda se mantinha em algum lugar,
aguardando a oportunidade de lutar por seus
chefes. — O resto ficará por conta de Rhodan.
Tako, você vai cuidar de Tama. Ainda bem que
não tivemos necessidade de lançar mão dele.
Eu me incumbirei de Borator. Já conhecemos
as coordenadas do salto: A sala de conferências
de Rhodan no espaçoporto.
Fizeram os preparativos.
78
De um instante para outro o lugar em que se
encontravam ficou vazio. Só a grama pisada
dava testemunho dos seres corpóreos que ali
estiveram há pouco e agora pareciam dissolvi-
dos no ar.

***

Ralv e Enzally não tiveram a menor dificul-


dade em reunir no mesmo dia mais de cinco mil
goszuls.
Todos eles se declararam dispostos a desem-
penhar o papel que lhes fora destinado. Os pre-
parativos não consumiram muito tempo. De-
pois disso os nativos “infeccionados” foram co-
locados em veículos especiais e levados ao es-
paçoporto, onde foram alojados nos extensos
edifícios da administração a fim de prepararem-
se para a entrada em cena.
Nesse meio tempo chegaram Gucky, os dois
japoneses e o prisioneiro. Com isso os planos
de Rhodan modificaram-se um pouco. Mandou
que John Marshall, Enzally e duzentos elemen-
tos “contaminados” fossem até o vale em que
ficava o estaleiro. Ali aguardariam até que os
saltadores chegassem — se é que chegariam. O
sugestor Kitai submetera-os a tratamento, incu-
tindo em sua mente o que deviam fazer. Os te-
79
lepatas John Marshall e Enzally cuidariam para
que tudo desse certo.
Faltavam seis horas para a chegada dos sal-
tadores.
O sargento Harnahan ainda não dera ne-
nhuma notícia. Foi o que o tenente Fisher
transmitiu da Stardust, quando Rhodan entrou
em contato com ele. De resto tudo estava em
ordem, e era muito interessante observar a vida
nas profundezas do mar. Havia alguns animais
muito interessantes, para os quais a pressão da
água...
Rhodan não estava interessado nas formas
de vida existentes nas camadas mais profundas
do mar e mandou que Fisher avisasse assim que
chegasse alguma mensagem de Harnahan. E in-
terrompeu o contato.
Onde estaria Harnahan?

***

Numa aceleração tremenda, totalmente


compensada pelos campos energéticos, o pe-
queno caça avançou pelo espaço. O planeta de
Goszul mergulhou com uma velocidade inacre-
ditável no negrume cósmico. Poderia se dizer
que caía no abismo. Em torno dele as inúmeras
estrelas brilhavam, enquanto as galáxias distan-
80
tes, cuja luz levara milhões de anos para chegar
ali, emitiam uma fraca luminosidade.
Mais uma vez Harn, que era o nome pelo
qual os conhecidos chamavam Harnahan, expe-
rimentou a sensação excitante da solidão abso-
luta em meio ao espaço. Nem por isso deixou
de examinar todos os detalhes que observava
ao seu redor e de absorvê-los em sua mente.
Aliás, sua missão era exatamente esta.
O planeta Goszul transformou-se numa es-
trela reluzente, iluminada em cheio por seu sol.
Harn modificou ligeiramente sua rota para colo-
car-se na sombra do planeta. Se surgisse algu-
ma emergência isso não adiantaria muito, mas
sempre concorria para tranqüilizá-lo.
Os saltadores deviam encontrar-se a várias
horas-luz de distância. Seria inútil ligar os instru-
mentos naquela hora. Devia procurar uma posi-
ção favorável, que lhe permitisse uma boa ob-
servação. Também era importante que não pu-
desse ser descoberto com muita facilidade.
Tirou do bolso o mapa especial que Rhodan
lhe havia dado. O mesmo continha uma repre-
sentação esquemática do sistema no momento
em que se encontravam.
Logo teve a atenção despertada para o quar-
to planeta. Devia possuir ao menos cinqüenta
luas pequenas, que circulavam em torno dele
81
nas órbitas mais variadas.
À primeira vista, Harn achou que esse siste-
ma de pequenas proporções não era nada sim-
pático.
Voltou a corrigir a rota e, desenvolvendo
uma velocidade próxima à da luz, correu veloz-
mente em direção ao novo objetivo.
Dali a menos de uma hora teve que desace-
lerar a nave, para não colidir com uma das pe-
quenas luas. O sistema podia ser comparado
com uma mistura de anéis de Saturno com o
círculo de asteróides. Os fragmentos de um an-
tigo planeta gêmeo, ou de uma lua maior, circu-
lavam a esmo em torno do quarto planeta. Não
formavam um círculo ordenado como os frag-
mentos da antiga lua de Saturno, mas também
não descreviam órbitas em torno do sol como o
círculo de asteróides. Mantinham-se junto ao
astro de que provinham.
Não era fácil orientar-se naquele setor do es-
paço.
Pelos seus cálculos a frota dos saltadores de-
via encontrar-se a dez horas-luz. Havia tempo
de sobra para dar uma olhada por ali, procuran-
do um bom esconderijo.
Muitos dos fragmentos tinham menos de um
quilômetro de diâmetro, enquanto outros che-
gavam a cinqüenta quilômetros. Manobrando
82
cautelosamente, conduziu o pequeno foguete
em meio à confusão dos fragmentos que se des-
locavam lentamente, gozando em cheio a satis-
fação de ser o único ser vivo naquela desolação.
Já retirara as placas protetoras de metal, de
modo que a carlinga deixava livre a visão. Reali-
zava um vôo puramente visual, sem instrumen-
tos. A pequena nave reagia prontamente à me-
nor pressão dos dedos. A cabine era apertada,
mas o excelente equipamento de condiciona-
mento de ar fazia com que a permanência nela
se tornasse suportável.
Harn tomou um tablete energético das rea-
ções de emergência e bebeu um gole de água.
O suprimento de oxigênio e de alimentos basta-
va para três meses, o que evidentemente era
uma simples precaução. Mas também proporci-
onava uma tranqüilidade que não era de despre-
zar.
Uma lua relativamente grande aproximou-se
de lado. Sua superfície irregular e entrecortada
mostrava extensas cadeias de montanhas e va-
les profundos, nos quais nunca penetrava a luz
do sol distante nem os reflexos débeis do plane-
ta. Pelos cálculos de Harn, seu diâmetro devia
ser de cerca de oitenta quilômetros; seu tama-
nho correspondia ao de um respeitável asterói-
de.
83
Se mais tarde alguém perguntasse a Harna-
han por que escolhera justamente essa lua
como ponto de observação, receberia as res-
postas mais contraditórias. Ora diria que foi por
causa da conformação favorável da superfície,
que oferecia ótimos esconderijos, e de outras
vezes afirmaria de pés juntos que um sentimen-
to inexplicável literalmente o havia arrastado
para baixo. De qualquer maneira, a escolha de
Harnahan não poderia ter sido mais feliz.
O sargento deu duas voltas em torno da lua
antes de descobrir uma cadeia de montanhas
apropriadas aos seus propósitos.
Lentamente e com a maior cautela foi diri-
gindo o caça para a superfície e pousou no
cume achatado de uma montanha relativamente
elevada, que excedia as outras por algumas cen-
tenas de metros. Era um platô que permitia a
visão para todos os lados e, em virtude da acen-
tuada curvatura da superfície daquela lua, deixa-
va livre um setor de mais de setenta por cento
do céu. E não era tudo.
No centro do pequeno platô havia uma de-
pressão. Seu tamanho era exatamente o neces-
sário para abrigar o caça espacial. Se Harn se
desse ao trabalho de colocar cuidadosamente
algumas rochas sobre o aparelho, ninguém des-
cobriria o foguete, mesmo que passasse a vinte
84
metros de altura.
Harn examinou cuidadosamente o terreno
antes que manobrasse a nave para a depressão,
mediante o campo gravitacional ativado a uma
potência mínima. Uma vez lá, atingiu a posição
de repouso. A carlinga mal e mal sobressaía da
abertura pouco profunda.
O gravímetro indicava 0,01g. Era muito
pouco. Harn teria que agir com cautela para
não executar um movimento precipitado, que
faria com que ultrapassasse a velocidade de
fuga, passando a circular em torno da lua como
se fosse um satélite dela.
Olhou para o relógio. Estava na hora de ins-
talar-se com um certo conforto.
Com um movimento rápido, fechou o capa-
cete de seu traje pressurizado. Com algum es-
forço, enfiou-se no pequeno compartimento do
solo da cabina, que servia de comporta de ar.
Não levou nenhuma arma. Para quê. Por ali
não podia haver ninguém que pudesse ameaçá-
lo. Além disso, precisava conservar as mãos li-
vres, pois não seria nada fácil empilhar a massa
ainda respeitável das rochas, leves como uma
penugem, em torno da carlinga e por cima do
corpo da nave.
Não era a primeira vez que Harn se encon-
trava no espaço, e nem mesmo a gravitação re-
85
duzida da lua o impressionava. Mas desta vez as
coisas eram diferentes. Mal saiu de baixo do fo-
guete e levantou-se, o cume da montanha co-
meçou a afundar diante dele como se o tivesse
afastado com um pontapé. Subiu quase cin-
qüenta metros e deu uma cambalhota lenta. O
céu girou em torno dele e por um instante terrí-
vel perdeu o senso de orientação e acreditou es-
tar caindo nas profundezas do Universo. Com
alguns movimentos bem calculados reduziu seu
movimento de rotação. A superfície da lua vol-
tou a situar-se bem embaixo dele e aproximou-
se lentamente. Estava caindo.
A menos de duzentos metros do foguete
pousou suavemente na encosta da montanha.
Segurou-se instintivamente numa rocha. Dali a
pouco riu. Foi um riso alegre e despreocupado.
O riso de um menino que conseguiu pregar
uma peça a alguém.
Visando o cume da montanha, empurrou-se
cautelosamente. A uns três metros do solo su-
biu encosta acima como um projétil e logo se
viu sobre o platô. Aterrizou junto ao foguete.
Não tinha mais a menor dúvida de que con-
seguiria deslocar-se ordenadamente sobre a su-
perfície do planeta. Era apenas uma questão de
hábito e adaptação.
Havia rochas em quantidade. Harn pegou-as
86
uma por uma e colocou-as sobre o foguete, de
tal forma que só a cúpula sobressaía acima de-
las. Era praticamente impossível que a mesma
fosse descoberta por alguém que se encontrasse
no espaço. Por outro lado, Harn tinha uma
oportunidade única de inspecionar todo o siste-
ma, pois o lento movimento de rotação da lua
possibilitava a visão para todos os lados. E não
haveria a menor dificuldade em decolar numa
questão de segundos, pois os blocos de pedra
não representavam nenhum acréscimo de carga
para os potentes propulsores da nave. Deslizari-
am de cima dela e cairiam na lua.
Harn olhou para o relógio. Ainda dispunha
pelo menos de cinco horas antes que chegasse
o momento crítico. Talvez fosse conveniente
entrar em contato com a Stardust para infor-
mar Fisher sobre o ponto em que resolvera ins-
talar-se. Mas não havia pressa.
Não seria preferível aproveitar a chance úni-
ca de ver um mundo estranho e desabitado,
onde andar devia ser um prazer enorme?
Por um instante pensou em pegar a pistola
de radiações que se encontrava na nave. O re-
cuo da mesma lhe permitiria corrigir a velocida-
de e a direção dos saltos. Mas desistiu do seu
intento. Mesmo que se enganasse nos seus cál-
culos, nada lhe poderia acontecer. A gravitação
87
era tão reduzida que nem mesmo a queda mais
profunda poderia produzir qualquer ferimento.
Lançou mais um olhar para o foguete bem
camuflado e, com um ligeiro impulso, disparou
obliquamente para o céu negro, formando um
astro independente, praticamente libertado de
qualquer gravitação que o prendesse a um outro
mundo. Calculara o salto de maneira a atraves-
sar o vale que separava a montanha dos cumes
mais próximos, um pouco mais baixos. Bem
embaixo passaram rochas íngremes e grotas
entrecortadas. Não seria nada agradável pousar
ali, mas um único impulso bastaria para colocá-
lo em segurança.
O ligeiro temor revelou-se infundado. O vôo
fora tão bem calculado que pousou são e salvo
no cume da montanha mais próxima.
Aqui o panorama não era muito diferente
daquele que se descortinava da primeira monta-
nha. Deu mais dois saltos, o último dos quais
fez com que ele avançasse mais de trezentos
metros em linha reta, e chegou à planície. Du-
rante dez minutos contentou-se em subir sim-
plesmente na vertical e, criando coragem, em-
purrava-se cada vez com mais força.
Pelos seus cálculos alcançou uma altura re-
corde de cento e cinqüenta metros antes que
começasse a descer lentamente. Depois procu-
88
rou quebrar o recorde mundial em salto a dis-
tância, o que não foi nada difícil. Numa parábo-
la esticada atingiu a marca dos quinhentos me-
tros, o que não era de desprezar. Quando con-
tasse a façanha aos colegas, estes se roeriam de
inveja ou o chamariam de mentiroso.
As tentativas levaram-no para junto de uma
cadeira de montanhas que chamava a atenção
pela encosta lisa, que se apresentava como uma
parede. Devia ter uns dois quilômetros de altu-
ra. Depois de um exame cuidadoso, Harn cons-
tatou algumas saliências na encosta, motivo por
que decidiu que, para coroar sua aventura, ven-
ceria este obstáculo e, uma vez atingidos os pín-
caros da encosta, realizaria um longo vôo.
A coisa não foi tão simples como ele imagi-
nara. Depois do impulso subiu quase na verti-
cal, mas não conseguiu aproximar-se do pare-
dão o suficiente para encontrar um apoio.
Quando a força do impulso cessou, foi descen-
do com a encosta quase ao alcance da mão. A
experiência nos ensina muita coisa. A segunda
tentativa fez com que ele pousasse sobre uma
estreita faixa de rocha que sobressaía do pare-
dão cem metros acima da planície. Se estivesse
nessa situação numa montanha da Terra, Harn
se agacharia e esperaria que os guardas monta-
nheses viessem resgatá-lo. Mas aqui as coisas
89
eram diferentes. Olhou para a terrível profunde-
za e não sentiu a menor tontura.
Acima dele o paredão não era tão liso como
acreditara. Dali a cinqüenta metros havia uma
saliência. Fixou-a e saltou. Seus dedos agarra-
ram-se a rocha nua e sem o menor esforço con-
seguiram levantar o corpo.
Outro salto.
Em menos de trinta minutos chegou ao
cume. O panorama ultrapassou todas as pers-
pectivas. Não havia nenhuma atmosfera que
pudesse turvar os horizontes. As pontas das
montanhas que afundavam atrás da curvatura
pareciam tão próximas que se tinha a impres-
são de poder alcançá-las num único salto. Dois
quilômetros abaixo de Harn estendia-se a gran-
de planície. Se desejasse, poderia realizar um
velho sonho da juventude, saltando para lá.
Quantas vezes não desejara isso quando, depois
de escalar uma montanha à custa de muito es-
forço e suor, via os vales e os lagos estenderem-
se lá embaixo. Agora poderia fazê-lo, se quises-
se. Do outro lado da planície viu uma monta-
nha. Ficava longe para quem quisesse andar.
Mas Harn voaria.
Harn sentiu-se tomado por uma espécie de
embriaguez. Com um grito de alegria empur-
rou-se vigorosamente e deslizou a pequena dis-
90
tância dos cumes, que eram pouco acidentados.
Mas não eram muito largos. Do outro lado a
encosta não era tão íngreme, mas em compen-
sação estava entrecortada de rochas e grotas.
Subitamente as montanhas terminaram num
paredão.
Harn aproximou-se cautelosamente e olhou
para baixo. Tinha a impressão de que a bacia
que se estendia abaixo dele ficava em nível mais
baixo que a planície da qual viera, mas talvez
fosse uma simples impressão causada pelas en-
costas quase verticais que cercavam a depressão
quase por completo.
Harn ficou uns dez minutos junto ao precipí-
cio, desfrutando a vista que na Terra lhe daria
ao menos um calafrio. Finalmente resolveu rea-
lizar o velho sonho.
Abriu os braços e tomou ligeiro impulso.
Empurrou-se na beira do abismo e como um
passarinho foi planando para o nada.
Começou a cair aos poucos. Bem atrás dele
o paredão foi deslizando para cima, enquanto
ele mesmo ia descendo numa queda sempre
mais vertical, em direção ao fundo da bacia,
que se aproximava lentamente.
Demorou muito, muito mesmo até que os
pés tocassem o chão. Fizeram-no com uma ele-
gância que teria impressionado qualquer obser-
91
vador. Harn já adquirira alguma experiência em
assumir qualquer posição que desejasse durante
a queda muito lenta.
Estava quase no meio da bacia, um pouco
mais próximo à cadeia de montanhas. O chão
era liso e plano. À direita via-se um setor da
grande planície, através da qual acabara de sal-
tar.
Mas a montanha que se encontrava diante
dele era mais interessante. Era uma bola de for-
mato regular e de pouca altura. O topo era ar-
redondado, lembrando a proa de uma nave es-
pacial. De resto a montanha era lisa, sem apre-
sentar saliência. Chegava a dar a impressão de
ter sido trabalhada artificialmente; é claro que
essa idéia não passava de rematada tolice. Nin-
guém poderia viver aqui, e ninguém se daria ao
trabalho de modificar o formato de uma monta-
nha.
Depois de um exame mais atento, viu algu-
ma coisa regular no pé da elevação piramidal.
Ficava bem no centro. Era quadrado, como se
fosse uma porta.
Seria uma porta que conduzia para o interi-
or da rocha? Harn chamou a si mesmo de idio-
ta e efetuou o primeiro salto, contendo a força
do impulso. Percorreu menos de trinta metros
antes de pousar no solo.
92
A porta continuava no mesmo lugar!
Na verdade, não era nenhuma porta. Pare-
cia antes uma chapa de metal incrustada no pa-
redão.
Mais um salto. Aquela porta maluca ainda se
encontrava a cem metros. Harn respirou pro-
fundamente, lembrou-se vagamente de que seu
suprimento de oxigênio dava para mais três ho-
ras, e saltou pela última vez.
Pousou bem na frente da chapa de metal.
Diante da chapa, três degraus penetravam
montanha adentro. Terminavam diante da por-
ta.
Na soleira da porta havia uma esfera que bri-
lhava em todas as cores do arco-íris.
— Seja bem-vindo, Harnahan — disse algu-
ma coisa no cérebro de Harn. — Esperei muito
por você.

Topthor não manteve contato pelo rádio


com as onze naves de sua frota, pois não quis
assumir qualquer risco. O alcance das ondas au-
diovisuais era bastante limitado, de maneira que
não havia perigo de que alguém pudesse ouvi-
los.
— Falta meia hora — disse Topthor, cum-
93
primentando o rosto de Rangol que surgiu na
tela. — Ali reduziremos a velocidade. Voaremos
diretamente para o espaçoporto do planeta
Goszul e pousaremos lá. O que vamos fazer de-
pois depende das circunstâncias.
— Por que não cuidamos em primeiro lugar
do estaleiro? Afinal, temos as coordenadas.
— A nave ainda não está pronta e não vai
fugir. A direção do projeto está a cargo de um
certo Borator. Dizem que é um elemento de
confiança. Bem, nas circunstâncias atuais isso
não quer dizer muita coisa.
Surgiu uma pausa prolongada, durante a
qual cada um dos interlocutores estava mergu-
lhado em seus pensamentos, que diferiam bas-
tante. A união só surgiria no momento em que
o perigo se tornasse agudo.
O planeta Goszul cresceu, enquanto a velo-
cidade das duas naves diminuía rapidamente.
Enquanto isso, conforme sabia Topthor, as
onze naves restantes circulavam em torno do
sistema, cuidando para que ninguém saísse
dele... ou penetrasse nele.
Poucos minutos depois, a linha costeira do
continente que os nativos chamavam de Terra
dos Deuses saiu da sombra do planeta, pene-
trando na zona iluminada pelos raios refulgen-
tes do sol. Um novo dia estava começando lá
94
embaixo.
Topthor fez um sinal para Rangol.
— Estamos chegando em boa hora. Não
faço a menor idéia do que os nativos poderão
ter feito com o planeta sem dono, mas será
preferível agirmos com cautela. Se a epidemia
se alastrou ainda mais teremos que lidar com
gente louca, talvez com rebeldes. Mas seja
como for, teremos que desincumbir-nos de nos-
sa tarefa.
— Será que não podemos ser contamina-
dos?
— Em hipótese alguma. Antes de mais nada
vamos desembarcar robôs, que serão trancados
nos compartimentos especiais juntamente com
o material que for resgatado. Depois serão ex-
postos ao vácuo. Acho que nem mesmo a mais
resistente das bactérias sobreviverá a isso.
— É uma boa idéia — disse Rangol. — Não
posso imaginar um desinfetante mais eficiente
que o espaço cósmico.
— Dificilmente haverá — confirmou Top-
thor. — Atenção, daqui a pouco vamos pousar.
Pelo que vejo o espaçoporto parece estar vazio.
Não há ninguém por ali.
As duas naves baixaram lentamente sobre o
campo de pouso abandonado e finalmente to-
caram o solo. Topthor teve a impressão de que
95
toda vida se extinguira no planeta de Goszul. A
grande área vazia estendeu-se diante de seus
olhos, que a examinavam atentamente. Tam-
bém nos edifícios que margeavam o campo de
pouso não parecia haver o menor resquício de
vida. Ao leste, o sol surgiu por cima das colinas,
mergulhando as últimas sombras numa luz ofus-
cante. O colosso superpesado, acomodado jun-
to aos controles da Top I, afastou as preocupa-
ções com um simples gesto.
— Faremos sair cinqüenta robôs de trabalho
e igual número de robôs de combate — disse,
dirigindo-se a Rangol. Ligou o intercomunica-
dor para entrar em contato com os postos de
comando da nave. — Talvez os goszuls se te-
nham recolhido às montanhas. É estranho que
não haja nenhum robô de vigilância.
Os oficiais de plantão responderam ao cha-
mado. Sem tirar os olhos dos edifícios distan-
tes, Topthor ordenou:
— Vamos colocar em terra cinqüenta robôs
de trabalho e igual número de máquinas de
combate destinadas à proteção dos mesmos.
Utilizem a escotilha de carga que já foi prepara-
da. Rangol, assuma o telecomando dos traba-
lhadores, Eu cuidarei do contingente de prote-
ção.
Dali a dez minutos cem robôs pesados atra-
96
vessaram a passos retumbantes as rampas e pi-
saram na superfície do planeta contaminado,
no qual não parecia existir mais nenhuma vida.
Agruparam-se em duas unidades e puseram-se
em marcha. Seus destinos eram os edifícios da
administração e os postos de controle dos robôs
estacionados no planeta.
Como um enorme toco, Topthor estava sen-
tado na poltrona disforme, acompanhando a
ação. Através do aparelho de tele direção assu-
miu o controle direto dos robôs de combate.
Não queria que uma eventual decisão ficasse a
cargo dos cérebros positrônicos.
Por enquanto não aconteceu nada. A sur-
presa de Rhodan ainda se faria esperar.
Quando o exército teleguiado havia percorri-
do aproximadamente metade do caminho, algu-
ma coisa começou a mover-se entre as árvores
raquíticas plantadas diante dos edifícios. Top-
thor logo percebeu. Eram goszuls, os nativos
desse mundo. Reconheceu-os pelo catálogo ao
qual recorrera para informar-se sobre o mundo
em que teria de ser executada a tarefa.
Uma tela amplificadora permitiu-lhe ver ain-
da mais.
Verdadeiras massas de gente saíram das
portas bem abertas e corriam em direção aos
robôs, como se quisessem derrubá-los.
97
Por dois segundos Topthor ficou perplexo,
mas depois viu alguma coisa que fez um calafrio
passar por suas costas largas. Nos rostos dos
goszuls viam-se os sinais inconfundíveis da terrí-
vel epidemia. Manchas vermelhas e azuis espa-
lhavam-se pelas bochechas, pela testa e pelo
pescoço. Alguns dos nativos estavam sem cami-
sa. Seus peitos pareciam caixas de tintas.
As mãos de Topthor tremeram quando veri-
ficou o tele controle dos robôs de combate. Era
um caráter sem escrúpulos, que não recuava di-
ante de nada, mas a idéia de usar robôs contra
um bando de selvagens desarmados causava-lhe
repugnância. Além disso, as leis de seu clã não
permitiam tal procedimento.
Mas acabou assustando-se.
Formando uma frente ampla, os robôs de
combate que os saltadores haviam deixado no
planeta avançaram atrás dos goszuls. Seus radi-
adores energéticos encontravam-se em posição
horizontal, prontos para disparar. No primeiro
instante tinha-se a impressão de que tangiam
diante de si os goszuls, que naquele instante al-
cançaram a formação de combate de Topthor,
e passaram por elas, correndo em direção às
duas naves pousadas. Dentro de mais alguns
minutos alcançaram-nas e começaram a dançar
em torno delas com uma terrível gritaria.
98
Topthor sentiu-se abalado. Então era isso
que acontecia com seres dotados de alguma in-
teligência que perdem a memória. Não sabiam
mais o que vinha a ser uma nave espacial, igno-
ravam o perigo que a mesma podia represen-
tar. Parecia um bando de cegos que corria para
a desgraça.
A mão esquerda, que já se encontrava sobre
os botões dos radiadores da nave, recuou com
um ligeiro tremor. Não. Topthor não atiraria
contra um grupo de seres indefesos. Estava dis-
posto a enfrentar qualquer inimigo de igual para
igual e, sempre que pudesse, o destruiria, mas
atacar seres indefesos, doentes... isso não!
Rhodan suspirou aliviado no seu esconderi-
jo. Fosse quem fosse esse Topthor, naquele ins-
tante fizera com que o juízo a seu respeito fosse
favorável. Era um inimigo, e Rhodan tinha con-
tas a ajustar com ele, mas não era nenhum
monstro que se compraz em derramar o sangue
de seres inocentes.
Topthor não sabia que acabara de salvar sua
vida.
Voltou a dedicar sua atenção aos robôs e
perguntou de si para si o que teria acontecido
com as unidades deixadas no planeta.
Será que a moléstia os afetara? Até parecia
que era assim, pois não havia explicação para
99
seu estranho comportamento. Topthor não po-
deria saber que todos os robôs existentes no
planeta de Goszul haviam sido reprogramados,
a fim de transformar-se em servos fiéis de Perry
Rhodan.
Aliás, nem sabia quem era seu inimigo. Su-
punha que Rhodan se encontrasse na Terra,
um planeta situado a 1.012 anos-luz, e um belo
dia pretendia ajustar contas com ele. Pelo que
pensava, aqui só estava enfrentando o flagelo
do esquecimento. Acontece que os próprios ro-
bôs passaram a atacá-lo.
E o fizeram com uma precisão espantosa.
A primeira salva energética foi tão surpreen-
dente que Topthor não reagiu com a necessária
rapidez. Antes que pudesse ordenar ao grupo
de cinqüenta robôs que ativasse os campos pro-
tetores energéticos, metade do mesmo já se
derretera sob o fogo contínuo dos atacantes.
Obedecendo ao seu comando, os que restavam
defenderam-se desesperadamente, mas nada
puderam fazer face à superioridade do inimigo.
Um campo energético atrás do outro sucumbiu
sob os disparos dos radiadores, e com eles os
respectivos robôs.
Dentro de cinco minutos a companhia foi
destruída. Nada aconteceu aos robôs de traba-
lho.
100
Havia nisso uma contradição que deu o que
pensar a Topthor.
Se é que as unidades de robôs contaminadas
do planeta de Goszul haviam perdido o juízo
positrônico, se não sabiam mais o que estavam
fazendo, como se explicava que destruíam ape-
nas os robôs de combate? Por que não ataca-
vam os trabalhadores? Ainda deviam possuir
uma memória.
Ou estariam sendo dirigidos por alguém?
Mas por quem...?
Topthor percebeu que pela primeira vez em
sua longa vida algo como o medo começou a
apossar-se dele. Era um medo terrível e indefi-
nido, para o qual não encontrava explicação.
Transmitiu aos robôs de trabalho o comando
de retornar à nave.
Os cinqüenta colossos obedeceram. Fizeram
meia-volta e puseram-se em marcha de volta
para a nave. Mas não foram longe. Os robôs de
combate foram mais rápidos. Bloquearam sua
retirada e com seus corpos robustos empurra-
ram-nos para a periferia do campo de pouso.
Topthor teve que assistir inerme ao aprisio-
namento dos seus trabalhadores. Nunca esque-
ceria o espetáculo.
Os olhos muito arregalados de Rangol con-
templaram-no da tela. A cor morena de sua
101
pele cedera lugar a um cinza-sujo. A ponta da
barba tremia.
— O que é isso, Topthor? Como podia
acontecer...?
— Não sei! — respondeu Topthor laconica-
mente e fitou os goszuls, que continuavam no
seu berreiro, dançando em torno das naves e
sacudindo os braços, como se estivessem cum-
primentando um grupo de deuses vindo do céu.
— Não sei mesmo. Os robôs também devem
ter enlouquecido. Como estarão as coisas no
estaleiro?
— Será que vale a pena resgatar máquinas
loucas? — perguntou Rangol.
Topthor não respondeu. Por algum tempo
continuou a contemplar a multidão maluca que
se comprimia entre as naves, lançou um olhar
para os edifícios, onde os últimos robôs esta-
vam desaparecendo entre as árvores, e ligou o
telecomunicador.
— Preparar ambas as naves para a decola-
gem. Devemos salvar pelo menos o cruzador
que se encontra nas montanhas. Em hipótese
alguma deve cair em mãos estranhas. Oportu-
namente serão informados sobre as respectivas
coordenadas. Decolaremos dentro de trinta se-
gundos com o antígravo, para que os nativos
não sejam machucados.
102
Tão silenciosamente como tinham vindo, as
duas naves voltaram a subir.
Lá embaixo, no campo de pouso, os cinco
mil goszuls berravam que nem uns malucos e
agitavam os braços. Parecia um bando de lou-
cos, mas naquele instante os homens de Ralv
não estavam representando.
Estavam satisfeitos de verdade.
A repentina retirada deixou Rhodan surpre-
so.
— Será que a força de elite dos saltadores
foge tão depressa? — disse admirado, procu-
rando compreender o procedimento do inimi-
go. — Devem ter um medo terrível da doença,
principalmente porque acreditam que a mesma
também ataca os robôs.
— Seria uma tolice rematada afirmar que
um cérebro positrônico... — principiou Bell em
tom professoral, mas logo se calou. Olhou para
Rhodan com uma expressão não muito inteli-
gente. — Não venha me dizer que você pensa
que os saltadores acreditam numa coisa dessas.
— Parece que sim, não acha?
Bell mergulhou em reflexões. Enquanto isso
Rhodan pôs-se a mexer no seu minúsculo apa-
relho de rádio.
— Alô, Marshall. Conte a qualquer momen-
to com o aparecimento dos saltadores. Prova-
103
velmente serão apenas duas naves. Pelo que de-
duzimos das mensagens que conseguimos cap-
tar, trata-se de nosso velho amigo Topthor e de
um certo Rangol. Estão poupando os nativos,
mas provavelmente usarão todos os recursos
contra os robôs para apoderar-se da nave. Para
eles vale mais que todos os robôs do planeta de
Goszul.
— Estamos preparados — respondeu o tele-
pata. — Os robôs de combate aqui estaciona-
dos foram reprogramados de acordo com suas
indicações. Agora são nossos. Também Bora-
tor, que neste meio tempo chegou aqui, desem-
penha seu papel com toda arte.
— Que papel que nada — respondeu Rho-
dan. — Kitai influenciou o saltador, fazendo
dele um excelente aliado. Borator acredita que
age por sua livre e espontânea vontade. Top-
thor ficará admirado quando se encontrar com
ele. Mais uma coisa, Marshall. Todo mundo
tem que fazer de conta que está trabalhando
sob as ordens dos saltadores. Perderam a me-
mória, mas estão concluindo a construção da
nave. A falta de lógica dos acontecimentos aca-
bará por confundir Topthor.
— Tomara.
— Não tenha a menor dúvida — asseverou
Rhodan e desligou. Refletiu por um instante e
104
chamou a Stardust.
— Alô, Fisher. Tudo em ordem? Como vão
seus animais submarinos?
— Ficam nadando em torno das escotilhas,
fazendo como se quisessem entrar. Infelizmente
não temos permissão para dar um passeio no
fundo do mar, mas...
— A proibição continua de pé. Já há alguma
notícia de Harnahan?
— Por enquanto não deu sinal de vida.
— Não compreendo. Será que a camada de
água é muito espessa e as ondas, intencional-
mente expedidas a baixa potência, não podem
penetrar nela? Deve haver alguma explicação
para o silêncio de nosso caça espacial.
— Harnahan é um homem de confiança e...
— Avise-me assim que der alguma notícia —
interrompeu Rhodan e suspendeu o contato.
O dispositivo automático ligaria seu aparelho
assim que Fisher chamasse.
Rhodan dirigiu-se ao major Deringhouse.
— Que tipo de pessoa é o sargento Harna-
han, Deringhouse?
O major arregalou os olhos.
— O que quer dizer com isso?
— Bem, pode-se confiar nele? É um homem
frio e objetivo, um sonhador, um espírito teóri-
co, um realista? De que forma agiria se depen-
105
desse exclusivamente de si mesmo?
Deringhouse estreitou os olhos.
— Não sei como responder à sua pergunta.
Só sei dizer que o sargento Harnahan é um ex-
celente piloto e um homem de confiança. Por
que iria adotar no espaço uma atitude diferente
daquela que costuma ter quando se encontra
conosco?
— Perguntei por perguntar, major. Esqueça.
Deringhouse sabia perfeitamente que Rho-
dan não fazia perguntas inúteis. De repente
também achou que não era nenhum absurdo
estabelecer uma ligação entre o caráter do pilo-
to e a notícia há tanto tempo esperada. As idéi-
as mais loucas podiam vir à mente de um ho-
mem que se encontrasse a sós num minúsculo
foguete perdido na imensidão do espaço.
— É possível que Harnahan seja um espírito
romântico — disse, rompendo o silêncio.
Rhodan mal levantou os olhos ao dar um
aceno quase imperceptível da cabeça.
— Era o que eu imaginava. Bem, veremos
como Harnahan explicará seu silêncio prolon-
gado.
Bell preferiu guardar sua opinião para si.

***

106
No primeiro instante, Harn pensou que aca-
bara de perder o juízo e estava vendo e ouvindo
alucinações.
Quanto ao ouvido, era bem mais fácil acredi-
tar numa ilusão dos sentidos. Com a vista a coi-
sa era diferente. A esfera reluzente continuou
no mesmo lugar. Permaneceu diante dos pés de
Harnahan, imóvel e como que em expectativa.
Tinha aproximadamente o dobro do tamanho
de uma bola de futebol.
Parecia ser de metal, mas se alguém contas-
se a Harn que era de gesso, estaria inclinado a
acreditar nisso. De repente teve a impressão de
que alguma coisa estava acontecendo ao seu
cérebro. Sentiu que não era nada de mal, e não
havia nenhum tom de ameaça naquela pesquisa
que procurou misturar o consciente e o sub-
consciente. Subitamente voltou a soar a voz si-
lenciosa, que já acreditara ter ouvido:
— Não, Harnahan, seu estado é perfeita-
mente normal. O que você vê e sente é pura re-
alidade. Comecei a sentir seus pensamentos
quando você se aproximava deste mundo. Não
quis assustá-lo; por isso resolvi esperar que você
me descobrisse.
Harn teve a impressão de que a esfera esta-
va modificando os reflexos coloridos de sua su-
perfície polida. Aos poucos foi se tornando pre-
107
ta como o espaço cósmico. As estrelas distantes
refletiam-se nela como nas águas profundas de
um lago. Ao fitá-la com mais atenção, Harn
percebeu que as estrelas aumentavam de tama-
nho e se aproximavam.
— Não se espante, Harnahan, mas sou ca-
paz de oferecer a imagem ótica dos meus pen-
samentos. O que deseja ver? A nave em que
veio? O planeta do qual decolou? Ah, não é seu
mundo, pelo que vejo.
Harn viu que as estrelas se deslocavam na
superfície negra e, perplexo, contemplou a cú-
pula reluzente de seu caça. Parecia que se en-
contrava vinte metros acima do cume da mon-
tanha.
— Que coisa incrível! — exclamou. —
Como é possível? Que técnica é capaz...?
— A natureza encerra tesouros muito mais
ricos que a tecnologia.
A frase gravou-se em seu cérebro com a for-
ça do fogo. O ser estranho devia tê-la formula-
do em pensamento. Aos poucos Harn começou
a compreender que a esfera que tinha diante de
si não era uma obra-prima da tecnologia de al-
guma raça desconhecida. Era um membro da
raça.
A esfera vivia.
— É claro que vivo, Harnahan, mas estou
108
só. Não existe outro ser da minha raça, a não
ser que o acaso o tenha criado, como fez comi-
go. Todo início de vida tem sua origem no aca-
so divino, Harnahan. Pela sua escala de tempo
tenho cerca de cinco milhões de anos.
“Enlouqueci; não há dúvida!”, pensou Har-
nahan desesperado. Mas a esfera continuava no
mesmo lugar. Deitada aos seus pés, voltou a
exibir na superfície fortemente abaulada a pro-
fusão das estrelas. E a esfera também pensava,
e pensava de tal forma que ele entendia. Era in-
teligente e possuía capacidades telepáticas. Bas-
tava pensar para que ela o compreendesse.
— Sim, compreendo e sei qual é o motivo
da sua presença. São os mercadores galácticos.
Ajudarei você e Perry Rhodan.
Harn ficou estupefato.
— O que sabe a respeito de Rhodan? —
perguntou em voz alta no interior de seu capa-
cete. De repente teve a idéia louca de que a pe-
quena esfera que via diante de si poderia ser
uma nave espacial em miniatura, na qual se
abrigassem inteligências incrivelmente peque-
nas.
— Sei quase tudo a respeito de Rhodan.
Mas não se preocupe. Comigo qualquer saber
está em boas mãos. Mais uma coisa: sou capaz
de viver em qualquer lugar, mesmo no vácuo.
109
Minha forma esférica é a mais favorável das for-
mas. A ausência de pressão e a pressão elevada
são por ela compensadas com a maior facilida-
de.
Naquele mundo sem atmosfera Harnahan
defrontou-se com o maior dos milagres jamais
visto por um olho humano. Acima dele fulgura-
va a luz das estrelas, trazendo à sua consciência
a solidão infinita em que se encontrava. Estava
só e teria que lidar com o impossível.
— Sua raça é muito poderosa, Harnahan,
mas mesmo a mais poderosa das raças tem
suas fraquezas. Até eu. Há sete séculos estou
nesta lua e armazeno energias para prosseguir
na minha viagem pelo Universo. A radiação das
estrelas é fraca. Basta para manter-me vivo e
guardar uma parcela insignificante. Terei que
aguardar mais um milênio para prosseguir na
minha viagem.
— Não compreendo, aliás, já não estou
compreendendo mais nada — gemeu Harn,
amargurado pela incapacidade de compreender
o incompreensível. — Quem... o que é você?
Uma súbita alegria tomou conta do cérebro
de Harnahan. Teve a impressão de que a esfera
estava rindo. Mas respondeu a pergunta.
— Você está aqui para esperar as naves dos
saltadores, que pretendem atacar um mundo in-
110
defeso. Os terranos querem ajudar os seres in-
defesos. Estou disposto a não lhes negar meu
apoio, desde que receba um pagamento ade-
quado.
— Um pagamento? — disse Harn quase
sem fôlego.
— Isso mesmo. Um pagamento em energia.
Vocês têm bastante. Eu os ajudo na luta contra
os saltadores, e em compensação vocês me dão
energia. Ao menos o suficiente para que possa
chegar mais perto do sol. Uma vez lá, poderei
cuidar de mim.
“Rhodan!”, pensou Harn. “Não posso fazer
nenhuma concessão. Se ele recusar. Mas que
motivos teria para recusar?”
— Eu os ajudarei — interrompeu-o a esfera.
— Como?
— Isso depende da situação. O mínimo que
posso fazer é comunicar a posição das naves a
qualquer instante. Naturalmente terei que limi-
tar-me às mensagens óticas. Minhas reservas de
energia não são suficientes para uma interven-
ção pessoal. Vá buscar sua nave!
— Minha nave? Para quê? Está camuflada,
para que os saltadores não a descubram.
— Você pode entrar em contato com Rho-
dan sem recorrer à nave?
Harn sacudiu a cabeça.
111
— O que acontecerá se eu for descoberto
por uma nave dos saltadores?
— Minhas reservas energéticas bastam para
lidar com uma situação desse tipo — prometeu
o ser estranho. — Vá buscar sua nave.
Harn olhou para o relógio. Já era tarde. Seu
passeio sobre os morros e os vales havia consu-
mido muito tempo. E agora a longa conversa
com... com quem mesmo? Suspirou.
— Não estarei de volta antes de uma hora, e
ali poderemos esperar a qualquer momento que
alguém descubra esta lua por acaso e comece a
inspecionar a mesma.
— Pois então esse alguém se arrependerá
por acaso — foi a resposta. — Vá logo, senão
ficará mesmo tarde. Depois responderei a todas
as perguntas formuladas por você.
Por mais alguns segundos Harnahan, mer-
gulhado em pensamentos, fitou a esfera que
emitia um brilho negro. Depois virou-se sem di-
zer uma palavra e com um forte impulso afas-
tou-se do solo.
Com três saltos transportou-se à planície.

***

Foi Gucky em pessoa que levou de volta ao


vale do estaleiro o saltador Borator, que antes
112
fora submetido a rigoroso interrogatório tele-
pático e ao tratamento do sugestor Kitai. Bora-
tor recebera suas diretivas. Algumas manchas
coloridas no rosto indicavam que a epidemia do
esquecimento já estendia seus tentáculos em di-
reção ao seu cérebro.
Ao menos era o que Topthor e seus compa-
nheiros deviam acreditar.
Procurou John Marshall e transmitiu-lhe as
últimas instruções de Perry Rhodan. O pequeno
entrevero no espaçoporto provara que os salta-
dores temiam a epidemia mais do que se ousara
esperar. Além de tudo estavam acreditando que
a epidemia do esquecimento atacava não ape-
nas os cérebros humanos, mas também os posi-
trônicos.
Era principalmente esse fato que devia ter
representado um choque terrível para Topthor.
Gucky fez questão de salientar esse ponto.
— Devemos evitar o derramamento de san-
gue — disse, contemplando o vale, que continu-
ava bloqueado por uma fileira de robôs de com-
bate. Por enquanto a tarefa dos duzentos gos-
zuls consistia em ajudar os robôs de trabalho na
construção da nave, a fim de reduzir o prazo de
conclusão. Fizeram o papel de nativos contami-
nados, que ainda não tinham enlouquecido. —
Basta meter um susto tremendo nesse Topthor.
113
Rhodan acredita que nesse caso não voltará a
aparecer tão depressa.
— Dificilmente poderemos evitar o derrama-
mento de sangue se ele resolver pousar aqui —
objetou Marshall. Conhecia a mentalidade ines-
crupulosa dos saltadores, e acreditava que numa
força de choque especial como a dos superpe-
sados a falta de escrúpulos seria ainda maior. —
Será que não poderemos defender-nos? Combi-
namos que Topthor e seus homens seriam re-
chaçados com todos os meios de que dispomos.
Será que os planos foram modificados?
Gucky sorriu e acenou com a cabeça. O
dente roedor ficou à vista, brilhando no seu es-
plendor solitário. Esse dente também era res-
ponsável pelo ligeiro chiado com que Gucky
pronunciava as palavras, embora dominasse
perfeitamente várias línguas.
— Sim, houve algumas modificações. Top-
thor foi mais decente do que prevíamos. Não
mandou atirar contra os goszuls indefesos. Nos-
so chefe lhe dá um elevado crédito por isso.
Por isso nossa divisa é mais do que antes a se-
guinte: apenas vamos fazer blefe com Topthor.
Temos que nos cuidar para que não obtenha
qualquer indicação sobre nossa identidade. De
qualquer maneira não posso aparecer diante
desse sujeito, pois é bem possível que Etztak lhe
114
tenha contado alguma coisa a meu respeito.
Afinal, vocês são gente bastante...
Sobre a mesa havia uma caixinha, e de re-
pente ela começou a zumbir.
Marshall lançou um olhar de excusas para
Gucky e acionou a tecla de recepção. Uma voz
na qual o rato-castor identificou a de Borator, o
homem que se encontrava sob domínio hipnóti-
co, disse em tom exaltado:
— Ataque por um robô de combate... junto
à saída do vale. Quatro goszuls foram mortos.
Os outros conseguiram fugir.
Por um segundo Marshall ficou estarrecido.
Depois venceu o susto.
— Um robô de combate? Não é possível!
Todos os robôs foram reprogramados e jamais
atacarão um goszul. Quais foram as providên-
cias que tomou?
Borator estava convencido de ser o verda-
deiro diretor do projeto. Por ordem de vários
clãs estava construindo a primeira nave de uma
nova série. Dentro de quatro dias, ou talvez
três, concluiria o trabalho e entregaria a obra.
— Dei ordem às forças de bloqueio que des-
truam o robô descontrolado assim que ele apa-
reça. Como se explica essa falha da positrônica
infalível?
— Não tenho a menor idéia, Borator. Verifi-
115
carei pessoalmente o que houve. Cuide do seu
trabalho.
Gucky respirou profundamente.
— A positrônica infalível... Pois é justamen-
te isso. Os robôs são infalíveis. É totalmente im-
possível que um robô reprogramado por nós se
descontrole e passe a atacar nossos homens.
Logo, trata-se de um robô que ainda não foi re-
programado. É aquele que não encontrei quan-
do estive aqui pela primeira vez. Ainda bem que
não demorou em dar sinal de sua presença.
Logo estarei de volta, John...
— Um instante! — de um salto Marshall
pôs-se de pé, mas o lugar à sua frente estava
vazio. Gucky acabara de teleportar-se para ou-
tro lugar.
John Marshall começou a adivinhar onde fi-
caria esse lugar.
Colocou o radiador de impulsos portátil no
cinto do macacão e saiu correndo. Passando
pela primeira fileira de guardas, entrou no vale
e fez votos de não chegar tarde. Procurou em
vão estabelecer contato telepático com Gucky.
O rato-castor devia estar tão ocupado que não
tinha tempo para concentrar-se em mensagens
telepáticas.

***
116
Quando se materializou mais ou menos no
ponto em que o vale descrevia uma curva,
Gucky viu um grupo de uma dezena de goszuls
que corria em sua direção. Gesticulavam com
os braços e soltavam gritos de pavor.
Gucky esforçou-se em vão para descobrir o
que deixara os nativos tão desatinados. Não viu
nenhum robô descontrolado.
Antes que os goszuls chegassem ao lugar em
que se encontrava, deu um salto de algumas
centenas de metros e se materializou atrás de-
les. O guarda que informara Borator sobre a
ocorrência devia encontrar-se na saída do vale.
Era o primeiro robô que Gucky desativara na-
quele dia.
Mas por enquanto o rato-castor encontrou
uma coisa diferente.
Os cadáveres de quatro goszuls apontavam-
lhe o caminho.
Era por aqui que devia estar escondido o
robô não reprogramado, e que por isso mesmo
continuava a agir obstinadamente segundo as
ordens dos saltadores. Só assim se explicava
que escapara à operação geral de limpeza.
A ausência de um mecanismo de tele dire-
ção fizera com que agisse independentemente.
No seu esconderijo pôde observar que o vale e
117
o estaleiro foram ocupados pelos goszuls e por
alguns desconhecidos. Também testemunhara a
reprogramação de seus colegas.
A rigor devia atacar o estaleiro e o contin-
gente de robôs transformados em inimigos, mas
até mesmo uma máquina pensante tem um cer-
to instinto de autoconservação, desde que seu
construtor o julgue conveniente.
RK-176 sabia que não teria a menor chance
contra os noventa e nove colegas. Talvez con-
seguisse destruir dez ou vinte deles num ataque
de surpresa, mas depois disso havia uma certe-
za absoluta de que sucumbiria sob a superiorida-
de. Era necessário que levasse para o mundo
exterior a notícia do que estava acontecendo
por aqui. Os governantes precisavam conhecer
os fatos que se passavam no vale. Na saída do
vale havia um único guarda. Se conseguisse eli-
minar o mesmo, o caminho para a cidade esta-
ria livre.
Pôs-se a caminho e foi ter diretamente com
os vinte goszuls. Os nativos haviam passado na-
quele instante pelo guarda postado na entrada
do vale, que já conheciam. Já não estranhavam
os robôs. RK-176 agiu com uma rapidez enor-
me e com uma irreflexão fora do comum quan-
do abriu fogo contra os nativos inocentes e ma-
tou quatro deles. Só teve consciência de seu
118
erro quando o resto do grupo fugiu aos gritos.
Era tarde para voltar atrás.
O guarda robotizado da entrada do vale tes-
temunhara o fato.
RK-176 deixou os goszuls em paz e dirigiu-
se para a passagem estreita entre as rochas,
onde a figura solitária do guarda surgia nitida-
mente na sombra de algumas moitas. Dali a
pouco a caça ao mesmo teria início.
Se tivesse condições para isso, teria dado
um sorriso amargo. Mas era um robô e não sa-
bia sorrir. Em compensação a consciência não
lhe doía.
Sabia muito bem o que devia fazer.
Seus braços de combate estavam na hori-
zontal, em posição de tiro. Manteve os olhos
rígidos fitos no novo inimigo e marchou em di-
reção ao guarda.
O receptor embutido em seu corpo permitiu
a RK-176 constatar que seu aparecimento já
não era nenhum segredo.
Gucky chegou com alguns minutos de atra-
so.
Encontrou os destroços derretidos de um
robô e junto aos mesmos traços de moitas e ca-
pim queimado. Até mesmo na rocha lisa nota-
vam-se os vestígios dos disparos energéticos.
Mas do robô revoltado não se via nada. Devia
119
ter uma vantagem considerável.
Gucky lançou um olhar de lástima para o
montão de destroços e teleportou para o cume
da montanha, rochas que se elevavam quinhen-
tos metros acima da planície. Dali se enxergava
quase até o mar, se o tempo estivesse bem lim-
po.
Hoje não estava. Mas a visibilidade bastava.
A uns quatro ou cinco quilômetros dali mo-
via-se um pontinho negro, que vez ou outra,
quando refletia os raios solares, emitia um bri-
lho prateado. Deslocava-se rápida e firmemente
na direção sudoeste.
Era ele!
Gucky sorriu cheio de expectativa. Seu ins-
tinto lúdico triunfou sobre as boas maneiras. Fi-
nalmente tinha uma oportunidade de dar uma
demonstração de sua arte. Era uma pena que
não havia nenhum espectador.
Bem, isso poderia ser mudado...
RK-176 marchava numa velocidade conside-
rável, mas evidentemente sua velocidade não
bastava para escapar de um teleportador do
tipo de Gucky. Nem desconfiava de que estava
sendo perseguido e acreditava que sua tentativa
de fuga fora bem sucedida.
Seu cérebro positrônico ainda procurava por
uma explicação lógica dos acontecimentos que
120
se desenrolaram no estaleiro. Não a encontrou.
Gucky materializou dez metros atrás do robô
e concentrou-se inteiramente na sua capacidade
telecinética. Os fluxos invisíveis de seu espírito
atingiram o monstro metálico e imobilizaram-
no.
RK-176 parou imediatamente. Parecia que
de um instante para outro estava condenado à
imobilidade por uma falha de seu mecanismo.
Mas o caso não era este. Pelo contrário: o dis-
positivo positrônico passou a desenvolver uma
atividade febril, mas não encontrava resposta às
perguntas que formulava.
— Você matou quatro pessoas — disse
Gucky em intercosmo, cuidando para que o
robô não pudesse executar nenhum movimen-
to. — Por isso será transformado em sucata.
Tem alguma coisa a dizer antes disso?
RK-176 respondeu com a voz metálica:
— Agi de acordo com as ordens que recebi.
Nenhum goszul pode permanecer nas proximi-
dades do estaleiro. Quem é você?
— Acredito que você gostaria de saber.
Bem, eu lhe permito uma meia-volta. Mas se
quiser atirar contra mim, avise antes. Pois nesse
caso o assunto será liquidado logo.
Era claro que o robô tentaria matá-lo. Gucky
tinha certeza absoluta disso. O robô não pode-
121
ria agir de outra forma.
E ele o fez assim que viu o rato-castor.
As duas descargas energéticas passaram lon-
ge de Gucky.
— Você acaba de proferir sua própria sen-
tença de morte — chiou Gucky, fitando as len-
tes do monstro. — Agora você vai aprender a
voar...
RK-176 não estava regulado para o vôo.
Seu cérebro registrou o fato inexplicável de que
a gravidade do planeta diminuiu de uma hora
para outra e que aparentemente ele mesmo já
não pesava nada. E não era só isso: ficara mais
leve que o ar.
RK-176 subiu como um balão.
Gucky teleportou-se de volta para a entrada
do vale e a partir dali dirigiu sua vítima com
muita habilidade e alegria. O que aumentava o
efeito do espetáculo era o fato de que RK-176
disparava ininterruptamente os dois canhões de
radiações, procurando conseguir um impacto
casual.
Marshall apareceu correndo na curva da en-
trada do vale e viu que seu esforço seria recom-
pensado. O espetáculo que presenciou bem que
valia uma corrida.
A menos de trinta metros Gucky escava sen-
tado numa moita de capim, lembrando um ae-
122
romodelista que, com a alegria do construtor,
faz seu artefato teleguiado descrever curvas no
céu. No fundo, Gucky não era outra coisa.
O robô subiu a mais de quinhentos metros e
parou. Não passava de uma mancha pequenina
que se destacava contra o céu e sem parar es-
pelia raios energéticos refulgentes. Ainda bem
que Gucky segurava sua vítima de tal maneira
que se tinha a impressão de que o robô preten-
dia derrubar alguma estrela invisível.
Subitamente o ponto começou a cair e au-
mentou rapidamente. Gucky virou-se e deu um
sorriso amável para Marshall.
— Daqui a pouco você vai ouvir um estouro
— profetizou. — Esse negócio vai explodir.
Nunca experimentei de uma altura dessas.
— Por que vai destruí-lo? — perguntou
John, que sabia perfeitamente que o rato-castor
notara sua vinda por via telepática e por isso
não estava surpreso. — Qualquer robô pode ser
reprogramado...
— Este não — disse Gucky, sacudindo a ca-
beça e acompanhando a queda cada vez mais
rápida do monstro metálico, que continuava a
disparar loucamente. — Seria muito complica-
do. Você tem a mania de estragar qualquer ale-
gria que eu tenha...
— Mas...
123
John calou-se. Também ficou fascinado pelo
espetáculo. E sabia que Gucky não era tão fácil
de convencer. Devia ter uma raiva tremenda da-
quele robô que descia numa velocidade enorme
e atingiu o solo a quinhentos metros do lugar
em que se encontravam.
No primeiro instante teve-se a impressão de
que nada aconteceria. O peso de RK-176 fez
com que o mesmo penetrasse profundamente
no solo rochoso. O fenômeno foi reforçado
pelo fato de que os radiadores energéticos que
continuavam a disparar haviam derretido a ro-
cha, motivo por que o robô caiu praticamente
numa poça de lava incandescente.
Subitamente sentiram-se ofuscados por um
raio. Por alguns segundos uma nuvem branca
em forma de cogumelo cobriu o lugar, até que
ela se dissipasse com o vento.
Gucky suspirou fortemente.
— Foi uma bela derrubada!
Indignado, John Marshall aproximou se e
colocou a mão sobre o ombro do rato-castor.
Para isso teve que abaixar-se.
— Nunca pensei que você se alegrasse tanto
com a destruição.
— Às vezes gosto.
De repente Gucky olhou para o céu azul e
estreitou os suaves olhos castanhos. Sem mudar
124
de tom, prosseguiu:
— Segure minha mão. Vou saltar para o es-
taleiro. É preferível que venha comigo.
John sabia que Gucky não teria nenhuma di-
ficuldade em levá-lo consigo. Mas antes que isso
acontecesse, também olhou para o céu.

***

A pouca altura a nave cilíndrica dos saltado-


res, que tinha mais de duzentos metros de com-
primento, passou por cima das montanhas que
até então a haviam ocultado.
Topthor fez um sinal para Rangol.
— Descerei sozinho. No vale não há bastan-
te espaço, por isso pousarei no platô. A comis-
são de investigação descerá para o vale numa
nave auxiliar. O senhor ficará de prontidão
numa altitude de dez quilômetros. Mantenha-se
em contato com o posto de rádio.
— Pretende sair da nave, Topthor?
— Acompanharei minha gente. Observe os
acontecimentos. Mas não ataque nem ponha
em risco minha pessoa e a dos meus homens.
Ao menor sinal de contaminação nossos planos
serão modificados.
Os comandos dos superpesados foram trans-
mitidos pelo intercomunicador às diversas se-
125
ções da nave, que desceu lentamente e em po-
sição horizontal sobre o platô, separado do es-
taleiro por uma encosta íngreme de quinhentos
metros.
Mal a nave pousou, suas escotilhas abriram-
se. Um robô de combate massudo saiu e, sus-
tentado pelo campo antigravitacional, flutuou
cinqüenta centímetros acima do chão rochoso.
Homens que envergavam trajes protetores saí-
ram apressadamente da grande nave e entra-
ram numa nave muito menor. Os enormes vul-
tos quadráticos dos superpesados pareciam me-
donhos e ameaçadores. Assemelhavam se a to-
cos gigantescos, mas seus movimentos eram de
uma tremenda rapidez e agilidade.
As escotilhas da nave-mãe fecharam-se. Pre-
parado para a luta, mantinha-se na expectativa
para entrar em ação assim que Topthor o orde-
nasse. O rádio embutido no capacete manteve-
o em contato permanente com o comandante
substituto.
Foi o último a entrar na cabina apertada da
nave de guerra.
Sem provocar o menor ruído subiu dois me-
tros, deslocou-se em direção ao abismo e foi
descendo lentamente. Topthor não se preocu-
pava com o que fazia o piloto ou os vinte super-
pesados que o acompanhavam, todos armados
126
até os dentes. Só se interessou pela tela.
Então era lá embaixo que ficava o estaleiro
em que estava sendo construída aquela nave
misteriosa que, segundo diziam seus construto-
res, iria conquistar o Universo. Topthor não fa-
zia a menor idéia sobre as vantagens do artefa-
to cuja construção estava sendo concluída, mas
começou a desconfiar de que as ligeiras indica-
ções que ouvira vez por outra não eram conver-
sa fiada.
Desceram lentamente.
Topthor reconheceu perfeitamente a primei-
ra fileira de guardas robotizados, que luzia fren-
te para a saída do vale. Era tal qual Etztak lhe
contara. Ao que parecia, tudo estava em or-
dem. Não havia nenhuma epidemia, nenhum
autômato rebelde, nenhum goszul que enlou-
quecera...
Topthor lembrou-se de que no estaleiro não
trabalhava nenhum nativo. Borator comandava
apenas robôs. Pelo menos até hoje. Ninguém
sabia se amanhã ainda seria assim.
Topthor ainda acreditava estar manipulando
todos os fios, sem desconfiar de que não passa-
va de uma marionete presa a um fio puxado
por outra pessoa.
Por Perry Rhodan.
Sentados no seu esconderijo, John Marshall,
127
Kitai, o sugestor e Gucky acompanhavam com
um interesse enorme o pouso dos superpesa-
dos.
O trabalho no estaleiro prosseguiu como se
nada tivesse acontecido. Borator estava sentado
no seu escritório, transmitindo instruções. A de-
colagem experimental estava prevista para de-
pois de amanhã. Os robôs trabalhavam a toda
velocidade. Ainda bem que contavam com o
apoio dos goszuls. Lá fora a sombra de uma
nave de guerra dos saltadores foi descendo para
o vale. Mal tocou o solo, os vultos enormes dos
superpesados saíram das escotilhas. Suas mãos
enormes seguravam os radiadores de impulsos,
prontos para disparar. Os trajes espaciais esta-
vam fechados, mas o aparelho de comunicação
externo permitia comunicação direta.
Borator levantou a cabeça, fez de conta que
já os esperava e levantou-se. Estava sendo diri-
gido pela vontade de Kitai quando saiu do escri-
tório e se aproximou dos superpesados. Não
demonstrou a menor surpresa.
— Então, Topthor, vocês vieram para levar
a nave? Foi Etztak que os mandou?
Quando viu o rosto salpicado do técnico,
Topthor foi baixando o radiador. Seu traje pro-
tetor o resguardaria da contaminação; não ti-
nha a menor dúvida. Mas nem por isso livrou-se
128
da sensação desagradável de se ver diante de
um inimigo desconhecido e imprevisível.
— O senhor pegou a doença, Borator? —
perguntou, recuando cinqüenta centímetros.
Pelo canto do olho viu um grupo de goszuls
acompanhado de alguns robôs sair do estaleiro
escavado na rocha e, sem demonstrar o menor
interesse pelos superpesados, dirigir-se para o
pavilhão mais próximo. — O que é que esses
nativos estão fazendo por aqui? Também estão
contaminados?
Borator confirmou com um simples aceno
de cabeça, como se apenas se tratasse de uma
indisposição passageira.
— Estamos todos contaminados, mas ainda
não perdemos a memória. A deterioração do
cérebro demora algumas semanas. Até lá a
nave estará pronta. Quanto aos goszuls, não
tive outra alternativa senão recorrer a eles. Os
robôs não dariam conta do trabalho até que...
bem, até que eu perca a memória. — Borator
apontou para um robô de guerra que se encon-
trava nas proximidades. — Não sou só eu, Top-
thor. Os robôs também estão perdendo a me-
mória. Depois que isso acontecer, não podere-
mos contar mais com eles.
Topthor recuou mais um passo. Lançou um
olhar de advertência aos homens que tinham
129
vindo com ele.
— Quando é que a nave deverá ficar pronta,
Borator?
— Dentro de uma semana aproximadamen-
te. Vocês poderão levá-la.
— E quando... quero dizer, quanto tempo
demorará até que o senhor perca a memória?
— Talvez seja amanhã. Não sei. Seria con-
veniente que vocês se preparassem para pros-
seguir nos trabalhos.
— Prosseguir nos trabalhos? Quer que seja-
mos contaminados?
— Isso já aconteceu — disse Borator em
tom indiferente.
O superpesado empalideceu atrás do visor
de seu capacete.
— Estamos usando trajes protetores!
Borator esboçou um sorriso frio.
— Também passei a usar quando houve o
primeiro caso aqui no vale. Veja se adiantou al-
guma coisa. O caso é que vocês deverão sacrifi-
car seu bem-estar pessoal e fazer tudo para sal-
var esta nave. Em hipótese alguma ela deve cair
em mãos estranhas.
— Um bacilo nunca pode atravessar um tra-
je protetor — disse Topthor, voltando ao tema
que mais o interessava. — E antes de voltarmos
ao interior de nossa grande nave, seremos ex-
130
postos ao vácuo. Não há bacilo que resista a
isso.
— Vocês poderão expor seus trajes ao vá-
cuo, mas não seus corpos — respondeu Bora-
tor em tom indiferente. — Não se iludam. Vo-
cês estão perdidos da mesma forma que eu e
todos os robôs e goszuls deste mundo. A única
coisa que podem fazer é levar a nave ao espaço
e conduzi-la ao ponto de transição com as esco-
tilhas abertas. Depois terão que deixá-la entre-
gue a sua própria sorte. Os saltadores saberão
encontrá-la. É possível que, quando isso aconte-
cer, a nave já não esteja contaminada. Quanto
a vocês, Topthor, é bem possível que daqui a
uma semana nem se lembrem de seu nome...
— Borator! — a voz de Topthor saiu com
uma potência digna de sua estatura. — Não vim
para ouvir essas tolices. Neste vale todo mundo
está trabalhando. Ainda não vi nenhum louco.
— Já temos alguns — respondeu Borator
em tom tranqüilo e apontou o queixo cabeludo
para a direita, onde um robô de combate estava
saindo de trás de um dos depósitos. — Vocês
não acreditarão, mas a coisa se manifesta em
primeiro lugar nos cérebros positrônicos. Ali
está... olhem e escutem...
Contrariado, Topthor olhou na direção do
pesado robô, que se aproximava lentamente,
131
passando a poucos metros deles. O monstro
metálico não se interessou pelos superpesados
que acabavam de pousar. Nem chegou a olhá-
los.
Enquanto passava por eles, cantarolava bai-
xinho. Era uma melodia monótona e despreten-
siosa. Em compensação as palavras eram pro-
feridas em intercosmo e podiam ser facilmente
entendidas:

Quem sou eu...?


... Não passo da busca e do martírio,
Da sede e da saudade
Dever e angústia sem saída
Mas no fim tudo serão saudades e sede
Num lago azul, quero despejar-me...

A boca de Topthor abriu-se. Até parecia que


a barba estava pesando demais, puxando o
queixo para baixo. Começou a tremer como
vara verde. Com grande dificuldade conseguiu
murmurar:
— O que... é isso...?
— É uma poesia — esclareceu Borator. —
Foi o próprio RK-064 que a compôs. A melo-
dia também é dele.
Os vinte superpesados que se encontravam
atrás de Topthor recuaram passo a passo até
132
atingir a escotilha da nave de guerra. Ao menor
sinal desapareceriam com a velocidade de um
relâmpago. Acontece que Topthor estava cho-
cado, mas não derrotado. Seus dedos crispa-
ram-se em torno da arma.
— Por que não destroem RK-064?
John Marshall sorriu no seu esconderijo,
quando transmitiu a pergunta de Topthor a Ki-
tai. Kitai sugeriu a resposta a Borator, que foi
quase instantânea.
— Por que iria destruí-lo? Se o fizesse, teria
que destruir todos os preciosos robôs que estão
por aqui. O fim chegará de uma forma ou de
outra, e enquanto não nos atacarem não vejo
motivo para destruí-los. Aliás, o robô de traba-
lho RA-007 está compondo um drama.
Gucky quase escorregou para baixo da mesa
de tanto que riu ao ouvir esta resposta. Esbafo-
rido, chiou:
— Vocês não conseguirão expulsar Topthor
com uma tolice desse calibre. Não seria preferí-
vel que eu o transformasse numa nave espacial?
Minhas energias bastam para transportá-lo à lua
mais próxima. Quando estiver lá, seu pessoal
poderá buscá-lo.
— Não se atreva! — cochichou John, furio-
so. — Topthor é um realista e um espírito frio.
Logo suspeitaria de que se defrontava com um
133
golpe telecinético e, portanto, com Perry Rho-
dan. Para ele um robô poeta é muito pior, pois
não o compreende. Continue, Kitai. Acho que
daqui a pouco Topthor estará nas devidas con-
dições.
Evidentemente a cultura dos saltadores co-
nhecia o drama, mas até então Topthor não se
ocupara com essas coisas, que não trazem ne-
nhum lucro. Perplexo, contemplou o rosto
manchado de seu interlocutor e subitamente
sentiu um medo terrível. Tremeu por todo o
corpo e mal pôde sustentar-se sobre as pernas
maciças.
— Quais são os efeitos da doença sobre o
homem?
Antes que Borator tivesse tempo de respon-
der, um goszul saiu de trás de um prédio. Até
parecia que vinha de encomenda. Aproximou-
se do grupo dos superpesados, que em condi-
ções normais lhe teria metido tamanho susto
que teria desmaiado assim que visse aqueles
monstros. Mas naquela hora nem parecia estra-
nhar a presença.
— Veja — conseguiu murmurar Borator an-
tes que o goszul se interpusesse entre ele e
Topthor. Era um nativo de cabelos escuros.
Trazia o peito nu, coberto de manchas azuis e
vermelhas. Também o rosto estava todo colori-
134
do. A doença já devia ter consumido seu cére-
bro, pois nem percebeu o perigo que os super-
pesados representavam.
Tirou o radiador de impulsos das mãos trê-
mulas de Topthor e, com um sorriso nos lábios,
pôs-se a brincar com o mesmo. Antes que al-
guém pudesse impedi-lo, o raio energético
verde-pálido subiu obliquamente e gaseificou
um pedaço do paredão de rocha.
Espantado, o goszul sacudiu a cabeça e de-
volveu a arma a Topthor, antes que este tivesse
tempo de realizar sua intenção de pôr-se em se-
gurança com um salto para trás.
Foi isso que mais o assustou.
Rindo para si mesmo, o nativo continuou na
sua caminhada, passando entre as fileiras inde-
cisas dos superpesados sem mostrar o menor
sinal de medo.
Borator acenou a cabeça para Topthor.
— Você viu, Topthor. Quem pega a doença
esquece tudo. Não sabe mais que existe o peri-
go. Confia no pior inimigo, e assim fica à mer-
cê do mesmo. Se a raça dos saltadores perder a
memória e não souber mais quem são seus ini-
migos, estará perdida.
As mãos debilitadas de Topthor seguraram a
arma.
— A gente também se esquece dos seus ini-
135
migos?
— Até esquecemos nosso nome — confir-
mou Borator. De repente prosseguiu num tom
muito objetivo: — Permite que lhe mostre a
nave? Dentro de uma semana terão que levá-la
ao espaço. Tomara que não adoeçam antes dis-
so. Decerto dispõem de gente que possa substi-
tuí-los se for necessário. O último grupo que
restar colocará a nave no rumo.
Topthor perguntou:
— O que acontecerá conosco?
Borator fez um gesto indefinido
— Isso depende de vocês, Topthor. Dentro
de uma semana o mais tardar seu espírito esta-
rá morto, mesmo que o corpo continue vivo. O
que importa? O importante é que nossa tarefa
seja cumprida, e que a nave seja entregue aos
clãs...
— Não aceitei a tarefa de pegar uma doença
e me arruinar — exclamou Topthor. Seu corpo
tremia. — Esses patifes me mandaram para a
perdição e esperam que com isso poderão eco-
nomizar minha recompensa. É claro! Eu me es-
quecerei que tenho alguma coisa a cobrar. Mas
não contaram com Topthor quando fizeram
suas contas. Eles mesmos que venham buscar a
nave. Transmita-lhes o recado, Borator, se é
que até lá ainda se lembrará dele — dirigiu-se a
136
seus homens. — Vamos para a nave! Desisti-
mos da execução da tarefa. — Voltando a diri-
gir-se a Borator, perguntou: — Acredita que es-
tamos contaminados?
O rosto do técnico parecia desolado.
— Receio que isso seja um fato consumado,
Topthor.
O superpesado berrou uma praga e seguiu
seus homens para o interior da cabina relativa-
mente pequena da nave grosseira. A escotilha
fechou-se. Dali a alguns segundos a nave subiu
na vertical e logo desapareceu acima do pare-
dão.
Gucky saiu de baixo da mesa.
— E daí? — chilreou decepcionado. — Foi
só isso? Nenhum fogo de artifício? Nenhuma
demonstração telecinética? Nada?
John suspirou aliviado e bateu no ombro de
Kitai.
— Foi um serviço bem feito, meu caro. Bo-
rator foi um excelente ator. É pena que ele não
saiba disso.
— Então? — perguntou Gucky, subindo à
mesa. — Eu lhe fiz uma pergunta, John.
O telepata acariciou o pêlo espesso do rato-
castor.
— Fique satisfeito porque conseguimos liqui-
dar o assunto por essa forma. Muitas vezes os
137
meios pacíficos produzem um efeito mais dura-
douro que um lindo fogo de artifício com muita
morte e destruição. Só os vivos não esquecem.
Gucky procurou absorver a idéia.
Enquanto isso a sombra gigantesca da nave
cilíndrica desprendeu-se do platô e, acelerando
loucamente, disparou para o céu azul.
Topthor convocou as doze naves restantes.
Só onze responderam.

Quando Harnahan decolou com sua peque-


na nave, pensou que estivesse sonhando. Esta-
ria doente, sofrendo os sintomas tantas vezes
relatados da febre espacial? Era possível que a
embriaguez da solidão o tivesse atingido, e que
sua experiência não passasse de um sonho ins-
pirado no desejo, que se formara no seu sub-
consciente.
Mas não; ali estava a voz misteriosa. A quilô-
metros de distância penetrava em seu cérebro.
— Deixe as dúvidas para depois, Harnahan.
Agora você não tem tempo para isso. Uma
nave dos saltadores dirige-se para esta lua. Se
não quiser morrer, apresse-se. Pouse no meu
vale.
Harn apressou-se. Dali a menos de um mi-
138
nuto desceu para o vale em que havia encontra-
do a esfera. Continuava no mesmo lugar, mas a
imagem de sua superfície estava alterada.
— Fique na nave, Harnahan. Você verá
tudo. Não tenha medo. Nada lhe acontecerá. Já
os saltadores...
A esfera encontrava-se a dez metros de
Harn. Viu perfeitamente o que se passava em
sua superfície. Viu uma nave com o formato ci-
líndrico dos veículos espaciais dos saltadores.
Percebeu que passava junto à superfície de uma
lua — seria a sua? — como se estivesse procu-
rando alguma coisa. Teve a impressão de que a
esfera estava maior e continuava a inchar. Tam-
bém parecia emitir um brilho mais saciado.
Saciado...?
A suspeita tremenda que Harn passou a
conceber naquele instante ainda se confirmaria.
No momento não teve tempo para refletir so-
bre problemas desse tipo: Tirou os olhos da es-
fera e fitou a planície.
A nave dos saltadores vinha diretamente
para o lugar em que Harn se encontrava. Le-
vantou ligeiramente a popa para ultrapassar a
barreira das montanhas. Ao mesmo tempo ace-
lerou repentinamente. A qualquer momento te-
ria que surgir do outro lado da cumeeira.
E surgiu.
139
Ansioso, Harn aguardou o desenrolar dos
acontecimentos. Se o comandante não estives-
se dormindo, já devia ter visto o pequeno caça
espacial. Num movimento automático Harn co-
locou a mão sobre o acelerador manual. Num
golpe poderia fazer o foguete disparar para o
alto...
A nave dos saltadores continuou na mesma
rota inclinada em direção ao céu estrelado.
Harn teve a impressão de que a velocidade es-
tava sendo reduzida aos poucos.
— Ultrapassou a velocidade de fuga da lua e
não descerá mais abaixo da mesma. Faço votos
de que os outros saltadores a encontrem, senão
seus ocupantes estão perdidos.
Perplexo, Harn fitou a enorme nave que di-
minuía rapidamente até desaparecer atrás das
rochas íngremes. Seus olhos treinados percebe-
ram que não dispunha de propulsão, sendo
mantida em movimento apenas pela força da
sua massa. Assim que saísse do campo de gra-
vitação da lua, viajaria em queda pela imensidão
do espaço, até que penetrasse no campo de
gravitação de uma lua maior, de um planeta ou
mesmo de um sol.
— Você destruiu os propulsores? — pergun-
tou, olhando para a esfera, cujo diâmetro já
chegava a meio metro. — Os homens que se
140
encontram nessa nave estão perdidos.
— Não destruí os propulsores — foi a res-
posta formulada em pensamento. — Apenas
subtraí toda a energia de que dispõe a nave. Só
deixei intactas as baterias de emergência, para
que possam dispor da eletricidade necessária
para o condicionamento de ar. De resto a nave
não dispõe de nenhuma energia. Não tem pro-
pulsão, nem armas, nem hipertransmissores,
coisa alguma. Se quisesse poderia subtrair sua
energia. Acontece que estou interessado no tal
do Perry Rhodan. Quando sair do sistema, en-
viar-lhe-ei uma mensagem. Um dia aguardo sua
visita. Tanto faz que seja em dez anos ou em
cinqüenta. Não tenho pressa. O que não quero
é esperar mil anos. Aliás, a esta altura talvez se-
riam apenas oitocentos.
Harn ligou o minicomunicador, cuja ajusta-
gem hipersincronizadas permitia a comunicação
instantânea até uma distância de duas semanas-
luz. Enquanto o aparelho realizava a regulagem
automática, disse:
— Informarei Rhodan sobre nosso encontro.
Por enquanto permita que o informe sobre a
minha posição.
— Informe-o sobre sua posição, mas é bom
que saiba que a guerra no segundo planeta do
sistema já está decidida. Os saltadores estão fu-
141
gindo. Não têm mais o menor interesse em
cumprir sua tarefa. Você pode voltar. De qual-
quer maneira, logo receberá ordens para isso.
O tenente Fisher respondeu de bordo da
Stardust:
— Ora essa, Harnahan! Por que não deu
notícias? Pode voltar. Não precisamos mais de
indicações de posição. Os saltadores deram o
fora. Onde o senhor se meteu?
— Numa das luas do quarto planeta. Posso
falar com Rhodan?
— Infelizmente não é possível. Eu lhe direi
que dentro em breve o senhor estará de volta.
Apresse-se.
— Mas...
— Não tenho mais tempo, sargento. A Star-
dust está emergindo. Chame mais tarde. Fim.
O alto-falante emudeceu. Harn desligou e
abriu a comporta de ar. Dali a dois minutos en-
contrava-se diante da esfera. Fitou a superfície
negra e viu uma porção de naves cilíndricas que
entravam em formação. Eram onze naves, que
se agrupavam em círculos em torno de outra,
maior. À esquerda do grupo via-se um planeta.
— É o último planeta do sistema — esclare-
ceram os impulsos mentais. — Eles se reúnem
para sair daqui o mais depressa possível. Mas
captaram o pedido de socorro da nave desapa-
142
recida e vão procurá-la.
Harn inclinou-se como se quisesse tocar a
esfera, mas não teve coragem.
— Que ser é você? — exclamou. — O que
sabe fazer?
— Eu sou eu, Harn. É a única coisa que pos-
so dizer. Quer ver o que sei fazer? Olhe, que eu
lhe mostro...
Na superfície da esfera surgiu um mar agita-
do... um torvelinho... e subitamente Harn viu a
Stardust emergir das profundezas e deslizar len-
tamente sobre as cabeças brancas das ondas. A
nave logo chegou à costa e pousou no espaço-
porto. Os três cruzadores já haviam saído dos
hangares subterrâneos. Em todos os lados viam-
se os tripulantes reunidos com os nativos, que
ainda traziam as manchas coloridas no rosto,
mas de resto pareciam absolutamente normais.
— Você é um receptor de televisão vivo —
cochichou Harn emocionado e acrescentou: —
Qual é o seu alcance?
A esfera não respondeu, mas o quadro de
sua superfície alterou-se.
Harn viu que abandonava o sistema. Era ao
menos o que parecia.revelar a imagem. Com
uma velocidade milhões de vezes superior à da
luz disparou para o infinito até que, perplexo,
contemplou o giro da galáxia. Devia ter percor-
143
rido dezenas de milhares de anos-luz...
Retornou em velocidade vertiginosa e viu-se
de novo na superfície da lua. Sabia que não saí-
ra do lugar, mas...
— Enxergo qualquer ponto da galáxia e pos-
so transmitir a visão a outros. Infelizmente só
posso comunicar-me a uma distância de duzen-
tos anos-luz. Às vezes consigo chegar mais lon-
ge. Como vê, minha capacidade é limitada.
Subitamente Harn teve a impressão de que
estava fazendo um frio terrível no seu traje
aquecido. Começou a compreender o poder
desse ser esférico, que parecia ser feito de ener-
gia compacta e se alimentava com a luz das es-
trelas. E com a energia dos conversores das na-
ves espaciais. E compreendeu que nunca se de-
frontara com um ser mais benevolente.
— Volte para junto de seus amigos, Harna-
han. Informe Rhodan a meu respeito, mas
mantenha silêncio diante dos outros. Devo des-
cansar e poupar minhas forças, pois as estrelas
estão muito distantes. Passe bem, Harnahan.
Ainda nos encontraremos.
Harn lançou mais um olhar para a esfera.
Depois virou-se abruptamente e voltou ao fo-
guete. Passou pela comporta e fechou a escoti-
lha.
Quando ligou o campo antigravitacional e
144
começou a subir, seu olhar pousou sobre o bri-
lho negro da esfera deitada diante da porta me-
tálica que conduzia para o interior da monta-
nha. Sacudiu a cabeça. Um dia descobririam
tudo que havia atrás dessa porta... se é que re-
almente era uma porta.
Quando o vale mergulhou no espaço e o céu
estrelado o acolheu, voltou a ficar a sós em sua
cabina apertada.

O gigante saiu lentamente de sua prisão sub-


terrânea. Os campos antigravitacionais manti-
nham-no suspenso alguns metros acima do
solo. De ambos os lados os goszuls e os robôs
cuidavam para que a superfície reluzente não
entrasse em contato com a rocha. Borator cor-
ria nervosamente de um lado para outro. Falava
com as mãos, com os pés e às vezes com a
boca, pois essa nave era a coroação de sua
vida, embora não compreendesse tudo que os
técnicos haviam executado através dos robôs
especializados. Com Rhodan aconteceu a mes-
ma coisa. Sabia que só o estudo meticuloso das
plantas que Borator lhe entregara permitiria
uma idéia sobre os segredos encerrados naquela
nave, segredos que teriam que ser desvendados.
145
Uma coisa era certa: a propulsão funcionava
segundo os princípios arcônidas e as modifica-
ções introduzidas na mesma eram insignifican-
tes. Por isso não seria difícil pilotar a nave re-
cém-construída. As experiências teriam que fi-
car para depois, quando houvesse mais tempo.
Rhodan tinha pressa de sair do planeta de Gos-
zul.
Um único homem encontrava-se no interior
do gigantesco cilindro, cujo comprimento —
eram nada menos que 780 metros — penetrou
no vale.
Era Reginald Bell.
Apesar de uma resistência feroz, Rhodan o
nomeara comandante do cruzador recém-con-
quistado. Bell poderia gostar de tudo, menos
brincar com forças desconhecidas. Mas quando
salientaram que era a única pessoa à qual a
nave poderia ser confiada, acabou concordan-
do.
O diâmetro da nave era de duzentos metros.
Faltava montar parte das instalações internas,
mas Rhodan até chegava a alegrar-se com isso.
Não sabia quem poderia acomodar-se nas pol-
tronas dos superpesados. Lá em Terrânia os
engenheiros e os técnicos cuidariam desses de-
talhes. Bell desligou os campos antigravitacio-
nais e respirou aliviado quando o ligeiro sola-
146
vanco lhe revelou que voltara a ter chão firme
sob os pés. Saiu da sala de comando e dali a
poucos minutos estava junto à escotilha de saí-
da, pela qual se poderia fazer passar um elefan-
te. Estava radiante.
— Borator, você acaba de construir um belo
navio. Meus parabéns!
— Está satisfeito, senhor? — disse o saltador
muito feliz. Continuava submetido à influência
de Kitai e acreditava firmemente que era dono
das suas decisões. Dali a poucos dias ficaria
muito admirado quando numa ilha solitária vin-
te saltadores investissem contra ele com uma
série de perguntas. Tal qual eles, não encontra-
ria nenhuma resposta.
— É uma bela nave — confirmou Rhodan,
que se mantinha mais afastado, conversando
com Ralv. — Nós a levaremos.
— Vocês voltarão? — perguntou Ralv, que
já fora promovido ao posto de chefe de gover-
no do mundo libertado. — Vocês promete-
ram...
— Instalaremos um entreposto comercial
neste planeta — tranqüilizou-o Rhodan. —
Meus encarregados chegarão dentro de poucas
semanas. O equipamento de guerra dos salta-
dores bastará para protegê-los. Com ele pode-
rão rechaçar qualquer inimigo que procure es-
147
cravizar seu mundo. Acho que pelos próximos
cinqüenta anos dos saltadores não os incomo-
darão. É quanto dura a quarentena.
Bell aproximou-se.
— Está bem, vou pilotar isso — disse com
um sorriso. — Quando decolaremos?
— Dentro de três horas. Eu lhe recomenda-
ria que levasse “isso” ao espaçoporto. Aprovei-
te a oportunidade para fazer um pequeno vôo
experimental. Gucky irá com você, para que
possa trazê-lo de volta, se for necessário. Afi-
nal, você não é nenhum teleportador.
— Gucky! — resmungou Bell, contrariado.
— Sempre tem que ser o Gucky. Bem, que ve-
nha comigo, a não ser que esteja com medo.
O rato-castor já se encontrava na escotilha
tamanho elefante.
— Eu, medo? — gritou a voz estridente por
cima da figura assustada de Bell. — Nunca tive
medo. O único medo que posso ter é de que
você possa criar juízo, seu Bell das cerdas.
Pelo rosto de Bell tinha-se a impressão de
que ele estava prestes a chorar. Sua voz quase
chegava a ser suplicante quando se dirigiu a
Rhodan:
— O que vou fazer com ele, Perry?
— Leve-o até a Terra. Vocês voarão juntos.
Talvez assim tenham oportunidade de adaptar-
148
se um ao outro. Dizem que uma viagem a sós
pelo Universo é muito saudável para esse tipo
de problema...
Bell afastou-se a passos pesados. Seus cabe-
los ruivos, que no curso da aventura estavam
encostados à cabeça, encontravam-se em posi-
ção quase vertical.
Sem olhar para trás, desapareceu no interior
da nave em companhia de Gucky. A escotilha
fechou-se com um ruído surdo.
John Marshall, que se encontrava por ali,
aproximou-se.
— Hum! — resmungou. — Não sei se isso
vai dar certo. Afinal, Gucky também é telepata.
Rhodan sorriu seguro de si.
— Vez por outra lembrará Bell desse fato —
disse em tom irônico enquanto contemplava a
pesada nave que, leve como uma pluma, levan-
tou-se do solo e subiu na vertical. Quando che-
gou à beira do platô, acelerou vertiginosamente
e disparou para o céu azul. Dentro de poucos
segundos desapareceu.
Borator seguiu-a com um olhar pensativo.
A frota de Rhodan cruzou a órbita do quarto
planeta e, deslocando-se à velocidade da luz,
aproximou-se do ponto de transição previamen-
te calculado. Os cruzadores Terra e Centauro
flanqueavam a Stardust, enquanto o Solar Sys-
149
tem e a mais recente aquisição de Bell, o cruza-
dor apresado dos saltadores seguiam-na a uma
distância de 0,00001 segundos-luz.
Além de Rhodan só havia uma pessoa na
sala de comando da Stardust. Era Harnahan.
À esquerda deles o quarto planeta passou ra-
pidamente. As numerosas luas do mesmo eram
minúsculos pontos de luz, e ninguém saberia di-
zer em qual delas Harnahan pousara.
Rhodan não deixou perceber a menor dúvi-
da quando perguntou:
— Essa esfera, qual é mesmo seu alcance te-
lepático?
— Duzentos anos-luz, é o que ela diz.
— É estranho — disse Rhodan de si para si.
— Sempre se acreditava que a telepatia não co-
nhece limitações no que diz respeito ao seu al-
cance. Ao que parece, nem sempre é assim.
Também Marshall não pode estabelecer contato
daqui para a Terra. De qualquer maneira, du-
zentos anos-luz...
Subitamente sentiu. Parecia uma mão suave
que se colocava sobre sua cabeça e exercia uma
pressão delicada. Uma coisa estranha surgiu em
sua mente, expelindo suas próprias idéias. Com
ligeiro olhar certificou-se de que o piloto do
caça estava passando pela mesma experiên-
cia.O estranho ser esférico estava estabelecen-
150
do contato.
— Já está acreditando, Perry Rhodan? Ele
lhe disse que estou esperando você? Não, antes
de mais nada, volte à Terra; é mais importante.
Mas não se esqueça de mim, Perry Rhodan,
mesmo que seja imortal. Eu o espero. Se neces-
sário, esperarei por uma pequena eternidade.
— Quem é você? — perguntou Rhodan.
Harnahan “sentiu” o sorriso alegre, tal qual
Rhodan.
— Vocês humanos são uma raça curiosa, e
a curiosidade é a mola propulsora de seu pro-
gresso civilizatório. Acredito que será a curiosi-
dade que um dia o levará para junto de mim.
Até lá. Passe bem, Perry Rhodan. Muito obriga-
do.
Rhodan ficou perplexo.
— Obrigado? Por quê?
Mais uma vez sentiu a risada mental.
— Pela energia que consegui tirar de sua
nave. Não tirei demais. Não será suficiente para
um vôo mais longo. Acredito que ainda me ou-
virá melhor. Muitas felicidades para você... e
para o planeta Terra.
O quarto planeta ficou para trás, e com ele
as luas do mesmo.
— Como poderei chamá-lo? — perguntou
Rhodan.
151
Não houve resposta. A estranha inteligência
manteve-se em silêncio. Rhodan voltou a ten-
tar, mas o contato não surgiu. Olhou para Har-
nahan.
— Quero sua opinião, sargento. Quero sua
opinião com toda a sinceridade. Que ser é este?
Vive realmente? É apenas energia, ou será tam-
bém espírito? Afinal, o senhor o viu? Poderá re-
presentar um perigo?
Harnahan olhou para a amplidão semeada
de estrelas. Um traço suave brincou em torno
de seus lábios estreitos. Havia um brilho úmido
em seus olhos, quando sacudiu lentamente a ca-
beça.
— Não posso dar resposta a nenhuma das
suas perguntas. Apenas tenho resposta para
uma delas. A última. Jamais este ser represen-
tará um perigo para nós. Sim, eu o vi; e tam-
bém o senti. Mas não senti nada de mal e não
tive medo. Não, este ser esférico não represen-
ta nenhum perigo para nós. Pelo contrário.
Perry Rhodan também olhou a profusão de
estrelas. Lá adiante a algumas horas-luz de dis-
tância, ficava o ponto de transição Num golpe
o cosmos morreria e desapareceria, para res-
surgir poucos segundos depois, a mais de mil
anos-luz daquele ponto.
Virou-se e fitou o rosto de Harnahan.
152
— Muito bem — disse em tom suave e com
uma vibração estranha na voz habituada a co-
mandar. — Sinto a mesma coisa que o senhor.
Se o ser esférico não representa nenhum peri-
go, talvez possa nos ajudar um dia. E precisare-
mos de auxílio, quando...
Calou-se.
Mas Harnahan, que afinal era apenas um
humano, ficou curioso.
— Quando precisaremos de auxílio?
Rhodan respondeu com um sorriso condes-
cendente:
— Receio que precisemos quando os salta-
dores perceberem que não perderam a memó-
ria. E isso poderá acontecer dentro de algumas
semanas — o sorriso desapareceu tão depressa
como surgira. — Vamos cuidar de Bell. Dentro
de algumas horas...
O rosto de Bell surgiu na tela.
— O que houve, Perry?
— Uma transição experimental de três mil
anos-luz. Está preparado?
Bell confirmou com um gesto de resignação.
O dente roedor sorridente de Gucky surgiu
atrás dele.
— Está bem. Mas tenho certeza de que tudo
funciona perfeitamente e...
— Está pronto? — interrompeu-o Rhodan.
153
— Pronto — Bell olhou por cima do ombro.
— Gostaria de saber quem não está sempre
pronto na situação em que me encontro. Ai!
Bell começou a subir e desapareceu da tela.
Gucky ocupou seu lugar. Parecia o rato Jerry
ampliado. O dente roedor brilhava de alegria.
— É sempre ele que começa — disse Gucky
em tom ingênuo. — Quer que o teleporte para
o inferno?
Rhodan exibiu um rosto severo, mas em sua
voz notava-se um riso contido.
— Não faça isso, Gucky. Ainda precisare-
mos de Bell por algum tempo. Além disso, o di-
abo não gostaria nem um pouco da concorrên-
cia que iria receber. Nunca ouviu falar em con-
corrência desleal?
— Não — respondeu o rato-castor, sacudin-
do as longas orelhas. — Nunca ouvi falar. O
que é isso?
— É o ato praticado por um telecineta que
deixa um homem normal morrer de fome junto
ao teto — trovejou a voz de Bell de algum lu-
gar. — Desça-me imediatamente, senão vou...
vou... está bem, Gucky, não vou fazer coisa al-
guma. Vamos fazer as pazes?
As pernas de Bell surgiram na tela, e dali a
pouco estava novamente acomodado em sua
poltrona diante do painel da nave que já perten-
154
cera aos saltadores. De boa vontade, Gucky ce-
deu-lhe o lugar.
— Que tal uma transição experimental? —
perguntou Rhodan.
Bell estava radiante.
— Terei o maior prazer, cavalheiro. Não há
nada que eu gostaria mais de fazer. Quanto
tempo deverei esperar?
Em algum lugar, a três mil anos-luz de dis-
tância, um rato-castor chiou admirado e sacudiu
a cabeça.
Rhodan acenou com a cabeça como alguém
que compreende tudo.
— Está bem. Vamos embora!
O sargento Harnahan olhou para a tela de
popa e procurou um planeta que mergulhava
no espaço. Era um planeta que possuía nume-
rosas luas de pequenas dimensões. Em seus
olhos brilhava o anseio eterno pelo conheci-
mento.
Afinal, era mesmo um espírito romântico e
sonhador...

***

155
O PLANETA LOUCO encenou a loucura
para libertar-se dos seres que o oprimiam.
O estratagema da doença aparentemente
incurável, usado para repelir os mercadores
galácticos, foi coroado de um êxito fulminan-
te. Finalmente Perry Rhodan pode preparar
o AVANÇO PARA ÁRCON, há tanto plane-
jado...
AVANÇO PARA ÁRCON é o título do
próximo volume da série Perry Rhodan.

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ÐØØM SCANS
PROJETO FUTURÂMICA ESPACIAL
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