2023 Outros-Celtas

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TRANS 27 (2023)

RESEÑAS / REVIEWS

Salwa Castelo Branco; Susana Moreno Fernandez e António Medeiros (orgs.)


Outros Celtas: Modernidade e Música em Portugal e Espanha. Lisboa: Tinta da
China, 2022. 415 pp. ISBN 978-989-671-722-3.
Inclui bibliografias, fotografias, mapas, índices onomástico e temático.

Jorge Castro Ribeiro (Instituto de Etnomusicologia: Centro de Estudos em Música e Dança /


Universidade de Aveiro)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9456-5306

Este livro é um importante contributo para a discussão do tema transnacional do “celtismo” e da sua
relação multidimensional com a música, a partir de onze perspectivas de autores de Portugal e
Espanha. Resulta do projecto de investigação “O celtismo e as suas repercussões na música na Galiza
e no Norte de Portugal”, dirigido por Salwa Castelo Branco (Catedrática Emérita da Universidade
Nova de Lisboa / INET-md) e Susana Moreno Fernandes (Universidade de Valladolid / SIBE e SEdeM).
Estas duas investigadoras, com sólidas carreiras académicas e de investigação, coordenam a presente
publicação com o antropólogo António Medeiros (ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa).
O livro é formado por doze ensaios, agrupados em quatro secções que criam um interessante
percurso temático e epistemológico: “Celtismos ibéricos”, “Gaita de fole, música celta e identidade”,
“Festivalização”, e “Horizontes celtas”, precedidos por um rico capítulo introdutório designado
“Celtismos na música: contextos, conceitos, perspectivas“, assinado pelos três editores.
“Celtismos Ibéricos” inicia-se com “Música celta: do relato particular à realidade global”. Neste texto
o musicólogo Luis Costa Vásquez analisa o papel do “celtismo” na definição e nas tensões que
sustentaram a construção da identidade galega (ou “galeguismo”) desde o século XIX até ao
presente. A análise explora interpretações de historiadores e outros intelectuais associando práticas
musicais da Galiza às da Bretanha e da Irlanda ou dos “países célticos”. O mito do “celtismo”
configurou-se num tópico inevitável para a música de tradição oral, entendida como um depósito
histórico e uma continuidade daquela herança céltica, o que explica a sua emergência e
reinterpretação em moldes mercantilistas e expandindo os instrumentos e os elementos formais do
meio da música celta, mas também dos modos de criação, produção e difusão próprios do mercado
musical globalizado.
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Outros Celtas 2

O antropólogo António Medeiros em “Rastos de celtas e de lusitanos” retoma a análise da identidade


celta e as suas manifestações históricas e contemporâneas na Galiza, utilizando pequenos relatos de
observações efectuadas durante o seu trabalho de campo, para elaborar reflexões sobre os modos
como esta se foi ideologicamente estruturando e os seus paradoxos e contrastes. Num segundo
momento compara o celtismo com o lusitanismo em Portugal e como cada um foi construído na
literatura. Aponta ainda diferenças nos processos de assimilação e consumos culturais entre a Galiza
e Portugal onde os encaminhamentos dos fluxos dos Festivais intercélticos são lineares, ao passo
que a sua recepção e as apropriações são imprevisíveis.
“«O fundo da y-alma galega»: gaita y música celta en Galicia”, por Javier Campos Calvo-Sotelo,
professor de etnomusicologia, utiliza explora a dimensão histórica da gaita de fole, como esta se
tornou num ícone da Galiza e símbolo da “celticidade”, e como essa aura veio a ser alvo de cepticismo
no início do século XXI criando uma espécie de “celticidade fugitiva” (p.94). O capítulo descreve o
percurso da gaita durante o período pós-franquista, a sua promoção massiva na Galiza, a presença e
cumplicidade em eventos políticos, a estilização e solenização da sua prática performativa, e
finalmente a transgressão e a sua re-semantização.
Llorián García-Flórez, etnomusicólogo, no capítulo “Gaitas oídas, gaitas escuchadas. Celtismo y
auralidad en la banda de gaites Villaviciosa (Asturias)” interroga um processo de identificação do
“asturiano” com o “celta”, que se foi vinculando desde a década de 1970, e que ainda vinga nas
Asturias. Este teria sido o fenómeno-chave nos processos de mudança da prática da gaita asturiana.
As questões emergiram do percurso da Banda de Gaites Villaviciosa, que cresceu no pós-ditadura,
num âmbito em que se tornaram hegemónicas novas formas de conceber a experiência musical e
em que se assistiu a uma nova assemblagem acústica da gaita. Esta surgiu vinculada a valores como
cultura, dignidade ou autonomia, como verdadeira metáfora de uma concepção pós-franquista do
que é “asturiano”, já não folclorizada e estereotipada, mas sim significativamente empoderada. A
gaita foi também capaz de conquistar o espaço público em amplas formações, como o autor mostra
ter acontecido com a banda que acompanhou.
“La gaita-de-fole en Terras de Miranda: imaginarios, apropiaciones y afinidades célticas”, de Susana
Moreno-Fernández analisa os processos de revitalização da gaita-de-fole em Portugal e da sua
reapropriação nas Terras de Miranda do Douro na década de 1990. Apresenta uma panorâmica da
prática e da presença do instrumento ao longo do séc. XX em Portugal e analisa como os discursos
etnográficos o trataram e associaram à interpretação da gaita galega pela sua especial relevância no
marco da corrente transnacional do celtismo musical. Esta influência manifesta-se com clareza num
novo contexto de intercâmbio transfronteiriço de pessoas, ideias e objectos em que músicos,
construtores e promotores começaram a revitalizar o instrumento em zonas diversas de Portugal,
nomeadamente em Lisboa e nas Terras de Miranda do Douro.
Dulce Simões assina “Mimese e celebração transfronteiriça: bandas de gaitas galegas no Norte de
Portugal” centrado nas bandas de gaitas de fole portuguesas criadas a partir do modelo galego e das
experiências musicais de indivíduos e grupos, associando-se a uma ideia de “celticidade” que utiliza
para explicar a sua integração em redes musicais transfronteiriças e transnacionais. Aponta os casos
de Pitões das Júnias, Lebução, Viana do Castelo e Aveiro. Através a análise e trabalho etnográfico
com a Banda de S. Bernardo de Aveiro e o Paradigma de Ourense, entre outros, argumenta-se que a
formação destas bandas activou “relações transfronteiriças e criou redes de ensino e aprendizagem
com professores, músicos, construtores de instrumentos e entidades galegas, entrelaçando políticas
culturais e práticas musicais” (p. 180).
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“O Festival Interceltique de Lorient: um retrato”, pelo antropólogo Jorge Freitas Branco, apresenta
um sugestivo retrato etnográfico a cores, com comida, sabores, emoções, memórias, sons e aromas.
O autor argumenta que este importante festival pós-moderno fomenta o cosmopolitismo na medida
em que promove a inovação, o cruzamento de práticas musicais, o intercâmbio de experiências, a
criação de redes transnacionais e a configuração de identificações e solidariedades, além de
projectar músicos e bandas em grande escala. Duas entrevistas de figuras chaves do interceltismo
musical –o músico Allan Stivell e o director do FIL Lisardo Lombardía– complementam, enriquecem
e aprofundam ainda mais o capítulo e o seu assunto.
Em “Un nuevo mundo sonoro: el Festival Internacional do Mundo Celta de Ortigueira”, a
etnomusicóloga Ana-María Alarcón-Jiménez analisa o processo de mudança que se operou na
música popular galega após o fim da ditadura a partir do caso das primeiras seis edições do histórico
Festival de Ortigueira. Os três eixos principais da mudança em análise são: a consolidação da
Ortigueira como centro de produção musical; a sua transformação num palco internacional, e a sua
configuração como um “espaço de liberdade” (p. 229). Os ecos das transformações locais pela Galiza
são também referidos e analisados com recurso a testemunhos em primeira mão das primeiras
edições com os promotores do festival no seu início. Com o decorrer dos anos Ortigueira passou a
ser um lugar sazonal de espectáculos de programação variada. Esta vila na costa norte da Galiza
tornou-se um centro de produções musicais regulares e num foco de agência juvenil
permanentemente renovada e capaz de instrumentalizar a “música celta” a favor de um projecto
musical específico e único, com consequências a nível local.
Salwa Castelo Branco analisa a trajectória do Festival Intercéltico do Porto (FIP), entre 1986 e 2008,
quando integrou a estratégia de regeneração e promoção de uma nova imagem e identidade da
cidade como pós-industrial. O Festival Intercéltico desempenhou um papel importante neste
processo que procurava articular novas identificações, promover territórios, contribuir para o
desenvolvimento económico e social, e consolidar o antigo, e criar novo capital cultural capaz de
atrair mais turismo. Por um lado, o desígnio de europeização do país gerou oportunidades de
identificação com a Europa simbolizada pelo imaginário celta, que permitia propor um
“reenquadramento da memória colectiva e da reinterpretação da ideia de um legado europeu
comum” (p. 261); por outro a projeção da cidade do Porto na rede da europa Atlântica –Vigo,
Bordéus, Bristol ou Cork– e no interesse em reconfigurar a sua imagem e identidade a partir destes
modelos, incluindo a existência de um Festival Intercéltico. As constatações de que o FIP contribuiu
para criar públicos e mercados para práticas musicais associadas aos rótulos de música celta e folk
em que se integraram músicos e grupos portugueses e estrangeiros, permitiram concluir que a partir
da década de 1990 o FIP colocou o Porto na rede de Festivais europeus de música celta coincidindo
com a expansão máxima desta e dos festivais intercélticos a nível internacional.
“«Celtas» no campo da Nucha: uma aproximação etnográfica, 2012-2017”, de António Medeiros,
leva-nos, dentro de uma reflexão etnográfica ao Festival Folk Celta de Ponte da Barca, realizado de
forma ininterrupta desde 2008, no norte de Portugal, onde têm sido densas e intencionais as
iniciativas relacionadas com a promoção da música e a cultura “celtas”. O autor propõe uma leitura
dos significados destas iniciativas no quadro regional circunvizinho, mas também no quadro ibérico.
Em termos locais, chega a entendê-las como exemplo de proposta de “glocalização inovativa”,
surgida num contexto concelhio desruralizado nas últimas décadas. O conjunto de iniciativas
referidas constitui uma das raras manifestações “celtófilas” mantidas de forma nítida no norte do
país e são entendidas como uma face do processo de europeização, como réplica tardia e localizada
do que John Collis chamou o “segundo período da celtomania”.
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A antropóloga Paula Godinho em “«Menos mal que nos queda Portugal» Celtismo, políticas da
identidade e práticas da cultura” entrecruza a celticidade ficcionada e o distanciamento dos mitos
celtistas nas novas práticas culturais fronteiriças. Propõe um contributo para uma “antropologia do
futuro”, mediante emergências do devir legíveis no presente. Por um lado, a autora analisa um
registo ficcional por um jovem escritor galego, Mario Regueira, cuja interpretação aborda as
questões identitárias ali colocadas em que a celticidade é invocada de maneira difusa. Por outro
lado, Godinho convoca os resultados do seu longo envolvimento com a pesquisa etnográfica nas
zonas raianas do norte de Portugal e na Galiza para dar conta de sociabilidades festivas reiteradas,
só à superfície transmutadas por invenções recentes da tradição. Tendo em atenção a centralidade
das “políticas de identidade” na perspectiva antropológica, foca-se esta análise nas “práticas da
cultura da orla”, conceito este cunhado pela própria autora (Godinho 2011).
O etnomusicólogo Enrique Camara de Landa em “Taranis: horizontes de la música celta en España”
reflecte sobre como este fenómeno polifacetado e transcultural que é o “celtismo musical” pode
acolher infindas “paisagens e horizontes”. Fá-lo por intermédio da aproximação ao Grupo Taránis, e
da respectiva praxis pedagógica e artística assente num “imaginário celta”. Para o grupo, constituído
por Chus e David, as fontes escritas que consultam e interpretam de modo idiossincrático constituem
referentes importantes dos seus espectáculos itinerantes e da sua música. O seu campo de acção
tem epicentro no Noroeste peninsular, onde se configuraram movimentos de recuperação e
recriação da “cultura celta”. Estes movimentos surgiram no âmbito de uma geografia em expansão
e propõem encenações do passado em festivais, festas e mercados. O grupo Taranis tem percorrido
longos caminhos na Península Ibérica, usando o passado para encenar uma cultura cujos valores já
não se reconhecem no presente e que são exaltadas no âmbito da missão que se atribuem de
“idealização transcultural”.
Este livro vem colmatar uma lacuna na bibliografia sobre o “celtismo” na península ibérica e
complementar os estudos transfronteiriços existentes envolvendo Portugal e Espanha nos domínios
da cultura expressiva e, especialmente, na música e dança. O movimento internacional em torno do
celtismo, tal como o propõe Michael Dietler (2006), distinguindo-o de “celticidade” e “celtitude”, no
seu livro sobre o consumo do passado na era da globalização, tem sido um ingrediente de grande
importância na construção de identidades na Galiza, Astúrias e no norte de Portugal. Por essa razão
é importante a sua discussão com base na investigação científica e na reflexão crítica sobre as
realidades que caracterizam os processos transfronteiriços de construção da identidade que, por seu
turno, instrumentalizam os patrimónios musicais ancorados na noção do celtismo que marcam o
impacte na Galiza, Astúrias e no norte de Portugal do imaginário celta tal como se desenvolveu em
áreas periféricas da Europa como a Bretanha, a Irlanda, a Escócia, o País de Gales e a Ilha de Man, e
se difundiu a uma escala transnacional.
Mas o conteúdo deste livro vai além desta análise, propondo, implicitamente, novas interpretações,
a partir dos discursos estudados e descritos, como afirma, por exemplo, Lisandro Lombardia,
dirigente do Festival Intrceltique de Lorient em entrevista a Jorge Freitas Branco no seu capítulo
sobre este festival: “com a mundialização que se verifica actualmente, julgo que para um sector de
jovens a música celta constitui um movimento artístico. O que não impede que haja uma referência
de identidade construída pelos intercâmbios estabelecidos [em festivais]” (p. 210).

REFERÊNCIAS
Dietler, Michael. 2006. “Celticism, Celtitude and Celticity: The consumption of the past in the age of
globalization”. Em Celtes et Galois, l’Archeologie face à l’Histoire, 1: Celtes et Galois dans l’histoire,
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l’historiographie et l’ideologie moderne. Actes de la table ronde de Leipzig, 16-17 juin 2005, ed. S. Rieckhoff,
237-248. Glux-em-Glenne: Bibracte, Centre Arechéologique Européen
Godinho, Paula. 2011. “Oír o galo cantar dúas veces” – Identificacións locais, culturas das marxes e construción
da nacións na fronteira entre Portgal e Galicia. Ourense: Imprenta da Depitación.

Cita recomendada
Ribeiro, Jorge Castro. 2023. “Reseña de Salwa Castelo Branco; Susana Moreno Fernandez e António Medeiros (orgs.) Outros Celtas: Modernidade e
Música em Portugal e Espanha”. TRANS-Revista Transcultural de Música/Transcultural Music Review 27 [Fecha de consulta: dd/mm/aa]

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