Razão Visceral Uma Proposta Convergente para o Culto Cristão
Razão Visceral Uma Proposta Convergente para o Culto Cristão
Razão Visceral Uma Proposta Convergente para o Culto Cristão
1a edição: 2020
Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação de fonte.
Capa e Diagramação: Marcos Barboza
Ebook: Yuri Freire
Vivemos tempos em que tudo se relativiza. As pessoas são comumente convidadas a
reuniões que usam jargões evangélicos e terminologias que enganam os incautos. Outros
tantos são convidados a uma espécie de encontro de prazeres emocionais em que o
sentir-se bem é o único motivo de se reunirem. Em tempos assim, de confusões e de
dificuldade em entender o culto público como dádiva das Escrituras e herança da
tradição cristã, é um refrigério termos um texto como Razão Visceral: uma proposta
convergente para o culto cristão, de Gabriel Carvalho. É um texto rico em sua pesquisa,
de leitura acessível a qualquer cristão, e que não deixa dúvida alguma quanto à
importância do culto em si, de seu preparo, de sua ordem e de seus contornos
espirituais. Mesmo sendo um texto que, em alguma medida, privilegia o pensamento
pentecostal, creio ser obra de interesse de toda a Igreja de Cristo em nosso Brasil.
Rev. Joel Theodoro, Doutor em Ministério (Reformed Theological
Seminary), pastor na Igreja Presbiteriana do Brasil no Rio de
Janeiro/RJ
O modo como cultuamos reflete nossa teologia. A regra de oração se torna regra de fé.
Por muito tempo ignoramos esse fato dividindo a nossa existência em mero
intelectualismo ou simples emoções. Este livro, Razão Visceral, apontará um caminho
equilibrado, compreendendo a adoração pública ao Deus triúno com todo o nosso ser.
As influências litúrgicas dos diversos movimentos presentes na Igreja ao longo dos
séculos podem contribuir para uma reflexão madura e contemporânea, e dar luz a uma
adoração que seja reverente às Escrituras, reveladas pelo Pai, fervorosa e piedosa ao
mesmo tempo, nas riquezas da obra de Cristo, o Filho. E que assim possamos caminhar
na discussão sobre a liturgia cristã, construindo pontes e promovendo o equilíbrio,
guiados pelo Santo Espírito de Deus. Que Deus abençoe a sua leitura!
Guilherme Iamarino, escritor na área de Culto e Liturgia, fundador e
vocalista da banda Projeto Sola
A obra que o leitor tem em mãos trata de um assunto inevitável no século XXI para a
Igreja Cristã. Não há dúvida de que ao transformar o Evangelho em produto, muita
gente se habituou a tratar a igreja local como um contexto de consumo. Há muita gente
à procura de um lugar onde suas demandas estéticas e afetivas sejam satisfeitas.
Entretanto, um princípio básico é que o culto só ‘serve’ às pessoas na medida em que ele
serve a Deus. Seres humanos necessitam de visão beatífica, de contemplação e
maravilhamento para amarem mais a Deus, e desta forma, suas afeições vão sendo
calibradas. Basicamente, Gabriel Carvalho traz nesta obra a importância formativa do
culto cristão. Recupera as implicações pedagógicas da adoração pública como um ato
dirigido a Deus, portanto, formativa em direção a um tipo de ser humano. A forma do
culto não apenas informa, ela forma pessoas. Cada momento da adoração pública
responde a um currículo e integra-se ao discipulado cristão. O autor procura demonstrar
que o culto envolve a totalidade da vida humana: cognição, afeição, imaginação, visão e
senso de temporalidade. Obra essencial em dias auto-afeição e narcisismo,
principalmente aos interessados na estética e na estrutura da reunião visível dos santos
diante do Trino Deus.
Igor Miguel, Mestre em Letras (Hebraico) pela Universidade de São
Paulo, Vice-presidente da Associação Kuyper para Estudos
Interdisciplinares (AKET) e pastor da Igreja Esperança, em Belo
Horizonte (MG).
Razão Visceral surge em um momento oportuno para a igreja evangélica brasileira, por
tratar de um assunto que ainda não tem sido devidamente explorado em nossa seara: a
liturgia cristã. A obra de Gabriel Carvalho apresenta uma proposta litúrgica convergindo
as quatro principais tradições cristãs: demonstrando que o culto, antes de atender as
demandas ou preferências congregacionais, deve ser o ambiente frutífero para um
encontro vibrante do Deus Triúno com a sua igreja reunida. Teologicamente
fundamentado e orientado à prática, Razão Visceral é indispensável para pastores,
líderes de louvor e todo cristão que deseja prestar um culto agradável a Deus.
João Costa, Mestre em Teologia (Reformed Theological Seminary),
professor do IBRMEC, autor do livro “Missional: uma jornada de
devoção à missão”.
Nem sempre a verdade está no meio. Mas quando falamos sobre culto e liturgia,
podemos encontrar a verdade bíblica no equilíbrio entre a formalidade sacramental e a
espontaneidade carismática. Por esse motivo, celebro o livro do professor Gabriel
Carvalho. O ponto alto do livro é a lembrança que a liturgia deve ser trinitária. Servimos
a um Deus Trino e, sendo a liturgia uma expressão de amor, é necessário que essa
adoração esteja integralmente envolvida na pessoa do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
O culto cristão não pode cair nas amarras do subjetivismo, todavia, deve se resguardar
do racionalismo. O racionalismo transparece vigor intelectual quando, muitas vezes,
esconde a vaidade humana mais primária. Devemos cultivar a razão das vísceras.
Recomendo o livro não apenas pela urgência do tema, mas pela leitura agradável de um
texto bem escrito e que dialoga com o melhor das tradições litúrgicas do cristianismo.
Gutierres Fernandes Siqueira, autor dos livros “Revestidos de Poder:
Uma Introdução à Teologia Pentecostal” e “O Espírito e a Palavra”,
ambos publicados pela Editora CPAD. Editor do blog “Teologia
Pentecostal”.
Há quem encontre todas as soluções para as crises litúrgicas das nossas igrejas no século
XVI. Outros pretendem soltar as amarras do passado e avançar em inovações rumo a
uma relação afinada com os novos tempos. Nenhuma dessas radicalizações está
presente na surpreendente obra de Gabriel Carvalho. O autor sabe dialogar com o
conhecimento acadêmico, mas sustenta uma linguagem acessível ao chão da igreja.
Dessa maneira, introduzindo cada capítulo com experiências pessoais, Gabriel apresenta
os pilares do culto na história do protestantismo: a racionalidade das tradições
reformada e sacramental, e o aspecto visceral das tradições evangelical e pentecostal.
Busca as contribuições positivas de cada experiência, deixando de lado as cansativas e
repetitivas críticas aos aspectos negativos. O resultado é uma proposta de culto
convergente, vivo e profundamente cristão, resumido no feliz título deste excelente
livro: Razão Visceral.
André Daniel Reinke, Mestre em Teologia (Faculdades EST), autor dos
livros Atlas Bíblico Ilustrado, pela Editora Hagnos, e Os outros da
Bíblia, pela Thomas Nelson Brasil.
Muitas pessoas têm por certo que o culto simplesmente acontece. Que não precisam
pensar, refletir ou conversar sobre isso. Basta a igreja se reunir e começar a adorar.
Nada mais longe da verdade. Falando mais propriamente de uma teologia do culto, qual
é o seu papel formador na vida cristã? Por que é essencial que a igreja se reúna? O que
torna a reunião de adoração comunitária da igreja de Jesus algo tão essencial? Tenho
dedicado boa parte de minha vida a responder essas perguntas, e fico extremamente
feliz de ver mais gente séria como Gabriel Carvalho se dedicando a isso também,
buscando ser bíblico, ao mesmo tempo em que respeita as diversas tradições da Igreja
Cristã, sem perder de vista os desafios da contemporaneidade. Somos gratos a Deus pela
contribuição de tantos irmãos ao redor do mundo nessa área, muitos citados aqui nesta
obra, mas também precisamos elaborar uma proposta de culto cristão que seja pensada
e aplicada no chão (diverso e vasto) da igreja brasileira. Que sejamos encorajados, como
pastores, líderes e ministros, a buscar essa razão visceral, integrando mente e coração
em uma adoração que agrade a Deus e que responda aos anseios da humanidade do
século XXI.
Renato Marinoni, Mestre em Teologia (PUC/SP e CPAJ/Mackenzie),
Diretor e Fundador do IACA - Instituto de Adoração, Cultura e Arte,
pastor na Igreja Batista da Metrópole/SP.
Tive a alegria de ler o livro Razão Visceral, e posso dizer que seu conteúdo traz uma
importante contribuição para a discussão sobre as práticas de culto dentro da igreja
evangélica, ao abordar tanto os aspectos didáticos, artísticos e teológicos, bem como as
práticas das diferentes tradições que hoje compõem o universo evangélico. Quando
falamos de culto, e de liturgias, é muito fácil ficarmos no mundo da teoria, sem oferecer
aos leitores e interessados formas de, na prática, aplicarem aquilo que aprenderam, ou
avaliarem se a forma como suas igrejas prestam serviço a Deus poderia ser efetivamente
melhorada ou transformada. Não é o caso com esta obra. O esforço empreendido por
Gabriel em tornar o conteúdo vivo e o diálogo fácil tem um ótimo resultado. Certamente
é mais uma excelente ferramenta para o estudo do culto a Deus, e serve também para
expandir o diálogo, trazer luz e esclarecimento sobre algumas práticas, e especialmente
mais fundamento sobre o pentecostalismo reformado. Deus seja glorificado com esta
obra!
Eduardo Mano, cantor e compositor, fundador do ministério Velhas
Verdades, missionário na Igreja Baptista da Graça, em Lisboa,
Portugal.
À minha amada Bruna,
Amor maior que a Teologia.
AGRADECIMENTOS
Walter McAlister
Sou procurado com uma certa frequência para ler livros na sua fase formativa.
Alguns pedem críticas, outros pedem um prefácio, e ainda outros um endosso. Sendo
um leitor constante, é muito difícil eu ser surpreendido. Geralmente, só aceito
mediante algum conhecimento pessoal do autor. Como conheço um universo
razoavelmente grande de líderes cristãos, isto quer dizer que acabo lendo muitos
livros, fora os que leio para meu trabalho, e os que leio para o meu prazer.
O Gabriel Carvalho é professor no nosso Instituto Bíblico. Ele é um advogado,
blogueiro, mestre, e líder na sua igreja local. Conheço-o há muitos anos. Quando me
pediu para ler o seu livro, mesmo já tendo lido artigos dele no blog do Instituto
Bispo Roberto McAlister de Estudos Cristãos (IBRMEC) e tendo ouvido sua
participação em podcasts do “Igrejeiros”, já esperava algo de bom. Mas, confesso que
fui surpreendido e as minhas expectativas provaram ser muito abaixo da excelência
desta obra.
Esta proposta de diálogo entre as quatro tradições históricas do culto público foi
descrita e documentada com lucidez e graça, mostrando os pontos fortes e fracos de
cada um. A conclusão que leva além do diálogo e recomenda a expressão clara das
quatro no culto é algo que tenho contemplado e procurado fazer ao longo dos
últimos vinte e pouco anos, desde que descobri e abracei a Teologia Reformada,
embora fosse e permaneço um Pentecostal. A minha abertura, sem que isto
redundasse em abandono das minhas origens, fez com que eu valorizasse as quatro
tradições.
Creio que a leitura desta obra, feito com um coração aberto, e sem levantar as
barreiras usuais, em defesa de uma ou outra, pode influenciar a igreja numa direção
saudável, piedosa, inteligente e vigorosa. Recomendo este livro com muito prazer e
planejo fazer dele leitura obrigatória no curso que ministro na Capacitação
Ministerial do IBRMEC, “Fundamentos do Culto Público”.
Boa leitura.
Walter Robert McAlister Junior
Bispo Primaz da Aliança das Igrejas Cristãs Nova Vida, Mestre em
Teologia (Reformed Theological Seminary)
Junho/2020
PREFÁCIO
Nicholas Ellis
Criaturas que jazem nas trevas desde os tempos antigos são revestidas de luz.
(Hino à Luz)
1. Sobre este assunto, veja especialmente Alexander and Gathercole, Heaven on Earth: the Temple in Biblical
Theology (Paternoster, 2004), bem como Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the
Dwelling Place of God (Downers Grove: IVP, 2004).
2. Para outros exemplos da unificação da comunhão entre céu e terra com a adoração ao Todo-Poderoso, veja
Torlief Elgvin, “From Earthly to the Heavenly Temple”, em Craig Evans, The World of Jesus and the Early
Church (Peabody: Hendrickson, 2011), pp, 23–36.
INTRODUÇÃO
Você já deve ter assistido ou ouvido falar de algum daqueles filmes de tragédias
aéreas, em que o avião sofre um pane, ou se choca com alguma coisa no ar. É
interessante como muitas vezes é relatado que houve um problema com as turbinas
do avião, e por conta disso ele perde força e altitude, trazendo perigo aos passageiros
e tripulantes. As turbinas mantêm o avião firme e íntegro em seu propósito e função:
transportar pessoas em segurança de um lugar a outro.
“O culto é a turbina central da igreja na formação de discípulos”, afirma o Bispo
Walter McAlister3. Tudo o que é feito na igreja serve para apoiar o culto e tudo o que
a igreja recebe como consequência decorre dele. A essência de nossas reuniões de
adoração coletiva começa pelo ouvir a Palavra de Deus, mudar nossa forma de
pensar e dedicarmo-nos à obediência. O culto deve ser o lugar que aprendemos a
pensar como cristãos4.
O culto é importante. Poucos teriam a ousadia de afirmar o contrário. Porém há
várias formas de cultuar. As diferentes tradições estruturaram liturgias distintas
para adorar a Deus, e parece que estamos num caminho intransponível, onde cada
um segue sua tradição, ressaltando as qualidades próprias e criticando as
deficiências alheias. D. A. Carson expõe esse cenário muito bem:
Às vezes, parece que, para muitos, há apenas duas alternativas: o tradicionalismo imponente (ou
deveríamos dizer “majestoso”?) e a contemporaneidade de modismo (ou deveríamos dizer “avivada”?).
Somos convidados a escolher entre “como era no princípio, é agora e sempre será, no mundo por vir” e o
“antigo como sendo frio, enquanto o novo é verdadeiro”. Um lado pensa na adoração como algo que
experimentamos, muitas vezes em oposição ao próprio sermão (primeiro temos adoração, e depois o
sermão, como se fossem duas categorias distintas); enquanto o outro lado pensa na adoração como uma
forma elaborada, muitas vezes, contra todo o resto na vida5.
3. MCALISTER, Walter. Como o culto público forma o verdadeiro cristão. 2017. (59m08s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=zhDgRYhTjkc, acesso em 29 MAI 2020.
4. Ibid.
5. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
6. KAUFLIN, Bob. Curso Vida Nova de Teologia Básica, vol. 11, Louvor e Adoração. São Paulo: Vida Nova, ano
2011, p. 235, 236.
7. AVLIS, Diego. Uma introdução ao culto cristão. Medium, Igreja de Cristo, ano 2020. Disponível em:
https://medium.com/igrejadecristo/uma-introdução-ao-culto-cristão-7902f7f9682b, acesso em 19 JUN 2020.
8. WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. 2a edição. São Leopoldo-RS: Sinodal, ano 1997, p. 22 e 23.
9. UNDERHILL, Evelyn apud WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. 2a edição. São Leopoldo-RS:
Sinodal, ano 1997, p. 23.
PARTE 1
LANÇANDO AS BASES
CAPÍTULO 1
As ocasiões em que a igreja se reúne para cultuar, por mais que Deus seja
adorado nelas, têm a responsabilidade colateral de educar, informar e transformar a
mente daqueles que delas participam, de treinar o povo de Deus em justiça, de
expandir seus horizontes não só para que eles conheçam melhor Deus, mas para que
também compreendam mais adequadamente as dimensões da igreja que Ele redimiu
por intermédio da morte de seu Filho12.
Por que, então, não vemos uma diferença substancial na espiritualidade da
igreja, de forma geral? Como pode ainda haver tanta imaturidade e carnalidade em
nossos arraiais, se semanalmente milhões de cristãos se reúnem nas igrejas ao redor
do mundo? A quantidade de cultos não deveria ser diretamente proporcional ao
crescimento espiritual do povo de Deus?
A. W. Tozer faz um diagnóstico preocupante: nos tornamos uma geração que
perdeu rapidamente todo senso de sacralidade divina em nossa adoração. Para ele,
boa parte da culpa para esse fato é uma aceitação crescente de um secularismo
mundano, que parece muito mais atraente que qualquer fome ou sede de vida
espiritual que agrade a Deus. Muitos dos que criamos em nossas igrejas não pensam
mais em termos de reverência, o que parece indicar que duvidam que a presença de
Deus esteja ali13.
Só que Deus, por vezes, não nos revela tudo. Ou, pelo menos, não tudo o que
queremos. A Revelação divina nas Escrituras é suficiente, não exaustiva. Deus
revelou o necessário, não a totalidade das coisas. E reconhecer que não sabemos
tudo, em pleno século dos avanços tecnológicos, é quase como uma sentença de
morte. Até porque, em nosso mundo, conhecimento é vida. Quem não sabe, está
morto para aquele assunto.
Apesar de não haver uma lista descritiva plena de todos os passos de um culto a
Deus, Ele nos deixou princípios, que foram muito bem absorvidos pelas diferentes
tradições. E aí que entra o conceito de razão visceral: já que tantos irmãos de origens
tão diferentes se esmeraram na busca por um culto mais coerente e agradável a
Deus, e uma vez que a Bíblia não nos prescreve explicitamente um modelo de culto,
por que não somar os esforços, a fim de construir uma liturgia que englobe as
qualidades de cada um deles?
Creio que a união de uma perspectiva mais tradicional e organizada de culto –
aqui chamado de “razão” -, caracterizado pelas tradições reformada e sacramental,
com uma perspectiva mais contemporânea e espontânea de culto – aqui chamado de
“visceral” -, caracterizado pelas tradições evangelical e pentecostal, seria
extremamente proveitosa para a igreja.
Não pretendo, com isso, formar uma “quinta via” de modelo litúrgico. Como já
dito, essas são reflexões de “chão de igreja”, preocupadas com a vida prática da
igreja. O conceito litúrgico de Razão Visceral não necessariamente precisa integrar
os postulados teológicos da Academia. Se chegar aos púlpitos e bancos das igrejas, o
objetivo já terá sido alcançado.
Por fim, guardemos o precioso alerta de D. A. Carson, que faz uma analogia com
a atividade do mecânico de automóveis: nós não esperamos, ao ir a uma oficina, que
o profissional fique falando a respeito da excelência das ferramentas que ele usa;
nossa expectativa é que ele conserte o carro. O mecânico deve saber usar as
ferramentas, de forma que elas contribuam para o objetivo principal. Da mesma
forma, não devemos nos concentrar nos meios de operacionalização do culto, com
todos os seus detalhes e implicações, a ponto de perdermos de vista a concentração
no objeto supremo da nossa adoração, o próprio Deus24.
10. PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura contemporânea e analítica do Princípio
Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019. Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
11. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon: Cascade
Books, ano 2012.
12. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
13. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
14. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, ano
2018, p. 136.
15. Ibid, p. 136.
16. Ibid, p. 156.
17. SHEDD, Russel. Adoração Bíblica: os fundamentos da verdadeira adoração. São Paulo: Vida Nova, ano 2007,
p. 12, 13.
18. Ibid, p. 15.
19. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
20. Ibid.
21. Ibid.
22. Ibid.
23. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
24. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
CAPÍTULO 2
Ano: 2015. Lua-de-mel. Paris. Nos dias finais de nossa estadia na cidade,
resolvemos visitar algumas atrações que não tínhamos planejado, por conta de um
passe turístico que dava direito à entrada em diversos pontos turísticos e
monumentos da cidade. Estavam incluídas a visitação a algumas igrejas. Não
entramos em nenhuma – nem Sacre Coeur, nem Notre Dame. Até hoje não sei o
porquê – deve ter sido meu inconsciente formativo pentecostal que, até então,
tratava com desdém tudo que remetesse ou lembrasse, mesmo que de longe, a
“catolicismos suntuosos” e “idolatrias imagéticas”. Um preconceito irrefletido que
teve um fim naquele dia.
Por uma providência que hoje reputo divina, em meio a um tempo meio nublado,
que anunciava uma chuva em breve, resolvemos entrar em uma das igrejas incluídas
no passe. Lembro-me de haver torcido o nariz, pois não consegui ver a entrada dela,
e até a porta nada havia me impressionado – apenas prédios muito antigos em tons
pastéis com letreiros medievais. No primeiro andar, um salão para abrigar os
turistas, com balcão de informações e loja de souvenirs – eles vendiam réplicas de
vitrais da referida igreja. Pensei comigo: “Alguém compra esse tipo de lembrança?”
Ao subir as escadas para o segundo andar, onde fica o templo principal, sem
expectativas, fui tomado de assalto por uma visão inebriante: poucas vezes na vida
fiquei tão estupefato. Visão incrédula, boca sem palavras. Era a Saint-Chapelle.
Completamente rodeada de vitrais em tons meio roxos, que estavam sendo
iluminados pelo esparsos raios de sol daquele fim de dia meio nublado. O reflexo
daquela imagem meio que me paralisou.
O impacto visual daquela arquitetura e da arte de extremo bom gosto, somadas à
explicação do guia a respeito do desenvolvimento da história bíblica que é contada
por meio dos vitrais me deixou impressionado, e depois reflexivo. Ao descer, antes
de ir embora, passei na loja de souvenirs e admiti: “Agora eu entendo porque
compram isso!”. Caso queiram saber como é essa réplica, é só ir em minha casa...
Deus é o Senhor de toda beleza. Ele tem depositado algo dentro do ser humano
que é capaz de entender e de apreciar a beleza. Deus tem colocado dentro de nós o
amor pelas formas harmônicas, o gosto e a apreciação pela cor e pelos sons bonitos.
Aquele que é todo belo está lá. Ele é o Senhor de toda beleza29.
A beleza de Deus é uma realidade bíblica. Por toda a Escritura Ele é reconhecido
e louvado por ser belo. Sua beleza pede uma resposta que é forjada por essa mesma
beleza. E isso é arte30. Precisamos apenas “desligar o modo automático” que nos
acostumamos a viver e acordar para este fato, e começar a perceber a beleza ao nosso
redor.
Sendo assim, precisamos entender a arte como uma tentativa, um ímpeto
humano de reproduzir a beleza criada por Deus. Giorgio Vasari resume essa ideia
dessa forma:
Por certo o plano existia em absoluta perfeição antes da Criação, quando Deus Todo-Poderoso, tendo feito
a vasta expansão do universo e adornado os céus com luzes brilhantes, direcionou seu intelecto criativo
para o ar puro e a terra sólida. E então, no ato de criar os homens, ele concebeu as primeiras formas de
pintura e escultura na graça sublime das coisas criadas. É inegável que os homens, as estátuas e as peças
de escultura, bem como os desafios das poses e contornos derivaram-se de um primeiro modelo perfeito.
Quanto às primeiras pinturas, quaisquer que tenham sido, as ideias de suavidade e de unidade e a
harmonia conflitante estabelecida entre luz e sombra derivaram-se da mesma fonte. Estou certo de que
qualquer um que considere a questão cuidadosamente chegará às mesmas conclusões que cheguei: a
origem das artes que estamos discutindo foi a própria natureza e a primeira imagem ou modelo foi o belo
tecido do mundo. O Mestre que nos ensinou foi aquela luz divina infundida em nós pela graça especial, a
qual nos tem tornado não somente superiores à criação animal, como também, alguém poderia dizer,
semelhantes ao próprio Deus31.
Podemos definir, então, que a boa arte tem certas qualidades em comum com a
religião, pois ambas tratam do inexprimível. Por isso, transformar as mensagens
religiosas em formas artísticas significa proteger essa multidimensão religiosa,
apontando para a transcendência em uma forma tangível32. É uma tentativa de
traduzir o que está acima da compreensão humana. Temos fome do belo porque
servimos a um Deus belo33.
Lisa DeBoer afirma que a arte é profundamente compatível com a experiência
transcendente e religiosa. Isso significa que uma arte de qualidade e bom gosto tem
um caráter espiritual. Já que o papel da igreja é tocar e envolver o espiritual, e
crendo que todo assunto é espiritual, concluímos inevitavelmente que o espiritual
está nas artes34.
A igreja e as artes
Historicamente, a igreja sempre teve uma boa relação com as artes. Durante a
Idade Média, vimos a construção das grandes catedrais que, além de grande beleza,
eram portadoras de um profundo simbolismo35. Algumas vertentes da Reforma
Protestante, mas principalmente o movimento puritano, caminharam em direção a
uma simplicidade nos aspectos da adoração coletiva. Essa simplicidade afastou-os
não apenas da tradição anglicana e luterana, mas também das práticas das igrejas
reformadas continentais. Esse movimento à simplicidade foi tão profundo que
promoveu uma arquitetura distintiva da igreja naquela época36.
Com a chegada e consequente influência do pentecostalismo, esse local de culto
que era marcado por traços típicos como barrocos e góticos, foi se adaptando à
realidade da população e a necessidade de uma proximidade para com as culturas
locais, e assim, tornando o ambiente de culto cada vez mais simples. Para estes, não
são necessários locais trabalhados para realizar uma reunião religiosa, mas apenas a
presença das pessoas37. Em nossos dias, as artes, a apreciação da beleza e os dons
criativos têm sido relegados e rotulados como não espirituais, sendo completamente
desprezado por muitos38.
Muito do preconceito com a arte vem do falso pressuposto, principalmente em
nosso país, de que expressões artísticas são questões reservadas a uma elite
intelectual, cultural e financeira. Afastamos a arte do homem comum. A elitização do
artístico prestou um desserviço à correta consideração e apreciação da beleza em
nossa sociedade.
Jaci Maraschin faz um bom diagnóstico deste fato, ao dizer que a confusão da
estética com a riqueza transformou obras de artes em mercadorias elitizadas, nos
levando a uma falsa relação entre beleza e ostentação. Precisamos superar a
confusão semântica entre beleza e luxo. Por exemplo, quando comparamos as vestes
de Salomão com as “vestes” dos lírios do campo, não podemos falar em termos de
luxo, pois somente Salomão poderia ter luxo. Os lírios possuem apenas beleza39.
Francis Schaeffer se tornou uma importante fonte de reflexão a respeito da
relação da igreja com as artes. Ele afirma que o senhorio de Cristo deve incluir o
interesse pela arte, e o cristão deve usar a arte para glorificar a Deus, como algo belo
para a glória de Deus40. Seu filho Frank, apesar de sua inaceitável postura atual em
relação à fé cristã, escreveu há alguns anos corroborando o pensamento de Francis,
ao dizer que o melhor da visão da Igreja afirma que as artes e toda a beleza que Deus
colocou em nossa vida é um dom gracioso e benéfico que vem do nosso Pai
Celestial41.
Arte e liturgia
Mas o que tudo isso tem a ver com a realidade do culto e da adoração coletiva?
Por que devemos falar sobre arte e beleza em um livro sobre questões litúrgicas?
José Paulo Antunes ajuda a formular essa resposta ao dizer que as várias linguagens
e expressões de arte são um meio privilegiado, através do qual a ação litúrgica
acontece. A linguagem artística tem revelado, ao longo de todos os tempos, uma
especial aptidão para exprimir e concretizar este diálogo entre Deus e o Homem e
realizar o seu plano salvífico. Por isso, a Arte está presente na liturgia42.
A arte é uma janela para a alma43. A pintura, por exemplo, pode tornar-se uma
janela através da qual um mundo confuso olha e vê a ordem sadia da criação de
Deus. A música, por outro lado, pode tornar-se um eco orquestrado da voz que os
ouvidos cansados da humanidade há séculos têm ansiado ouvir. Essa é arte por meio
da qual Deus é visto e ouvido, na qual Ele é encarnado, é “detalhado” em pintura e
tinta, em pedra, em movimento criativo44. Isso é, dentre outras coisas, liturgia e
adoração.
Talvez o melhor exemplo da relação entre arte e liturgia seja a própria
arquitetura do prédio da igreja. Será que a forma como uma igreja é construída
influencia na adoração coletiva de um povo? Todo estilo arquitetônico comunica
algo. Ao longo da história, quem esteve na liderança da igreja se preocupou com
como a arquitetura iria comunicar a mensagem do Evangelho45.
O abade beneditino Sugério de S. Dinis, um dos mentores do estilo gótico,
afirmou certa vez: “A beleza duma igreja é antecipação da beleza celeste. Embora
constituída por elementos materiais, ela procura ao homem um júbilo espiritual
que o transporta do mundo terreno para o sobrenatural”46. Estamos reaprendendo
que o povo que vai à igreja recebe um poderoso efeito psicológico para a sua visão da
Igreja por tudo aquilo que o edifício diz. O que o edifício comunica, com frequência,
diz inteiramente o contrário daquilo que buscamos expressar por meio da liturgia47.
Mas isso significa que agora devemos voltar a construir catedrais e basílicas aos
moldes da Idade Média? Certamente seria um excesso pensar dessa forma. Sumio
Takatsu entende que essa é uma tentação para quem começa a observar o que temos
dito sobre as artes: tentar recriar uma estética de basílicas romanas revestidas de um
ar de contemporaneidade48. Ele afirma:
A solução para o problema de projetar uma igreja moderna não está em substituir a planta do século XIV
por uma do século IV. A basílica pertence a um época em que os materiais de construção estavam
limitadas às pedras e madeiras. Hoje, graças aos novos materiais e sistemas estruturais, temos meios de
criar relações de espaços incomparavelmente mais sutis e mais expressivas do que as basílicas. Por outro
lado, todas as tentativas de reproduzir formas externas de uma outra época, por mais excelente que seja o
período escolhido, são desvios49.
A arquitetura da Igreja como espaço e funcionalidade não deve ser uma imitação
de uma forma passada, ela deve representar a cosmovisão de um tempo, do seu
povo, na sua realidade. A arquitetura deve representar o seu tempo50. Francis
Schaeffer concorda com esse ponto, ao dizer que a arte cristã dos dias atuais deve ser
uma arte do século atual, uma vez que a arte muda, bem como sua linguagem. Ele
afirma ainda que a arte deve variar segundo costumes e culturas locais e nacionais –
seria um desserviço, por exemplo, forçar africanos a usarem arquitetura gótica em
seus templos51.
Lisa DeBoer esclarece que a discussão a respeito da arte como facilitador da
formação espiritual e litúrgica de um povo deve partir da própria igreja local, uma
vez que nem a arte nem a igreja são temas abstratos. Para DeBoer, quando se trata
de entender o papel das artes na igreja local, podemos julgar útil uma consideração
das ideias dominantes daquela congregação, bem como as formas artísticas
dominantes daquela localidade52.
A igreja cristã era um dos maiores patronos das artes, por isso acredito que é
natural que hoje artistas e observadores encontrem a igreja como lar das artes e um
lugar para ouvir a voz de Deus através da expressão artística53. Como John
Westerhof corretamente conclui: “Nossas igrejas pretendem ser obras de arte [...]
Artistas sempre se sentiram em casa em nossas congregações e desempenharam
papel significativo em nossa adoração e vida comunitária”54.
O culto é atividade de formação espiritual. E a arte pode bem ser um excelente
instrumento para impulsionar tanto o aspecto cúltico da adoração coletiva, quanto a
possibilidade de crescimento e formação espiritual dos cristãos. Precisamos pensar
menos na vida espiritual como uma “selva de pedra”, e mais como uma bela obra de
arte, proporcionada pelo Deus que é belo, e razão de toda a beleza.
25. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
26. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
27. STAM, Juan. La belezza como componente esencial de la liturgia: algunos apuntes para uma estética bíblica.
Azusa Revista de Estudos Pentecostais, ano 2012. Disponível em:
<https://azusa.faculdaderefidim.edu.br/index.php/azusa/article/view/27>, acesso em 28 ABR 2020.
28. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
29. Ibid.
30. CARD, Michael. Cristo e Criatividade: rabiscando na areia. Viçosa: Ultimato, ano 2004, p. 28.
31. VASARI, Giorgio apud SCHAEFFER, Frank. Viciados em Mediocridade: Cristianismo Contemporâneo e as
artes. São Paulo: W4 Editora, ano 2011.
32. MARTI, Andreas apud STEFANI, Wolfgang H. N. A discussão cristã contemporânea da música na adoração.
Centro de Estudos Anglicanos, ano 2013. Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/liturgia/a_discussao_crista_contemporanea_da_musica_na_adoracao.
acesso em 19 MAI 2020.
33. CARD, Michael. Cristo e Criatividade: rabiscando na areia. Viçosa: Ultimato, ano 2004, p. 33.
34. DEBOER, LISA J. Visual Arts in the worshiping church. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing
Company, ano 2016.
35. CAIRES, Elon Saúde; SANTOS Junior, Paulo Jonas dos. O espaço do culto cristão e a sua ressignificação no
pentecostalismo. In Totum, ano 2017. Disponível em:
http://revista.fuv.edu.br/index.php/intotum/article/view/1756/1651, acesso em 18 MAI 2020.
36. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
37. CAIRES, Elon Saúde; SANTOS Junior, Paulo Jonas dos. O espaço do culto cristão e a sua ressignificação no
pentecostalismo. In Totum, ano 2017. Disponível em:
http://revista.fuv.edu.br/index.php/intotum/article/view/1756/1651, acesso em 18 MAI 2020.
38. SCHAEFFER, Frank. Viciados em Mediocridade: Cristianismo Contemporâneo e as artes. São Paulo: W4
Editora, ano 2011.
39. MARASCHIN, Jaci apud BELING, Éder. Liturgia e Hermenêutica: da alegria e da beleza. Tear Online, ano
2014. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/tear/article/view/1869/2223, acesso em 14 MAI
2020.
40. SCHAEFFER, Francis A. A arte e a Bíblia. Viçosa: Ultimato, ano 2010, p. 19.
41. SCHAEFFER, Frank. Viciados em Mediocridade: Cristianismo Contemporâneo e as artes. São Paulo: W4
Editora, ano 2011.
42. ANTUNES, José Paulo. Arte e liturgia ou arte litúrgica? Revista da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, Portugal, ano 2004. Disponível em: https://www.meloteca.com/wp-content/uploads/2018/11/arte-e-
liturgia-ou-arte-liturgica.pdf, acesso em 16 MAI 2020.
43. LITTLEFAIR, Duncan apud DEBOER, LISA J. Visual Arts in the worshiping church. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2016.
44. CARD, Michael. Cristo e Criatividade: rabiscando na areia. Viçosa: Ultimato, ano 2004, p. 19.
45. PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura contemporânea e analítica do Princípio
Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019. Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
46. S. DINIS, Sugério de apud DIAS, Geraldo J. A. Coelho. Liturgia e Arte: diálogo exigente e constante entre os
beneditinos. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal, ano 2003. Disponível em:
https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/8823/2/2920.pdf, acesso em 18 MAI 2020.
47. TAKATSU, Sumio. Arquitetura, Liturgia e Evangelização. Centro de Estudos Anglicanos, ano 2012.
Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/liturgia/arquitetura_liturgia_e_evangelizacao.pdf,
acesso em 12 MAI 2020.
48. Ibid.
49. Ibid.
50. LUNARDINI, Bolson. Desafios atuais para a arquitetura na criação das formas e espaços sagrados. Centro de
Estudos Anglicanos, ano 2011. Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/arte/desafios_atuais_para_a_arquitetura.pdf,
acesso em 19 MAI 2020.
51. SCHAEFFER, Francis A. A arte e a Bíblia. Viçosa: Ultimato, ano 2010, p. 63.
52. DEBOER, LISA J. Visual Arts in the worshiping church. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing
Company, ano 2016.
53. Ibid.
54. WESTERHOF, John apud LUNARDINI, Bolson. Desafios atuais para a arquitetura na criação das formas e
espaços sagrados. Centro de Estudos Anglicanos, ano 2011. Disponível em:
http://www.centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/arte/desafios_atuais_para_a_arquitetura.pdf,
acesso em 19 MAI 2020.
CAPÍTULO 3
Ano: 2010. Algo inusitado acontece com um adolescente sem sorte para sorteios
ou para ganhar qualquer coisa de graça: numa semana em que estava sem nenhuma
leitura nova no horizonte, inesperadamente surge, em cima da mesa da sala, um
livro azul com uma “choupana” de madeira coberta de neve, abaixo de uma imagem
noturna de um céu estrelado. Não pensei duas vezes: Vamos à leitura.
Qual não foi minha surpresa ao perceber que aquela história tentava fazer um
paralelo com princípios cristãos. Porém, no decorrer do texto, comecei a me
incomodar com algo que até então era indiferente para mim. A história representava
Deus Pai como uma senhora negra, sorridente e acima do peso; Deus Filho como um
carpinteiro judeu vestido de calça jeans e camisa xadrez; Deus Espírito Santo como
uma mulher asiática.
Como se não bastasse essas associações de, no mínimo, um gosto duvidoso, as
pinceladas de ebionismo, universalismo, e mesmo de conceitos mediúnicos teve um
efeito interessante em mim: uma indignação reveladora! Considerar o conteúdo do
livro absurdo, no fim das contas, foi bom para mim. Eu descobri que não dava a
mínima atenção ao fato de que Deus era uma Trindade – não é que não conhecia a
respeito, mas simplesmente não era relevante pensar em tais coisas até aquele
momento -, e isso perdurou até que alguém ousou mexer nos conceitos e ideias a
respeito de Deus como uma Trindade.
Meu ímpeto cristão de defesa da fé fez-me levantar do “marasmo trinitário”, e
então a doutrina da Trindade passou a, gradualmente (muito mais gradual do que
gostaria) a tomar mais importância prática em meu cotidiano cristão. Ler aquela
publicação, digamos, heterodoxa, foi um grande alerta para o fato de que precisamos
considerar de forma mais comprometida e dedicada os princípios de uma teologia
trinitária, pois essa doutrina, dentre outras coisas, moldará o nosso culto, a nossa
forma de adorar a Deus e, consequentemente, nossa vida cristã de forma global.
Adoração Trinitária
A adoração é sobre Deus; Deus é a Trindade; portanto, a adoração é sobre a
Trindade. A adoração cristã, em outras palavras, é a adoração focada no Deus que se
revelou por meio de Cristo como Pai, Filho e Espírito Santo. Adorar a Trindade é o
centro da devoção cristã59.
Precisamos compreender que a visão trinitária da adoração é o dom para
participar, por meio do Espírito, na comunhão do Filho encarnado com o Pai. Dessa
forma, somos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo na
comunidade, o único corpo de Cristo, que confessa a fé no único Deus, Pai, Filho e
Espírito Santo, e que adora o Pai por meio do Filho no Espírito60.
Vanderson de Sousa Silva sistematiza tais verdades ao dizer que a liturgia cristã é
patrofinalizada, cristomediatizada e pneumato-amalgamada. A despeito das
nomenclaturas assustadoras, o que ele quer informar é que toda oração é dirigida ao
Pai, mediada por Cristo e formada pela ação do Espírito Santo em nós61. Ou seja,
toda relação do ser humano com Deus no contexto do culto deve ser inevitavelmente
trinitária.
Não há como fugir de uma adoração à Trindade. Se não adoramos cada pessoa da
Trindade de forma consciente e dedicada, estaremos adorando de forma incompleta.
Logicamente Deus pode ser referido de forma genérica, porém podemos avançar e
amadurecer muito mais em nossa postura de adoração quando formos diligentes em
estabelecer as devidas distinções e as devidas convergências entre as pessoas da
Trindade em nossos cultos. Precisamos ser intencionalmente mais trinitários em
nossos momentos de adoração coletiva.
O Deus da liturgia é uma Trindade. Quando pensamos na Trindade, tendemos a
pensar na doutrina da Trindade. Uma doutrina não é uma coisa fácil de amar; a
maioria de nós não pode amar termos e fórmulas teológicas. No entanto, o que está
oculto, com e sob a teologia é um entendimento da Trindade que nos transformará62.
A dimensão trinitária da liturgia se expressa na fórmula “Pelo Filho, no Espírito, ao
Pai”63.
É firme e variado o testemunho histórico da igreja acerca da doutrina da
Trindade. Gregório de Nazianzo foi um dos teólogos que se destacou por abordar o
assunto:
Para o melhor de meus poderes, convencerei todas as pessoas a adorarem o Pai, Filho e Espírito Santo
como a única divindade e poder; porque a ele pertencem toda a glória, honra e força para todo o sempre.
Amém64.
Assim que concebo o Um, sou iluminado pelo esplendor dos Três; assim que os distingo, sou levado de
volta ao Um65.
Quando olhamos para a divindade [...] aquilo que concebemos é Um; mas quando olhamos para as
pessoas em quem a Deidade habita, e para aqueles que incansavelmente e com igual glória têm sua
existência a primeira causa - há três a quem adoramos66.
55. WHITE, Susan apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição.
Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
56. LETHAM, Robert. The Holy Trinity and Christian Worship. Mid-America Journal of Theology, ano 2002.
Disponível em: https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/13-lethamTrinity.pdf, acesso em 14
MAI 2020.
57. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz Chover
Produções, ano 2014.
58. EDWARDS, Jonathan apud PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José
dos Campos: Editora Fiel, 2019.
59. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
60. TORRANCE, James apud ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy.
Louvor: análise teológica e prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
61. SILVA, Vanderson de Sousa. Lex orandi – fonte da espiritualidade cristã: aspectos da teologia litúrgico-
espiritual. Revista de Cultura Teológica da PUC-SP, ano 2014. Disponível em:
http://ken.pucsp.br/culturateo/article/view/19227/15083, acesso em 14 MAI 2020.
62. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster, Massachusetts:
Paraclete Press, ano 2008.
63. SANTANA, Luiz Fernando R. A celebração litúrgica como uma mística sacramental. Revista do
Departamento de Teologia da PUC-Rio, ano 2012. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/22290/22290.PDF, acesso em 15 MAI 2020.
64. NAZIANZO, Gregório de apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a
edição. Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
65. Ibid.
66. NAZIANZO, Gregório de apud LETHAM, Robert. The Holy Trinity and Christian Worship. Mid-America
Journal of Theology, ano 2002. Disponível em: https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/13-
lethamTrinity.pdf, acesso em 14 MAI 2020.
67. DAMASCO, João de apud LETHAM, Robert. The Holy Trinity and Christian Worship. Mid-America Journal
of Theology, ano 2002. Disponível em: https://www.midamerica.edu/uploads/files/pdf/journal/13-
lethamTrinity.pdf, acesso em 14 MAI 2020.
68. NAREK, Gregório de apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a
edição. Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
69. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
70. Ibid.
71. ZIZIOULAS, JOHN apud PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição.
Eugene, Oregon: Cascade Books, ano 2012.
72. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
73. Ibid.
74. Ibid.
75. Ibid.
76. Ibid.
77. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
78. PIPER, John. Supremacia de Deus na pregação: teologia, estratégia e espiritualidade do Ministério de
Púlpito. São Paulo: Shedd, ano 2009.
79. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
80. Esse conceito será tratado de forma mais aprofundada mais à frente, quando abordarmos o papel da
pregação no culto cristão.
81. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
82. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
PARTE 2
ERGUENDO A ESTRUTURA: A
RAZÃO
CAPÍTULO 4
Por que é importante preservar a Bíblia como centro de nosso culto? Porque ela
garante nossa teologia para a adoração coletiva. Não há reuniões ou liturgias que não
envolvam teologia. É um engano pensar assim. Não devemos nos perguntar se
nossos cultos possuem ou não teologia, mas sim qual teologia esses encontros estão
proporcionando e ensinando. Adoração e teologia caminham juntas e grande parte
de nossa teologia é influenciada por nossa liturgia89.
Uma das principais formas em que essa teologia flui na liturgia, de forma com
que a Bíblia permaneça em seu lugar de primazia, é na pregação da Palavra de Deus.
Um efeito colateral de considerar a Bíblia como central no culto é ter o momento do
sermão, a pregação da Palavra de Deus como o ponto alto, o clímax do momento de
celebração coletiva na igreja. Tudo converge para a mensagem, para a pregação do
Evangelho.
A pregação é necessária
De acordo com Herminsten Costa, pregar é explicar e aplicar a Palavra aos
nossos ouvintes. O pregador prega o texto, de onde provém a verdade de Deus para o
seu povo. Sem a Palavra, o púlpito torna-se um lugar que no máximo serve como
terapia para aliviar as tensões de um auditório cansado e ansioso em busca de alívio
para as suas necessidades mais imediatamente percebidas. Ele pode conseguir o
alívio do sintoma, mas não a cura para as suas reais necessidades90.
John Frame segue na mesma linha, afirmando que “A pregação e o ensino
explicam as Escrituras e aplicam suas verdades às nossas vidas. É por meio da
pregação da Palavra que Deus normalmente, chama as pessoas a crerem em
Jesus”91. As Escrituras são o Evangelho vivo, capaz de transformar corações e levá-
los até Cristo.
Nas mãos de Deus, o sermão é um meio básico pelo qual ocorre a intervenção
profética direta na vida da fé e da igreja, com os objetivos de consolar, exortar,
edificar. A pregação mostra que a Palavra de Deus não pode se tornar prisioneira da
igreja, mas que também é sempre externa à igreja, uma força viva que atinge a igreja
de fora. Todos os cristãos concordam que a Palavra de Deus é um constituinte
essencial da adoração cristã. Sem ela, o culto não seria um encontro efetivo vivo
entre Deus e seu povo, mas um mero monólogo ou diálogo humano. Não seria um
milagre, mas sim um apego cego, distante e desesperado. O culto seria esvaziado de
sua substância e indistinguível de um culto não-cristão92.
Em alguns setores da igreja, é necessário recuperar a sensação de que o sermão é
realmente parte de nossa adoração. Em algumas igrejas, há uma tendência de ver “a
adoração” como a parte da reunião que (geralmente) acontece antes do sermão – a
parte musical, necessariamente. Essa maneira de falar não ajuda, pois coloca a
pregação fora da “adoração”, implicando que ouvir a proclamação da palavra de
Deus de alguma forma não é culto!93
Na perspectiva reformada, apesar de ser um ato objetivamente humano, um
discurso preparado e operacionalizado por seres humanos, a pregação é, em
primeira instância, um ato divino, governado pelo Deus das Escrituras. Os
pregadores se tornam apenas instrumentos para entregar a mensagem que Deus
deseja comunicar aos seus filhos daquela congregação específica.
Bryan Chapell resume bem esse aspecto da pregação, concluindo que os esforços
humanos dos maiores pregadores são ainda muito fracos e manchados pelo pecado
para serem responsáveis pelo destino eterno das pessoas. A glória da pregação é toda
de Deus. Nós somos sempre humilhados e confortados com o entendimento de que
Ele age além das nossas limitações humanas. De forma bem pastoral, Chapell nos
consola ao dizer que podemos jamais ouvir elogios do mundo, ou sermos pastores de
uma igreja com milhares de membros, mas se tivermos uma vida de piedade
associada a uma clara explanação das Escrituras, isso será suficiente para a ação do
Espírito na pregação para a glória de Deus94.
João Calvino também expressou isso de forma muito coerente:
Deus usa o ministério dos homens para declarar abertamente sua vontade conosco por via oral, como
uma espécie de trabalho delegado, não transferindo a eles seu direito e honra, mas apenas que através de
suas bocas ele possa fazer seu próprio trabalho [...] Deus declara sua consideração por nós quando, dentre
os homens, ele leva alguns para servir como seus embaixadores no mundo, para ser intérpretes de sua
vontade secreta e, em suma, para representar sua pessoa [...] O ministro é um homem insignificante
ressuscitado do pó que fala em nome de Deus95.
Exultação expositiva
Conhecimento e deleite. Sabedoria e prazer. Entendimento e satisfação.
Pensamento e desejo. Essa dualidade é comum na pregação e ministério de John
Piper, dentro do que se convencionou chamar de doutrina do “Hedonismo cristão”
proposto por ele. Isso tem aplicações em diversos aspectos da vida da igreja.
Inclusive da pregação. Pregar conjugando um profundo conhecimento bíblico e
exegético com uma alma alegre e efusiva pelo Evangelho e o Reino de Deus é uma
forma de expressar o conceito de Piper para a pregação, a “exultação expositiva”.
Ela é exultação porque demanda esse grau de deleite e satisfação em Deus, que só
pode ser proporcionada pelo Espírito Santo. Os principais e supremos alvos da
pregação são impossíveis sem a obra miraculosa do Espírito Santo. Sem a sua obra
sobrenatural, nem o pregador nem as pessoas podem ver ou desfrutar a beleza e a
dignidade de Deus99.
O fundamento dessa ação do Espírito na pregação está em Gálatas 3.5: “Aquele
que lhes dá o seu Espírito e opera milagres entre vocês, realiza essas coisas pela
prática da lei ou pela fé com a qual receberam a palavra?” Paulo está nos
orientando em relação ao suprimento do Espírito ao pregador. Um pregador sem
dependência do Espírito não pode afirmar ser um pregador, de fato.
Devemos pregar pelo Espírito. Nós devemos fazê-lo. Mas, apesar disso, outro
deve fazê-lo por meio de nós. É algo profundamente sobrenatural e maravilhoso
entender essa dualidade. É como se os seguintes versículos tomassem essa
conotação: “Já não sou eu quem prego, mas Cristo prega em mim”; “Não fui em
quem pregou, e sim a graça de Deus que esteve comigo”; “Eu preguei, mas quem
pregou não é coisa alguma, e sim Deus, que dá o crescimento”; “Pregue, porque Deus
é quem dá o querer e o realizar da pregação em você”. Trabalhamos na pregação
porque Deus está produzindo o realizar. Ele cria o milagre de falar sustentado pelo
Espírito. Você realiza o milagre100.
Jonathan Edwards expressa a ideia de que não somos meramente passivos nisto.
Não podemos afirmar que Deus faz alguma coisa e nós fazemos o resto. Deus produz
tudo, e nós fazemos tudo. Deus produz tudo, e nós realizamos tudo. Podemos
afirmar isto por crermos que Ele tudo produz, inclusive nossos próprios atos. Deus é
o único autor e fonte, e nós somos apenas os atores. Em diferentes aspectos, somos
totalmente passivos e totalmente ativos101.
Martyn Lloyd-Jones também contribui para o assunto nestes termos:
Um homem pode ter conhecimento e ser meticuloso na preparação de seus sermões, mas, sem a unção do
Espírito Santo, não terá qualquer poder, e a sua pregação não será eficaz102.
Ninguém pode ser cheio do Espírito Santo e não saber o que está acontecendo [...] O enchimento do
Espírito dá clareza de pensamento, clareza de expressão, facilidade de expressão, um profundo senso de
autoridade e confiança na pregação, além da certeza de um poder não de você mesmo, um poder que se
manifesta por todo o nosso ser, e um senso indescritível de alegria [...] Este poder produz a verdadeira
pregação, que é a maior necessidade de todos nós hoje – mais do que nunca. Nada pode substituir este
poder103.
Se ele realmente acredita no que está dizendo, tem de ser comovido pelo que diz; é-lhe impossível não ser
comovido [...] Onde está a paixão na pregação que sempre caracterizou as grandiosas pregações do
passado? Por que os pregadores modernos não são comovidos e enlevados pela verdade, como ocorria tão
frequentemente aos pregadores do passado104?
Ano: 2006. Minha família desembarca na Igreja Cristã Nova Vida, sob regência
do querido Pr. Roberto Azem. Dentre as novidades e adaptações comuns de uma
chegada de uma família já cristã a uma nova igreja, algo chamou a minha atenção: o
pastor dirigia o culto de forma bem evangélica, mas ele vestia uma “gola de padre” –
o famoso colarinho clerical. Ora, que tipo de igreja era essa que ‘misturava’
elementos litúrgicos (que, na minha visão limitada da época, eram “católicos”) em
um culto protestante?
Seria aceitável se tivesse parado por aí. Qual foi minha surpresa ao ir me
deparando, com o tempo, com recitações do Credo Apostólico e do Pai-Nosso na
liturgia dos cultos; com a orientação de celebração da Ceia do Senhor todo domingo;
com a observância de datas do Ano litúrgico como o Advento e a Quaresma, dentre
outros fatores. Por que seria importante incluir tais coisas na adoração coletiva? Em
que isso poderia contribuir para a edificação da igreja? Não seria tudo isso muito
“católico”?
Dessa forma, o culto deve ser entendido como um ambiente para a atuação de
Deus, não apenas para sua presença. Deus está presente em todos os lugares, mas
não se manifesta em todos os lugares128. A manifestação de Deus se dá
especialmente no contexto do culto. Deus é o primeiro e principal protagonista no
culto. Isso não significa que a postura de adoração humana seja meramente passiva,
transformando-nos em mera audiência, espectadores do que outro alguém está
fazendo - esse era o grande problema do culto medieval. Em vez disso, essa ênfase na
ação de Deus no culto inclui um cenário de interação graciosa entre Deus e seu povo,
uma forma litúrgica de chamado e resposta, graça e gratidão129.
Essa interação é especificada por Smith da seguinte forma: o culto consiste de
um movimento inicial ‘de cima para baixo’, começando na revelação gratuita e
graciosa, feita pelo Pai, da natureza divina à igreja no Filho, por meio do Espírito.
Contudo, há também um movimento ‘de baixo para cima’, a resposta humana em
adoração, que também é fundamentalmente motivada por Deus. Essa resposta,
comumente chamada de ‘sacrifício de louvor e ações de graças’, surge a partir da fé,
cuja fonte está no Espírito Santo que habita o homem130.
Na adoração cristã, reconhecemos a excelência insuperável de Deus. Certamente
é possível reconhecer essa grandeza por meio de nosso cotidiano, mas em nenhum
desses momentos de nossos dias encaramos Deus. No culto estamos “cara a cara”
com Ele, mesmo que não o vejamos. Quando adoramos a Deus coletivamente em
nossa comunidade de fé, nosso reconhecimento da grandeza insuperável de Deus é
devidamente orientado e voltado para Deus. Posicionamos nossos corpos de acordo:
nos ajoelhamos, nos inclinamos, ficamos com o rosto e as mãos levantadas131. Como
bem resume von Allmen, “por sua adoração, a igreja se torna ela mesma, se torna
consciente de si mesma e se confessa como uma entidade distinta”132.
O espírito sacramental
Umas das principais características da tradição sacramental é o fato dela ser
extremamente visual. Aliás, podemos ir além e afirmar que, mais do que apenas
visual, ela é sensorial. Mexe com nossos sentidos de forma a nos mudar. Na liturgia,
todo o nosso corpo é envolvido e influenciado por toda a ocasião de adoração
coletiva em que estamos envolvidos.
Como já diriam os antigos, “Liturgia é coisa que se vê”, e, nesse ponto, a visão
ocupa um lugar especial. Por isso essa tradição investe nas cores litúrgicas, nos
vitrais, na arte e na beleza de forma geral. A liturgia deve levar o olhar mais adiante
para que veja além dos olhos; A liturgia também trabalha com o nosso paladar, e isso
é muito bem representado na Ceia do Senhor. Participamos juntos da comida e da
bebida, antecipando o banquete celestial que celebraremos juntos na presença de
Deus133.
Outro ponto forte na liturgia é o uso da audição. O rito nos vem em palavras,
recitadas ou cantadas. Ouvimos o sermão, as leituras bíblicas, as palavras recitadas,
a voz da igreja nos cânticos – tudo muito auditivo; temos ainda o toque, o tato, por
meio da imposição de mãos, do gestual espontâneo da congregação, dos abraço
oriundos da comunhão da igreja, as orações de mãos dadas. Devemos cuidar para
que os elementos presentes na nossa prática litúrgica permitam que usemos
diferentes sentidos do nosso corpo, ampliando assim a nossa capacidade de
percepção da suprema beleza134.
O espírito sacramental ainda faz uma distinção importante do culto como um ato
de expressão ou de formação. Quando tacitamente supomos que nós somos os
principais atores na adoração, então também presumimos que o culto é basicamente
um esforço de expressão. Por essa razão restringimos a “adoração” aos cânticos de
louvor de nossas reuniões, ao momento em que podemos nos expressar. Quando
pensamos dessa forma sobre a adoração, então também supomos que a
característica mais importante de nosso culto é que ele deve ser sincero. Se ele é uma
expressão de nossa devoção a Deus, então a última coisa que queremos ser é
hipócritas: nossa expressão precisa ser honesta, verdadeira, original, genuína,
“autêntica”135.
James K. A. Smith faz um interessante diagnóstico desse problema:
Isso, no entanto, cria um interessante desafio, uma vez que sinceridade e autenticidade tendem a gerar
uma inclinação para a inovação. Se eu adoro para mostrar a Deus o quanto o amo, talvez eu comece a me
sentir hipócrita se me limitar a fazer sempre as mesmas coisas. Minha expressão começará a ficar menos
“autêntica”. Por causa disso, precisamos encontrar novas formas de adorar, novas formas de demonstrar
nossa devoção, formas inéditas de expressar nosso louvor. Por meio de inovações tentamos conservar a
sinceridade límpida de um culto que é essencialmente entendido como uma expressão [...]
Com a melhor das intenções, esse paradigma de “expressão” é então unido a uma separação questionável
entre a forma de culto e o conteúdo do Evangelho [...] Em nosso desejo de incorporar o conteúdo do
Evangelho em formas que sejam mais atraentes, acessíveis e não sejam perturbadoras, saímos em busca
das formas culturais contemporâneas que nos sejam mais familiares [...] O problema, logicamente, é que
essas “formas” não são apenas recipientes neutros ou canais descartáveis para uma mensagem. Como já
vimos, aquilo que adotamos meramente como novos formatos são, na verdade, práticas que já estão
orientadas para um novo telos (finalidade), uma visão tácita da boa vida136.
O teólogo suíço ainda reforça que, pelo mero fato de sua celebração, o culto tem
uma força evangelizadora porque tem um “poder que irradia alegria, paz, liberdade,
ordem e amor”. O culto possui um poder evangelístico maior do que muitas vezes se
supõe. É por isso que “importa que o culto seja celebrado com o máximo de
correção teológica e fervor espiritual”157.
E por que deveríamos segui-lo? É tão importante assim? O ano cristão está
ancorado nos principais eventos da história da salvação descritos no Novo
Testamento. Suas âncoras são as celebrações do nascimento, morte, ressurreição e
ascensão de Jesus e a vinda do Espírito Santo. Assim, o ano cristão é um memorial
para os eventos-chave na história da salvação. O ano cristão garante que os
adoradores serão alimentados com uma dieta equilibrada de temas bíblicos166.
O ano cristão é uma antiga herança que nos traz à mente que somos parte de um
povo que é mais antigo do que nosso presente; que somos herdeiros de tradição167. O
calendário da igreja visa nada menos que mudar a maneira como experimentamos o
tempo e percebemos a realidade. Para a igreja, o Advento sinaliza o ano novo. Para a
igreja, o ritmo anual não é inverno, primavera, verão e outono, mas Advento, Natal,
Epifania, Quaresma, Páscoa e Pentecostes168.
119. SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo: Vida Nova, ano 2017, p.
102.
120. Ibid, p. 103.
121. RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24 ABR 2020.
122. VON ALMEN, Jean-Jacques apud RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano
2018. Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24
ABR 2020.
123. RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24 ABR 2020.
124. Ibid.
125. VON ALMEN, Jean-Jacques apud RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano
2018. Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24
ABR 2020.
126. RIENSTRA, Ron. O culto como história da salvação. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-história-da-salvação-21c8f08bf9b9>, acesso em 24 ABR 2020.
127. SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo: Vida Nova, ano 2017,
p. 103, 104.
128. Devidos créditos da frase ao estimado Bispo Walter McAlister.
129. Ibid, p. 105, 106.
130. Ibid, p. 106.
131. WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical Theology. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
132. VON ALMEN, J. J. apud WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical
Theology. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
133. BARROS, Saulo Maurício de. Introdução à liturgia. Centro de Estudos Anglicanos, ano 2010. Disponível em:
http://centroestudosanglicanos.com.br/bancodetextos/liturgia/introducao_a_liturgia.pdf, acesso em 15 MAI
2020.
134. Ibid.
135. SMITH, James K. A. Você é aquilo que ama: o poder espiritual do hábito. São Paulo: Vida Nova, ano 2017,
p. 109.
136. Ibid, p. 109, 110, 111.
137. Ibid, p. 112.
138. Ibid, p. 116.
139. KAUFLIN, Bob. Curso Vida Nova de Teologia Básica, vol. 11, Louvor e Adoração. São Paulo: Vida Nova, ano
2011, p. 234.
140. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
141. RATZINGER, Joseph apud GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian
liturgy. Brewster, Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
142. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
143. SCHEER, Greg. O padrão quádruplo de culto. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/padrão-quádruplo-de-culto-d4c4b3dfc14a>, acesso em 24 ABR 2020.
144. Ibid.
145. Ibid.
146. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
147. WOLTERSTORFF, Nicholas. The God We Worship: An exploration of Liturgical Theology. Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans Publishing Company, ano 2015.
148. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
149. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, ano
2018, p. 194.
150. Ibid, p. 202.
151. LEITHART, Peter apud SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São
Paulo: Vida Nova, ano 2018, p. 202.
152. RIENSTRA, Ron. O culto como ameaça e promessa. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-ameaça-e-promessa-efb6bc8d2757> acesso em 24 ABR 2020.
153. WAX, Trevin. Why the Form of Worship Matters: A Conversation with James K. A. Smith. The Gospel
Coalition, ano 2013. Disponível em: <https://www.thegospelcoalition.org/blogs/trevin-wax/why-the-form-of-
worship-matters-a-conversation-with-james-k-a-smith/>, acesso em 24 ABR 2020.
154. A sístole é o movimento de contração da batida do coração, quando há o esvaziamento dos ventrículos. A
diástole é o relaxamento ventricular, quando os ventrículos recebem sangue dos átrios.
155. RIENSTRA, Ron. O culto como ameaça e promessa. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-ameaça-e-promessa-efb6bc8d2757> acesso em 24 ABR 2020.
156. Ibid.
157. Ibid.
158. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
159. Ibid.
160. TAYLOR, David. Discipulando os olhos através da arte no culto. Lecionário, ano 2017. Disponível em:
<https://lecionario.com/discipulando-os-olhos-através-da-arte-no-culto-5d10b2998516>, acesso em 20 ABR
2020.
161. Ibid.
162. VON ALMEN, Jean-Jacques. Culto e Cultura. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/culto-e-cultura-f65973feb230>, acesso em 26 ABR 2020.
163. Ibid.
164. WITVLIET, John D. Introdução ao Ano Cristão. Lecionário, ano 2016. Disponível em:
<https://lecionario.com/introdução-ao-ano-cristão-3f54b4b7cb05>, acesso em 20 ABR 2020.
165. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
166. WITVLIET, John D. Introdução ao Ano Cristão. Lecionário, ano 2016. Disponível em:
<https://lecionario.com/introdução-ao-ano-cristão-3f54b4b7cb05>, acesso em 20 ABR 2020.
167. SMITH, James K. A. Desejando o Reino: Culto, cosmovisão e formação cultural. São Paulo: Vida Nova, ano
2018, p. 160.
168. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster,
Massachusetts: Paraclete Press, ano 2008.
169. Para saber mais sobre este “avivamento” reformado, recomenda-se a leitura de “Young, Restless, Reformed:
a journalist’s journey with the new calvinists”, Collin Hansen, editora Crossway.
170. BEVINS, Winfield. 8 Razões pelas quais a próxima geração anseia pela liturgia antiga. Lecionário, ano 2019.
Disponível em: <https://lecionario.com/8-razões-pelas-quais-a-próxima-geração-anseia-pela-antiga-liturgia-
f7551534fb9a>, acesso em 26 ABR 2020.
171. Ibid.
PARTE 3
FINALIZANDO A ESTRUTURA: O
VISCERAL
CAPÍTULO 6
Esclarecendo os termos
Certamente você deve estar se perguntando porque está sendo utilizado o termo
‘evangelical’, em vez de se referir simplesmente ao termo mais conhecido,
‘evangélico’. Alguns podem até achar que se trata de um equívoco gramatical e
linguístico, porém utilizarei tal termo de forma intencional, a fim de deixar claro a
que tipo de vertente protestante me refiro neste capítulo.
Em nosso país, o termo ‘evangélico’ generalizou-se, passando a significar, no
senso comum, qualquer tipo de manifestação ou grupo protestante. ‘Evangélico’ hoje
é quase que um gênero que comporta as diversas denominações e tradições
protestantes. Como já deve ter percebido, neste capítulo não tenho a intenção de me
referir a toda a cristandade, mas a um ramo específico, ligado ao Evangelicalismo.
O termo ‘Evangelicalismo’ é pouco conhecido por aqui, mas seu conceito é mais
difundido na América do Norte, sendo uma vertente protestante de muito impacto –
positivo e negativo – em todo o mundo. Como já existem dezenas de publicações
ressaltando os aspectos negativos do movimento, gostaria de fazer um exercício
gracioso, a fim de encontrar uma boa contribuição evangelical para o culto a Deus.
Alguns dizem que o evangelical é alguém que admira Billy Graham. Randall
Balmer propõe uma dupla definição: a centralidade da conversão e a crença de que a
Bíblia é a Palavra de Deus e, portanto, está no centro da vida cristã172. De acordo
com David Bebbington, o Evangelicalismo é fundamentado em quatro bases: o
conversionismo, o biblicismo, o crucicentrismo e o ativismo173.
Em outras palavras, é a ênfase na conversão de novos cristãos, o literalismo
bíblico, morte e ressurreição de Cristo como eventos principais, e uma atividade
intensa de “serviços religiosos”, de trabalho na igreja. Nem todo “evangélico” que
conhecemos se enquadra no perfil do evangelicalismo, mas todo evangelical pode ser
enquadrado como “evangélico”. Vejamos mais duas definições que nos ajudarão a
delinear o conceito do evangelicalismo:
As igrejas evangelicais são geralmente aquelas que enfatizam a conversão (a necessidade de uma decisão
pessoal de seguir Jesus Cristo), a atividade missionária (a obrigação de compartilhar com outras pessoas
essa necessidade de conversão), o biblicismo (ver as Escrituras como a única autoridade para crença e
ação) e crucicentrismo (a crença no sacrifício de Cristo na cruz como expiação pelo pecado humano)174.
O evangelicalismo é capaz de sustentar uma crença significativa em Deus, encapsulando-se em uma
espécie de casulo pré-moderno. Deus é visto como intervindo diretamente nos assuntos humanos; as
orações são ou podem ser respondidas milagrosamente; existe um forte senso de demarcação entre a
comunidade de crentes e seu ambiente incrédulo; as palavras da Bíblia são consideradas qualitativamente
diferentes de todas as outras expressões humanas175.
Note como, ao mesmo tempo em que o profeta destaca que Deus é “Alto e
Sublime”, e que Ele “habita num lugar alto e santo” – demonstrando um certo grau
de intangibilidade, de inacessibilidade de Deus por conta de sua grandeza, o texto
também realça que esse Deus grandioso “habita também com o contrito e humilde
de espírito”. A imanência transforma o Deus inacessível em um Deus acessivelmente
admirável – e isso não só por sua grandeza, mas por sua disposição em se relacionar
com o ser humano. A celebração desse fato ocorre no encontro, e esse encontro
ocorre no culto.
Essa aparente tensão entre a transcendência e imanência de Deus é frequente no
coração do cristão que cultua a Deus, uma vez que a adoração verdadeira deve, em
algum nível, permanecer incompreensível. Essa adoração, que nos permite
encontrar o Deus vivo, deve deixar os adoradores um pouco estupefatos. Isso
diminui nossa ânsia por uma adoração “compreensível”, que esconde um desejo
interior de um Deus compreensível, um deus que possamos ter ao controle191.
Na liturgia da adoração coletiva, somos convidados a deixar-nos tocar pela ação
salvífica de Deus, participando, desse modo, na sua própria glória e perfeição
eternas. A liturgia surge, assim, como uma realidade complexa, onde Deus e o
Homem se encontram, dialogam, comunicam, partilham as suas intimidades, se
redescobrem e recriam192.
Matt Redman, outro nome influente da adoração musical dos nossos tempos,
afirma que a característica do culto contemporâneo é essa grande expectativa de um
momento de encontro com Deus através do Espírito Santo193. Tomamos parte das
maravilhas operadas por Deus quando nos é aberta a porta do encontro com Deus, e
isso é possível pela ação do Espírito Santo na igreja, por meio do mistério relacional
de seu culto194.
Esse encontro não é um monólogo. É um relacionamento dialógico. No culto,
Deus fala a nós e nós respondemos a Ele. A diferença é que nesse encontro não
ficamos falando de nós mesmos, ou exaltando nossas próprias habilidades e
conquistas – pelo menos não deveríamos. O enredo do culto é divino. É a história da
salvação. Isso não significa que não se refira a nada relacionado à humanidade;
porém tudo que é dito a nosso respeito no culto deve ser trazido à liturgia por meio
do divino, daquilo que Deus fez por nós.
Melanie Ross esclarece esse aspecto de forma muito competente:
A forma geral do culto é dupla: Deus se apresenta e nós respondemos. Entramos na presença de Deus,
reconhecendo e louvando-o. Vendo que Deus é tão santo, tomamos consciência de nós mesmos e do nosso
pecado diante dele. Então, a seguir, deve haver uma reflexão sobre quem somos como pecadores diante de
um Deus santo. Podemos trazer isso à tona através da música, das Escrituras ou da oração. Então
chegamos à garantia do perdão de Deus - e novamente, a expressão desse perdão pode vir através de
canções, escrituras ou orações. Depois que passamos por nossa tendência ao pecado, nossos ouvidos são
abertos para ouvir a Palavra. Então, aí está o sermão. Depois disso, é hora da oferta - somos tão gratos
pela palavra de Deus para nós que desejamos responder195.
172. ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., ano 2014.
173. BEBBINGTON, David. Evangelicals in Modern Britain: A History from the 1730s to the 1980s. London, UK:
Taylor & Francis Group, ano 2005.
174. WELLMAN JR., James K. apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
175. HUGHES, Graham apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
176. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
177. KAVANAGH, Aidan apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
178. LATHROP, Gordon apud ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans Publishing Co., ano 2014.
179. DOUGLASS, Klaus apud KRUGER, Hariet Wondracek. Tradicional x Contemporâneo: a dinâmica que pode
enriquecer a igreja. Revista Batista Pioneira, ano 2017. Disponível em:
<http://revista.batistapioneira.edu.br/index.php/rbp/article/view/206>, acesso em 27 ABR 2020.
180. JENSEN, Philip. Ministry Training Paper: Evangelical Worship. Site Philip Jensen, ano 2010. Disponível
em: <https://phillipjensen.com/resources/evangelical-worship/>, acesso em 24 ABR 2020.
181. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
182. Ibid.
183. ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., ano 2014.
184. WITT, Marcos. Adoremos. Belo Horizonte: Betânia, ano 2001, p. 94, 95, 99.
185. SHEDD, Russel. Adoração Bíblica: os fundamentos da verdadeira adoração. São Paulo: Vida Nova, ano
2007, p. 16.
186. Letra disponível em: https://www.letras.mus.br/corinhos-evangelicos/eu-marquei-um-encontro-com-
deus/, acesso em 28 MAI 2020.
187. CAMPOS, Adhemar de. O poder da música a serviço da adoração: conhecendo os princípios para uma vida
de adoração e serviço. São Paulo: Fôlego, 2007, p. 48.
188. BORBA, Asaph. Fundamentos de Louvor e Adoração: A quem adoramos?. Blog Renato Gonçalves, ano
2008. Disponível em: https://renatospg.wordpress.com/2008/04/22/fundamentos-de-louvor-e-adoracao-a-
quem-adoramos/, acesso em 18 MAI 2020.
189. ZSCHECH, Darlene. Worshipping When Life Hurts. Identity Network, ano 2018. Disponível em:
https://www.identitynetwork.net/Articles-and-Prophetic-Words?articleid=87108&view=post&blogid=2093,
acesso em 18 MAI 2020.
190. ZSCHECH, Darlene. 10 Essential Traits of a Worship Pastor. Churchleaders.com, ano 2020. Disponível em:
https://churchleaders.com/worship/worship-how-tos/161822-
darlene_zschech_10_essential_traits_of_a_worship_pastor.html, acesso em 18 MAI 2020.
191. GALLI, Mark. Beyond smells and bells: the wonder and power of Christian liturgy. Brewster, Massachusetts:
Paraclete Press, ano 2008.
192. ANTUNES, José Paulo Antunes. Arte e liturgia ou arte litúrgica?. Revista da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Portugal, ano 2004. Disponível em: https://www.meloteca.com/wp-
content/uploads/2018/11/arte-e-liturgia-ou-arte-liturgica.pdf, acesso em 16 MAI 2020.
193. REDMAN, Matt apud PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura contemporânea e
analítica do Princípio Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019. Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
194. SANTANA, Luiz Fernando R. A celebração litúrgica como uma mística sacramental. Revista do
Departamento de Teologia da PUC-Rio, ano 2012. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/22290/22290.PDF, acesso em 15 MAI 2020.
195. ROSS, Melanie. Evangelical versus Liturgical? Defying a Dichotomy. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
Publishing Co., ano 2014.
196. BORGER, Joyce. The Modern Worship Movement Isn’t the Problem. Reformed Worship.org, ano 2019.
Disponível em: <https://www.reformedworship.org/blog/modern-worship-movement-isnt-problem>, acesso
em 22 ABR 2020.
197. JENSEN, Philip. Ministry Training Paper: Evangelical Worship. Site Philip Jensen, ano 2010. Disponível
em: <https://phillipjensen.com/resources/evangelical-worship/>, acesso em 24 ABR 2020.
198. CALVINO João apud ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor:
análise teológica e prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
199. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
CAPÍTULO 7
O Espírito em ação
Você pode nunca ter ido a um culto pentecostal. Mas tenho uma convicção quase
absoluta de que você sabe do que se trata. Mesmo sem nunca ter participado de um
culto assim, você poderia reconhecê-lo. De longe. Até porque o volume das vozes e
das canções permitiria que essa avaliação fosse feita à distância.
O culto pentecostal é uma experiência espiritual muito peculiar. Só que, assim
como todas as outras tradições cúlticas, tem havido excessos, e muito da essência
pentecostal tem se perdido. Porém, como você deve ter percebido, o objetivo deste
livro não tem sido se deter longamente em diagnósticos pessimistas sobre os rumos
das diversas tradições protestantes, mas de propor caminhos, soluções,
convergências. E cremos que o Pentecostalismo tem muito a colaborar com a
discussão a respeito do culto.
Umas das principais características do culto pentecostal é o reconhecimento da
ação ativa e operante do Espírito Santo no meio da congregação durante o tempo de
adoração coletiva. Se a celebração litúrgica não for sinal do Espírito, ela nada será.
Com efeito, a verdadeira essência da ação litúrgica consiste em ser uma epifania,
uma representação do Espírito Santo200.
Mas o que é ser espiritual? Certamente há um “estereótipo” dentro do imaginário
social do pentecostalismo a respeito do que seja uma pessoa “de Deus”, ou seja,
alguém que possui uma espiritualidade desenvolvida. Porém nem sempre essa noção
se alinha com a noção que a Bíblia nos propõe acerca de alguém maduro
espiritualmente. A igreja de Corinto, por exemplo, estava cercada de dons espirituais
mas era imatura espiritualmente. A este respeito, John Piper diz:
A palavra “espiritual”, em 1 Coríntios 2.14 (“se discernem espiritualmente”), não significa “religioso”,
“místico”, ou “transcendental”. Significa “originado pelo Espírito”, “ter a qualidade do Espírito Santo”.
Podemos ver isso em Romanos 8.7-9, que descreve o “homem natural” de 1 Coríntios 2.14 como tendo uma
inclinação para a carne, com o mesmo resultado, ou seja, dureza contra a gloriosa supremacia de Deus e
uma incapacidade para aceitar e agradar a Deus [...] Mas observe que o oposto do “pendor da carne” não
é uma espiritualidade vaga, e sim a presença do Espírito Santo [...] O oposto de uma pessoa natural não é
uma pessoa mística ou religiosa, e sim uma pessoa que é habitada pelo Espírito Santo, que está realizando
o milagre de discernimento espiritual201.
A adoração guiada pelo Espírito, portanto, não é uma reserva especial dos
pentecostais e carismáticos; ao contrário, é a herança de todos os genuínos
adoradores cristãos. Porém devemos admitir que o papel orientador do Espírito na
adoração é aquele que os pentecostais e os carismáticos costumam reconhecer. O
Espírito é o líder da adoração que nos permite ser guiados por Cristo na adoração202.
S. B. Vaughan aponta neste mesmo sentido, ao dizer que para os pentecostais, o
verdadeiro líder da adoração é o Espírito Santo. E essa adoração liderada pelo
Espírito sempre será revigorante, porque Ele está constantemente redefinindo e
expressando de formas diferentes os louvores oferecidos ao Deus vivo203.
O entendimento pentecostal do culto guiado pelo Espírito é que essa reunião
exaltará Jesus e também terá uma abertura apropriada ao novo e não planejado.
Este é o ponto onde a liturgia pode às vezes nos fechar, em vez de nos abrir para a
obra do Espírito204. É frequente a noção de que seguir uma liturgia muito pré-
definida significa, de alguma forma, “limitar” a ação do Espírito, quando, na
verdade, entendemos que Ele age tanto na preparação e na organização prévia,
quanto na ocasião do culto em si.
Uma consequência direta dessa dicotomia é que, como diz o professor Mookgo
Kgatle, um resultado da ênfase pentecostal em experiências espirituais ou
carismáticas, para o povo pentecostal, o momento de adoração ao Espírito é a
ocupação mais sublime da igreja, cumprindo o objetivo final pelo qual o povo de
Deus é redimido205. Adorar o Espírito, pelo Espírito e no Espírito é o cerne do culto
pentecostal.
Liturgia Pentecostal?
Será que essa resistência à formalidade e predefinição de termos e ordens, para
não “abafar” a influência e ação do Espírito no momento do culto, faz com que o
pentecostalismo seja uma vertente antilitúrgica? Para Afred Küen, “uma das
características dos primeiros cultos pentecostais é a reação contra a rigidez dos
cultos protestantes”. Nesse culto, a formalidade tornou-se “anátema” e deve ser
evitada a qualquer preço. “O culto tem de ser informal, espontâneo, de forma que
encoraje a participação e desperte grande intensidade emocional”, conclui Küen206.
Lee Roy Martin reforça essa ideia ao dizer que a ênfase na adoração pentecostal
tem sido espontaneidade e liberdade em vez de liturgia e uniformidade207. Isso não
significa ser antilitúrgico. É mais correto falar de uma liturgia aberta entre os
pentecostais do que de uma “não-liturgia”. O ponto principal é que quem administra
o culto não é necessariamente um programa formal, mas o Espírito Santo208.
Devemos, neste momento, apreciar as lições do professor Wolfgang Vondey a
respeito da inter-relação do pentecostalismo com a liturgia (e com a perspectiva do
“encontro”, vista no capítulo anterior):
No contexto do pentecostalismo, o termo compreende uma forma de espiritualidade e uma forma de
adoração concentrada no encontro com Deus. A ênfase do termo está na resposta livre a esse encontro
com Deus, e não em uma ordem ou estrutura fornecida para a possibilidade desse encontro. O único
caminho para integrar o pentecostalismo na paisagem litúrgica existente e muitas vezes altamente
estruturada é através de um anexo bastante solto do termo “liturgia” às práticas de espiritualidade e
adoração.
Em outras palavras, embora possa haver alguma forma de liturgia em um culto pentecostal, o próprio
culto não é conduzido por tal liturgia, mas conduzido pelo Espírito de Deus. A liturgia surge como uma
maneira de trazer ordem à igreja. Embora a adoração como espiritualidade incorporada possa ser
ritualizada, o processo de formalização e estruturação é lento. Nesse sentido, o termo liturgia sempre
permanece mais próximo da espiritualidade e do culto e resiste à estrutura formal, imposta pela igreja ou
pela cultura.
A realização de uma ‘liturgia’ pentecostal, portanto, refere-se mais amplamente à atualização de uma
reflexão sobre a vida cristã do que à realização ordenada da espiritualidade na adoração209.
Um fato desafiador para nós é que não devemos nos esconder nem expressar
nossos sentimentos por trás de um exterior reservado, formal e inexpressivo. Um
sinal de genuinidade é que há uma gama completa de emoções. Não devemos ser
sempre somente felizes ou somente tristes, nem somente intensos ou somente
ternos. A questão é que não há lugar para um culto em que não exista envolvimento,
ou que seja de uma formalidade intelectualizada e fria. Precisamos estar envolvidos.
A menos que nossos sentimentos estejam profundamente envolvidos, como
podemos levar outros a adorar?220
Uma das principais expressões físicas pentecostais no culto são os dons
espirituais. Nesse aspecto, a experiência conduz ao fato de que o dom de línguas seja
o mais recorrente deles dentro do contexto do culto público. Mais uma vez, pelos
abusos e excessos cometidos com relação a esse dom, muitos se revestiram de um
ceticismo a respeito dessa expressão, considerando a totalidade delas como
carnalidade ou mesmo como uma expressão pagã, que seria incompatível com o
culto cristão.
Porém, se fizermos o exercício de tirarmos da frente o “entulho” que nos impede
de ver os dons espirituais como legítima expressão física no culto, veremos como isso
se coaduna com o propósito de adoração e edificação característicos do culto – já
que, de acordo com 1 Coríntios 14 e demais passagens bíblicas, tal dom tem como
objetivo a edificação pessoal e a adoração a Deus. Ainda, a construção da ideia do
falar em línguas é uma construção teológica trinitária, por mais que não nos
atentemos a isso.
Robin Parry esclarece esse polêmico ponto ao afirmar que em línguas, somos
dependentes do Espírito derramado sobre nós por Cristo, enquanto oramos ao Pai.
Os pentecostais e os carismáticos costumam ter muita consciência de que quando
falam em línguas é porque Cristo derramou o Espírito sobre eles e lhes permitiu falar
com Deus. Essa consciência trinitária é parte do entendimento do dom em si221.
O culto pentecostal, portanto, é vivo e recheado de expressões físicas marcantes.
Nas palavras de um antigo cântico famoso no meio pentecostal, é “um povo
barulhento”. Esse “barulho”, embora seja muitas vezes taxado corretamente de
balbúrdia, muitas vezes é uma sinfonia muito bem orquestrada aos olhos de Deus. O
problema de muitas críticas ao “barulho” do culto pentecostal é que ficam restritas a
questões de gosto pessoal, e não entram no mérito da possibilidade ou não de se
expressar daquela maneira.
Um culto direcionado pelo Espírito, mesmo que seja mais “barulhento” do que
outras tradições estão acostumadas, será perfeitamente ordenado com a finalidade
de adoração divina e edificação humana. E aqui reverberamos novamente a visão de
A. W. Tozer:
Talvez seja difícil para alguns admitir, mas quando estamos adorando verdadeiramente ao Deus de toda
graça, de todo amor, de toda misericórdia e de toda a verdade, talvez não fiquemos em silêncio o bastante
para agradar a todos [...] Não creio ser necessariamente verdade que adoramos a Deus quando fazemos
muito barulho. Mas não raro, a adoração é audível. [...] Eu advertiria os que são cultos, silenciosos,
reservados, equilibrados e sofisticados que se ficarem constrangidos na igreja quando alguns cristãos
felizes disserem “Amém!”, talvez estejam necessitados de alguma iluminação espiritual. Os santos
adoradores de Deus no corpo de Cristo têm, com frequência, sido um pouco barulhentos222.
Um pentecostalismo sacramental?
A ideia da Razão Visceral proposta neste livro não é nenhum tipo de pensamento
de ineditismo, de algo nunca visto nas questões e discussões a respeito do culto.
Trata-se tão somente de observação de movimentos já existentes, e avanço em
determinados outros aspectos ainda não explorados. É uma contribuição, uma
adição a algo que já está sendo discutido e trabalhado. E uma dessas frentes é a
união das tradições pentecostal e sacramental.
Talvez a iniciativa mais proeminente dessa movimentação vem do britânico
Andrew Wilson, pastor na King’s Church, em Londres. Ele tem proposto uma visão
“eucarismática” do culto cristão. O neologismo de Wilson diz respeito à união dos
termos “eucarístico” e “carismático”, apontando para a união dessas duas tradições.
Ele nos informa sobre a relevância dessa convergência por meio de um perspicaz
exercício de imaginação:
Convido você a imaginar uma igreja assim encontrando os prazeres da adoração encarnada pela
primeira vez. Imagine-os redescobrindo o poder dos símbolos: água, pão, vinho e óleo. Imagine-os
reinventando sua liturgia para incluir elementos bíblicos que perderam e encontrando profundezas do
evangelho que quase haviam esquecido. Imagine a bola de neve ganhando força enquanto eles usam
monges para ajudá-los a orar e mártires para ajudá-los a cantar. Eles começam a ler livros de pessoas
mortas e descobrem que estão mais vivos do que muitos dos livros de pessoas vivas. Eles catequizam suas
famílias. Eles se regozijam nos sacramentos. Eles fazem coisas que fazem coisas.
Depois imagine-os encharcados no Espírito Santo, propensos a explosões espontâneas de louvor e ao tipo
de alegria que faz as pessoas se alegrarem. Eles começam a curar os doentes. Eles leem o Salmo 150 - e
realmente o fazem. Expulsam os demônios quando necessário. Eles usam dons espirituais nas reuniões -
não apenas os líderes, mas todos [...] esperam que Deus fale com eles em casa ou no escritório. Suas
reuniões parecem mais casamentos africanos do que funerais ingleses.
Agora junte tudo isso. Imagine um serviço que inclua testemunhos de cura e orações de confissão, salmos,
hinos e cânticos espirituais, batismo na água e no Espírito, credos que movem a alma e ritmos que movem
o corpo. Imagine jovens vendo visões, velhos sonhos sonhando, filhos e filhas profetizando, e todos
chegando à mesma mesa e depois se alegrando223.
Não há nenhuma razão, a não ser uma série de obstáculos postos ao longo da
história, pela qual não pode haver igrejas hoje que possam reunir características de
tradições diferentes. Por exemplo, uma igreja em que orações escritas e pré-
definidas sejam seguidas por profecias e línguas espontâneas; ou que o “apelo”
convocando pessoas à frente seja um chamado à mesa da Ceia do Senhor; ou mesmo
que a recitação do Credo fosse seguido de uma explosão de celebração musical
expressiva. A busca dessa convergência tornará nossa adoração mais rica, nossas
igrejas mais profundas e nossa alegria maior224.
Wolfgang Vondey segue nesta linha ao afirmar que a crise do cristianismo global
é uma crise da liturgia. O primeiro passo para enfrentar essa crise já foi dado:
reconhecer a estrutura litúrgica do pentecostalismo, e então contrastá-la com o
ambiente estrutural das tradições estabelecidas225. É basicamente o que Andrew
Wilson faz, e também o que tento realizar com a escrita deste livro.
Uma articulação litúrgica da espiritualidade pentecostal é fundamental para a
reorientação teológica global precisamente por causa das qualidades não
convencionais da liturgia, que apontam, segundo Vondey, “além das noções
estruturais da práxis cristã que resistem à improvisação, imaginação e
criatividade”226. É necessário que as demais tradições superem a desconfiança inicial
no pentecostalismo, antigamente taxado de “anti-intelectual”, e que passem a
considerá-lo no cenário das discussões a respeito do culto cristão.
Repensar o culto, torna-se, então, algo inevitável e urgente. Andrew Wilson nos
lembra oportunamente que igrejas contemporâneas jogaram fora o “bebê”
sacramental junto com a “água da banheira” da formalidade, tornando suas ordens
de culto extremamente previsíveis e sem vida. Outras, desconfiadas de qualquer
coisa antiga e também de qualquer coisa nova, optam por uma adoração que tem
entre 20 e 50 anos de existência, segura, porém igualmente opaca e previsível227.
A importância do que estamos tratando é bem resumida pelo teólogo
assembleiano Gutierres Siqueira:
Portanto, a congregação que souber equilibrar o carisma com rituais, os dons espirituais com lecionários,
o falar em línguas com a leitura do Credo, a profecia com a exposição sólida das Escrituras etc. não só
será um exemplo de equilíbrio, como associará o melhor dos princípios cúlticos do Novo Testamento. A
edificação é a chave. A adoração deve nos alimentar em espírito e verdade, emoção e razão etc. A
adoração combinada entre a tradição e a renovação vai além de uma concha de retalhos, logo porque a
mera junção não é desejável, mas procurar repensar a adoração cristã como a construção de uma
comunidade que é transformada e alimentada por Deus através de cada elemento de culto. O culto é uma
manifestação da graça de Deus228.
200. SILVA, Vanderson de Sousa. Lex orandi – fonte da espiritualidade cristã: aspectos da teologia litúrgico-
espiritual. Revista de Cultura Teológica da PUC-SP, ano 2014. Disponível em:
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201. PIPER, John. Exultação Expositiva: a pregação cristã como adoração. São José dos Campos: Editora Fiel,
2019.
202. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
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203. VAUGHAN, S. B. apud KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship. Scielo
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204. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
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205. KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship. Scielo South Africa, ano
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206. KÛEN, Afred apud DORNELES, Vanderlei. Liturgia Pentecostal rompe barreiras entre o Religioso e o
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210. NEL, Marius. Attempting to develop a Pentecostal theology of worship. Verbum et ecclesia, ano 2016.
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217. DORNELES, Vanderlei. Liturgia Pentecostal rompe barreiras entre o Religioso e o Popular. Site Música e
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218. MURANGO, A. K. apud KGATLE, MOOKGO S. Singing as a therapeutic agent in Pentecostal worship. Scielo
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219. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
220. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
221. PARRY, Robin A. Worshipping Trinity: Coming back to heart of worship. 2a edição. Eugene, Oregon:
Cascade Books, ano 2012.
222. TOZER, A. W. O que aconteceu com a adoração? A joia perdida da igreja evangélica. Campos/RJ: Faz
Chover Produções, ano 2014.
223. WILSON, Andrew. Spirit and sacrament: an invitation to eucharismatic worship. Grand Rapids, Michigan:
Zondervan, ano 2018.
224. Ibid.
225. GRIGGS, Richard I. Musical Worship as a Pentecostal Sacrament: Toward a Soteriological Liturgy. Selected
Honors Theses da Southeastern University, ano 2017. Diponível em:
<https://firescholars.seu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1064&context=honors>, acesso em 28 ABR 2020.
226. VONDEY, WOLFGANG apud GRIGGS, Richard I. Musical Worship as a Pentecostal Sacrament: Toward a
Soteriological Liturgy. Selected Honors Theses da Southeastern University, ano 2017. Diponível em:
<https://firescholars.seu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1064&context=honors>, acesso em 28 ABR 2020.
227. WILSON, Andrew. Eucarismático. Lecionário, ano 2019. Disponível em:
<https://lecionario.com/eucarismático-8936895cba31>, acesso em 24 ABR 2020.
228. SIQUEIRA, Gutierres Fernandes. Em defesa do culto litúrgico-carismático. Lecionário, ano 2018.
Disponível em: <https://lecionario.com/em-defesa-do-culto-litúrgico-carismático-4d396c24432a>, acesso em
26 ABR 2020
CONCLUSÃO
Tendo visto e destacado os pontos positivos de cada uma das quatro tradições –
reformada, sacramental, evangelical e pentecostal – e entendendo que cada uma
delas tem algo a agregar ao culto cristão, chego à conclusão inevitável que o conceito
de Razão Visceral é uma proposta honesta e coerente para ser entendida como um
ethos litúrgico.
O ethos é entendido como o conjunto dos costumes e práticas característicos de
um povo em determinada época ou região, ou mesmo o conjunto de características
ou valores de determinado grupo ou movimento231. Ou seja, é a “cesta básica”
caracterizadora de certo grupo a respeito de algo. Penso que podemos construir a
Razão Visceral como esse pacote peculiar e equilibrado, que não se originou do
ineditismo, mas que bebeu das melhores fontes já existentes, a fim de formar uma
ideia derivada com o melhor dessas fontes.
Entender o culto como consequência da ação de uma Razão Visceral significa,
dentre outras coisas, equilibrar excelência teológica com fervor da alma; respeito a
tradições sadias com sede da imanência; compromisso de uma pregação bíblica e
consistente com espontaneidade comunitária; lançar mão dos preciosos símbolos e
marcos antigos com a expectativa ardente de um encontro com Deus. É uma
racionalidade vigorosa. É o exercício de uma mente entusiasmada. É intelecto
flamejante. É sabedoria intensa. É razão visceral.
Como isso se observa na prática? O culto cristão que possui o conceito de Razão
Visceral como seu ethos terá como característica um sério e incondicional
compromisso com as Escrituras. O culto deve ser encharcado das Escrituras – seja
em leituras públicas e conjuntas, citações espontâneas e, principalmente, na
exposição da Palavra de Deus. A pregação é o momento central da liturgia. A Bíblia
permeará o culto, do início ao fim. Tudo é feito por intermédio das Escrituras.
Ainda, essa forma de adoração coletiva privilegiará as boas práticas do passado,
no que tange aos simbolismos e práticas litúrgicas. No que for possível, a arquitetura
dos templos buscará transmitir um aspecto espiritual e que inspire temor e
reverência a Deus; reafirmaremos nosso compromisso público de fé ao recitar
coletivamente trechos das Escrituras como a oração do Pai Nosso, ou mesmo
declarações fundamentais da igreja como o Credo Apostólico.
A Razão Visceral envolverá e fará com que as pessoas reconheçam que
necessariamente o culto é um encontro com Deus. Reconhecer essa realidade trará
um santo cuidado com um sério desejo de agradar a Deus na reunião da igreja. Uma
espécie de “reverência alegre” será a marca interna de cada um dos congregantes –
expresso nos cânticos entoados, no teor das orações feitas e na atenção a todos os
momentos da liturgia. Estar na presença do rei exige de nós uma postura. Nos
encontramos com Ele com respeito e regozijo; com sobriedade e satisfação.
Por fim, esse ethos litúrgico contemplará expressões físicas vigorosas – não só a
expressão de dons espirituais no culto, mas mesmo uma efusividade direcionada
pelo Espírito, uma contemplação exultante, o transbordar externo de uma explosão
do divino que ocorre dentro de si. Nesse momento, curas podem acontecer, o
Espírito pode renovar, profecias e línguas podem ocorrer; batemos palmas,
cantamos alto, celebramos com gestos e semblantes, expressamos nossa felicidade
comunitária de estarmos na presença do Senhor; o fervor é marca presente, uma vez
que fomos marcados de forma indelével pelo Espírito Santo. É uma comunidade
pulsante, festiva, comprometida com a alegria sobrenatural do Espírito.
Em relação à música, entendo que é necessária uma conjugação de repertório
clássico (músicas com mais de 100 anos de composição), com músicas do passado
recente da igreja (músicas entre 10 a 100 anos de composição), somado ainda a uma
seleção de músicas recentes (músicas com menos de 10 anos de composição). Isso é
importante para que tenhamos representada na liturgia da igreja as diversas
gerações de cristãos, e sua devida contribuição à hinologia cristã. Não devemos nos
ater a um saudosismo incondicionalmente crítico às novidades na música, mas
entender que cada geração do povo de Deus tem algo a contribuir para aquilo que
cantamos em nossos cultos.
Não devemos reduzir, então, nossa experiência musical aos hinos tradicionais,
embora os valorizemos sobremaneira; da mesma forma, não nos rendemos a um
desejo absoluto de contextualização, limitando o repertório às novidades do mercado
fonográfico. Antes, acima do critério da “idade” da música, identifico como critérios
para a seleção das músicas: o compromisso com o texto das Escrituras; melodia,
harmonia e ritmos condizentes com o canto coletivo e contextualizados com a
comunidade local; a expressão das verdades bíblicas de forma viva e intensa.
No que se refere à expressão dos dons espirituais no culto, creio que Deus ainda
derrama seus “dons de curar”, então devemos incentivar a oração por cura dos
enfermos; crendo na profecia como um dom espiritual de revelação infra-canônica, e
completamente submetido ao juízo da Palavra de Deus, devemos admitir a
possibilidade da expressão desse dom, desde que haja uma maturidade coletiva e
conhecimento consolidado da membresia da igreja local quanto ao correto uso desse
dom - reconheço que apenas algumas poucas congregações preenchem esses
requisitos hoje e estariam preparadas para tal -, não referendando atitudes de
aventureiros que disfarçam sua carnalidade num suposto exercício espiritual
profético.
Devemos reconhecer também a ocorrência do dom de línguas no culto, desde que
respeitados os critérios do Apóstolo Paulo em 1 Coríntios 14. Na prática, isso
significa que o dom não deve ser expresso pelas pessoas que possuem fala oficial no
culto - para que não haja confusão na mensagem transmitida do púlpito; deve ser
restrito a momentos e em intensidades que não atrapalhem o bom andamento do
culto - não deve interromper ou causar interferência na pregação das Escrituras, por
exemplo; deve ser um exercício de devoção pessoal, e não um motivador de uma
catarse emocional – não devemos repreender os que se utilizam das línguas
respeitando os padrões, nem mesmo incentivar que todos falem em línguas ao
mesmo tempo para criar um suposto “ambiente espiritual”.
Sobre a pregação, não preciso me alongar muito pois já definimos o padrão
desejado no capítulo da contribuição reformada ao culto. Em resumo, devemos
incentivar a prática da pregação expositiva, um formato que valoriza o estudo da
estrutura, contextos e linhas melódicas do próprio texto bíblico, buscando extrair do
texto o que ele realmente quer dizer. Devemos pregar o texto, e não definir o assunto
para então buscar na Bíblia um versículo como “desculpa” para aquilo que já
definidos anteriormente. Todo esse processo deve ser apresentado no púlpito por um
coração vigoroso por pregar a Palavra de Deus, alguém completamente impactado
pelas verdades bíblicas, de tal forma a não conseguir se referir ao Evangelho de
forma desapaixonada. A “exultação expositiva” é tanto fervor intelectual quanto
intelecto fervoroso.
O serviço semanal da Ceia do Senhor trará a memória da congregação a
necessidade de lembrar-se frequentemente do sacrifício de Cristo na cruz; a adoção
de certos símbolos e hábitos, como o colarinho clerical e a cruz pendurada na parede,
o ajoelhar-se, o levantar das mãos, a imposição das mãos em oração; por fim, a
observância do ano litúrgico fará com que a igreja caminhe neste mundo em um
ritmo conectado às verdades do Evangelho.
Por mais que seu ceticismo esteja ligado na máxima potência neste instante, é
preciso afirmar que todas essas coisas podem ocorrer no mesmo culto, da mesma
congregação, na mesma ocasião. Podemos ter um mesmo culto com um “espírito
pentecostal” de fervor e celebração, acompanhado de uma pregação expositiva que
aborde fielmente as Escrituras; podemos ter ao mesmo tempo um povo recitando o
Pai Nosso de forma vigorosa, encontrando-se com seu Senhor.
Não precisamos separar o que a Bíblia e Deus nunca separaram. Não precisamos
escolher entre tradição e contemporaneidade, entre razão e emoção. Podemos ter
ambos. Na verdade, precisamos ter ambos. Tim Keller nos esclarece essa
necessidade com sua objetividade brilhante de sempre:
A relutância em consultar a tradição não está de acordo nem com a humildade nem com a comunidade
cristã [...] Finalmente, qualquer culto de adoração coletiva, que seja estritamente contemporâneo, ficará
ultrapassado muito rapidamente. [...] Muito do que é chamado de culto “tradicional” está bastante
enraizado na cultura norte-europeia do século XVI [...] oculta nos argumentos dos defensores do culto
histórico está a suposição de que certas formas históricas são mais puras, bíblicas e não contaminadas por
afirmações culturais. [...] Assim como é falta de humildade desprezar a tradição, é também falta de
humildade elevar qualquer tradição particular ou uma cultura humana como forma de adoração. A
recusa em adaptar uma tradição a novas realidades pode estar sob a condenação de Jesus ao
transformarmos nossa cultura humana favorita em um ídolo, como normatização, em pé de igualdade
com as Escrituras232.
Para Robert Webber, a tentativa de unir a liturgia mais tradicional com a
contemporânea é excelente porque “o que falta em uma é forte na outra e vice-
versa. Na liturgia tradicional, faltava o sentido da experiência real e vital com
Deus. No movimento contemporâneo, faltava substância”233. Esse tipo de
equilíbrio, aliás, era visto mesmo na adoração da igreja primitiva.
Larry Hurtado ilustra isso ao dizer que, para os cristãos daqueles primeiros
tempos, o culto não era simplesmente um exercício religioso de que participavam,
mas uma oportunidade para reafirmar aquilo em que criam e tomar parte de seus
rituais. Era uma ocasião para a manifestação e a experiência dos poderes divinos.
Nesse sentido, parece que as expectativas eram sempre elevadas durante o culto,
porque se esperava que o encontro com Deus fosse exuberante234.
Tenho a consciência de que alguns demorarão até atingir esse grau de
convergência entre as tradições, e poderá haver a sobreposição da característica de
uma em relação às demais por algum tempo. Porém precisamos perseverar em
direção a um equilíbrio mais exato entre elas. Para isso, é útil ter uma reunião para
planejar e revisar os cultos, a fim de aprender com os erros e desenvolver boas
práticas. Isso elevará a qualidade dos cultos – entendendo, claro, que uma
preparação cuidadosa não precisa excluir a espontaneidade235.
“O culto deveria ser interessante”, afirma Michael Horton, “afinal, é um encontro
com Deus!”. Para Horton, isso se dá quando demonstramos inteligência e arte no
desenvolvimento e significado de cada ato do culto. Para ele, “quer seja o culto
contemporâneo quer seja o tradicional, ambos se tornarão rotineiros, maçantes e
sem propósito, se permitirmos que ele se realize sem uma direção intencional em sua
preparação”236. É preciso pensar sobre o culto. É preciso estar preparado para
cultuar. Até porque, segundo J. J. von Allmen:
É no culto que a igreja dá provas de si mesma; é nele que reside o centro da congregação. É a ele que
somos levados quando verdadeiramente procuramos a Igreja, e é a partir dele que esta se encontra com o
mundo, a fim de exercer a sua missão. A Igreja não é fundamentalmente uma instituição ou um
organismo. Ela é fundamentalmente uma assembleia litúrgica, emergindo e vivendo em uma história
contada por meio do culto237.
229. RIENSTRA, Ron. O culto como manifestação da igreja. Lecionário, ano 2018. Disponível em:
<https://lecionario.com/o-culto-como-manifestação-da-igreja-5eb81f53c55f>, acesso em 26 ABR 2020.
230. VON ALLMEN, J. J. apud RIENSTRA, Ron. O culto como manifestação da igreja. Lecionário, ano 2018.
Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-manifestação-da-igreja-5eb81f53c55f>, acesso em 26 ABR
2020.
231. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/etos, acesso em
31 MAI 2020.
232. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
233. WEBBER, Robert apud PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura
contemporânea e analítica do Princípio Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019.
Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
234. HURTADO, Larry H. apud SIQUEIRA, Gutierres Fernandes. Em defesa do culto litúrgico-carismático.
Lecionário, ano 2018. Disponível em: <https://lecionario.com/em-defesa-do-culto-litúrgico-carismático-
4d396c24432a>, acesso em 26 ABR 2020.
235. ASHTON, Mark; CARSON, D.A. (ed.); HUGHES, R. Kent; KELLER, Timothy. Louvor: análise teológica e
prática. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, ano 2017.
236. HORTON, Michael apud PRADO, Renato Marinoni dos Santos. A necessidade de uma leitura
contemporânea e analítica do Princípio Regulador do Culto. Dissertação de Mestrado PUC-SP, ano 2019.
Disponível em:
https://tede.pucsp.br/bitstream/handle/22635/2/Renato%20Marinoni%20dos%20Santos%20Prado.pdf,
acesso em 18 MAI 2020.
237. VON ALLMEN, J. J. apud RIENSTRA, Ron. O culto como manifestação da igreja. Lecionário, ano 2018.
Disponível em: <https://lecionario.com/o-culto-como-manifestação-da-igreja-5eb81f53c55f>, acesso em 26 ABR
2020.
APÊNDICE
SUGESTÕES DE ORDENS DE
CULTO
EXEMPLO 1
A) Abertura:
Leitura pública das Escrituras
Oração espontânea
B) Música:
02 músicas
Oração de confissão
Recitação do Pai Nosso
02 músicas
C) Interlúdio:
Anúncios
Ofertório
01 música
D) Pregação:
Exposição Bíblica
Oração espontânea
E) Ceia do Senhor:
Celebração da Ceia
Recitação do Credo Apostólico
F) Finalização:
Oração pelos enfermos
Orações de gratidão
Impetração da Bênção Apostólica
EXEMPLO 2
CULTO DE ENSINO
A) Abertura:
Leitura pública das Escrituras
Oração espontânea
B) Música:
02 músicas
Oração de confissão
Recitação do Pai Nosso ou Credo Apostólico
C) Interlúdio:
Anúncios
Ofertório
D) Pregação e Ensino:
Reflexão bíblica breve
Oração espontânea
Escola Bíblica*
E) Finalização:
Orações de gratidão
Impetração da Bênção Apostólica
* Aulas concernentes aos temas bíblicos e teológicos importantes para a fé cristã, em um ambiente que permita
interação, resolução de dúvidas e troca de experiências. Havendo possibilidade, divisão em classes de acordo com
o interesse, faixa etária e qualquer outro critério determinado pela igreja local.
EXEMPLO 3
CULTO DE ORAÇÃO
A) Abertura:
Leitura pública das Escrituras
Oração espontânea
B) Música:
03 músicas
Recitação do Pai Nosso ou Credo Apostólico
C) Orações:
Oração de confissão;
Oração pelos enfermos;
Intercessões em geral;
Orações de gratidão.
D) Interlúdio:
Anúncios
Ofertório
E) Pregação:
Exposição Bíblica
Oração espontânea
F) Finalização:
Oração pelo país e pelas autoridades
Oração pela Igreja e Missões
Impetração da Bênção Apostólica