Filosofia Do Direito Parte I
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HUMANÍSTICA
Filosofia do Direito – Parte I
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Filosofia do Direito – Parte I
Renato Coelho Borelli
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Filosofia do Direito – Parte I
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Olá!
Como você está?
Na aula de hoje iniciaremos nossos estudos sobre Filosofia do Direito, tema que será divi-
dido em duas partes. Assim, nesta e na próxima aula iremos examinar os principais pontos que
podem ser cobrados na sua prova, e seremos orientandos pelo sumário abaixo.
Tenha em mente que a caminhada rumo a aprovação no cargo dos seus sonhos não é fácil,
mas não existem barreiras que não possam ser superadas por quem tem disciplina e força de
vontade.
“Sucesso não é o final. Falhar não é o total: é a coragem para continuar que conta” (Winston
Churchill).
Tenham coragem!
Bons estudos!
Parte I: Justiça
1. O que é Justiça?
O ponto central desta aula consiste em identificar o conceito de justiça, o que, de pronto,
adianto a vocês que não será possível, pois tratando-se de palavra polissêmica, várias foram
as definições atribuídas ao termo ao longo da história da humanidade, de modo que o mais
perto que chegaremos de um consenso é sobre a origem etimológica da expressão, que deriva
do nome da deusa romana Justitia (equivalente à deusa grega Dice ou Diké), que ostenta, em
uma das mãos, uma balança (simbolizando o ato de sopesar as coisas), e na outra uma espa-
da (que simboliza a autoridade do direito).1
Vocês, com certeza, já a viram antes.
1
LORDELO, João Paulo. Noções Gerais de Direito e Formação Humanística. Salvador: JusPODVIM, 2017. p. 186.
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E observe que até aqui falamos de justiça grafada com letras minúsculas, que significa um
valor a ser alcançado, não podendo ser confundida com a Justiça, com inicial maiúscula, que
corresponde ao órgão público responsável por aplicar o direito aos casos concretos.
Feito esses breves alertas e tendo em vista que o meu objetivo é prepará-los para as provas
de concurso público, irei apresentar aqui os autores e as linhas de pensamento mais importan-
tes, que para fins didáticos podem ser separados em dois grandes grupos (e é assim que estão
divididos no seu edital da magistratura estadual!): justiça em sentido lato como valor universal
e justiça em sentido estrito como valor jurídico-político.
Diante da complexidade do tema, estamos falando de uma classificação generalista, sem
contornos exatos e que será utilizada, repito, apenas para fins didáticos, com o objetivo de bus-
car conferir certa objetividade ao tema à medida que explicamos os modelos de justiça mais
relevantes apresentados pelos filósofos da Antiguidade, da Idade Média, da Idade Moderna e
da Idade Contemporânea, bem como os pontos de intersecção existentes.
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Mas antes de estudarmos essa classificação, saiba que na Filosofia do Direito podemos
encontrar o conceito de justiça tomado em três sentidos distintos: amplíssimo (mais do que
amplo ou mais do que lato), amplo (lato) e estrito.
Vejamos.
• Justiça em sentido amplíssimo (mais do amplo ou mais do que lato):
Aqui, em sentido lato, diferentemente do sentido anterior, a justiça não tem uma natureza
geral, fixando-se como o conjunto das virtudes sociais que fundamentam a base da relação do
sujeito com outros, sendo, deste modo, uma condição necessária para a sociedade humana
existir.
Significa dizer que em sentido lato a justiça está relacionada ao conjunto de virtudes ne-
cessárias para o convívio social.
O papel do outro nessa acepção é condição essencial, pois é na presença desse outro que
toda e qualquer realização de justiça acontece. Não há justiça de um só homem, dele para com
ele mesmo, mas apenas na medida das ações do sujeito com os demais.
O sentido lato traz, assim, a presença de uma fundamental alteridade e remete a justiça
universal proposta por Aristóteles, que será mais bem estudada em tópico próprio.
• Justiça em sentido estrito:
É nesse sentido que está inserida a atividade jurídica e administrativa relacionada à resolu-
ção de conflitos sociais entre particulares e também guarda referência com a teoria da justiça
aristotélica, mais especificamente com a justiça particular ou parcial.
No viés estrito, a justiça consiste na virtude de dar a outrem o que lhe é devido, de acordo
com um critério de igualdade, expressando uma relação marcada por três características fun-
damentais:
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Errado.
Em sentido lato, justiça equivale ao conjunto das virtudes necessárias para o convívio social.
Errado.
Narrou o sentido lato de justiça.
Errado.
Alteridade, débito e igualdade caracterizam o sentido estrito de justiça.
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Anote!
Nesse primeiro bloco falaremos de conceitos de justiça que de algum modo a relacionam
como um valor universal, gozando de natureza jusnaturalista e podendo ser resumida como a
adequação da conduta humana a uma ordem natural ou divina que lhe é anterior.
1.1.1. Antiguidade
A Justiça em Sócrates (469-399 a. C.)
Conhecido como o “pai da filosofia”, Sócrates defendia que a justiça residia na observância
das leis convencionais da cidade (leis estatais) e das leis naturais (e divinas) que regiam a vida
dos seres humanos, contrapondo-se aos sofistas, corrente que argumentava estar a justiça
fincada na observância das leis convencionais, apenas.
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Notem que na concepção socrática a justiça abarca um componente ético que ultrapassa
o âmbito das leis convencionais, para considerar também uma ordem divina, à época confundi-
da com a ordem cósmica responsável por organizar e orientar absolutamente todas as coisas.
A saber, os gregos compreendiam que o caos (desordem) ganhava forma através do (lo-
gos), constituindo o cosmo (ordem), que disciplinava tudo e todos.
Resumindo, para Sócrates, justo é aquele que respeita e se subordina às leis estatais e natu-
rais, realizando com isso o bem comum da pólis.
Para o filósofo, porém, em que pese o respeito às leis estatais fossem condição necessária
para a realização do justo, não era fator suficiente, reconhecendo haver uma diferença entre a
lei e a justiça. A lei para Sócrates é, assim, o instrumento para a concretização da justiça, ainda
que esse instrumento pudesse ser injusto, de modo que as leis, mesmo as injustas, deveriam
ser cumpridas, pois descumprir uma lei injusta é cometer injustiça, não sendo admissível
retribuir a injustiça com outra injustiça. Nesse sentido, ao invés da desobediência, aquele que
não estivesse satisfeito com as convenções da sua cidade deveria modificá-las por meio do
Direito. Além da oportunidade de modificar as leis pelo Direito, quem não conseguisse fazer
isso e ainda estivesse em desacordo com elas poderia ir embora da cidade.
Uma curiosidade é que Sócrates nunca chegou a escrever uma obra, tendo as suas ideias
sido narradas nas produções de Platão, seu fiel discípulo e o próximo filósofo que estudare-
mos.
Além de ter sido o responsável pela divulgação dos pensamentos de Sócrates, especial-
mente através dos denominados diálogos, foi Platão que escreveu a obra “A República”, uma
das principais fontes da filosofia no Ocidente e cujo tema principal é o conceito de justiça,
discussão a partir da qual alguns dos pressupostos da teoria política de Platão foram desen-
volvidos.
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Ao contrário do seu mestre (Sócrates), Platão não seguia a direção de que as leis, indepen-
dentemente de serem justas ou injustas, deveriam ser cumpridas. Ao contrário, para ele uma
lei injusta nem mesmo poderia ser considerada Direito. Mais do que isso, para um homem
ser reputado justo não seria suficiente uma vida em conformidade com as leis, pois a justiça
não se resumiria ao cumprimento da legislação. Em verdade, é a busca pela justiça que daria
fundamento à legislação.
A justiça, em Platão, era identificada como um bem mais precioso do que o próprio ouro,
uma virtude proeminente que sobressaía sobre outras respeitáveis virtudes humanas, a exem-
plo da coragem e do conhecimento.
A valer, Platão considerava existir uma sinonímia entre justiça e virtude, igualando os
dois conceitos, mas assim mantendo-os num espaço mais limitado que pouco permitia a sua
aplicabilidade as contradições da realidade, pois para ser possível a sua visão do conceito ele
precisou de uma sociedade igualmente idealizada.
Explico melhor. É que Platão, idealista que era, foi o responsável por organizar as três po-
tências da alma humana, que são:
1. O lado racional;
2. O lado dos impulsos e fatos; e
3. O lado das necessidades básicas.
E foi a partir dessas potências que ele desenvolveu a sua teoria da organização social (da
pólis), fundada na hierarquia e na aristocracia, onde cada um era dotado de funções especí-
ficas, sendo dos sábios e dos filósofos a função de governar. Com isso, a justiça residiria na
obediência a essa ordem divina predeterminada.
Para Platão, cada coisa no mundo possuiria uma forma perfeita, a qual deve buscar se
aproximar, de modo que partindo da premissa clássica da antiguidade de que “cada um deve
receber o que lhe é devido”, considera a justiça em duas acepções:
1. É justo retribuir o mal com o mal: nessa perspectiva, aquele que pratica um crime (mal),
por exemplo, deverá ser punido com a devida sanção (mal);
2. É justo que as pessoas sejam incumbidas das atribuições mais adequadas às suas
virtudes naturais, o que garante que os melhores resultados sejam alcançados: significa que
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cada sujeito nasce com qualidades e aptidões próprias, devendo, no Estado idealizado e justo
de Platão, desenvolverem as funções que lhes sejam mais compatíveis, contribuindo para o
melhor da pólis.
A segunda acepção ficará mais fácil de ser compreendida a partir de um simples exemplo
mais contemporâneo: imagine que numa empresa existam dois motoristas responsáveis pelo
transporte das encomendas, um muito bom, hábil e competente e o outro muito ruim, lento e
desatento e dois carros, um é completo (0 Km, tem direção hidráulica, chega de 0 a 100 km em
dez segundos) e o outro já tem dez anos de uso. Numa visão hodierna, a tendência seria pro-
curar igualar os desiguais, confiando o melhor carro ao pior motorista. Numa visão platônica,
a tendência seria dar o melhor carro ao melhor motorista, aquele que tem maior aptidão para
dirigi-lo e extrair as suas potencialidades, garantindo mais velocidade e um maior número de
entregas (aqui considerada como analogia para “bem comum”), pois nas mãos do pior moto-
rista o carro seria subaproveitado.
Resumindo, em Platão, considera-se justo aquele que obedece a organização social da pólis,
oriunda de uma ordem divina predeterminada.
Justiça, assim, é dar a cada um o que lhe é devido, de modo que:
1. É justo retribuir o mal com o mal; e
2. É justo que as pessoas sejam incumbidas das atribuições mais adequadas às suas virtudes
naturais, garantindo que os melhores resultados sejam alcançados.
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Errado.
Essa é uma noção mais aproximada do conceito de justiça de Aristóteles, próximo filósofo que
estudaremos. Em verdade, a noção platônica de justiça se relaciona à ideia de harmonia, algo
como “fazer cada um o seu”.
Chegamos aqui num dos principais pontos desta aula. Aristóteles, discípulo de Platão, foi
um dos mais importantes filósofos de todos os tempos e os seus estudos sobre a justiça um
dos mais relevantes tanto para a filosofia ocidental quanto para as provas de concurso público.
Ao contrário de seu mestre (Platão), Aristóteles entende que não existe um mundo das
ideias e que as definições de bom, certo e justo são assimiladas a partir das experiências vivi-
das pelo homem ao longo da sua vida. Não por menos afirmava que nossas mentes são como
folhas em branco.
De acordo com o filósofo, a palavra justiça possuiria diversos sentidos, mas antes de fa-
zermos um exame mais específico sobre cada um deles, é preciso compreender que o pensa-
dor, em suas reflexões, partia de dois pressupostos gerais. São eles:2
1. A justiça é teleológica, isto é, direcionada a um objetivo, que seria a realização da “boa
vida”; e
2. A justiça é honorífica, revelando uma virtude.
Com palavras mais didáticas, citamos João Paulo Lordelo:
Explicando melhor seus pressupostos, para Aristóteles, as discussões sobre justiça são “debates
sobre a honra, a virtude e a natureza de uma vida boa”, não existindo uma separação entre o justo
e o ético (ou moral). Cuida-se, pois, de uma concepção, ao mesmo tempo, teleológica (por buscar
realizar “a boa vida”) e honorífica (por associar a ideia de boa vida às “boas virtudes”).
2
SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2012, p. 233.
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Muito do que escreve Aristóteles sobre ética e justiça está ligado à ideia da “vida boa”, a excelência
maior buscada por todas as pessoas, que está ligada à busca pelos talentos inatos de cada ser hu-
mano. O justo deve cultivar as boas virtudes.
É interessante verificar que, para Aristóteles, a justiça não teria um viés individualista, como
uma espécie de qualidade ostentada por um determinado sujeito centrado em si mesmo. Mais
do que isso! A justiça seria o próprio modo de ser de um sujeito consciente do entorno que o
cerca e que com ele interage.
A função da justiça seria a de realizar distribuição, razão pela qual consistiria em uma vir-
tude interpessoal, à medida que a sua existência pressupunha uma coletividade de pessoas.
Em linhas mais diretas, a justiça seria uma virtude que guarda pertinência com a coletividade.
Para Aristóteles, eu só posso ser justo em relação ao meu semelhante.
Anote!
Na concepção aristotélica, a justiça é uma virtude interpessoal que pressupõe uma coletivida-
de.
Não por menos afirmava que o ser humano era um animal político3, sendo impossível
existir vida em sociedade sem existir interdependência, cabendo a justiça ser a virtude desti-
nada a garantir harmonia nesse cenário social caracterizado pela dependência mútua entre as
pessoas.
Indo além, Aristóteles defendia que a correta compreensão do justo somente se tornaria
possível se examinado em conjunto com o seu alter ego: o injusto, conceito utilizado para defi-
nir a figura daquele que não observava as leis ou, ainda, daquele que almejava mais do que lhe
era cabido. Enfim, corresponderia ao sujeito de práticas iníquas.
Em sentido oposto, o justo equivaleria àquele que observava as leis, tanto as morais quan-
to as estatais, respeitando a igualdade e a equidade.
Nas suas palavras:
3
Em sentido semelhante, São Tomás de Aquino, inspirado em Aristóteles, afirmava que o ser humano é um animal social.
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o termo injusto se aplica tanto às pessoas que infringem a lei quanto às pessoas ambiciosas (no
sentido de quererem mais do que aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma que as cumprido-
ras da lei e as pessoas corretas serão justas. O justo, então, é aquilo conforme à lei e correto, e o
injusto é o ilegal e iníquo.4
No que tange à equidade, é válido saber que na visão aristotélica ela é considerada fundamen-
to essencial para a ideia de justiça, pois consiste na adaptação da aplicação de uma regra
existente a uma situação concreta, e ao buscar essa adaptação, a partir dos limites impostos
pela igualdade e pela justiça, a equidade possibilita uma melhor adequação da regra ao caso
específico, deixando-a mais justa.
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Outro ponto importante da filosofia de Aristóteles diz respeito à lei (“Constituição”), con-
siderada como um instrumento capaz de permitir uma vida ética, fator este reputado indis-
pensável para a felicidade dos sujeitos, de modo que uma existência ética somente poderia
se realizar no âmbito de uma comunidade que, evidentemente, além de ética, também fosse
política, estruturada sob um regime político, qual seja, uma Constituição, a lei, que em muitos
sentidos é a razão de sua própria existência.
Destarte, a justiça é realizável tanto num sentido normativo, a partir da experiência da lei,
que viabiliza o julgamento dos sujeitos nas suas relações com outros, bem como traz em si,
igualmente, um sentido de igualdade, restrito as ações daquelas relações que almejam a dis-
tribuição e a pretensão dos bens constitutivos da relação humana.
Fixadas essas noções gerais, abaixo iremos entender melhor as espécies de justiça desen-
volvidas por Aristóteles.
Essa foi uma das primeiras acepções de justiça desenvolvida por Aristóteles. Falamos um
pouquinho dela no tópico acima. Ela consiste na soma de todas as virtudes, incluindo o res-
peito às leis morais e às leis estatais, atuando o indivíduo para a realização do melhor para a
comunidade.
Assim, “é possível afirmar que aquele que atua conforme as leis possui a excelência moral
de ser justo.”
Segundo ele:
da justiça política, uma parte é natural, a outra é legal. A natural tem em qualquer lugar a mesma
eficácia, e não depende das nossas opiniões; a legal é, em sua origem, indiferente que se faça assim
ou de outro modo; mas, uma vez estabelecida, deixa de ser indiferente.5
Por seu turno, Eduardo Carlos Bianca Bittar esclarece que estamos diante na noção de
justiça em sentido amplo, o qual, de todos os sentidos é o mais genérico, razão pela qual tam-
bém é denominada de justiça total ou integral, haja vista que tem aplicação mais abrangente
e extensa, pois “as leis valem para o bem de todos, para o bem comum”.
5
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, 1992, p. 102.
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Se a lei (nómos) é uma prescrição de caráter genérico e que a todos vincula, então seu fim é a re-
alização do Bem da comunidade, e, como tal, do Bem Comum. A ação que se vincula à legalidade
obedece a uma norma que a todos e para todos é dirigida; como tal, essa ação deve corresponder
a um justo legal e a forma de justiça que lhe é por consequência é a aqui chamada justiça legal.6
Resumindo, justiça geral, total, universal ou em sentido amplo consiste na soma de todas as
virtudes, consistindo no respeito às leis morais e às leis estatais com vistas a realização daqui-
lo que for melhor para a comunidade como um todo.
É verificada nas relações do homem com a sociedade, entre um homem e todos os outros de
forma geral.
A sua violação pode ser involuntária e enseja uma ilegalidade.
Além da justiça geral, Aristóteles também falava na existência de uma justiça particular,
equivalente a ideia de igualdade, no sentido de atribuir a cada um o que lhe é devido, de modo
que a sua violação ensejaria iniquidade.
Com efeito, da justiça particular derivam outras duas espécies, quais sejam:
• a justiça distributiva ou de cooperação, aplicável nas relações entre a comunidade e
seus membros; e
6
BITAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 130.
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Implica na concepção de que a cada um deve ser dado o que merece, conforme o seu mé-
rito, numa espécie de igualdade proporcional, ou nas palavras de Aristóteles, uma igualdade
geométrica, por meio do qual se deve “tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmen-
te”. Trata-se da modalidade de justiça vocacionada a manutenção da ordem e da harmonia
da polis, tendo o seu campo de aplicação na distribuição ou repartição de honras ou riquezas,
bem como de tudo quanto pode ser distribuído em partes pelos membros de uma comuni-
dade. Nesse sentido, a justiça consiste na repartição de bens e direitos segundo o mérito de
cada um.
O próprio Aristóteles reconhecia não haver um critério único para definir o que seria mérito,
podendo o conceito variar conforme a perspectiva adotada. Na sua visão, a resposta seria al-
cançada após um exame das pessoas e dos objetos que se pretende distribuir, compreenden-
do que estes (os objetos) tem um télos, isto é, um propósito a ser alcançando, devendo, assim,
serem atribuídos a quem possuísse maior excelência para a realização desse propósito.
Para ilustrar, numa hipotética distribuição de violinos, deveriam ser agraciados os melho-
res violonistas, pois é para isso que esses objetos existem, serem bem tocados. O télos dos
violinos é produzir boa música, logo, as pessoas que melhor podem exercer esse propósito
devem receber os melhores instrumentos. Em síntese, os melhores instrumentos devem ser
entregues aos melhores músicos, pois isso contribui para que a melhor música chegue aos
ouvidos de todos e, consequentemente, faz com que um maior número de pessoas fique satis-
feita, garantindo o melhor para a comunidade (“bem comum”).
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Resumindo, justiça distributiva ou de cooperação é aquela aplicável nas relações entre a comu-
nidade e seus membros. Consiste em dar a cada um o que é seu, conforme o mérito individual,
numa espécie de igualdade proporcional (ou geométrica) pela qual a distribuição dos bens
deve ser atribuída a quem goze de maior excelência para realizar o seu télos (propósito), de
modo que nem todos, por consequência, receberão os mesmos bens e em mesmas quantida-
des.
Não confunda!
Quanto a justiça corretiva, Bittar foi certeiro ao defini-la como aquela que tem por objeti-
vo o “restabelecimento do equilíbrio rompido entre os particulares: a igualdade aritmética”7.
Por particulares, segundo Aristóteles, devem ser compreendidos aqueles estão num plano de
7
BITAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 135.
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igualdade e cujo vínculo entre eles se deu de maneira voluntária ou involuntária, através de um
contrato ou de um dano.8
Conforme o filósofo:
é a que desempenha função corretiva nas relações entre as pessoas. Esta última se subdivide em
duas: algumas relações são voluntárias e outras são involuntárias; são voluntárias a venda, a com-
pra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o depósito e a locação (estas relações
são chamadas voluntárias porque sua origem é voluntária); das involuntárias, algumas são sub-rep-
tícias (como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o desvio de escravos, o assassino
traiçoeiro, o falso testemunho), e outras são violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o rou-
bo, a mutilação, a injúria e o ultraje.
A justiça comutativa é, assim, a justiça aplicada pelo pelos juízes na solução de conflitos
entre sujeitos em paridade de direitos e obrigações frente a legislação, decidindo o justo para
cada parte conforme uma igualdade aritmética.
Com efeito, igualdade aritmética é aquela simples ou absoluta, na qual as partes devem
dar e receber numa proporção igualitária – os ganhos e as perdas devem ser iguais – não po-
dendo a desigualdade de um prevalecer sobre o outro. Para Aristóteles, a justiça está na ética
do meio termo (mesotês).
Anote!
Para Aristóteles, a justiça comutativa está na ética no meio termo (mesotês).
Segundo o autor:
Se uma pessoa é ferida e a outra fere, temos nessa lesão uma desigualdade. No caso, o sofrimento
está mal distribuído, configurando, desse modo, uma espécie de injustiça. A atuação do juiz nesse
caso é no sentido de igualar a relação por meio da aplicação da penalidade, subtraindo do ofensor
o excesso de ganho, ou seja, não ter recebido nenhum mal, e redistribuído à vítima, com uma inde-
nização, uma condição de equilíbrio. O igual aqui é o meio-termo entre o ganho e a perda, de modo
que a justiça corretiva será o meio-termo entre esses dois elementos.
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Antes de prosseguirmos, uma importante observação deve ser feita e que vocês já devem
ter notado.
Aristóteles considerava a existência de duas formas de igualdade: a aritmética e a geomé-
trica.
A igualdade aritmética é a que orienta a justiça comutativa ou reparadora, expressando a
ideia de um por um, de paridade entre ganhos e perdas, por meio da qual todos devem cumprir
suas promessas e repararem os prejuízos e danos causados na proporção de suas promessas
ou danos causados a terceiros.
Já a igualdade geométrica é a que orienta a justiça distributiva, forma elevada de justiça
pautada na proporcionalidade.
Na ótica aristotélica, o Direito e a justiça se confundem, mas por existirem duas espécies
de justiça, em cada caso deverá ser examinado e decidido se é hipótese da aplicação da justi-
ça comutativa ou da distributiva.
Devido a importância do tema, apresento abaixo a seguinte esquematização:
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Filosofia do Direito – Parte I
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Equidade
Não obstante toda a riqueza da teoria de justiça elucidada por Aristóteles na obra “Ética a
Nicômaco”, posteriormente o filósofo, na obra “Política”, retornou ao debate para falar sobre a
necessidade de existir um modelo apto a verificar o conceito de justo no caso concreto. Ele
estava falando da equidade.
Aristóteles notou que sendo a lei geral e abstrata, a sua aplicação indistinta a todos os
casos semelhantes acabaria por ocasionar injustiças em casos específicos e extraordinários.
Surge assim, a equidade, como a “cereja do bolo” da teoria de justiça aristotélica, tornando-a
completa ao buscar conferir a lei um mecanismo que lhe conferisse maior flexibilidade, ate-
nuando e corrigindo as injustiças surgidas no caso concreto em decorrência da sua aplicação
demasiadamente rigorosa. A equidade, portanto, não é o justo conforme a lei, mas o justo no
caso concreto, apesar da lei, tornando completo o seu conteúdo. E cuidado, pois a equidade
não nega a justiça da lei, mas é um corretivo, tendo em vista que a lei é ampla e não consegue
previamente regular todos os casos.
Anote!
A equidade visa garantir a justiça no caso concreto, surgindo como um mecanismo apto a con-
ferir maior flexibilidade a lei, atenuando e corrigindo as injustiças surgidas no mundo da vida
em decorrência da sua aplicação demasiadamente rigorosa.
Talvez a assimilação fique mais fácil ao saber que Aristóteles a comparava com a régua
de Lesbos. Lesbos era uma ilha grega na qual os operários utilizavam uma régua especial para
medir os blocos de granito. Por ser feita de metal flexível, podia ajustar-se às irregularidades
do objeto – “a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se
adapta aos fatos”.
Flexível como a régua de Lesbos, a equidade não mede apenas aquilo que é normal, mas
também as variações e curvaturas inevitáveis da experiência humana. É dizer, a aplicação in-
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distinta das leis, sem o exame das peculiaridades do caso concreto, não produz justiça, sendo
indispensável primar pela flexibilidade das normas (equidade).
Inspirado na obra de Platão, Santo Agostinho, autor de “Cidade de Deus”, foi um bispo neo-
platônico, idealista, que acreditava que a fé era o caminho para se alcançar o mundo das ideias,
definindo a justiça, tal como fazia o filósofo grego, como a virtude de se atribuir a cada um o
que é seu. Se diferenciava, contudo, no que tange a sua origem, que considerava ser de ordem
divina, fundamentada nas leis eternas de Deus.
Para ele, a justiça e o Direito provêm de Deus, sendo a justiça a equivalência da cidade dos
homens à cidade de Deus.
Explico melhor. Agostinho considerava a existência de dois reinos: o civitas Dei (cidade de
Deus) e o civitas terrea ( cidade terrena caracterizada pelo domínio do pecado), de modo que
ao povo somente seria possível chegar a cidade de Deus se as leis terrenas estivessem ade-
quadas às leis divinas, que são justas, universais e imutáveis.
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Para Santo Agostinho, portanto, a justiça residiria na compatibilidade das leis estatais (hu-
manas) com as leis divinas.
Aliás, interessa apontar que o religioso acreditava que a justiça era a essência do Direito,
de modo que um Direito ausente de justiça nada mais seria do que uma instituição de natureza
puramente humana, transitória, impura, perversa e destituída de sentido e um governante que
não busca a justiça nada mais seria do que um ladrão que, assim como os piratas, pretende
impor a sua vontade por meio da força.
Resumindo, para Santo Agostinho, a justiça é a virtude de se atribuir a cada um o que é seu,
conforme as leis divinas de Deus. Isso porque a justiça e o Direito provêm de Deus e somente
haverá justiça se as leis estatais (humanas) estiverem em consonância com as leis divinas,
que são justas, universais e imutáveis.
Grande admirador da filosofia de Aristóteles, São Tomás de Aquino foi um frade neoaristo-
télico, realista e defensor da racionalização do cristianismo inspirado, especialmente, na dialé-
tica como método de conhecimento.
Tomás de Aquino também ligava a justiça a virtude de se atribuir a cada um o que é seu,
relacionando-a, porém, a uma ação humana concreta alcançável pela razão e justificada pela
Lei eterna de Deus.
A justiça, então, seria uma virtude de natureza prática, expressada pelo hábito de dar a
cada um o que é seu. Seria a principal virtude moral, porque contém os três elementos essen-
ciais de toda e qualquer virtude: o hábito, o agir e o bem.
Anote!
Tomás de Aquino dizia que “A justiça é um hábito virtuoso, é preciso uma predisposição de
espírito para realizá-la, associada a percepção do bem comum, para além de uma perspectiva
individual”.
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O fato é que o frade em muito incorporou as ideias de Aristóteles, chamando-o em sua obra
“Suma Teológica” de “Filósofo”, reconhecendo a existência da justiça e da justiça distributiva.
Há duas espécies de justiça. Uma consistente no mútuo dar e receber; p. ex., a que consiste na
compra e venda em outros tratos ou trocas semelhantes. Esta é chamada pelo Filósofo (Aristóteles)
justiça comutativa ou reguladora das trocas ou tratos; e essa não convém a Deus, segundo aquilo
do Apóstolo (Rm 11, 35) (Paulo de Tarso): Quem lhe deve alguma coisa primeiro para esta lhe haver
de ser recompensada? Outra consiste na distribuição e se chama justiça distributiva, pela qual um
governador ou administrador dá segundo a dignidade de cada um. Ora, assim como a ordem devida,
na família ou em qualquer multidão governada, demonstra a justiça do governador, assim também
a ordem do universo manifesta, tanto nos seres naturais, como nos dotados de vontade, a justiça
de Deus. Por isso diz Dionísio: Devemos ver a verdadeira justiça de Deus no distribuir ele a todos os
seres segundo o que convém à dignidade de cada um, e no conservar cada natureza na sua ordem
própria e virtude.
Para finalizar, aponta-se, ainda, que Tomás de Aquino defendia que a sociedade deveria ser
guiada e disciplinada por um regime de leis composto pela lei eterna, pela lei natural e pela lei
humana (estatal).
A lei eterna teria origem direta em Deus, destinando-se a regular todo o Universo.
A lei natural corresponderia a tradução da lei divina, através do dom da razão, para um uma
linguagem compreensível aos homens.
Por seu turno, a lei humana (estatal), seria aquela que regulamenta e integra a lei natural,
sendo um produto humano, isto é, uma criação do homem para reger assuntos cotidianos e
viabilizar o correto funcionamento da sociedade.
Nesse sentido, observem que para Aquino o Direito não se resume apenas a lei, estando
atrelando também a razão divina e a razão natural, uma vez que reconhece a existência de uma
ordem natural abaixo da ordem divina.
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A consequência é que, na visão tomista, a sociedade e a justiça não são regidas por um
conjunto de comandos humanos, mas puramente por comandos de origem divina, já que a lei
natural se traduz na lei humana e ambas devem ser a expressão da lei eterna de Deus.
Se em sentido lato, a justiça, nas suas mais variadas percepções, ligava-se, de algum modo,
a ideia de um valor universal concebido como a conformação do ser humano a uma ordem
natural ou divina que lhe era anterior, em sentido estrito ela deixa de ser vista como um dado
apriorístico para ser encarada como um valor jurídico-político distanciado de uma concepção
jusnaturalista, compreendendo-se como fruto da cultura humana, verdadeira construção so-
cial. E é a partir desse pressuposto geral que iremos analisar as ideias particulares de alguns
importantes filósofos do direito.
Findo o período medieval, iniciou-se a Idade Moderna, inicialmente deflagrada pelo movi-
mento renascentista, que tinha entre os seus objetivos refutar o pensamento teleológico que
dominou a Idade Média (“Idade das Trevas”). O Renascimento, assim, ao procurar afastar-se do
teocentrismo de outrora, reascendeu o antropocentrismo (o homem como o centro de todas
as coisas), razão pela qual também é conhecido como Humanismo.
Logo em seguida, a modernidade foi marcada pelo surgimento do Iluminismo, movimento
liderado por pensadores como Locke, Rousseau, Montesquieu e Kant, que procuravam estabe-
lecer na razão, e não mais na fé, o fundamento das suas teorias.
Concomitantemente a esses movimentos, o absolutismo foi se consolidando com a forma
de governo dominante na Europa, reunificando os Estados e conferindo ao soberano a exclu-
sividade da administração da justiça, o que ocasionou um período marcado fortemente por
injustiças.
Mas, por ora, o que de fato é relevante para nossa aula é saber que a modernidade foi um
período em que os debates sobre o justo e o injusto deixaram de ser travadas em abstrato para
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começarem a ocorrer em concreto, quando a pergunta central passou a ser quais direitos efe-
tivamente poderiam ser exercidos pelos indivíduos, principalmente em face do Estado.
Além de afastar o pensamento teleológico e elevar a importância da razão, em substituição
a ideia da fé, a modernidade inaugurou um período de relativismo e esse relativismo passou a
prevalecer sobre o pensamento dos antigos e dos medievais.
Os antigos e os medievais olhavam o mundo como uma ordem, na qual os campos do
conhecimento, a exemplo do Direito, da justiça, da religião, da política e da filosofia estavam
ligados entre si. Na antiguidade, o Direito era visto como algo necessariamente justo e a políti-
ca, semelhantemente, era pensada em função da ética. Isso porque os antigos desenvolveram
uma noção de virtude.
Na modernidade, porém, promove-se um rompimento nos ramos do conhecimento huma-
no, ocasionando uma quebra de unidade, vigorando o relativismo.
Maquiavel, por exemplo, inaugurou a visão moderna no âmbito da política, à medida que
promoveu a ruptura com a noção de virtude, propugnando que a política passasse a ser vista
de um modo realista.
Hoje, no entanto, o nosso foco é saber o que se entende por justiça e já tendo sido explica-
do os padrões que marcaram a Idade Moderna, vejamos abaixo o que defendiam alguns dos
principais filósofos e juristas desse período.
Nicolau Maquiavel viveu durante o renascimento italiano, sendo considerado por muitos o
fundador do pensamento e da ciência política moderna, pelo fato de ter escrito sobre o Estado
e o governo como realmente são, e não como deveriam ser.
Sua doutrina, especialmente em razão da sua obra “O Príncipe”, é de extrema importância
para o estudo da política, guardando menor influência na filosofia.
Marcado pela célebre frase “os fins justificam os meios”, no pensamento maquiavélico
qualquer ideia de virtude pode ser resumida como todas ações necessárias para alcançar o
poder e nele se manter. Para Maquiavel, diante do conflito é sempre preferível as escolhas que,
apesar de levar ao ódio, irão te garantir força, do que aquelas que te farão ser amado, mas que
levarão a perda do poder.
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A justiça em Maquiavel reside, dessa maneira, num conceito desprovido de qualquer exa-
me de moralidade e no qual o correto é definido como todas as ações efetivas para garantir
a manutenção do poder e o errado como todas as medidas inócuas nessa missão, isto é, que
podem levar a perda do poder.
Anote!
Para Kant, justiça é a liberdade de agir em consonância com o imperativo categórico.
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Anote!
O imperativo categórico não é um código de regras morais, mas, sim, um princípio geral que
possibilita um raciocínio objetivo sobre o certo e o errado, o justo e o injusto, o bom e o ruim,
definindo-se como certo, justo e correto o comportamento passível de ser universalizado para
todos (como dito, numa espécie de legislação universal), sem acarretar danos a liberdade de
terceiros, garantindo ordem e harmonia entre os homens na sociedade. Isto é, todos poderiam
realizar a conduta e isso não ocasionaria qualquer tipo de problema.
Em resumo, o imperativo categórico busca permitir a convivência harmônica entre os indivídu-
os através da realização de comportamentos justos.
A maior contribuição de Kant para a concepção de justiça, portanto, foi o de fundá-la a par-
tir da noção de liberdade. Para o filósofo, justiça é liberdade, mas não qualquer liberdade, e sim
a liberdade de atuar de acordo com o imperativo categórico.
“Age exteriormente de modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade
de todos.”
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E aqui, é preciso ficar claro, que as ações que interessam à justiça são as externa e práti-
cas, aquelas que podem ensejar efeitos no campo de liberdade dos outros. Questões puramen-
te internas são irrelevantes nesse sentido.
Deveras, a liberdade é um ponto tão sensível da filosofia kantiana, que o pensador alemão
compreendia que a sua defesa era a razão que justificava a reunião dos homens em sociedade,
pois se todos são livres, numa liberdade total em que podem fazer tudo que lhes vem à mente,
praticando uma série de condutas que inevitavelmente contrariarão e afetarão a esfera da agir
dos demais, o resultado é que ninguém é livre. A conclusão é que somente no seio de uma so-
ciedade que o homem consegue controlar, conformar e harmonizar as liberdades de todos e o
Estado apenas garante justiça quando concede aos seus cidadãos um conjunto de garantias
que viabilize que expressem sua liberdade externa sem obstáculos impertinentes e de acordo
com o princípio geral da universalização.
Esse conjunto de garantias, aliás, denomina-se, em Kant, de Direito, que não está voltado ao
estabelecimento de deveres, mas essencialmente preocupado com a implementação de um
ambiente propício a coexistência dos arbítrios.
Se as ações exteriores dos sujeitos possuem o condão de influírem na esfera de liberdade
dos demais, consubstanciando um empecilho para o exercício da liberdade do outro, ao Direito
incumbe a garantia da liberdade de cada um conforme uma lei válida para todos (imperativo
categórico geral).
Aprofundando um pouco mais, todas essas considerações foram fundamentais para o
surgimento da ideia de soberania popular. Isso porque, no âmbito do pensamento kantiano,
as pessoas são livres a partir do momento que agem como cidadãs e agir como cidadãs signi-
fica produzirem as leis que elas deverão cumprir.
É mais ou menos assim: as leis que eu cumpro devem vir da minha vontade e não deri-
varem da vontade de outra pessoa. Eu sou livre a partir do momento em que me submeto às
minhas próprias leis. Com isso, a ação justa tem a ver com liberdade e a justiça nasce dessa
liberdade com autonomia.
Kant dizia que justa é somente a ação cuja máxima liberdade de arbítrio de cada um pode
coexistir com a liberdade de todos. Então, a justiça é uma espécie de coexistência entre as
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Anote!
Kant dizia que justa é somente a ação cuja máxima liberdade de arbítrio de cada um pode coe-
xistir com a liberdade de todos. Então, a justiça é uma espécie de coexistência entre as várias
liberdades, cabendo ao Direito funcionar como o instrumento destinado a garantir um ambien-
te de coexistência dos arbítrios, onde o arbítrio de um poderá estar compatível com o arbítrio
de outro, segundo a lei universal da liberdade.
1.2.2. Contemporaneidade
A Justiça no Utilitarismo
Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873) foram os maiores expoentes
do utilitarismo, uma filosofia que fez bastante sucesso no mundo anglo-saxão, especialmente
na Inglaterra do final do século XVII, que vivia as agruras do período pré-revolução industrial,
marcado pela fome e pela escassez.
A ideia de justiça dos utilitaristas parte do pressuposto de que o homem é um animal que
age a partir daquilo que se denominou de princípio da satisfação. Sejamos mais claros: defen-
diam que o homem sempre busca o prazer, a satisfação, o bem-estar e evita a dor.
Para os utilitaristas, toda as ações humanas, assim como os preceitos éticos, morais e de
justiça estão fundamentados nessa ideia fulcral de interesse.
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E um fator interessante dessa linha filosófica é que ela se apresenta como uma doutrina
notadamente oposta às teorias contratualistas10 tecendo sobre elas, aliás, três críticas, no mí-
nimo:
1. Questionavam a existência de um contrato social e como isso poderia ser provado;
2. Mesmo provada a existência de um contrato social, alegavam que são poucas ou nenhu-
ma as razões pelas quais as pessoas cumpririam os compromissos aí assumidos; e
3. Compreendiam que os direitos individuais consubstanciados no contrato social levam a
um cenário de egoísmo.
Destarte, os utilitaristas não fundamentavam suas ideias na existência de um contrato so-
cial ou em direito individuais, como faziam os contratualistas e nem a partir de um imperativo
categórico, a exemplo de Kant, mas guiavam-se pelo critério da utilidade (isso vai ficar mais
claro daqui a pouco).
Fixadas essas noções gerais, vamos falar então de Jeremy Bentham.
Segundo o filósofo inglês, o ser humano sempre atua com vistas a alcançar o prazer e
evitar a dor, de modo que essa perspectiva hedonista11, da busca incansável pelo bem-estar,
deveria ser utilizada como parâmetro para julgar as ações humanas como boas ou más, justas
ou injustas, corretas ou incorretas. Com isso, deveriam ser consideradas como boas todas as
ações que tinham por consequência a maximização do bem-estar e como más aquelas que
piorassem o bem-estar. Com palavras mais simples significa dizer que é bom aquilo que ga-
rante felicidade ao maior número possível de pessoas e é ruim aquilo que garante infelicidade
ao maior número de pessoas.
Surge aqui o critério ou princípio da utilidade, que aplicado a uma teoria de justiça funcio-
na como o mecanismo que busca conferir um resultado positivo para o maior número possível
de indivíduos. Conforme Bentham, utilidade consiste na:
10
Denominam-se contratualistas as teorias que procuram justificar a origem do Estado a partir de um suposto (ou pressu-
posto) pacto feito pela sociedade, composta por pessoas livres e iguais. São exemplos de pensadores contratualistas
Hobbes, Locke e Rousseau.
11
O hedonismo é uma teoria ou doutrina filosófico-moral que afirma que o prazer é o bem supremo da vida humana. Surgiu
na Grécia, e seu mais célebre representante foi Aristipo de Cirene.
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propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir
ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade, ou a impedir que aconteça dano, dor,
o mal ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta. Se esta parte for a comunidade
em geral, tratar-se-á da felicidade da comunidade, ao passo que, em se tratando de um indivíduo
particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo.
Anote!
O princípio máximo da utilidade resume-se a ideia de fazer o maior bem para o maior número
de pessoas (the greatest good for the greatest number).
E o critério da utilidade, a saber, é o que deveria ser utilizado não apenas nas decisões de
âmbito individual, mas também naquelas de caráter social, guiando as autoridades estatais na
confecção e implementação de políticas públicas, cujos olhos sempre deveriam estar voltados
para a amplificação da felicidade coletiva.
Para ilustrar, imagine um gestor público que tem uma disposição orçamentária de 1 milhão
de reais e que se encontra diante do seguinte impasse: investir esse dinheiro no tratamento
experimental de uma pessoa que possui uma doença rara e que custa 980 mil reais ou utilizar
esse dinheiro para aumentar o número de leitos em um hospital público, suprindo o deficit
existente.
Para Bentham, numa situação de conflito a coisa certa a se fazer é aquela que gera maior
utilidade, isto é, aquilo que proporciona felicidade, prazer, bem-estar ao maior número possível
de pessoas.
Ok, e como saber qual a decisão que gera mais utilidade? Simples! A utilidade é um princípio
quantitativo, podendo ser “calculada” a partir das circunstâncias que envolvem o dilema. No
caso hipotético ora narrado, um governante utilitarista resolveria a questão a partir do seguinte
raciocínio: a aplicação do dinheiro em prol de uma única pessoa pode levar a sua cura, propor-
cionando felicidade a ela e a seus familiares. Noutra via, se o número de leitos for ampliado,
mais pessoas serão curadas, garantindo felicidade a uma quantidade superior de indivíduos.
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Resultado: a decisão mais justa é destinar o dinheiro para novos leitos, afinal, reputa-se como
correto e, por consequência, como justo, tudo aquilo capaz de maximizar a felicidade coletiva.
O utilitarismo de Bentham foi alvo de fortes críticas, à medida que não conferia muita im-
portância a questões como a dignidade da pessoa humana e os direitos individuais, raciocínio
que poderia autorizar a opressão das minorias e ações tirânicas em nome da busca por uma
suposta maximização da felicidade coletiva (utilidade). Além disso, reduzia questões concer-
nentes a moral em simples operações matemáticas de dor x prazer e mal-estar x bem-estar.
Daí surge a necessidade de falarmos de John Stuart Mill, filho de James Mill, um discípulo
e amigo de Jeremy Bentham.
Visando “aprimorar” a teoria de Bentham, Stuart Mill procurou conferir a ela uma perspec-
tiva mais humana e menos matemática, apresentando uma doutrina utilitarista de contornos
mais brandos.
Para tanto, acrescentou o princípio da liberdade, defendendo que a liberdade é elemento
essencial à vida em sociedade e que as pessoas, desde que não causassem prejuízos aos
outros, deveriam ser livres para atuarem da forma que julgassem mais apropriada para o seu
bem-estar, independentemente do critério da utilidade.
Dizia: “Sobre si mesmo, seu corpo e sua mente o indivíduo é soberano”.
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Entendia também que o Estado não possuía legitimidade para interferir nas liberdades in-
dividuais sob a justificativa de alcançar ganhos globais ou felicidade coletiva. Qualquer interfe-
rência somente se justificaria quando necessária para prevenir danos a terceiros.
A distinção entre a sua teoria e a de Bentham pode ser percebida em um exemplo simples.
Imagine que um terrorista colocou uma bomba no centro da cidade de São Paulo e que um
policial tenha identificado uma pessoa que tem o conhecimento de onde a bomba foi instala-
da, mas que não quer colaborar. Para um utilitarista clássico, não há dúvidas de que o Estado,
por meio dos seus agentes, não só pode, como deve torturar o sujeito a fim de obter as infor-
mações necessárias, pois essa é a solução que gerará a maior utilidade (o maior bem para o
maior número de pessoas). Já para Mill, a interferência estatal não poderia ser feita, pois a
tortura violaria gravemente a esfera de liberdade do indivíduo.
Ademais, Mill estima a felicidade não apenas de um ponto de vista quantitativo pautado
no que traz mais dor ou prazer, como fazia Bentham, mas também por meio de um ponto de
vista qualitativo, compreendendo que existem felicidades “superiores” e felicidade “inferiores”.
Não por menos, afirmava que:
“É melhor ser uma criatura humana insatisfeita do que um porco satisfeito.”
“É melhor ser um Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito.”
Assim, Mill também compreendia como bom e justo aquilo que trazia felicidade ao maior
número de pessoas, porém, guardava uma visão mais complexa sobre a ideia de utilidade,
à medida que acreditava existirem níveis diferentes de felicidade, o que não ocorria com Ben-
tham, que tinha na objetividade uma das principais características da sua teoria, não realizando
julgamentos morais. Para ele, prazer é prazer e dor é dor, não questionando se corresponderia
a um prazer vil, de modo que a classificação das experiências humanas se fundava unicamen-
te em saber se o prazer era mais ou menos duradouro e intenso.
É preciso esclarecer, contudo, que o ponto de vista qualitativo de Mill não se fundava, ne-
cessariamente, em valores morais externos ao utilitarismo. Ele entendia que o homem, no
geral, é capaz de identificar aqueles prazeres “menores” que, de imediato, parecem ser bons,
mas que a longo prazo lhe causam mais dor que bem-estar. Logo, no que tange ao exame das
ações humanas como boas ou más, justas ou injustas, corretas ou incorretas, seria preciso
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analisar a durabilidade do nível de bem-estar gerado. Isto é, o bem-estar gerado, para fins de
utilidade, deveria ser considerado em longo prazo e não de forma imediatista, sendo adequado
investir naqueles prazeres que, de pronto, até poderão ser “menos prazerosos”, mas, por sua
qualidade, produzirão como efeito o aumento do nível de felicidade, ainda que somente em um
momento futuro.
Um exemplo simples: dedicar um sábado para ler informativos de jurisprudência dos Tribunais
Superiores ou dedicar algumas horas da semana para estudar para provas de concurso público
não são ações que a curto prazo ensejam “prazer” ao estudante, pois há muito mais bem-es-
tar em ver séries e filmes no sofá de casa ou sair para se divertir com os amigos, mas a longo
prazo trazem maior realização e satisfação àquele que ao abrir mão de prazeres imediatos,
foi aprovado no cargo dos sonhos. Ao contrário, o que optou pela felicidade imediata de “ficar
com as séries em dia”, no futuro amargurará a infelicidade das reprovações.
Pra facilitar, um exemplo um pouco mais complexo: visualize uma favela habitada por 100 mil
pessoas, localizada num grande centro urbano e que está dominada pelo tráfico de drogas e
pela violência, até que o governador da cidade propõe a sua explosão, pois isso diminuiria a
criminalidade e reduziria os gastos públicos, garantindo bem-estar a toda a população aterrori-
zada pela onda crescente de crimes. Para um utilitarista clássico, isso até poderia ser razoável,
mas para Mill seria uma solução terrível do ponto de vista da utilidade, pois violar de maneira
tão grave a liberdade de tantas pessoas causaria revolta pelas vidas inocentes ceifadas, levan-
taria questionamentos sobre a humanidade e a competência do governo, gerando instabilida-
de de comando, reduziria o nível de esperança das pessoas na formação de uma sociedade
melhor e de um futuro mais sadio etc.
Resumindo, John Stuart Mill visa aprimorar a teoria de Jeremy Bentham, procurando acres-
centar uma perspectiva mais humana e menos aritmética, atribuindo ao utilitarismo a ideia de
liberdade e apontando que o bem-estar gerado, para fins de utilidade e, consequentemente, de
justiça, deveria ser considerado não apenas de um ponto de visto quantitativo (como fazia Ben-
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Hans Kelsen foi um jurista e filósofo austríaco que em sua obra “Teoria pura do direito”
propôs a concepção do Direito como uma ciência autônoma imune a influências externas,
isto é, defendia um Direito purificado, livre das ingerências da filosofia, da política, da moral da
economia, da religião, da psicologia, da justiça, enfim, livre de qualquer valor ou conhecimento
que não pertencesse ao seu objeto, as normas jurídicas, tendo em vista que essa separação
permitia aproximá-lo da metodologia aplicada as ciências naturais, que firmadas na experi-
mentação e na certeza, eram dotadas de caráter empírico.
Nesse viés, sendo a justiça um valor, seria impossível tentar conferir um parâmetro cientí-
fico para identificar o seu real significado, levando Kelsen a conclusão quanto a inviabilidade
de ser falar na existência um único critério de justiça, de acepção universal, à medida que os
valores são enunciados não científicos determinados e alterados por fatores relacionados ao
tempo, bem como por fatores subjetivos e emocionais relacionados as pessoas.
Destarte, Kelsen refutava a crença da justiça como o produto de um direito natural, seja
como o fruto da razão, seja como fruto de alguma manifestação divina.
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Resumindo, para Hans Kelsen, a justiça, enquanto valor, não possui um conceito único, por se
tratar de um enunciado não científico determinado e alterado por fatores relacionados ao tem-
po, bem como por fatores subjetivos e emocionais relacionados as pessoas.
Nascido em 1899, Alf Ross foi um filósofo e jurista dinamarquês, considerado um dos
criadores do realismo jurídico na Escandinávia. Compreendia que a ideia de justiça estaria
atrelada a ideia de igualdade, sendo a sua expressão. Mas tome cuidado, pois Ross não fazia
referência a igualdade como um dado abstrato, e sim como o resultado da correta aplicação
de uma regra geral no caso concreto.
De acordo com o autor: “(...) a ideia de justiça se resolve na exigência de que uma decisão
seja o resultado da aplicação de uma regra geral. A justiça é a aplicação correta de uma norma,
como coisa oposta à arbitrariedade”.12
Nesse sentido, a justiça seria realizada pelos magistrados por meio da aplicação certeira
das leis, correspondendo a um ideal a ser perseguido pelos bons juízes.
A justiça, concebida desta maneira como um ideal para o juiz (para todo aquele que tem que aplicar
um conjunto determinado de regras ou padrões), é uma ideia poderosa na vida social. Representa o
que se espera de um bom juiz e é aceita pelo próprio juiz como padrão profissional supremo. No que
toca a isto a ideia de justiça faz sentido. Refere-se a fatos observáveis. Qualificar uma decisão de
injusta quer dizer que não foi realizada de acordo com o direito e que atende a um erro (injusta em
sentido objetivo), ou a um desvio consciente da lei (injusta em sentido subjetivo). Dizer que um juiz
cometeu uma injustiça (subjetivamente) significa que se deixou guiar por interesses pessoais, pela
amizade em relação a uma das partes, pelo desejo de agradar aos que estão no poder, ou por outros
motivos que o afastam do acatamento do que ordena a lei.i
Com efeito, uma decisão que contrariasse a jurisprudência deveria ser considerada injusta,
pois violadora da igualdade, tendo em vista se tratar de uma decisão que “emana da individu-
12
ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2000. p. 326.
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alidade ou subjetividade de um juiz particular em contraste com o que é típico dos juízes em
conjunto”.13
“Está claro, pois, que uma exigência geral indiscriminada de que todos sejam tratados de
igual maneira, só significa que o tratamento dado a cada pessoa deve seguir regras gerais.”
Resumindo, para Alf Ross, a justiça é uma expressão da igualdade enquanto resultado da cor-
reta interpretação e aplicação das leis ao caso concreto. É, assim, realizada pelos bons juízes
por meio da aplicação e interpretação das leis, sendo um ideal a ser por eles perseguido.
13
ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2000. p. 331.
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Para Rawls, as cláusulas do contrato social devem proporcionar equidade (Justice as fairness).
Aliás, por retornar a ideia de contrato social é chamado de neocontratualista.
Ao retornar a ideia de contrato social, porém, não o fez por meio de uma perspectiva histó-
rica, mas hipotética. Rawls se valeu de um experimento mental chamado de posição original
em que os homens estariam sobre o que denominou de véu da ignorância, oportunidade em
que definiriam os princípios da justiça regentes da sociedade.
Anote!
É por meio do véu da ignorância que se consegue extrair os princípios da justiça.
O que Rawls está afirmando pode ser visualizado da seguinte maneira: imagine que as pes-
soas, numa posição de absoluta igualdade, estariam reunidas para debater os princípios da or-
dem social. Como estão sob o véu da ignorância, isto é, como não tem noção da classe social,
do gênero, da etnia, da religião, da nacionalidade, da profissão, da renda, do nível intelectual, da
idade, do seu estado de saúde físico e mental, se serão saudáveis ou doentes etc., que ocupa-
rão nessa sociedade, essas pessoas se empenharão para fixar as melhores regras possíveis,
não buscando favorecimentos, afinal, não sabem se isso as prejudicaria ou as beneficiaria.
As razões que levariam as pessoas a escolherem essas regras seriam completamente
destinadas a garantir, de maneira totalmente igualitária, que cada um recebesse os bens ne-
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A metáfora da posição original (sob o véu da ignorância) é o fundamento racional da teoria da
justiça de Rawls, indicando também o momento inicial em que os homens, numa posição de
absoluta igualdade, debateriam os princípios da ordem social.
E aqui surge a importante pergunta: quais seriam então os princípios da justiça adotados
por essas pessoas sob o véu da ignorância?
1º Princípio da justiça) Princípio das liberdades básicas (direitos civis e políticos): cada
pessoa tem o mesmo direito inalienável a um sistema plenamente adequado de liberdades
fundamentais que seja compatível com o sistema idêntico de liberdades para todos.
É dizer: todas as pessoas devem ser munidas de um conjunto mínimo de liberdades bási-
cas a exemplo do direito de ir e vir, da liberdade de expressão, da liberdade religiosa, do direito
voto, enfim, dos direitos civis e políticos no geral.
2º Princípio da justiça) Princípio da diferença: em uma sociedade justa, por mais que se
promova inicialmente uma igual distribuição de bens sociais, o surgimento de diferenças so-
ciais e econômicas são inevitáveis, sendo inviável imaginar uma sociedade completamente
igualitária à medida que os próprios seres humanos são dotados de dons, talentos e capacida-
des distintas, bens naturais que não podem ser alterados ou redistribuídos.
O que Rawls defende, no entanto, é que surgindo as diferenças sociais e econômicas elas
devem ser organizadas de modo a satisfazerem duas condições:
a) Oportunidade justa (igualdade de oportunidades): devem estar vinculadas a cargos e
funções abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades, ou seja, to-
das as posições e cargos na sociedade devem estar ao alcance de qualquer um.
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b) Maximização dos benefícios para aqueles que possuem o mínimo de vantagem: devem
ser distribuídas de modo que beneficiem a todos, principalmente os membros menos privile-
giados da sociedade.
Essa proposta de justiça de Rawls vai, portanto, tentar conciliar a liberdade, com a igualda-
de e com a fraternidade.
O primeiro aspecto da justiça é a tentativa de consagrar o valor da liberdade, no sentido
que todos gozam do mesmo direito inalienável a um tratamento igual no que diz respeito às
liberdades básicas.
O segundo aspecto do conceito de justiça se divide em duas ideias: em primeiro lugar, deve
se buscar conciliar a ideia de igual liberdade com a ideia de igualdade, que no conceito de justi-
ça de Rawls é tratada como igualdade de oportunidades. Significa dizer que a sociedade deve
ser estruturada de um modo em que seja capaz de oferecer situações isonômicas de oportu-
nidades a cada um dos cidadãos. E cuidado, pois, aqui, a busca por igualdade de oportunidade
não corresponde ao desejo de se alcançar uma igualdade total de todos e tudo, já que esta é
uma busca infrutífera pelo simples fato de que, como vimos, as pessoas são definitivamente
desiguais.
O justo residiria na oferta de um mesmo ponto de partida para cada um dos indivíduos, de
modo que, daí para frente, se todos se encontram em iguais condições, por exemplo, educacio-
nal, pois é oferecido a cada membro da sociedade um ensino público de boa qualidade, fala-se
em justiça.
Então, percebam a lógica do raciocínio de Rawls: ele compreende que a partir do momento
que a sociedade garante a cada um dos seus componentes aquilo que, por exemplo, o Ministro
do STF Luís Roberto Barroso chama de mínimo existencial, está garantindo a possibilidade de
todos estarem no mesmo ponto de partida, o que não elimina a possibilidade de haver diferen-
ça entre as pessoas e as suas capacidades.
Observem que se o princípio da liberdade está associado aos direitos de primeira dimen-
são (direitos civis e políticos), o princípio da diferença acaba por conferir uma posição de des-
taque aos direitos de segunda dimensão (direitos sociais, econômicos e culturais), atuando
como fundamento de justificação das políticas afirmativas, instrumentos que seriam capazes
de reduzir a distribuição de riquezas a partir de critérios unicamente arbitrários.
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John Rawls é certamente o principal teórico das cotas. Defendia que os processos seletivos
deveriam ser fielmente orientados pelo princípio da diferença, conferindo oportunidades equâ-
nimes aos menos privilegiados.
14
Certo.
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É válido salientar que Rawls é um ferrenho crítico do utilitarismo, sendo a proteção dos
direitos individuais a ideia central da sua teoria e um valor inegociável tanto para ele como
para as pessoas quando da posição original, que não optariam pelo critério da utilidade como
princípio maior, supondo que desejariam ser tratadas com dignidade. É que uma vez que o
utilitarismo não considera as diferenças entre as pessoas, estas, sob o véu da ignorância, não
trocariam seus direitos e liberdades fundamentais por quaisquer vantagens “menores”, como
as econômicas.
Mas a teoria rawlseniana também é objeto das mais variadas críticas. A principal delas é
que, apesar de se tratar de um pensamento coerente, é excessivamente abstrato, formal e utó-
pico, partindo de um pressuposto simplificador da realidade social, tendo em vista considerar
os valores liberais como valores de aplicação universal e que os responsáveis pela confecção
do contrato social são pessoas puramente racionais e isoladas de qualquer contexto histórico.
Não haveria nenhum elemento humano no modelo de justiça de Rawls, que ao ignorar por com-
pleto questões relacionadas ao afeto, a condição social, ao gênero etc., é somente racional.
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É uma teoria que desconsideraria que as sociedades revelam distintas maneiras de pensar
o direito, a moral, os valores e as prioridades. Isso teria ficado claro, por exemplo, após a queda
do muro de Berlim e o colapso do bloco soviético, quando se pensou ter sido estabelecido o
triunfo da democracia liberal com a exportação universal dos seus valores, o que não se mos-
trou tão verdadeiro diante das diferenças culturais verificadas principalmente no Oriente.
Ganha destaque aqui o pensamento comunitarista, que muito embora não abranja teorias
completamente homogêneas, tem em comum a ideia de reputar o modelo de Rawls carente de
coerência filosófica ao construir princípios de justiça que ignoram o ambiente social em que o
indivíduo se desenvolve, bem como os costumes e as tradições que constituem determinada
sociedade e influenciam na definição dos princípios e modelos de organização política e so-
cial. No comunitarismo, compreende-se que os valores morais derivam de uma construção co-
letiva que tem origem na tradição das comunidades e que são observadas por seus membros
orientando a ação políticas em favor do bem comum.
Em última análise, a ideia de uma “posição original” reduziria as pessoas “sob o véu da
ignorância” a uma única pessoa.
A resposta de Rawls as críticas vieram pelas obras “Liberalismo Político” e “Justiça como
equidade”, onde acrescentou novos conceitos a sua teoria, sendo os principais o equilíbrio
reflexivo e o consenso sobreposto.
O equilíbrio reflexivo é uma etapa posterior à posição original, quando encerrada a etapa
do véu. Trata-se da verificação da necessidade de os princípios da justiça serem mantidos ou
revisados.
Denis Coitinho Silveira elucida que:
O equilíbrio reflexivo significa um estado de coisas em que é possível perceber avanços e recuos,
pois em alguns casos é necessário alterar as condições iniciais do contrato, outras vezes é impera-
tiva a modificação dos juízos morais para acordarem com os princípios. Este equilíbrio possibilita
a melhor configuração da situação inicial equitativa, pois (a) expressa pressuposições razoáveis e
(b) produz princípios que combinam com os juízos morais comuns. Note-se que é um procedimento
coerentista que visa a justificação com base nessa correspondência entre os juízos e os princípios
morais no interior da posição original.15
15
Silveira, Denis Coitinho. Posição Original e Equilíbrio Reflexivo em John Rawls: O Problema da Justificação.
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Quanto ao consenso sobreposto, é preciso destacar que Rawls visa a construção de uma
teoria da justiça para as democracias, se deparando com um problema muito próprio delas: o
pluralismo.
O próprio, aliás, afirmava que o elemento caracterizador das democracias modernas é
aquilo que denominou de “o fato do pluralismo”, isto é, as sociedades democráticas são com-
postas por pessoas que tem as mais diferentes visões de mundo.
Dentro da nossa sociedade brasileira, por exemplo, nós temos uma série de religiões so-
cialmente aceitas. Então é possível ser católico, ser espírita, ser evangélico, ser das religiões
africanas. É possível manifestar uma ideologia liberal, uma ideologia socialista, é possível ado-
tar uma moral clássica, uma moral moderna, uma moral utilitarista. Portanto, uma justiça que
busque pensar o mundo democrático, teria que ser uma justiça capaz de conciliar essas várias
visões de mundo presentes dentro de uma só contexto social.
Nesse sentido, Rawls aponta que o consenso sobreposto se destina a identificar os pontos
de intersecção (ou de convergência) entre as diferentes visões de mundo existentes na socie-
dade, de modo que sejam nestes pontos identificados os princípios de justiça.
E como alcançar esse ponto de convergência? Por meio da construção de uma concepção
política de justiça, que não leve em consideração visões metafísicas e particulares, mas que
derive de um consenso político que considere a pluralidade de concepções de justiça existen-
tes.
O neocontratualismo rawlsiano, pressupõe, então, um ponto de tangência (ou de conver-
gência) no que se refere aos diferentes interesses e agendas políticas dos grupos sociais e, ou,
ainda, movimentos sociais organizados politicamente.
Assim, para John Rawls, a justiça na democracia sempre terá um conceito relativo.
Rawls vai dizer que o limite dessa justiça relativa se encontra no razoável, isto é, nas ra-
zões públicas. E para ele razoável significa aquela justiça que respeita as liberdades e as igual-
dades do cidadão, permitindo a adoção de uma série de posições igualmente válidas.
Ele dizia mais ou menos o seguinte: diferentemente das sociedades antigas em que as
pessoas se estruturavam em torno de uma determinada religião, filosofia ou visão de mundo,
as sociedades modernas se estruturam em torno da Constituição, de modo que uma justiça
democrática deve buscar o consenso político.
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Nesse cenário, o princípio das razões públicas assume um papel importante. Esse princí-
pio deriva da ideia de “razões públicas” originariamente trabalhada na filosofia kantiana, mas
que foi desenvolvida mais recentemente por Rawls. A ideia de razões públicas é guiada pela
razoabilidade (senso social de justiça) e deve prevalecer quando os cidadãos, na argumen-
tação política, aquela de âmbito público, lidarem com situações que envolvam temas consti-
tucionais essenciais e questões básicas de justiça, como aqueles concernentes aos direitos
humanos, por exemplo, limitando que somente poderão se valer de argumentos isentos de
conteúdo religioso ou metafísico.
No campo privado, porém, que envolve discussões no âmbito familiar, nas entidades re-
ligiosas, nas associações etc., esse limite não se aplica, sendo a razão privada guiada pela
racionalidade (concepções particulares).
2. Espécies de Justiça
Em que pese a diversidade de percepções, existem algumas espécies de justiça tradicio-
nalmente utilizadas na Filosofia do Direito e que nada mais são do que evoluções
dos conceitos expostos por Aristóteles.
São elas: justiça comutativa, justiça social e justiça distributiva.
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Para memorizar!
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QUESTÃO DISCURSIVA
Questão 1 (DEFENSORIA PÚBLICA ESTADUAL/DPE-SP/2013/FCC/FORMAÇÃO HU-
MANÍSTICA) Na obra “O que é justiça?”, no capítulo intitulado “a doutrina da justiça de Aristó-
teles”, Hans Kelsen analisa aspectos essenciais da doutrina aristotélica da justiça. Explicite a
análise realizada por Kelsen relativamente aos seguintes pontos:
a) A relação entre a virtude moral e a Doutrina do Meio em Aristóteles.
b) A virtude da justiça em Aristóteles.
B.1. A justiça em sentido geral.
B.2. A justiça em sentido particular (justiça distributiva e justiça corretiva).
Espelho: Espera-se que o candidato consiga explicitar a análise realizada pelo autor acerca da
doutrina da justiça de Aristóteles. Além do conhecimento do conteúdo a ser explicitado, serão
considerados os seguintes aspectos: clareza e correção da escrita (conhecimento do vernácu-
lo), capacidade de síntese e coerência na forma de organização da resposta.
a) O candidato deve capaz de explicitar a análise de Kelsen acerca da Doutrina do meio (me-
sótes) enquanto critério utilizado por Aristóteles para definir e caracterizar as virtudes morais.
b) 1. O candidato deve ser capaz de explicitar a análise de Kelsen sobre o conceito aristotélico
de “justiça em sentido geral”, evidenciando a sua implicação com o problema da legitimidade.
2. O candidato deve ser capaz de explicitar a análise de Kelsen sobre o conceito aristotélico de
“justiça em sentido particular”, evidenciando a sua implicação com o problema da igualdade.
Para tanto, deverá explicar as duas formas da justiça particular: a justiça distributiva e a corre-
tiva.
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