1 Lance para o Amor (Montreal Monsters) - Bia Fernandes

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 343

Copyright © 2023 de Bia Fernandes

Todos os direitos reservados. Este ebook ou qualquer parte dele


não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem
autorização expressa, por escrito, da autora, exceto pelo uso de
citações breves em uma resenha do ebook.

Revisão: Gabrielle Andrade


Capa e diagramação: Giulia Rebouças (@gialuidesign)
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulp 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Bônus
Agradecimentos
— Será que dá pra gemer mais baixo! — gritou meu irmão
antes de dar um soco na parede que estava quase balançando com
a loucura que acontecia no quarto ao lado.
​Colin era sempre assim quando recebia visita feminina.
Era a terceira vez desde que cheguei em Montreal, duas
semanas atrás, que eu ouvia seu show por trás daquelas paredes.
Da primeira vez foi um pouco chocante, mas acho que deixei de me
importar depois da segunda. Afinal, a casa era um terço dele.
​— E você ainda não se acostumou com isso? — Olhei para
Killian através do espelho.
​Ele estava deitado na cama e encarava o teto com clara irritação.
​— Não se trata de mim — resmungou antes de bufar.
​Então era por causa de mim.
​Kill ainda achava que eu era uma garota de doze anos que mal
havia dado o primeiro beijo. Pelo jeito, ele queria manter minha
“inocência”.
​— Somos todos adultos aqui — lembrei-lhe antes de voltar a
aplicar a máscara de cílios com concentração redobrada para não
sujar novamente minha pele.
​Killian, Colin e Bradley faziam parte do Montreal Monsters, um
dos times de hóquei com maior destaque na atualidade, e dividiam
uma casa entre si. A casa era grande, tinha piscina, jardim e até
sauna, mas apenas três quartos, o que era o ideal para eles. No
auge dos vinte e poucos anos, com uma carreira promissora e longe
dos familiares, eles se tornaram como irmãos um para o outro.
​Apesar do esporte ter unido esse trio, eles não poderiam ser mais
diferentes em todos os outros sentidos. Kill, ao contrário de mim,
tinha puxado os cabelos loiros acobreados de nosso pai e possuía
uma tendência a ser “certinho”. Colin era ruivo, tinha barba e orgulho
em ser conhecido como incorrigível. Então vinha Brad, com seus
traços asiáticos — herança dos pais — e jeito mais contido. Ele era
o mais novo do trio, mas seu talento para o hóquei o trouxe longe e
prometia levar ainda mais.
​E então eu cheguei, o que forçou os três homens a terem que
aceitar uma mulher na casa. Killian passou a dividir o quarto com
Colin, o que deixou sua suíte para mim, que por sinal era a única da
casa. Tinha um lavabo próximo da sala e também um banheiro
grande que os três estavam lutando para dividir. Colin era o único
que reclamava quando alguém demorava a desocupar o banheiro e
ironicamente era o que mais passava tempo lá dentro.
​Eu não cheguei aqui de supetão. Meu irmão me convidou. Ele
sabia que o término com Tyler me deixou mal e me convenceu a vir
para esfriar a cabeça. Não era fácil terminar um relacionamento de
seis anos, mas estar longe de casa me lembrou que existia um
mundo de coisas que eu ainda precisava vivenciar e eu iria.
​Além disso, Killian queria me ajudar a realizar um sonho e a
galeria de artes recém-aberta no centro de Montreal poderia acabar
sendo minha grande chance.
​— Quer dormir aqui hoje? — ofereci.
​Sabia que ele teria que ficar com o sofá caso a companhia de
Colin não fosse embora.
​— Não se preocupe, ela vai embora depois que eles acabarem —
afirmou, claramente acostumado com isso.
​Dos três, meu irmão era o único que não trazia mulheres para a
casa, mas cheguei a vê-lo saindo de madrugada algumas vezes. Ele
não falava do assunto. Eu não sabia se esse mistério todo era por
causa da minha presença ou se ele simplesmente gostava de ser
mais reservado sobre sua vida amorosa.
​ Onde você vai? — ele perguntou enquanto me observava

passar um pouco de glitter nas maçãs do rosto.
​— Sair — decidi manter em segredo qual seria minha diversão da
noite.
​Afinal, todos temos segredos.
​Notei que Kill queria fazer perguntas, mas se conteve. Quando
cheguei aqui, firmamos um acordo: nada de ficar fazendo perguntas
íntimas sobre a vida um do outro. Ele tinha vinte e sete e eu vinte e
três, portanto dois adultos que sabiam se cuidar.
​— Claire já deve estar chegando — determinei quando olhei a
hora no celular.
​Meu irmão fez careta.
​Claire era irmã de Colin, apenas dois anos mais nova do que eu e
estudava em uma ótima universidade aqui em Montreal. Ela morava
no campus e estava me apresentando cada pedaço da cidade.
​Até os mais ousados, como o de hoje. Ela disse que seria bom
para conhecer gente nova e também para me aventurar um pouco
fora da minha bolha de sempre.
​Coloquei minha jaqueta de couro curta e me olhei no espelho
uma última vez.
​— Você vai passar frio se não se agasalhar mais — avisou meu
irmão, claramente acostumado com o clima daqui.
​Antes que eu respondesse, notamos que o quarto ao lado ficou
silencioso.
​Troquei um olhar com Killian enquanto ouvíamos o som de
passos apressados, risadinhas e a porta do outro quarto sendo
aberta. Os passos se afastaram cada vez mais até se tornarem
inaudíveis.
— Bom, é isso — determinou meu irmão, sentando na cama. —
Ela se foi.
No segundo seguinte, a porta do meu quarto foi aberta e um
Colin suado e sem camisa apareceu. Seu cabelo ruivo estava
bagunçado, suas bochechas coradas e lábios inchados. Tirando o
travesseiro que ele segurava contra o quadril, Colin estava nu.
​Se “sexo” fosse uma imagem, com certeza seria essa.
​— Ei, Saint Clair, tá gata hein? — elogiou ele, me olhando dos
pés à cabeça.
​ u sorri e dei uma voltinha.
E
​O vestido preto era bem mais curto do que eu costumava usar,
mas Claire garantiu que eu precisava estar com ele. Ela alegou que
as bebidas e um bom parceiro de dança seriam o bastante para
aquecer minha noite.
​— Cara, vai vestir uma roupa. — Meu irmão se levantou e foi em
direção ao amigo. — Enquanto isso vou tacar fogo no colchão.
​Ele começou a empurrar Colin pelos ombros para fora dali.
​Eu ri.
​Killian era ciumento.
​— Vai ter que colocar fogo em mais do que só o colchão se
quiser desinfetar o quarto. — O ruivo piscou para mim e se deixou
ser empurrado para fora.
​Não afastei o olhar quando ele me deu as costas e sua bunda
musculosa ficou em evidência.
​Killian falou um palavrão.
​Bem, talvez ele devesse ter decidido dividir o quarto com Brad.
Ele era bem mais organizado do que Colin e tinha namorada. Ela
quase não vinha aqui.
​— Droga, Cassie, eu já falei que não curti a foto dela! —
exclamou Brad, irritado, enquanto passava pelo corredor com o
celular na mão, provavelmente em ligação com a namorada. — Além
disso, o que tem de mais? — Sua voz sumiu quando ele se enfiou no
quarto e bateu a porta com força.
​Talvez fosse por isso que Kill escolheu dividir o quarto com o
outro amigo. Bradley passava a maior parte do tempo discutindo em
ligação com a namorada ciumenta enquanto Colin no máximo ficava
uns trinta minutos com uma mulher em seu quarto antes que ela
fosse embora e ele voltasse a sua vida de sempre.
​Até ofereci ao meu irmão a chance de colocar um sofá-cama no
quarto em que eu estava e dormir ali, mas ele odiava o cheiro da
minha tinta. Kill insistia que aquelas bisnagas eram bombas de
enxaqueca para ele, o que eu não entendia, talvez por estar tão
acostumada com o odor que quase não o sentia.
​Na verdade, eu até gostava.
​Analisei as pontas dos meus dedos que estavam tingidas de
laranja e amarelo e mordi o lábio inferior. Apesar de ter esfregado
minha pele com dedicação durante o banho, ainda havia resquícios
da tinta que usei para pintar um quadro durante a tarde.
​— Ficou bonito — disse Brad.
​Ele estava parado em minha porta e encarava o quadro recém-
finalizado que descansava no cavalete. Quando não estava
discutindo com a namorada, ele era bem silencioso, eu nunca notava
que ele estava por perto até que dissesse algo.
​— Estou pensando em levar esse na galeria. — Dei um passo em
direção ao quadro, me sentindo ao mesmo tempo orgulhosa e
hesitante enquanto observava meu trabalho.
​— Aquele chapeleiro maluco vai ser um idiota se não gostar.
​Não consegui conter o riso.
​O dono da galeria era um famoso artista plástico que, por algum
motivo, realmente se parecia um pouco com o Chapeleiro Maluco de
Alice no país das maravilhas. Ele gostava de cores vibrantes,
mantinha o cabelo laranja sempre no comprimento dos ombros e
parecia viver em outro mundo, um só dele. Ele era de grande
inspiração para mim e quando fiquei sabendo que estava em busca
de um artista revelação para receber seu patrocínio e ingressar
nesse mundo, eu tive que tentar.
​Era a maior oportunidade que já tive de realizar meu sonho.
​— Você está bem? — perguntei, me virando para Brad.
​Ele abriu um sorriso triste e balançou os ombros cansados.
​— Estou, é só… Cassie — disse, entortando os lábios, como se
dizer o nome da namorada já explicasse tudo.
​Por um tempo, até achei isso normal, mas hoje eu sabia que uma
relação não deveria ser assim. Não era saudável e eu sabia disso
por experiência própria.
​Bradley também enxergaria isso, mais cedo ou mais tarde. Dos
três homens da casa, ele era o mais novo, tanto em idade quanto no
Montreal Monsters e parecia ainda estar lutando para aprender a
conciliar vida pessoal e o esporte.
Depois que você vira um astro do hóquei, nada mais é igual. Eu
conseguia ver isso claramente em Killian.
— Vai sair? — perguntou Brad, me olhando dos pés à cabeça. —
Não pretende ficar linda desse jeito guardada nessa casa, não é?
— Claire já deve estar chegando — avisei, abrindo um sorriso de
agradecimento ao elogio.
Colin e Bradley eram uns amores comigo, sempre me colocando
para cima e fazendo coisas para me mimar. Eu até poderia encarar
isso como uma investida para cima de mim se viesse de qualquer
outra pessoa, mas não deles. Killian explicou sobre uma regra
importante do time onde era estritamente proibido se relacionar
amorosamente com a família de outro jogador e que eu poderia ficar
sossegada, pois os rapazes seriam irmãos para mim assim como ele
era e de fato estava sendo assim. Até Colin, que era o mais
mulherengo, tinha seus limites comigo — mesmo sendo poucos.
Eu não era cega. Os caras do time eram gatos dos pés à cabeça,
não tinha um pingo de gordura em seus corpos, apenas músculos,
pois o esporte exigia isso. Todos os dias enquanto eu ainda estava
na cama era possível ouvi-los saindo para o treino, eles davam duro
para serem gostosos, afinal de contas. Eles amavam o hóquei acima
de qualquer coisa e eu sabia que jamais descumpririam uma regra.
Maldita regra.
Meu celular vibrou quando a mensagem de Claire chegou. Ela já
estava na porta, me esperando.
— Enfim, bom passeio. — Bradley deu um soquinho leve na
dobradiça da porta e comprimiu os lábios antes de sair, claramente
perturbado pela recente discussão com a namorada.
Eu queria poder ajudá-lo, mas era melhor dar tempo a ele. Além
disso, eu tinha uma noite para aproveitar.​Enfiei meus pés
rapidamente nos sapatos de salto e me olhei no espelho mais uma
vez. Meus olhos ostentavam uma maquiagem pesada preta e o
decote do vestido deixava a tatuagem entre meus seios à mostra.
Ousada? Talvez.
Sensual? Com certeza.

Claire era ruiva como o irmão, bem mais baixa do que eu, e a
primeira impressão que tive dela quando a conheci era a de uma
universitária meiga e sonhadora. Ela me recebeu com toda a
simpatia possível e prometeu que até o fim de minha estadia eu
conheceria Montreal tão bem quanto um residente local.
Era praticamente impossível não gostar de Claire, só tinha uma
pessoa que parecia não simpatizar muito com ela: meu irmão.
​Ele se recusava a falar sobre isso, mas eu sabia que mais cedo
ou mais tarde Killian acabaria contando o motivo disso tudo.
​Desde que cheguei aqui, Claire me levou a alguns cafés
aconchegantes, ao cinema e até a um spa, mas até então não fui a
nenhum lugar parecido com o dessa noite. Ainda tínhamos uma lista
de lugares para ir e eu me encantava cada vez mais. Aos poucos, eu
começava a sentir que seria difícil ir embora quando chegasse a
hora.
​Ok, eu gostava do lugar que nasci e cresci. Era uma cidade
pequena e pacata na Flórida, com verões quentes que faziam jus ao
apelido “estado do sol”. Eu ainda morava com meus pais, que
ficaram extremamente apegados a mim quando meu irmão nos
deixou, anos atrás, para seguir seu sonho com o hóquei e morar no
Canadá. Eles ficaram bastante receosos quando revelei que passaria
um tempo longe, mas não me impediram.
Eles sabiam que um dos motivos de eu estar em Montreal, além
do término com Ty, era também porque eu queria seguir meu sonho
e tinha uma grande oportunidade para mim aqui.
​Ao menos era o que eu esperava.
​— E não aceite bebidas de estranhos — me lembrou Claire
enquanto dirigia, me tirando de meus pensamentos.
​— Tá bom, mãe — brinquei, observando as ruas enquanto
passávamos.
​Eu não podia negar: Montreal era encantador.
Seu clima era muito diferente do da Flórida, o que tornou um
pouco difícil me acostumar nos primeiros dias, mas agora eu até que
estava gostando. De certa forma, eu me sentia elegante, menos
quando ficava à toa em casa. Nesses casos, eu só colocava uma
calça larga, meias bregas nos pés e blusas quentes e confortáveis.
Era um milagre eu não estar com tanto frio essa noite,
especialmente por estar com as pernas de fora, mas eu sabia que a
bebida poderia ajudar a afastar o frio do corpo.
​ Muitos universitários frequentam o Reinor’s, alguns são

babacas, sabe? — Claire me olhou quando paramos no sinal
vermelho. — Nem sei porque estou falando tudo isso, você é mais
velha do que eu, deve estar acostumada.
​Abri um sorrisinho e encarei minhas pernas.
​Na teoria, sim. Na prática, nem tanto.
​Por ter começado a namorar muito cedo, eu passei mais tempo
em casa assistindo filmes com Ty do que em baladas. Além disso,
nunca gostei muito de multidões.
Mas, se era para criar novas experiências, então eu estava
disposta a ir de cabeça.
​— Você vai querer ir embora em um horário específico? —
perguntei quando o carro voltou a andar.
​Claire mordeu o lábio inferior e batucou com os dedos no volante.
​— Não posso voltar tão tarde para o campus.
​Olhei a hora no celular.
​— E se nós nos encontrarmos uma hora no estacionamento? —
sugeri.
​Teríamos tempo o bastante para aproveitar.
​— Parece bom — concordou ela.
​Eu sabia que Claire ia se encontrar com alguém e eu não iria
atrapalhar minha amiga ficando colada a ela o tempo todo, por isso
era melhor encontrá-la em um horário marcado para irmos embora.
​— E o seu quadro? — perguntou ela enquanto entrava com o
carro no estacionamento lotado.
​Me distraí por uns segundos enquanto observava o lado de fora
do Reinor’s que parecia ferver de gente.
​— Semana que vem — respondi, distraída, tirando o cinto de
segurança e coloquei uma mecha de cabelo solto atrás da orelha. —
Marquei um horário na galeria.
​Senti um arrepio enquanto observava pessoas entrando e saindo
do Reinor’s o tempo todo. Cada vez que a porta era aberta eu
conseguia ver as luzes coloridas refletirem.
​— Vai dar tudo certo. — Claire sorriu para mim, pegou a bolsa e
abriu a porta do carro. — Vamos?
​Olhei novamente para o estabelecimento e mordi o lábio inferior
com expectativa. Por algum motivo eu sentia que, depois dessa
noite, minha vida não seria mais a mesma.
​— Com certeza.
Tem momentos na vida que a gente se deixa levar por alguém e
quando nos damos conta, estamos na pior situação possível.
​Esse era meu caso.
​Meu irmão estava na cidade.
Ele queria se divertir.
Ele me convenceu a acompanhá-lo.
Ah, se arrependimento matasse…
Eu tinha coisas mais importantes a fazer, precisava decidir a
estratégia para o próximo jogo, determinar quem eu colocaria para
jogar dessa vez e quais melhorias teríamos que fazer. Eu precisava
me concentrar, meu time precisava de uma âncora, especialmente
depois que ele se abalou quando um dos jogadores se envolveu com
a prima de outro. Apesar de já fazerem meses desse ocorrido, eu
ainda sentia que os rapazes estavam desconfiados e precisava deles
unidos para vencermos.
​É por isso que decidi criar uma regra importante para que
situações como essa não voltassem a acontecer: se envolver com a
família de outros jogadores estava fora de questão. Todos
concordaram com isso. O que não faltava aos rapazes era opções,
eles não precisavam ir para a cama com a irmã, prima ou mãe de
alguém.
​ sse último aconteceu quando eu era jogador e, bem, também
E
trouxe grandes problemas. O treinador teve um trabalho gigantesco
para consertar o estrago causado no time que se dividiu em dois:
aqueles que apoiavam o cara que pegou a mãe do outro e aqueles
que achavam aquilo inaceitável.
​Por sorte, eu sempre fiquei com mulheres que não tinham risco
de abalar minha relação com o hóquei, que com certeza era mais
importante.
Eu podia até passar a noite nos braços de uma mulher, mas na
manhã seguinte era com o hóquei que eu queria estar e nunca deixei
nada atrapalhar isso. Talvez esse fosse o motivo de eu estar próximo
dos 40 ainda solteiro, mas minha esposa era o taco, minha casa era
o rinque e cada vez que eu marcava um ponto eu tinha um orgasmo.
Ok, talvez alguns me achassem louco, mas ao menos as últimas
notícias do esporte me colocaram na manchete como “o técnico do
ano”.
E, ainda assim, eu tinha aceitado vir a esse lugar lotado de
universitários ansiosos por uma noite de sexo casual para finalizar a
noite de sexta.
​— Não acredito que você nunca veio aqui. — Hugh, meu irmão
mais novo, ergueu a garrafa de cerveja e sorriu para uma mulher que
passou.
​— E eu não acredito que aceitei entrar aqui — resmunguei,
observando aquele monte de gente se esbarrando, se agarrando ou
pior: dividindo o mesmo copo.
​O Reinor’s era conhecido como um ótimo lugar para conhecer
gente nova, beber e extravasar. O espaço não era muito grande,
nem muito limpo, mas por algum motivo as pessoas gostavam. Só
isso podia explicar a lotação e não precisava observar muito para
notar que a grande maioria dos frequentadores era de universitários.
​Eu já gostei de frequentar lugares lotados e barulhentos, mas
fazia pelo menos dez anos que eu preferia a calma e o silêncio de
lugares reservados.
​— Será que dá para tirar essa carranca do rosto e agir como um
ser humano normal? — Hugh bateu com o ombro no meu. — Se
solta, Rick. Bebe um pouco, descola uma gata, beija umas bocas…
​ Prefiro evitar pegar herpes — respondi, passando os olhos

pelo ambiente lotado.
​Foi um milagre conseguirmos duas cadeiras vazias no bar. Meu
joelho esquerdo estava dolorido, então não hesitei quando vi a
oportunidade de me sentar.
​Até pensei em pegar uma bebida, mas estava evitando álcool.
Logo eu teria quatro décadas de vida e eu queria manter meu corpo
em forma, o que com certeza seria mais difícil daqui pra frente.
Droga, por que mesmo aceitei vir?
​— Pode me dar uma vodka pura, por favor? — pediu uma mulher
ao meu lado.
​Vodka pura? Sinceramente, quem teria coragem de beber algo
tão ruim?
​Me virei por instinto, interessado em descobrir isso e dei de cara
com duas pernas torneadas e lindas. Subi o olhar, observando cada
curva do corpo feminino perfeito, do quadril largo, da cintura fina, dos
cabelos mais pretos que já vi na vida e do nariz empinado.
​A mulher agarrou a barra do vestido curto e o puxou para baixo,
parecendo não notar o que fazia. Fiquei com a boca seca. Sua
beleza era do tipo que chamava a atenção, o tipo de beleza que não
envolvia opinião, era um fato. Ela era linda.
A morena finalmente pegou o copo e se virou para sair e por
breves segundos, nossos olhares se encontraram.
​Ela sorriu de leve e se afastou, entrando no meio da multidão
novamente, mas seus olhos âmbares continuaram claros em minha
mente.
​Ela tinha sardas, o que indicava que vinha de um lugar quente.
​Ela me deixou quente.
​Me levantei abruptamente, quase sem notar o que estava
fazendo, e deslizei a mão por meu cabelo, colocando-o para trás.
​— Rick? — chamou Hugh, estranhando minha reação.
​Busquei aquela mulher com os olhos, mas ela já tinha sumido
dentro da multidão.
​Eu precisava encontrá-la.
​— Eu vou ao banheiro — falei sem olhar para meu irmão.
​— Ok, já entendi, você vai fugir. — Ele nem se deu ao trabalho de
parecer decepcionado. — Eu pego um Uber. Vou ficar aqui até
descobrir o que a noite tem a me oferecer.
​Eu sabia que sim.
​Hugh mal tinha trinta anos e sua personalidade era muito
diferente da minha. Ele ainda morava com nossos pais, aliás. Não
que eu tivesse algo contra isso, mas eu sabia que ele veio passar um
tempo aqui porque tinha brigado com eles.
​Bem, isso não me importava agora.
​Eu precisava encontrar a dona dos olhos âmbares que sorriu
para mim.

Parecia inadmissível um grupo tão grande de pessoas conseguir


se enfiar em um espaço tão pequeno, mas eu sabia que minha
irritação maior nem era exatamente por causa disso. Acontece que
ter tantas pessoas em meu caminho enquanto eu tentava encontrar
aquela mulher só conseguia tornar a tarefa mais difícil.
​Quase impossível, aliás.
​Mas eu era o homem que conseguiu bolar uma estratégia de
última hora e levar o time à vitória contra o Boston Bruins, então com
certeza conseguiria fazer isso.
​Só precisaria atravessar um mar de pessoas embriagadas e
suadas antes, enquanto olhava para todos os lados à sua procura.
Eu conseguia me lembrar do tom exato de preto de seus cabelos
compridos e ondulados, e do brilho de seu vestido curto que moldava
de forma meticulosa suas curvas acentuadas.
​Minha cabeça começou a doer quando notei que a maioria das
mulheres ali tinham essas mesmas características. Isso tornava tudo
mais difícil, mas bastava olhar para seus rostos para saber que
nenhuma era ela. Somente aquela mulher tinha olhos tão
penetrantes.
​Ela tinha vindo exatamente nessa direção, como conseguiu sumir
assim?
​— Ah, meu Deus! — ouvi alguém exclamar enquanto eu
atravessava o meio da pista de dança lotada. — Não acredito!
​ enti uma mão agarrar meu braço e encarei seu dono, me
S
sentindo prestes a mandá-lo enfiar aquela mão em um outro lugar
específico.
​Mas eu não podia. Isso acabaria caindo nas redes e eu seria
massacrado por ser grosseiro com um fã. E eu sabia que o cara era
um fã, afinal sua camisa amadora vermelha e branca do Montreal
Monsters e seu olhar vidrado em mim não diziam outra coisa.
​— O que foi? — perguntou a loira agarrada ao seu pescoço se
virando para olhar em minha direção.
​— É Maverick Stanwick — respondeu ele enquanto largava a
mulher e agarrava minha mão. — Cara, eu sou seu fã.
​A loira continuou a não entender nada, mas me lançou um olhar
que eu não poderia descrever de outra forma que não malicioso.
​Dei um tapinha no ombro do cara com a mão livre e forcei um
sorriso.
​— Apenas faço o meu melhor — respondi, utilizando a mesma
frase de sempre.
​Especialmente por ser verdade.
​O rapaz me soltou e encarou as próprias mãos como se de
repente valessem ouro.
​— Eu nunca mais vou lavá-las.
​Para isso eu não tinha resposta.
​Aproveitei a brecha para me afastar e continuar minhas buscas,
mas logo fui reconhecido por outro jovem que dessa vez me abraçou
e depois por um casal que pediu um autógrafo. Um grupo de garotas
universitárias pediu uma foto.
Minhas buscas estavam se tornando inúteis, especialmente agora
que eu parava a cada dez segundos para falar com alguém. Pessoas
esbarravam em mim a todo instante pela falta de espaço e meu
sobretudo preto começava a me causar um calor infernal.
Me senti o maior idiota de todos por estar procurando uma mulher
só porque seu olhar despertou algo dentro de mim. Desejo forte e
animalesco, do tipo exato que move um homem automaticamente
em direção à sua presa.
Prestes a fazer 40 anos eu continuava a agir como se tivesse 20.
Era hora de parar com isso.
​Eu precisava de ar.
​ or ser mais alto do que a maioria que estava em minha volta,
P
não foi difícil avistar uma porta com a placa bem grande escrito
“saída”. Fui em direção a ela sem parar dessa vez. Assim que a
alcancei, agarrei sua maçaneta e a empurrei. A porta se abriu sem
dificuldade e em dois segundos eu estava encostado na parede do
lado de fora, em uma rua deserta e sem casas.
​Foi um alívio encher meus pulmões com ar fresco, sem ter
pessoas encostando em mim ou falando em meu ouvido com o hálito
de quem já bebeu todas que podia.
​Me sentia embriagado sem ter bebido uma única gota de álcool.
​O vento gelado da cidade bagunçou meu cabelo e
automaticamente senti minhas bochechas esquentarem para lutar
contra o frio. Ao menos minha barba mantinha boa parte do meu
rosto aquecido.
​Uma voz trazida pelo vento me indicou que eu não estava
sozinho.
​— Sim, mãe, eu sei, mas é o meu sonho… Ok, mande um abraço
para ele também.
​Levei meu olhar em direção a ela, encontrando a silhueta perfeita
daquela que foi o motivo de toda essa minha loucura. Seu copo
ainda cheio de vodka estava em cima de um barril, muito
provavelmente de cerveja, enquanto ela falava no celular com o
ombro encostado no muro.
​Ela estava de costas para mim, talvez por isso não me viu. Ou
talvez porque eu estava coberto pela escuridão.
​Aproveitei minha vantagem de não ter sido descoberto e me
mantive assim enquanto a observava falar ao celular. Sua voz, ao
contrário de seus olhos ferinos e sedutores, era doce e simpática.
​Ela devia ser só uma menina de uns vinte e poucos anos, talvez
fizesse parte do grupo de universitários que aqui estavam. Se
minhas suspeitas fossem verdadeiras, era melhor eu lhe dar as
costas e ficar na minha. Eu já não era mais tão jovem para me
envolver com pessoas assim, talvez devesse aceitar a sugestão do
meu relações públicas e arrumar algum relacionamento sério para
sossegar.
​— Sim, eu pintei um novo, acho que dessa vez vai dar certo,
estou mais confiante. — Ela se virou, ficando de perfil para mim com
as costas apoiadas na parede e encarou as pontas dos próprios
dedos. — Escolhi o entardecer visto do meu quarto. Algumas
pessoas que viram afirmaram que é um dos quadros mais lindos que
já pintei, acho que por isso estou mais confiante.
​Então ela pintava quadros?
​Uma artista amadora? Uma profissional? Ou apenas uma
sonhadora?
​— Marquei para essa próxima quarta-feira, na parte da tarde. —
Ela mordeu a ponta do polegar e assentiu, mesmo que não estivesse
sendo vista pela pessoa que conversava. — O nome é Mont’Real
Gallery, vou pegar um metrô que vai me deixar quase na porta do
lugar. Sim, mãe, é fácil andar por aqui, não se preocupe.
​Abaixei o olhar e sorri, notando que aquela era uma conversa
entre mãe e filha.
​Não pude deixar de fazer minhas anotações mentais sobre onde
ela estaria na quarta-feira. Não sei porquê gravei isso, só me
pareceu importante.
​— Mãe, eu preciso ir… Tá bom, eu mando. Pra você também. Te
amo. — A morena afastou o celular do ouvido e apertou o botão
vermelho na tela, finalizando a ligação.
​Ela encostou a cabeça na parede e encarou o céu com olhos
atentos.
​A cada respiração era possível ver a fumaça branca sair por seus
lábios entreabertos, que por sinal eram cheios. Observando suas
pernas nuas, comecei a me perguntar se a garota não sentia frio. Eu,
mesmo dentro de um sobretudo comprido e uma blusa de lã, ainda
me sentia com vontade de correr para dentro de um lugar quente.
​Na verdade, eu devia mesmo fazer isso. Seria o mais sensato a
se fazer. Não parecia certo um homem de praticamente quarenta
ficar espreitando uma moça de… O quê? Vinte e cinco?
​Me preparei para sair dali, me agarrando ao último fio de
sensatez dentro de mim, mas a porta se abriu e dois rapazes
bêbados apareceram no beco, seus olhares alcançando a moça com
uma rapidez surpreendente.
​Ou nem tanto.
​Ela parecia ter esse efeito nas pessoas.
​ s dois, que se seguravam um no outro para não cair,
O
começaram a cambalear em direção à morena, que ficou tensa ao
notar isso. Ela se desencostou da parede e pigarreou baixo,
encarando o chão como quem não quer papo.
​Eles estavam embriagados demais para notar isso.
​— Olhe só pra isso — disse um deles quando pararam próximo a
ela.
​Próximos demais.
​— Uma gata dessas não deveria ficar sozinha. — O outro riu e
estendeu a mão que segurava uma garrafa de cerveja em direção ao
rosto da garota, que deu um passo para o lado e fechou as mãos em
punhos. — Uau, essa é uma gatinha difícil.
​Eles riram, achando graça da reação resignada da morena, como
se ela estivesse se fazendo de difícil de propósito para chamar a
atenção dos babacas, o que não era o caso.
​— É melhor vocês se afastarem de mim — a voz dela estava
bem diferente de antes, com um tom rouco de quem claramente
estava com o coração acelerado dentro do peito. — Antes que…
​— Antes que o quê? — O babaca tomou um grande gole da
cerveja e deu de ombros. — Eu gosto de desafios.
​Ok, isso era demais para suportar.
​Eu podia não ser o maior exemplo de comportamento — há
alguns minutos eu estava observando a moça em segredo, pelo
amor de Deus — mas algo dentro de mim me dizia que eu precisava
protegê-la.
​E eu iria.
Depois de entregar um dos copos de vodka para um rapaz
simpático que Claire me apresentou, senti meu celular vibrar dentro
do bolso da jaqueta e não consegui ignorar a ligação quando vi que
era da minha mãe. Passamos a semana inteira sem nos falar, queria
compartilhar com ela as novidades e também saber se tinha algo de
novo acontecendo por lá, por isso pedi licença e saí do Reinor’s.
​Não consegui deixar de notar que meu parceiro pareceu
decepcionado quando avisei que iria me ausentar, mas apesar de
achá-lo um rapaz simpático, me senti grata pela ligação, pois assim
tive a oportunidade de sair do meio daquele amontoado de gente
para respirar um pouco de ar puro.
​O vento gelado me atingiu com força logo que cheguei do lado de
fora, em uma rua deserta e silenciosa, mas o álcool parecia disposto
a lutar para me aquecer. Talvez eu devesse ter trazido outra blusa…
​Minha mãe quis saber de tudo. Se eu estava gostando da cidade,
se estava me acostumando com o clima, se estava me alimentando
bem e se Killian também estava. Eram as preocupações básicas de
uma mãe e ela sempre se mostrou bastante preocupada com seus
dois únicos filhos. Como Kill era mais reservado e falava pouco, ela
aproveitava minha presença ali para também lhe atualizar sobre ele.
​Meu irmão sempre foi do tipo que fala que tudo está bem, mesmo
que não esteja. Ele odiava preocupar as pessoas, em especial nossa
mãe. Eu era o extremo contrário: já falava logo o que havia de errado
para poder receber o consolo de Rosemary Saint Clair e seus
conselhos amorosos.
​Bem, eu tinha muitas semelhanças com nossa mãe, enquanto
Killian era mais parecido com nosso pai.
​Por fim, falamos sobre o encontro que eu tinha marcado para a
próxima semana, um encontro que me causava mais ansiedade do
que eu poderia admitir. E não se tratava de um encontro romântico,
mas sim de um que poderia mudar a minha vida se o artista em
questão enxergasse em meus quadros o talento que ele estava
procurando. Eu fingia casualidade ao falar disso, mas sempre que
alguém me perguntava sobre o assunto, meu coração acelerava
dentro do peito e minhas mãos suavam, como se eu já estivesse
frente a frente com o “Chapeleiro Maluco”.
​Eu gostava de chamá-lo assim dentro da minha mente. Seu
nome era um pouco complicado, mas eu conhecia bem, afinal era o
nome do artista que me inspirou a maior parte da minha vida. Só era
divertido pensar nele como o personagem interpretado por Johnny
Depp.
​Eu torcia para que ele fosse simpático, ao menos atencioso, mas
algo me dizia que eu poderia me decepcionar. Nas duas últimas
vezes em que estive em sua galeria no horário marcado
antecipadamente, sua secretária deu uma desculpa qualquer sobre
sua ausência e remarcou o encontro. A cada encontro, eu pintava
um quadro novo quando o antigo não me parecia bom o bastante,
mas acho que era só minha insegurança falando mais alto.
​Os rapazes já não encontravam mais espaço na casa para
colocar aqueles quadros, em sua grande maioria paisagens do
entardecer que por sinal era meu horário favorito. Se eu tivesse
sorte, algum dia ainda pintaria uma aurora boreal, mas antes queria
ver uma pessoalmente com meus próprios olhos, não pelas lentes de
uma câmera em uma foto do Pinterest.
​Criar uma pintura não é a parte mais difícil. Colocar sentimento
nela, por outro lado…
​Isso sim era desafiador.
​Quando o álcool já não era mais capaz de me aquecer e o frio
começou a me incomodar, me despedi de minha mãe. Eu até poderia
ter falado que eu estava em uma balada com amigos, mas daí ela
teria adiado a ligação para outro momento por sentir que estava me
atrapalhando e eu não queria ter que fazer isso. Foi uma conversa
rápida, mas deu para matar um pouco da saudade que eu sentia
dela.
​Antes de voltar para dentro, onde eu sabia que encontraria
música alta, pessoas se esbarrando e conversas maliciosas,
encostei minha cabeça na parede e encarei o céu. Kill me garantiu
que em qualquer lugar do Canadá eu encontraria cores tão vibrantes
no céu quanto aqui, mas eu duvidava disso.
​Era mágico e encantador.
​Pena que a magia acabou quando dois babacas embriagados se
aproximaram de mim.
Talvez fosse o álcool ou até mesmo a falta de vergonha na cara,
mas eles me encararam descaradamente, como se eu fosse um
pedaço de carne em um açougue esperando para que colocassem
as mãos em mim e me levassem embora.
Isso me fez querer entrar dentro de um buraco para me esconder.
Montreal era uma das cidades mais seguras de todo o continente
americano, segundos os dados colhidos, mas por algum motivo senti
que era o pior lugar que eu poderia estar.
​Eles falaram algumas coisas, coisas que confesso não ter ouvido,
pois só conseguia escutar meu coração martelando dentro do peito.
Eu poderia correr, mas não consegui sair do lugar. Eu me recusava a
crer que eles seriam capazes de me forçar a algo.
​— É melhor vocês se afastarem de mim — consegui falar, mas
minha voz infelizmente saiu com menos confiança do que queria. —
Antes que…
​— Antes que o quê? — cuspiu um deles, entortando os lábios
finos em um sorriso medonho. — Eu gosto de desafios.
​Abri a boca para responder, mas nada saiu.
​Antes que o que, Skyler?
Você bateria neles? Nos dois juntos?
​Acho que não.
​Eu podia até ser mais alta do que eles — os dois eram
incrivelmente baixos —, mas eu não entendia nada de defesa
pessoal.
​ ocê vai gritar, Sky? Até parece que alguém dentro do Reinor’s,
V
com aquela música alta e aquele monte de gente bebendo sem
parar, seria capaz de te ouvir, muito menos ajudar.
​As pessoas tinham uma tendência estranha de se recusar a
ajudar mulheres em situação de perigo, preferindo fingir que não
estavam vendo ou até mesmo que tudo não passava de um mal-
entendido.
​Era triste, mas era verdade. Uma triste verdade.
​Eu estava me preparando para socar qualquer um deles que
tentasse se aproximar mais, quando um homem grande e
estranhamente simpático saiu das sombras e começou a andar em
nossa direção.
​Minhas mãos tremeram.
​Se ele decidisse me atacar, então eu estaria ferrada. Era um
homem grande demais e parecia bastante forte.
Merda.
​— Querida, o que faz aí? — Ele se aproximou a passos
relaxados enquanto segurava um copo com bebida transparente.
​Arquei as sobrancelhas e olhei de relance para onde deixei meu
copo, mas ele já não estava mais lá.
​Ergui o olhar até o indivíduo, constatando que era o mesmo
homem que trocou um rápido olhar comigo quando fui até o bar mais
ou menos quinze minutos atrás. Não foi nada verdadeiramente
significativo, ele era bonito e elegante, mas eu já tinha encontrado
um parceiro para a noite, além de que seu jeito me dizia que não era
o tipo homem que costumava estar desacompanhado.
​— Fui buscar sua vodka, esqueceu? — Quando parou ao meu
lado e me estendeu o copo, estiquei minha mão trêmula e o peguei,
aceitando entrar no jogo.
​Ok, então ele não estava aqui para ser uma ameaça para mim.
​Era um alívio.
​Um dos rapazes bufou e o homem virou para eles como se só
agora notasse sua presença. Eu sabia que era apenas fingimento,
afinal, se não soubesse o que estava acontecendo ali, jamais estaria
fazendo essa cena toda.
​— Boa noite — cumprimentou com a voz menos simpática e com
o rosto mais sério. — Posso ajudar com algo?
​ eu tom de voz baixou duas oitavas e apesar de ainda estar
S
tensa, um arrepio involuntário subiu por minha espinha enquanto eu
apreciava seu jeito protetor.
​Um dos bêbados — o mais sensato, provavelmente — puxou o
braço do amigo e murmurou coisas incompreensíveis enquanto o
arrastava para longe, temendo a carranca que se formou no rosto do
barbudo que acabara de me ajudar.
​Mas o homem não desfez a carranca até que eles finalmente
dobrassem a esquina e sumissem de nossa vista. Só então seus
ombros relaxaram levemente e ele se voltou para mim, com olhos
que eu não poderia descrever de outra forma que não examinadores.
​Mas não era como os outros dois me olharam pouco antes. Era
diferente, ele parecia preocupado, como se quisesse ter certeza de
que estava tudo bem.
​Beberiquei um pouco da vodka, sentindo o líquido descer quente,
porém eu tinha que admitir: seu olhar me esquentou mais do que a
bebida.
​— Você está bem? — finalmente perguntou.
​Sua voz continuava com aquele tom baixo e sério, levemente
rouco.
​Ah, céus…
​— E-eu… Sim. — Dei de ombros e abri um meio sorriso.
​— Tem certeza? Cadê seus amigos? Você não deveria estar aqui
fora sozinha. É perigoso — me alertou ele e arqueou a sobrancelha
— ou seu namorado, se tiver.
​— Eu vim com uma amiga, ela está lá dentro com alguém. Eu
não quis incomodar, só vim atender uma ligação — expliquei,
erguendo meu celular. — Além disso, você também está aqui fora
sozinho.
​Ele abaixou o olhar e sorriu de canto, como se tivesse sido pego
no argumento.
​— Eu não pretendia ficar aqui fora por muito tempo, só queria
respirar um ar menos… Abafado — finalizou, como se quisesse ter
dito outra palavra, mas evitasse por respeito.
​— Ah, eu também! — admiti com entusiasmo. — Viu só? Não é
tão ruim.
​ Eu sei, é só que… — Ele me olhou nos olhos e por um

momento, me senti vidrada em suas íris azuis. — O mundo é muito
cruel com as mulheres. Não é justo, você devia ter o direito de sair
para tomar um ar sem se preocupar se dois homens bêbados vão se
aproximar e te assediar, mas até que consigamos mudar o mundo,
por favor, evite ficar sozinha em becos escuros, está bem?
​Assenti lentamente, notando que seu tom não deixava margens
para brincadeira.
​Ele estava falando bem sério.
​Ainda assim, meu lado brincalhão entrou em ação em uma
tentativa de deixar as coisas leves.
​— Bem, pelo menos eu sei que posso contar com um cara
barbudo para vir me salvar uma vez ou outra — falei em um tom
bem-humorado.
​Ele coçou o queixo e riu baixo.
​— Como posso fazer você entender o quão sério é isso tudo?
​— Ei — chamei baixinho, falando o mais sério que consegui para
que ele entendesse que eu compreendia a situação. — Eu sei o
quão sério isso é, mas meu mecanismo de defesa exige que eu
brinque com algumas situações na tentativa de torná-las mais leves
para mim.
​— Isso é algo bem curioso.
​— Não é tão incomum assim — dei de ombros —, mas eu
agradeço por ter me tirado dessa situação desagradável, senhor…
​Arqueei as sobrancelhas enquanto aguardava o homem se
apresentar.
​Ele riu e negou com a cabeça.
​— Apenas Rick já está bom.
​— Rick — repeti, testando a palavra em meus lábios.
​Seus olhos azuis desceram e se fixaram em minha boca, como
se de repente ele tivesse acabado de encontrar um doce delicioso
em uma vitrine.
​Meu corpo esquentou.
​Mordi o lábio inferior e abaixei o olhar, me sentindo tímida de
repente.
​— E você? — o ouvi perguntar com a voz rouca.
​Voltei a erguer o olhar e franzi a testa em meio à minha confusão.
​ Eu?

​Ele concordou.
​— Preciso saber seu nome.
​Ele precisava?
​— Sky — respondi, utilizando meu apelido da mesma forma que
ele utilizou o dele.
​— Sky… — Rick repetiu baixo e sorriu de canto. — Como o céu
do entardecer.
​Arqueei as sobrancelhas.
​— Não entendo.
​— Os seus olhos — continuou ele, me encarando com
intensidade. — Eles me lembram o entardecer.
​— É meu horário favorito para pintar — admiti, cruzando os
braços para conter o frio. — Quando o céu parece esquecer que é
azul e se mistura em tons de amarelo, vermelho e âmbar.
​— Você é artista plástica? — perguntou Rick com interesse, mas
ao notar meu lábio inferior tremer de leve, ele começou a tirar o
sobretudo. — Por Deus, garota, você deve estar congelando.
​— Só um pouquinho — tentei esconder o fato de já não estar
mais sentindo as pontas dos dedos —, mas sim, sou artista. Ao
menos estou tentando me tornar uma. Sempre pintei por hobby,
cheguei até mesmo a fazer alguns trabalhos no passado, mas nada
muito… — Minha voz foi morrendo ao passo que Rick colocava seu
sobretudo sobre meus ombros trêmulos. — I-isso não é necessário.
​— Não te livrei de dois bêbados para deixar a hipotermia te pegar
— disse com seriedade.
​— Mas você vai ficar com frio — observei com preocupação. —
Talvez seja melhor entrarmos. Lá dentro está mais quente.
​— Mas não vou conseguir te ouvir direito com todo o barulho lá
de dentro e, com todo respeito, eu não vou te deixar fugir sem antes
me contar sobre suas pinturas.
​— Com todo respeito, Rick — comecei, dando um passo curto e
lento em sua direção. — Eu não pretendo fugir.
​Estávamos mesmo falando sobre minhas pinturas? Ou o assunto
já tinha mudado?
​— Meu carro está aqui perto — disse ele sem desviar o olhar. —
Talvez possamos ir até lá para você me mostrar algumas das suas…
Pinturas.
​Sorri de canto.
​Por que não?
A primeira coisa que fiz ao entrar na Ferrari foi ligar o
aquecedor. Conforme a noite começava a se transformar em
madrugada, o frio se intensificava e era impossível ficar em um
ambiente que não fosse climatizado.
​— Você veio sozinho? — me perguntou ela no caminho entre o
Reinor’s e meu carro.
​— Com meu irmão, mas não por vontade própria. Deixei o safado
me arrastar para cá.
​Ela riu.
​— Você não me parece alguém que faz algo contra a própria
vontade — observou, surpresa.
​— Vê como estou decaindo? — Encarei-a e arqueei as
sobrancelhas.
​Ela riu mais uma vez, dessa vez mais alto.
​Era gostoso ouvir sua risada.
​— Você tem quantos anos? — perguntei, sem aguentar mais a
curiosidade.
​— Vinte e três — respondeu com casualidade.
​Oh, céus.
​Mais nova do que imaginei.
​E ela estava indo para o carro comigo.
​ guardei as viaturas virem me buscar, mas isso não aconteceu,
A
afinal, ela era adulta e eu ainda nem tinha quatro décadas de vida
completas.
Talvez não fosse tão errado assim.
Já fiquei com mulheres mais novas do que eu, só que na época
eu era mais novo também e sendo bem sincero, eu nem me
preocupava tanto com esse lance de idade, desde que a pessoa em
questão já fosse adulta, por mim, tudo bem.
​Mas isso foi no passado.
​Eu estava em uma fase onde ir à baladas ou lugares
superlotados já não me interessava mais. Esse, com certeza, não
era o caso de Sky.
​Mas nada sério ocorreria entre nós. Era só uma noite, como
sempre.
​Eu estava acostumado e até gostava desse estilo de
envolvimento. Sem sentimentos fortes além de atração e desejo
mútuo. Depois de apagar esse fogo, era só seguir com a vida sem
grandes emoções no amor.
Quando chegamos no carro, surpreendi a morena ao abrir a porta
do carro para ela.
​— Eu nunca entrei em um carro assim antes — admitiu Sky,
conforme analisava o interior do possante com os olhos âmbares
brilhando, depois de entrarmos. — Eu preciso perguntar. — Ela me
olhou e sorriu de canto. — Você trabalha com o que?
​Então ela não sabia quem eu era.
​Eu estava tão acostumado a ser reconhecido que foi
surpreendentemente bom alguém não fazer ideia de quem eu era.
​— Trabalho na área dos esportes — expliquei, sem dar muita
importância para a informação. — Hóquei.
​A morena fez careta.
​— Meu irmão adora hóquei. Já eu nunca fui muito fã desse
esporte, acho meio sem pé nem cabeça um grupo de grandalhões
correndo atrás de um disco no gelo — comentou com sinceridade,
mas então me olhou e ficou séria de repente. — Sem ofensas, é
claro.
​E, de fato, não ofendeu.
​ ra a primeira vez que alguém tinha coragem de falar algo assim
E
para mim.
​Foi, na verdade, divertido. Era bom saber que Sky era sincera.
​— De onde você é?
​— Flórida — respondeu.
​Bem, isso explicava muita coisa. Em um lugar tão quente,
esportes no gelo não eram tão famosos.
​— Já foi a um jogo de hóquei antes? — perguntei com
curiosidade.
​Ela se ajeitou no banco do carro e assentiu.
​— Já, mas não entendi nada do que estava acontecendo.
​— Se aceitar, eu gostaria de te levar a um jogo de hóquei algum
dia. Quem sabe eu consiga te convencer a gostar ao menos um
pouquinho do esporte — ergui meu polegar e indicador, deixando um
espaço pequeno entre eles — ou ao menos te ajudar a entender o
motivo dos grandalhões ficarem indo atrás do pobre disco.
​Sky riu e concordou com a cabeça.
​— Mas agora me conte sobre suas pinturas — pedi, mudando de
assunto e apoiei a cabeça no encosto do banco de couro.
​A morena se empertigou no banco, adotando uma postura ereta e
abaixou o olhar para as próprias mãos em seu colo.
​— Eu sempre gostei de pintar, na adolescência, fiz alguns cursos
para aperfeiçoar meus traços e estudei colorimetria, mas nunca tive
de fato a oportunidade de tornar minha arte conhecida. Então eu
fiquei sabendo que Vladimir Eastern está aqui em busca de um novo
talento para patrocinar e pensei que seria a oportunidade perfeita
para tentar transformar meu sonho em realidade.
​Eu nunca imaginei que fosse tão bom ficar parado apenas
ouvindo alguém falar.
​Sky tinha uma voz gentil e calma, era como se quando ela
começava a falar, o mundo de repente ficasse em paz e nada de
ruim acontecesse.
​— E qual é o seu sonho? — perguntei, em partes por curiosidade
e também porque não queria que ela parasse de falar.
​Ela me encarou em silêncio e mordeu o lábio inferior.
​Ah, garota, não faça isso comigo…
​ Quero espalhar meus desenhos pelo mundo — ela gesticulou

conforme falava, dando ênfase para suas palavras. — Quero me
tornar no futuro o que os grandes artistas são para mim hoje e ser a
inspiração de alguém.
​— E como pretende fazer isso? — Seus gestos atraíram minha
atenção para suas mãos delicadas, que, por sinal, tinham resquícios
de tinta nas pontas dos dedos.
​Essa mulher era pura arte.
​— Eu gostaria de ter uma galeria para expor minhas artes. —
Sua voz se tornou mais baixa quando notou que eu a observava. —
Eu gostaria…
​Ela silenciou quando, sem conseguir me conter, toquei sua mão
com cuidado, temendo que ela se afastasse, caso sentisse que eu
estava indo rápido demais. Acontece que eu não me sentia mais
capaz de ficar tão perto dessa mulher sem tocá-la de alguma forma.
E, graças a Deus, ela não se afastou.
Deslizei meus dedos pela sua palma, descendo até seu pulso e
sumindo dentro das mangas do sobretudo e de sua jaqueta.
​Sua pele ali estava tão quente e deliciosa…
​— Não pare de falar, amor — pedi baixo e a encarei. — Do que
você gostaria?
​Seus lábios estavam entreabertos e suas bochechas adotaram
um adorável tom rosado. As sardas salpicavam sua pele logo abaixo
dos olhos, seguindo uma linha que passava pela ponte do nariz
arrebitado.
​Era uma ironia Sky ser a pintora e não a pintura.
​Se ela fosse retratada em um quadro, eu, com certeza, o
compraria e o colocaria em um lugar onde pudesse admirá-lo todos
os dias antes de dormir ou ao acordar.
​Ela era uma obra-prima.
​— Rick? — chamou baixinho.
​— Sim?
​A morena engoliu em seco e começou a tirar o sobretudo.
​— Está ficando quente aqui, não acha? — perguntou, deixando o
amontoado de tecido preto cair sobre o chão do carro.
​— Estou quente desde que te vi pegar aquela maldita vodka, Sky
— desabafei, pousando minha mão em seu rosto e acariciando suas
sardas com meu polegar. — Te procurei lá dentro com mais
determinação do que um único homem seria capaz de ter dentro de
si.
​Ela semicerrou os olhos e sorriu levemente.
​— O que você tem contra vodka pura?
​— O fato dela ter visitado sua boca e não eu me deixa muito,
muito bravo.
​Ela sorriu e aproximou o rosto do meu.
​— Essa é uma cantada barata, Rick.
​— Barata ou não, é a primeira que faço na vida — admiti, pois
era verdade. — Funcionou?
​Ao invés de me responder, a morena apoiou as mãos no encosto
do meu banco e, com cuidado, se moveu por cima de mim,
colocando seus joelhos um de cada lado do meu corpo e ficando
sentada de frente comigo. Seus olhos âmbares pareciam em
chamas, eu me sentia capaz de ver tudo através deles.
​Ela ergueu meu rosto para si e acariciou minha barba por alguns
segundos antes de aproximar os lábios entreabertos dos meus,
ainda sem concretizar o beijo que eu tanto ansiava. Sua respiração
atingiu minha pele, o hálito mentolado entrando em evidência. Com
seu peso quente e delicioso em cima de mim e com aquela boca me
provocando, tudo o que eu queria era agarrar Sky e levá-la à loucura
de todas as formas que eu conhecia, mas dava para ver que ela
parecia estar me explorando com paciência e cuidado.
​Eu não iria estragar isso.
​Quando se tratava de estar com uma mulher, era sempre eu que
ficava no controle. Aparentemente, não seria assim dessa vez, não
que eu estivesse reclamando.
​Fechei os olhos e xinguei baixo, me sentindo no limite da tortura.
A morena, que com certeza sabia exatamente o que estava fazendo
comigo, riu baixo e finalmente tomou minha boca para si,
pressionando os lábios macios contra os meus, me deixando sentir a
pressão deliciosa que o ato causava.
​Ela enfiou os dedos firmes entre meus fios de cabelo e se
inclinou mais sobre mim, o que fez seu vestido curto subir ainda mais
e minha sanidade descer ainda menos. Pousei minhas mãos uma de
cada lado em sua bunda e apertei a carne macia, sentindo Sky arfar.
​ proveitei o momento para invadir sua boca com minha língua e
A
finalmente senti seu gosto. Uma mistura de vodka e menta me
invadiu e, pela primeira vez, senti que vodka não era lá uma bebida
tão ruim.
Não se viesse direto da boca dessa mulher.
Suas mãos agarraram minha blusa de lã, que, por sinal, estava
começando a me causar desconforto, afinal, Sky me deixava em
chamas por si só e tudo o que eu queria era afastar o máximo de
roupas possíveis que estivessem atrapalhando existir um maior
contato entre nossos corpos.
Ela pareceu entender isso, pois se afastou para arrancar a
jaqueta de couro, a jogando no chão do carro.
Quando se aproximou novamente para continuar o beijo, a
segurei para que ficasse parada e analisei a tatuagem entre seus
seios. Sem a jaqueta, o decote acentuado do vestido me permitia ter
uma bela visão do desenho indiano que parecia ser uma mistura de
flores, cristais e outras coisas que se uniam em harmonia.
​Toquei com meu indicador as linhas escuras, traçando cada uma
com cuidado, como se eu pudesse refazer o desenho com meu
toque.
​Sky pareceu sentir cócegas com o ato e se remexeu em meu
colo, seu quadril se esfregando contra o meu de forma involuntária.
​Não foi sua intenção me provocar. Certa parte do meu corpo,
aquela que tinha vontade própria, não entendeu isso.
​Eu estava prestes a voltar a devorar Sky, completamente ansioso
para venerar seu corpo inteiro e receber tudo o que ela desejasse
me entregar, quando uma música abafada começou a tocar em
algum lugar do carro.
​Os olhos âmbares da morena se arregalaram e ela se inclinou
para baixo, procurando algo. Quando ela abriu o zíper da jaqueta, o
som da música se intensificou e consegui entender melhor sua letra.
​“Heaven is a place on Earth with you
​Tell me all the things you wanna do
​I heard that you like the bad girls, honey
​Is that true?
​It's better than I ever even…”
​ música parou de tocar quando Sky atendeu o telefone. Deslizei
A
minhas mãos por suas pernas, acariciando a pele que parecia em
chamas debaixo do meu toque, enquanto ela trocava algumas
palavras com quem quer que fosse.
​Sem aviso prévio, ela se ergueu em meu colo e voltou para o
banco do carona. Mesmo dentro do carro, senti falta do seu calor
para me aquecer.
— Está tudo bem? — perguntei quando Sky desligou a ligação.
Ela enfiou os pés rapidamente nos sapatos de salto,
parecendo estar com pressa.
— Eu perdi a hora, preciso voltar agora. Minha amiga está
esperando.
— Eu posso te levar embora.
A morena me olhou e sorriu de canto.
— Agradeço, Rick, mas é melhor não.
Eu não entendia o motivo disso, mas nós mal nos
conhecíamos, seria chato fazer
perguntas invasivas.
​Ela abriu a porta do carro e uma rajada fria invadiu seu interior.
​— Espera, mas… Nós vamos nos ver de novo? — perguntei,
prestes a sair do carro.
​— Não precisa sair do carro, está frio e minha amiga está logo ali,
mas sim, eu gostaria de te ver de novo, eu só… — Um carro buzinou
na esquina, Sky ergueu o olhar e acenou. — Droga, preciso ir.
​Ela fechou a porta do carro e deu a volta, correndo de forma
desajeitada em cima daqueles sapatos.
​— Boa noite, então! — exclamei, frustrado, abaixando o vidro do
carro.
​A morena se virou para mim e sorriu.
​— Aliás, esqueci de falar. Funcionou — falou.
​Eu não poderia ficar mais confuso.
​— O que?
​— Sua cantada barata, Rick. Funcionou.
​Me lembrei do que falei um pouco antes de nos agarrarmos.
​Caramba.
​O carro da esquina buzinou novamente e dessa vez Sky voltou a
correr, me deixando sozinho com meus pensamentos, uma ereção
desconfortável e o desejo incontrolável de vê-la novamente.
​Conforme o carro delas se afastava — infelizmente com ela
dentro —, decidi que faria de tudo para conseguir isso.

— Rick, com todo respeito, o que me pede é impossível.


​Assim que cheguei em casa e me inclinei para pegar o sobretudo
no chão do carro, encontrei enrolado a ele a mini jaqueta de couro
usada por Sky mais cedo. Depois de passar o caminho inteiro me
martelando por ter sido burro o bastante para não pegar o número,
as redes sociais ou até mesmo o e-mail da garota, aquele pedaço de
couro pareceu minha salvação.
​Tinha que ser.
​Caso contrário, de que outra forma eu a encontraria?
​— Pensei que você fosse o melhor detetive de Montreal —
murmurei, encarando a parede pálida da sala enquanto meu celular
em cima da mesinha de centro mantinha a ligação com Andrew
Stevens, meu detetive particular —, de Quebec todo, até.
​— Talvez eu não esteja enxergando muito bem… — começou ele
com paciência.
​— Talvez não esteja — resmunguei.
​— Mas tudo o que recebi foi a foto de uma jaqueta comum —
disse Andrew, ignorando meu mau humor. — Ao menos duas entre
três mulheres têm uma dessa no closet.
​— Mas essa tem uma flor branca desenhada no interior e…
​— Um lírio.
​— Como disse?
​Andrew limpou a garganta ou talvez estivesse rindo da minha
falta de conhecimento das flores.
​— É um lírio, Rick. Lírio.
​— Que seja, ela é uma artista, com certeza fez o desenho à mão,
não existe outra dessa em closet algum, essa jaqueta é… Única. —
Ergui a peça até a altura dos olhos e analisei aquele lírio, que, com
certeza, tinha sido pintado há bastante tempo.
​Sua tinta já não estava mais tão intensa quanto deveria.
​ Ótimo, se ela é uma artista, é mais fácil de encontrar nas

redes. — Ouvi o som de digitação rápida do outro lado da linha. —
Qual o nome dela?
​— Sky.
​— O nome, não o apelido.
​Larguei a jaqueta sobre meu colo e esfreguei a testa.
​A que ponto eu estava chegando por causa de uma mulher? Uma
garota, pelo amor de Deus. Nunca antes fiquei tão obcecado assim
por alguém, talvez fosse hora de consultar um psicólogo.
​— Ela só passou o apelido — expliquei, frustrado. — Eu só falei
meu apelido, acho que ela quis fazer o mesmo.
​Como se não fosse necessário sabermos nossos nomes
completos quando tudo o que rolaria entre nós acabaria em tão
pouco tempo. De fato, esse era o plano, ao menos o meu. Mas beijar
aquela boca, olhar naqueles olhos e tocar aquela tatuagem sem
desejar fazer isso tudo de novo?
Nem um monge conseguiria tal proeza.
​— Às vezes, sinto que você pensa que eu sou uma piada. —
Consegui enxergar Andrew esfregando a testa enrugada, como se
estivesse no limite da paciência. — Vai dormir, Rick. Você deve estar
bêbado.
​— Eu não estou bêbado! — “Só desesperado”, completei
mentalmente. — Por favor, Andrew. Eu não sei o que fazer.
​O homem ficou em silêncio e se não fosse pelo símbolo verde na
tela do celular, eu teria certeza de que ele tinha desistido de mim e
desligado.
​— Tem algum bolso? — perguntou, finalmente.
​— Sim.
​— E você já mexeu?
​Silêncio.
​A primeira coisa que fiz ao entrar em casa foi pegar o celular e
ligar para Andrew. Ele já tinha me ajudado com tantas outras coisas,
eu tinha certeza de que tiraria isso de letra, por isso nem pensei em
enfiar as mãos nos bolsos da jaqueta em busca de algo, em partes
porque ela estava tão leve que não parecia conter qualquer outro
conteúdo em seu interior.
​ Apenas mexa nos bolsos, Rick — ele disse, começando a ficar

impaciente.
​E foi o que eu fiz.
​Tinha um tubo brilhante minúsculo com algo que constatei ser
gloss labial, uma lixa de unha e um pedaço de papel. Eu estava
prestes a enfiar tudo de volta, tendo certeza de que nada daquilo
seria de grande ajuda em minhas buscas, quando desdobrei o papel
e encontrei um endereço.
​O nome de uma rua bastante movimentada na cidade, um
número e um lugar: Mont’Real Gallery.
​O papel estava bastante amassado e a tinta da caneta um pouco
desbotada, o que indicava que ele não era recente e que com
certeza foi consultado com frequência antes.
​Sky estaria nessa galeria na próxima quarta-feira. Droga, como
me esqueci disso? Seria uma oportunidade, talvez a única, de
encontrá-la novamente. E agora eu tinha a desculpa de devolver sua
jaqueta.
​Sim, era isso.
​— Andrew, você é… Cara, Sherlock Holmes não chega aos seus
pés, é isso. — Me levantei, deixando a jaqueta na poltrona e peguei
o celular. — Eu te beijaria, mas sua esposa nos mataria e confesso
que beijar homens não se mostrou algo muito satisfatório para mim.
​— Talvez você só tenha beijado os homens errados — brincou,
com a voz mais calma e relaxada.
​— Acho que prefiro ficar com mulheres.
​— Desde que você pare de me ligar de madrugada pra pedir
informações sobre uma desconhecida, por mim, tudo bem — ele
bocejou e seu tom abaixou um pouco. — Não faça nenhuma
besteira.
​— Eu sei me cuidar.
​— Não parece… — desliguei antes que Andrew concluísse a
provocação.
​Ele era meu Sherlock particular.
​Ao menos eu teria mais uma chance de ver Sky. Depois disso,
tudo voltaria ao normal, eu só precisava ver aquele rosto mais uma
vez, encarar aqueles olhos brilhantes e sedutores por mais alguns
minutos e ouvir aquela vez…
​ h, sua voz…
A
​— Zorro? — chamei alto, sem saber onde meu cachorro estava.
​O Doberman de quase cinquenta quilos apareceu no cômodo
com as orelhas erguidas e olhos atentos, como se estivesse
preparado para um combate. Analisei sua pelagem escura, que
brilhava mais do que meu cabelo, que por sinal tinha um tom
bastante parecido, quase preto. Que shampoo eles usavam no
petshop, afinal?
Zorro já tinha em torno de quatro anos e era o único ser a dividir
a casa comigo.Isso, é claro, quando meu irmão não decidia vir
passar algumas semanas aqui, sem convite prévio, diga-se de
passagem.
​— Vem, amigão, vamos para a cama. — Afaguei suas orelhas
para indicar que estava tudo bem e sua postura logo se tornou mais
relaxada conforme ele me seguia até o quarto.
​Zorro dormia na cama comigo.
​Ela era grande o bastante para nós dois, mas ainda assim o
safado conseguia me empurrar para o canto e ficar com o corpo
ocupando a maior parte do colchão. Geralmente eu o empurrava de
volta, mas não nessa noite. Quase não preguei os olhos, tudo porque
quando eu os fechava, a visão de uma morena sedutora em cima de
mim invadia minha mente e me tirava o sono.
​Eu precisava dar um jeito nisso. Precisava voltar a me controlar.
​Você vai ver essa garota apenas uma última vez, Maverick. E
apenas para devolver a jaqueta. Depois disso, você vai voltar a ser o
velho calejado Rick de sempre, que não vira a cabeça por mulher
alguma.
​Assim eu esperava.
Claire me fez centenas — não, milhares — de perguntas
durante o trajeto até em casa.
​De quem era aquele carro?
​Como você se enfiou dentro dele?
​Quem era aquele homem?
​Eu queria conseguir responder sua última pergunta, mas eu
estava me perguntando a mesma coisa. Não peguei seu contato, seu
nome completo ou qualquer outra informação que me ajudasse a
investigar sua vida quando chegasse em casa.
​A verdade é que falei mais de mim do que ouvi Rick falar sobre si
e só agora me arrependi disso. Eu queria ter descoberto mais sobre
ele, saber exatamente qual era o seu trabalho — e porque ele valia
tanto dinheiro — e também descobrir mais sobre o homem que
apareceu tão de repente para me salvar de dois babacas.
​Saber que ele me procurou dentro do Reinor’s fez um calor subir
por meu peito, não era desejo, era só… Não sei o que era. Não
envolveu apenas meu corpo, mas minha mente, eu jamais imaginaria
que justo aquele homem poderia sentir tamanha atração por mim.
​Passei muito tempo em um relacionamento, tempo o bastante
para começar a pensar que Tyler era o único que me enxergava, que
me achava bonita e que me desejava. Apesar de saber que era o
melhor a se fazer, quando terminamos, foi como se meu chão se
abrisse, pensei que nenhum outro homem me enxergaria como ele,
que ninguém me desejaria, muito menos com intensidade o bastante
para me procurar em um mar de gente como no Reinor’s.
Tyler costumava dizer que ninguém jamais me veria como ele,
ninguém me daria o mesmo valor ou a mesma atenção. Por um
tempo, eu cheguei a achar suas palavras muito românticas, mas só
agora eu consegui enxergar o quanto elas me deixaram insegura.
Essas palavras martelavam em minha mente com frequência, eu
tentava controlar, mas era difícil não pensar que eu tinha terminado
com o único homem do planeta que me enxergava.
É claro que, aos poucos, eu estava lutando para deixar esses
pensamentos de lado e recuperando minha autoestima e
autoconfiança, Rick com certeza ajudou nisso.
​Ele era lindo, mas não do tipo de beleza comum que se vê por aí.
Seu estilo era um tanto rústico e apesar de não ser fã de barba, até
que gostei da dele, combinava com seu rosto grande e marcado,
com os cabelos escuros e ondulados, destacava o azul de suas
írises.
​Mas não era só isso: Rick claramente gostava de se cuidar. Além
da elegância, ele tinha músculos firmes e bem delineados que
ficaram nítidos sobre meu toque quando explorei seu corpo, não
tanto quanto eu gostaria, mas o bastante para me fazer desejar mais.
​Eu quis esganar Claire por me lembrar que tínhamos hora para ir
embora, mas em partes foi bom fazer o juízo voltar para a minha
cabeça. Desde quando eu me enfiava dentro de um carro
desconhecido, com um cara desconhecido, para trocar beijos e
carícias que quase se tornaram algo a mais?
​Mas Rick não parecia desconhecido. Seu jeito me passou
confiança e com certeza era o único homem do Reinor’s que não
estava bêbado. Sendo sincera, não senti gosto algum de álcool em
sua boca, ele provavelmente nem havia bebido.
​Sempre senti certa atração por caras que não precisam beber
para se divertir.
​E Rick me fez esquecer todos os outros caras, inclusive o coitado
do rapaz que Claire arrumou para me fazer companhia na pista de
dança. Eu devia desculpas a ele, mas apesar de me sentir um
pouquinho mal por ter feito isso, eu com certeza faria tudo de novo.
— Ei, Skyler — chamou Killian, aparentemente não pela primeira
vez. — Pode parar de me ignorar, por favor?
Me ajeitei na poltrona confortável da sala de casa (essa era
minha casa por agora) e abracei as pernas.
— Fala logo — murmurei um pouco impaciente.
Eu odiava ser tirada dos meus pensamentos dessa forma.
— Precisa ser grossa assim? — Killian pegou o controle do
videogame da mão de Brad. — Quer saber? Esquece.
Brad encarou Kill com raiva por ter sido obrigado a parar de jogar.
Já era terça-feira e tive que passar o fim de semana guardando
apenas para mim os detalhes tórridos da noite de sexta, em partes
porque se eu contasse para um dos rapazes, logo os três saberiam
— nenhum deles era bom com segredos, especialmente Colin —, e
também porque eu sabia que muito provavelmente não voltaria a ver
Rick, então para quê ficar falando sobre ele se isso só alimentaria
mais meu desejo de voltar àquela noite e sentir seus braços em volta
de mim?
​E por que aqueles malditos braços me pareceram tão deliciosos e
protetores?
​— Ei, pega leve, ela deve estar naquela época do mês — Colin
sussurrou alto para Killian, que revirou os olhos.
​O ruivo se acomodou no sofá, que ficou subitamente pequeno
para aqueles três homens grandes, mas nenhum deles reclamou.
Colin trouxe consigo uma tigela de cereal com leite e enfiou uma
colher generosa na boca antes de encarar a televisão com interesse.
​Nunca vi pessoas tão viciadas em jogos de guerra.
​— Convivendo com tanto hormônio masculino junto, qualquer
época do mês se torna aquela época — retruquei, imitando a forma
de Colin falar.
​Ele me lançou uma piscadela sedutora.
​O toque tão conhecido do celular de Bradley soou. Tão conhecido
porque tocava ao menos dez vezes por dia e todos já sabíamos
quem era. O rapaz logo levantou e pegou o aparelho dentro do bolso
da calça de moletom.
​Sua expressão passou de irritada para frustrada.
​— Olha a Cassandrinha ligando — provocou Colin.
​ Não sei como você aguenta isso — Killian negou com a

cabeça.
​— Está falando de Cassie ou Colin? — perguntei, com vontade
de rir, mas me segurando.
​Brad não parecia achar graça da situação.
​— Vão se ferrar, vocês três. — Ele se virou para mim. — Com
todo o respeito, é claro.
​Dei de ombros, indicando que não me importava.
​Eu estava mais do que acostumada a conviver com homens e
seus xingamentos, passei a adolescência discutindo com Kill.
​Antes de sair da sala, Bradley pisou no fio que mantinha o
videogame ligado e logo o visor da TV ficou preto. Eu desconfiava
que ele fez isso de propósito.
​Colin e Killian não economizaram nos xingamentos conforme o
outro se afastava.
​— Essa garota vai deixar nosso menino maluco. — Colin apoiou
o tornozelo em um dos joelhos e encostou as costas no sofá.
​— Pensei que ela já tivesse conseguido isso. — Killian deixou o
controle sobre a mesinha de centro e imitou a posição do amigo. —
Parece que ele não vê o tanto de mulher chovendo na horta dele.
​— Ele ainda é um passarinho no ninho. — Colin encarou o
horizonte que, no caso, era uma parede azul pastel. — Vamos ajudar
nosso menino a voar e sair das garras dessa… Mulherzinha.
​Colin e Killian trocaram um olhar sério, como se tivessem
acabado de selar um pacto para ajudar o amigo.
​— Acho que vocês deveriam cuidar das próprias vidas ao invés
de tentarem se enfiar no meio do relacionamento de Brad — falei
com delicadeza o bastante para não ofender os dois homens
afetados no sofá. — Ele precisa enxergar sozinho o que é melhor
para si.
​— Já fiz isso uma vez porque pensei que a pessoa enxergaria
logo que a relação não era saudável e me arrependo muito —
desabafou meu irmão.
— Por que? — perguntou Colin com a boca cheia.
— Porque levou anos até a pessoa em questão abrir os olhos e
dar um jeito na relação falida. — Kill cruzou os braços e encarou o
teto.
​ Sério? — perguntei com um misto de curiosidade e surpresa.

— Com quem?
​Meu irmão arqueou as sobrancelhas e me encarou pelo canto
dos olhos cor de mel, sem dizer uma única palavra, mas sua
expressão já me dizia tudo.
​— E-eu? — perguntei, sentindo meu coração acelerado. — O que
quer dizer com isso?
​Colin continuou comendo em silêncio enquanto acompanhava a
conversa com ouvidos bem abertos e olhos atentos.
​— Deixa pra lá, Sky, é… Besteira.
​— Não, não é não. — Levantei de súbito, sentindo minhas mãos
suarem e encarei Killian. — Eu quero saber o que o fez pensar que
minha relação com Tyler era tão…Falida?
​A expressão de Killian demonstrou seu arrependimento por ter
me revelado isso.
​Parando para pensar, ele realmente nunca se envolveu no meu
relacionamento com Ty. Ok, eles não eram muito próximos e meu
irmão ficava mesmo mais quieto quando ele estava presente, mas
nunca achei que tivessem motivos maiores por trás.
​— Começou, vai ter que terminar, Kill. — Colin encolheu os
ombros fortes quando recebeu um soco bem ali.
​— São pequenas coisas, Sky, como o fato de ele encarar
qualquer mulher que passasse pela calçada, mesmo estando em sua
presença ou até mesmo na formatura quando ele te obrigou a usar
aquela blusa para cobrir o decote do vestido. — “Killian até que tinha
boa memória”, pensei. — Não acredito que isso seja saudável,
entende? E sempre te achei uma mulher forte, mas ele parecia tentar
ocultar sua força e impor a dele. Eu torcia para que você visse isso
logo, mas levaram anos e durante esse tempo, ele conseguiu apagar
boa parte do seu brilho. — Kill endireitou a postura e abriu um sorriso
de canto. — Eu fico feliz por ver Montreal trazendo de volta a sua
essência.
​A sala ficou silenciosa.
​Colin encarou o chão, parecendo pensar a respeito das palavras
do amigo. Killian era bastante observador e detalhista, mas não
sabia que ele guardava tantas coisas dentro de si.
​ u não tinha mais sentimentos amorosos pelo meu ex. Ele fez
E
parte da minha vida por muito tempo, participou de muitos momentos
importantes comigo e sua ausência parecia estar se tornando
tolerável só agora. Desejável, até. Era bom conseguir sair sem
alguém me mandando vestir uma blusa, um vestido mais comprido
ou qualquer outra crítica dirigida às minhas roupas.
​Eu cheguei a notar que ele olhava para as mulheres à nossa
volta, mas na época tentei levar isso na boa e guardei dentro de mim
em um lugar bem fundo para que não afetasse a mim ou a nossa
relação.
​E, de fato, por um tempo pareceu que tínhamos algo bom, mas a
preço de que? Minha saúde mental?
​— Ok, o cara parece um babaca, Saint Clair — disse Colin,
interrompendo nosso silêncio e olhou em minha direção. — Você
está bem?
​Os rapazes daqui podiam ser mulherengos, safados ou metidos,
mas nunca os vi agirem como babacas com mulheres.
​— Sinceramente, sim. — Sorri levemente e encarei meu irmão.
— Apesar de estar brava por não ter me falado essas coisas antes,
eu fico feliz por saber disso agora, porque isso me permitiu tomar
sozinha a decisão de terminar. Hoje eu consigo ver que não foi um
tempo perdido, porque nunca mais vou estar com um homem que
reclame das minhas roupas ou que olhe para outras mulheres. Até
que Tyler me ensinou uma lição e tanto, não?
​Mais uma vez minhas defesas fazendo piadas de coisas sérias
para poder aliviar o clima.
​Killian se levantou do sofá e abriu os braços.
​— Vem cá, irmãzinha. — Depois que me aproximei e envolvi sua
cintura, ele me apertou em seus braços. — Prometo nunca mais
deixar qualquer homem safado e mulherengo se aproximar de você,
está bem?
​— Nesse caso eu teria que sair correndo dessa casa nesse exato
momento, Kill.
​— Aqui é território seguro, você sabe disso.
​Eu sabia, é claro.
​A tal regra…
​ Que abraço lindo, quero participar também. — Colin se

levantou, deixou a tigela vazia sobre a mesinha de centro e abraçou
meu irmão.
​Por trás.
​Com os braços em volta da cintura dele.
​E deitou a cabeça no ombro dele.
​— Ai, que delícia — murmurou com uma voz sedutora.
​Tive que segurar o riso.
​Meu irmão parecia prestes a explodir.
​— O que é isso? — Brad apareceu na sala e nos encarou. — Vão
acasalar?
​Soltei Kill, que empurrou Colin, que caiu no sofá enquanto ria
alto.
​O ruivo adorava atazanar os outros dois, em especial meu irmão.
Se Killian não gostasse tanto assim de Colin, com certeza já teria lhe
dado uma surra.
​— O que… Que merda é essa no seu nariz? — Colin apontou na
direção do rosto de Brad.
​Não acreditei na cena que vi diante de mim.
​O ar saiu de meus pulmões conforme eu me inclinava para frente,
apoiando as mãos nos joelhos e soltava a risada mais forte e intensa
da minha vida.
​O rapaz estava… Ele tinha enfiado um absorvente interno no
nariz.
​— Meu sangramento nasal voltou — explicou ele, tocando de
forma inocente o tampão. — Foi a melhor solução que encontrei.
​— É o seu cérebro que deve estar derretendo depois de falar
com aquela megera, isso sim. — Killian fez careta.
​Colin já tinha arrancado o celular do bolso e tirado diversas fotos
do amigo.
​Com amigos assim, inimigos são fichinha.
​— Acho que já deve ter parado. — Brad puxou o fio do
absorvente até que ele estivesse todo fora do nariz e mostrou
orgulhoso como o item tinha sido eficaz. — Viram só? — Ainda
segurando pelo fio, ele ergueu até a altura de nossos olhos e sorriu.
— É a solução perfeita para sangramentos.
— Nisso você tem razão, só errou o buraco. — Kill negou com a
cabeça, parecendo não acreditar na cena.
Será que meu irmão era o único da casa que sabia de verdade o
que era aquilo?
Talvez os rapazes estivessem precisando de uma lição…
— Preciso de amigos novos — determinou Colin.
Ele pegou a tigela e se dirigiu à cozinha.
— Preciso apagar da minha mente essa cena ou nunca mais irei
respeitar você. — Killian passou por Brad e murmurou algo no ouvido
do rapaz.
Bradley sorriu.
— O que ele disse? — perguntei com curiosidade.
— Que vai me dar de presente uma caixa desses pra me ajudar
com os sangramentos, eles estão cada vez mais frequentes, sabe?
Especialmente durante os treinos.
Bradley era tão adoravelmente inocente.
Alguém tinha que salvá-lo de si mesmo. Eu, é claro, não acabaria
com a graça.
— Aliás, Sky… — voltou a falar enquanto enfiava novamente o
tampão no nariz. — Já encontrou a jaqueta?
Por estar distraída demais com aquela coisa no nariz dele, levei
alguns segundos para assimilar a pergunta e meu coração deu um
pulo no mesmo instante.
Na pressa de ir embora com Claire, acabei esquecendo minha
jaqueta no carro de Rick. Talvez o álcool tenha me influenciado a
ficar um pouco distraída, mas aquela era minha jaqueta favorita e eu
não conseguiria pegá-la de volta.
Por isso, menti dizendo que não me lembrava onde deixei a peça.
Era melhor do que revelar que me peguei com um cara e a deixei no
carro dele.
— Ainda não — falei apenas, antes de me virar e caminhar até o
corredor dos quartos, em uma tentativa de fugir de mais perguntas
sobre o assunto. — Vou analisar como está o quadro que levarei
amanhã à galeria. Boa sorte com seu sangramento.
— Boa sorte com seu quadro.
​Eu podia não recuperar a jaqueta, mas foi uma troca justa: pelos
beijos de Rick, eu daria até minhas botas favoritas.
I​sso, é claro, não seria necessário, afinal, não ocorreriam mais
beijos entre nós ou qualquer outra coisa. Se ele tivesse mesmo
sentido interesse maior em mim, teria pedido meu número, não?
Bem, mas não importava. Rick me proporcionou momentos
marcantes dentro daquele carro.
​Era o bastante para mim.
A quarta-feira se mostrou bastante fria desde o início, mas
apesar da vontade imensa de continuar na cama, eu tinha um
compromisso importante. Sendo assim, depois de tomar uma caneca
de café fumegante, comer ovos mexidos e preparar meu shake de
suplementos para bebericar durante a manhã, parti direto para o
centro de treinamento.
​Frequentei o lugar durante anos enquanto me preparava para os
jogos, melhorava minhas habilidades e desenvolvia estratégias.
Agora, apesar de continuar a aparecer por ali, meus motivos tinham
mudado.
​Eu tinha um grupo de rapazes para treinar.
​— Bom dia, Rick — cumprimentou Tony quando lhe estendi a
chave do meu carro.
​— Bom dia.
​Seu trabalho era cuidar do estacionamento, colocar os carros nas
vagas e dar informações quando necessário.
​Tony trabalhava aqui desde o meu início como jogador e por ser
um senhor simpático e sorridente, acabou ficando por desejo de
todos que o conheciam. Esse trabalho seria dele até o fim. Além
disso, ele também se certificava de trancar as portas do centro
quando todos os jogadores fossem embora.
​— Você parece mais forte — elogiou ele depois de me analisar.
​ É que coloquei blusas a mais hoje. — Com o frio que estava

fazendo, era impossível sair de casa sem estar dentro de diversos
casacos.
​Se eu me jogasse no chão, com certeza sairia rolando sem
dificuldade.
​— Aliás, antes que eu esqueça… — Estendi o pacote em direção
ao homem. — Solange fez muffins de canela ontem. Eu sei que são
seus favoritos.
​Seus olhos brilharam.
​Solange era minha cozinheira e eu desconfiava que ele tinha uma
paixão secreta por ela. Depois que se conheceram em uma festa na
minha casa, Tony sempre perguntava dela.
​— Maravilhoso — murmurou enquanto aproximava o pacote do
nariz para sentir o cheiro de canela.
​De fato, era.
​Apesar de estar cuidando da alimentação, me permiti comer um
ontem e estava delicioso. Solange era mestre no que fazia.
​— Entre, rapaz, seu time já deve estar aguardando. — Tony me
deu as costas, como se quisesse ficar sozinho com seus muffins.
​Ri baixo e neguei com a cabeça enquanto entrava no centro de
treinamento.
​Conforme eu passava pelo corredor, diversos quadros de
jogadores e times que já treinaram ali e que fizeram história estavam
dispostos na parede. Eu esperava poder colocar meu time ali algum
dia.
​A temperatura se tornou mais confortável quando cheguei na
parte da academia, onde os rapazes treinavam e gritavam incentivos
uns para os outros. Às vezes rolavam algumas provocações,
competições de quem levantava mais peso ou corria mais rápido.
​Já cheguei a entrar em uma competição dessa certa vez. Até
hoje ninguém conseguiu levantar mais peso no supino do que eu, e
por mais que eu não falasse sobre isso, era bom saber que eu ainda
não estava velho o bastante para deixar de aguentar tanto quanto
eles.
​Estar entre esses rapazes às vezes me fazia sentir jovem de
novo.
​ Treinador! — exclamou Shawn, um garoto de apenas vinte e

dois anos e que era o jogador mais recente a entrar no time.
​Ele parecia se assustar com minha presença, às vezes travava
quando eu falava com ele, eu ainda não sabia se por medo ou
admiração.
​Enfiei minha mochila no armário vazio e tirei meu casaco mais
grosso, colocando lá dentro também.
Os rapazes já estavam todos suados e sem camisa, eles sempre
chegavam mais cedo para fazer musculação e acabavam afastando
o frio rapidamente.
— Bom dia, Shawn — cumprimentei, batendo a porta do
armário e beberiquei um
pouco do meu shake antes de dar uma boa olhada no meu time.
Eles tinham parado tudo o que faziam e me encaravam com
expectativa e curiosidade. Hoje seria um dia importante, no qual eu
passaria informações sobre o próximo jogo, determinaria posições e
começaria a treinar as jogadas.
Precisávamos de um novo plano, nossos oponentes se
acostumaram com nossa forma de jogar, então era hora de dar início
a algum elemento surpresa que iria desestabilizá-los no próximo
jogo.
— É bom ver que todos estão aqui hoje. — No último treino, dois
jogadores ficaram bastante doentes, mas hoje eles também estavam
aqui.
Notei que Colin não prestava atenção em mim.
Ele mostrava algo no celular para Justin, que parecia prestes a
babar. Eu nem precisava ver para saber que se tratava de mulher.
— Leblanc, se você estiver mostrando fotos da minha irmã de
novo… — ameaçou Killian Saint Clair com um rosnado.
— Que droga, Killian. Essa gata tinha que ser justo sua irmã? —
Justin negou com a cabeça. — Eu odeio você.
— E você não vai chegar perto dela, já está avisado. — Killian
lançou um olhar para Colin, que desligou o celular e ergueu as mãos
em rendição.
— Pronto, já era. — Colin Leblanc adorava provocar todos os
seus amigos, em especial Killian Saint Clair que, além de ser capitão
do time, era também o mais sério de todos.
— Eu vou precisar repetir a regra sobre envolvimento com
familiares? — Cruzei os braços e encarei os rapazes.
Eles já sabiam bem dela, aliás.
Eu duvidava que fosse necessário repetir.
— Eu só estou brincando, meu objetivo de vida é atazanar esse
daí. — Leblanc apontou para Saint Clair, que, por sua vez, ofereceu
o dedo do meio para ele.
— Se quiser continuar a fazer isso, eu recomendo que faça fora
daqui. — Dei um passo para o lado, deixando o espaço da porta
disponível e arqueei as sobrancelhas, desafiando Leblanc a sair e
continuar com suas atitudes infantis do lado de fora.
Ele abaixou a cabeça.
— Desculpe, treinador. Não vai acontecer de novo.
— Esse é um momento sério, rapazes — falei com convicção,
encarando um por um nos olhos. — Iremos enfrentar um oponente à
nossa altura, e apesar de vocês terem talento, se não tiverem foco
isso não valerá nada, estão entendendo?
Todos concordaram com a cabeça.
— Não quero ver vocês saindo do rinque com a cabeça baixa.
Quero que saiam de lá com mais uma vitória nas costas, porque
vocês são monstros do hóquei, são os monstros de Montreal, e vão
mostrar o quão assustadores podem ser quando estiverem com o
bastão em mãos.
— É isso aí! — Saint Clair exclamou com empolgação.
— Vamos acabar com eles — emendou Shawn.
Bradley Park bateu no peito.
Os rapazes se juntaram em um coro de xingamentos aos
oponentes e promessas de acabarem com eles. Eles precisavam
disso, dessa garra, só assim conseguiriam dar tudo de si. Não
podiam se distrair, não agora.
— Agora vão, vistam-se e me encontrem no gelo — ordenei,
apontando para o vestuário. — E não esqueçam de amarrar direito
os patins!
O treino durou até quase meio dia.
​Foram horas gritando posições, observando jogadas e analisando
comportamentos. Os rapazes eram muito bons, eu não podia
reclamar. Eles não tinham dificuldade para entender o que
precisavam fazer e me obedeciam de prontidão.
​Prometi pegar um pouco mais leve no próximo treino, mas eu
sabia que eles não se importavam tanto com isso. Naquela idade, eu
também não me importava. Se meu treinador dissesse que eu
precisava subir o monte Everest de patins, eu com certeza subiria ou
ao menos tentaria. Não faltava determinação em mim e eu via isso
no meu time.
​Eram rapazes dedicados.
​Depois que voltei para casa e me lembrei que eu tinha um
compromisso essa tarde, tudo se tornou um borrão. Me lembro de ter
tomado banho, aparado a barba e escolhido uma roupa quente e
elegante: casaco comprido, luvas, cachecol e botas. Também me
lembro de ter passado perfume, dobrado a jaqueta de Sky e levado
comigo até o carro.
​Depois do que aconteceu entre nós, pensei nela todos os dias,
desejando que este reencontro chegasse logo e que desse certo. O
único momento que a deixei um pouco de lado foi durante o treino de
hoje mais cedo, mas quando se tratava de hóquei, eu esquecia de
todo o resto.
​Eu sabia que ela estaria na Mont’Real Gallery no período da
tarde, mas não sabia exatamente que horas isso seria, por isso
decidi sair de casa bem no início da tarde e ir direto para lá. Seria
melhor garantir chegar mais cedo do que perder o horário.
​Deixei meu carro próximo da galeria e comprei um pretzel em
uma barraca próxima. Eu não tinha almoçado, e apesar de não
desejar sair da minha dieta, acabei não me aguentando, tanto de
fome quanto de vontade.
​Eu costumava ter mais autocontrole, mas essa semana nada
estava normal. Por Deus, eu estava vindo encontrar uma mulher só
porque ela não saía da minha mente, em um compromisso que ouvi
ela falando que possuía e nem ao menos fazia ideia do que diria ao
vê-la.
​ uvi você falando para sua mãe que estaria aqui hoje e decidi
O
aparecer.
​Não, seria estranho.
​Você esqueceu sua jaqueta e eu vim devolver. Como eu sabia
que você estaria aqui? Bem…
​Não.
​Era melhor não revelar que eu sabia que ela estaria ali. Poderia
parecer que eu era um stalker, não seria legal.
​Não consegui parar de pensar em você, pedi até mesmo ajuda ao
meu detetive para te encontrar, eu só precisava te ver uma última
vez para poder seguir em frente.
​Depois dessa ela provavelmente gritaria por socorro.
​Droga, Rick. Era melhor você ter pensado nisso antes de
simplesmente fazer.
​Com qual das suas cabeças você está pensando, afinal?!
​Me sentei em um banco disposto na calçada e saboreei o pretzel
enquanto encarava a porta da galeria, que ficava na calçada oposta,
me sentindo extremamente ridículo e até um pouco insano. Eu
precisava conhecer outra mulher para poder esquecer dessa.
​Talvez assim minha sanidade voltasse.
​Já me apaixonei antes. Eu tinha vinte e cinco, era um jovem
empolgado e sonhador. Depois que ela levou meu coração consigo e
me traumatizou, decidi nunca mais me envolver de forma tão forte
com alguém.
​E eu definitivamente não estava apaixonado.
​Não por Sky.
​Nem por seus olhos ferinos, seus lábios cheios e sorriso fácil.
​Eu não estava.
​Mas então ela apareceu no meu campo de visão, como se
tivesse sido trazida pelo vento, segurando consigo um quadro grande
coberto por um tecido preto. Ela tinha se agasalhado muito bem
dessa vez, com uma touca de pelinhos claros cobrindo sua cabeça e
um casaco que parecia ser do mesmo material que a touca. Ela
provavelmente estava se sentindo abraçada por um urso de pelúcia.
​A morena parou na porta da galeria e pareceu esperar alguns
segundos antes de entrar, como se não tivesse certeza do que
estava fazendo.
​ u também não tinha. Ainda assim, me levantei e me preparei
E
para atravessar a rua.
​Terminei meu pretzel com uma mordida e joguei o papel no lixo.
​Era melhor acabar logo com isso e trazer de volta o antigo Rick, o
que não ficava tão fascinado por uma mulher desde os vinte e cinco
e que não deixava a razão de lado para seguir os desejos.
Desde que cheguei em Montreal, a quarta-feira se mostrou um
dia consideravelmente mais frio do que os outros. Segundo Kill, logo
começaria a nevar, assim como costumava ser nessa época do ano.
Como meu irmão já estava acostumado com o clima da cidade, ele
explicou que já tinha passado da hora de começar a nevar, mas por
algum motivo estava levando mais tempo esse ano para acontecer.
Os turistas que escolheram o fim do ano para estar aqui porque
queriam conhecer a famosa massa fofa e gelada com certeza
deviam estar começando a ficar impacientes.
Eu também estava ansiosa para ver acontecer, sendo sincera.
Segui o conselho de Brad e coloquei um suéter por debaixo do
casaco de pelos. Ele fazia conjunto com uma touca fofa e
confortável, ambos de um branco que contrasta perfeitamente com
meu cabelo preto.
Coloquei botas de couro nos pés e calças pretas que comprei
aqui na cidade, pois seu material era diferente e me aquecia mais do
que as outras.
Por fim, fiz uma maquiagem leve, passando máscaras nos cílios
e brilho nos lábios, um blush para tirar o aspecto pálido da pele e um
perfume amadeirado que eu gostava. Enfiei luvas de couro escuras
nas mãos para mantê-las quentes e peguei o quadro antes de sair de
casa.
Os rapazes se ofereceram para me levar até a galeria, que por
sinal não ficava longe de onde morávamos, mas decidi que queria ir
andando. Isso me ajudaria a ficar menos ansiosa e pensar bem no
que dizer para o senhor Eastern, além de poder apreciar a vista
belíssima que só Montreal oferecia.
A cidade tinha sido decorada com lâmpadas amarelas, luzes
piscantes foram colocadas em volta de árvores e quase todas as
portas ostentavam guirlandas, uma mais criativa que a outra. Os
jardins tinham bonecos de neve artificial, neve feita com algodão e
pinhos.
Uma família amarrava azevinhos nos galhos de uma árvore
quando passei. Uma criança enfiava uma cenoura pontuda no centro
de um rosto malfeito de um boneco de “neve”. Era tudo ainda mais
trabalhado e aconchegante do que as fotos que eu via no Pinterest.
Infelizmente cheguei na galeria mais rápido do que pretendia ou
talvez ela apenas fosse mais perto do que imaginei, mas como já era
minha terceira vez indo até ali, acabei gravando na mente o caminho.
Encarei a frente decorada da Mont’Real Gallery, que era um lugar
grande e imponente, e que agora ostentava galhos decorados por
toda a extensão da entrada. Pousei a mão na maçaneta de metal e
respirei fundo algumas vezes antes de tomar coragem e entrar no
lugar.
Seu interior estava aquecido, o que foi um alívio para a ponta do
meu nariz que já estava quase congelando. Passei os olhos pelos
poucos quadros dispostos nas paredes de um tom pálido e sem
graça, que fazia o espectador se concentrar totalmente nas pinturas,
todas de Eastern. Eu nem precisava perguntar para saber que seus
valores eram absurdamente altos, mas com uma fama e uma
trajetória como a de Vladimir, fazia sentido.
— Posso ajudar? — perguntou uma mulher toda vestida de preto,
surgindo ao meu lado.
Eu não fazia ideia de onde ela tinha vindo, mas foi silenciosa e
discreta
— Boa tarde. — Me virei para ela e sorri, erguendo levemente o
quadro que eu segurava, ainda coberto pelo tecido preto. — Tenho
um horário marcado com Vladimir Eastern.
Depois de me analisar discretamente dos pés a cabeça — sim,
eu reparei —, a loira abriu um sorriso e apontou para um assento no
canto.
— Peço que aguarde, por favor.
Eu devia estar uns dez minutos adiantada.
Sempre preferi chegar mais cedo do que o previsto do que me
atrasar e passar uma má impressão.
Agradeci baixinho e fui até o divã, me sentando em seu estofado
confortável. Apoiei a tela em meu colo e encarei um quadro na
parede à minha frente. Era uma pintura abstrata, mas suas cores
despertavam sentimentos e seus contornos traziam história. Com
certeza isso variava de pessoa para pessoa, mas a mim, me senti
aquecida por dentro, presa àquelas pinceladas.
Estava tão distraída com aquela pintura que me irritei quando
alguém entrou em minha frente, provavelmente sem me enxergar,
pois estava de costas para mim. Era um homem e seus ombros
exageradamente grandes conseguiram cobrir todo o meu campo de
visão.
Era só o que me faltava. Não se pode nem mesmo apreciar arte
em paz hoje em dia.
Ergui meu olhar pelo corpo do homem de forma inconsciente,
mas quando ele se virou de perfil e finalmente analisei seu rosto
marcado e olhar concentrado, soltei uma exclamação.
Aquela barba…
Aquele olhar misterioso, como se ele estivesse sempre pensando
em algo importante…
Aqueles lábios que me causaram calor por todas as partes,
desejando que ele me explorasse inteira…
Pelos céus, era Rick!
— Rick? — chamei, deixando o quadro no lado vazio do divã e
me levantando.
O homem me olhou por cima do ombro e me olhou dos pés à
cabeça, ainda com a expressão séria, como se estivesse tentando
entender quem eu era e como o conhecia.
Engoli em seco e abri um sorrisinho amarelo. Seria capaz que ele
não me reconhecesse?
Droga, não parecia algo impossível. Talvez Rick já tivesse até
ficado com outras mulheres depois de sexta-feira, talvez ele fosse
acostumado a fazer isso com frequência: ficar cada noite com uma
mulher diferente. Não que eu esperasse algo diferente, nem que isso
me incomodasse, mas… Incomodou.
Eu não era dona dele.
Nem mesmo esperei exclusividade.Mas por que o pensamento
dele com outra mulher tinha trazido um gelo para minha espinha?
— Sky? — Compreensão tomou conta do homem, que finalmente
se virou para mim com um sorriso amigável.
Consegui respirar de novo.
Ao menos ele me reconheceu.
— Que coincidência te ver por aqui! — exclamei com animação e
olhei em volta. — Não imaginei que fosse apreciador de arte.
Ele abaixou o olhar e riu.
— Talvez você não me conheça muito bem — rebateu.
— Bom, você quase não falou nada sobre si aquele dia, fica meio
difícil assim — me defendi e cruzei os braços.
— É que foi tão bom te ouvir, decidi não desperdiçar nosso tempo
falando sobre mim, sabe? — Ele deu de ombros e abriu um
sorrisinho sedutor.
Era a intenção dele me seduzir?
Ou eu estava me autosseduzindo?
Essa palavra existia?
— Ah, lembrei de uma coisa. Eu esqueci a jaqueta no seu carro.
Confusão tomou conta da expressão de Rick.
Talvez ele nem tivesse notado isso. Talvez nem soubesse de
quem era a jaqueta ou talvez estivesse tão acostumado a ter itens
femininos sendo deixados em seu carro que nem tentou adivinhar de
quem era.
Eram muitos “talvez”.
Eu odiava sentir que minha mente estava sendo inundada de
incertezas.
Odiava ainda mais o quanto isso me incomodava.
— Acho que ainda está no carro. Se quiser podemos ir buscar —
sugeriu ele, apontando para a saída.
— Agora não posso, estou aguardando ser chamada por Vladimir
Eastern — expliquei, apontando para a tela coberta apoiada no divã.
Além disso, eu temia estar outra vez dentro de um carro com Rick
e acabar nos braços do homem para terminar o que começamos.
Não que meu corpo não desejasse isso, mas se apenas com
seus beijos já não consegui tirá-lo de meus pensamentos, imagine se
fossemos além.
— É um quadro seu? — perguntou com curiosidade, encarando o
tecido preto.
Concordei com a cabeça, me sentindo subitamente tímida.
Eu queria compartilhar minhas pinturas com o mundo, mas ao
mesmo tempo temia não serem boas o bastante.
— Eu posso ver? — perguntou ele, já se aproximando para
afastar o tecido.
— Espera! — exclamei de súbito antes de abrir um sorrisinho
amarelo. — Deixa que eu faço isso.
Rick aguardou com paciência enquanto eu descobria o quadro,
que era uma pintura de um entardecer chuvoso e aconchegante. O
céu tinha diversos tons de azul e os pingos de água embaçavam
levemente a imagem, o que foi intencional da minha parte.
Fiquei em silêncio, incapaz de encarar Rick conforme ele
analisava meu trabalho.
Uma coisa era mostrar minhas artes para os amigos. Outra
completamente diferente era mostrar para um homem como Rick,
que parecia ter opiniões fortes e não se importar em fazer críticas.
Depois de alguns segundos em silêncio, tomei coragem e ergui o
olhar para encará-lo. Me surpreendi ao notar que ele estava vidrado,
parecendo analisar cada pingo de chuva, cada nuvem cinzenta e
cada sombra.
— E então? — perguntei, impaciente e ansiosa.
— E então… — repetiu Rick e esfregou uma das mãos pela
barba, dessa vez sendo apenas uma sombra em seu rosto e riu. —
Desculpe, estou sem palavras. Acho que voltei a ter cinco anos de
idade dentro do meu quarto observando a chuva bater na janela. É
encantador.
Suas palavras pareciam sinceras.
Isso me encheu de felicidade.
Rick me encarou quando fiquei em silêncio, ainda sorrindo com o
canto da boca, mas aos poucos seu sorriso se desfez e seu olhar
recaiu sobre meus lábios. A respiração dele se tornou mais lenta,
assim como a minha e praticamente consegui ver faíscas em seus
olhos azuis.
À luz clara, era possível notar que um de seus olhos possuía uma
mancha marrom, uma condição extremamente rara e fascinante.
Senti que Rick estava se aproximando de mim ou talvez fosse o
contrário, só sei que ficamos mais perto um do outro como se não
conseguíssemos evitar.
— Primo! — exclamou alguém.
Dei um passo para trás com o susto, assim como Rick, que
pareceu bravo pela interrupção.
Um homem de estatura baixa e cabelos alaranjados apareceu e
me senti paralisar.
Era Vladimir Eastern.
Ele era bem mais baixo pessoalmente.
Seus olhos brilharam conforme encarava Rick, parecendo estar
vendo algo valioso.
— Olá. — Os dois homens trocaram um aperto de mãos. —
Desculpe aparecer sem avisar.
— É uma grande honra ter você aqui! — Vladimir parecia tão
pequeno perto de Rick. — Não sabia que era apreciador de arte.
Rick desviou o olhar e coçou o queixo, parecendo não saber o
que dizer.
Então eles eram primos?
Hum…
Rick não citou isso na sexta-feira.
— Venha, vamos entrar, temos assuntos para colocar em dia. —
Vladimir deu um passo para o lado, abrindo passagem para Rick.
Este, por sua vez, não se moveu.
— Acredito que você tenha um horário marcado com alguém
agora — respondeu, se virando para mim.
Eastern finalmente pareceu me notar e acenei para ele.
— Bem, ela pode esperar, não? — insistiu, se voltando para Rick.
— Fiquei sabendo que Hugh está na cidade.
— Eastern — Rick não parecia interessado nessa conversa —,
nos falamos depois. — Ele se aproximou de mim e aproximou o rosto
do meu ouvido. — Te espero lá fora. Leve o tempo que precisar.
Minhas bochechas esquentaram.
Eastern e eu encaramos as costas grandes de Rick conforme
este se afastava. O homem baixo finalmente me olhou e deu um
passo para trás, me permitindo a passagem. Peguei o quadro no
divã e acenei com a cabeça antes de andar pelo caminho que me foi
indicado.
A sala de Vladimir Eastern era pura arte.
Cores para todos os lados, quadros de diversos tamanhos e
desenhos, prêmios destacados em uma prateleira, uma mesa em
formato de L em um dos cantos e um cavalete de madeira no outro.
— Mostre-me seu quadro — pediu, se sentando atrás da mesa e
indicando o cavalete.
Encaixei a tela no cavalete e removi o tecido preto.
— Eu pintei em um dia chuvoso da semana passada, durante o
entardecer… — comecei a explicar.
— É claro — me cortou, como se tivesse acostumado a ouvir
exatamente as mesmas palavras e colocou os óculos para olhar
melhor para a obra.
Um minuto se passou e Vladimir não disse uma única palavra,
além de não desgrudar os olhos do quadro.
— E-eu…
— Suponho que tenha preenchido o formulário enviado no e-mail.
— Ele me encarou.
Concordei com a cabeça.
— Então não há nada que eu precise saber sobre você. Todas as
informações importantes estão lá. — Ele voltou a encarar a pintura.
Então ele não queria saber sobre mim.
Ou talvez já soubesse o bastante.
— Seu traço é bom — disse depois de um tempo. — As linhas se
misturam com as cores de maneira harmônica, é um belo conjunto.
Isso era um elogio?
Vindo daquele homem, que foi curto e grosso comigo até aqui, foi
algo muito importante para mim.
— Obrigada, senhor Eastern. — Eu estava de pé ao lado do
quadro e senti a empolgação começar a me consumir.
Isso significava que ele iria aceitar me patrocinar?
Eu poderia dar o primeiro passo na escada que levaria à
realização do meu maior sonho?
— Volte quando tiver algo original — determinou, arrancando os
óculos e os jogando sobre a mesa.
Meu sorriso se desfez.
— Eu não entendo.
— Apesar de gostar dos traços, todos os dias recebo quadros de
paisagens. — O homem revirou os olhos. — Acontece que todos os
artistas amadores têm se inspirado em paisagens e eu estou em
busca de algo original. Ninguém se destaca com mais do mesmo.
Não consegui dizer nada.
Vladimir Eastern era direto, assim como disseram na internet, e
conseguiu me fazer querer enfiar a cabeça no travesseiro e chorar
alto.
Ele atendeu o celular e iniciou uma conversa animada, como se
não tivesse acabado de destruir meu sonho e ignorou minha
presença no cômodo. De forma silenciosa voltei a cobrir o quadro e o
segurei conforme saía da sala. Caminhei decidida para fora da
galeria e enfiei o quadro dobrado ao meio na primeira lixeira que
encontrei pela calçada.
Eu queria chorar.
Queria correr.
Mas braços fortes me impediram quando tentei.
Ele esperou.
Rick realmente me esperou.
A decepção foi tanta que me esqueci dele.
— Ei, fica calma — murmurou Rick, me segurando em seus
braços. — Está tudo bem?
Neguei com a cabeça, incapaz de falar.
Ele ergueu o olhar para a tela que tinha sido enfiada no lixo e fez
careta.
— Uma obra tão bela não deveria ser jogada no lixo dessa forma.
— Vladimir Eastern não acha isso — murmurei com a voz
embargada.
A expressão de Rick se tornou séria.
Suas mãos enluvadas ergueram meu rosto para si e ele encarou
meus olhos. Sua imagem ficou embaçada devido as minhas
lágrimas.
— O que aconteceu lá dentro?
— Meu quadro não é original — expliquei com a voz baixa. —
Aparentemente todos os artistas amadores decidiram pintar
paisagens e Vladimir está em busca de algo diferente.
Rick encarou o horizonte e sua mandíbula se contraiu, como se
ele estivesse segurando a raiva dentro de si.
— Eu vou matar esse cara.
— Não, por favor. — Apoiei as mãos nos braços de Rick. —
Vocês são primos, não quero que briguem por minha causa. Além
disso, a vida é assim, algumas coisas apenas não são para ser e eu
vou… Vou me reerguer.
Rick abriu um sorriso triste conforme acariciava minhas
bochechas.
— Você é bem mais forte do que eu. Quando me disseram que
eu não seria bom jogador de hóquei, saí de lá chorando alto e
xingando todo mundo. Mas sabe de uma coisa?
— O que? — perguntei com curiosidade.
— Eles estavam errados, assim como Vladimir está errado. E eu
não vou deixar ele acabar com seu sonho.
— Não deveria ser eu a decidir isso? — Não consegui segurar o
sorriso.
— Não, porque você jogou seu quadro no lixo, o que significa que
já está querendo desistir de tudo. — Rick me soltou e foi até a lixeira.
Ele pegou o quadro dobrado de lá de dentro e deu algumas
batidinhas na tentativa de melhorar sua aparência. Depois de decidir
que estava bom, ele voltou até mim e abriu um sorriso orgulhoso.
— Novinho em folha.
O quadro não estava nada como antes, mas ver a alegria de Rick
por tê-lo salvado foi impagável.
Ele segurou o quadro com uma mão e enganchou o braço no
meu, me puxando para andar ao seu lado.
— Está livre?
Dei de ombros.
— Eu tinha decidido ficar na cama o dia todo depois de descobrir
que sou “mais do mesmo”, mas fora isso, não tenho nada em mente.
— Não acredito que ele disse isso. — Rick negou com a cabeça.
— E você ainda me impede de matá-lo.
— Não gosta do seu primo?
— Não somos próximos.
— Entendo.
Era irônico imaginar que Rick apreciava arte, mas não era
próximo do próprio primo que era um artista conceituado.
— Mas, voltando ao motivo da minha pergunta… — Rick me
olhou. — O que acha de patinar comigo?
— Patinar? — Eu não tive sucesso na primeira vez que tentei. —
Não sei.
— Se não quiser minha companhia, é só dizer. Eu irei entender.
— Não é você! — tranquilizei-lhe. — Eu só não sei patinar — falei
de uma vez.
Rick riu baixo.
— Então você está na companhia do cara certo. Patinar é comigo
mesmo, alguns dizem que sou um ótimo professor.
Arqueei as sobrancelhas e dei um leve tapa em sua mão.
— Que honra.
— Então você topa? — perguntou com expectativa.
Apesar de não estar contente com as coisas que aconteceram na
galeria, Rick parecia ansioso para me ajudar a ficar bem.
Eu apreciava isso.
— Só não garanto que vou conseguir me equilibrar por mais de
cinco segundos.
— Meu bem — a voz de Rick ficou baixa e rouca —,
desestabilizar mulheres é minha especialidade.
Eu sabia que sim.
— Afinal — comecei enquanto estávamos na fila do rinque de
patinação ao ar livre, ainda com o braço enganchado ao de Sky —,
qual é o seu nome?
Seus olhos curiosos e cautelosos encaravam o grupo de pessoas
deslizando sobre o gelo, parecendo reconsiderar sua decisão de
aceitar entrar ali.
— Skyler — respondeu e finalmente ergueu o olhar de encontro
ao meu. — E o seu?
— Maverick. — Decidi não falar meu sobrenome, em partes por
medo de ser reconhecido, em partes porque estava sendo
maravilhoso ser apenas o “Rick”.
Já fazia anos desde a última vez que saí com uma mulher tendo
a certeza que ela estava comigo por apreciar minha companhia e
não por interesse em meu nome e dinheiro. Assim como o futebol
era importante para países como o Brasil, o hóquei era para o
Canadá, e além de técnico, eu acabei me tornando uma espécie de
celebridade.
Meu perfil no Instagram era administrado por profissionais que
fechavam publicidade com marcas famosas que queriam meu rosto
para divulgar seus produtos e isso me trazia uma boa quantidade de
dinheiro todos os meses. Segundo a última atualização que tive por
e-mail, o perfil já contava com quase um milhão de seguidores.
Apesar de carregar meu nome e rosto, eu praticamente não
entrava no perfil, afinal, ele era controlado por outras pessoas, por
isso decidi criar uma conta fake sem fotos e com um nome aleatório
para poder usar quando tivesse curiosidade de ver o perfil de
alguém.
— Como o carro? — Skyler perguntou, me tirando de meus
pensamentos.
— Exatamente.
— Por que seus pais escolheram esse nome?
A história era até engraçada.
— Meu pai tinha um Maverick na época — comecei a explicar
enquanto observava o horizonte. — Ele disse que toda vez que
levava minha mãe para passear durante a gravidez, eu ficava
agitado dentro da barriga. Quando me pegou nos braços pela
primeira vez, ele decidiu falar alguns nomes aleatórios para ver a
qual eu reagiria e advinhe?
— Você reagiu ao nome do carro — completou a morena com um
sorriso brincando em seus lábios. — E assim você se tornou
Maverick.
Eu concordei.
— Minha mãe ficou receosa no início, mas depois se acostumou
com o nome, não é todo mundo que quer que o filho tenha nome de
carro, certo?
— Ajuda se eu disser que minha mãe é apaixonada pelo céu? —
Sky abriu um sorrisinho de canto e arqueou a sobrancelha.
— Isso explicaria seu nome, mas apenas o torna ainda mais
atraente e inspirador — revelei, encarando-a.
Skyler.
Agora eu sabia seu nome, não apenas seu apelido.
Mas eu precisava de mais.
— Não sei se você trabalha dessa forma, mas há algum tempo
tenho desejado encomendar uma pintura minha, e já que estou na
presença de uma artista, gostaria de saber se você aceitaria esse
desafio.
Sky desviou o olhar e pensou um pouco.
Ela tinha talento. O quadro em minha mão livre revelava isso.
Talvez ela só precisasse de um desafio para esquecer as palavras
ridículas do meu primo…
Como duas pessoas tão diferentes podem ter alguns glóbulos
sanguíneos iguais?
Eu jamais entenderia.
— O que você tem em mente? — perguntou finalmente.
— Eu até poderia te explicar agora, mas já está chegando a
nossa vez. — Depois de afastar nossos braços, enfiei a mão no
bolso e peguei meu celular. — Talvez você possa me dar o seu
número para falarmos mais sobre isso.
Ela sorriu.
Bem, talvez tivesse entendido minhas intenções.
— Está bem — respondeu, pegando meu celular e digitando
diversos números com dedos rápidos.
Voltei a enfiar o celular no bolso quando ela me devolveu.
Logo a fila andou e chegou nossa vez. Nos entregaram dois
pares de patins e a moça simpática aceitou cuidar do quadro pelo
tempo que ficássemos no rinque.
— Vem cá. — Puxei Skyler até um banco de madeira e me
sentei.
Ela também se sentou e mordeu o lábio inferior, analisando os
patins.
Seus dedos deslizaram pela lâmina e subiram pelo couro branco,
parando nos cadarços.
— Já pode colocar ou vamos perder nossa vez — avisei
enquanto arrancava minhas botas e enfiava os patins grandes nos
pés.
Eu estava mais acostumado aos patins próprios para quem
jogava hóquei, mas decidi que esse não era nada mal.
— Eu… — Sky ergueu o olhar e abriu um sorrisinho amarelo. —
É só enfiar nos pés mesmo?
— Você já andou de patins de rodinhas antes?
Ela negou.
— Nem skate ou qualquer coisa radical.
Santo Deus.
— Sinto pena de você, garota — murmurei, ajoelhando-me aos
pés de Sky. — Vamos dar um jeito de adicionar adrenalina nessa sua
vida.
Skyler agarrou a borda do banco de madeira com as mãos
enluvadas enquanto me observava arrancar suas botas. Depois de
soltar um pouco o cadarço de um dos patins, segurei seu pé direito e
o encaixei com cuidado dentro do objeto.
— Você já deve ter feito isso muitas vezes na vida — disse ela
com a voz distraída. — Colocar patins nos pés, quero dizer.
— Só algumas milhares de vezes — concordei —, mas nunca em
pés tão bonitos.
— Não vai me dizer que você é o tipo de pessoa que tem tesão
por pés? — Ela arqueou as sobrancelhas.
— Você tem algum problema com isso? — Ergui o olhar e
também arqueei as sobrancelhas.
Ela engoliu em seco enquanto parecia tentar decidir isso.
Não consegui segurar o riso.
— Não, não sou esse tipo de pessoa, Skyler — completei, antes
que ela saísse correndo.
Apoiei seu pé direito em meu joelho e comecei a amarrar os
cadarços do patins de forma a não ficarem apertados demais, mas
firmes o bastante para não oferecerem perigo a ela.
— Você tem mãos grandes. — Ela apontou para minhas mãos
quando comecei a repetir o processo com seu outro pé. — São
quase do tamanho dos meus pés.
— São proporcionais à minha altura.
— Realmente.
Depois de terminar o processo, pedi que ela se levantasse com
cuidado para poder determinar se seus pés estavam confortáveis ali
dentro.
Ela se agarrou aos meus ombros e se levantou com o corpo
trêmulo, como se temesse cair.
— Estou aqui com você — lembrei-lhe e pousei as mãos em sua
cintura. — Não tenha medo.
Demorou um pouco, mas Sky finalmente tomou coragem de
endireitar o corpo e testar o próprio peso sobre os patins.
— Estão ótimos — concluiu.
Com a mão livre peguei nossos sapatos e a puxei para me seguir,
apoiando o braço em volta de sua cintura.
A morena me segurava como se sua vida dependesse disso. Foi
bom, na verdade, sentir que ela tinha confiança o bastante em mim
para se sentir assim.
Depois de entregar nossas botas para a moça de antes, subi o
degrau de entrada para o rinque e me virei, erguendo Sky para que
ela também subisse. A morena deu um pulinho no processo para me
ajudar, mas ela era leve e não foi difícil trazê-la para dentro junto
comigo.
— Tem bastante gente — observou com insegurança enquanto
segurava em mim com uma mão e agarrava as grades que
rodeavam o rinque com a outra.
— Muitos turistas — constatei ao notar pessoas que pareciam
também estar aprendendo a patinar.
— Como sabe? — Sky me olhou com desconfiança.
— Os locais costumam aprender desde cedo a patinar no gelo,
seja em rinques ou lagos congelados. — Segurei-a com mais firmeza
quando notei que tropeçou. — Você precisa olhar para frente, Skyler,
e não para o chão.
— E como vou saber o que estou fazendo?
— Confie em mim. E solte o ar dos pulmões. Quase consigo
sentir sua tensão daqui.
Ela fez careta antes de tomar coragem e erguer os olhos.
Eu ainda não iria pedir para que ela soltasse a grade, isso
envolvia mais tempo e confiança, mas já era um avanço vê-la olhar
para frente.
— Você é daqui? — perguntou depois de algum tempo.
— Toronto — expliquei. — Meus pais ainda moram lá.
— Você nunca viu sol de verdade na vida, não é?
Isso me fez rir.
— Não do tipo que se encontra no Estado do sol — falei,
relembrando de onde Skyler vinha.
— Bem, você provavelmente não sobreviveria ao verão de lá. —
Ela deu de ombros. — O inferno teme o calor do verão da Flórida, se
quer saber.
— E como você está sobrevivendo aqui? — Encarei-a com
curiosidade.
— Muitas blusas. — Depois de pensar um pouco, acrescentou: —
Chocolate quente e velas aromáticas também. Na verdade, eu gosto
de frio. Ele me proporciona experiências diferentes das que já tive na
vida.
— Velas aromáticas?
Ela concordou.
— Sou colecionadora. Tenho uma caixa cheia de velas cheirosas
prontas para me acalentar.
— E você acende as velas enquanto pinta?
— Consegue pensar em um momento melhor? — Ela me
encarou.
Eu conseguia imaginar Skyler concentrada em uma tela vazia
enquanto sua vela tornava o ambiente cheiroso e aconchegante.
— E você vai acender uma enquanto me retratar em um quadro?
— Posso considerar a possibilidade.
Trocamos um olhar.
Eu queria a experiência completa quando envolvia Skyler.
Me virei de frente para ela, começando a patinar de costas, e
estendi minha mão livre.
— Solte essas grades e me dê sua mão.
Insegurança inundou seus olhos.
— E-eu…
— Não aceito explicações — cortei. — Apenas confie em mim e
solte essas malditas grades, elas não merecem seu toque.
— Alguém já disse que você é mandão?
— E autoritário também. — Encarei sua mão. — Vem.
Skyler levou alguns segundos, mas finalmente soltou a grade e
agarrou minha mão.
— Sem olhar para o chão — lembrei.
Ela bufou baixo e ergueu o olhar, o que vi ali me deixou sem
fôlego.
Ver Skyler à luz do dia era mágico. Seus cabelos escuros
contrastavam com todo o resto: o casaco e a touca de pelinhos, o
rinque de gelo, os patins brancos, o céu pálido…
Suas bochechas estavam coradas e quando ela entreabriu os
lábios, vapor saiu de sua respiração. A maioria das pessoas tendiam
a ficar pálidas e sem graça nesse frio, mas não Skyler. Ela tinha cor
nas bochechas e nos lábios, tinha sardas que somente dias sobre o
sol quente poderiam lhe proporcionar e olhos que me aqueciam o
corpo todo.
— O que foi? — perguntou ela, preocupada. — Está tudo bem?
— Não — neguei com a voz rouca. — Não olhe agora, mas estou
diante da mulher mais linda do mundo.
Sky olhou em volta.
— E onde ela está?
Ela não tinha noção da própria beleza?
— Nos meus braços.
Ela finalmente pareceu entender isso e seus lábios formaram um
sorriso adorável.
— Pare.
— Não, é sério — continuei. — É uma ironia você ser a artista e
não a arte. É linda demais para a sanidade de um homem. Para a
sanidade deste homem.
Ela encarou algo atrás do meu ombro.
— Rick, é sério, pare! Nós vamos bater… — Mas foi tarde
demais.
Tropecei em alguém e fui direto para o chão, levando a coitada
comigo.
Ela tentou me avisar…
Pelo menos fomos os únicos a cair, consegui constatar ao olhar
em volta. Sky caiu em cima de mim, com o corpo de frente para o
meu, e apoiou as mãos em meu peitoral para se erguer.
— Espere — pedi.
Ela me encarou.
— O quê?
— Tem algo aqui… — Apontei para seu rosto. — Deixa eu tirar…
— O quê? — ela repetiu e aproximou mais o rosto para que eu
pudesse tirar o que quer que fosse.
— Bem aqui, só mais um pouco… — murmurei.
Ela se aproximou mais, o bastante para concretizar meu plano.
Assim que determinei que estávamos bem perto, ergui minha
cabeça e depositei um selinho em seus lábios cheios.
Skyler revirou os olhos e riu baixo.
— Vai funcionar se eu disser que tem algo no seu rosto também?
— perguntou, encarando minha boca.
— Só me beije, Skyler.
E ela obedeceu, colando os lábios macios e carnudos nos meus.
Eu não tinha a intenção de beijar Skyler.
Na verdade, também não tive a intenção de patinar com ela, ou
de pedir para que pintasse um quadro meu, ou até de esperá-la sair
da galeria, mas parecia que minha mente queria fazer de tudo para
mantê-la por perto, para senti-la, para passar tempo ao seu lado e
meu corpo queria tocar o seu de uma forma ou de outra.
Meus planos de vê-la uma última vez foram por água abaixo,
porque agora mais do que nunca eu queria combinar um próximo
encontro e eu iria.
Depois de separar nossos lábios com um selinho de despedida,
toquei a ponta do seu nariz gelado com o meu e sorri.
— Eu quero sair com você na sexta-feira.
— Nessa sexta?
— Sim. — Será que ela teria algum compromisso? — Se você
quiser, é claro.
— Eu pretendia conhecer uma balada nova. Blue Sky. Já ouviu
falar?
É claro que já.
Uma balada frequentada por jovens e universitários, com músicas
atuais que eu não conhecia e com muita pegação. Ao menos era um
local maior e mais organizado do que o Reinor’s.
— Sim — respondi finalmente, ajudando Sky a se levantar.
Se fosse por mim, eu ficaria deitado ali com ela por muito mais
tempo, mas as pessoas à nossa volta queriam aproveitar o tempo
pago para patinar e não para observar dois patetas se beijando no
chão.
— Quer ir comigo? — perguntou a morena, voltando a segurar
em mim com uma mão e na grade com a outra.
Confesso que o Blue Sky não seria o primeiro lugar que eu
gostaria de ir com Sky, mas ela fez um esforço de vir patinar só
porque eu quis, então eu poderia fazer um esforço de ir a uma
balada por ela.
Não poderia ser muito ruim.
Poderia?
— Onde você vai e por que não me convidou?
Hugh me encarou com a ofensa escancarada em seu rosto.
— Eu gostaria de ter um pouco de privacidade no meu closet, se
não se importar — resmunguei enquanto escolhia qual o melhor
blazer para a noite.
Camisa e calças sociais pretas devidamente ajustadas para não
ficarem largas demais e agora um blazer. Como eu já estava todo de
preto, optei por um blazer vermelho escuro de veludo.
Sério, mas não sério demais.
— E porque você comprou um quadro amassado? — continuou,
sem se importar com meu pedido. — Parece que aquela coisa saiu
do lixo. Não imaginei que você já tivesse chegado naquela fase da
riqueza onde se gasta com qualquer porcaria.
— Hugh — encarei meu irmão mais novo através do espelho —,
você não tem nada melhor para fazer?
Eu juro que tentei deixar o quadro menos amassado, mas Skyler
o enfiou no lixo com tanto ódio que foi difícil restaurar o coitado.
Coloquei a obra sobre a lareira principal e menti dizendo que comprei
em uma galeria.
A verdade é que Sky revelou que não queria ficar com ele, pois
era a lembrança dolorosa das coisas que Eastern lhe falou, então
decidi eu mesmo ficar com o quadro.
— Não precisa ficar bravo — resmungou Hugh, erguendo as
mãos em rendição.
— Eu não estou bravo — rebati, colocando um relógio dourado
no pulso.
— Você é bravo.
Me virei para ele e deslizei as mãos pelo meu cabelo, ajeitando-
os.
— Eu vou sair — respondi, enfim — com uma pessoa.
— Um encontro?
Concordei com a cabeça.
— É aquela modelo italiana? — Hugh negou com a cabeça. —
Droga, cara, eu sabia que ela estava na sua. Aquela mulher é muita
areia. Até pra você.
Borrifei um perfume amadeirado sobre minha pele e ajeitei a
corrente de ouro em meu pescoço.
Hugh estava falando de Mariza, uma modelo que estava na
cidade e que de fato tinha me feito alguns convites indecentes.
Mas, ao pensar em Skyler, Mariza se tornava apenas um borrão.
— Não é a modelo italiana — cortei meu irmão antes que ele
continuasse a falar e passei por ele ao sair do closet.
— Você não costuma ser tão misterioso assim, Rick — reclamou,
me seguindo como uma sombra.
Peguei a chave da Ferrari e meu celular, ambos sobre a ilha da
cozinha.
— Hugh, pelo amor de Deus, arrume seu próprio encontro e pare
de divagar sobre o meu — pedi, me virando para ele novamente e o
encarei nos olhos. — Quer saber? A chave do Audi está na primeira
gaveta.
Os olhos de Hugh se estreitaram e quando ele entendeu o que eu
quis dizer, seu queixo caiu.
— É-é sério? — gaguejou, agarrando meus ombros.
Não consegui conter o sorriso.
— Vai me deixar em paz?
Ele assentiu no mesmo instante.
— Ah, cara, você é o melhor irmão que alguém poderia ter. —
Depois de me abraçar, Hugh correu até a primeira gaveta do balcão
e agarrou a chave do carro. — Nós vamos nos divertir muito essa
noite, querida. — Ele beijou a chave e a segurou como se fosse uma
barra de ouro.
Ajeitei meu blazer, me certificando de que o abraço não o tinha
amassado e me dirigi até a porta.
— Ei, Hugh? — Me virei para ele antes de sair. — Você se
importaria de ficar fora essa noite?
O safado nem hesitou em aceitar.

Como eu imaginei, a balada estava lotada e eu ainda nem tinha


entrado!
Sky e eu marcamos de nos encontrar na entrada, afinal ela iria
até lá de carona com uma amiga e não queria me fazer ter que dar a
volta na cidade só para ir buscá-la. Eu jamais me incomodaria em
fazer isso, mas ela foi insistente em não me dar “trabalho”, então
apenas aceitei.
Conforme eu aguardava por Skyler, alguns flocos de neve
solitários caíram sobre meu blazer. Ergui o olhar para o céu, me
dando conta de que logo teríamos bastante neve e que esses
primeiros flocos eram apenas um aviso de sua chegada.
— O que está fazendo aí parado como um segurança? —
perguntou uma voz feminina com bom humor. — Caramba, você
parece pronto para andar pelo tapete vermelho.
Eu nem precisava olhar para saber que se tratava de Sky.
Desci o olhar pelo meu corpo, começando a me questionar se eu
tinha exagerado na escolha das roupas.
— Você está bonito, Rick — me tranquilizou, dessa vez mais
perto.
Ela subiu na calçada e parou em minha frente, usando um suéter
de gola alta, calças jeans brancas e um belo par de botas com canos
que chegavam até a altura de suas coxas.
O cabelo preso em um coque me dava a visão da tatuagem atrás
da orelha.
— We were born to die[1] — falei baixo, lendo a frase escrita ali, e
deslizei o dedo por cima das letras.
Sky se encolheu levemente e notei que ela sentia cócegas
naquela parte.
— Por que? — perguntei, encarando seus olhos âmbares.
— Porque é verdade — respondeu, dando levemente de ombros
— e também porque é o trecho de uma música da minha cantora
favorita.
— Ela me parece melancólica. — Sorri de canto e ofereci meu
braço.
— Quando você descobre que a realidade é melancólica, passa a
admirar quem faz arte com ela. — Sky apoiou a mão na dobra do
meu braço e me acompanhou para dentro.
Pulseiras coloridas foram colocadas em nossos pulsos.
Fomos direto para a parte vip que ficava mais reservada das
demais, mas que continuava bem movimentada. Ao menos era
melhor do que ficar lá embaixo com aquele monte de gente se
esbarrando.
— Obrigada — agradeceu Skyler quando um garçom lhe
entregou um copo colorido com um guarda-chuva.
Eu agradeci, mas não aceitei a bebida.
Além de estar dirigindo, eu estava evitando álcool, o que não era
novidade.
— Não vai beber nada? — A morena me encarou com
curiosidade e arqueou as sobrancelhas.
— Depois — respondi, apoiando a mão na base de suas costas e
a guiei para um sofá vazio.
Seu quadril se movia naturalmente no ritmo da música alta.
— Eu gosto dessa — admitiu, dando meia volta e ficando de
frente para mim.
Ok, ela não veio até aqui para se sentar.
As luzes piscavam no ritmo das batidas de I follow rivers. Sky
sorriu e começou a dançar em minha frente, movendo o quadril para
lá e pra cá enquanto balançava o braço livre.
Ela bebericou mais um pouco da bebida, marcando o copo com
seu batom escuro e me encarou em um desafio silencioso.
Eu nunca me senti tão travado na minha vida. Eu devia mover os
braços? Ou as pernas? A cabeça, talvez?
Como eu fazia quando frequentava essas baladas mesmo?
— Ei, moça. — Um engomadinho se aproximou de Sky e abriu
um sorriso cheio de dentes para ela. — Posso te acompanhar?
Ele movia o corpo no ritmo da música como se não fosse algo
difícil de ser feito.
Fechei as mãos em punhos ao lado do corpo, me sentindo com
vontade de mandá-lo se ferrar, mas Sky foi mais rápida e pousou a
mão sobre a minha.
— Eu já estou acompanhada, obrigada. — Ela me puxou para
que eu a seguisse até um canto mais vazio e deixou o copo em cima
de uma mesa no caminho.
Eu estava fazendo papel de palerma.
Todos estavam começando a olhar para o estranho parado
enquanto sua parceira linda e jovem se soltava. Será que Sky estava
com vergonha de mim?
Eu mesmo estava começando a ficar com vergonha. De mim.
— Coloque as mãos aqui. — Ela me puxou para perto e pousou
minhas mãos em seus quadris. — Esqueça de todo o resto e apenas
sinta a música.
— Não sei fazer isso — admiti, mas não me afastei.
Eu conseguia sentir seus movimentos debaixo das minhas mãos.
— Você me ensinou a patinar, então acho que sou capaz de te
ensinar algo também.
A morena se virou de costas para mim e continuou a rebolar e a
se balançar.
Olhei para baixo, o que foi o pior erro da minha vida. Sua bunda
estava quase se esfregando contra meu quadril. Ergui o olhar e
engoli em seco, tentando pensar em qualquer coisa que não
envolvesse Skyler e sua bunda.
— Se solta, Rick! — exclamou, apoiando as mãos em cima das
minhas.
Ok, ela tinha razão.
Não podia ser tão difícil.
Cinquenta minutos depois eu estava suado, ofegante e
completamente descontrolado. Também tinha arrancado o blazer e
dobrado as mangas da camisa até os cotovelos.
As músicas invadiram minhas entranhas e agora era impossível
parar. Fiquei com sede e um garçom me trouxe uma garrafa de agua
gelada, depois disso eu e Sky demos um show na pista de dança.
Ok, eu não podia dizer que eu estava de fato dando um show,
mas com certeza estava me mexendo o bastante para ao menos
parecer que eu sabia o que estava fazendo.
Eu não sabia.
Mas era divertido mesmo assim.
Quando você para de pensar no que os outros vão pensar e se
permite balançar no ritmo da música, as coisas ficam mais leves.
— Não acredito nisso! — A morena não conseguia parar de sorrir
conforme recuperamos o fôlego no sofá. — Onde você guardava
esse homem?
— Qual?
— Você quase me enganou quando chegou todo tenso e
carrancudo, pensei que estivesse arrependido de me acompanhar.
— Ela deslizou pelo sofá até encostar a perna na minha e mordeu o
lábio inferior. — Acho que te quero como meu parceiro oficial das
baladas.
Afastei uma mecha de cabelo que se soltou do coque e encarei
sua boca.
— Não me parece uma má ideia.
Ela sorriu e desviou o olhar, encarando as luzes led azuis das
paredes.
— Aqui é bem melhor do que o Reinor’s. — Ela riu fraco e me
olhou. — Você gostou?
Pelo vinco em sua testa, Sky parecia preocupada com a
resposta.
— É, eu… Estou me acostumando — admiti com sinceridade. —
Já faz pelo menos uns oito anos que eu não frequento uma balada.
Sinto que perdi um pouco a prática. — Encarei Skyler e sorri de
canto. — Você sempre teve o costume de sair pra dançar?
Ela riu e desviou o olhar.
— Meu ex odiava baladas, nós só fomos juntos uma única vez e
ele brigou comigo porque um cara ficou me olhando enquanto eu
dançava. Segundo ele, eu estava “rebolando demais” — ela fez
aspas com os dedos —, então não, eu só estou tendo a
oportunidade de fazer isso atualmente. Confesso que gosto bastante.
Senti raiva do babaca só de saber que ele culpou Sky porque
outra pessoa a olhou, como se ela tivesse o controle sobre os atos
dos demais.
Se ele soubesse que ela não precisava rebolar para atrair
atenção, com certeza ficaria louco.
— Vocês mantêm contato?
Ela negou.
— Apesar de ter sido um término amigável, já que nós dois
concordamos, ele se transformou em outro logo em seguida,
postando coisas sobre como ser solteiro é uma benção e sobre como
ele estava livre para fazer o que quiser. — Ela deu de ombros. — Eu
entendo que seja verdade, mas não acho legal esse tipo de atitude.
Parece que anula todos os anos que passamos juntos.
— Foram muitos?
Sky fez contas nos dedos.
— Seis anos.
Ok, eu nunca fiquei com alguém por tanto tempo, nem podia
imaginar o quão difícil devia ser terminar uma relação tão longa. De
repente, um pensamento torturante me ocorreu.
— Você sente falta dele?
A morena ergueu o olhar e pensou por uns segundos antes de
negar com a cabeça.
— Só agora enxergo que nossa relação não era saudável.
Passamos boa parte dela discutindo por celular por motivos muito
bobos e Tyler tinha um ciúmes excessivo de mim. Demorou um
pouco, mas hoje consigo ver que uma relação não deve ser como a
nossa foi. Nos primeiros meses foi difícil me acostumar sem ele,
afinal, seis anos não são seis dias, mas hoje eu não voltaria com
Tyler nem se ele me pedisse de joelhos.
Apesar de ter apenas 23 anos, Skyler se mostrou extremamente
madura ao falar sobre o assunto, de uma forma que eu com certeza
não era na sua idade. Reconhecer que um relacionamento tão
duradouro não foi de fato bom para ambas as partes exigia coragem
e muita maturidade.
— Mas e você? — A morena voltou a atenção para mim. — O
que me conta sobre sua vida amorosa?
Não consegui segurar o riso.
— Ela é inexistente — admiti.
— Você não me parece alguém que passa as noites sozinho —
observou Sky, me encarando com intensidade.
— Não ter uma vida amorosa não significa passar as noites
sozinho, querida. — Toquei o queixo de Sky, que corou fortemente.
Ela se manteve em silêncio enquanto me encarava, parecendo
aguardar por mais informações.
Ok, ela tinha se aberto comigo sobre o ex, a relação que tiveram
e sobre como estava sendo lidar com tudo isso. O mínimo que eu
podia fazer era falar um pouco sobre mim, mesmo que passasse a
maior parte do tempo tentando evitar me lembrar das desilusões do
passado.
Me endireitei no sofá e encarei o chão.
— Eu já tive um relacionamento sério — admiti, me lembrando do
rosto da abençoada que me traumatizou. — Ela me trocou por um
amigo, que na época estava em destaque no mundo do hóquei.
— Claramente não pode ser considerado um amigo — observou
Sky com cautela.
Ri baixo.
Ela tinha razão.
— Nossa relação não durou tantos anos quanto a sua, mas me
lembro de como foi complicado quando tudo acabou, especialmente
pela forma dolorosa com que descobri sua traição. Me traumatizou o
bastante para não desejar me envolver com mais ninguém no futuro
e assim me dediquei ao esporte, que é o único que nunca me traiu.
Sky trocou um rápido olhar comigo, compartilhando um sorriso
solidário no processo, mas logo encarou as luzes piscantes e eu fiz o
mesmo.
Eu não era avesso à ideia do amor. Admirava quem o
encontrava, porque exigia muita coragem para se entregar de corpo
e alma para alguém pelo resto da vida, sem ter a certeza se algum
dia você vai ter uma faca enfiada no coração ao encontrar essa
pessoa na cama com o seu amigo.
Eu não era corajoso o bastante para passar por isso de novo, foi
difícil me recuperar, e eu com certeza fazia bem a mim mesmo por
me distanciar do amor.
— Acho que, às vezes, esquecemos que no mundo existem
pessoas bem diferentes daquelas que nos magoaram — comentou
Sky, ainda sem me encarar. — Eu me apego a essa esperança.
— Que esperança?
Ela finalmente me olhou e a intensidade de seus olhos âmbares
me fez sentir vontade de abraçá-la e juntar todos os seus caquinhos,
encaixando cada um com os meus, para assim nos tornarmos
inteiros novamente.
Esse pensamento me assustou.
O jeito que essa mulher mexia comigo era assustador.
— A esperança de que na próxima vez que eu amar, valerá a
pena.
Encarei-a por segundos intermináveis, absorvendo aquelas
palavras e pensando no que dizer, mas era impossível ter uma
resposta à altura para uma esperança tão bonita.
Se eu fosse capaz de me agarrar a um pensamento assim, talvez
passasse a me permitir mais do que apenas uma noite com alguém,
mantendo a relação puramente carnal e fria.
Talvez o rosto de Alba parasse de me atormentar.
Meus pensamentos silenciaram quando Sky deu um pulo de
susto com o barulho de vidro sendo quebrado. Levei o olhar até o
som, encontrando um rapaz no canto, que encurralava uma moça
aparentemente indefesa e de cabeça baixa. Ele estava suado e
apontava o dedo no rosto dela.
Um bêbado.
Aos pés deles, um copo quebrado mostrava de onde tinha vindo
o som anterior. Na parede ao lado, a mancha líquida denunciava que
o copo havia sido jogado com força antes de se estilhaçar no chão.
Ele gritava com ela, coisas que eu não conseguia entender pela
distância e ela apenas assentiu com a cabeça baixa. Olhei de
relance para Skyler, que tinha os olhos arregalados e os lábios
abertos, como se tivesse tendo um dejá vù.
O pior de tudo era notar que ninguém estava disposto a ir até lá e
pedir para o babaca parar de cena. Ele podia machucar a moça à
sua frente e todos seríamos cúmplices desse ato.
Me levantei quando ele a apertou ainda mais na parede, decidido
a não fazer parte do grupo de omissos. Essa coisa de “não meter a
colher” em briga de casal tinha seus limites e o que eu estava
presenciando não era uma briga de casal. Era uma covardia.
— Com licença — falei, parando logo atrás do idiota que gritava e
encarei a moça, que teve coragem de erguer o olhar para me
encarar. — Está tudo bem por aqui?
Seus olhos estavam cheios de lágrimas e eu sabia que ela estava
dividida entre pedir ajuda ou dizer que estava tudo bem.
— Não precisamos de um segurança aqui, obrigado. — O rapaz
nem se virou para me encarar, apenas acenou com a mão, me
descartando.
— Está tudo bem, senhor — a moça respondeu com a voz
trêmula e forçou um sorriso. — Obrigada.
Eu não queria causar uma cena.
Eu realmente não queria.
Mas quando comecei a me distanciar e ouvi o babaca dizer que
“em casa eles iam conversar melhor sobre como ela ficou soltinha na
pista de dança”, imaginei que em particular a cena seria bem pior do
que aqui, em público.
Eu não me aguentei.
Nunca fui adepto da violência. Acho que o diálogo pode ser a
solução de quase tudo, quando bem executado. Mas o soco que
enfiei no meio do nariz do cretino depois de agarrar seus ombros e
virá-lo de frente para mim foi muito, muito prazeroso.
A moça arquejou com a surpresa e cobriu a boca com as mãos.
Skyler apareceu atrás de mim, exclamando algo sobre irmos
embora dali.
Enquanto o idiota cambaleava com o nariz sangrando, notei que
a música tinha parado e as pessoas nos observavam com um misto
de curiosidade e receio.
Balancei minha mão, esticando os nós dos dedos e bufei.
— Você vai embora com ele? — perguntei, ignorando tudo e me
concentrando apenas na moça chocada.
Ela não parecia saber o que dizer.
Estava dividida, com certeza.
— Moça, você sabe que isso só vai piorar quando estiverem
sozinhos — avisei, apontando para o rapaz que nos encarava com
ódio, mas que não ousou se aproximar. — Pense bem, tá legal?
Finalmente lhe dei as costas e fui até o sofá pegar meu casaco.
Skyler me acompanhou lado a lado, parecendo perturbada. Não
comigo, mas com o que quer que estivesse em sua mente. Apesar
disso, ela segurou meu braço e me deixou guiá-la para fora.
Paguei por nossas bebidas na saída e antes de alcançarmos o
carro, uma voz nos alcançou.
— Espere! — Nos viramos, observando a moça de antes correr
em nossa direção. — E-eu…
Ela engoliu em seco, parecendo só agora parar para pensar no
que dizer e abaixou o olhar.
— Para onde você quer ir? — perguntei sem rodeios.
— Para a casa da minha mãe — respondeu, enfim, e depois me
explicou onde ficava.
— Então te levaremos até lá — falei, trocando um rápido olhar
com Skyler, que concordou no mesmo instante.
Apertei ainda mais sua mão na curva do meu braço, me sentindo
grato por tê-la comigo naquele momento e torcendo para que jamais
fosse embora.
A moça, que se chamava Evie, nos agradeceu pelo menos
quinze vezes durante o trajeto até a casa de sua mãe. Quando viu o
carro de Rick, teve exatamente a mesma reação que eu ao descobrir
que o homem dirigia uma Ferrari e perguntou qual era sua profissão.
Depois de ter a curiosidade saciada e passar um pouco da surpresa
de estar em um carro tão luxuoso, Evie decidiu nos explicar melhor o
que aconteceu antes e que seu namorado, o mesmo que fez aquela
cena no Blue Sky, não costumava ser assim sempre, só quando
bebia mais do que devia.
Eu conhecia aquele discurso.
Eu mesma o utilizei para me convencer de que o tapa que Tyler
deu em minha cara quando discutimos em público uma vez foi
porque ele não estava no controle de si, suas desculpas incessantes
logo depois me mostraram que ele me amava e só fez aquilo por
ciúmes.
Depois de meses de terapia, eu finalmente conseguia entender
que não existia violência que fosse uma desculpa aceitável para o
ciúmes. Se um cara te bate, ameaça ou xinga e depois alega que
tudo isso é porque te ama demais… Tem algo muito errado com esse
“amor”.
Evie prometeu que contaria aos seus pais sobre o que aconteceu
essa noite e que daria um jeito de se afastar do namorado antes que
tudo piorasse. Ela tinha só dezenove anos, era linda e possuía uma
voz amável. Se continuasse nessa relação por mais tempo, logo
perderia todo esse brilho, assim como perdi o meu.
Depois de deixarmos a garota em segurança na casa da mãe,
Rick começou a fazer um trajeto em silêncio por umas ruas que eu
não conhecia bem.
— Onde vamos? — perguntei, curiosa e um pouco preocupada.
Ele ficou em silêncio o caminho todo, eu precisava ouvir sua voz,
precisava saber se estava bem.
— Minha casa — respondeu, sem me encarar. — Acabei com
sua noite, o mínimo que posso fazer é tentar melhorar um pouco
tudo isso.
— Ah, Rick… — Se ele soubesse que, ao se levantar e ir
proteger uma desconhecida que estava em perigo, ele fez
exatamente o que desejei que alguém tivesse feito ao presenciar
Tyler gritar comigo e me agredir…
Foi como se ali ele tivesse me mostrado que tipo de homem ele
é, e isso me fez confiar nele como se já o conhecesse há anos.
— Eu não costumo sair por aí agredindo as pessoas —
confessou, deslizando a mão pelo cabelo ondulado levemente
bagunçado —, mas não suporto babacas que aproveitam do
tamanho e da força para serem covardes e encurralarem mulheres.
Suporto menos ainda ver que ninguém faz merda nenhuma nesses
casos. — Ele me encarou pelo canto do olho. — Desculpe se te
assustei.
Neguei com a cabeça, incapaz de segurar o sorriso e pousei a
mão em sua bochecha, sentindo sua pele quente em minha palma.
— Só me leve para sua casa, Maverick, pois pretendo te beijar
muito para mostrar o quanto você me assusta e talvez até confesse
no seu ouvido o que senti vontade de fazer ao ver seu punho quebrar
o nariz do babaca.
A mandíbula de Rick ficou tensa enquanto ele ouvia minhas
palavras e seus olhos escureceram.
Não pude deixar de notar que a velocidade do carro aumentou.
Bem, talvez eu não fosse a única animada para o restante da
noite, afinal.
A casa de Rick me lembrava algumas mansões rústicas que certa
vez avistei durante um passeio por Beverly Hills, talvez até um pouco
mais chamativa do que elas. Por fora, a casa parecia uma releitura
de um castelo medieval, adaptada para o nosso século, mas sem
deixar de lado a elegância e imponência características do passado.
A residência mais próxima ficava longe o bastante para não
atrapalhar a visão ou talvez Rick tivesse comprado os terrenos mais
próximos para ter o máximo de espaço e privacidade possível.
Eu mal podia esperar para ver como tudo era por dentro e acho
que ele notou, pois riu ao me ver tirar o cinto de segurança com um
pouco de pressa quando o carro parou.
Rodeando a casa e tomando boa parte do restante do espaço se
estendia o jardim mais lindo que já tive o prazer de observar, todo
cheio de tochas acesas por sua extensão que o iluminavam por
inteiro e treliças de madeira em determinados pontos. Um pequeno
caminho de cascalho cruzava pelas árvores e colunas de mármore,
como que me convidando para descobrir os segredos contidos ali
dentro. A única coisa que tornaria aquele jardim perfeito seriam
flores, que com certeza fariam uma bela mistura com todo aquele
verde.
— Acho que você gostou da casa — comentou Rick, tirando o
próprio cinto e abriu a porta para sair. — Infelizmente, em dias de
neve, o jardim não fica tão bonito quanto o restante do ano.
A previsão indicava que a neve começaria a cair nessa
madrugada e pelo frio que estava fazendo, eu acreditava nela.
— Eu pintaria um quadro desse jardim — admiti, já do lado de
fora do carro —, mesmo em dias de neve.
Ouvi passos pesados amassando o cascalho conforme Rick se
aproximava e os pelinhos da minha nuca se arrepiaram quando senti
que parou atrás de mim.
— Sinta-se convidada para fazer isso quando quiser. — Sua voz
rouca próxima do meu ouvido me desconcertou.
Engoli em seco e segurei um sorriso, me virando lentamente para
ele, que me observava com olhos escuros e intensos.
— Sou conhecida por nunca esquecer um convite. — Tentei soar
tão relaxada quanto ele, mas estava sendo muito difícil esconder o
quanto esse homem mexia comigo. — Especialmente se tratando de
um tão especial.
— A única condição — Rick pousou a mão nas minhas costas,
me guiando em direção à entrada da casa — é que eu quero colocar
esse quadro na sala principal da casa para poder mostrar a todos e
estou disposto a pagar por ele.
— Muito tentador — era fofo como Rick se esforçava para
sempre ressaltar minha paixão pela pintura e demonstrar o quanto
meu talento era valioso, algo que seu primo não fez nem de longe —,
mas eu não seria capaz de cobrar. Não de você.
Rick abriu a porta de entrada e as luzes se acenderam
automaticamente.
O interior da casa estava aquecido e levei alguns segundos para
absorver toda a beleza contida ali. Esculturas em mármore, quadros
de pintores renomados, medalhas e troféus me seguiram por um
corredor imenso até uma sala onde a lareira já estava acesa e
enormes janelas de vidro me possibilitaram ver a noite como se ela
estivesse aqui dentro. O cheiro amadeirado pairando no ar me
deixou inebriada, era como se a casa exalasse o aroma de seu
residente, ele estava literalmente em todas as partes.
— Ai, meu Deus — sussurrei, me aproximando do quadro que foi
colocado logo acima da lareira, me negando a acreditar. — Ele está
aqui.
Ainda um pouco amassado, mas estava.
Rick deixou o blazer em cima do encosto do divã e abriu um
sorriso satisfeito enquanto dobrava as mangas da camisa social até
os cotovelos.
— Gostou? É de uma artista muito talentosa, mas um tanto
impulsiva quando está brava. — Ele parou ao meu lado e me
estendeu uma taça.
— Eu não sou impulsiva! — me defendi, pegando a taça. — Sou
bastante controlada, na verdade.
Ele arqueou as sobrancelhas enquanto enchia minha taça com o
vinho mais cheiroso que já conheci.
Minhas narinas arderam e minha boca salivou em expectativa.
Por algum motivo, Rick não serviu vinho para si, e desde mais cedo
eu notei que ele não tinha bebido nada alcoólico.
— Bem, você tem razão. Se fosse impulsiva, muito
provavelmente teria colocado fogo na tela e ela não estaria aqui
agora decorando essa sala sem graça. — Ele se afastou para
guardar a garrafa e passei os olhos pela sala.
A decoração era rústica e máscula, toda em tons de verde musgo
e vinho, com uma enorme costela de adão no centro, deixando claro
que aquela casa pertencia a um homem.
Mas sem graça? Jamais.
— Você nunca age por impulso, Maverick? — perguntei, lhe
lançando um olhar curioso. — Nunca sai dessa casca grossa e
controlada?
Ele encostou o quadril na mesa de madeira maciça e cruzou os
braços, me encarando em silêncio.
Seus olhos passearam por meu pescoço, descendo por meus
ombros e indo parar em meus pés, como se conseguisse ver através
das minhas roupas. Talvez fosse o vinho ou essa sua atitude
descarada, mas meu corpo esquentou e senti como se tivesse me
agasalhado mais do que deveria antes de sair de casa mais cedo.
Beberiquei um pouco do líquido, sustentando seu olhar e arqueei
uma sobrancelha, desafiando-o a me responder.
— Nunca — foi sua resposta baixa e séria.
— Então está me dizendo que nada é capaz de te tirar dos eixos
a ponto de fazê-lo agir sem pensar duas vezes? — provoquei.
— Ah, amor… — Ele balançou a cabeça. — Eu não faço nada
sem antes pensar, no mínimo, quarenta vezes.
Esse homem era tão controlado e sério que, mesmo quando
socou o namorado da Evie mais cedo, dava para ver que ele pensou
antes de agir. Talvez fosse a idade, as experiências, traumas ou
criação, mas ele emanava autocontrole e poder, eu queria vê-lo de
verdade, fora dessas camadas.
— Me fale sobre seu trabalho, Maverick — pedi, me aproximando
distraída de uma caixa de vidro no canto que guardava um par de
patins dourados.
— São de ouro — explicou ele, se sentando no divã. — Um
prêmio que minha marca recebeu ano passado.
— Sua marca? — perguntei, observando o S marcado em cada
patins, me lembrando que já vi esse símbolo antes. — Você tem uma
marca de patins?
— Touché. — Ele abriu um sorriso preguiçoso e apoiou a cabeça
na mão. — Patins Stanwick.
O nome não me era estranho, mas eu tinha péssima memória.
— Seu sobrenome? — Ele assentiu e eu continuei: — Maverick
Stanwick?
— Minha mãe gosta de como soa. — Ele deu de ombros. — Na
época da escola, eu era conhecido como ick-wick. Por algum motivo
me parece nome de pato.
Isso me fez rir.
O pior de tudo é que eu conseguia imaginar um pato com esse
nome.
Apesar de sério, Rick tinha senso de humor, uma mistura
incomum e rara, mas que eu estava gostando e muito!
Me aproximei de uma foto na parede, de um Rick pelo menos dez
anos mais jovem, que sorria enquanto mordia um disco de hóquei e
erguia um troféu com a outra mão. Ele estava com o uniforme do
Montreal Monsters, um pouco mais antigo do que o atual, mas eu
sabia que era o mesmo time.
E, caramba, Maverick sempre foi muito bonito. Com rugas a
menos e nenhum resquício de barba no rosto, ele me pareceu
exatamente o tipo de jovem que deve ter colecionado corações, algo
que, infelizmente, eu temia acontecer até hoje, porque eu sentia meu
coração balançar sempre que estava em sua presença.
— Sempre gostou de esportes?
— Acho que posso dizer que sim.
— Você me parece que foi do tipo que matava aulas para sair
escondido com as líderes de torcida — brinquei, me virando para ele.
— Deve ter feito sucesso na escola.
Um sorriso torto se abriu conforme ele encarava o chão.
— E se eu te disser que fazia parte do grupo de nerds e era
diariamente zoado por causa do meu peso enquanto os garotos que
praticavam esportes me forçavam a fazer seus trabalhos se não
quisesse ter a cabeça enfiada na privada como, diga-se de
passagem, chegou a acontecer. — Ele ergueu o olhar, parecendo
prever meu choque e franziu a testa. — Te surpreendi?
— E-eu… — Será que ele estava zoando comigo? — Isso parece
muito cruel. Até demais.
— Ser uma pessoa gorda nesse mundo é algo cruel,
especialmente se você estiver no ensino médio. Você sabe que
ninguém te escolhe para jogar no mesmo time porque acha que a
gordura vai te impedir de ser mais rápido ou de chutar mais forte e
você tem vergonha de comer na frente dos seus colegas porque com
certeza alguém vai falar sobre como você come igual um mamute,
mesmo que estejam comendo exatamente a mesma coisa. — Rick
deu de ombros, como se aquilo já não o machucasse mais. — É o
tipo de coisa que só entende quem passa ou já passou.
É o tipo de coisa que eu nunca passei e nunca imaginei que
alguém passasse.
Realmente estava na hora de começarmos a nos colocar mais no
lugar das outras pessoas, especialmente daqueles diferentes de nós.
Bebi o resto do vinho de uma vez só e deixei a taça em cima de
uma tora de madeira que servia como mesa.
— Droga, eu não queria deixar o clima pesado com as histórias
da minha adolescência. — Rick apoiou um dos pés no joelho de
forma relaxada. — Vai ajudar se eu disser que com dezesseis anos o
treinador viu potencial em mim e tudo mudou?
Eu não queria ter que mudar de assunto só para evitar a dura
realidade que Rick passou quando mais jovem, mas ao mesmo
tempo fiquei curiosa para descobrir sobre seu início no esporte.
Adorava ouvir histórias inspiradoras de quem não desistiu apesar
de tudo.
— Eu sinto muito, muito mesmo, por tudo o que você passou.
Não consigo imaginar… — Esfreguei a testa, sentindo a cabeça doer
só de tentar. — Eu quero saber como você deu a volta por cima e
acabou com esses babacas.
Rick riu, um riso sincero e leve, como se tivesse ficado feliz por
eu concluir isso.
— O treinador ficou encantado quando me viu no gol. Segundo
ele, eu era a “muralha” que ele precisava e depois de meses de
muito treino, alimentação específica e esforço, eu comecei a me
destacar cada vez no esporte até atrair pessoas grandes nesse
meio.
— E hoje as esposas dos babacas da sua adolescência devem
torcer para passar a noite na sua cama — comentei, ainda
fervilhando de raiva, incapaz de esquecer tudo o que Rick passou.
Ele riu.
— Isso é verdade — disse, ainda rindo, mas logo ficou sério e
encarou as chamas da lareira. — É mesmo verdade — falou mais
baixo, como se tivesse uma lembrança.
— É verdade que alguma já tentou ou que já aconteceu?
Ele me encarou.
— Eles ainda não tinham se casado.
Ah.
Então ele já tinha dormido com a mulher de algum babaca que o
humilhou no passado. Não achei algo injusto, mas imaginar Maverick
com outra mulher me causou ciúme e uma pitada de irritação.
Me virei abruptamente e cruzei os braços, voltando a encarar a
mesma foto de antes.
O calor se espalhava pelo cômodo e eu começava a me sentir
incomodada com a blusa.
— Está tudo bem? — ouvi Rick perguntar do divã.
— É claro. — Me virei novamente para ele enquanto puxava a
blusa para cima. — Se importa se eu tirar? — perguntei, já
arremessando a peça em sua direção.
Rick pegou a blusa no ar e colocou junto com o blazer.
Eu estava com uma regata branca e sem sutiã. Já que vesti uma
blusa tão grossa para me proteger do frio, não senti a necessidade
de colocar sutiã. Na verdade, evitava essa peça em especial sempre
que podia.
— Então, Maverick Stanwick… — Me aproximei do homem e me
sentei na mesinha de centro em sua frente. — Agora entendo um
pouco melhor essa sua casca grossa. Mas… — Levei a mão até a
alça da minha regata, deslizando o dedo de forma provocante por
ela. — Deve existir uma forma de fazer você sair um pouco do
controle, não?
Eu queria que existisse.
Ele acompanhou minha mão, notei o movimento de sua garganta
quando ele engoliu em seco ao notar a ausência de minha lingerie.
— É tão importante assim me fazer perder o controle? —
perguntou ele com a voz rouca, voltando a encarar meus olhos.
— É só que seria bom saber que não sou a única “impulsiva” aqui
— falei, me lembrando de suas palavras de antes.
Ele se inclinou para frente, ficando mais próximo de mim e tocou
meu queixo, prendendo nossos olhares.
— Meu amor, você me fez dançar no meio de desconhecidos
hoje. — Suas sobrancelhas se arquearam. — É o mais impulsivo que
já agi em anos.
— Se não é seu tipo de coisa, por que foi? — Minha curiosidade
era genuína.
Realmente não parecia o tipo de entretenimento que Maverick
escolheria.
— Porque, se isso significar que vou estar com você, então sou
capaz até mesmo de dançar no centro da sala oval da mansão
presidencial durante uma reunião com o papa.
Acho que ninguém nunca me falou algo tão romântico.
Não eram palavras bonitas dignas de um poeta e foi engraçado
imaginar a cara do papa enquanto observava Rick dançar, tudo isso
dentro da Casa Branca. Mas ele disse que faria isso se significasse
que estaria comigo.
Droga.
Eu estava ferrada na mão desse cara.
A mão de Rick substituiu a minha na alça da blusa, mas em
momento algum ele afastou nossos olhares. Parecíamos nos
comunicar em silêncio e quando ele começou a abaixar a alça, me
levantei e o empurrei até que colasse as costas no encosto do divã.
Suas mãos agarraram minha cintura e me puxaram consigo, me
sentando em seu colo.
— Desde aquela primeira noite — começou Rick, soltando e
bagunçando meu cabelo —, não consegui parar de pensar em você.
Abri sua camisa com pressa, sentindo a necessidade de ter mais
desse homem.
— E mesmo agora — continuou, arrancando meus sapatos —,
sinto que estou condenado a nunca mais conseguir parar.
Segurei seu rosto e ataquei sua boca, guardando suas palavras
para depois.
Sim, eu pensaria nelas por muito tempo, mas não agora.
Agora eu só queria sua boca para mim.
As mãos de Rick estavam por todos os lados enquanto sua
língua travava uma batalha com a minha. Durante um breve
momento em que nos separamos para tomar fôlego, ele arrancou
minha camiseta com um puxão e fez o mesmo com a camisa social
aberta, como se ambas estivessem tomadas por chamas.
Me segurando como se não fosse trabalho algum para ele, Rick
se levantou e me colocou deitada no divã. Ele veio para cima de mim
logo após e aproveitei para deslizar as mãos por seu abdômen
definido, sentindo sua respiração falhar sob meu toque.
Maverick não era um cara pequeno ou magro, mas grande e
forte, e devia pesar no mínimo uns cem quilos. Em cima de mim ele
conseguia ofuscar todo o resto, seus ombros largos cobriam minha
visão e seus braços fortes me rodeavam com possessividade. Tudo
que eu via era o homem que parecia desesperado por mim, o que,
por sinal, era uma visão excitante.
Ele fez uma trilha de beijos por meu pescoço, logo alcançando os
seios sensíveis e expostos e me agarrei a seus ombros. Suas mãos
substituíram os lábios e massagearam, apertaram e brincaram com
meus seios conforme eu me arqueava em sua direção, incapaz de
ficar quieta diante da chuva de sensações. Se concentrando no
espaço entre eles, Rick traçou minha tatuagem com a pontinha do
nariz gelado, me fazendo arfar conforme recriava os contornos e ia
descendo cada vez mais, a pele gelada contrastando com o hálito
quente.
— Não sei se escolheu essa noite para me torturar — sussurrei
com um misto de impaciência e desejo —, mas será que dá para
deixar para a próxima?
Ele parou tudo o que fazia e ergueu o olhar, parecendo
preocupado.
Seus ombros ficaram tensos e um leve tremor passou por seu
corpo.
— Você não me quer? — perguntou com a voz falha, parecendo
prestes a se afastar.
Agarrei sua nuca e o puxei de volta.
Se esse homem parasse agora, acho que eu morreria.
— Você eu quero — murmurei contra seus lábios, deslizando a
mão por seu abdômen novamente, dessa vez mais baixo, e fiz
pequenos círculos provocantes com os dedos na área logo abaixo do
umbigo. — Só a tortura que hoje não. Já esperei demais por você,
Maverick Stanwick.
O homem ficou sério e seus olhos escureceram, era impossível
saber o que se passava em sua mente.
— Quando diz meu nome nesse tom… — começou ele, rouco,
apertando o quadril contra o meu, o que me possibilitou sentir seu
membro mesmo através das camadas de roupa. — Acho que nunca
ouvi algo tão erótico.
Entreabri meus lábios, incapaz de falar ou respirar direito,
tamanha era minha necessidade por Rick, e o apertei ainda mais
contra meu corpo, demonstrando isso.
Ele xingou baixo e depois de beijar meu nariz, ele se levantou,
parecendo se esforçar muito para conseguir se afastar e foi até a
mesa de madeira, abriu uma gaveta e pegou um pacote escuro que
logo entendi se tratar de uma camisinha.
Ao menos um de nós se lembrou dela, afinal.
— Só hoje eu vou permitir que você me impeça de te explorar,
Skyler — sua voz era séria e decidida conforme ele abria o pacote
sem dificuldade —, mas, na próxima, será uma garota paciente e me
deixará conhecer cada pedacinho desse seu corpo.

Um calor percorreu minha espinha e eu o acompanhei com o


olhar conforme voltava até mim, já abrindo a calça.
— Como quiser — respondi, quase sem voz ao vê-lo se livrar da
peça, mostrando toda sua glória masculina.
Aproveitando sua atitude, fiz o mesmo com a minha calça e me
contorci no sofá conforme a arrancava junto com a calcinha. Por ser
muito apertada e eu estar deitada, tive um pouco de trabalho no
processo e logo Maverick veio para cima de mim, parecendo achar
graça ao notar que eu tinha me atrapalhado com uma tarefa tão
simples.
— Essas calças de hoje em dia parecem que foram feitas para se
colar nas pernas da gente — resmunguei.
— Pois saiba que não tenho objeções se decidir andar sem
calças nesta casa — murmurou ao pé do meu ouvido, mordiscando a
carne macia do lóbulo da orelha em seguida.
Ele puxou minhas pernas e me ajeitou debaixo dele, seu olhar a
todo momento preso ao meu com uma mistura de desejo e
admiração. De maneira provocante, se esfregou em mim até me
fazer cravar as unhas em sua pele, implorando para que atendesse
logo meu desejo.
Sua mão alcançou o centro do meu corpo e seus dedos hábeis
passaram a massagear meu ponto mais sensível e inchado,
mandando choques de dor e prazer por todo o meu corpo.
— Rick… — gemi contra sua boca. — Por favor…
— Por favor o que? — provocou, deslizando um dedo para dentro
de mim.
Eu arfei.
— Eu quero você — murmurei quase sem voz, mas foi o
bastante.
Ele parou de me tocar, o que me causou uma sensação de
frustração, mas eu sabia que o melhor estava por vir.
Se posicionando em minha entrada, ele aproximou a boca do
meu ouvido e senti um sorriso em seu tom de voz quando disse:
— Segure-se, amor.
Quando finalmente me penetrou, arrematando uma única vez, eu
arfei.
Agora eu entendia porque Rick me mandou me segurar. Ele tinha
firmeza nos movimentos, e depois que começamos, Rick não parecia
disposto a parar — o que era maravilhoso, porque eu também não.
Ele não foi devagar e acho que ouvi o divã chiar com todo o peso
em cima dele.
Rick abafava meus gemidos com sua boca e tive a impressão de
que não era porque não queria ouvi-los, mas porque queria senti-los.
Encontramos um ritmo frenético e intenso, com Rick me
segurando com firmeza a todo o tempo, posicionando meu quadril de
formas a me invadir cada vez mais, mas sem impedir de me mover
junto com ele. O som de nossos corpos se chocando e nossas
respirações ofegantes eram os únicos presentes na sala.
Em determinado momento, virei o rosto para o lado, sentindo
como se meu corpo estivesse prestes a explodir ou derreter ou
ambos. Rick notou, pois virou meu rosto de volta para si e sustentou
meu olhar, parecendo decidido a me olhar nos olhos quando eu
alcançasse o clímax.
— Não desvie o olhar, Sky — pediu ele com esforço, a testa
pipocando em gotículas de suor —, nunca.
Uma veia saltou em seu pescoço, demonstrando todo o esforço
que fazia para não quebrar nosso ritmo e foi o bastante para mim.
Sem desviar o olhar, assim como ele ordenou, senti meu corpo
ficar tenso e se arquear antes de finalmente atingir o ápice e o chão
tremeu debaixo de nós. Não consegui segurar a voz conforme jogava
a cabeça para trás e me deixava ser atingida pela onda de prazer,
com Rick absorvendo minhas reações com seu corpo.
Seu clímax chegou quase em seguida e seu rosto se contorceu
conforme eu sentia seus músculos tensionarem e depois relaxarem
debaixo do meu toque. Ele deslizou lentamente até deitar em cima
de mim, com o rosto escondido na curva de meu pescoço,
recuperando o fôlego.
Fechei os olhos, incapaz de mover um dedo sequer e aguardei
nossas respirações se normalizarem. Era gostoso sentir o peso de
Maverick sobre mim, sua pele quente contra a minha, seu coração
tão acelerado quanto o meu. Eu sabia que isso era bom, só não
imaginava que fosse tanto.
Para minha infelicidade, Rick levou apenas cinco minutos para se
recuperar enquanto eu ainda me sentia um caco.
— Você está bem? — perguntou, se erguendo para sair de dentro
de mim e estendeu a mão para tirar o cabelo do meu rosto. — Se eu
soubesse como fazer, pintaria um quadro de você exatamente assim,
corada e satisfeita.
Não consegui segurar o sorriso e tombei a cabeça para o lado.
— Estou muito, muito bem, obrigada.
Ele se levantou e foi até uma porta no canto, aproveitei o
momento para observar seu corpo nu e definido ondular conforme
ele se afastava, com o suor ainda escorrendo por suas costas.
Fechei os olhos novamente, ouvindo o som da descarga e da
torneira, o que indicava que aquela porta levava até um banheiro,
mas só notei que cochilei quando Rick apareceu algum tempo depois
com uma coberta em mãos, que ele colocou sobre mim.
Seu olhar era gentil, seu cabelo estava úmido e um sorriso leve
brincava em seus lábios. Rick tinha até mesmo colocado uma calça.
Ele tinha tomado banho? Eu cochilei por todo esse tempo?
— Ei, não precisa se levantar — murmurou baixo, acariciando
minha bochecha. — Está nevando.
Esfreguei os olhos e encarei as enormes janelas de vidro,
notando os pequenos flocos que caíam do céu.
Sorri.
Aqui dentro a lareira crepitava e o fogo nos aquecia. Lá fora, a
neve começava a pintar o mundo de branco.
Tive uma sensação que há muito tempo não sentia: a de paz
interior.
— Eu… Então, é…— Rick olhou em volta, parecendo não saber
o que dizer e fez menção de se afastar.
Eu sabia que nem todo mundo dorme junto depois da relação,
afinal, aparentemente dormir é íntimo demais para alguns, mas se o
que Rick falou era mesmo verdade e se ele não tinha parado de
pensar em mim, talvez já fossemos íntimos o bastante.
Pousei a mão sobre a dele e o puxei, encarando seus olhos azuis
em um pedido silencioso.
Por sorte, ele entendeu meu pedido, pois se juntou a mim no
divã, me abraçando por trás e apoiando minha cabeça em seu braço.
E foi a melhor noite de sono que eu tive desde que cheguei em
Montreal.
Eu dormi com uma mulher.
No sentido literal da palavra.
Eu era acostumado a fazer sexo, mas dormir com alguém ao meu
lado? Isso era diferente.
Era íntimo.
E não era uma mulher qualquer, mas Sky, a artista que conheci
na outra noite, que tinha olhos cor âmbar, cabelos escuros como a
noite e um sorriso fácil e sincero, como se o mundo fosse um quadro
que ela estivesse feliz em colorir pouco a pouco.
Ela ainda dormia quando me levantei, o sol tinha acabado de
nascer e o mundo lá fora agora possuía uma leve camada branca.
Nunca fui muito fã dessa época do ano, a neve às vezes me
atrapalhava ou até me impedia de sair de casa — se muito intensa
—, mas pela primeira vez desejei que isso acontecesse, porque isso
significava que Skyler também teria que ficar aqui, e droga, eu queria
ela aqui comigo.
Pedi para Solange preparar um café da manhã caprichado com
panquecas, waffle, ovos mexidos com bacon, pelo menos três
opções de suco — eu não sabia qual era o sabor favorito de Skyler e
queria muito agradá-la —, salada de frutas e o que mais ela
decidisse criar. Como Solange era brasileira, às vezes ela fazia
pratos típicos de seu país e eu adorava todas as vezes. O Brasil
estava na minha lista de países para conhecer antes de morrer.
— Ela está na cozinha — anunciou Hugh, entrando na academia
com uma toalha sobre o ombro.
Diminuí o ritmo da esteira, passando para uma caminhada rápida
ao invés de corrida e assenti.
Nem precisava perguntar de quem se tratava, é claro.
Assim que Hugh chegou, uma hora atrás, avisei que tínhamos
visita e que ele devia passar longe da sala em que Sky estava.
Permiti apenas a entrada de Solange, que deixou uma cesta sobre a
mesinha de centro com roupão, toalhas limpas e produtos de higiene
que a morena poderia desejar usar.
Meu irmão ocupou o elíptico e começou a se movimentar em um
ritmo lento, me lançando olhares curiosos, como se tivesse milhares
de perguntas, mas não quisesse fazê-las.
Eu não podia culpá-lo.
Era raro eu trazer uma mulher para casa e mais raro ainda
passar a noite inteira com ela. Mas era a primeira vez em pelo
menos quinze anos que eu dormia abraçado com alguém, acordava
ao seu lado e ainda providenciava coisas para fazê-la se sentir bem-
vinda, torcendo para que ficasse o máximo possível.
— Com licença. — Solange parou na porta da academia,
esfregando as mãos no avental. — Sua encomenda chegou, posso
pedir para colocar no segundo andar?
— Sim, Solange, por favor.
A mulher concordou e sumiu logo em seguida, indo fazer o que
pedi.
Antes do sol nascer, enquanto eu observava Sky dormir em meus
braços como se pertencesse a esse lugar, tive a ideia de
encomendar algumas telas de diferentes tamanhos, cavaletes, tintas,
pincéis e algumas coisas mais que artistas deviam usar. Na verdade,
só para garantir, encomendei praticamente todos os itens do site e
pedi entrega expressa.
No segundo andar, Sky teria a visão completa do jardim e de
algumas montanhas ao longe.
— Podemos falar sobre o elefante na sala? — Hugh finalmente
pediu.
Por estar acostumado a viver sozinho, me desacostumei a dar
satisfações e explicações, mas por sorte eu estava de bom humor.
— O que te incomoda? — perguntei, diminuindo a velocidade da
esteira até parar e encarei meu irmão.
— Sinto que algo importante aconteceu. — Ele deu de ombros.
— Só gostaria de ficar por dentro, caso eu esteja prestes a conhecer
minha nova cunhada.
— Eu diria que você está prestes a conhecer alguém muito
importante, sim, mas não quero dar nome pra isso agora. — Peguei
minha garrafa de água e bebi um pouco antes de continuar: — E
como foi sua noite?
Hugh arqueou as sobrancelhas.
— Com certeza não tão boa quanto a sua, eu diria. — Ele me
encarou dos pés à cabeça. — Essa mulher deve ser mesmo muito
importante pra ter te transformado em um ser humano um pouco
menos desagradável…
— Se fosse outro dia, eu talvez decidisse te dar uma resposta
afiada, mas hoje eu vou deixar passar. — Enxuguei meu suor na
toalhinha, caminhando para fora. — Só quero te pedir uma coisa.
Parei na porta e virei para Hugh, que parou de se exercitar e me
encarou.
— O que?
— Não olhe muito para ela ou eu vou ser obrigado a te colocar
para fora.
Meu irmão riu, achando graça do pedido, mas aos poucos ficou
sério quando viu que não retribuí seu riso.
— Vou passar longe dela.
— Obrigado.

— Então eles me fizeram vomitar até ter certeza de que toda a


tinta saiu do meu corpo — ouvi Skyler contar em um tom risonho.
Parei na entrada da cozinha e avistei a morena debruçada sobre
o balcão enquanto Solange misturava algo dentro de uma tigela e a
ouvia com atenção.
Skyler estava com o cabelo úmido, a mesma roupa de ontem à
noite e parecia apenas uma garota inocente e risonha conforme
balançava um dos pés no ar, distraída ao contar suas histórias.
— Seus pais devem ter morrido de preocupação! — exclamou
Solange, parecendo chocada.
— Ah, com certeza, mas hoje nós rimos bastante dessa história.
— Sky deu de ombros e enrolou uma mecha de cabelo entre os
dedos.
— Vejo que já fizeram amizade — falei, chamando a atenção das
duas mulheres que se viraram para mim.
Notei que Skyler me olhou dos pés à cabeça e engoliu em seco,
como se não soubesse bem como reagir e eu também não sabia.
Deveria cumprimentá-la com um beijo de bom dia? Um abraço? Ou
apenas um simples “bom dia”?
Eu sabia bem o que queria fazer, mas correr até a morena,
envolvê-la em meus braços e dizer o quão linda ela ficava de manhã
poderia acabar assustando a coitada. Além disso, há muitos anos eu
não fazia isso e desejar fazer causava um autoestranhamento, se é
que essa palavra existe.
— Eu queria me despedir antes de ir embora, mas quando
Solange informou que você estava se exercitando, decidi aguardar
aqui e acabamos jogando conversa fora — explicou Skyler, abrindo
um sorrisinho. — Eu estava contando da vez que ingeri tinta quando
criança.
— Uma apaixonada por cores desde a infância, então? —
perguntei, me aproximando, mas ao sentir o cheiro floral
característico da morena, me senti incapaz de ficar longe e fiz algo
que surpreendeu a nós dois: beijei sua testa. — Bom dia —
murmurei.
Só me dei conta da intimidade do ato depois de fazê-lo.
Solange parou de mexer com a colher e nos observou com
interesse.
Ouvi passos de Hugh e ele parou na porta, absorvendo a cena.
Tínhamos plateia e eu tinha acabado de agir de uma forma
diferente do que todos éramos acostumados e o pior: não fazia ideia
de como a morena iria reagir.
Meu coração parou.
Eu não devia ter feito isso.
Skyler iria se afastar e era meu último desejo do momento.
Droga, Maverick.
Como, com tantos anos de experiência, você era capaz de tomar
uma atitude tão patética?
Era só o que faltava: se apaixonar depois de uma noite de sexo.
O problema é que eu tinha me apaixonado antes mesmo do sexo;
na verdade, ele não teve muito a ver com meus sentimentos.
Senti que meu coração voltou a bater em seu ritmo normal
quando, de repente, a morena ficou nas pontas dos pés, apoiou as
mãos em meu peitoral e beijou meu queixo. Ela murmurou um “bom
dia” baixo e sorriu, um sorriso sincero e doce que iluminou meu dia.
E minha alma.
Eu me acostumaria facilmente se esse “bom dia” fizesse parte de
todas as minhas manhãs.
Ouvi Hugh pigarrear e senti vontade de matá-lo, mas eu sabia
que precisava apresentar meu irmão ou ele não iria parar de me
encher o saco depois.
— Sky, esse é meu irmão, Hugh. — Ela sorriu e ele a
cumprimentou com um aceno de cabeça. — Ele está passando uns
dias aqui, mas logo vai voltar para Toronto. Não é mesmo, Hugh?
— É claro — respondeu meu irmão, mas não senti firmeza em
sua resposta.
— Também estou passando uns dias com meu irmão, então acho
que estamos quites. — Skyler lançou uma piscadela para Hugh, que
teve uma crise de tosse.
Eu entendia meu irmão.
A beleza dela era desconcertante e receber uma piscadela dessa
mulher seria capaz de derrubar um homem.
— Não permitirei que parta sem antes comer o que preparei —
disse Solange, entrando na conversa, e apontou em direção à
enorme mesa de madeira já posta.
A mesa tinha sido preparada de forma impecável e estava repleta
de pães, frutas, sucos, iogurtes e todo o resto que pedi. Parecia ter
acabado de sair de uma revista.
Apoiei a mão nas costas de Sky, guiando-a até a mesa e notei
que ela se deixava ir facilmente quando eu a tocava. Eu gostava
disso.
— Eu gostaria de te mostrar uma coisa depois do café, se não
estiver com pressa — falei, puxando a cadeira para a morena se
sentar.
Ela sorriu em agradecimento e olhou as horas no celular
conforme se sentava.
— Meu irmão está preocupado, mas acho que não tem problema
ficar mais um pouco — disse ela, colocando o celular sobre a mesa.
— Ele é ciumento? — perguntei, me sentando de frente à Skyler
e aproveitei para colocar suco verde na minha taça.
— Bastante e superprotetor também. Ele é mais velho e somos
os únicos irmãos um do outro — revelou ela, se servindo de suco de
laranja e começando a colocar algumas coisas no prato. — Não sei o
que escolher, então vou pegar um pouco de tudo.
Consegui ouvir um suspiro de satisfação vindo da cozinha.
Uma semana aqui e Solange conseguiria engordar Skyler
facilmente. Eu adoraria ver isso. Solange a alimentaria de dia, e eu
de noite.
Balancei a cabeça, afastando esses pensamentos.
Estava ficando louco.
— É verdade que o mais novo é sempre o mais mimado? —
perguntei antes de bebericar meu suco.
— Não mesmo. — Ela riu. — Kill sempre foi o mais mimado e
meus pais sofreram muito quando ele partiu, muito mais do que
quando eu parti.
— Talvez porque você pretende voltar, ao contrário dele, não?
Era péssimo pensar em Skyler há tantas milhas de distância,
droga.
— Bem, talvez seja isso. — Ela deu de ombros e mordiscou um
pedaço de waffle. — E você, Hugh? Concorda comigo?
Meu irmão devorava seu desjejum em silêncio, sentado distante
de nós na mesa cheia de cadeiras e arqueou as sobrancelhas
quando teve sua opinião requisitada.
— Eu… — Ele olhou para mim e voltou a olhar para Skyler. —
Definitivamente Maverick é o mais mimado. Sempre foi.
A morena riu e me lançou um olhar acusador.
Eu bufei.
— Hugh não sabe o que fala.
— Certa vez, no Natal, ele ganhou patins novos e eu um balde
cheio de pás e formas geométricas para brincar na areia. E nós nem
costumávamos ir para a praia! — Meu irmão revirou os olhos e
enfiou um pedaço grande de panqueca na boca. — Ao menos usei
aquilo pra brincar com a neve.
— A instituição irmãos mais novos se compadece com a sua
história — disse Sky com seriedade e se virou para mim. — São
coisas que só entende quem passa.
Skyler usou minha frase contra mim.
Ela era inteligente. E provocante.
— E como são seus pais? — perguntei, na tentativa de mudar de
assunto.
Ela cortou um pedaço de morango e enfiou na boca, mastigou e
engoliu.
— Amorosos, preocupados, mas inseguros. — Ela encarou as
próprias mãos. — Apesar de não dizerem com palavras, sei que
preferem que eu faça uma faculdade e arrume um emprego de
verdade ao invés de ficar correndo atrás desse sonho.
Eu sabia a que sonho ela se referia.
O mesmo sonho que meu maldito primo tinha atrapalhado.
— Acho que todos os pais são um pouco inseguros com respeito
a isso, mas só porque querem o melhor para os filhos — falei com
sinceridade e mordi um pedaço de torta de limão sem glúten,
sentindo a acidez atingir minha língua, sendo logo substituída pelo
açúcar. — Até hoje meus pais perguntam se estou me cuidando
direito, às vezes mandam Hugh para me inspecionar, como pode ver.
Quase quarenta anos nas costas e eles ainda me enxergam com a
mesma preocupação de quando eu era um jovem bobo e medroso.
Skyler parou de mastigar e arregalou os olhos.
Estranhei sua reação, mas só até lembrar o que falei.
Revelei minha idade — não que eu a estivesse escondendo — e,
se antes eu temia assustá-la, agora eu tinha certeza.
Ela engoliu lentamente o que estava em sua boca e bebericou o
suco.
— Isso é bem fofo, na verdade — disse, dando de ombros, e
assim ela voltou a agir como antes de saber minha idade exata.
Como se não importasse.
Troquei um olhar com meu irmão, mas ele já estava se
levantando com prato e copo vazios. Hugh comia bem rápido,
sempre foi assim, enquanto eu levava bem mais tempo mastigando e
saboreando antes de finalmente deixar a mesa.
— Você… — comecei a falar, me voltando para Sky. — Quantos
anos achou que eu tinha?
Ela levou o olhar até a janela enquanto pensava a respeito e
aproveitei o momento para observar seus detalhes: os olhos
âmbares, que ficavam quase amarelos devido a claridade que
entrava; as sardas adoráveis e delicadas; o leve vinco que surgiu em
sua testa enquanto sua mente trabalhava…
— Eu não sou do tipo de pessoa que se apega à idade, sou mais
interessada em outras questões. — Ela deu de ombros. — Afinal,
idade hoje não significa muita coisa. A maioria dos rapazes na faixa
dos vinte fala tanta besteira que fica difícil querer conhecer melhor
um deles. Mas já vi homens mais maduros fazerem o mesmo, então
quando você me tirou daquela situação no Reinor’s, eu entendi que,
jovem ou maduro, você era diferente dos outros homens que já
conheci.
Eu não conseguia imaginar qualquer homem passando por uma
mulher em situação de perigo e a deixando ali sem ajudá-la.
Mas, infelizmente, eu sabia que isso era muito comum.
— Você está só enrolando para não falar a idade ou está sendo
sincera? — perguntei de bom humor, arqueando as sobrancelhas.
Skyler riu ao mesmo tempo que ficava vermelha.
— Um pouco dos dois, talvez, mas só porque nunca fiquei
pensando sobre sua idade. — Ela contornou a borda do prato com o
indicador antes de continuar: — Mas eu te daria no máximo uns trinta
e dois.
— Está falando isso apenas para encher meu ego?
— Estou falando isso porque é a verdade, Maverick. Você tem
um ótimo porte físico, é vaidoso e muito bonito. Você se cuida todos
os dias. — Ela lançou um olhar para meu suco verde. — O resultado
é esse: parecer mais jovem.
Fiquei feliz por saber que parecia mais jovem do que realmente
era, sendo sincero. Há tempos eu me perguntava se já parecia um
quarentão e se isso era bom ou não.
— Você parece se preocupar muito com a idade — disse Skyler,
me tirando de meus pensamentos. — Por que?
— Acho que porque na minha área, aparência e idade são
sempre muito lembradas e cobradas. E também porque o número
quatro ao lado do zero me assusta.
— Pois eu acho que você está prestes a entrar na melhor idade
da vida humana. Nem novo demais para não ter experiências e
histórias para contar, nem velho demais para deixar de viver a vida
com todas as forças. Eu acredito fortemente que você deveria fazer
amizade com o quatro e talvez assim passe a entender que ele é só
um número.
Talvez sim.
Talvez eu tenha passado a vida preso aos meus vinte e cinco
anos e, quando vi os quarenta chegando, tive uma crise de
identidade. Mas, ao olhar no espelho, eu ainda conseguia ver o
jovem Maverick que com apenas vinte e três anos já estava entrando
para um dos melhores times de hóquei da atualidade. Ou o
adolescente Maverick que, apesar de sofrer bullying e não gostar
muito do que via no espelho, não desistiu de lutar. Todos eles
estavam aqui dentro e foram eles que me ajudaram a chegar onde
cheguei.
Skyler estava certa.
— Você não se importa? — perguntei sem me aguentar. — Não
se importa que eu tenha quase o dobro da sua idade?
— Bem, não é o tipo de coisa que eu pensei que um dia
aconteceria comigo, mas confesso que quando penso em você, não
me vem em mente a nossa diferença de idade, mas sim a pessoa
incrível que você tem mostrado ser a cada vez que nos vemos. —
Ela estendeu a mão por cima da mesa e eu estendi a minha até
alcançá-la e entrelaçar nossos dedos. — Você se importa com a
minha?
Essa pergunta me surpreendeu.
— Por que eu me importaria?
— Bem — ela desviou o olhar —, eu sou imatura às vezes, não
realizei nada concreto ou histórico na minha vida, faço piada de
situações sérias e posso ser impulsiva em alguns momentos.
Nada diferente do que eu fui na idade dela.
Na verdade, talvez eu tenha sido ainda pior.
— Então, estou começando a acreditar fortemente que eu e você
equilibramos um ao outro — falei, me levantando e puxando Sky
para fazer o mesmo. — Eu não me importo com nada disso, Skyler.
— Talvez agora você acredite que eu também não me importo
com nada disso — retrucou, me acompanhando para fora da cozinha
de mãos dadas.
Foi algo natural, simplesmente nossas mãos não se soltaram e
eu apreciei muito isso.
— E o que mesmo que você queria me mostrar? — perguntou,
curiosa, enquanto subíamos as escadas até o segundo andar.
— Você vai ver.
Eu só podia torcer para Solange ter ao menos tirado as coisas da
caixa e organizado na sala.
Ela era uma mulher prática, que na maioria das vezes fazia
coisas sem que eu precisasse pedir.
Por sorte, ao abrir a porta da sala e deixar Skyler entrar primeiro,
sua exclamação de surpresa me dizia que Solange preparou tudo
para esse momento.
Maverick não podia ser real.
Era a única explicação para o que ele fez.
Transformar a sala no segundo andar da mansão em um ateliê,
com literalmente tudo o que um artista precisava, só podia ser coisa
de conto de fadas.
— Comprei enquanto você dormia.
Rick estava parado na porta enquanto eu caminhava entre os
cavaletes, telas imaculadas de diferentes tamanhos e materiais,
vários tipos de tinta — aquarela, óleo, acrílica —, pincéis com cabos
e cerdas variadas, paletas, entre outros itens que nunca cheguei a
usar.
Os pincéis foram organizados lado a lado em cima de uma mesa
de madeira clara, do menor para o maior. As tintas de pote estavam
todas dentro de um engradado, também de madeira, enquanto as
bisnagas estavam também na mesa.
Maravilhada, deslizei os dedos por cada uma das telas, sentindo
a diferença entre as de algodão, linho, papel e poliéster, cada uma
com sua espessura, umas mais finas e delicadas, outras mais
grossas e resistentes.
— Eu não sabia quais eram suas preferências, então pedi todas
as opções do site — continuou Maverick, me observando com
atenção.
Encontrei um caderno no canto da mesa.
Ele tinha um tamanho médio, mas nenhum desenho na capa e
logo senti a necessidade de trazer cor para aquele pedaço vazio.
— Você está muito silenciosa — o tom de Rick parecia
preocupado. — Por favor, diga alguma coisa.
— Eu… — Peguei um dos pincéis e deslizei o dedo pelas cerdas
dele. — Estou maravilhada demais para falar.
Ele soltou uma risada nasal, parecendo mais calmo ao constatar
esse fato, e adentrou a sala, se aproximando de mim.
No mesmo instante os pelinhos da minha nuca se arrepiaram.
Sempre que Maverick caminhava em minha direção ou me
encarava com aqueles olhos azuis, eu me sentia na beira de um
precipício, pronta para me jogar em seus braços.
Quando ele revelou que estava prestes a fazer quarenta anos,
notei o quanto aquilo o incomodava. Rick era um homem vaidoso e
preocupado, e muito provavelmente acreditava que completar mais
uma década de vida iria sentenciá-lo automaticamente à terceira
idade e do dia para a noite rugas iriam surgir em seu rosto e fios
brancos tomariam conta de sua cabeça.
Talvez as pessoas à sua volta o fizessem acreditar nisso.
O esporte não era muito gentil com números e eu sabia disso.
Killian estava chegando em seu auge, mas e quando ele tivesse a
idade de Rick? Ainda seria tão requisitado?
— É um presente — disse ele, parando em minha frente e me
tirando de meus pensamentos.
Isso tudo deve ter custado uma fortuna.
Olhei para as enormes janelas de vidro, apreciando a vista do
jardim, que agora estava coberto por uma pequena camada de neve
e suspirei baixo, pensando em como recusar sem parecer mal-
educada.
— Eu não posso aceitar, Rick. — Devolvi o pincel à mesa como
se ele estivesse em chamas e me virei para o homem grande parado
me encarando com dúvida. Era melhor falar a verdade de uma vez.
— Sinto muito. Essas coisas devem ter custado um valor absurdo, eu
não me sinto bem em aceitá-las, entende?
Os olhos de Maverick se estreitaram conforme ele encarava um
dos quadros em branco e eu quase conseguia ouvir as engrenagens
da sua mente se movendo enquanto ele pensava.
— Bem, mas eu não estou dando apenas por dar. Tenho um
pedido… Uma proposta a fazer.
Foi minha vez de estreitar os olhos.
— Acabou de inventar isso ou…?
— Não, é sério! — Ele riu e segurou minhas mãos. — Minha
marca precisa de uma campanha publicitária muito boa nesse fim de
ano e pensei que você poderia criar uma pintura chamativa para
atrair as pessoas.
— Não estou entendendo.
— É um trabalho. — Ele parecia tentar encaixar as informações
na própria mente antes de passá-las para mim. — Você usa esses
materiais para criar uma pintura para minha marca e em troca eu te
pago… O que? Dez mil? Acha que está bom para você? Acha que
dá para ser o pontapé inicial para abrir sua galeria?
Ok, se antes eu achava que Maverick não era real, agora eu tinha
certeza.
Eu não era ingênua. Sabia que ele estava fazendo tudo isso
apenas por mim. Sua marca não precisava de meus desenhos, mas
ainda assim ele queria me fazer sentir útil e ajudar na realização do
sonho que ele viu ser tirado de mim naquela tarde na Mont’Real
Gallery.
— Para… Para quando você precisa?
— Tendo em vista que estamos quase em dezembro, você teria
que começar já… na segunda-feira, acha que dá?
Eu não tinha nada planejado e, mesmo se tivesse, não negaria
por nada a oportunidade de voltar para essa sala e começar a pintar.
Além disso, eu ainda não tinha contado para Kill e os meninos
sobre meu fracasso. Talvez, ao aceitar a proposta de Rick, eu
pudesse esconder por um pouco mais de tempo esse fato. Assim
meus pais também não ficariam sabendo, eu poderia passar mais
tempo aqui em Montreal sem ter alguém me pedindo para voltar para
casa com a desculpa de que eu não tinha mais nada para fazer aqui.
E eu tinha.
Talvez não exatamente o que eu planejei quando vim para cá,
mas meu coração estava cada vez mais preso a esse lugar, a esse
homem…
Pousei uma das mãos no rosto de Maverick e sorri, incapaz de
colocar em palavras tudo o que eu queria dizer.
Então eu fiquei na ponta dos pés e o beijei.
Pressionei meus lábios contra os dele de forma casta e
carinhosa, colocando ali todas as palavras não ditas.
Quando me afastei, Rick me encarava com olhos intensos.
— Isso é um sim?
Concordei com a cabeça.
— Sim, Maverick Stanwick. Para você é sempre sim.

Voltei para a casa dos meninos pouco antes do meio-dia.


Hugh foi quem me levou embora, pois Rick teve uma emergência
para resolver e não permitiu que eu voltasse de Uber. Seu irmão
pareceu gostar da tarefa que lhe foi designada, especialmente
porque isso incluía dirigir um dos carros de luxo de Maverick.
No caminho de volta, fiquei feliz quando Claire me enviou uma
mensagem com o convite para uma noite de meninas. Eu precisava
contar para alguém sobre tudo o que estava acontecendo na minha
vida e confiava nela. Claire me passava a sensação de ser uma
velha amiga, mesmo que nossa amizade tenha começado
recentemente.
Eu não queria comentar com Killian ou com seus amigos sobre
meu recente romance, afinal, sabia que eles seriam superprotetores
e talvez fizessem perguntas demais. Eu ainda não estava pronta
para lidar com isso e, sendo sincera, gostava do fato de as coisas
entre mim e Rick ainda estarem só entre nós. Eu me sentia à
vontade assim, era mais maduro e diferente do que foi quando
comecei a ter algo com Tyler. Basicamente todos já sabiam de nosso
interesse mútuo antes mesmo de darmos um primeiro beijo, isso nos
tirou certa privacidade e nos pressionou a ter logo algo concreto, a
rotular nossa relação imediatamente e talvez fosse também um dos
motivos para termos durado tanto mesmo com uma relação falida.
O mais interessante, parando para pensar, era que não lembrei
de Tyler nem uma única vez enquanto estive com Maverick. Na
verdade, o único motivo para eu estar pensando nele agora era
porque eu estava meditando sobre todos os furos que tivemos em
nossa relação, todas as vezes que devíamos ter agido diferente e
que agora eu faria isso.
Maverick não era um adolescente que conheci na escola que
depois de trocar olhares e alguns bilhetes, decidimos ir ao cinema
trocar alguns beijos. Ele era um homem, tinha experiência de vida,
gostos formados, opiniões, independência e, acima de tudo, um
cavalheirismo que nunca vi em outro homem antes. Isso me
desconcertava um pouco, especialmente por eu nunca ter sido
tratada de forma tão especial, mas eu gostava de pensar que esse
era só o início de algo belo que podia surgir entre nós.
Eu estava disposta a isso, se ele estivesse também.
Sim, vim para Montreal para me divertir, dançar até de
madrugada, conhecer pessoas novas e ser mais livre do que nunca.
Mas, quando o coração escolhe alguém, é quase impossível se
sentir livre se não estiver ao lado daquela pessoa.
Não existe liberdade maior do que amar e ser amada, eu
acreditava nisso. Se for verdadeiro, então será esplêndido.
Eu e Rick não nos vimos tantas vezes quanto a maioria das
pessoas costumava fazer antes de finalmente se apaixonar, mas
todas as vezes que estivemos juntos ele se provou um verdadeiro
cavalheiro. Afinal, existia um prazo certo para se apaixonar? Tinha
um tempo mínimo aceitável para que o coração se encantasse por
alguém?
Porque, se existir, acho que vou ter que decepcionar a sociedade.
— Está inspirada hoje, Saint Clair — comentou Colin por cima do
meu ombro enquanto observava o que eu estava aprontando dessa
vez, sentada na mesa de jantar com alguns tubos de tinta e pincéis.
É claro que cobri tudo com plástico antes de começar para evitar
futuros desastres.
Decidi trazer comigo o caderno sem graça que Rick comprou e
dar um jeito nisso. Depois eu o encheria de esboços e ilustrações, é
claro, começando por minhas ideias para a pintura que ele
supostamente precisava para a marca de patins.
— Só estou fazendo algumas margaridas — expliquei, deslizando
o pincel com tinta branca e formando pétalas.
Eu tinha passado tinta lilás por toda a capa e agora fazia
delicadas margaridas para completar a arte.
Já eram mais de seis horas e muito provavelmente Claire
chegaria a qualquer momento. Bradley estava no andar de cima se
arrumando para sair com a namorada, Kill revelou que tinha uma
festa que iria com Colin e, assim, a casa ficaria livre para mim e
minha amiga.
Eu mal podia esperar para fazer skincare, fofocar, comer
besteiras e assistir Um Lugar Chamado Notting Hill. Pela milésima
vez. Eu realmente não me cansava de me apaixonar pelo Hugh
Grant dos anos noventa.
— Tem certeza que não quer ir com a gente? — perguntou Colin,
se sentando na cadeira ao meu lado. — A festa vai ser legal.
— Eu imagino que sim — murmurei, concentrada na última
pétala.
— Essa coisa de ficar em casa sábado à noite inalando essas
tintas clandestinas me parece algo meio preocupante, sabe? —
Apesar do tom brincalhão, eu sabia que Colin só estava tentando me
tirar de casa.
— Minhas tintas não são clandestinas e, antes que pense que já
desisti de viver, estou esperando sua irmã para uma maravilhosa
noite de garotas na companhia de Hugh Grant e morangos com
chocolate.
Isso o surpreendeu.
— Claire está vindo aqui?
— Você tem outra irmã? — Arqueei as sobrancelhas.
— Na verdade, outras irmãs, no plural. — Ele abriu um sorriso
nervoso. — Sou o único filho homem. Meus pais foram tão
abençoados com minha chegada que decidiram que era
masculinidade o bastante para a casa.
— Você sempre foi assim tão convencido, Leblanc?
— Só quando estou na companhia de moças que pintam
margaridas em cadernos lilases.
Limpei minhas mãos no pano já manchado de tinta e encarei
Colin, segurando o sorriso.
Ele era mesmo convencido, mas não dava para levar a mal. Seu
jeito doce e brincalhão compensava tudo e seu sorriso torto e
inocente parecia deixar o clima leve. Acho que era assim que ele
conseguia levar tantas para a cama.
— Você parece feliz — observou ele, apoiando a cabeça nas
mãos. — Tem algo acontecendo na sua vida que não compartilhou
ainda? Tem a ver com suas pinturas?
Não exatamente.
— Sim — menti, pois não era só isso. — Fui contratada para criar
uma arte para uma campanha publicitária. Começo segunda-feira,
estou otimista.
— Sério? — Colin abriu um sorriso satisfeito enquanto me
encarava com admiração. — E a galeria que você foi tantas vezes?
— E-eu… Ainda não recebi um retorno do senhor Eastern —
menti mais uma vez.
— Mas isso não importa, não é?
— Como assim?
— Conseguir o reconhecimento desse homem não é a única
forma que você tem para crescer e se destacar como artista —
explicou como se fosse óbvio. — Você foi contratada para uma
campanha publicitária e, se for mesmo o sucesso que eu confio que
será, outras marcas irão te procurar e aos poucos seu nome vai se
espalhar pelo mundo através de suas pinturas.
Eu ainda não tinha pensado nisso.
Na verdade, me apeguei tanto à ideia de ter Vladimir Eastern
como mentor que me esqueci que existem outras formas de alcançar
meus objetivos.
— Você é brilhante, sabia?
Colin desviou o olhar, fingindo timidez.
— Eu sempre digo isso, mas ninguém leva a sério.
— E suas garotas? Elas devem levar.
— Só quando tiro a roupa. Depois disso elas não se importam se
sou inteligente ou burro, desde que eu mande bem nos jogos e na
cama.
— E você não se ofende com isso?
Ele deu de ombros.
— Estamos todos interessados em apenas uma coisa, afinal de
contas.
Não era o tipo de coisa que eu achava legal.
Mesmo sem julgar quem levava esse estilo de vida, eu não sei se
conseguiria. Existia algo muito prazeroso em compartilhar ideias e
experiências com alguém, em simplesmente conversar de igual para
igual, em descobrir seus gostos e revelar segredos.
Meu celular vibrou no bolso e, saindo de meus pensamentos, eu
o peguei para ver quem mandava mensagem.
— É Claire — anunciei, sorridente, enquanto abria a mensagem.
Meu sorriso se desfez antes mesmo de terminar de ler seu
conteúdo.

Sky, mil desculpas, minha amiga terminou o namoro e está


no meu dormitório chorando sem parar enquanto eu tento
consolar a coitada. Podemos deixar para a próxima? :( que
merda, eu realmente queria ter um encontro com o Grant hoje.

E assim meus planos foram para o brejo.

Poxa, que merda, tomara que ela fique bem.


Combinamos para a próxima, então :)

Eu tinha que ser compreensiva, afinal, sabia como era difícil


terminar um relacionamento e às vezes tudo o que a gente queria
era chorar e ter uma amiga do lado para xingar o ex junto com a
gente.
Mas isso acabou com minha noite.
— Droga, o que aconteceu? — perguntou Colin com uma
expressão de preocupação.
Pousei meu celular na mesa e dei de ombros, encarando a tinta
úmida na capa do caderno.
— Um imprevisto. Claire não virá mais — decidi não falar muito
sobre o que ela disse na mensagem.
Colin abriu a boca para falar, mas logo voltou a fechá-la.
Ele pareceu desapontado.
Eu também estava.
— O que aconteceu? — perguntou Bradley surgindo na porta e
nos encarando. — Estão com cara de merda.
— Onde está Killian? — Colin se levantou.
— Descendo. — Brad apontou para trás com o polegar e franziu
a testa. — Vocês vão me dar carona, não é?
— Não — respondeu Colin, indo em direção à geladeira e
pegando a tigela de morangos.
— Ah, cara, vocês disseram que era caminho! — reclamou o
outro.
— Ninguém vai sair. — Colin se virou para Brad. — Chame
Killian. Avise que teremos uma noite de garotas.
— Vocês convidaram garotas para virem aqui? Sabe que eu
namoro, não é?
— Nós seremos as garotas. — O ruivo encheu a tigela de
morangos com água e se virou para mim. — Não fique triste,
margarida. Sua noite só está começando.
Ainda sem acreditar no que Colin estava prestes a fazer por mim,
eu sorri.
Jamais negaria uma noite de garotas com garotos.

Apesar de não ser como planejei, ter três homens grandes e


fortes sentados no sofá enquanto eu espalhava argila branca pelo
rosto de cada um deles até que se mostrou muito satisfatório. Eu
tinha colocado faixas na cabeça deles para impedir que o cabelo
grudasse na testa durante o processo. Certamente uma noite com
Claire não teria me proporcionado uma visão tão cômica.
— É para ser gelado mesmo? — perguntou Bradley, erguendo a
mão para tocar o rosto.
Afastei sua mão antes que ele o fizesse e concordei.
— Logo vai passar.
Eu ainda não sabia como ele conseguiu desmarcar com a
namorada o encontro de hoje, mas Brad não se esquivou quando
ficou sabendo que faria parte de uma noite repleta de skincare,
filmes românticos e morangos. Quanto mais eu observava sua
relação, mais eu notava o quão complicada era Cassie.
Deixei o pote com argila sobre a mesa, que agora já estava
quase vazio. A quantidade que preparei para nós quatro deu mais do
que certo.
— Droga, a festa já deve ter começado — resmungou Kill de
olhos fechados enquanto a máscara secava em seu rosto.
— Cale a boca e aproveite, Saint Clair. — Colin, na mesma
situação que meu irmão, respirou fundo e cruzou os braços sobre o
peitoral marcado.
Eu disse que eles estavam sem camisa?
Achamos melhor, assim ninguém sujaria a roupa de argila.
— Enquanto vocês aguardam, vou colocar uma música para
tornar o relaxamento mais intenso — falei, pegando meu celular e o
conectando com as caixas de som.
— Coloca The Neighbourhood — pediu Killian, quase implorando.
Era sua banda favorita.
— Eu voto em Arctic Monkeys — disse Brad, erguendo a mão.
— Deixem ela escolher, idiotas. — Colin às vezes parecia ser um
cara despreocupado, que quase nunca foca em detalhes, mas eu
diria que essa noite eu estava conhecendo um novo lado dele.
— Vou presenteá-los com música de verdade — brinquei
enquanto colocava Brooklyn Baby da Lana Del Rey.
Eu também gostava das duas outras bandas citadas, mas não
perderia a oportunidade de fazer esses homens escutarem minha
Lana.
— Por que o namorado dela não é tão legal quanto ela? —
perguntou Colin com curiosidade quando a música acabou, sendo
substituída por Radio.
Fiquei feliz ao notar que ele tinha se concentrado na letra.
— Porque ela é uma queridinha do Brooklyn — expliquei
enquanto tirava minha argila com um pano úmido.
— Então quem não for do Brooklyn jamais será uma “querida”?
— emendou Brad, segurando o riso.
— Isso pode variar. Eu, por exemplo, sou uma queridinha da
Flórida — brinquei, estendendo um pano para cada um deles. —
Podem tirar.
— Graças a Deus. — Killian foi o primeiro a pegar o pano.
— Eu me sinto renovado. — Colin mais espalhou do que tirou o
produto e me aproximei para ajudá-lo.
— Caramba, minha pele… — Bradley deslizou os dedos pelo
nariz. — Por que está tão lisa? — Ele parecia em choque.
— Porque é isso que acontece quando se cuida da pele —
expliquei, me aproximando para aplicar um último produto. — Eu vou
pingar e vocês espalham em movimentos circulares. É para hidratar.
— Você precisa de um namorado, irmã — comentou Killian
enquanto espalhava o produto. — Assim vai aplicar essas torturas
nele e nos deixar em paz.
— Você fala isso, mas é o primeiro a surtar quando ela dorme
fora — rebateu Colin.
— Como assim? Sky está se envolvendo com alguém? —
perguntou Brad com curiosidade. — Por que ninguém me contou?
— Eu não disse que ela está se envolvendo com alguém —
completou Colin.
— Mas Kill disse que ela precisa de um namorado e você falou
sobre ela ter dormido fora, então concluí que uma coisa se encaixava
com a outra. — Brad deu de ombros.
Abri a boca para responder, mas voltei a fechá-la.
Como eles chegaram tão longe apenas divagando sobre minha
vida?
E como conseguiram acertar?
Os três homens me encararam: Killian com desconfiança, Bradley
com curiosidade e Colin com um olhar de quem sabia das coisas.
— Acho melhor comermos antes que o fondue esfrie. — Me
sentei entre Colin e Bradley e peguei o espeto.
— Você só muda de assunto quando quer se esquivar de falar a
verdade — disse Kill, se virando para me encarar. — Então é isso?
— Ela vai contar quando estiver pronta. — Colin deu um tapinha
nas costas do amigo. — Eu sei, é muito difícil quando elas crescem,
mas você vai se acostumar.
Meu irmão bufou e se esquivou do toque.
— Só quero me certificar de que ela está bem protegida. Nem
todo mundo é confiável aqui.
— Eu sou bem grandinha, Kill.
— Então é verdade? Você está com alguém? — Ele ficou tenso.
— Você está? — rebati, porque sabia que ele também estava
escondendo algo.
Essas saídas aleatórias de Killian não escondiam muito bem o
fato de estar acontecendo algo, mas nem por isso eu o pressionava
a contar as coisas.
— Agora eu quero ver — murmurou Brad, mordendo a ponta do
morango.
Killian sustentou meu olhar e eu o dele, ambos brigando em
silêncio.
Quando por fim se deu por vencido, voltou a se encostar no sofá
e pegou o controle da TV.
— Que filme? — perguntou, enfim.
Afinal, eu não era a única a mudar de assunto quando não queria
falar a verdade.
— Um Lugar Chamado Notting Hill — respondi, mergulhando
meu morango no chocolate.
— É ação? — perguntou Bradley.
— Claro que não, cara. Deve ser erótico, Notting Hill tem nome
de prostíbulo. — Colin esticou os braços de forma relaxada pelo
encosto do sofá e encarou a TV. — Pode colocar. Eu curto.
— Sinto desapontar vocês, mas ambos erraram — respondi,
segurando o riso.
— Minha irmã ama esse filme, já assistiu umas mil vezes e eu fui
forçado a assistir algumas delas — explicou Killian, o único que sabia
exatamente sobre o que o filme se tratava, antes de dar play.
A mesma emoção de assistir esse filme, talvez pela milésima
primeira vez, me invadiu.
Julia Roberts, Hugh Grant, uma livraria e a cidade aconchegante
de Notting Hill eram, sem dúvidas, uma mistura e tanto. Eu tinha
como meta de vida conhecer pessoalmente aquela livraria, The
Notting Hill Bookshop, e planejava criar uma pintura do lugar para
guardar de lembrança.
— Não acredito! — exclamou Colin, revoltado ao descobrir que
Anna tinha namorado e escondeu isso de Will.
— Eu não perdoava — concluiu Bradley, carrancudo.
— E ainda achou que ele era um funcionário do hotel —
resmungou o ruivo. — Babaca. Eu socava a cara dele sem dó.
— Vocês são muito rancorosos. — Killian riu.
Os três suspiraram comigo na cena em que finalmente o casal
ficou junto.
Quando a câmera focou em Will, eu fui a única a suspirar, e os
três homens me encararam com curiosidade.
— Sou apaixonada por ele nesse filme — expliquei, abraçando
um travesseiro. — Em Quatro Casamentos e Um Funeral também,
aliás.
— É tipo eu vendo a Elizabeth Olsen de feiticeira escarlate. —
Colin também abraçou um travesseiro.
Colocamos mais um filme para ver depois, dessa vez Cartas Para
Julieta, e mais uma vez os três surtaram quando Claire encontrou
seu Romeu mesmo cinquenta anos depois de deixá-lo.
E mais um, Como Perder Um Homem Em Dez Dias, mas não me
lembro de ter terminado de assistir, afinal, acordei de madrugada na
cama com o travesseiro bem ajustado debaixo da cabeça e um
cobertor quentinho sobre o corpo.
Sorri comigo mesma, pensando em como aquela noite terminou
de forma perfeita.
A melhor noite de meninas que já tive.
— Também pensei em deixar um casal destacado no centro e
em volta deles apenas os vultos de pessoas patinando — explicou
Skyler enquanto me mostrava um esboço feito apenas com lápis. —
O pessoal gosta de um romance, então observar um casal
apaixonado em uma pista de patinação utilizando os patins Stanwick,
como se por causa disso o momento se tornasse perfeito…
Peguei com cuidado o caderno de sua mão e observei o desenho
ainda cru, contendo apenas riscos e sombras.
Talvez de forma inconsciente ela tenha se baseado na tarde em
que patinamos, afinal, a ambientação da ilustração era bastante
similar àquela pista, a quantidade de pessoas e o clima…
Eu quase podia sentir aquele desenho.
— É… Perfeito. — Fechei o caderno e admirei sua capa pintada
à mão.
Margaridas brancas com uma bolinha amarela no centro e um
fundo lilás.
Simples, mas especial.
Era a cara da Sky.
— É mesmo? — perguntou ela, esperançosa, pegando o caderno
de volta e o abraçando contra o corpo. — Eu nunca fiz algo assim
antes, não sou boa com marketing, mas assisti uns filmes de
romance no sábado e acho que me inspirei.
Pousei as mãos nas laterais do pescoço de Sky e ergui seu
queixo com meus polegares, fazendo-a me encarar.
— É uma ideia brilhante, Sky. Mesmo.
Ela sorriu sem mostrar os dentes, parecendo satisfeita e mais
animada do que antes.
— Talvez eu leve um pouco mais de tempo por estar retratando
algo imaginário e não uma cena real, mas…
— Leve o tempo que precisar — meu tom de voz era calmo e
paciente. — Este espaço é seu pelo tempo que quiser.
Assim como meu coração, incluí em silêncio.
Só Deus sabia o quão difícil foi passar o fim de semana longe
dessa mulher. Eu queria ligar para ela, convidá-la para vir até aqui e
passar a noite comigo novamente só para poder ouvir sua voz antes
dormir, ou ver seu rosto ao acordar, e com certeza possuí-la até cair
de cansaço.
Skyler trazia para a minha vida cores que jamais pensei precisar.
Ela tinha uma risada fácil, um sorriso sincero que me cativava e
todos na casa pareciam ficar mais leves quando ela estava por perto.
Constatar essas coisas me assustava, mas também me
empolgava.
Fiquei quase quinze anos sem me permitir ter sentimentos mais
profundos por alguém e, quando acreditei estar imune aos encantos
de qualquer mulher, Sky chegou e me provou que estava errado.
— Eu vou começar já — disse ela, amarrando um avental na
cintura, mas seu olhar voou para algo na porta que a assustou, pois
sua expressão mudou para séria e seus ombros ficaram tensos.
Me virei e dei de cara com Zorro parado nos encarando.
Suas orelhas estavam erguidas em sinal de atenção, quase como
se ele estivesse se perguntando se Skyler era ou não uma amiga.
Me aproximei dela e passei o braço por sua cintura.
— Ei, amigão, se aproxime — falei, chamando-o com a mão livre.
— Não se aproxime, não — murmurou Sky com a voz baixa e a
respiração falha.
— Tem medo de cachorros?
— De cachorros, não, mas isso é um touro. — Ela engoliu em
seco.
Zorro cheirou a mão que eu estendia e logo cheirou a que Sky
estendeu e que tremia levemente.
— Zorro é um cachorro treinado, não vai te fazer mal se eu não
mandar — expliquei, afagando a cabeça do animal, que se sentou e
relaxou. — Viu só?
— Vi o que?
— Ele te aceitando.
— Eu só vi ele se sentar.
— Exato. Abandonou a posição de alerta e decidiu que você é
inofensiva.
— Porque eu sou inofensiva.
— Não para o meu coração.
Aquele último comentário deveria ter sido feito apenas na minha
mente, mas quando notei já tinha falado em voz alta.
Engoli em seco, tentando fingir que não tinha dito nada demais,
mas Skyler se virou para mim lentamente e me encarou com
intensidade, como se tentasse enxergar dentro de mim.
— O que você disse?
— Eu… — Cocei a cabeça e desviei o olhar. — Nada demais.
— Maverick — seu tom não deixava aberturas para enrolação.
Eu era péssimo falando sobre meus sentimentos, especialmente
porque não fazia isso há muito tempo.
Mas eu ia tentar.
Por ela.
— Eu não sei, Sky… — Voltei a encará-la. — Tem algo que
acontece dentro de mim, como uma festa, sempre que você está por
perto. E um funeral, sempre que está longe. Não me sentia assim
desde… — Desde meu último relacionamento, pensei comigo.
Talvez nem durante ele.
Não com a intensidade cada vez maior que eu sentia agora.
— Ainda bem — respondeu com a voz baixa e com as bochechas
adoravelmente coradas. — Porque agora posso revelar que também
sinto a mesma coisa dentro de mim.
Zorro nos encarava, provavelmente tentando entender o que
esses humanos tanto tinham para falar, mas decidi pôr um fim às
palavras e agir.
Ergui o rosto de Sky em direção ao meu e ataquei sua boca,
incapaz de ficar longe por mais um segundo sequer. Ela rapidamente
abraçou meu pescoço e colou o corpo no meu, ficando na ponta dos
pés, quase fora do chão.
Talvez fossem os sons que começamos a emitir conforme o beijo
se tornava mais intenso, mas Zorro deu um jeito de sair da sala e
aproveitei para empurrar a porta com o pé até ouvir o clique,
indicando que ela estava fechada.
Sky estava com um vestido estampado e alegre, que a tornava
ainda mais adorável e delicada e, caramba, isso me deixava muito
excitado. Subi minhas mãos por suas coxas até que sumissem por
debaixo do tecido do vestido e apertei a bunda macia, ouvindo a
morena arfar contra meus lábios.
Deslizei a mão mais para frente e massageei seu centro por cima
da calcinha, sentindo o tecido ficar úmido. Ela abriu mais as pernas,
facilitando meu trabalho.
— A mesa — murmurou, rouca.
Garota ansiosa.
Ela não tinha medo de pedir o que queria e eu com certeza daria
de bom grado.
Depois de puxá-la comigo até o local, empurrei os pincéis,
bisnagas de tinta e paletas sem a menor cerimônia, ouvindo o som
que faziam ao atingir o chão. Sky se preparava para desamarrar o
avental, mas segurei suas mãos, impedindo-a de continuar e encarei
seus olhos.
Hoje eu queria estar no controle.
Pelo sorriso malicioso que a morena abriu, entendi que ela
gostou disso.
Virei-a de costas para mim de forma abrupta e apertei seus seios
por cima da roupa enquanto ela puxava minha cabeça até que
nossas bocas se encontrassem novamente. Quando fiquei sem
fôlego, separei nossas bocas e a debrucei sobre a mesa de madeira
que, graças a Deus, era forte o bastante para o que estava prestes a
acontecer.
Nunca me senti tão feliz por ter investido em mesas tão caras.
Sabia que Sky estava mais do que preparada para mim, e por
mais que eu quisesse estender isso por certo tempo, sabia que não
seria capaz. Não dessa vez.
E talvez também não da próxima.
O que eu podia fazer? Essa mulher me deixava fora de controle.
Arrancando meu cinto e abaixando minha calça para me libertar,
me posicionei na entrada de Skyler e a penetrei em um único
movimento.
Estava tão fora de controle que só notei estar sem camisinha
quando já estava dentro dela. Acho que ela também notou, mas
arqueou o corpo ainda mais, me incentivando a continuar e eu fiz
exatamente isso.
Suas mãos delicadas e manchadas de tinta lilás agarraram a
borda da mesa conforme eu me movia, e Sky apoiou a testa na
madeira, parecendo tentar conter os sons que insistiam em sair por
sua boca. Sons que eu não me importava se a casa inteira ouvisse.
Me arrependi por não ter tirado a camisa. O suor começou a fazer
o tecido grudar em meu corpo, mas nem isso me tirou o prazer
enorme do momento. Balancei a cabeça, afastando os fios que
insistiam em grudar na minha testa e observei o exato momento em
que Sky virou o rosto e apoiou a bochecha na mesa, apenas para me
encarar nos olhos enquanto tremia ao atingir o clímax.
Porque ela sabia que eu gostava de fixar o olhar no dela nesse
momento. Porque, além de conectar nossos corpos, eu queria
conectar também nossas almas, se é que isso é possível.
Depois que também atingi meu ápice, deslizamos os dois para o
chão, a respiração entrecortada enquanto tudo ainda parecia tremer
sob nossos pés.
Skyler, com as costas encostadas na mesa, riu e me puxou para
perto. Deslizei até ficar ao seu lado e apoiei a cabeça em seu peito,
sentindo o coração da morena acelerado ali dentro, exatamente
como o meu estava.
Ficamos os dois em silêncio, apenas observando a bagunça que
fizemos, com certeza nada arrependidos dela.
Eu precisava sair para o treino dos rapazes, talvez só assim
conseguiria deixá-la em paz para pintar.
— Eu preciso pintar um quadro — murmurou Sky, parecendo não
querer se levantar.
— Vou te deixar em paz. — Me levantei lentamente e nossas
mãos foram as últimas a se soltarem.
Acho que os meninos nunca me viram tão feliz durante um treino
e o motivo disso estava na minha casa, pintando um quadro e
cantarolando suas músicas da tal da Lana Del Rey.
O treino acabou mais cedo do que o normal.
Eu mal podia esperar para voltar para casa.
Para Skyler.
Fiquei tão concentrada no quadro, fazendo os traços iniciais e
decidindo quais cores se encaixam melhor na ilustração, que nem
notei quando anoiteceu. O tempo simplesmente voava quando eu
pintava, eu esquecia de tudo à minha volta.
Só parei o que fazia quando Solange invadiu a sala com um prato
cheio de biscoitos com gotas de chocolate e um copo de leite.
— Acabaram de sair do forno — explicou, colocando o prato e o
copo em um espaço vazio da mesa.
— O cheiro não mente — respondi com a boca salivando.
Peguei um dos biscoitos e mordi, sentindo sua crocância.
Eram deliciosos. Assim como tudo que essa mulher preparava.
Solange se aproximou de um pano sujo de tinta no chão e o
pegou. Ela passou os olhos pela sala, parecendo assustada.
— Passou um furacão por aqui durante a tarde?
Observei a bagunça que fiz e abri um sorrisinho amarelo.
— Só se esse furacão se chamar Skyler. — Peguei o copo de
leite e tomei um gole antes de enfiar o resto do biscoito na boca. —
Eu sou meio bagunceira enquanto pinto — continuei falando, de
boca cheia.
— Gostaria que eu organizasse para amanhã?
— Agradeço, mas não. Apesar de bagunçado, eu sei exatamente
o lugar de cada coisa que preciso e, se organizar, vou levar tempo
demais descobrindo seus novos lugares — expliquei, desamarrando
o avental. — E aí, o que acha? — Indiquei o quadro com a cabeça.
A mulher, que devia ter no máximo cinquenta anos, encarou a
tela e retorceu os lábios enquanto analisava o que eu tinha feito.
Ainda não estava bonito. Eu tinha criado os contornos, mas nada
muito concreto e sabia que a pintura só ficaria bonita de verdade
depois que eu adicionasse sombras e iluminação nos lugares
corretos.
Eu, como artista, conseguia encarar a tela e enxergar como ela
ficaria no final. Mas Solange, como espectadora, parecia tentar
decidir como me dizer que aquilo era horrível sem me ofender.
— Vai ficar melhor daqui alguns dias — expliquei.
Sua expressão se suavizou.
— Aaaah! — Ela sorriu. — Aguardarei até lá para dar minha
opinião, então.
Sorri.
Ela era sincera.
— Mas, antes de ir embora, eu gostaria de saber… — Ela juntou
as mãos em frente ao corpo e me encarou com expectativa. — Você
passará a noite aqui hoje?
Abri a boca para responder, mas logo voltei a fechá-la.
Eu ia?
Rick não me convidou. Mas eu aceitaria se ele convidasse?
— Desculpe se parecer que estou me intrometendo, mas é que
Maverick parece comer mais quando você está aqui, então eu
gostaria de saber para poder preparar um desjejum caprichado —
seu tom de voz parecia preocupado. — Por favor, não entenda mal
minha pergunta.
— Você pode me perguntar o que desejar, Angie. — Peguei o
prato de biscoitos e estendi em sua direção. — Posso chamar você
assim?
Ela pegou um biscoito e concordou.
— É claro, querida.
— Eu não sei se vou dormir aqui. Na verdade, Rick não falou
nada sobre o assunto, e…
— Não seja por isso — veio uma voz forte do corredor e logo
Rick parou na porta da sala. — Durma aqui hoje, Sky, para que
Solange possa me alimentar de verdade amanhã. Ela tem razão, eu
como mais quando você está por perto.
Solange ficou vermelha.
O safado tinha ouvido nossa conversa como um maldito espião.
Sorri.
Não sabia que ele era curioso.
— Está bem, então.
— Eu preciso ir. — Solange abriu um sorriso nervoso e se virou
para a porta.
— Boa noite — disse Rick, dando espaço para a mulher passar.
Ela sumiu tão rápido que quase duvidei que tivesse estado nessa
sala.
— Você a assustou. — Arqueei as sobrancelhas e peguei mais
um biscoito.
— Solange é assustada. — Rick se aproximou e passou o
polegar por meus lábios, afastando alguns farelos. — Como foi sua
tarde?
Ele estava muito bonito com uma blusa de lã em gola alta, calças
escuras e botas.
Fiquei nas pontas dos pés e deslizei a mão pelos cabelos de
Rick, afastando alguns flocos de neve que estavam ali. Suas
bochechas estavam coradas, o que indicava que ele tinha entrado na
casa há pouco tempo. Será que a primeira coisa que fez foi subir
para me encontrar?
— Foi maravilhosa. Consegui dar início ao desenho, decidi quais
cores vou usar e acredito que até sexta-feira ele estará pronto, se eu
trabalhar arduamente até lá. — Toquei sua bochecha. — Está muito
frio lá fora?
— Bastante. — Rick envolveu minha cintura com seus braços
fortes. — Então fique aqui até sexta.
— Ficar? — perguntei, surpresa. — Tem certeza?
Talvez meu irmão não concordasse totalmente, mas a vida era
minha.
Ele tinha que aprender isso.
— Muita certeza. — Rick encostou a testa na minha. — Inclusive,
o que acha de relaxar um pouco? Tem uma sala de cinema no final
do corredor. Podemos terminar de devorar os biscoitos lá.
A ideia me empolgou.
— Já assistiu Um Lugar Chamado Notting Hill? — perguntei com
curiosidade.
— Não que eu me lembre.
Então eu já sabia o que iríamos assistir.
Ou o que eu faria Rick assistir.
Simplesmente porque todo mundo precisava ver esse filme pelo
menos uma vez na vida e também porque eu queria saber como ele
reagiria a algo que eu gostava tanto.
Por sorte, no fim da noite, descobri que Maverick Stanwick era
um grande apreciador de romances e quando comentei que tinha o
sonho de conhecer a livraria do filme, ele prometeu que me levaria
até lá algum dia.
E eu guardei essa promessa comigo.

Rick passou a terça-feira inteira fora e na quarta-feira me levou para


jantar em um restaurante muito elegante com entrada, prato principal
e sobremesa. Era o tipo de restaurante que eu não teria dinheiro
para pagar, mas ele parecia frequentar o lugar, pois os garçons o
cumprimentaram com intimidade e trouxeram uma garrafa de vinho
sem que ele pedisse.
Rick puxou a cadeira para que eu me sentasse, como um
verdadeiro cavalheiro.
— Se eu soubesse que era um lugar tão chique, teria me
arrumado mais — comentei com um sorrisinho nervoso, deixando
com que o garçom colocasse um guardanapo de pano sobre meu
colo.
— Para mim, você está uma verdadeira obra de arte — disse
Rick, se sentando.
Ele estava com um sobretudo escuro que o deixava ainda maior
e mais imponente do que já era, além de cachecol e luvas, que tirou
e colocou em cima da mesa.
Rick sempre sabia a coisa certa a falar e não parecia algo
forçado. Era natural para ele, seus elogios eram sinceros e isso
enchia meu coração de algo delicioso.
Paixão, talvez.
Porque eu definitivamente estava apaixonada por esse homem.
Rick não me deixou dormir no quarto de hóspedes. Segundo ele,
sua cama tinha espaço o bastante para nós três — eu, ele e Zorro.
Esse último não pareceu muito feliz pela intromissão, mas no meio
da noite deu um jeito de enfiar o nariz no meu pescoço até me
acordar, apenas para pedir carinho.
Eu acordei com os beijos de Rick por todo o meu corpo e depois
ele me possuiu sem pressa, me torturando com seu toque, seus
movimentos lentos, completamente diferentes da vez em cima da
mesa da sala de pintura.
E depois ele apenas ficou me encarando, acariciando meu rosto
e marcando meus detalhes em sua mente — palavras dele.
Tudo pareceu tão cotidiano e, ao mesmo tempo, perfeito. Eu
poderia me acostumar com Maverick Stanwick na minha cama todas
as manhãs — ou eu na cama dele, no caso. Nunca dormi em uma
cama tão confortável e acho que em partes isso se dava ao fato de
ter sentido os braços dele me envolverem, me aquecendo na noite
fria de Montreal.
— O que vai pedir? — perguntou ele, me afastando de meus
pensamentos enquanto um garçom enchia nossas taças.
Abri o cardápio e explorei as opções.
— Alguma dica?
Rick comprimiu os lábios enquanto pensava sobre minha
pergunta.
— Número treze — disse ele, abaixando o próprio cardápio. — É
a lasanha do chef, mas eu facilmente mudaria para “lasanha dos
deuses”.
Minha boca salivou.
— Pois bem, número treze então. — Ouvi o garçom anotar meu
pedido e adicionei uma entrada e uma sobremesa.
Rick também fez o pedido e depois que o garçom se afastou com
nossos cardápios, peguei a taça com o vinho que cheirava
esplendidamente.
— Eu quero saber mais sobre você — falei antes de bebericar um
pouco do vinho.
— Você já sabe muito sobre mim. — Ele arqueou as
sobrancelhas. — O que exatamente gostaria de saber agora, amor?
A voz de Rick sempre saía rouca quando ele me chamava de
“amor”, um tom que ele usava só para se dirigir a mim, que sempre
me arrepiava.
— A gente podia fazer um jogo.
— Um jogo?
Concordei.
— Fazemos perguntas e respondemos rapidamente, sem pensar
muito. Não vale mentir.
— Qualquer tipo de pergunta?
— Depende. Existe algo que você não gostaria que eu
soubesse? — Arqueei as sobrancelhas.
— Quando se trata de você, não sou capaz de esconder nada —
respondeu com sinceridade. — Mas e você? Existe algo que não
gostaria que eu soubesse?
— Apenas que já comi ração de cachorro, diretamente do pote do
cachorro, em posição de cachorrinho, só porque meu irmão me
desafiou. — Dei de ombros. — Fora isso, não há nada que eu não
possa te contar.
Maverick riu alto, tão alto, que pessoas olharam em nossa
direção.
Suas risadas, no início, eram contidas, como se ele não tivesse o
costume de rir de verdade. Mas aos poucos eu notava que ele se
soltava cada vez mais.
Ele não se importou em rir alto no meio de um restaurante
chique, com pessoas que gostavam de falar baixo e riam de forma
sem graça, quase como se sempre estivessem se segurando para
não serem notadas, mas que, ao mesmo tempo, desejavam ser o
centro das atenções.
— Vamos começar, acho que minha visão sobre você vai mudar
depois dessa brincadeira — disse o homem em minha frente,
empolgado.
— Eu começo. — Pousei a taça na mesa e pensei um pouco. —
Quantas namoradas você já teve na vida?
— Duas. E você?
— Apenas o Tyler.
Rick concordou e pensou um pouco.
— Sua cor favorita?
— Lilás. A sua?
— Verde escuro.
Concordei.
Dava para notar, tendo em vista que várias áreas da casa de Rick
tinham essa cor.
— Série favorita? — perguntei.
— Eu… Não sei. — Rick coçou a cabeça. — Não assisti muitas
séries na vida. Mas gostei bastante daquela You.
— Isso é uma indireta? — Cruzei os braços. — Devo me levantar
e sair correndo agora?
— Céus, não. — Ele se inclinou sobre a mesa, chegando mais
perto, como se fosse contar um segredo. — Eu só achei interessante
o fato de que sempre acabamos encontrando alguém como nós. A
hipocrisia do Joe é surpreendente, dá para notar que o exato
momento em que ele perdeu o encanto pela Love foi quando
descobriu que ela era como ele. Confesso que fiquei triste quando
ela morreu, mas não sei se deveria, já que ela era uma assassina.
Sinceramente, essa série às vezes me fazia duvidar de mim mesmo.
— Minha série favorita é Modern Family, antes que pergunte, e
não, não tem assassinos, mas acho que algum dia vou assistir You
apenas para poder descobrir se você tem razão.
Rick sorriu e bebericou um gole de vinho.
— Cantor favorito? — perguntou.
— Lana Del Rey, e pelo seu sorrisinho, acho que você já sabia a
resposta.
Ele desviou o olhar e riu baixo.
— Eu meio que já estou até gravando a letra das músicas dessa
mulher de tanto que você as repete. E, para adiantar, meu cantor
favorito é o Rod Stewart.
— Maior vergonha que já passou?
— Não era minha vez de perguntar? — Rick franziu a testa,
confuso.
— Não sei, me perdi. Mas e aí? Vai se esquivar de responder?
— De jeito nenhum. — Ele negou com a cabeça. — Teve uma
vez que eu estava no vestiário, me trocando depois do treino e uma
garota que eu gostava apareceu de surpresa se oferecendo para
mim. Eu, como qualquer rapaz no auge dos vinte anos exalando
desejo por sexo, acabei aceitando. Enquanto eu pegava ela por trás,
o treinador nos viu. O detalhe que eu não sabia era que ele era o pai
dela. Fiquei fora do próximo jogo. — Rick fez careta. — E você?
Apesar de ficar chocada com a situação, não consegui conter a
pontinha de ciúmes ao imaginar o Maverick de vinte anos com outra
pessoa.
Ainda assim, ignorei meu ciúme e fiquei vermelha ao lembrar da
maior vergonha que já passei.
— Eu estava no cinema e bem na hora de um momento
silencioso do filme, soltei o peido mais alto da minha vida.
— Mas não estava tudo escuro? Ninguém saberia que foi você.
— Exato! Exceto pelo fato de que meu irmão falou bem alto:
“droga, Sky, você tinha que peidar do meu lado?!”.
Os olhos azuis de Maverick se arregalaram e eu ri.
Agora ele entendia o motivo de tamanha vergonha.
— Ainda pensa nele? — perguntou de repente, parando de rir.
— Em quem? — perguntei, secando uma lágrima do riso. — Meu
irmão?
— Não. Tyler.
Rick ficou sério, seus olhos me analisando com atenção.
Dava para notar que a resposta era importante para ele.
— Não — respondi com sinceridade.
Maverick soltou um ar que nem notei que ele estava segurando e
sua expressão se suavizou.
— Você sente vontade de ter alguém? — perguntei, já que era
minha vez. — Uma família, talvez. Se imagina sendo pai algum dia?
— Você acabou de exceder o número de perguntas — comentou
com um tom brincalhão, mas logo encarou a mesa, parecendo
pensar no assunto. — Passei anos evitando relacionamentos, não
queria me envolver emocionalmente com ninguém, sabe? Não de
novo. Não depois do que aconteceu naquela noite de outubro.
— E o que aconteceu? — Eu sabia que se tratava da namorada
dele, mas não sabia os detalhes. — Pode me contar se sentir
vontade, mas não vou te forçar.
— Depois do jantar, talvez — disse ele enquanto o garçom
deixava nossos pratos. — Não quero estragar a noite com meus
dramas — finalizou com o tom seco enquanto pegava o garfo.
Mas eu queria conhecer os dramas de Rick.
Queria conhecer tudo sobre ele.
As histórias tristes, felizes, vergonhosas ou não. Os traumas, as
cicatrizes, as lembranças de infância… Tudo. Tudo que ele estivesse
disposto a compartilhar.
O prato principal chegou logo depois da entrada e estava
realmente delicioso, como Rick disse. Ele tinha um ótimo gosto.
O jantar seguiu em silêncio na maior parte, especialmente porque
nossas bocas estavam ocupadas, mas não deixamos de trocar
olhares e provocações por debaixo da mesa. Na verdade, eu o
provoquei, deslizando o pé por suas pernas e acariciando até ver o
músculo na mandíbula de Rick se contrair, como sempre acontecia
quando ele começava a desejar coisas que não se podia fazer em
público.
— Maverick!
A exclamação feminina assustou a nós dois.
Uma mulher alta, de cabelos platinados na altura dos ombros e
mãos perfeitamente delicadas adornadas com anéis brilhantes,
apareceu ao nosso lado, segurando uma bolsa da Gucci. Ela tinha os
dentes mais brancos que já vi e, quando sorriu, se dirigiu apenas a
Rick.
Por algum motivo, eu sentia que já tinha visto essa mulher.
Ainda sério, Rick limpou a boca com o guardanapo e o jogou em
cima do prato de sobremesa vazio.
— Sheila — seu tom saiu bem menos empolgado do que o dela.
Sheila… Woods?
A modelo australiana que tinha fama por se envolver com os
caras mais bem-sucedidos de Quebec?
— Que surpresa te ver por aqui. Você disse que estava atolado
em trabalho. — Ela finalmente me encarou, provavelmente se
perguntando o que ele fazia com uma garota que claramente
comprava roupas em outlets. — E veio acompanhado. Que fofo.
— Eu estou atolado em trabalho — disse Rick com seriedade.
Ele passava os dias fora, então não era mentira.
Mas a moça não se agradou com a resposta.
— Passarei algum dia lá no centro de treinamento para te
encontrar, que tal? — Ela lançou uma piscadinha para ele, deixando
claro as segundas intenções.
Fiquei chocada.
Não sabia que alguém seria tão cara de pau a ponto de dar em
cima de outra pessoa na frente de sua acompanhante. Eu até
poderia dizer algo, mas como não tinha nada concreto com Maverick,
deixei isso em suas mãos.
— Não, mas obrigado. — Ele se levantou, empurrando a cadeira
para trás de forma ruidosa e me estendeu a mão. — Vamos, Sky?
Me levantei e segurei sua mão, sorrindo com o prazer que o
momento me proporcionou.
Nada iria apagar da minha mente a cara de descontentamento
daquela loira.
— E sábado? Tudo certo para a festa? — perguntou ela,
entrando na frente de Rick para impedi-lo de continuar.
— Sim, é claro — ele suspirou. — Boa noite, Sheila.
Ficamos em silêncio, apenas andando de mãos dadas, até o
estacionamento.
Depois de entrar no carro e colocar o cinto de segurança,
finalmente tomei coragem para perguntar:
— Festa?
Não iria adiantar perguntar sobre a tal da Sheila.
Era claro que eles já tinham tido um caso. Mas foi a atitude de
Maverick hoje que eu levei em conta, afinal, ele recusou o convite
dela e ainda segurou minha mão. Isso valia mais do que todo o
passado que eles poderiam ter tido.
— É costume todo fim de ano ser feito uma confraternização na
minha casa — explicou ele enquanto dirigia. — Eu tinha me
esquecido, na verdade, já que não sou eu que organizo. Além disso,
você tem tomado conta de todos os meus pensamentos, então me
perdoe por não ter falado sobre sábado, mas eu gostaria muito que
você estivesse presente.
— Eu iria adorar — falei com um sorriso de orelha a orelha, mas
logo me lembrei de algo que me desanimou. — Droga, eu não vou
poder. Meu irmão me fez prometer que estaria com ele em uma festa
no sábado e acho que é importante.
— Ah, que pena. — Rick abriu um sorriso triste. — Quem sabe na
confraternização do próximo ano, então.
Imaginar que ele já estava me adicionando em sua vida por mais
um ano me deu esperanças de que nossos sentimentos estavam
mesmo em sintonia, porque eu com certeza o queria por perto pelo
próximo ano, e talvez pelos próximos dez anos também.
Sorri e pousei a mão em sua perna, apertando-a levemente.
— Esse carro vai mais rápido?
Ele me olhou pelos cantos dos olhos e arqueou as sobrancelhas.
— É um dos mais velozes do mundo, então sim. Está tudo bem?
— Está, é só que… — Cocei a cabeça e dei de ombros. —
Digamos que eu esteja ansiosa para repetir o que fizemos essa
manhã.
Nunca vi um homem ultrapassar tantos sinais vermelhos quanto
Maverick Stanwick depois de me ouvir.
Foi bom saber que ele estava ansioso pelo mesmo.
Hugh, ao notar que tínhamos visita pela semana toda, deu um
jeito de se despedir e voltar para Toronto, mas eu sabia que era
porque ele estava ansioso para contar aos nossos pais a novidade:
eu estava apaixonado.
Se fosse antes, eu talvez não gostasse disso, mas não agora.
Era verdade, eu estava apaixonado, e meus pais mereciam saber
disso. Depois de quinze anos sem me relacionar com alguém, acho
que eles desistiram da ideia de ter uma nova nora — ao menos da
minha parte.
Eu também tinha desistido da ideia.
Quando Sky me perguntou se eu me imaginava sendo pai, tendo
uma família, foi como desbloquear um velho desejo que enterrei por
tanto tempo depois de me decepcionar. Mas agora, cada vez mais a
ideia de ter uma garotinha ou garotinho correndo atrás de mim e
gritando “papai” me fascinava.
Ele ou ela teria cabelos negros e eu torcia para que tivesse
sardas tão adoráveis quanto as de Sky, Porque sim, eu sabia que, se
não fosse ela, então não seria mais ninguém.
— Já pensou em quão maravilhoso seria se as luzes do
continente todo se apagassem por um minuto inteirinho só para
podermos observar o céu com mais clareza? — perguntou Sky, com
a cabeça apoiada em meu peitoral, enquanto fazia desenhos lentos
no ar com uma das mãos.
Era madrugada de quinta para sexta e nós dois tínhamos
acabado de fazer loucuras debaixo do cobertor. Em cima dele
também, aliás. Na verdade, começamos no chuveiro e o resto
aconteceu sem que a gente notasse.
— Você pintaria um quadro disso? — perguntei baixo,
acariciando seus fios de cabelo.
— Sem dúvidas. Talvez não ficasse tão bom, afinal eu teria
apenas um minuto para pintar, mas seria uma lembrança muito
bacana do dia em que o continente apagou.
Eu adorava o quão sonhadora Skyler era.
Isso me tirava um pouco do chão que eu era tão acostumado a
estar grudado. Era bom sonhar às vezes, até necessário, eu diria.
— E como está o nosso projeto? — perguntei, me referindo ao
quadro que eu sabia que Sky estava quase finalizando.
Todas as tardes depois de chegar do centro de treinamento eu
passava em sua sala, encontrava os pincéis em uma completa
bagunça, panos sujos de tinta pelo chão, uma tigela de água cinza
devido a mistura de cores e um prato de biscoitos recém-saídos do
forno.
Todas as vezes ela abria o mesmo sorriso alegre e sincero, do
tipo que me iluminava, e pulava em meus braços, falando com
animação sobre os avanços que fez. Era nítido o quanto pintar
alegrava Sky e não era apenas devido à minha paixão por ela, mas
eu sabia que ela tinha talento.
Eu ainda não tinha contado sobre meu trabalho como técnico da
Montreal Monsters, mas apenas porque não encontrei a
necessidade. Era bom saber que ela gostava de estar comigo por
quem eu era, não pelo que eu fazia, assim como foi com todas as
outras, incluindo Sheila Woods.
Talvez por isso me senti à vontade para contar algo que não
relatei em voz alta para mais ninguém.
Algo que fiquei devendo para ela desde a noite no restaurante.
— Skyler… — comecei, me sentando ereto na cama, deixando-a
em meu colo e engoli em seco. — Eu quero te contar sobre aquela
noite de outubro.
A morena se virou para me encarar e tocou meu queixo.
— Sabe que não precisa se não quiser, não é?
— Não, mas… Eu quero.
Ela deixou a mão cair e concordou levemente com a cabeça.
— Comece quando quiser, então.
Eu não sabia bem por onde começar, nem se aguentaria chegar
até o final, mas decidi não voltar atrás agora.
— Era uma noite fria de sábado e tínhamos ganhado um jogo
mais cedo naquele dia. O time só se destacava cada vez mais e
todos os jogadores eram muito amigos uns dos outros, como irmãos
mesmo. E eu tinha um melhor amigo, o Sanders. Ele me convidou
para uma festa de comemoração na casa dele naquela noite. Eu
disse que chegaria atrasado, mas avisei minha namorada para ir
sem mim para nos encontrarmos lá.
— Eu já temo o que vai acontecer — ouvi Sky murmurar com
preocupação.
— A história não é nova ou diferente das que já aconteceram por
aí. Sim, eu entrei na festa quase dez da noite e todos os meus
colegas de time me olharam como se alguém tivesse morrido, então
eu achei estranho tanto Sanders quanto minha namorada estarem
ausentes e fui para o andar de cima. Encontrei os dois na cama, ela
de quatro, ele atrás dela, e essa maldita visão me perturba até hoje.
Sky emitiu um som de engasgo e eu a olhei, preocupado.
— Desculpe, é que me deu ânsia de vômito.
Sua reação conseguiu me deixar um pouco mais leve.
— Bem, na hora eu vomitei com tanta força que meu vômito
cobriu os dois.
— Dessa parte eu gostei. Mas seus colegas de time? Eles
sabiam?
— Que meu melhor amigo e minha namorada estavam tendo um
caso desde maio? Sim, sabiam, mas Sanders tinha muita influência,
então eles decidiram ficar calados. O pior de tudo é que o safado
sabia que eu pretendia pedi-la em casamento na semana seguinte,
me ajudou até a escolher o anel.
— Torço para nunca ter um amigo tão bom quanto esse Sanders
— disse Sky com ironia. — Mas o que aconteceu depois?
Dei de ombros e encarei a parede.
— O de sempre. Sanders implorou para voltarmos a ser amigos e
minha ex se ajoelhou aos meus pés, me pedindo para não deixá-la.
Ela disse que se soubesse que eu iria pedir sua mão em casamento,
jamais teria feito o que fez. Depois contou histórias sobre Sanders ter
dito que me deixaria em destaque no time se ela dormisse com ele,
mas não acreditei muito. Sanders era baixo, mas nem tanto.
— E vocês conseguiram jogar juntos depois disso?
— Foi muito difícil para mim, tentei separar o esporte do lado
pessoal, mas sim, conseguimos. Infelizmente, eu e Sanders
fazíamos uma boa dupla. Mas depois ele começou a se afundar em
festas e bebedeira, saiu de forma pouco a pouco até ser formalmente
convidado a deixar o time antes que começasse a nos prejudicar.
Esse era um dos motivos para eu me preocupar tanto com minha
alimentação hoje em dia.
Não queria acabar como Sanders. Mesmo que não fosse mais
um jogador, e sim técnico do time, ainda queria estar em forma e
passar uma boa impressão.
— Não sei se eu teria essa sua força — revelou Sky com
admiração.
— Eu fiz isso, não por ser forte, mas por amar muito o esporte.
Sabia que seria o melhor para o time, então deixei meus sentimentos
de lado. Depois disso, eu descobri que seria capaz de praticamente
qualquer coisa em nome do hóquei, inclusive jogar ao lado do cara
que me traiu.
Não foi algo fácil.
O treinador conversou comigo de forma aberta, ultrapassando as
linhas do profissionalismo e falando sobre o que comunicaram a ele
que Sanders e minha ex fizeram. Ele me garantiu que se eu não
ficasse à vontade no gelo ao lado de Sanders, então ele daria um
jeito, mas eu sabia que ele não só queria como precisava de nós
dois nos jogos. Sendo assim, dei um jeito de ignorar meus
sentimentos e aceitar estar com o babaca do meu ex-melhor-amigo,
tudo em nome do hóquei.
— Você deve ter ficado muito perturbado com isso tudo. É
compreensível que tenha passado tanto tempo sem se envolver de
verdade com alguém.
Deslizei a mão pelos ombros de Sky e a observei, admirando o
brilho de seus olhos na luz fraca que entrava pela janela.
Mesmo em meio a um assunto tão pesado, era só olhar para ela
que eu me sentia mais leve, como se fosse uma lembrança de que
todos esses problemas ficaram no passado e agora eu não precisava
mais me preocupar com eles.
Porque, ao contrário da minha ex, Sky não estava aqui comigo
por causa do meu envolvimento com a Montreal Monsters. Ela não
estava em busca de fama. Ela estava comigo por causa de mim,
Rick, não por causa do Maverick Stanwick, ex-jogador de hóquei e
atual técnico de um dos maiores times da atualidade.
— Cada um com seus traumas, não é mesmo? — perguntei com
a voz calma, fazendo círculos em seu ombro. — Você também está
lutando para lidar com os seus e acho que foi um dos motivos que
me fez decidir finalmente lidar com os meus.
— Quando você socou aquele cara no Blue Sky, mesmo sem
saber, estava me ajudando a lidar com meus traumas, sabia? —
Essa sua revelação me surpreendeu.
— Como assim?
— Bem… — Ela ficou séria. — Ver você defendendo aquela
moça me lembrou que existem homens que protegem mulheres ao
invés de bater nelas.
Isso me lembrou o quão perturbada Sky ficou aquele dia.
— O que quer dizer? Seu ex… Tyler já encostou em você? —
Não consegui esconder a indignação em minha voz.
Ela abaixou o olhar e engoliu em seco.
— Só uma vez, quando o ciúme se misturou com o excesso de
álcool. Ele fez uma cena muito parecida com aquela que
presenciamos, mas ninguém apareceu para me proteger como você
fez com a Ava, então Tyler não parou e… E deu um tapa na minha
cara.
Encarei o rosto delicado de Sky, me perguntando quem teria
coragem de fazer tal barbaridade.
Toquei sua bochecha com o máximo de delicadeza possível e ela
inclinou o rosto em direção à minha mão, como se se entregasse a
mim.
— Me permite socar a cara dele se eu o ver algum dia?
Sky riu, como se não acreditasse na possibilidade, e assentiu.
— É claro.
Me deitei ao seu lado, colando o peitoral em suas costas e
envolvi sua cintura com um dos braços, nos encaixando em uma
conchinha.
— Traição é algo imperdoável. Mas isto… Isto merece mais do
que apenas a ausência do perdão. Merece um soco de volta —
resmunguei, sem me aguentar de raiva.
— Às vezes é melhor perdoar e seguir em frente, mas acima de
tudo, manter distância da pessoa. Eu faria diferente hoje, primeiro
contaria aos meus pais e aos pais dele, e depois me afastaria dele,
mas ao contrário disso eu decidi guardar comigo e carregar a relação
por mais tempo do que deveria.
— Você o perdoou?
— Sim, mas não fiz isso por ele, e sim por mim. Quis sair da
relação sem nenhum resquício dela em minha consciência e
coração.
Talvez eu devesse fazer isso.
Talvez, se dentro de mim eu perdoasse quem me magoou no
passado, eu conseguisse viver melhor o meu presente.
Beijei a nuca de Skyler e fechei os olhos, me sentindo em casa.
— Nem acredito que você vai embora amanhã — murmurei.
— Eu vou, mas eu volto — sussurrou em resposta.
— Promete?
Ela apenas assentiu em resposta.
Na sexta-feira de manhã, eu finalizei a arte. Peguei o esboço
dentro do caderno de margaridas e comparei com o resultado, me
sentindo satisfeita. Convidei Solange para opinar e ela agiu de forma
completamente diferente do outro dia.
— Explêndido, Sky — ela disse, sem conseguir afastar os olhos
da pintura. — Agora entendo porque Maverick tem tanta admiração
por seu talento. Acabo de entrar para o time de admiradores.
Como eu sabia que ela era sincera, fiquei feliz por saber que
tinha gostado de verdade.
Depois mandei uma foto para Rick, que tinha saído cedo, e
anunciei que nosso projeto estava finalizado.

Pronto, chefe.
Serviço finalizado :)

Ele respondeu menos de dois minutos depois:

Chefe, não, parceiro.


Vou mandar alguém para buscar o quadro, ele vai passar por
uma sessão de fotos para o Instagram e depois será exposto em
uma de minhas lojas.
Não esqueça de assinar para que todos vejam quem é a
artista.

Pode ser daqui há uma hora?


Queria convidar uma amiga para vir ver como ficou.

Ele respondeu logo em seguida:

Tudo bem.

Eu vou precisar ir embora antes do almoço para comprar


um vestido, então acho que não vamos conseguir nos
encontrar mais hoje.
Vou sentir saudades :(

Eu não.

Nossa, Rick.

Amor, se eu sentir saudades de você, vou até o inferno para


te buscar.
É melhor que volte antes que as saudades me ataquem e me
forcem a fazer isso.

Eu quase consegui ouvir seu tom de voz rouco através daquele


“amor”.

Eu vou voltar.
Prometo.

Vou te esperar.

Claire parou o carro em frente à casa de Maverick meia hora


depois.
Ela teve a mesma reação que eu quando entrei ali pela primeira
vez: olhou para tudo como uma criança que tinha acabado de entrar
no parque de diversões.
— Não se esqueça que os meninos não devem saber de nada
disso — lembrei enquanto passávamos pelo corredor. — Não contei
para ninguém ainda, além de você, é claro.
— É o cara da Ferrari, não é? — perguntou ela, se lembrando da
noite no Reinor’s. — Eu estou aqui há anos e ainda não tive tanta
sorte quanto você teve em semanas. Me diz, o que você tem aí
dentro? — Apesar das palavras, o tom de Claire revelava que ela
estava feliz por mim e seu sorriso sincero me cativou.
— Sinceramente? Nem eu sei. Traumas, talvez — brinquei,
abrindo a porta da sala de pintura, que era como eu a chamava
agora.
Foi como se Rick simplesmente tivesse dado aquela sala para
mim.
— Você está feliz? — perguntou a ruiva, adentrando a sala.
— Estou. — Encostei a porta depois de entrar e me virei para ela.
— Quer dizer, ele é bem mais velho do que eu, então às vezes temo
que um belo dia ele passe a me encarar como uma criança imatura e
queira distância, mas acho que são só meus traumas me sabotando,
porque Rick nunca deu indícios de que faria uma coisa dessas.
— Caramba, que coincidência ele ter tudo isso em casa e acabar
se envolvendo justo com uma artista — disse Claire, admirada,
enquanto deslizava as mãos pelos pincéis.
— Ah, não, ele comprou na semana passada enquanto eu
dormia. Essas coisas…
— Ele comprou só por causa de você? — Minha amiga se virou,
chocada, e arregalou os olhos de um tom que me lembrava verde
piscina. — Ele está mesmo apaixonado. Não deixe sua mente te
sabotar com esses medos bobos, apenas confie nos fatos e observe
as atitudes.
Ela tinha razão, é claro.
Eu ainda não tinha compartilhado esse meu medo com ninguém.
Na verdade, nem tinha chegado a falar dele em voz alta, mas estar
com Claire parecia me fazer falar tudo que estava guardado dentro
de mim.
— Então este é o quadro? — Ela se aproximou da pintura em
silêncio, parando em frente à tela e observei enquanto seus olhos
deslizavam por cada detalhe.
Os flocos de neve.
O casal semi-abraçado no centro da arte.
Os vultos de pessoas patinando em volta deles.
As árvores sem folhas devido ao inverno.
E, é claro, aos pés deles, os patins Stanwick, com um S bem
destacado em cada um.
— Ele mesmo — respondi, enfim, também observando minha
criação.
— Então realmente não deu certo na Mont’Real Gallery? —
Claire se virou para mim.
Eu neguei com a cabeça.
— Aparentemente eu sou “mais do mesmo” — revelei, fazendo
aspas com os dedos.
— Ainda bem por isso, então, porque esse quadro vai te trazer
muitas coisas boas, eu tenho certeza. — Ela voltou a encará-lo. —
Eu quase consigo me sentir ali no meio, patinando com eles,
absorvendo a atmosfera fria, mas ao mesmo tempo calorosa,
consigo ouvir o riso alegre de quem finalmente aprendeu a patinar ou
os incentivos de um pai que está ensinando o filho a criar coragem
para deslizar pelo gelo…
Eu não tinha imaginado que esse quadro traria tantas sensações.
Sorri, feliz por ter convidado Claire para conhecê-lo antes que ele
fosse levado.
— Esse era o esboço inicial — falei após pegar meu caderno e
entregar para ela.
Claire o observou com atenção, mas como era muito curiosa,
começou a folhear o caderno para descobrir meus outros esboços.
Quando eu não estava pintando, eu me distraía rabiscando
coisas simples do meu dia a dia ali, como Solange sovando uma
massa, Zorro parado observando pela janela e tentando pegar os
flocos de neve que caíam — o coitado sempre acabava batendo com
o focinho no vidro e se frustrando —, ou até mesmo Rick.
Ah, sim, a maioria dos rabiscos naquele caderno eram dele.
Rick concentrado enquanto lia um artigo no celular.
Rick de barriga para baixo na cama, o que evidenciava os
contornos de suas costas.
Rick nu caminhando até o banheiro depois que nós…
— Não, esse não. — Puxei o caderno da mão de Claire e o fechei
abruptamente.
Eu tinha me esquecido dessa parte.
Aproveitei Rick para treinar meus traços do nu masculino, afinal,
ele era como as estátuas perfeitas feitas pelos gregos, mas nunca
mostrei para ninguém, nem para ele. Eram meus desenhos, minhas
lembranças.
— Droga, justo na melhor parte. — Ela revirou os olhos e riu. —
Ok, então. Agora que sabemos que você está prestes a ficar famosa,
podemos ir comprar seu vestido? Mas tem que ser algo muito
elegante, afinal, artistas precisam chamar a atenção, não é mesmo?
Sorri e deixei o caderno sobre a mesa.
Eu só tinha uma exigência: que o vestido fosse da cor favorita de
Rick.

Levamos mais de três horas para escolher um vestido.


Claire me levou direto às melhores lojas, mas não tinham muitas
opções da cor que eu queria. Segundo a vendedora, não era uma
cor que costumava sair muito, mas enquanto fizemos uma pausa
para tomar café no Starbucks, avistei na vitrine da outra calçada o
vestido mais belo que já vi.
E era verde-musgo.
E, depois de ir até lá, descobri que era meu tamanho.
Só podia ter sido feito para mim.
Ele tinha correntes douradas no lugar das alças, que escorriam
pelas costas nuas do vestido, e um decote que acentuou meus seios
— que nem eram tão grandes, mas que ficaram chamativos. O tecido
verde era repleto de pequenas partículas de brilho e acho que esse
foi um dos maiores motivos para eu ter gostado tanto dele. Além
disso, uma fenda que começava no meio da coxa direita o tornava
sexy. Meu casaco de pelos branco faria o papel de me aquecer, se
necessário.
Comprei um sapato dourado para combinar com as correntes.
Claire disse que combinavam também com meus olhos.
Ela me largou na casa dos meninos pouco após o almoço.
Killian era o único que estava em casa.
Deitado no sofá, ele parecia meio pálido e tinha uma bolsa morna
na testa.
— Kill? — chamei, preocupada, deixando minhas sacolas e
bolsas amontoadas em cima da poltrona. — Está tudo bem?
Ele abriu os olhos, que estavam mais fundos do que o normal, e
me encarou.
— Oi, Sky — sua voz estava fraca e ele tossiu. — Peguei um
resfriado. O clima daqui ainda me castiga às vezes.
— Onde estão os meninos?
Killian riu.
Ele achava engraçado quando eu os chamava de “meninos”.
— Treino. — Meu irmão deslizou pelo sofá até se sentar. — O
treinador me mandou repousar. Ele quer me ver recuperado para a
festa de amanhã. Aliás, você vai, não é? Quero apresentar vocês e
quero que você conheça o homem que é minha maior inspiração no
esporte.
— É claro. Eu estava comprando um vestido para isso, aliás. —
Me sentei ao seu lado. — Acha que vai ficar melhor até amanhã?
— Meus resfriados costumam vir com tudo, mas passam rápido.
Muita água — ele apontou para a garrafa em cima da mesa —, sopa
— e para a tigela, agora vazia — e remédios — e por último duas
cartelas de comprimidos — vão resolver meu problema.
Kill sempre ficava doente quando o frio chegava.
Já eu conseguia contar nos dedos as vezes que peguei um
resfriado.
— Precisa de algo? — Toquei sua testa. — Já viu se está com
febre?
— Não estou — me tranquilizou e pegou a garrafa de água. —
Como foi sua semana?
Passamos dias sem nos ver, afinal, aceitei o convite de Maverick
e fiquei em sua casa esse tempo todo. Kill quase não usava o
celular, então mal trocamos mensagens para nos atualizar sobre
nossas vidas.
— Terminei o quadro — falei, me encostando no sofá e encarei a
tv desligada. — E a sua?
— Nada fora do normal. Treinos, uma saidinha na quarta para
beber com os “meninos” — ele fez aspas com os dedos e eu ri baixo
— e agora o resfriado.
— A mãe sabe?
— Não. Não quero deixar a coitada preocupada, não mais do que
já é.
Nossa mãe era mesmo uma mulher bastante preocupada.
— Você precisa cortar o cabelo.
— Eu vou cortar para ir amanhã. — Kill deslizou a mão pelos fios
mais compridos do que ele costumava usar. — Você foi comprar o
vestido sozinha?
— Claire me acompanhou.
Notei sua expressão mudar para irritação e talvez algo mais que
não consegui decifrar.
— Por que você a odeia tanto, hein? — Por mais que eu tenha
exagerado em minha pergunta, fiz porque sabia que só assim Killian
revelaria algo.
— Eu não a odeio — ele se levantou —, só acho Claire Leblanc
uma pessoa irritante e entrona, que se mete onde não é chamada.
Hum.
Tinha algo mais aí, mas meu irmão não iria me contar.
— Que horas saímos amanhã?
— Às seis. — Kill começou a subir as escadas. — Não se atrase.
O treinador é uma pessoa muito certa com horários.
Eu não pretendia mesmo me atrasar.
Nunca vi os meninos tão elegantes quanto essa noite.
Até gravata eles colocaram, os três de borboleta, paletó preto e
camisa social branca. Pareciam prestes a fazer um comercial de tv.
Os cabelos perfeitamente penteados para trás e luvas de couro nas
mãos.
Estavam belíssimos.
Eu duvidava que existissem homens tão bonitos em Montreal.
Tirando Rick, é claro, mas como eu não o veria essa noite, iria me
contentar com a visão de meu irmão e seus amigos.
Felizmente esses três homens fizeram um papel importante para
me alegrar, pois assobiaram e aplaudiram conforme eu descia as
escadas já pronta para a noite.
A combinação do vestido, sapatos e casaco deu super certo e
optei por ir com o cabelo preso em um coque alto para deixar minhas
costas livres essa noite. Coloquei brincos dourados e fiz uma
maquiagem que destacasse os contornos do meu rosto, as linhas
dos meus olhos e lábios, que foram adornados com um batom nude.
Eu tinha que confessar: me sentia muito elegante.
Era uma pena que Rick não fosse me ver essa noite.
— Droga, se eu soubesse teria pedido para você se arrumar
menos. — Killian pareceu preocupado.
Por sorte, meu irmão estava curado do resfriado ou quase
curado, mas bem o bastante para ir ao evento.
Colin se divertiu com a situação.
— O coitado vai passar a noite afastando os urubus de perto de
você, Saint Clair — disse ele, se aproximando com o braço
estendido. — Vamos, não quero perder isso por nada.
Dentro do carro, Brad insistiu que era sua vez de dirigir.
— Cassie vai? — perguntei.
— Não — foi sua resposta séria.
— Eles brigaram — sussurrou Colin, sentado ao meu lado no
banco de trás.
Fiz careta.
Talvez fosse por isso que ele estivesse tão sério.
Tínhamos adentrado o mês de dezembro e estávamos a caminho
de um evento que claramente era muito importante para eles. O
mínimo seria ter a namorada do lado em um momento desses.
— Lembre-se de se comportar, Sky. O treinador é meio sério às
vezes, então não faça aquelas piadas que você é acostumada a
fazer, por favor. E não fique andando pela casa a menos que ele
convide. — Killian era, sem dúvidas, o mais ansioso dos três.
Talvez por ser capitão do time, ele acabava cobrando muito de si
e claramente queria impressionar seu treinador.
Eu não iria decepcionar meu irmão, é claro.
— Esse homem parece ser chato. Como vocês gostam dele? —
perguntei, observando o caminho que, por sinal, não parecia tão
estranho assim para mim.
Já cheguei a passar por aquelas ruas outras vezes.
— Ele é simplesmente uma lenda no hóquei, não tem quem goste
do esporte e não conheça Maverick Stanwick — explicou Colin. —
Então tudo o que ele fala é para o nosso bem. Inclusive a regra de
não se relacionar com familiares foi ele quem criou e o time ficou
bem melhor desde então. É simplesmente um gênio.
Fiquei gelada.
Ainda encarando o vidro do carro, engoli em seco.
Talvez eu tenha ouvido errado.
Ainda assim, tive que perguntar:
— M-Maverick? Stanwick?— perguntei baixo, finalmente me
virando para Colin, arqueei as sobrancelhas. — É esse o nome dele?
— Pensei que você soubesse. — Killian me encarou através do
espelho do carro. — Esqueci que você não acompanha hóquei, além
de ser completamente desligada. Mas não se preocupe, não precisa
chamá-lo de senhor Stanwick, ele prefere apenas “Maverick”.
Se Killian soubesse de todos os nomes que já o chamei…
Sem conseguir ter uma reação normal, voltei a olhar pela janela,
sentindo minhas mãos suarem. Por que Maverick nunca me contou
que era o treinador do Montreal Monsters?
Eu sabia que ele tinha ligações com hóquei, que já tinha sido
jogador no passado e que ainda fazia algo, mas pensei que era mais
relacionado com os bastidores. Jamais imaginei que ele era justo o
técnico que meu irmão tanto admirava. Isso era bom? Ou ruim?
— Chegamos — anunciou Brad, adentrando o caminho de
cascalho que levava até a entrada da mansão.
O que eu iria dizer?
Eu deveria contar logo a verdade para Killian? Ou era melhor
esconder até conversar com Rick e decidir o melhor a fazer?
A porta de entrada estava aberta. Dessa vez foi meu irmão quem
decidiu me oferecer o braço e me acompanhar para dentro.
Eu conseguia ouvir o falatório vindo da sala onde eu e Rick
dormimos juntos pela primeira vez. Ai, meu Deus.
— A última vez que estive aqui foi no ano passado — explicou
Kill, olhando com admiração para o interior da casa conforme
esperávamos no hall de entrada. — Continua tão bonito quanto eu
me lembrava.
Olhei em volta, fingindo estar vendo aquilo tudo pela primeira vez,
afinal, o que eu podia fazer? Falar que estava apaixonada por seu
treinador?
E então ele apareceu.
Maverick Stanwick, em toda a sua glória.
Trajado com um blazer verde musgo de veludo, perfeitamente
ajustado ao seu corpo, e um relógio dourado chamativo em seu
pulso. Acho que nem se tivéssemos combinado teria dado tão certo.
Mesmo com o coração acelerado e mãos suando por outro
motivo, não consegui afastar os olhos de Rick. Era impossível não
apreciar esse homem.
— Treinador! — exclamou Killian, estendendo a mão para
cumprimentá-lo.
Maverick a apertou e sorriu gentilmente.
— Está melhor, rapaz?
— Muito melhor, obrigado. — Finalmente Kill se virou para mim.
— Eu trouxe minha irmã, Skyler. Sky, este é o homem que me motiva
a dar o meu melhor no esporte, Maverick Stanwick.
Encarei Rick em silêncio, aguardando por sua reação.
Se ele dissesse algo que indicava que já nos conhecíamos, então
eu faria o mesmo. Mas, se ele não fizesse isso, então eu também iria
fingir que estávamos nos conhecendo agora.
Confesso que eu estava torcendo pela primeira opção.
Seus olhos azuis desceram por meu corpo enquanto ele parecia
estar no meio de uma batalha interna. Sua expressão, como
imaginei, continuou impassível, era impossível saber o que estava
pensando.
Engoli em seco ruidosamente e Killian apertou levemente o meu
braço.
— Skyler — Rick finalmente falou, estendendo a mão em minha
direção. — Seja bem-vinda.
Então ele fez mesmo isso.
Fingiu que não me conhecia.
Eu queria sair correndo e chorar, gritar e xingar.
— Senhor Stanwick — falei, apertando sua mão. — Agradeço.
— Apenas Rick está bom — disse ele, me olhando nos olhos.
Desviei o olhar, impedindo Maverick de continuar a tentar me
examinar.
— Senhor Stanwick — repeti e quase senti Killian tentar cavar um
buraco no chão para se enfiar. — Poderia me dizer onde fica o
banheiro, por favor?
— Eu te levo — disse ele, estendendo o braço.
— Não é necessário, basta dizer e eu irei sozinha.
Ouvi meu irmão xingar baixo.
Maverick olhou para mim, depois para Killian, e voltou a me olhar.
Sustentei seu olhar, desafiando-o a sair do personagem e então
ele cedeu.
— Suba as escadas. Segunda porta à direita.
Eu sabia que tinham outros banheiros no andar em que
estávamos, mas como tecnicamente era minha primeira vez ali,
apenas agradeci e segui suas instruções, indo parar no segundo
andar.
Passei pela porta da minha sala de pintura, que estava
entreaberta, e senti vontade de entrar ali, mas eu não podia.
Subitamente senti que eu não era mais bem-vinda ali.
Segui até o banheiro e me tranquei ali dentro por longos minutos.
Toda essa situação era ridícula.
“Seja bem-vinda”.
A voz de Maverick conforme ele me dizia isso me deu tremores
de nervoso.
Onde estava o homem que disse que me buscaria no inferno se
sentisse saudades? O homem que compartilhou comigo seus
traumas e na frente da própria Sheila Woods teve coragem de se
levantar e pegar em minha mão?
Droga, era por isso que eu tinha decidido não entregar meu
coração para ninguém. Como fui me esquecer tão rápido da
promessa que fiz a mim mesma, a fim de me proteger de decepções
como essa?
Sequei minhas lágrimas de raiva com papel, me recusando a
borrar a maquiagem que levei mais de uma hora fazendo e lavei as
mãos antes de abrir a porta para sair.
Dei de cara com outra “porta” do lado de fora, parada de forma
decidida a não me deixar passar.
Maverick.
— Senhor Stanwick, se importaria de me deixar passar? — pedi,
controlando o tom de voz e tentei escapar por um dos cantos.
— Sky, por favor, me escuta — sua voz era um sussurro alto. —
Não precisa me chamar assim.
— Sua casa é muito bonita. Que tom é esse nas paredes? Me
lembra… Hipocrisia. — Tentei empurrar Maverick, mas ele segurou
minhas mãos e com cuidado me fez entrar de volta no banheiro.
— Você tinha que ter me contado que é irmã de um dos
jogadores da Montreal Monsters! — exclamou depois de bater a
porta com o pé. — Por que não me contou?
— Porque é a profissão do meu irmão, não a minha. Além disso,
não fui a única a esconder coisas, como você bem sabe. — Cruzei
os braços e no mesmo instante o olhar de Maverick recaiu sobre
meu busto.
Ele engoliu em seco e desviou o olhar, o músculo de sua
mandíbula dando as caras.
Ao menos era bom saber que eu ainda mexia com ele.
— Eu queria que você gostasse de mim por quem eu era, não
pela profissão que eu exercia. Muitas mulheres só se aproximam de
mim por causa dela e com você foi diferente, você nem sabia quem
eu era. Eu queria ser só o Rick com você, não o Maverick Stanwick,
famoso técnico de hóquei. Queria ter certeza dos seus sentimentos
antes de…
— Antes de fingir que não me conhecia? — Eu estava brava
demais para sentir pena. — Você, com trinta e nove anos de vida,
agiu feito uma criança…
— Quarenta.
— O quê?
Ele me encarou.
— Fiz quarenta.
— Quando?
— Hoje ao meio-dia e meia.
Eu não sabia.
Será que Killian sabia? Ele não comentou nada a respeito.
Será que alguém sabia?
— Essa confraternização não é por causa de mim, mas esse ano
as datas coincidiram. Ainda assim, não quero que façam disso uma
festa de aniversário.
— Está tentando mudar de assunto? — Arqueei as sobrancelhas.
— Não, só queria que alguém além dos meus pais soubesse que
agora sou oficialmente um quarentão, mas… — Ele encostou o
quadril na pia de forma relaxada. — Vamos voltar ao que interessa.
Você está brava comigo.
Ele falava com uma calma que me fazia ferver por dentro.
— E não deveria?
— Sky, o que fiz lá embaixo não foi por maldade, mas eu não tive
escolha. Sabe o que vai acontecer se alguém descobrir que estou
apaixonado pela irmã do capitão do meu time?
Apesar de ainda estar brava, eu comecei aos poucos a entender
o que Rick quis dizer.
Ele tinha criado uma regra e agora agia contra ela. Seu time o
admirava, então o que fariam se descobrissem a verdade?
Killian ficaria decepcionado. Eu não queria ver meu irmão
decepcionado. Ele lutou tanto para chegar até aqui e me recebeu de
braços abertos quando soube que eu precisava de um lugar para
esfriar a cabeça. Eu não me perdoaria por balançar seu mundo.
E o resto do time perderia o respeito e a admiração que Rick
lutou tanto para ter. Todos iriam se decepcionar de alguma forma.
Se isso acabasse por aqui, apenas eu iria me decepcionar. Mas,
se continuasse, quantas pessoas acabariam envolvidas?
— Eu conheço a regra que você criou — murmurei, voltando a
encarar o homem desconcertado em minha frente. — Ela se aplica a
você também?
— Especialmente a mim. — Ele pousou a mão no peito. — Eu
tenho que dar o exemplo, e sinceramente, nunca me odiei tanto por
ter criado uma regra quanto estou me odiando agora.
Rick faria de tudo pelo hóquei.
E eu faria de tudo para ficar bem com isso, porque não era justo
acabar com tudo que ele levou anos construindo.
Mesmo que meu coração não estivesse de acordo.
— Então é isso? — perguntei com a voz embargada. — A gente
sai desse banheiro e esquece de tudo?
Foi a primeira vez que vi os olhos azuis de Rick ficarem
marejados, mas nenhuma lágrima escorreu.
— Acredito que não temos escolha. — Ele desviou o olhar. — É
difícil falar isso com você estando tão linda.
Pois eu estava me sentindo uma merda.
— E nosso projeto? O que eu digo se alguém perguntar?
— Podemos apenas dizer que alguém da minha equipe de
marketing te contratou. Na verdade, eu nunca cuido dessa parte,
você foi a exceção.
— Você parece ter tudo muito bem arquitetado nessa sua mente
— falei com a voz amarga, sem conseguir esconder minha mágoa.
Rick me olhou com a expressão mais pesarosa que já vi.
Meu coração estava se partindo em pedacinhos a cada segundo
dessa nossa conversa.
— Me perdoe, Sky. — Ele me puxou, como se não aguentasse a
distância entre nós, e encostou a boca na minha enquanto pedia
perdão baixinho sem parar.
Deixando as lágrimas escorrerem, o abracei e o beijei com
vontade, sem querer acreditar que seria nosso último beijo. Seus
braços fortes envolveram minha cintura e seu corpo me inclinou
levemente para trás conforme ele aprofundava cada vez mais o
beijo.
Eu sabia onde isso iria terminar.
Mas, dessa vez, eu não seria capaz de continuar.
Me afastando de Rick e secando os olhos, passei por ele e abri a
porta do banheiro.
— Adeus, Rick — murmurei antes de sair.
Porque, a partir de agora, ele seria apenas o senhor Stanwick,
treinador do meu irmão que conheci essa noite e que jamais esteve
em meu coração.
Mas aqui dentro eu sabia a verdade.
E prometi guardá-la comigo.
Acho que nunca senti tanto desgosto e decepção na minha
vida.
Enquanto todos jantávamos na enorme mesa da sala de jantar,
com mais de vinte lugares, comecei a me perguntar onde foi que eu
errei comigo mesmo.
Sim, eu já me decepcionei em outras situações, mas a diferença
era que das outras vezes eu fui decepcionado por outras pessoas e
dessa vez eu era o motivo da minha própria decepção.
Como foi que eu achei que seria uma boa ideia acordar um belo
dia e simplesmente decretar que os membros da Montreal Monsters
não deviam se envolver amorosamente com os familiares uns dos
outros? Ok, eu tive meus motivos, mas por que não parei para
pensar que algo poderia fazer meu “feitiço” se virar contra mim
mesmo?
Acho que passei tantos anos sem amar alguém que passei a
acreditar fielmente que morreria assim. E, mesmo que eu decidisse
ter algo sério com qualquer pessoa, jamais imaginei que seria justo a
irmã do capitão do meu time, pelo amor de Deus.
— Treinador? — chamou Killian Saint Claire, sentado na cadeira
mais próxima a mim.
Eu estava na ponta da mesa e os garotos se sentaram de acordo
com a hierarquia do time, com o capitão mais próximo de mim e o
novato — pobre Shawn — mais distante. Por algum motivo, Sheila
conseguiu sentar-se na segunda cadeira mais próxima de mim,
enquanto Skyler foi parar do outro lado da mesa e parecia achar
graça de tudo que Dimitri e seu aprendiz, Logan Bloom, diziam.
Dimitri era um velho amigo que vivia em Denver, no Colorado, e
tinha optado pelo futebol americano. Ele era uma grande referência
na sua área e muitos se espelhavam nele para se destacar. Eu o
convidei no mês passado para se juntar a nós nessa
confraternização, assim poderíamos conversar sobre o andamento
dos nossos times e trocar ideias. Apesar de serem esportes
diferentes, as conversas se encaixavam e o carinho mútuo
continuava.
Ele me pediu para trazer seu aprendiz e eu permiti. Segundo ele,
Logan Bloom era um bom rapaz e tinha grande potencial, mas
precisava expandir os horizontes e conhecer pessoas como eu.
Uma pena o pobre Logan me conhecer justo no meu pior dia.
— Sim? — finalmente respondi, conseguindo desviar o olhar de
Skyler e peguei minha taça de vinho. — Apenas Maverick, por favor,
Killian. Não estamos no treino.
Ele sorriu.
Um sorriso bastante parecido com o de sua irmã.
Como nunca notei essas semelhanças antes?
Ok, Killian era loiro e tinha olhos cor de mel, enquanto Sky era
morena e tinha olhos âmbares, mas seus traços não eram tão
diferentes assim.
— O rapaz estava me contando sobre o trabalho excelente que
você tem feito no time, Rick — disse Sheila, aproveitando para entrar
na conversa e enfiou um pedaço de cordeiro na boca. — Podemos
ter grandes expectativas para o próximo jogo? — perguntou depois
de engolir.
— Eu não trabalho sozinho. Se o time está cada vez melhor, o
mérito é deles. — Olhei para cada um dos rapazes, que pareceriam
orgulhosos pelo elogio. — Tenho grandes expectativas para o
próximo jogo, sim.
— Isso só se Shawn não jogar — provocou Colin, de boca cheia.
— Cale a boca, Leblanc — o novato retrucou, o que me
surpreendeu.
Ele estava aprendendo a bater de frente com os garotos, então.
— Só estou falando dos fatos. Você não vai conseguir se
concentrar com a irmãzinha Saint Clair na arquibancada. — Colin
deu de ombros.
Eles estavam falando de Sky?
— Eu sabia que não era coisa da minha cabeça. Shawn se
encantou mesmo por ela — Bradley entrou na conversa e se virou
para o amigo, apontando o garfo em direção a ele. — Cara, não se
esqueça da regra. Você é bonitão e tudo, mas ela está fora de
questão.
— Eu sei — murmurou Shawn, parecendo verdadeiramente
desanimado.
— É melhor pararem de falar da Sky ou eu vou quebrar vocês —
rosnou Killian, antes de se virar para mim e abrir um sorriso nervoso.
— Lá fora, é claro. Jamais desrespeitaria sua casa.
Forcei um sorriso, mas a verdade é que eu queria subir na mesa,
ir até Skyler e jogá-la sobre meus ombros. Depois disso todos
saberiam que ela estava fora de questão.
Suspirei baixo.
Estava fora de questão até para mim.
Enquanto os rapazes continuavam com a discussão, voltei a
encarar Skyler, que novamente ria de algo que o loiro platinado do
Logan Bloom disse. Ela trocou um rápido olhar comigo, mas não
rápido demais para me impedir de notar que seu riso não era
verdadeiro. Seu sorriso não chegava até os olhos e só quem a
conhecia seria capaz de saber disso.
Ela desviou o olhar e eu fiz o mesmo, mas só então notei meu
deslize: Sheila tinha notado tudo.
Ela podia ser superficial, mas não era burra.
Me lembro de tê-la convidado para essa noite meses atrás,
quando nós dois estávamos aproveitando a companhia um do outro,
mas agora tudo que eu queria fazer era voltar no tempo e não fazer
convite algum.
— Espere aí! — exclamou em voz alta, chamando a atenção de
todos na mesa e apontou de mim para Skyler. — Ela não é a garota
que estava jantando com você na quarta-feira? Oh, ela está tão
diferente que não reconheci. O que uma maquiagem bem feita não
faz!
Sky, do outro lado da mesa, engasgou.
Eu senti vontade de falar sobre como a morena já era bonita o
bastante sem maquiagem, mas sabia que sair em sua defesa não
ajudaria em nada agora.
— Você está enganada — respondi em voz baixa, evitando o
olhar de todos.
Killian trocou um olhar com Colin e depois com a irmã.
— Rick, qual é, consigo contar nos dedos todas as pessoas de
olhos dourados que já conheci. — Sheila riu, se divertindo com o
embaraço que causou ou talvez por ter acabado de descobrir que eu
e Sky não tínhamos mais nada e se voltou para ela. — Além disso,
eu nunca esqueço um rosto.
Nunca houve um silêncio tão ensurdecedor quanto o daquela
mesa.
Killian me encarou e sua testa se franziu, como se ele tentasse
decidir no que crer. Infelizmente, Sheila tinha um argumento válido,
mas eu teria que manter o meu.
— Foi outra pessoa — finalizei, sem dar espaço para que ela
falasse mais sobre o assunto.
— Um brinde, então! — exclamou Logan Bloom, se levantando
de repente com um copo em mãos.
Por seu olhar perdido e bochechas coradas, eu sabia que ele
estava fazendo isso para aliviar o clima.
Gostei dele no mesmo instante.
Dimitri pigarreou baixo e ergueu uma taça. O rapaz, parecendo
perdido, entendeu o recado e trocou o copo pela taça antes de voltar
a erguer o olhar e a sorrir.
— Em agradecimento a Maverick Stanwick por essa noite
maravilhosa e por nos receber tão bem nessa casa tão bonita,
grande e… — Seus olhos cristalinos passearam pelas paredes e teto
da sala de jantar. — Acho que é isso. E pela comida também. Não é
frango frito, mas eu gostei quase tanto quanto.
Uma cicatriz cortava uma de suas bochechas, mas nem assim o
safado conseguiu ficar feio.
Eu apostaria que ele devia fazer sucesso com as mulheres. Era
bonito, jovem, forte e simpático. Skyler com certeza gostou da
companhia dele.
Ergui a taça ao mesmo tempo que todos, me juntando ao brinde.
Depois de virar o resto do vinho goela abaixo, me levantei e
murmurei algo sobre precisar ir ao banheiro, o que era uma mentira.
Eu só precisava sair dali.
Subi as escadas rapidamente, indo para o andar de cima e abri a
primeira porta que encontrei, o que foi um erro.
Dei de cara com Solange enroscada em Tony, os dois sem fôlego
e com os rostos vermelhos. Então era por isso que o safado sumiu
do jantar. Ele alegou uma dor de barriga e fiquei tão concentrado em
outras coisas — como no esforço em ignorar Sky — que me esqueci
dele.
Solange não conseguiu me encarar. Tony, por outro lado, me
conhecia há anos e parecia não ter mais vergonha de mim.
— Rick, meu filho, bate na porta quando for assim — reclamou
ele, me empurrando para fora e fechando a porta na minha cara.
Eu poderia simplesmente voltar a abri-la e reclamar, afinal era
minha casa e Solange estava trabalhando, mas decidi apenas deixar
os dois pombinhos aproveitarem o ninho de amor e segui meu
caminho até a sala de pintura, o único cômodo que eu poderia me
esconder até me recuperar.
Ao menos alguém podia amar sem culpa.

As pessoas começaram a ir embora uma hora após o jantar —


alguns rapazes para se encontrar com namoradas, outros para
descobrir o que a noite de sábado tinha a oferecer. Sheila, ao notar
que não conseguiria nada comigo, também partiu, alegando que
estava indo se encontrar com alguém. Eu sabia que era sua tentativa
de me fazer sentir ciúmes e agir, mas tudo o que consegui fazer foi
agradecer mentalmente por estar livre dela.
Colin, Skyler e Bradley estavam sentados no divã — sim, o
mesmo que eu dormi com ela pela primeira vez — e os três pareciam
observar as chamas da lareira com muita atenção enquanto
conversavam em volume baixo.
Killian e Dimitri estavam próximos dos patins de ouro e
conversavam com empolgação. Todos estavam entretidos entre si e
aproveitei o momento para me aproximar da janela de vidro e ficar
observando os flocos de neve caírem.
Zorro, sentado no parapeito, pressionava o focinho no vidro para
tentar pegá-los e se frustrava em todas as tentativas.
— Aqui é bastante frio, não? — perguntou Logan, parando ao
meu lado e também observando a janela.
Ele estava com tantas camadas de blusa que parecia que um
urso o estava abraçando.
— Gostaria que eu aumentasse o aquecedor?
— Ah, não, assim está ótimo! Eu é que eu sou muito friorento. Lá
em Rising Sun praticamente não temos inverno, vivemos no meio do
deserto. — Ele riu baixo e se virou para mim. — Desculpe a
pergunta, mas você está bem?
Ainda sem me virar para o rapaz, assenti e beberiquei um pouco
do meu whisky.
Essa noite eu decidi que me permitiria beber para afogar os
sentimentos reprimidos.
— Por quê? — perguntei, olhando pelos cantos dos olhos.
— Você parece… Perturbado. — Logan fez careta. — Droga, eu
não deveria ser tão sincero, mas é que odeio ver pessoas
escondendo o que sentem.
— Quando não se deve sentir certas coisas, o melhor a fazer é
esconder até esquecer que o sentimento existe.
O safado riu.
Riu como se fosse a coisa mais divertida que já ouviu, mas ficou
sério quando eu o encarei com seriedade.
— Acha graça?
— Não, de forma alguma. É que… — Ele se aproximou de mim e
olhou em direção à Sky, claramente já tendo entendido tudo. —
Existem sentimentos que quanto mais tentamos esquecer, mais
fortes se tornam. Falo por experiência própria.
Isso despertou minha curiosidade.
— Me conte sua experiência, então.
A expressão de Logan se suavizou.
— Bem, a história é longa, do tipo que daria um livro. — Ele
arqueou as sobrancelhas e sorriu. — Mas em resumo, o que posso
te dizer é que me apaixonei por alguém que não deveria. Quando
descobri isso, fiz de tudo para esquecê-la, mas o coração é quem
decide essas questões, sabe? Não adianta querer mandar nele.
Descobri que o coração não tem linha de comunicação com o
cérebro e o que ele quer, ele quer e ponto.
— Qual é o nome dela?
— Safira. — Seu sorriso se ampliou. — Ela trabalha em um clube
retrô. Sabe patinar como ninguém. Já tentou me ensinar, mas eu sou
um desastre.
— Tem alguma coisa em pessoas com essa inicial que acaba
fazendo estrago — resmunguei, virando o resto da bebida de uma
vez.
Safira, Skyler…
Deus do céu.
— Muito pelo contrário. — Logan cruzou os braços e se virou
para a janela, observando o céu. — As coisas não foram fáceis para
nós e eu tive que ir contra tudo o que acreditava para ficar com ela,
mas hoje minha vida não poderia ser melhor. Nós dividimos um
trailer que tem cheiro de canela, um gato sem orelha e ao menos um
balde de frango frito por semana.
Talvez a vida fosse mais fácil se tudo fosse mais simples.
Talvez, se eu tivesse um trailer e comesse frango frito toda
semana, eu e Sky pudéssemos ser felizes de verdade.
— Faz tempo que estão juntos?
— De forma oficial? — Logan fez uma rápida soma nos dedos. —
Seis meses.
— Ela não se importa com suas viagens?
— Safira é bem brava e me impede de negar qualquer coisa que
possa me ajudar com a carreira. Apesar disso, voltarei amanhã para
ela, porque não consigo ficar muito tempo longe e também porque
sinto falta do sol.
— Na próxima vez que vier, traga sua namorada. Vocês podem
se hospedar aqui e talvez ela me conte mais detalhes sobre o
romance de vocês.
Logan sorriu.
— Seria maravilhoso. Obrigado.
Dimitri se aproximou, alegando que eles precisavam ir, e eu me
despedi de Logan, sentindo inveja da sorte que ele tinha por poder
amar alguém de forma livre. Dava para ver o quão feliz e leve ele
ficava ao falar de Safira.
Depois que eles saíram, virei para os últimos convidados que
sobraram.
Killian, o único dos rapazes que não tinha bebido, decidiu que
também estava na hora de eles irem embora. Ele ajudou a irmã a se
levantar e só então notei que Skyler tinha tirado a blusa. O vestido
deixava suas costas nuas e quase chorei de dor ao pensar que
nunca mais a iria beijar ou tocar ali.
Bradley se aproximou com a blusa de pelinhos, ajudando-a a
colocar no corpo novamente, o que cobriu aquela bela visão. Colin
lhe estendeu o braço e eu senti inveja dele por poder tocá-la e eu
não.
Eles a tratavam com respeito e cuidado, Sky estava em ótimas
mãos e isso me consolava.
Killian me agradeceu imensamente pela noite, mas quase não
ouvi nada do que ele disse. Talvez fosse o álcool, mas não tentei
esconder enquanto encarava Skyler, que me encarou de volta e
negou levemente com a cabeça, quase de forma imperceptível,
antes de sussurrar algo para Colin e sair dali.
— Ela está passando mal, vamos levá-la embora para descansar
— explicou Killian, apertando minha mão novamente. — Boa noite,
treinador.
Eu sabia que Skyler não estava passando mal, mas não tentei
retrucar. Apenas me joguei no divã e abri uma nova garrafa de
whisky, disposto a beber até adormecer.
Algumas pessoas, como Logan Bloom, tinham coragem o
bastante para ir contra si mesmas e apostar no amor.
Mas eu não tinha.
Era um medroso de merda.
E pagaria pelo resto da vida por isso.
2 semanas depois

Tentei esconder o melhor possível o meu coração partido


durante os dias que se seguiram àquela confraternização dos
horrores. Foi uma tarefa bem difícil, especialmente porque Killian me
conhecia como ninguém e sabia quando eu estava bem ou não, mas
acho que meus esforços valeram a pena, afinal nenhum dos meninos
fez perguntas. Eles devem ter notado algo, mas fiquei feliz por
respeitarem meu espaço.
Também usei a famosa desculpa feminina de estar na TPM e
sentir a necessidade de me isolar um pouco. Passei um bom tempo
na cama, apenas observando a neve cair e se acumular cada vez
mais no mundo lá fora. Cheguei a perder a conta de quantos dias e
noites passei sem fazer exatamente nada, apenas observando o sol
nascer e se pôr, trocando de lugar com a lua. Tentei assistir uma
série, começar a ler um livro e até mesmo jogar um jogo no celular,
mas nada conseguiu segurar minha atenção por muito tempo.
Eu não sentia vontade de exatamente nada.
Comer, tomar banho, fazer skincare ou especialmente pintar. E,
sinceramente, quando eu não sentia vontade de pintar, então a coisa
estava mesmo séria. Não querer fazer algo que eu amava tanto me
assustava. Mesmo quando eu e Tyler terminamos, eu continuei a
criar pinturas, treinar traços e brincar com cores, disposta a me
dedicar mais a mim mesma.
Mas dessa vez tudo era diferente.
Ao terminar com Tyler, eu senti uma parte do meu eu ser
devolvida a mim mesma. Mas, ao terminar com Rick, senti que essa
mesma parte se dissipou em pedacinhos. Como podia ser possível?
Relações tão opostas, com durações completamente diferentes e
ainda assim uma delas me marcou muito mais do que a outra…
Eu não contava com isso quando vim para Montreal.
— Prontinho — murmurou Claire, terminando de deslizar o gloss
pela minha boca e sorriu. — Agora sim parece gente.
Ela tinha chegado horas atrás e me encontrado em um estado
deplorável na cama.
Tigelas sujas espalhadas pelo chão, papéis rasgados de
tentativas mal-sucedidas de esboços, peças de roupa suja no
canto…
Eu não tomava banho há pelo menos quatro dias. Meu cheiro não
era dos melhores.
Só de me olhar, Claire conseguiu concluir o que tinha acontecido
e não teve medo de me abraçar enquanto eu chorava
silenciosamente em seu ombro. Depois de me recompor um pouco,
contei os detalhes para ela, que ficou chocada ao saber que
Maverick Stanwick era o treinador dos nossos irmãos e que a maldita
regra que nos impedia de ficar juntos foi criada por ele.
Claire, assim como eu, não era muito ligada no mundo dos
esportes e não reconheceu o nome de Rick quando eu falei no outro
dia. A vida universitária da ruiva tomava todo o seu tempo e atenção.
Ainda assim, ela veio até aqui para me buscar para o último jogo
do ano, que aconteceria em breve. Os meninos já não estavam mais
aqui, afinal, precisaram sair bem mais cedo para poder se aquecer e
repassar as jogadas, só de imaginar que Maverick estaria lá e eu não
iria poder abraçá-lo…
Que droga.
Droga de vida.
Droga de sentimentos.
Claire me forçou a tomar um banho bem demorado e relaxante e
por incrível que pareça, realmente me senti um pouco melhor depois
dele. Parece que tirou parte do peso que eu carregava e me senti
mais animada para sair finalmente daquele quarto e ir para o jogo
assistir grandalhões correrem atrás do pobre disco.
Como estava bem frio lá fora e eu queria algo que combinasse
com meu humor, coloquei apenas roupas pretas: uma cacharrel, um
sobretudo de couro, botas de salto e um colar prata comprido com
pingente de Saturno apenas para adicionar um tom diferente ao look
— palavras de Claire.
Ela fez escova no meu cabelo, deixando os fios bem esticados e
decidi usá-los assim, soltos. Era interessante como o cabelo liso me
deixava mais séria do que o ondulado, mas para essa noite, eu
sentia que combinava bem comigo.
Fomos até o local do jogo no carro dela.
Achei estranha a quantidade de ursos de pelúcia no banco de
trás, mas a ruiva logo me explicou o motivo:
— Todo fim de ano, ao final do jogo, são jogados ursos de pelúcia
no rinque para serem doados mais tarde para crianças carentes.
Parecia legal.
— Todo mundo leva tantos ursos assim? — perguntei, após
pegar um unicórnio.
— Ah, não, eu que sou meio exagerada. — Ela abriu um
sorrisinho. — Já que você está sem um urso, pode escolher um dos
meus para jogar, se quiser.
Eu com certeza iria querer participar desse momento.
O estacionamento já estava repleto de carros quando chegamos,
mas Claire conseguiu encontrar uma vaga. Depois de enfiar os ursos
em uma sacola bem grande, nós duas seguimos para dentro do
estádio. Foi difícil andar com a quantidade de pessoas ansiosas que
ali estavam, a maioria com camisas do Montreal Monsters ou do time
rival, balançando bandeirinhas e trocando provocações.
Claire me arrastou até a entrada da arquibancada e logo a
música alta nos atingiu.
— Guardaram lugar pra gente lá embaixo! — gritou ela, sem
explicar quem tinha guardado e aos poucos conseguimos descer as
escadas.
Nos sentamos na segunda fileira de baixo para cima.
Segundo Claire, eram os melhores lugares.
A energia do estádio era caótica, barulhenta e contagiante.
Passei tantos dias em completo silêncio e agonia, que de repente
passei a apreciar o som da animação contagiante. Um telão anexado
ao teto do centro do estádio mostrava imagens de personagens e
logo após, ao lado, a imagem de alguém presente na arquibancada
que possuía semelhanças físicas com o personagem apresentado.
Ri em diversos deles e em como as pessoas se divertiam com
isso.
— Eu vou comprar refrigerante — avisou Claire no meu ouvido.
— Você quer?
Concordei.
Ela saiu em seguida, prometendo voltar logo e aproveitei o
momento para pegar algo dentro do bolso do sobretudo: meu
caderno e meu lápis.
Ele era pequeno e coube direitinho ali e por mais que eu não
soubesse bem o motivo de tê-lo trazido para um jogo de hóquei,
agora eu entendia.
Precisava colocar no papel um pouco da energia desse lugar,
apenas para guardar de lembrança o primeiro jogo de hóquei que
presenciei estando em Montreal.
Comecei rabiscando os contornos do estádio e me concentrei em
uma criança sorridente que ria alto toda vez que um novo
personagem era apresentado e comparado a alguém. Eu iria retratá-
la.
Concentrada em meu desenho, fazendo traços rápidos e
precisos, quase não senti quando alguém tocou em meu ombro e
apontou para o telão.
— Moça, é você — a pessoa disse e só então ergui o olhar,
dando de cara com a minha imagem em tempo real ao lado da
imagem da princesa Jasmin.
As pessoas gritaram, aplaudiram, fizeram barulho e riram, se
divertindo. Eu sorri e dei um aceno tímido, sentindo minhas
bochechas corarem. Odiava ser o centro das atenções, mas foi legal
ser comparada a uma princesa da Disney.
Só consegui voltar a respirar quando minha imagem sumiu.
Fechei meu caderno e voltei a enfiá-lo no bolso assim que Claire
se sentou ao meu lado e estendeu a lata de Coca-Cola.
— É oficial, você ficou famosa — foi a primeira coisa que disse
antes de beber o próprio refrigerante.
— Não foi intencional — respondi, notando que as luzes do
estádio foram se apagando, dando lugar à luzes coloridas.
No telão, a imagem dos jogadores se preparando para entrar no
gelo apareceu.
Killian estava concentrado enquanto Colin cochichava algo no
ouvido de Bradley, que assentiu com seriedade. Os outros rapazes
pareciam ter sangue nos olhos, ansiosos para derrotar o oponente.
E então eu o vi.
Bem no fundo, conversando com um rapaz que, pelo que me
lembrava, se chamava Shawn e era novato no time. Maverick tinha
as mãos nos ombros dele e olhava em seus olhos conforme dava
instruções.
Ele estava lindo.
A barba tinha crescido e estava bem feita. O cabelo
perfeitamente penteado para trás e seus olhos…
Nunca os vi tão determinados.
Maverick não vivia para o hóquei.
Era muito mais que isso.
Então uma música alta começou e Rick enfiou o capacete na
cabeça do rapaz antes de dar um tapa em seu ombro e desejar boa
sorte. Um a um, os rapazes foram invadindo o gelo e a torcida foi à
loucura.
Killian acenou, ao passo que Colin lançou beijos para as
apaixonadas e Bradley fez uma reverência.
O uniforme do Montreal Monsters era vermelho e branco,
contrastando com o verde dos seus oponentes da vez.
Todos se posicionaram.
O narrador parecia compartilhar da ansiedade dos
telespectadores.
Então, o jogo começou.
Não só o que ocorria entre os doze rapazes no gelo, mas
também o embate entre meu coração e Maverick Stanwick, que
nesse exato momento me encarava de onde estava, em pé do outro
lado do rinque.
E eu, como a mulher orgulhosa que descobri ser, fiz a única coisa
que consegui para me proteger dos feitiços daquele homem: desviei
o olhar.
O que os olhos não veem, o coração não sente e eu estava
disposta a parar de sentir falta de Maverick.

Não consegui afastar o olhar depois que a encontrei na


arquibancada, sentada ao lado de uma garota ruiva que
praticamente não prestava atenção no jogo, pois digitava no celular o
tempo todo.
Skyler observava os jogadores com atenção, a testa sempre
franzida e sobrancelhas arqueadas, provavelmente querendo
entender o jogo.
Eu queria estar ao seu lado, explicando tudo. Cada jogada, cada
provocação e cada regra. Mas eu não podia abandonar meu posto
de técnico.
Apesar disso, pela primeira vez na minha vida até aqui, não
consegui manter concentração total no jogo. Não enquanto sabia que
Skyler estava a alguns metros de mim, sentada em um lugar do outro
lado do rinque, vestida toda de preto e com aquele sorrisinho curioso
nos lábios cheios.
Quando eu a vi no telão, meu coração acelerou e quase me
esqueci do que ia dizer aos rapazes. Os momentos antes de entrar
no gelo eram uns dos mais importantes, afinal, determinavam se eles
entrariam no rinque com medo ou confiantes.
Nada jamais iria apagar a imagem da morena tímida e sorridente
que pareceu não acreditar que estava sendo comparada à princesa
Jasmin. Foi uma cena adorável, eu senti vontade de beijá-la,
reverenciá-la e adorá-la.
Demorei alguns minutos para encontrá-la finalmente no meio
daquela multidão e depois disso não consegui mais afastar o olhar.
Meu coração se acelerou quando os olhos âmbares da morena
encontraram os meus, mas fiz questão de sustentar seu olhar.
Queria que ela soubesse que eu a via, a enxergava e acima de tudo,
sentia saudades.
Ok, nosso distanciamento só aconteceu porque eu fui obrigado a
seguir minha razão, mas essas duas últimas semanas não foram
nada fáceis. Na verdade, só consegui me controlar porque me
dediquei dia e noite ao planejamento do jogo de hoje, o que me
distraiu nos piores momentos.
Mas agora que eu a tinha tão perto, estava se tornando
impossível controlar meu coração.
Quando ela desviou o olhar, contudo, senti um aperto no peito.
Por dias temi que Skyler me odiasse depois do que fiz, mas agora eu
tinha certeza.
Senti vontade de rir quando ela levou as mãos à boca, chocada
ao ver Killian e o capitão do time rival trocarem socos. Sua amiga
ruiva explicou algo e depois que assentiu, a expressão da morena se
suavizou levemente, mas não totalmente.
Brigas eram comuns no rinque e desde que estivessem dentro
das regras do hóquei, podiam acontecer. Depois que Killian deu uma
chave de braço que tirou as forças do oponente, o juiz finalmente os
separou. A torcida vibrou, como sempre acontecia quando assistiam
uma briga no gelo.
— Você está distraído — disse Kennedy, um dos maiorais da
NHL.[2]
Abri um sorriso e dei um tapa amigável em seu ombro.
— Bom te ver — falei, sem tentar negar que estava mesmo
distraído.
Nada fugia aos olhos de Kennedy.
Ele tinha o poder para mover alguns pauzinhos vez ou outra e
ficava sempre de olho nos técnicos e treinadores para que tudo
corresse como deveria.
— Tem algo que eu precise saber, Stanwick? — perguntou, sério,
parando de braços cruzados ao meu lado e encarando a
movimentação dentro do rinque.
A torcida vibrou quando a M.M. fez mais um gol e depois que eu
aplaudi, voltei a cruzar os braços, ficando na mesma posição de
Kennedy.
Ele era bem mais baixo do que eu, mas não se intimidava com
facilidade.
— Não que eu me lembre — respondi, enfim, porque até então
era verdade.
Quando surgiu uma situação que poderia me prejudicar, eu
resolvi.
Kennedy não precisava saber.
O homem se afastou depois de uns minutos, provavelmente para
xeretar a vida de mais algum guru do hóquei e consegui respirar de
verdade, finalmente.
O Montreal Monsters levou a melhor, vencendo o time oponente
de lavada. Meus meninos brilharam no gelo e quando a torcida
começou a jogar flores e ursos de pelúcia, a música alta retornou e a
festa voltou a acontecer.
Quando olhei em direção à Skyler novamente, vi seus olhos
brilharem enquanto ela lançava um unicórnio de pelúcia no rinque.
Sua amiga ruiva não parava de tirar ursos de dentro de um saco e a
lançar. Foi uma cena engraçada.
E então a morena me encarou.
De novo.
Dessa vez demorou um pouco mais para desviar o olhar e eu
sorri.
Ela não sorriu, mas suas bochechas coraram.
Então eu decidi: nossa noite não acabaria ali.
Minutos depois, quando todos estávamos no vestiário
comemorando a vitória, eu anunciei:
— Vamos para o Reinor’s beber e comemorar, tudo por minha
conta!
Nunca vi rapazes tão felizes.
Quando Killian Saint Clair se aproximou, apertei sua mão e falei
em seu ouvido:
— Convide sua irmã e a amiga para irem também. Elas merecem
comemorar com vocês.
Uma microexpressão de desconfiança cruzou o rosto do rapaz,
mas logo ele se recompôs e se virou para Colin Leblanc.
— Ligue para sua irmã, avise para ela e Sky nos encontrarem no
Reinor’s.
Então a amiga de Sky era irmã do Colin?
— Por que não liga para a sua? — indagou o ruivo.
— Porque, nessa última semana, Skyler desenvolveu a
habilidade de deixar o celular totalmente sem bateria, como você
bem sabe. — Killian pegou uma garrafa de água. — Vai, liga logo
antes que elas arranjem outro compromisso.
Eles se afastaram para tomar uma chuveirada e se trocar, e
aproveitei o momento para dissecar as palavras de Killian.
Skyler não me pareceu triste quando a vi hoje. Na verdade, seu
sorriso me dizia que ela ficou bem depois do término, provavelmente
muito melhor do que eu.
Mas, se fosse verdade e ela tivesse mesmo desistido do celular
nessa última semana — algo que os jovens adoravam usar para tudo
—, então o que significava?
Me levantei e peguei meu casaco.
Eu mesmo iria perguntar a ela.
Me surpreendi quando Claire anunciou que Colin ligou nos
convidando para uma rodada de bebidas no Reinor’s. Como eu
estava ansiosa para me divertir depois de tanto tempo jogada na
cama, lidando com a pena de mim mesma, topei no mesmo instante.
O estacionamento do estabelecimento estava lotado quando
chegamos. A cidade estava uma loucura, muitas pessoas vieram de
longe para o jogo e agora procuravam um lugar para comemorar a
vitória ou chorar pela derrota. Claire deixou o carro na rua de trás e
nós caminhamos até a entrada.
— Amiga, antes de entrarmos. — Ela parou de andar e se virou
para mim, segurando meu rosto. — Use essa noite para se lembrar
de como é bom viver, está bem?
— Eu estou bem — murmurei, forçando um sorriso. — É claro
que já estive melhor, mas já passei tempo demais sofrendo. Preciso
me reerguer.
— É isso aí. — Claire soltou meu rosto e me puxou pela mão
para entrarmos na fila. — Dance, paquere e se esqueça do maldito
que te deixou assim. Ele não merece apagar o brilho que você lutou
tanto para conseguir de volta.
Eu não podia negar, sabia que uma parte de mim ficaria para
sempre com Maverick Stanwick, mas eu também sabia que iria
sobreviver a isso.
Não demorou até que eu e Claire conseguíssemos finalmente
entrar no Reinor’s. o lugar estava lotado, dessa vez não de
universitários, mas de jogadores e pessoas do ramo do esporte.
Colin, que estava sem camisa em cima de uma mesa, acenou
quando nos avistou.
Ele gostava de ser o centro das atenções e se dava bem nisso.
— Eu vou pegar uma bebida — gritei no ouvido de Claire, que
apenas concordou.
Ela já estava no clima, dançando no meio de desconhecidos e
entrando na vibe sem dificuldade.
Depois de empurrar algumas pessoas pelo caminho, consegui
chegar até o bar, onde um rapaz alto e loiro preparava bebidas com
maestria para um grupo de garotas que não conseguia parar de
suspirar enquanto o observava. Quando ele se virou, eu entendi
tudo. Seu sorriso era sensual e preguiçoso; os olhos verdes
misteriosos e provocantes. Eu não o vi da última vez que estive
aqui…
— Posso servir uma bebida para a moça cabisbaixa? —
perguntou ele, deslizando um copo em minha frente.
— Eu não estou cabisbaixa, mas pode — respondi, abrindo um
sorriso amigável.
— O que prefere? Doce ou… Não, você tem cara de quem
prefere bebidas doces. Estou certo? — Ele arqueou as sobrancelhas,
já pegando uma garrafa.
Dei de ombros.
— Me surpreenda.
— Gosto de surpreender. — Depois de me lançar uma piscadela,
ele começou a jogar bebidas dentro de um copo de alumínio,
parecendo conhecer de cor cada uma delas, sem precisar ler o
rótulo.
Após tampar o copo e chacoalhar por alguns segundos, ele
despejou a bebida rosa brilhante no copo em minha frente. Por
último, enfiou um canudo preto e jogou uma cereja.
— Caramba… — Peguei o copo, surpresa pela aparência do
drink.
As partículas de glitter dançavam dentro do copo, me fascinando.
— Tem certeza de que isso é bebível? — perguntei, arqueando
as sobrancelhas.
— Não só bebível, como delicioso, eu garanto.
Decidi bebericar um pouco para ter certeza de que ele estava
certo.
Aproximei o canudo dos lábios, sentindo os olhos do loiro fixos
em meus lábios conforme eu sugava o canudo e desviei o olhar.
Apesar de sua sugestão anterior sobre eu preferir drinks doces
não estar totalmente correta, até que gostei da bebida. Não era
enjoativa e descia sem fazer estrago, além de ser refrescante.
— Acho que vou querer a receita — falei com um sorriso,
deixando o copo sobre o balcão do bar.
— Segredo de barman, mas se quiser outras coisas… — Ele
deslizou um pedaço de papel, colocando-o ao lado do copo e se
afastou para atender um casal que fez sinal.
Depois de desdobrar o papel, encontrei um número.
Logo abaixo, um nome: Gabe.
Deslizei o dedo pelos números, me perguntando quantos papéis
prontos iguais a esse o loiro mantinha no bolso da calça para
distribuir por aí. Bom, ele era solteiro e livre para conhecer quem
quisesse, assim como eu, mas, droga! Mesmo sabendo de tudo isso
e tendo achado o cara bonito, eu não sentia vontade de aceitar sua
proposta. Um grandalhão de olhos azuis e cabelos escuros não saía
da minha mente.
— Fazendo sucesso, amor?
Levei um susto com a voz forte que veio de trás de mim.
Uma voz muito, muito conhecida.
Com o tom rouco que me arrepiou ao pronunciar a última palavra.
Dobrei o papel e o enfiei no bolso do sobretudo antes de pegar
meu copo e bebericar um grande gole da bebida, torcendo para que
fosse algo forte o bastante para me relaxar. Pelo canto dos olhos,
consegui ver o quão lindo Rick estava, vestido com uma jaqueta de
couro marrom que lhe deixou com um ar mais jovem e despojado,
mas sem abandonar a elegância.
Ele se encostou ao meu lado e fez sinal para Gabe, que se
aproximou já deslizando um copo vazio, assim como fez comigo.
— Vodka — pediu com o tom sério — pura.
Maldito.
Copiando o pedido que fiz da primeira vez que estive ali, naquele
mesmo bar, quando trocamos o olhar que deu início a tudo. Ah, se
eu soubesse tudo que aquela noite iria causar na minha vida, será
que faria tudo de novo?
Gabe serviu a bebida parecendo torcer para sair correndo dali.
Eu não podia culpá-lo, levando em conta o olhar mortal que Maverick
lhe dirigia.
Depois que ele se afastou, Rick bebeu um pouco da vodka e
voltou a pousar o copo no bar.
— O que achou do jogo? — perguntou, sem me encarar.
— Um monte de grandalhões correndo atrás de um disco, com
ocasionais socos e muita música — respondi, segurando o sorriso.
Apesar de achar tudo isso, me diverti muito no jogo.
— É uma definição bastante precisa do hóquei, na verdade. — O
homem contornou a borda do copo com o indicador e senti minha
atenção ser atraída para aquela mão que conhecia meu corpo tão
bem.
Me forcei a desviar o olhar.
Não podia mais pensar em Maverick dessa forma.
Não mais.
Na verdade, era melhor eu me afastar antes que meus
sentimentos viessem à tona e eu precisasse de mais duas semanas
reclusa para tentar me recuperar. Era melhor começar a fazer agora
o que não fiz antes: proteger o meu coração.
Pegando o copo, comecei a me virar.
— Vou encontrar minha amiga — anunciei.
— Nós precisamos conversar, Sky — disse Rick, pousando a
mão em meu braço. — Será que podemos ir para um lugar mais
vazio?
Ele não me segurou, mas parei mesmo assim e o encarei.
— Não tem medo que te vejam comigo?
— Todos estão bêbados demais para notar qualquer coisa. Além
disso, as luzes piscando atrapalham a visão.
— Você realmente me surpreende, Maverick. — Soltei uma
risada amarga. — Não vou ser seu segredinho e com certeza não
vou entrar nesse jogo que você está tentando fazer, trocando olhares
comigo e me encurralando nos lugares.
A mão de Rick voou para longe no mesmo instante, como se eu
estivesse em chamas.
— Eu não te encurralei.
— Então me deixe ir!
Me virei novamente para sair dali e dessa vez Rick não me
segurou, mas foram suas palavras que me fizeram parar e dar meia
volta.
— Preciso da sua assinatura — ele disse.
— Minha assinatura? Para quê?
— Só posso usar sua arte se você assinar um termo. Além disso,
temos que acertar a questão financeira.
Eu tinha me esquecido de tudo isso.
Fiquei tão afundada em meus sentimentos e meu coração partido
que nem me lembrei do nosso acordo. Ainda tínhamos que resolver
a burocracia.
— O ano vai acabar em duas semanas. — Arqueei as
sobrancelhas. — Está tarde demais para fazer uma campanha
publicitária de fim de ano, não acha?
— Então farei uma de início de ano, se for assim. Mas não abrirei
mão da pintura. — Maverick parecia decidido. — Então, quando
podemos marcar para resolver essas questões?
Suspirei alto.
Ele era teimoso.
— Na próxima sexta-feira — falei, determinada a dar as regras
dessa vez. — Às seis da tarde. Tem que ser algo rápido, tenho
planos para depois.
Eu não tinha.
Não ainda.
— Na minha casa? — Rick arqueou as sobrancelhas e bebericou
a vodka, parecendo satisfeito com o rumo da conversa. — Meu
advogado estará lá como testemunha.
— Ok, o importante é que seja rápido. — E que você fique longe
de mim, completei mentalmente.
Não podia abusar da minha sanidade.
— Tem tanto medo assim de ficar perto de mim? — Rick abriu um
sorriso provocante. — Teme que eu te agarre e ataque sua boca?
— Isso entre mim e você — apontei de mim para ele com o
indicador — já era. Então, não, não é medo de ficar perto de você,
porque sei que nada mais vai acontecer entre nós. Esse nosso lance
acabou naquele banheiro e eu quero que você se esqueça dele,
porque eu farei o mesmo.
— Nosso lance? — Rick arqueou as sobrancelhas e forçou o
olhar em minha direção, me examinando. — É isso que diz para si
mesma antes de dormir? Que foi só um lance?
— O que importa não é o que foi ou deixou de ser, Maverick —
reclamei, cansada dessa conversa sem sentido. — O que importa é
que acabou.
Ele virou o resto da vodka de uma vez e assentiu.
— É — concordou, se me encarar. — Você tem razão. Desculpe,
estou sendo infantil. Vamos manter isso apenas do lado profissional.
Sexta-feira às seis, então. Será bem rápido, eu prometo.
Não sei se eu ainda confiava nas promessas de Maverick, mas
concordei com a cabeça.
Eu teria uma semana toda para me preparar para nosso encontro
e faria questão de me manter firme e distante, porque só assim
conseguiria me recuperar desse baque.
Ou, ao menos, sobreviver a ele.

Se não fosse pela maturidade e sensatez de Sky, eu


provavelmente a teria arrastado para um canto e feito coisas que
prometi nunca mais fazer com ela. Eu tinha dificuldade de agir com a
razão quando estava perto dela.
Com quarenta anos de vida, sendo uma pessoa completamente
independente, com uma carreira profissional imaculada e ligações
pessoais bem estabelecidas, a única coisa que eu mais desejava era
justamente aquela que não poderia ter e minha mente estava tendo
dificuldades para aceitar esse fato.
Quando ela se afastou depois de combinar nosso encontro
profissional para a próxima semana, notei como as pessoas a
olhavam com admiração e interesse conforme passava. Sua beleza
era mesmo chamativa, mas ter consciência disso e não poder estar
ao seu lado era torturante. Eu queria poder passar o braço pela
cintura de Sky e mostrar que ela podia ser admirada, mas não
desejada.
— Ei, treinador. — Bradley Park deu um tapa amigável em meu
ombro, anunciando sua chegada.
— Park. — Pousei a mão em seu ombro e o apertei levemente.
— Bom jogo, rapaz. Está se divertindo?
Ele deu de ombros e fez sinal para o barman trazer uma cerveja.
— Estou, quer dizer… Minha namorada surtou porque viu
algumas garotas pedindo fotos comigo e foi embora. Como
aparentemente sou o único comprometido daqui, decidi encontrar um
canto para ficar. — Ele sorriu, mas o sorriso não chegou até os olhos
castanhos.
Bradley era jovem, estava começando a atrair cada vez mais
atenção do pessoal e tinha uma relação complicada com a
namorada.
Não era uma boa mistura.
— Não deixe isso estragar sua noite — aconselhei, repetindo o
mesmo conselho para mim mesmo.
Não deixe a presença de Skyler ocultar todo o resto.
Era difícil, mas eu iria tentar me distrair.
— Eu sei, mas é difícil quando se gosta muito de alguém. Eu
queria que ela estivesse aqui comigo, sabe?
Meu olhar instintivamente voou em direção à Skyler, que tinha
sido colocada em cima de uma mesa ao lado de Colin Leblanc e sua
irmã igualmente ruiva.
— Eu sei como é, rapaz — respondi com um suspiro cansado,
voltando a encarar Bradley.
Ele olhou na mesma direção que eu olhei anteriormente e franziu
a testa, confuso.
Mas seu olhar logo voltou a se concentrar no meu e ele bebericou
a cerveja.
— Com todo respeito, treinador — começou ele, o tom de voz
sério —, o senhor está brincando com algo muito perigoso.
Senti meus músculos se enrijecerem.
— O que quer dizer? — perguntei, me sentindo preparado para
entrar na defensiva.
Bradley deu de ombros e olhou em direção à Skyler novamente.
— Posso parecer inocente, mas sou bem observador — disse,
encolhendo levemente os ombros. — Não estou te acusando de
nada, mas, falando sobre uma situação hipotética, se o senhor
estiver interessado na irmã de Killian Saint Clair, é melhor parar
antes que a situação piore. E digamos que eu tenha visto como olha
para ela ou como ficou estranho quando aquela modelo platinada
disse que te viu jantando com Sky. O senhor não é bom mentiroso.
Senti vontade de explodir.
Eu tinha quase o dobro da idade de Bradley, muito mais
experiências e com certeza mais poder. Quem ele achava que era
para me dizer essas coisas?
Mas, ao olhar em minha volta, tive que engolir o fato de que
Bradley estava certo. Todos os rapazes estavam felizes
comemorando a vitória da noite, eu não queria ver decepção em
seus rostos, muito menos raiva. E eu sabia que isso iria acontecer se
eu me voltasse contra uma regra que eu mesmo criei. Todos iriam se
doer por Killian.
— Não vou te decepcionar, Bradley, se é isso que teme — falei
com seriedade, voltando a encarar o rapaz um pouco mais baixo do
que eu.
— A questão não é essa. — Ele negou com a cabeça e pousou a
garrafa de cerveja no bar. — Skyler tem se tornado como uma irmã
para mim e eu a vi passar as duas últimas semanas trancada no
quarto. Não houveram convites para ver o processo de uma nova
pintura, noites de skincare ou qualquer coisa que ela goste. Eu e os
outros rapazes estamos respeitando o espaço dela, mas me dói
saber que tudo isso pode ter vindo devido a uma desilusão com o
senhor… Hipoteticamente, é claro.
Senti meu coração ficar pequeno dentro do peito ao imaginar
Skyler sem fazer as coisas que mais gostava.
— Então você quer protegê-la? — perguntei, franzindo a testa.
Bradley sorriu.
— Assim como eu faria se tivesse uma irmã.
— Killian sabe? — Eu precisava saber se mais pessoas tinham
notado a situação.
— Não. Para a sorte de vocês, os outros não são tão
observadores ou discretos quanto eu. — Ele voltou a pegar a
cerveja. — Além disso, apesar de respeitar a regra sobre não se
envolver amorosamente com familiares dos outros jogadores, eu não
concordo com ela e fico extremamente satisfeito por ver que o
senhor sentiu na pele o que é gostar da única pessoa que não
deveria. — Ele bebericou a cerveja. — Eu também me apaixonei por
alguém que não deveria e com frequência tenho que aguentar os
surtos dela, mas o que posso fazer? Meu coração está envolvido.
— Você é um romântico, Park — conclui com divertimento.
Ele deu de ombros.
— O senhor também, só está com medo de admitir.
— Não posso abrir mão de tudo o que conquistei por causa de
um romance — falei, seco, encarando um ponto qualquer.
— Então, nesse caso, vou te pedir educadamente para que fique
longe de Skyler. Ela merece alguém que faria de tudo para estar com
ela e se você não é essa pessoa, deixe o caminho aberto para que
ela apareça.
Bufei.
Que merda.
Essa era a parte mais difícil.
Desistir dela.
— Posso te pedir para manter a discrição? — perguntei com o
coração acelerado. — Não que tenha algo acontecendo, mas, ainda
assim…
Jamais imaginei ter que pedir algo assim a algum dos rapazes.
— Eu não quero te prejudicar e sei que Skyler odiaria que eu me
enfiasse nas escolhas dela, mas concordo em manter a discrição se
você concordar em não magoá-la mais do que já deve ter feito.
Bradley estava literalmente me colocando contra a parede.
Eu poderia esperar isso de Killian ou até de Colin, mas nunca
dele.
— Só quero o melhor para ela — respondi, enfim, concordando.
— Obrigado, Park.
Ele sorriu e concordou, os olhos brilhando ao ver alguém atrás de
mim.
— Bom papo, treinador. Preciso ir. — Ele deu um tapa distraído
em meu ombro e se afastou.
Me virei, avistando uma loira de braços cruzados e expressão
carrancuda.
Devia ser a namorada dele.
Eu ainda estava um pouco impactado por nossa conversa e
decidi que era hora de ir embora. Todos iriam estranhar minha saída
repentina, mas eu sabia que ninguém faria perguntas. Se Bradley já
tinha notado algo sobre eu e Skyler, era questão de tempo para que
mais pessoas notassem.
Passei o olhar uma última vez pelo lugar lotado, mas dessa vez
não encontrei mais Skyler. Era melhor assim.
Depois de pagar minha bebida, enfiei as mãos nos bolsos da
calça e abaixei a cabeça, na tentativa de sair dali sem ser notado.
Por sorte, tive sucesso nessa empreitada e depois que eu deixei
o estabelecimento e fui até o estacionamento, presenciei uma cena
que fez minha boca ficar amarga e meu coração gelar.
Skyler.
Nos braços de outro homem.
Com a boca pressionada na dele.
Eu não podia acreditar.
Me senti congelar por um instante, tentando decidir se corria até
lá para socar a cara do maldito que ousava beijar meu amor ou se
me enfiava no carro e ia embora antes que o beijo se tornasse algo a
mais.
Me decidi pela segunda opção.
Não seria legal causar uma cena e tinha mais pessoas passando
por ali.
Além disso, prometi deixar o caminho aberto para outra pessoa
que fosse digna do coração de Skyler.
Mas eu tinha que confessar: a coisa mais difícil e dolorosa que já
fiz na vida foi ir embora do Reinor’s sabendo que Sky estava lá nos
braços de outro homem.
— Simplesmente não rolou, sabe? — expliquei para Claire na
volta.
Era madrugada e ela fez questão de me dar carona para casa
apenas para saber sobre o cara que me levou para fora do Reinor’s
no meio da dança.
Killian não gostou muito. Segundo ele, eu podia voltar de carona
com eles, mas eu sabia que toda essa implicância era porque eu
estaria com Claire.
Ainda assim, aceitei voltar com ela.
— Ele era um gato — disse ela com um sorrisinho.
Lennox, o rapaz que conheci, era mesmo um gato.
Alto, de pele escura, um sorriso contagiante e um perfume que
levaria muitas à loucura. Ele era advogado, tinha vinte e sete,
morava em Montreal desde o início do ano e praticamente implorou
para que eu o acompanhasse até o lado de fora para conversarmos
sem muita gente à nossa volta.
Eu aceitei, não porque estava muito interessada, mas porque
seria sacanagem não dar uma chance ao cara só porque outro
insistia em não sair da minha mente.
E foi assim que, depois de cinco minutos de conversa, ele me
puxou pela cintura e me beijou.
Eu tentei gostar.
Tentei mesmo.
No entanto, não o afastei de imediato.
Mas era uma merda quando o beijo de uma pessoa se
transformava em parâmetro para todos os outros.
O beijo acabou no instante em que comecei a chorar e então fui
obrigada a explicar que estava apaixonada por uma pessoa que não
podia ter algo sério comigo. Lennox compreendeu, mesmo frustrado
por ter escolhido a garota errada para paquerar essa noite, e me
consolou, dizendo que às vezes a pessoa certa não é aquela que
queremos de primeira.
— Você pegou o contato dele? — perguntou Claire, me tirando de
meus pensamentos.
— Ele passou, mas eu não sei se vou manter contato.
— Não vai me dizer que é por causa daquele Malditorick — Claire
revirou os olhos após repetir o apelido que deu para Rick e eu ri.
— A gente marcou de se encontrar na sexta para terminar a parte
burocrática envolvendo a pintura que fiz pra Patins Stanwick —
contei, porque sabia que podia confiar em Claire —, mas vai ser algo
rápido. Podiamos sair depois.
— A galera da universidade vai fazer uma festa na casa de
alguém, você pode ir comigo. — Ela me olhou quando paramos no
semáforo. — Terá vários veteranos gatos lá. Quem sabe algum deles
tire o Malditorick da sua cabeça.
Eu achava difícil, mas aceitei.
Era melhor do que não tentar nada.
— Sexta, então?
— Combinado.

Ao entrar em casa, descobri que os meninos não tinham voltado


direto para cá. Talvez tivessem recebido um convite de última hora e
decidiram passar a noite fora. Brad estava com a namorada e
provavelmente também não voltaria tão cedo. A casa estava vazia.
E senti que era o momento perfeito para começar algo novo.
Uma nova pintura.
Subi até meu quarto pulando os degraus com rapidez e tirei o
sobretudo, jogando-o sobre a cama. Abri a caixa do canto e escolhi
uma tela de tamanho médio que estava lá. Depois de encaixá-la no
cavalete, peguei meus pincéis e bisnagas de tinta e encarei a tela
imaculada, me perguntando o que poderia sair de mim hoje.
Depois de pegar um pouco de tinta azul com um pincel preciso,
comecei a deslizar com cuidado, tentando fazer pequenas linhas
retas para iniciar, mas elas insistiram em ficar tortas no final.
— Merda! — gritei, porque estava sozinha em casa e podia fazer
isso e rabisquei o quadro com o pincel, estragando a tela que
poderia ser usada para outras pinturas no futuro.
Peguei mais um pouco de tinta, dessa vez em um pincel maior, e
deslizei pelo quadro com agressividade, gritando “merda” a cada
traço, sentindo a tinta respingar sobre mim, mas não parei.
Quando me cansei do pincel, comecei a utilizar as mãos, que
ficaram manchadas de diversos tons de tinta conforme eu as
espalhava pelo quadro enquanto lágrimas escorriam por meus olhos.
De tristeza? Raiva? Liberdade? Todos estes?
Só parei o que fazia quando fiquei sem fôlego e dei um passo
para trás, encarando minha criação. Uma mistura de cores e
pinceladas sem começo ou fim, sem ordem ou intenção. Uma
criança poderia ter feito.
E, ainda assim, senti que todo o peso que guardei nesses últimos
dias foram colocados ali naquele quadro. Estava tão acostumada a
pintar quando me sentia feliz, a criar desenhos bonitos e civilizados,
que nunca imaginei que descontar meus sentimentos nas cores
poderia ser tão libertador.
Caí na cama ciente de que estava suja de tinta, mas não me
importei.
— Sky! — Killian escancarou a porta, os olhos arregalados e a
respiração ofegante.
Ele olhou para o quadro, depois para mim e sua expressão
pareceu tomada de curiosidade e preocupação.
— Eu… Ouvi gritos — disse, confuso, e deu um passo para
dentro do quarto. — Desviei do caminho para deixar Colin na casa
da família, mas quando cheguei… Você está bem?
— Eu estava me libertando — expliquei, encarando o teto. —
Deite aqui, Kill — convidei, dando pequenos tapas no colchão.
Meu irmão demorou alguns segundos para decidir se devia ou
não se deitar ao meu lado, mas por fim decidiu que era o melhor a se
fazer e se aproximou.
O colchão afundou quando ele deitou.
Depois de alguns minutos compartilhando um silêncio
confortável, me virei para Killian.
— Você me perdoa?
— Te perdoar? — perguntou com as sobrancelhas arqueadas. —
Mas… Por quê?
— Por amar alguém que não devia.
Killian se sentou abruptamente.
— O que… É o Colin, não é? Desgraçado, eu vou quebrar a cara
dele… — rosnou com as mãos fechadas em punhos.Pousei a mão
no ombro de Killian e o puxei para baixo, forçando-o a voltar a se
deitar.
— Antes de matar o pobre Colin, saiba que não é ele —
tranquilizei, notando que sua expressão se suavizou, mas nem tanto.
— Então quem é?
Eu queria contar.
Queria mesmo.
Entretanto, Killian, infelizmente, demonstrou não estar pronto
para saber a verdade.
Eu não podia culpá-lo.
Mas, ao jogar toda a minha raiva naquele quadro, descobri que
quem estava proibido de amar por causa de uma regra estúpida era
Maverick, não eu. E eu tinha o direito de reconhecer meus
sentimentos para aprender a lidar com eles.
— Você vai saber… Algum dia — respondi, sorrindo para acalmá-
lo. — Mas não é alguém do time.
— Isso me tranquiliza. — Killian voltou a encarar o teto.
Bem… Tecnicamente Maverick não fazia parte do time, certo?
Ele treinava o time, mas não fazia parte dele.
— Ainda assim, eu preciso saber… — Voltei a encarar meu
irmão. — Me perdoaria por amar alguém que você não concorda?
— Eu… — Ele engoliu em seco e me encarou, parecendo tentar
me analisar. — Se ele te fizer bem, acredito que sim. Mas… Essa
conversa toda está me deixando confuso.
— Por favor, não fique. Só quero ter certeza de que sempre terei
meu irmão ao meu lado.
— É claro que vai — respondeu Killian, como se fosse óbvio. —
Mas você vai me contar quem é ou me fará morrer de curiosidade?
— Sinto muito, irmão, mas dessa vez será a segunda opção.
Prometo fazer um velório digno de um jogador de hóquei. Aliás,
parabéns por hoje, você foi espetacular.
— Você entendeu alguma coisa do jogo?
— Quase nada — admiti.
Killian riu e se levantou.
— Já é um avanço. Da última vez foi “nada”, agora acompanhou
um “quase”. Se continuar nesse ritmo, logo vai chegar no “tudo”.
Sorri.
Eu esperava que sim.
Faltavam apenas cinco dias para o Natal, a cidade estava
lotada de pessoas comprando coisas para a ceia, decoração ou
presentes. Os treinos só voltariam a acontecer em janeiro, assim os
rapazes teriam uns dias para descansar. Eles mereciam, depois de
terem dado tudo de si no jogo da semana passada.
Solange também tirou uns dias para descansar, dias que ela iria
aproveitar para ir visitar a família no Brasil e prometeu me trazer
alguma coisa típica e deliciosa.
Hugh me ligou, perguntando se eu iria até Toronto passar o Natal
com a família, mas eu não estava com vontade. Na verdade, meu
maior desejo era me trancar em casa com meu cachorro, uma
lasanha de micro-ondas e uma garrafa de vinho caro. Daria um jeito
de visitar minha família quando me sentisse melhor.
Já era terça-feira e a visão de Skyler no estacionamento do
Reinor’s continuava a me atormentar. Não foi como quando eu vi
minha ex, quinze anos atrás, atracada ao meu melhor amigo da
época.
Foi pior.
Eu não senti nojo, como da outra vez, mas agonia. Minha mente
insistia em dizer “está vendo o que você fez, Maverick?”, porque sim,
fui eu quem afastou Sky e agora tinha que lidar com o fato de que ela
estava seguindo em frente.
Passei as noites seguintes àquela cena sem conseguir dormir,
atormentado por ainda querer aquela morena ao meu lado na cama,
fazendo seus desenhos invisíveis e falando sobre coisas que
provavelmente jamais iriam acontecer.
Eu a queria desesperadamente e precisava urgentemente esfriar
a mente, algo que eu não estava conseguindo fazer em minha
própria casa. Sendo assim, fui para o único lugar no mundo que eu
conseguia pensar um pouco e relaxar, se tivesse sorte: o centro de
treinamento.
Ele estava fechado, mas Tony se prontificou a ir lá abrir para mim
assim que liguei para ele, explicando que precisava passar uns
minutos no gelo.
Acontece que os minutos se tornaram horas, e o pobre Tony, que
me observava do lado de fora do rinque, parecia preocupado.
Com os patins nos pés e o stick nas mãos, lancei mais uma vez
com toda a minha força o disco para dentro do gol, ouvindo o
estrondo que se seguiu. Tony pulou de susto.
— Cento e oito — murmurei, buscando o disco e voltando até
minha posição anterior.
Ergui o stick na altura adequada depois de posicionar o disco na
minha frente e me preparei para mais uma tacada, mas acabei
atingindo o chão com força demais e o quebrei.
— Por favor, me diz que esse é um daqueles feitos apenas de
madeira que estão aí mofando há uns vinte anos — implorou Tony,
secando o suor da testa.
De calor com certeza não era.
— É sim — respondi, patinando até ele, abandonando o objeto no
meio do caminho. — Parece que eu destruo tudo o que toco —
resmunguei.
— Pobre homem, parece perturbado. — Tony me encarou. — O
que está acontecendo, Rick?
— Estou apenas colhendo os frutos que plantei — expliquei,
deslizando as mãos pelos meus fios de cabelo suados. — Nunca
imaginei que usaria essa palavra para me dirigir a mim mesmo, mas
me sinto patético. Tudo isso por causa de uma…
— Mulher? — Ele abriu um sorrisinho. — Solange me contou
algumas coisas, mas antes que fique bravo com ela, saiba que além
de mim, ninguém mais sabe. — Ele deu um tapa no meu ombro. —
Bonito, forte e rico. O que te impede de ficar com essa mulher?
Eu ri.
Aí entrava o motivo de eu me sentir patético.
— Eu mesmo. E o amor ao hóquei, eu acho. Criei uma regra que
não quero quebrar ou vou acabar decepcionando muitas pessoas e
muito provavelmente será o fim da minha carreira se quiser ficar com
Sk… Com a mulher em questão.
— Pelo jeito, já considerou essa possibilidade diversas vezes. —
Tony arqueou as sobrancelhas levemente grisalhas.
Concordei.
Mais vezes do que poderia contar, sempre me perguntando se
seria mesmo muito ruim ou se eu seria capaz de lidar com tudo isso.
— Sabe, rapaz… — começou Tony, parecendo alguém que sabia
bem sobre o que estava falando. — Sempre te admirei muito, sua
determinação e sua dedicação ao hóquei, mas, nos últimos tempos
tenho me perguntado quantos anos mais levará para você deixar de
ser ativo aqui dentro e se tornar apenas história. Cinco, talvez? Dez,
com sorte?
— O que quer dizer? — Cruzei os braços, sentindo um frio
percorrer minha espinha ao começar a entender as palavras de Tony.
— Bem, não é novidade que no mundo do esporte você precisa
ser jovem, forte e determinado. Não me leve a mal, Maverick. Você é
todas essas coisas, mas não está mais tão jovem quanto manda a
regra e é uma questão de tempo até que surja um novo destaque e
sua foto vá parar nas paredes desse lugar como alguém que fez
história, mas que não tem mais utilidade.
— Não sei se me ofendo ou se agradeço a sinceridade — bufei e
me virei para continuar a patinar, mas Tony me segurou.
— Eu ainda não terminei — disse com o tom sério, me fazendo
parar. — O que quero dizer é que o hóquei vai te dispensar em
algum momento, mas o amor verdadeiro… Ele vai estar com você
pelo resto dos seus dias, mesmo que você tenha cabelos brancos,
uma barriga menos definida e o dobro da idade de hoje.
Encarei o homem, chocado por nunca ter pensado dessa
maneira.
Eu sabia que em breve alguém mais novo e mais forte iria surgir
e tomar meu lugar, todos os dias ao sair da cama eu me lembrava de
que esse momento estava cada vez mais perto, mas fazia de tudo
para fingir que não.
— E como saber… Como saber se é verdadeiro? — perguntei,
encarando-o por cima do ombro.
Tony desviou o olhar, parecendo pensativo.
— Bem, não tem uma fórmula, mas eu acredito que o amor se
desenvolve com o tempo. Quanto mais defeitos vocês conhecerem
um do outro e quanto mais se ajudarem nas fases difíceis, então
saberão que é verdadeiro. Mas, como não te vejo atormentado assim
por uma mulher desde… Bem, nem me lembro da última vez, ouso
dizer que você não deve ignorar o sentimento. Você é um homem
experiente, Maverick, e não iria virar a cabeça por alguém se não
tivesse sentimentos realmente fortes por essa pessoa.
Isso era verdade.
Ao contrário da maioria dos jovens que se apaixonavam à cada
esquina, eu tinha os pés no chão e dificilmente deixava meus
sentimentos virem à tona. Se eles estavam aqui agora, só podia
significar algo.
— Não sei se te abraço por ter me feito pensar ou se te bato por
ter me deixado mais confuso — brinquei, saindo do rinque.
— Prefiro que não faça nenhum dos dois. Seu abraço é forte
demais às vezes e estou poupando forças para quando Angie voltar
do Brasil.
Sorri.
Esses dois formavam um casal improvável, mas que eu, com
certeza, iria apoiar.
Ainda assim, apesar de perturbado pelo choque de realidade,
Tony tinha me falado coisas que eu não tinha parado para pensar e
meus traumas do passado podiam fazer parte disso.
Algo dentro de mim me fazia temer o momento que Skyler me
deixaria, talvez quando perdesse a graça ou quando não tivéssemos
mais assuntos para conversar e isso era um dos motivos para me
fazer escolher o hóquei.
Acontece que, em breve, o hóquei também iria me abandonar.
Suspirei baixo, segurando meus patins pelos cadarços e os
jogando por cima de um dos ombros.
— Agradeço pelo papo e por ter aberto este lugar para mim —
falei para Tony, sorrindo levemente. — Acho que está na hora de ir
para casa pensar um pouco.
— Esse é seu problema, Maverick. Você pensa demais e se
esquece que tem um coração aí dentro que também sente vontades
e faz escolhas. Só uma vez, tente dar ouvidos a ele, está bem? —
Tony começou a apagar as luzes, me dispensando.
Ele não fazia ideia de como suas palavras me ajudaram.

Depois de jantar e dar ração para Zorro, subi para o segundo


andar, pronto para tomar um banho e assistir qualquer coisa na TV
capaz de me distrair, mas parei algumas portas antes do meu quarto.
Justo naquela que tanto evitei nas últimas semanas.
A sala de pintura de Sky.
Não tive coragem de entrar lá e pedi para que Solange não
mexesse em nada. Queria que tudo ficasse intacto, como se Sky
ainda estivesse ali dentro fazendo sua bagunça e criando sua arte.
Às vezes, eu ainda tinha a impressão de ouvi-la cantar baixinho, mas
temia entrar lá e acabar com a fantasia.
Mas, fazendo o que Tony aconselhou e seguindo meu coração,
tomei coragem e pousei a mão na maçaneta gelada.
Agora é só girar, Rick.
Só girar.
Abri a porta lentamente e acendi a luz. Dei um passo para o lado
de dentro e paralisei, sentindo o cheiro de tinta que eu começava a
gostar. Tudo estava no mesmo lugar que a morena deixou da última
vez que esteve aqui, com alguns dos pincéis ainda sujos em um
canto, suas cerdas duras devido à tinta que secou e seu caderno de
margaridas no centro da mesa.
Me aproximei dele e deslizei os dedos pela capa, imaginando
Skyler concentrada enquanto colocava cores nela e sorri. Sem me
aguentar, o peguei em mãos e o abri, dando de cara com o esboço
que já vi outra vez, que agora tinha se tornado uma linda tela. Passei
para a próxima folha e identifiquei a silhueta de Solange enquanto
ela trabalhava em algo na cozinha e para a próxima, sorrindo ao ver
Zorro também retratado ali.
Então eu me vi.
Em todas as outras folhas.
Nu ou vestido, acordado ou não, sorrindo ou concentrado, eram
diversos esboços meus em diferentes situações, a maioria feitos em
momentos que não percebi.
Skyler me retratou em suas páginas.
Ela tirou tempo para me observar, para capturar meus detalhes e
eternizá-los.
E eu tive coragem de dispensá-la por causa de uma regra.
Fechei o caderno abruptamente e o coloquei no mesmo lugar de
antes, sentindo ódio por ter sido tão estúpido. Tony estava certo.
Meus dias estavam contados no hóquei, eu não podia deixar de
viver, de amar e ser amado ou acabaria perdendo tanto o hóquei
quanto Skyler.
E eu preferia Skyler.
Agora sabia disso.
Ou sempre soube, só não tive coragem de afirmar isso para mim
mesmo.
A última coisa que eu queria era decepcionar os rapazes do time,
em especial Killian Saint Clair, que era tão dedicado e educado. Na
verdade, ele me lembrava de mim mesmo no passado, em uma
época que a pessoa que eu mais admirava era meu treinador.
Talvez, se eu fizesse as coisas com calma e conversasse
abertamente com ele e com o restante do time, eles iriam entender,
assim como Bradley pareceu entender. Ou, mesmo se não
entendesse, eu teria feito minha parte.
E poderia finalmente ficar com Sky.
Perder a admiração do meu time e meu posto de técnico era um
preço a se pagar por ela e depois de tanto relutar, decidi que estava
disposto a isso.
Quando terminei com Sky no banheiro na outra noite, jamais
imaginei que ela tomaria conta da minha mente e do meu coração
cada vez mais, me deixando agoniado. Na verdade, eu torci para que
a cada dia seu rosto ficasse mais apagado em minha mente, mas
tudo o que aconteceu foi o extremo contrário e eu temia não
sobreviver se ficasse mais tempo longe dela.
Talvez eu estivesse exagerando, mas era como me sentia.
Tudo isso começou com um lance entre nós, mas eu estava
disposto a ir para o próximo degrau dessa relação.
Mas antes teria que fazê-la me perdoar e confiar em mim.
Cheguei na mansão de Maverick alguns minutos antes do
marcado, para garantir que eu não iria me atrasar para a festa
universitária que Claire me convidou para ir após finalizarmos toda
essa burocracia. Iríamos nos encontrar lá, porque se ela viesse até
aqui provavelmente picharia “MALDITORICK” nas paredes da
propriedade e eu queria evitar.
Coloquei um vestido de veludo creme colado ao corpo e um
sobretudo branco quentinho que alcançava até os joelhos. Como
estava com preguiça de fazer uma maquiagem muito elaborada, fiz
algo leve e passei um batom vermelho, porque sabia que ele daria a
impressão de que passei horas em frente ao espelho.
Passei essa última semana me sentindo um pouco mais leve, foi
diferente das anteriores. Eu consegui pintar, não só quadros, mas
também minhas unhas, algo que eu fazia raramente. Com Colin na
casa da família e Bradley na da namorada, Killian e eu tínhamos a
casa só para nós e era maravilhoso. Eu gostava da presença dos
rapazes, mas ter um momento de silêncio, sem temer andar pela
casa e dar de cara com uma garota saindo do quarto de Colin ou
com Brad gritando com a namorada no celular era algo bom.
E eles logo estariam de volta.
Mal daria para sentir saudades.
Claire iria direto para a casa dos pais depois da festa desta noite,
afinal, eles queriam a família toda reunida. Meus pais nos
convidaram para passar o Natal lá, mas dessa vez Killian negou e eu
decidi ficar aqui com ele.
Respirando fundo algumas vezes para tomar coragem, ergui a
mão fechada em um punho para bater na porta, mas não precisei de
mais do que dois toques. A enorme porta de madeira foi aberta,
quase como se já houvesse alguém atrás dela me aguardando e
Maverick Stanwick surgiu no meu campo de visão, vestido da forma
impecável de sempre.
Um suéter que colava perfeitamente nos braços fortes, calças
que destacavam as coxas grossas, o cabelo penteado para trás com
maestria e um sorriso de tirar o fôlego.
Era uma merda pensar que seu sorriso ainda tirava o meu fôlego,
mas, afinal, existia um ser vivo capaz de resistir ao sorriso de
Maverick? Eu duvidava.
— Uau — foi a primeira coisa que disse, me dando espaço para
passar. — Seja bem-vinda.
— Tenho medo dessas duas palavras, afinal você só falou elas
na vez que fingiu não me conhecer — resmunguei, entrando na
casa, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo.
— Acontece que você será sempre bem-vinda aqui, não importa
se é a primeira ou a centésima vez que está entrando por essa porta.
— Maverick a fechou e se virou para mim. — Você está… Impecável.
Arqueei as sobrancelhas, encarando-o pelos cantos dos olhos.
Ele estava agindo estranho.
Seu tom de voz estava amável demais, sua expressão serena e o
sorriso insistia em não deixar seus lábios.
— Eu tenho um compromisso mais tarde — expliquei, indicando o
corredor com a cabeça. — Então, será que podemos ir rápido com
isso?
Estar nessa casa me dava medo.
Eu temia perder a razão e me jogar nos braços dele.
Isso, é claro, não iria acontecer, porque eu estava brava demais
para sucumbir à tentação.
— É claro. — Ele me deixou ir na frente.
Conforme caminhava, não deixei de sair um arrepio na nuca,
como se o olhar de Maverick estivesse conseguindo me queimar.
— Em qual sala?
— Do divã — respondeu e senti um sorrisinho no seu tom de voz.
Ah, ele sabia que eu não precisaria de mais explicações.
Por seu tom, eu sabia que tinha feito de propósito.
Será que queria me provocar?
Eu não iria entrar nesse jogo.
— O que você está tentando? — perguntei, parando
abruptamente de andar e me virando. — Fala logo ou eu vou
embora.
O homem ergueu as mãos em rendição.
Era uma cena engraçada: Maverick, no mínimo vinte centímetros
mais alto do que eu, se rendendo a mim.
— Eu não estou tentando nada! — respondeu com um tom bem-
humorado, mas então tossiu baixo e ficou sério. — Não estou
tentando nada — falou novamente, dessa vez sem rir.
Bufei baixo e lancei um olhar para Maverick antes de me virar e
continuar a andar.
A lareira estava acesa quando entrei na sala. Meu quadro
amassado estava em cima dela. O divã continuava no centro da sala.
Os patins de ouro continuavam no mesmo lugar. Na verdade, tudo
estava igual, a não ser o homem sentado no centro do divã com um
óculos na ponta do nariz e papéis em mãos.
— Gostaria de tirar? — perguntou Maverick, apontando para meu
sobretudo.
Eu aceitei, porque a sala estava bem aquecida.
Depois de arrancá-lo do corpo, o entreguei a ele.
— Por favor, Skyler Saint Clair, certo? Poderia se sentar? — O
homem sério apontou para a poltrona.
Assenti e me sentei, puxando o vestido para baixo no processo.
Era uma mania.
Mas os olhos atentos de Maverick seguiram meu movimento e
aquele músculo insistente em sua mandíbula que sempre saltava
quando ele sentia desejo deu as caras. Seus olhos escureceram e
ele comprimiu os lábios, parecendo em uma luta interna.
Arqueei as sobrancelhas, o desafiando a se juntar logo a nós
para resolvermos tudo isso.
Assim que ele se sentou ao lado do advogado, o homem
entregou uma folha para cada um de nós e começou suas
explicações, mas não prestei atenção em quase nada.
Maverick, sentado no divã em uma posição relaxada e com as
pernas abertas, me encarava por cima da folha de forma insistente.
A calça colava perfeitamente em suas pernas firmes e musculosas,
as quais já me envolveram diversas vezes no passado. Em
determinado momento, ele se espreguiçou, erguendo os braços, o
que fez com que o suéter subisse alguns centímetros, revelando um
pequeno pedaço do abdômen.
Ele era um mentiroso.
Tinha tramado tudo isso.
E ainda olhou nos meus olhos e disse que não.
Maverick sabia o efeito que tinha sobre mim e agora me
confundia.
— Skyler? — chamou o advogado, provavelmente não pela
primeira vez e ouvi o riso baixo do homem ao lado dele que se
divertia com a situação.
— Perdão — murmurei, encarando somente o advogado, porque
sabia que era mais seguro. — Pode repetir?
— Qual parte?
— Somente o fim — pedi, mesmo sem ter ouvido as palavras
anteriores.
— Bem… — O homem ajeitou a gravata. — Maverick preparou
um cheque de dez mil dólares, você pode descontá-lo a qualquer
momento em qualquer parte do mundo. Está de acordo?
— É claro.
Maverick tirou um papel do bolso e o colocou sobre a mesinha de
centro, me dando a oportunidade de observar sua mão forte e
máscula, com as veias marcadas em algumas partes, sumindo por
debaixo da manga do suéter.
Peguei o cheque e o dobrei.
Era melhor não prestar mais atenção nas mãos dele ou em
qualquer outra parte.
— Por fim, se concorda com tudo o que foi falado, assine aqui. —
Ele me estendeu uma caneta e indicou onde assinar.
Me inclinei para frente, esquecendo que isso deixaria a curva dos
meus seios em evidência sobre o vestido e assinei tudo o que ele me
pediu.
Quando terminei, foi a vez de Maverick assinar, mas ele parecia
tenso, seus olhos vez ou outra voando para meu decote.
Ele demorou mais do que eu, mas conseguiu concluir a tarefa.
Quando ficou satisfeito, o advogado entregou uma cópia para
cada um de nós e se levantou, alegando que já conhecia a saída.
Como uma pessoa educada — e normal — o agradeci e desejei
uma boa noite.
Maverick, por outro lado, ficou em silêncio, me encarando com
aqueles olhos azuis desejosos enquanto apoiava a cabeça na mão.
Sua respiração não estava como antes, mas levemente entrecortada
e eu consegui notar isso.
Me levantei, indo até o sobretudo deixado no canto, e enfiei o
cheque em um dos bolsos ao vesti-lo.
— Você transou com ele?
Me virei abruptamente ao ouvir a pergunta baixa e séria de
Maverick.
Ele tinha perguntado isso a mim?
Olhando em volta, constatei o que já sabia: só tínhamos nós dois
na sala, então sim, foi para mim.
— Você está louco? Do que está falando?
— Do homem que vi você beijar no estacionamento do Reinor’s.
— Rick se levantou lentamente, parecendo um gato que acabou de
acordar, mas não desviou o olhar.
Levei alguns segundos para entender o que ele queria dizer e
então congelei.
Ele tinha visto?
Como?
— Não entendo porque você se importa. — Dei de ombros. — Me
espionando por aí, tendo interesse nas coisas que eu faço, não tem
algo mais importante para fazer? — resmunguei para mim mesma,
mas sabia que Maverick tinha ouvido.
— Eu me importo com você, Skyler. — Ele deu um passo em
minha direção. — Nunca deixei de me importar e acho que você
sabe disso.
— Se tudo isso significa que se importa comigo, nem imagino
como age quando não se importa com alguém. — Soltei uma risada
amarga. — Sério. Você precisa sair, conhecer gente nova, precisa se
esquecer de mim. Ou se esquece que tudo isso só está acontecendo
justamente por ideia sua?
Maverick balançou a cabeça e massageou a testa, parecendo
cansado.
— Droga, eu sei, e me odeio por isso, talvez sempre irei me odiar
por ter tido a coragem de ter feito isso com você, mas Sky, por
favor…
— Se vai pedir perdão, nos poupe — pedi, erguendo a mão para
fazê-lo se calar. — É mais fácil lidar com isso tudo sentindo raiva de
você — falei, dessa vez mais baixo.
— Eu não quero decepcionar meu time e você não quer magoar
seu irmão, mas…
— Acontece que eu não tenho motivos para magoar Killian! Essa
regra maluca não me inclui, eu tenho o direito de me apaixonar por
quem quiser e Kill teria que entender isso mais cedo ou mais tarde.
Foi você quem decidiu seguir por outro caminho e eu concordei,
mesmo que isso tenha me quebrado por dentro. Então não tente
voltar atrás agora, Maverick.
— Eu sei — sua voz saiu mais baixa e calma conforme ele
encarava os próprios pés. — Não tenho esse direito.
Graças a Deus ele entendia isso.
Me virei, preparada para sair dali, mas a mão quente e firme de
Maverick tocou a minha, me fazendo parar.
— Mas… — continuou, a voz próxima do meu ouvido. — Antes
que você vá embora, quero te pedir uma coisa.
Fechei os olhos, sabendo que deveria ignorar suas palavras e
continuar a andar, mas o que eu poderia fazer?
Estava fraca.
— Fale.
— Não vá.
Só podia ser brincadeira.
— Maverick, eu…
— Eu sei que não tenho o direito de te pedir para ficar, não
quando fui eu mesmo quem te afastou, mas se existe dentro de você
o sentimento que existe dentro de mim, por favor, me dê mais uma
chance…
— E o que? — Me virei para ele e arqueei as sobrancelhas. —
Por quanto tempo acha que vai conseguir me manter em segredo até
que ocorra mais um jantar onde alguém vai dizer que nos viu? As
desculpas vão se esgotar, você sabe.
— Quem disse que eu pretendo manter isso em segredo?
Franzi a testa e encarei o rosto esperançoso de Maverick, sem
entender o que ele queria dizer.
Ou talvez eu tenha entendido, mas era absurdo demais. Ele
jamais jogaria tudo pro alto apenas para ficar comigo. Não o homem
que eu conhecia e que vivia para o hóquei.
— Você fica linda com essa carinha de dúvida — disse ele,
sorrindo com os cantos da boca e tocou meu queixo com delicadeza.
— Pensei que seria capaz de ficar longe de você e deixar para trás
tudo o que a gente teve, mas eu estava completamente enganado.
Você é… Inesquecível.
— Ninguém é inesquecível — murmurei com a voz rouca,
sentindo minhas pernas fracas pela proximidade de Rick.
— Aparentemente, você é a exceção. — Ele deslizou o polegar
por meu lábio inferior e depois encarou o batom vermelho que pintou
sua pele. — Para mim. Jamais me esquecerei de você.
— Mas e tudo o que você construiu? Todos que vão se
decepcionar quando a notícia correr por aí? Pelo amor de Deus,
você vai perder o posto de técnico! — exclamei, tentando devolver
um pouco de juízo para a cabeça desse homem.
— Deixe isso comigo. Não é sua responsabilidade, já sofreu mais
do que devia com toda essa situação.
— Rick…
— Sky — sua voz firme não deixou espaço para meus
argumentos.
Engoli em seco e ergui a mão para tocar seu rosto, ainda sem
saber se deveria fazer isso.
Se me permitisse tocar Maverick, sabia que me perderia.
Ele estava mesmo disposto a tudo isso? Por mim?
Meu coração estava quase errando as batidas.
Ele provavelmente já tinha pensado muito no assunto ou não
estaria tão decidido.
Eu deixaria em suas mãos.
— Não transamos — murmurei, me lembrando da pergunta que
ele fez antes. — Eu… Não consegui. Eu queria outra pessoa.
— Graças a Deus — ouvi Rick murmurar antes de me empurrar
contra a parede e colar o corpo no meu, me pressionando ali.
Quase conseguia sentir seu coração acelerado pressionado
contra mim ou talvez fossem as batidas do meu próprio me dando
essa impressão.
— Vou te compensar — murmurou contra minha boca, o hálito
quente se misturando ao meu. — Prometo.
— Está na hora de começar a cumprir suas promessas, senhor
Stanwick. — Fiquei nas pontas dos pés e agarrei sua nuca, puxando-
o ainda mais em minha direção, como se assim pudéssemos nos
fundir.
Rick me beijou com força e vontade, o tipo de beijo nada
romântico, que deixava claro o tamanho do desejo primitivo que
percorriam nossos corpos. Ele puxou uma das minhas pernas para
cima, fazendo meu vestido subir, mas não me importei. Envolvi seu
quadril com aquela perna, o apertando contra mim, sentindo o
volume dentro de sua calça dar as caras.
— Já, amor? — perguntei em um tom provocante, me esfregando
contra ele.
— Para você, é impossível não ficar duro em segundos, amor —
seu tom de voz rouco me excitou.
Rick puxou minha outra perna, me tirando do chão e me segurei
em seus ombros enquanto distribuía beijos e chupões por seu
pescoço, sentindo sua artéria pulsar furiosamente quando beijei um
ponto logo acima dela.
Só notei que Rick me levou para fora da sala do divã quando já
estávamos subindo as escadas.
— Para onde está me levando? — perguntei com curiosidade. —
Pensei que tinha me levado para aquela sala por esse motivo.
— Se vou ter o privilégio de estar dentro de você mais uma vez,
então quero que seja na minha cama. — Ele empurrou a porta com o
pé e invadiu o quarto como um trovão.
Com cuidado, me colocou de pé ao lado da cama e começou a
tirar meu sobretudo.
O processo era conhecido para mim: Rick me despia com
rapidez, seus olhos brilhando de desejo a cada novo pedaço de pele
que surgia e depois me agarrava para fazer o que tinha vontade.
Mas não dessa vez.
Quando ele me deixou nua e esticou os braços para me puxar
para perto, me esquivei e sorri com malícia, encarando seus olhos
confusos. Sua respiração estava acelerada e os lábios entreabertos,
quase como uma criança que queria muito um doce da prateleira.
— Estou cansada de seguir suas regras. Hoje, seguiremos as
minhas — anunciei com a voz rouca, deslizando as mãos por meu
próprio corpo, sentindo seu olhar seguir meu toque.
— Quer me torturar? É isso? — perguntou ele, começando a tirar
a própria roupa.
— Só quero te dar prazer, como sabe. — Me aproximei
lentamente, pousando a mão sobre a sua quando ele fez menção de
arrancar o cinto da calça e sorri. — Parece com pressa.
— Ok, você não quer me torturar e sim me matar — sua voz saiu
sufocada conforme ele tentava ganhar algum conforto se
massageando por cima da calça.
— Não, apenas quero fazer isso por você hoje. — Sem afastar
nossos olhares, comecei a tirar o cinto de Rick, sem me preocupar
em ser rápida.
Depois que terminei o processo de despir o homem, o empurrei
até que caísse na cama e fui para cima dele, erguendo suas mãos e
as segurei contra o colchão para que não me tocasse, assim como
ele fazia comigo para me provocar.
— Ok, agora eu entendi tudo. — Ele encarou meus seios e
suspirou baixo. — Você está invertendo os papéis.
— Pare de tentar descobrir o que estou fazendo e comece a
aproveitar — murmurei contra seus lábios, antes de beijá-lo.
A lareira do quarto não estava acesa, mas, ainda assim, meu
corpo queimava.
Deslizei minha boca pelo pescoço de Rick, observando a pele
manchada de batom e sorri quando ele tensionou o abdômen
durante minha exploração. Espalhando alguns beijos pela área
abaixo do umbigo, notando que Rick estava ansioso para que eu
descesse mais, fiz exatamente o contrário e subi para sua boca,
sentindo o rosnado que ele soltou durante o beijo.
Apesar de querer torturar o pobre homem por mais tempo, estava
sendo difícil para mim, afinal, fiquei longe dele por tempo demais —
foram apenas algumas semanas, eu sei, mas ainda assim… —,
então decidi acabar logo com nosso sofrimento.
Me posicionei em cima de Maverick e desci sobre sua extensão,
me deixando ser invadida e finalmente juntando nossos corpos.
Depois disso tudo foi um borrão.
Rick se movendo junto comigo… Minha respiração
entrecortada… Nossos beijos desesperados e molhados… Meu
corpo tremendo contra o dele quando encontrou um ponto mais
sensível… O clímax estrondoso que balançou o mundo…
Foi mais rápido do que das outras vezes, mas não menos
perfeito.
A saudade, somada às provocações, nos fizeram aguentar
menos do que o normal.
E, dessa vez, Rick pareceu ter derretido como eu, incapaz de
mover um músculo sequer depois de acabarmos.
— Eu vi o seu caderno — murmurou ele com os olhos quase
fechados.
Deitado com a barriga para baixo e o rosto relaxado, Rick era a
imagem do cansaço.
Eu, deitada ao seu lado com o corpo suado e o rosto virado para
encará-lo, não devia estar muito diferente.
— O das margaridas?
Ele assentiu com dificuldade.
— Você me desenhou.
Minhas bochechas coraram.
— Pois é.
— Eu gostei.
Isso me tranquilizou.
Alguns desenhos eram mais reveladores do que outros, alguns
poderiam não gostar.
— Você quer passar o Natal comigo? Tenho uma lasanha e uma
garrafa de vinho.​— Não posso. Kill e eu vamos assar alguma coisa
no forno para passarmos a data juntos.​Rick fechou os olhos
lentamente.
— Mas e amanhã? Aceita passar o dia comigo?
Sorri e pousei a mão sobre a sua.
— Tirando o próximo domingo, passarei todos os “amanhãs” que
vierem com você.
Rick não respondeu, mas sorriu.
E eu também.

Na manhã seguinte, Rick não estava ao meu lado quando


levantei.
Constatei esse fato antes mesmo de abrir os olhos, porque seu
corpo grande e pesado sempre afundava um pouco um dos lados do
colchão e de alguma forma, Rick sempre me tocava.
O pé encostado no meu.
Um braço preguiçoso jogado sobre minha barriga.
A perna enfiada entre as minhas.
Ele sempre encontrava um jeito.
Ouvi o som do chuveiro e me levantei, disposta a bater na porta e
anunciar que acordei. Talvez até aproveitasse para compartilhar o
banho com ele. Talvez a gente até se esquecesse do banho e fizesse
outra coisa…
Depois de me espreguiçar e vestir a minha lingerie, peguei o
celular no sobretudo e avisei à Claire que estava bem. Tinha umas
quinze ligações perdidas dela, mas com o celular no silencioso, eu
esqueci de avisar que não iria mais para a festa. Me senti um pouco
culpada, mas minha amiga já devia ter imaginado o que aconteceu.
Deixei o celular sobre a cama e afaguei a cabeça de Zorro — que
estava jogado no colchão e descansava em um sono pesado de cão.
Eu estava gostando dele e até me acostumando a sentir algo grande
e peludo encostado em mim durante a noite. Mal podia esperar para
mimá-lo cada vez mais.
Nem podia acreditar que tudo estava dando mesmo certo e que
Maverick decidiu ter coragem e seguir o coração.
Eu me sentia em um sonho.
Meu coração palpitava a cada segundo.
Fui até a porta do banheiro na pontinha dos pés, mordendo o
lábio inferior para segurar o sorriso.
E então eu o ouvi.
Nunca imaginei que fosse possível ir do céu ao inferno dentro de
si de forma tão rápida, mas aconteceu comigo.
— Eu sei, Kennedy, mas não vou largar tudo por causa de uma
aventura sexual! — exclamou e ficou em silêncio de repente. — Só
um momento.
Cobri a boca com a mão para segurar o grito de ódio que
ameaçou escapar e dei um passo para trás ao notar que, do lado de
dentro, Maverick se aproximou da porta.
Eu conseguia ver pela sombra do pequeno espaço na parte de
baixo.
— Sky? — ele chamou, mas não respondi.
Era melhor que Rick não soubesse que eu estava acordada.
O safado ainda ligou o chuveiro para que eu não ouvisse que ele
estava em ligação. Isso me mostrou que ele estava falando sobre
coisas que claramente não queria que eu soubesse.
Ele mentia muito bem e na noite passada conseguiu me
convencer de que faria qualquer coisa por mim, mas agora eu tinha
me transformado apenas em uma “aventura sexual”.
Eu o odiava, mas odiava mais ainda a mim por ter me deixado
levar por sua voz sedutora e por seu toque tentador.
Não cometeria o mesmo erro duas vezes.
Corri até a cama e peguei meu celular, avisando para Claire que
não estava bem e precisava que ela me buscasse na mansão de
Maverick com urgência.
Depois me vesti e acho que nunca enfiei roupas no corpo com
tamanha rapidez. Cheguei a acordar Zorro, mas ele ficou em silêncio
apenas me observando.
Peguei o cheque de dez mil dólares e o deixei em cima do meu
travesseiro. Não queria nada desse homem, nem seu dinheiro.
Depositando um beijo rápido na cabeça do animal e olhando para
o quarto uma última vez, saí de lá ainda em silêncio, sem derramar
uma lágrima. Deixaria meus sentimentos tomarem conta de mim
depois, mas não agora, não aqui na casa de Maverick.
Peguei dali a única coisa que me interessava: o caderno de
margaridas.
Claire chegou em tempo recorde e não fez perguntas conforme
me levava para a casa dos meninos, mas ainda assim contei tudo e
revelei qual decisão finalmente tinha tomado.
Ela não tentou me dissuadir de continuar, apenas ofereceu seu
apoio como uma verdadeira amiga. Claire era uma das únicas coisas
boas que me aconteceu nesse lugar e eu seria muito grata por isso.
Mas não tinha esperança de vê-la outra vez.
Não depois que eu conseguisse fazer o que queria.
Acordei bem cedo, praticamente junto com o sol, e decidi que
precisava dar um jeito na minha situação para poder prosseguir logo
com a vida ao lado de Skyler sem ter que mentir para mais ninguém.
Deixei ela dormindo e me tranquei no banheiro para fazer uma
ligação para Kennedy.
Ele demorou a acreditar no que eu dizia e por um tempo pensou
se tratar de um trote — mesmo que a ligação viesse direto do meu
número.
Eu falei tudo, com todas as palavras, sem enrolar ou amolecer.
Kennedy tentou me dissuadir, como imaginei que tentaria, mas eu
estava tão decidido e satisfeito com minha decisão que deixei a
ligação no volume alto e liguei o chuveiro para tomar banho.
— Não pode ser — o ouvi dizer. — Você está sozinho? Tem
alguém aí te forçando a fazer isso?
— Ninguém além de mim — respondi, deixando a água quente
cair em minhas costas e relaxar meus músculos.
— Você está no auge da fama como técnico do Montreal
Monsters, tem tudo o que deseja, um salário alto e mais mulheres do
que um homem poderia querer! Tem certeza que vai largar tudo por
causa de uma maldita aventura sexual?
— Eu sei, Kennedy, mas não vou largar tudo por uma aventura
sexual! — exclamei irritado, mais alto do que devia e meu olhar voou
para a porta do banheiro quando tive a impressão de ver uma
sombra do outro lado. — Só um momento.
Caminhei para perto da porta, marcando o chão com um rastro
de água e pousei a mão na maçaneta, me preparando para abri-la.
— Sky? — perguntei, mas não obtive resposta.
Olhando novamente para onde a sombra estava, notei que não
estava mais lá.
Devia ter sido Zorro.
Ele sempre ficava atrás da porta quando eu estava no banheiro.
Desistindo de abrir, voltei para debaixo do chuveiro e encarei a
tela do celular, vendo que Kennedy continuava na linha.
— Voltei — avisei em um tom baixo. — Eu não estou largando
tudo por uma aventura sexual, Kennedy. Eu realmente tenho
sentimentos fortes por essa mulher, ela é muito especial, não sei se
você entenderia.
Silêncio.
Engoli em seco.
— Kennedy? — chamei depois de um tempo.
— Você é corajoso, Maverick Stanwick. Está tendo coragem de
fazer algo que eu não tive no passado e me arrependo até hoje. Não
há espaço na vida de um homem para duas paixões, apenas uma —
ouvi seu suspirar baixo. — Falarei a seu favor para que sua saída
não seja mal vista.
— Agradeço, Kennedy. Sinceramente.
— Mas fique avisado: depois que essa mulher sumir daí em
algumas semanas, não adianta ligar pedindo para voltar. Não terei
piedade.
Ele desligou logo após dizer aquilo, mas se sua intenção era me
deixar inseguro, não conseguiu.
Skyler não era do tipo que sumiria.
Depois de desligar o celular, suspirei baixo e enfiei a cabeça
debaixo do chuveiro, deixando a água escorrer pelo meu cabelo.
Os próximos dias seriam um pouco turbulentos, mas valeriam a
pena.
Eu sabia que sim.
Passei os próximos quarenta minutos no chuveiro. Quando já
estava começando a ficar enrugado, me enxuguei e repeti o
processo de todas as manhãs: escovar os dentes, hidratar a pele e
pentear o cabelo. Isso levou mais uns dez minutos.
Quando finalmente saí do banheiro, dei de cara com a cama
vazia. A coberta estava espalhada pela cama e as roupas de Skyler
não estavam no chão como antes de eu entrar no banheiro.
— Sky? — chamei alto, segurando a toalha no quadril com uma
das mãos e me aproximando do lado da cama onde ela dormiu.
Tinha um papel no centro do travesseiro.
Ao pegá-lo, notei ser o cheque que entreguei ontem para ela.
Por que ele estaria aqui?
Meu coração acelerou.
Algo estava errado.
Então eu me lembrei da sombra que pensei ser de Zorro.
Não era dele.
Era dela!
— Skyler! — gritei, correndo até o closet para me vestir.
Algo me dizia que ela já tinha deixado essa casa.
Coloquei no corpo as primeiras peças de roupa que vi pela frente
e corri para o andar de baixo, continuando a gritar por Skyler, mesmo
sabendo que ela não estava me ouvindo. Abri as portas de todos os
cômodos, mas ela não estava em nenhum.
Peguei a chave do Audi, que foi a primeira que encontrei, e parti
em direção à casa que Killian dividia com Bradley e Colin,
ultrapassando a velocidade permitida e cruzando o sinal vermelho no
cruzamento. O tempo todo eu ligava para o celular de Skyler, mas a
ligação caía direto na caixa postal.
Eu odiava não saber o que estava acontecendo, apenas saber
que algo estava acontecendo.
Precisava entender os detalhes.
Freei com tanta força que o pneu gritou ao marcar o asfalto.
Desci do carro com pressa, batendo a porta com força e corri até a
porta de entrada da casa.
— Skyler! — gritei, socando a porta com força. — Sk…
A porta se abriu abruptamente e Killian me encarou com o que eu
só poderia determinar como desgosto.
— Maverick — respondeu em um tom seco.
Não “treinador” ou “senhor Stanwick”, como sempre.
Mas “Maverick”.
Ele sabia.
Killian sabia.
Skyler esteve aqui.
Ela contou.
Kennedy não agiria tão rápido.
— Sua irmã está? — perguntei sem esconder o desespero.
— Se estivesse, eu jamais te diria — Killian me encarou dos pés
a cabeça —, treinador.
A última palavra saiu com nojo.
— Killian, nós ainda vamos conversar e eu prometo te explicar
tudo, mas agora eu preciso falar com sua irmã, tem algo errado e
eu…
— Tem muita coisa errada — respondeu, se aproximando de
mim, me encarando de igual para igual. — Ela já me explicou tudo.
Apenas fique longe dela.
— Não vai ser possível — respondi com respeito, mas
sinceridade, porque estava cansado de mentir.
— Eu não estou pedindo — Killian fechou as mãos em punhos.
— Ela está em casa? — Tentei olhar por cima do ombro do rapaz.
— Skyler! — gritei mais uma vez em uma última tentativa.
— Eu sabia que tinha algo acontecendo, mas decidi acreditar em
você, porque o admirava como a ninguém mais — Killian negou
lentamente com a cabeça — e você me apunhalou pelas costas.
— Eu não fiz de propósito, não sabia que Skyler era sua irmã.
Quando descobri, já era tarde demais. — Esfreguei a mão na testa,
tentando pensar em onde mais Sky poderia estar.
— E, ainda assim, você não parou de ir atrás dela.
— Eu tentei, juro que tentei, mas Sky é uma pessoa muito
especial e…
— Tire o nome dela da sua boca, desgraçado! — rosnou Killian
pouco antes de atingir um soco na minha têmpora direita que me
desorientou por alguns segundos.
Cambaleei para trás, sentindo o mundo girar.
Eu não iria retribuir o soco, afinal, mais do que mereci ser
atingido por Killian.
Além disso, eu precisava encontrar Sky e não tinha tempo para
brigar.
Ela tinha que estar aqui.
Ela tinha que estar em algum lugar.
— Skyler! — gritei mais uma vez, pegando meu celular para
tentar ligar para ela.
— O que está fazendo? — perguntou a irmã de Colin, parando o
carro no meio-fio. — Ela se foi.
— O quê? — Me virei para a ruiva que saiu do carro com uma
expressão raivosa.
— É isso mesmo. Sky te ouviu dizer que ela era só uma aventura
sexual e decidiu que era hora de partir. Acabei de deixá-la no
aeroporto e…
— Droga, Claire, cala a boca! — exclamou Killian, esfregando a
cabeça com as mãos. — Ele não tem o direito de saber o paradeiro
da minha irmã.
— Você disse aeroporto? — perguntei, segurando os ombros da
ruiva para que ela ignorasse Killian. — Ela está voltando para a
Flórida?
— Não, para “Tão Tão Distante”, idiota. — Ela revirou os olhos.
— Só te contei porque você merece saber, mas agora deixa minha
amiga em paz, tá legal?
— Aeroporto — falei para mim mesmo, correndo de volta até meu
carro.
Se eu fosse rápido, talvez desse tempo de alcançar Sky e
explicar o mal entendido.
— Está vendo o que você fez? Agora ele vai atrás dela! Você tem
sempre que se enfiar em assuntos que não são seus? — ouvi Killian
exclamar, nervoso.
— Fique quieto, Killian, o tom da sua voz me irrita — retrucou a
ruiva, apontando o dedo na direção dele, sem medo algum. — Além
disso…
Não fiquei para ouvir o resto da briga entre esses dois que
acabariam se matando ou se casando no futuro.
Botando os cavalos do Audi em sua velocidade máxima, acelerei
em direção ao aeroporto, indo por um caminho que eu conhecia e
sabia que evitava semáforos, mas era repleto de curvas. Bem, não
se podia ter tudo…
Em minha mente, surgia a imagem de Skyler e eu não conseguia
ir devagar. Não quando ela estava prestes a entrar em um avião por
causa de um maldito mal entendido.
Acelerei até o fim, sentindo o carro praticamente voar sobre a
estrada e peguei o celular, clicando em seu contato novamente para
tentar fazer mais uma ligação.
E foram esses segundos de distração, somados à alta velocidade
e a estrada lisa devido à neve, que me fizeram perder o controle do
carro e ser lançado para fora da pista.
Tudo voou.
Especialmente eu.
E, depois dali, minha vida nunca mais seria a mesma.
6 meses depois

— Onde aprendeu a patinar assim?


Deslizando pelo rinque recém-estabelecido na cidade, parei
abruptamente e olhei para a pequena garotinha de mãos dadas com
a mãe.
Seus olhos atentos encaravam meus pés, como se ela quisesse
desvendar qual era meu segredo.
— Uma pessoa muito habilidosa me ensinou — respondi,
sorrindo com gentileza. — Gostaria que eu te ajudasse? Isto é… Se
sua mãe permitir.
Ergui o olhar para a mulher, que sorriu em alívio.
— Com certeza. Estou dando duro pra aprender a ficar de pé
nisso aqui — ela encarou os próprios pés —, mas essa espertinha
viu o rinque e ficou me atazanando dia e noite até que eu finalmente
a trouxesse.
— Não é muito comum por aqui, né? — perguntei, abrindo um
sorrisinho torto.
Diferente de Montreal, que era um lugar frio onde as pessoas
aprendiam a patinar desde bem jovens, em lagos congelados ou em
rinques propriamente ditos, aqui na Flórida era diferente.
O basquete era o esporte favorito do pessoal.
Mas eu encontrei um jeito de treinar minhas habilidades,
seguindo as dicas que certa pessoa me deu uma vez e agora tinha
tanta facilidade em patinar quanto tinha em andar.
— Vem comigo, mas não fica olhando para baixo — avisei,
depois que a mãe da garota me permitiu segurar a mão dela. —
Dobre levemente os joelhos.
Crianças aprendiam mais rápido do que adultos, disso eu sabia.
Mas nunca imaginei que fosse tão mais rápido.
Em menos de vinte minutos, ela já tinha soltado minha mão e
conseguia chegar longe. Me senti muito orgulhosa da minha
aprendiz, sendo sincera. E notei a felicidade de sua mãe que,
encostada no canto, tirava fotos e gravava vídeos da pequena.
Me despedi delas pouco depois, porque precisava passar em
uma agência para deixar um pacote que viajaria muitas milhas.
Depois que a Patins Stanwick começou a divulgar as belíssimas
fotos que foram feitas do quadro, recebi diversas encomendas, em
sua maioria de artes digitais. Como não era minha especialidade
mas eu queria tentar algo novo, tirei alguns meses para treinar todos
os dias em meu Ipad até que aceitei minha primeira encomenda para
arte digital.
Desde então eu não passava um único dia sem ter uma arte para
fazer e estava ganhando um bom dinheiro com elas. Apesar de não
ter uma galeria, todo mês eu separava uma quantia para a realização
desse sonho. Talvez, em alguns anos, esse sonho se realizasse.
Tudo tinha seu tempo.
Chegando na agência com o pacote em mãos — de um quadro
pequeno que pintei para um casal —, entrei na fila para aguardar
minha vez. Até que não tinha muita gente na frente, pensei comigo.
— Sky?
Me virei ao ouvir aquela voz conhecida, dando de cara com o
rosto magro e surpreso de Tyler.
Seus olhos castanhos e cabelos escuros continuavam
exatamente iguais. O mesmo corte, penteado para o mesmo lado, o
mesmo olhar curioso…
— Tyler — respondi. — Que surpresa.
— Eu que o diga. — Ele me olhou dos pés à cabeça. — Você
está… Diferente. Maravilhosa.
Bem, eu tinha mudado, é claro.
Meu cabelo tinha crescido.
Eu sorria mais.
Sentia vontade de ser mais vaidosa.
Meu brilho tinha voltado, por assim dizer.
— O que está enviando? — perguntou ao notar meu silêncio.
— Uma encomenda — respondi, olhando para o pacote em
minhas mãos. — Um casal encomendou uma pintura.
— Sério? — Ele pareceu chocado. — Isso… Essa coisa das
pinturas… Está dando certo?
— Sim, Tyler, essa coisa das pinturas está dando certo —
respondi, voltando a olhar para a frente.
Eu sabia que Tyler ficava desconcertado quando não recebia a
atenção esperada, mas eu não estava afim de conversar com ele.
Ele tossiu baixo, como costumava fazer para atrair atenção.
— A gente podia marcar de fazer alguma coisa — sugeriu
quando o encarei por cima do ombro. — Se você quiser.
Eu não queria.
Depois que passei um tempo em Montreal, muita coisa mudou
dentro de mim.
Especialmente depois que conheci Maverick.
Sim, ele tinha me magoado, mas isso não significava que todo o
tempo que passamos juntos foi um tempo perdido. Na verdade, foi
muito bom. E foi por meio dele que passei a entender como um
homem de verdade agia.
Tyler ainda não tinha chegado nesse patamar.
— Até mais, Tyler — falei, lhe oferecendo o sorriso mais gentil
que consegui e voltei a olhar para a frente.
O ouvi rir atrás de mim, talvez por achar graça da minha reação
ou por não acreditar na minha recusa, mas não me importei.
Se Tyler estava com o orgulho ferido, ele tinha que aprender a
lidar com isso.
Por sorte, minha vez chegou logo e não tive que ficar por muito
tempo na presença dele. Saí da agência logo após enviar o pacote e,
como já estava anoitecendo, fui direto para casa.
Quando voltei para a Flórida, meses atrás, cheguei com lágrimas
nos olhos e coração partido. Meus pais me receberam de braços
abertos e foram de grande ajuda durante as semanas que se
seguiram, sempre estando comigo, ajudando a me distrair e me
dando carinho.
Não contei todos os detalhes sobre o tempo que passei com
Maverick, apenas o essencial para que eles entendessem a situação,
mas decidi guardar os detalhes comigo. Antes de partir, fiz Kill
prometer que nem ele, nem ninguém dali me daria notícias sobre
Rick. Para conseguir seguir com a vida, eu precisava me esquecer o
máximo possível dele e isso incluía não ficar vendo suas redes
sociais ou buscando notícias a seu respeito.
Era como um processo de desintoxicação.
Eu não queria saber com quais mulheres ele iria se envolver ou
quais artigos sairiam contando seus feitos. Era melhor resguardar o
que restava do meu coração.
Para divulgar meu trabalho, fiz um blog e deixei meu e-mail para
contato.
Para conversar com Claire e os amigos que fiz em Montreal, criei
uma conta no Telegram.
A vida estava sossegada assim.
Consegui até mesmo perdoar Maverick dentro do meu coração,
porque sabia que, apesar de tudo, ele era um bom homem, uma boa
pessoa e não era à toa que meu irmão o admirou tanto. Talvez Kill
não o admirasse como antes, mas se o motivo era o envolvimento
que tive com seu treinador, então eu sabia que Maverick não deu
nenhum motivo grave para merecer perder a admiração de Kill ou de
qualquer pessoa.
Mas eu entendia os motivos do meu irmão e não podia culpá-lo
se sentisse raiva de Rick. Só podia torcer para que não fosse assim.
— Mãe? — chamei em voz alta depois de entrar em casa.
Era acostumada a dar de cara com meu pai assistindo seu time
favorito na TV ou com minha mãe podando os galhos de seus
vasinhos de planta.
Mas eles não estavam fazendo nenhuma dessas coisas.
— Pai? — Segui até a sala de jantar, que era a única luz acesa
da casa.
Dobrando a entrada da sala, paralisei.
— Kill?
Meu irmão levantou e abriu os braços grandes e fortes.
— Olá, irmãzinha.
Me joguei em seus braços, sem conseguir acreditar que ele
estava aqui.
Meus pais riram, ambos sentados nos observando.
— Mas o que… Está tudo bem? — Me afastei para encarar seus
olhos cor de mel e o segurei pelos ombros. — Por que não avisou
que vinha?
— Quis fazer surpresa — explicou, abrindo um sorriso cansado.
— Como estão as coisas por lá? E Claire? Colin continua o de
sempre? Brad já terminou com a Cassie? E Ma… — parei de falar
abruptamente e engoli em seco. — E você?
— Vou preparar um lanche pra gente — anunciou minha mãe, se
levantando. — Vem me ajudar — pediu para meu pai.
Ele se levantou e beijou minha cabeça ao passar.
Killian me puxou para que nos sentássemos.
Depois de beber o suco de um copo da mesa, ele voltou a me
olhar, dessa vez mais sério do que antes.
— Eu preciso de você em Montreal — anunciou sem rodeios.
— O-o que? Por que? — Franzi a testa em completa confusão. —
Veio até aqui apenas para me falar isso?
— Se eu falasse por celular, você não aceitaria.
Isso era verdade.
Eu não tinha planos para voltar para Montreal tão cedo.
— O que exige minha presença em Montreal, afinal?
Ele engoliu em seco e encarou a própria mão.
— Não acredito que vou fazer isso… — Kill voltou a me encarar.
— Maverick. Ele precisa de você.
Soltei uma risada nasal.
Só podia ser piada.
— Kill…
— Não, me deixe explicar antes que você continue — pediu com
gentileza e concordei. — Ele sofreu um acidente…
— Quando? — perguntei, quase me levantando com o choque.
— No dia que você voltou pra cá. Ele foi até minha casa
perguntar por você, eu dei um soco nele e depois ele dirigiu igual um
louco até o aeroporto, mas pouco antes de chegar lá, perdeu o
controle do carro e saiu capotando na pista. O carro deu perda total,
mas ele estava sem cinto e voou para fora. Foi bem feio, sendo
sincero.
Era muita informação.
Meu coração acelerou.
— Ele… Ele sofreu um acidente porque estava indo até o
aeroporto me encontrar? — Minha garganta parecia cheia de areia.
Foi difícil proferir essas palavras.
E doloroso imaginar a cena.
— Sim. — Os olhos de Kill ficaram tristes. — Ele teve muitos
arranhões, quebrou uma costela, mas sua perna direita foi a mais
prejudicada. Quebrou em três partes diferentes. Os médicos tiveram
bastante trabalho com ele, mas calma! — Killian segurou minha mão
quando viu meus olhos cheios de lágrimas. — Ele está bem, eu
garanto.
— E como você pode me garantir isso?
— Porque sou eu quem está cuidando dele. Todos os dias após o
treino, eu vou até a casa de Rick, o ajudo a tomar banho, a se vestir
e tento incentivá-lo a tentar algo novo, mas ele… Acho que Maverick
não sente mais vontade de viver e isso me preocupa.
Meu coração ficou pequeno dentro do peito.
Rick era um homem cheio de vida, não conseguia imaginá-lo
assim.
— Por que você? — perguntei sem me aguentar.
— Porque sou o único que ele aceita. Não quer enfermeira, nem
nenhum membro da família, apenas eu. Solange o alimenta, o
advogado cuida das finanças e da marca dele, e eu cuido dele.
Maverick é orgulhoso, não suporta que outros o vejam em uma
cadeira de rodas, mas também não sente vontade de fazer algo para
sair dela e o médico já disse que ele tem condições de voltar aos
poucos a andar, só precisa se esforçar.
— Meu Deus. — Desviei o olhar, sem acreditar que fiquei seis
meses alheia a tudo isso. — Por que não me contou antes?
— Você me pediu para não falar nada sobre ele.
— E de repente decidiu que era uma boa ideia vir até aqui e me
pedir para voltar. Por quê?
Kill sorriu e pousou as mãos nos meus ombros.
— Porque você, irmãzinha, é minha última esperança de fazer
aquele homem voltar a ser um pouco do que era antes.
— Não. — Me levantei e neguei. — É claro que não. Essa é a
ideia mais maluca que você já teve, Kill.
— Todos os dias eu o encontro na sala de pinturas, que agora sei
que ele fez para você e sei que está ali porque sente sua falta. Certa
vez o ouvi chamar baixinho por você enquanto dormia. Não estou
falando que será fácil…
— Ele não vai me querer por lá, você sabe disso. É por causa de
mim que ele está em uma cadeira de rodas.
— Não se culpe, por favor. Algumas coisas acontecem e nós não
podemos voltar atrás, apenas fazer algo para mudar o futuro. E você,
Sky, é a única que poderá ajudá-lo a se reerguer. Eu sei que sim.
— E o que te fez perdoar ele depois de tudo? Depois de saber o
que ele fez comigo? — Killian nem parecia o mesmo que eu
conhecia.
Ele sorriu de canto.
— Tem coisas que agora eu sei, mas não tenho o direito de te
contar. Acho que deve dar a oportunidade para Rick te contar a
verdade.
— Que verdade? — Arqueei as sobrancelhas.
— Exatamente. Só ele vai poder te contar.
Droga.
Odiava ficar curiosa.
E não queria ter que ir até Montreal reviver tudo o que partiu meu
coração.
Mas Rick precisava de mim.
Ele estava machucado e vulnerável.
Eu estive com ele em seus bons momentos. O mínimo que
poderia fazer era ajudá-lo nos mais difíceis. Além disso, era por
causa de sua marca que hoje eu tinha reconhecimento e recebia
encomendas.
— Se achar que foi má ideia ou que não irá aguentar, prometo te
deixar voltar — disse Kill, voltando a chamar minha atenção. — Mas
eu te peço, por favor, antes de negar, apenas dê uma chance a
Maverick.
— Vai brigar comigo se eu não aceitar? — Arqueei as
sobrancelhas.
— É claro que não, Sky. Você tem esse direito. Mas algo me diz
que seu coração não vai desistir antes de tentar.
Killian me conhecia bem.
Ele sabia que eu era fraca e que gostava de ajudar.
Olhei em volta para a minha casa, o lugar onde eu sabia que
poderia voltar sempre que precisasse. Se o que restou do meu
coração se partisse novamente, era só eu vir para cá e sabia que
conseguiria me reerguer. Além disso, a intenção de Killian não era
me fazer ter um romance com Maverick, apenas ajudá-lo.
Isso eu podia fazer ou ao menos tentar.
Voltei a encarar meu irmão e vi um pequeno sorriso surgir em sua
boca, como se ele já soubesse o que eu estava prestes a dizer.
Maldito fosse Killian Saint Clair por me convencer a fazer essa
loucura.
— Quando partimos?

Enquanto arrumava minha mala, mais tarde naquele dia, comecei


a pensar se ir para Montreal era mesmo a coisa certa a se fazer.
Olhei em volta para o meu quarto, o mesmo que me protegeu nos
meus piores dias, que me acolheu quando precisei chorar sozinha,
que me inspirou quando decidi pintar… E agora, mais uma vez, eu o
estaria deixando para trás.
— Filha? — Minha mãe enfiou a cabeça para dentro do quarto. —
Precisa de ajuda?
Olhei para as roupas organizadas em cima da cama, as quais eu
estava colocando dentro da mala.
— Acho que não, mãe — respondi, apertando um vestido para
caber mais coisas. — Você e meu pai vão ficar bem se eu partir?
Entrando no quarto, ela fechou a porta atrás de si e se aproximou
de mim, parecendo analisar as roupas que eu estava levando.
— Nós sentiremos saudades, é claro, mas a pergunta é — ela me
encarou — você vai ficar bem?
Suspirei baixo e me sentei no colchão.
Eu ia?
— Não sei se estou fazendo a coisa certa, mas, se eu ficar, não
vou conseguir dormir à noite de preocupação e culpa — admiti,
encarando um dos primeiros quadros que pintei quando mais nova,
que agora estava pendurado na parede. — Ele não é má pessoa,
sabe?
— Tem certeza? Você pareceu tão mal quando chegou…
Sorri de canto.
Eu cheguei realmente mal.
— Quando me envolvi com ele, sabia que o hóquei vinha em
primeiro lugar na sua vida. Acho que me esqueci disso por algum
tempo e quando essa realidade bateu à porta de novo, eu acabei
fugindo para não me machucar mais.
Minha mãe sentou ao meu lado e segurou minha mão.
— E o que acha que vai acontecer se for pra lá?
— Sinceramente? Eu não sei. Se Kill acha que eu tenho a
capacidade de ajudar, então eu quero ajudar, mas não quero deixar
meu coração se envolver de novo. Porém tenho medo de…
Me silenciei, incapaz de revelar para minha mãe — e para mim
mesma — que eu temia acabar deixando meus sentimentos virem à
tona novamente.
— Tem medo de que, Sky? — Ela arqueou as sobrancelhas.
Suspirei baixo e deitei a cabeça em seu ombro.
— Eu sou muito fraca, sabe?
Minha mãe riu baixo e negou.
— Skyler, só as pessoas fortes têm coragem de amar.
— Então por que machuca tanto?
— Porque o amor nem sempre é fácil ou simples, mas se lutar
por ele, vai valer a pena.
Ela sorriu e beijou minha cabeça.
— Estou cansada de não conseguir sair da fase “difícil” do amor
— resmunguei, me levantando e voltando a arrumar a mala.
Ela riu e também se levantou, indo até a porta.
— Você vai sobreviver, filha. Mas agora, enquanto termina de
arrumar suas coisas, vou tentar tirar informações e novidades do seu
irmão — avisou antes de sair do quarto.
A coitada vivia para conseguir migalhas sobre a vida pessoal de
Kill.
Trinta minutos depois, tive que subir em cima da mala para
conseguir fechar o zíper.
Eu não sabia quanto tempo passaria em Montreal, mas era
melhor levar tudo o que eu pudesse vir a precisar.
Pena que não existia remédio para prevenir um coração partido.
— Montreal é bem chuvosa nessa época do ano — explicou
Colin, forçando o olhar enquanto dirigia.
— Estou vendo — murmurei, tentando enxergar em meio àquele
monte de água que caía furiosamente do céu.
A velocidade do carro era mínima para evitarmos acidentes,
afinal, estava sendo difícil de enxergar.
Colin nos buscou no aeroporto e fomos recebidos por uma chuva
torrencial de meio de ano, típica nessa época, como o ruivo disse.
Agora eu entendia o motivo de Kill ter me avisado para trazer capa
de chuva e o máximo de roupas impermeáveis que eu tivesse.
Killian passou apenas dois dias na Flórida e logo entramos em
um avião para cá.
Ele disse que Rick não sabia sobre sua viagem e que com
certeza sentiria sua ausência, por isso não ficou muito.
— Como foi o treino? — perguntou meu irmão com curiosidade.
Colin deu de ombros.
— O de sempre. Mas o treinador ficou bravo por sua ausência.
— Eu avisei o motivo!
— Ele é chato, você sabe.
— Droga — murmurou Killian e me encarou. — São nesses
momentos que sinto saudades de ter Maverick como treinador. Ele
sim entenderia.
Abri um sorriso triste.
Rick foi forçado a deixar seu posto e com certeza devia sentir
muita falta do time. Um dia ele estava no auge e, no seguinte,
trancado em casa se recuperando de uma fratura.
— Claire está ansiosa para te ver. — Colin me olhou através do
espelho do carro. — Vai ficar por quanto tempo?
— Ainda não tenho certeza, mas não irei embora sem antes
passar um tempo com ela.
Eu também sentia muita falta da minha amiga.
— Chegamos. — Colin parou o carro e destravou as portas. —
Aparece lá em casa qualquer dia desses.
Olhei para Killian e arqueei as sobrancelhas.
— Como assim? — questionei com desconfiança.
Pensei que seria como da última vez.
Pensei que ficaria na casa dos meninos e apenas viria para cá
quando fosse necessário.
Kill coçou a cabeça e abriu um sorrisinho torto, o mesmo de
quando ele mentia ou escondia algo.
— Esqueci de mencionar que você vai ficar aqui. Com essa
chuva toda não é bom ficar indo e voltando todo dia.
— Você esqueceu de mencionar? — perguntei, quase voando no
pescoço dele.
Colin riu.
— Você não vale nada, Saint Clair — disse, se dirigindo ao meu
irmão.
— Nós temos um propósito, não temos? Se você ficar aqui, tudo
vai ser mais rápido. Além disso, tem a sua sala de pinturas, ela está
parada desde sua partida, tudo no mesmo lugar.
— Não vim até aqui para pintar. — Sentindo vontade de gritar,
apertei a alça da mochila no meu ombro e abri a porta. — Nunca
gostei de você — anunciei, encarando meu irmão antes de abrir a
porta e sair do carro, sem me importar com a chuva.
Foi questão de segundos até eu ficar encharcada e quando
cheguei na entrada da casa, a porta foi aberta rapidamente por
Solange.
Seu sorriso grande sumiu quando ela olhou para o rastro de água
que deixei no chão ao entrar.
— Vou pegar uma toalha! — anunciou, correndo para dentro da
casa. Killian surgiu atrás de mim com Colin ao seu enlaço,
segurando um guarda-chuva para protegê-los.
— Está maluca? Podia ter esperado! Vai ficar doente desse jeito!
— Meu irmão parecia realmente preocupado.
Ele pousou minha mala no chão e me encarou.
— Não exagere, Kill — agradeci baixinho quando Solange me
entregou uma toalha fofinha e comecei a esfregar em meu rosto e
cabelos.
Ela pegou a mochila de meu ombro e sumiu novamente, levando
minha mala consigo, alegando que colocaria tudo no meu quarto.
Aparentemente, isso tudo foi um plano coletivo. Killian e Solange
trabalharam juntos e eu não podia imaginar quem mais.
— Te aguardo no carro — avisou Colin antes de lançar uma
piscadela para mim. — Bom te ver. Continua gata.
Sorri.
Colin sempre elevava minha autoestima.
— Vem, ele está lá em cima, fica lá a maior parte dos dias. —
Segui Kill até as escadas e subi os degraus.
A cada passo eu sentia meu coração retumbar com força dentro
do peito.
Não podia imaginar como seria olhar para Maverick novamente
depois de tudo ou como ele estaria depois de tantos meses.
Chegando no andar de cima, notei que algumas coisas mudaram.
Corrimãos haviam sido colocados nas paredes e o clima da casa
parecia… Diferente.
Melancólico.
Como uma mansão mal-assombrada.
Parei na porta da sala de pintura e Killian foi quem a abriu.
— Ei, Rick. — o tom do meu irmão estava leve e bem humorado.
— Estou de volta.
Killian entrou na sala e fez sinal para que eu fizesse o mesmo,
mas levei mais tempo.
Em uma cadeira de rodas no centro, de costas para mim, estava
um homem de cabelos desgrenhados e levemente compridos.
— Que bom que voltou — sua voz continuava forte, mas senti
certo sofrimento. — Poderia pegar pra mim lá embaixo a última
planilha que o advogado fez? Acho que ele está perdido nos
negócios, é melhor eu ficar de olho.
— É claro. — Killian parou em sua frente e me encarou. — Antes
quero que veja alguém.
Engoli em seco.
— Eu disse que não queria visitas — resmungou Maverick, se
virando com certa dificuldade com a cadeira, mas antes mesmo de
terminar a meia volta ele me viu.
Seus olhos azuis nunca estiveram tão opacos.
Sua boca estava pálida.
A barba, grande demais.
Ele tinha perdido peso, com certeza.
Seus braços estavam levemente mais finos do que eu me
lembrava.
Alguns riscos esbranquiçados, cicatrizes, cortavam partes da pele
de suas mãos.
Mas, apesar de tudo, eu conseguia enxergar o homem que
conheci.
Ele ainda estava ali, em algum lugar debaixo dessa casca.
Maverick me olhou dos pés à cabeça lentamente, como se me
analisasse, e engoliu em seco. Sua expressão era indecifrável.
— Olá — falei baixinho, porque odiava ser observada em silêncio,
sem saber o que a outra pessoa estava pensando.
Mas Maverick não demorou a deixar claro o que se passava em
sua mente.
— Não quero ela aqui — anunciou com a voz baixa, virando o
rosto para o outro lado e voltando a me dar as costas.
Seus ombros se encolheram levemente, como se ele tivesse
entrado em um casulo.
Killian e eu trocamos um olhar.
— Rick, por favor…
— Não, Killian. Mande ela embora.
Senti meus olhos se encherem de lágrimas e saí da sala.
Meu irmão me alcançou com seus passos rápidos.
— Sky, espere. — Ele segurou meu braço, me fazendo parar. —
Ele só está machucado.
— Você devia ter falado com ele sobre isso ao invés de
simplesmente me trazer e nos colocar frente a frente sem aviso
prévio. — Sequei meu rosto e neguei com a cabeça. — O pior de
tudo é que não consigo sentir raiva dele. Na verdade, sinto pena.
— Não vai ser fácil, eu te falei que não seria, mas por favor, não
desista ainda. Tome um banho, relaxe, descanse, esfrie a cabeça e
depois tente de novo.
Killian me encarava como se eu fosse sua última esperança.
Seus olhos cor de mel pareciam desesperados.
— Acha mesmo que isso vai funcionar? Sinceramente?
— Eu… Sim.
— E por que tem tanta certeza? — Arqueei as sobrancelhas.
— Porque, se não funcionar, então não sei o que irá.
Seria um trabalho difícil.
Muito mais difícil do que pensei que seria.
Não que eu esperasse que Maverick me recebesse de braços
abertos, mas ao menos não pensei que ele me expulsaria logo de
cara.
Eu estava errada.
O homem que vi não era o mesmo que conheci meses atrás.
Era completamente diferente. Parecia um animal machucado,
escondido em seu buraco, sem aceitar visitantes.
E tudo isso porque ele se acidentou enquanto ia me buscar no
aeroporto.
Eu devia isso a Maverick. Lutar por sua melhora era o mínimo
que eu poderia fazer.
Eu não iria desistir. Não ainda. Não antes de tentar.
Se ele pensava que iria me assustar ao falar aquelas coisas,
então eu provaria que não. Era uma mulher forte que sabia lidar com
palavras grosseiras.
— Um banho — murmurei, concordando levemente com a
cabeça. — É exatamente o que eu preciso.
Killian sorriu.
Ele sabia o que isso queria dizer.
A imagem da morena molhada, com as roupas coladas ao
corpo e o cabelo pingando me perturbou pelo restante do dia. Não
podia acreditar que Killian tinha trazido a irmã, muito menos que ela
aceitou ser trazida.
Até onde eu sabia, Skyler me odiava.
Por qual outro motivo ela teria ido embora de maneira tão abrupta
da última vez, depois de escutar apenas uma frase solta e sem
contexto que eu falei durante uma ligação?
E agora ela tinha voltado.
E seu olhar repleto de pena me quebrou.
Eu não queria a pena dela.
Não queria a pena de ninguém e esse era o motivo de ter
escolhido Killian para cuidar de mim: porque ele não tinha pena de
mim. Quando me olhava não era como se eu fosse um pobre homem
que quase morreu em um acidente de carro. Seu olhar era o mesmo
de quando eu era o técnico da Montreal Monsters e eu precisava
estar na companhia de alguém que me lembrasse dessa época.
Hugh, ou qualquer membro da minha família, tinha a lembrança
de mim sendo o homem forte e imponente de sempre e eu preferia
deixar as coisas assim.
Mas Skyler… Ela era a principal pessoa que eu não queria que
me visse nessa situação. Queria que sua última lembrança de mim
fosse o homem que tanto a encantou, não esse fraco e barbudo
jogado na cadeira de rodas dia e noite. Na verdade, o único orgulho
que me restava era saber que na mente dela existia apenas o
homem que já fui um dia, mas agora nem isso eu tinha mais.
Esse pensamento me tirou o sono.
Olhando para o relógio digital em cima da cômoda, vi que já era
uma hora da madrugada. Olhei para o colchão, não encontrando
Zorro ali. Não era comum que ele dormisse longe de mim. Me
sentindo irritado, joguei a coberta para o lado e estiquei a mão,
alcançando a cadeira. Depois de puxá-la para perto, me sentei na
cama e tomei impulso até estar encaixado dentro da cadeira.
Eu ainda tinha muitas inseguranças sobre ficar de pé.
O médico já chegou a me incentivar a fazer um esforço e Killian
um belo dia decidiu que seria uma boa ideia colocar corrimões pela
casa toda para que eu me segurasse quando sentisse fraqueza ou
medo, mas nem assim eu sentia vontade de tentar.
Sendo sincero, eu não sentia vontade de nada.
Via o sol nascer e se pôr todos os dias, assisti a neve derreter até
sumir e dar espaço para uma nova estação, os pássaros voltarem a
sobrevoar meu jardim, entre outras coisas, mas era só.
Não queria assistir tv, porque lembrar que existia um mundo lá
fora me deixava triste por não estar fazendo parte dele. Nem hóquei
eu assistia mais e o máximo que fazia era perguntar a Killian como
estavam sendo os treinos. Fui substituído, é claro, assim como Tony
disse que aconteceria em algum momento.
Só não imaginei que o motivo seria tão amargo.
Empurrando os pneus da cadeira para colocá-la em movimento,
saí do quarto, indo em direção a um dos quartos de hóspede que
agora havia se transformado em uma minicozinha. Já que eu quase
não ia mais para o andar de baixo, decidi trazer o andar de baixo até
mim, e como a casa tinha pelo menos três quartos de hóspedes,
finalmente coloquei um deles para ter utilidade.
Durante o dia, Solange cozinhava e trazia a comida para mim.
Mas quando ela não estava aqui, eu me virava na cozinha adaptada,
ali também tinha tudo o que eu precisava.
Estranhei ao notar que a luz já estava acesa quando parei em
frente à porta entreaberta. Me inclinando para frente e empurrando a
porta com a mão, dei de cara com Skyler parada atrás do balcão
enquanto mordia com vontade uma maçã e rabiscava sem parar em
um caderno.
Maldito Killian.
Ele não era nada confiável.
Pela primeira vez na vida o rapaz me desobedeceu e deixou a
irmã ficar, mesmo quando eu ordenei que fizesse o contrário.
Skyler estava distraída e levou alguns segundos para me ver.
Depois da forma que agi mais cedo, eu esperava qualquer
reação: gritos, horror ou choro. Mas o sorriso que iluminou sua
expressão não era uma delas.
— Pensei que tivesse dito para você ir embora — falei em um
tom baixo, simplesmente porque tinha perdido a capacidade de ser
cordial.
E queria desesperadamente afastar essa mulher de mim.
De alguma forma ela estava ainda mais linda: as bochechas
coradas, o cabelo comprido chegando quase até o bumbum, os
olhos mais límpidos…
Em seu pijama baby doll vermelho de cetim, com renda em
algumas partes, ela era uma visão. Há quanto tempo eu não me
sentia assim, atraído por uma mulher?
Depois de Skyler, eu simplesmente não consegui achar graça em
mais ninguém, e após o acidente, me esqueci de que era um homem
e sentia desejos. Achei que eles se quebraram junto com os meus
ossos. Mas ver Skyler me fez descobrir que eles ainda estavam aqui
dentro, intactos, e mais fortes do que nunca.
— Eu sei e te perdoo por isso. — Ela fechou o caderno e o
segurou contra o corpo.
O caderno lilás.
Com margaridas na capa.
O caderno que sumiu no dia que ela se foi.
Eu sabia que ele não tinha simplesmente evaporado.
— Amanhã pedirei para Solange ligar para alguém vir te buscar
— avisei enquanto ia até a geladeira pegar uma jarra de suco de
laranja.
Precisava me ocupar com algo que me fizesse esquecer da
presença de Skyler.
— Nem pense que ela vai te obedecer. Solange agiu em conjunto
com Killian, se quer saber, e não vai ter coragem de me colocar para
fora. — Ela jogou o restante da maçã no lixo e esfregou as mãos
uma contra a outra.
Estiquei o corpo, tentando alcançar a jarra, mas estava difícil.
Sempre fui um cara alto e era acostumado a conseguir alcançar o
que quisesse.
Ainda não tinha me acostumado a ter a metade da minha altura.
— Além disso — Skyler apareceu ao meu lado de surpresa e
pegou a jarra sem dificuldade alguma —, você precisa de mim.

Ela deixou a jarra em cima do balcão e pegou um copo no


escorredor.
Encarei a geladeira ainda aberta, achando estranho todos os
itens estarem nas prateleiras mais altas. Eu era o único que mexia
nela e jamais os deixaria na parte de cima. Seria um desserviço a
mim mesmo.
— Não mandei que te chamassem — avisei enquanto fechava a
geladeira e ia até o balcão. — Além disso, consigo me virar sozinho.
O suco já tinha sido colocado no copo.
— Eu sei que sim. — Os olhos de Skyler me analisavam o tempo
todo.
Estiquei a mão para pegar o copo, mas ela foi mais rápida e o
alcançou.
A encarei com incredulidade enquanto ela bebia todo o suco de
uma vez, sem afastar o olhar do meu.
— Uma delícia — murmurou depois de engolir. — Você deveria
beber um pouco.
Sem conseguir esconder a carranca, olhei em direção ao
escorredor, mas não tinha mais copos nele. Eu usava apenas um e o
deixava ali para quando quisesse beber algo. Era mais fácil assim.
E Skyler o pegou.
Os outros copos ficavam em um armário um pouco mais alto.
Ela tinha feito de propósito.
— Por que está aqui? — perguntei sem me aguentar, encarando-
a com seriedade. — Seja sincera.
Engolindo em seco, ela deixou o copo dentro da pia e encarou
um ponto qualquer, parecendo querer evitar meu olhar.
— Confesso que também não sei — respondeu em um tom mais
baixo e sorriu levemente, me encarando por debaixo dos cílios
espessos e escuros. — Mas pretendo descobrir.
E assim ela saiu da cozinha, sem nem ao menos desejar uma
boa noite.
Skyler tinha vindo apenas para me torturar. Não tinha outro
motivo.
Mas já que ela não estava disposta a ir embora, era melhor eu
entrar em seu jogo. Se grosseria não a assustava o bastante para
sair, talvez o contrário fizesse efeito.
Saindo da cozinha, passei em frente à porta do quarto de
hóspedes e pelo canto dos olhos, vi meu cachorro deitado em sua
cama.
Ele tinha me trocado, simples assim.
Acho que nem mesmo Zorro aguentava mais minha companhia.
Seria questão de tempo para Skyler também não aguentar.

Na manhã seguinte, fiquei até tarde na cama, mesmo que tivesse


acordado pouco após o sol nascer. Minha mente revivia o momento
que recebi uma das piores notícias da minha vida e infelizmente fazia
isso com frequência.

— Você vai poder andar novamente no futuro, mas por enquanto


será melhor não forçar a perna por algumas semanas.
— E patinar, doutor? — perguntei em desespero, encarando o
homem de jaleco que tinha operado minha perna direita.
Sua expressão não demonstrou otimismo.
— Uma coisa de cada vez, Maverick.
— Eu preciso saber. — Estar grudado a uma cama de hospital,
com a perna completamente enfaixada e amarrada de formas que eu
não conseguia imaginar, tudo para poder colocar os ossos no lugar
novamente, estava me deixando cada vez mais agoniado.
— Apesar do sucesso da cirurgia, nada será igual a antes. Talvez
você não tenha mais a mesma facilidade para executar determinadas
tarefas como antes e isso inclui patinar. Sinto muito.
A ironia da situação gritava com força em minha mente.
"O famoso técnico de hóquei nunca mais irá patinar”.
Ok, o médico não tinha dito exatamente aquelas palavras, mas
eu entendi as entrelinhas.

Suspirando baixo, empurrei a coberta para o lado e me levantei.


Executando o mesmo processo da madrugada, subi na cadeira e
fui até o banheiro. Por mais que não conseguisse andar, minha perna
me permitia ficar de pé por alguns segundos para fazer xixi. Quando
queria tomar banho ou escovar os dentes, eu me apoiava onde
pudesse. Mas não ousava andar, porque a última vez que fiz isso
não foi nada legal.

— Killian! — gritei, deitado no chão do banheiro.


Estava completamente nu e úmido como um cachorrinho de pet
shop.
— Rick? — Killian abriu a porta e arregalou os olhos conforme
me observava.
Eu não consegui encará-lo nos olhos.
Era humilhante demais.
— Preciso de ajuda — proferi as palavras que mais temia. — Fui
tentar andar e acabei aqui.
Para ajudar, minha perna doía como a morte.
— Está tudo bem. — Ele se abaixou e me pegou por debaixo dos
braços, me levantando.
Se fosse qualquer pessoa, não teria forças para me levantar.
Mas Killian não era qualquer pessoa.
Eu me sentia extremamente grato por tê-lo ao meu lado nesse
momento.
Depois de me ajudar a sentar na cama e me entregar algumas
toalhas, ele pigarreou baixo.
— O senhor é bem dotado, treinador.
Soltei uma risada nasal.
Killian tinha o mesmo costume da irmã e fazia piadas em
momentos inapropriados.
Além disso, às vezes ele ainda me chamava de “treinador”.
— Nunca mais vou andar, Kill — murmurei em um tom baixo,
esfregando uma das toalhas na cabeça. — Não vou tentar de novo.
Se acontecer e você não estiver aqui, quem será o próximo a me ver
pelado? Solange?
— Não desista ainda, o médico disse que…
— O médico disse que não voltarei a fazer as coisas como antes
e isso inclui patinar. Então, por que tentar andar? Eu tenho uma
marca de patins e não vou poder patinar. Fui jogador de hóquei e
não vou poder mais deslizar pelo gelo. Seria melhor ter ficado
aleijado de vez.

Jamais iria me esquecer do olhar horrorizado que Killian me


lançou quando proferi aquelas palavras, mas eu me sentia tão
machucado e cansado que não tinha forças ou vontade de tentar
mais nada.
Tinha, em poucas palavras, desistido de mim.
Depois de terminar tudo o que tinha para fazer no banheiro e
trocar de camisa no closet, fui para fora do quarto, com certo receio
de encontrar Skyler novamente. Precisava de uma caneca de café
antes de lidar com a parte mais difícil.
Por sorte, dessa vez ela não estava na cozinha.
Mas esteve, porque uma caneca de café fumegante me
aguardava em cima do balcão. Em um momento ela fazia de tudo
para me atrapalhar; no outro, praticamente colocava nas minhas
mãos.
Apesar de confuso, peguei a caneca e fui até a sala de pintura.
Eu gostava de ficar ali. Por sorte, Skyler também não estava lá.
Parando em frente à janela de vidro, segurei a caneca com as duas
mãos e bebi o café, que por sinal estava delicioso. A chuva do dia
anterior tinha deixado o céu limpo e o sol fez questão de aparecer
para secar a grama, mas eu sabia que mais tarde acabaria chovendo
novamente.
E então eu a vi.
Correndo pelo meu jardim.
E Zorro corria atrás dela.
Em sua mão havia um galho enorme, que ela lançou com força
para longe, e meu cachorro correu com determinação em direção a
ele.
E ela se curvou sobre os joelhos, rindo.
Quase conseguia ouvir seu riso daqui.
Era doce e cativante, parecia eliminar um pouco do silêncio da
minha mente.
E então ela me viu.
E seu sorriso diminuiu um pouco enquanto parecia me analisar
de longe, os olhos âmbares quase fechados pelo esforço de me
enxergar.
E eu, decidido a fazer como prometi a mim mesmo e agir como
ela, ergui a caneca em um cumprimento e sorri.
Ou ao menos tentei.
Fazia certo tempo que não sorria, meio que esqueci a forma
exata de como fazer ou talvez apenas me sentisse estranho sorrindo.
Ainda assim, observar o vento balançar os cabelos compridos de
Skyler conforme ela acenava me fez abaixar lentamente a caneca,
vidrado. O sol atingia com perfeição o rosto da morena, destacando
suas sardas.
— É bom ter essa garota por aqui novamente, não é?
A voz de Solange me tirou do transe e sem encará-la, voltei a
beber meu café.
Não podia negar: era mesmo bom ter Sky por aqui, mas eu não
seria capaz de aguentar por muito tempo.
— Tony vai me levar para almoçar em algum lugar, mas deixei
tudo pronto caso sinta fome — avisou.
— Obrigado, Solange.
— Você não quer descer para ficar com ela? Talvez faça bem
colocar os pés na grama um pouco. Posso chamar Killian para…
— Não — respondi baixo, fazendo-a parar de falar. — Não é
necessário. Obrigado. Mande um abraço para Tony.
Killian viria mais tarde, após o treino, eu não teria coragem de
chamá-lo apenas para me ajudar a descer as escadas.
Além disso, estava sendo bom observar Skyler de longe. A
distância garantia que eu conseguiria manter o controle.
Solange fechou a porta ao sair.
Novamente me encontrei no mesmo estado de sempre: sozinho.
Mas dessa vez eu tinha uma ótima visão e isso foi o bastante
para me fazer ficar satisfeito, ao menos por agora.
Zorro corria quase tão rápido quanto um cavalo, mas não
demorou a ficar cansado. Acho que estava fora de forma,
desacostumado a correr tanto. Eu duvidava que houvesse alguém
aqui que tirasse um tempo para brincar com ele.
Ele abandonou o graveto e sentou em frente à porta fechada,
aguardando o momento em que ela seria milagrosamente aberta
para que pudesse entrar.
Rindo baixo, corri até o cão e abri a porta.
— Amanhã tem mais, amigão — avisei ao entrar depois dele e
fechei a porta atrás de mim.
Solange tinha saído pouco antes, então ao que tudo indicava, a
casa estava vazia.
Tirando a presença de seu dono, é claro.
O mesmo que sorriu para mim e ergueu a caneca de café em um
cumprimento.
Não podia ter sido mais esquisito.
Ontem ele tinha me mandado embora e hoje sorria para mim?
Maverick não era bobo. Ele estava brincando comigo. Mas ele
logo descobriria que a dona do jogo era eu.
Pegando o prato que Solange deixou preparado dentro do
microondas, subi as escadas. Passei em frente à sala de pintura,
mas ele não estava mais lá. Então segui até a cozinha, onde Rick
devorava um sanduíche.
Ele quase engasgou quando me viu.
Bom.
Pousei meu prato do outro lado do balcão, ficando de frente com
o homem que me encarava com a boca cheia e sorri, me sentando
na banqueta.
— Dia lindo, não acha? — perguntei, pegando meu sanduíche no
prato. — Hmmm…
— Você não precisa vir até aqui para comer. Tem a sala de jantar
lá embaixo — avisou Rick.
— Odeio comer sozinha — admiti, porque era verdade.
Minha família sempre foi do tipo que fazia ao menos uma refeição
com todos os membros reunidos.
Eu me acostumei a ter companhia nesses momentos.
Em silêncio, o homem deu uma pequena mordida no próprio
sanduíche, sem afastar o olhar do meu. Estava me examinando, com
certeza.
A verdade é que tínhamos nos transformado em dois estranhos e
a todo momento tentávamos enxergar indícios um no outro do que
havíamos nos transformado. Ao menos era assim que eu me sentia.
— Por que Zorro? — perguntei, enfim, quebrando o silêncio.
— É meu personagem favorito. — Maverick deu de ombros
levemente. — Forte, destemido, mascarado, adorado…
— Eu adoro o filme.
Vi uma curiosidade genuína surgir nos olhos azuis do homem,
que arqueou as sobrancelhas levemente.
— Não sabia que você conhecia.
— Jamais perderia a chance de ver Catherine Zeta-Jones e
Antonio Banderas no mesmo filme. Além disso, gosto do enredo.
— Existem muitas outras produções envolvendo o Zorro.
— E eu pretendo assistir todas elas algum dia. — Dei de ombros
e mordi o sanduíche. — Como eu disse, gosto do enredo — falei de
boca cheia apenas para provocar Rick.
Precisava causar alguma reação nesse homem.
— Você tem? — perguntou ele, contribuindo para a conversa, o
que me surpreendeu.
— Tenho o que? — perguntei depois de engolir.
— Um personagem favorito.
Sorri.
Essa era fácil.
— Willy Wonka.
— O quê? Sério? — Rick parecia realmente surpreso.
— Na verdade é bem óbvio. — Ergui um dedo. — Gosta de
casacos compridos — ergui mais um —, faz terapia — e outros dois
—, é um péssimo piadista e adora chocolate.
— Pensando por esse lado…
— Faz todo sentido! Mas eu… — me silenciei ao ver a expressão
de Maverick. — Está tudo bem?
Ele parecia… Incomodado.
Seus lábios estavam apertados um contra o outro, formando uma
linha fina, e sua testa franzida.
— Só um pouco de dor no joelho. Acontece com frequência.
— Talvez você devesse esticar a perna.
— Pois é. — Abandonando o que sobrou de seu sanduíche, ele
começou a empurrar a cadeira para fora, mas parou antes de sair. —
Tem chocolate escondido em um vaso de barro malfeito na sala de
pintura. Eu deixo lá para os momentos que preciso. Pode… Pode
comer se quiser.
E assim ele saiu.
Eu queria poder ajudar, mas sabia que Maverick era orgulhoso.
Ele gostava de cuidar de si mesmo.
Além disso, conversar com ele sem que ele me mandasse
embora foi um grande avanço.
Gigante, eu diria.
Sorri.
E agora eu sabia onde encontrar chocolate.
Gigante, com certeza.

Ao contrário do que disse que faria, Killian não apareceu depois


do treino. Ele enviou uma mensagem alegando ter torcido levemente
o pé — ele adicionou o “levemente” porque sabia que eu me
preocuparia caso pensasse ser algo sério — e disse que não viria,
mas eu sabia que tudo isso era uma desculpa esfarrapada para fazer
com que eu e Maverick ficássemos sozinhos.
Rick passou a tarde inteira no quarto e decidi não perturbá-lo.
Ao me deixar na cozinha, vi em seu rosto uma expressão
verdadeira de dor e não queria incomodar seu descanso. Eu sabia
como era péssimo ficar com dor e ainda assim ter que dar atenção a
alguém, então lhe dei espaço e procurei o que fazer.
Quando dei por mim, tinha invadido a sala de pintura e encarava
a tela em branco no cavalete, sentindo muita vontade de criar algo.
Eu sei, tinha dito para meu irmão que não estava aqui para pintar, e
realmente não estava, mas eu tinha a tinta, a tela em branco e a
vontade. Talvez eu pudesse fazer alguma coisa apenas para passar
o tempo…
Os primeiros respingos de chuva atingiram a janela quando eu
ainda estava ali e decidi que era hora de trazer um pouco de cor para
essa sala. Pegando a paleta e colocando diferentes cores nela,
escolhi um pincel mediano de cerdas macias e comecei a pintar,
deixando a mente me guiar.
Nos últimos tempos, eu não sabia mais o que era pintar para
relaxar, afinal, todas as minhas artes foram encomendas e eu dava
meu melhor em cada uma delas, mas era impossível relaxar quando
eu precisava fazer algo com a intenção de deixar o cliente satisfeito.
Mas aqui eu me deixei levar.
Não fiz traços perfeitos e precisos, mas deixei minha mão livre
para deslizar como bem entendesse. E foi assim que a hora voou, o
sol foi embora e a lua deu as caras. Devia ser, pelo menos, nove da
noite, demorava a escurecer em Montreal nesta época do ano.
— O que está fazendo? — perguntou uma voz baixa e curiosa.
Encarei minhas mãos, que agora estavam manchadas de todas
as cores que usei, e depois o quadro, antes de me virar para
Maverick e dar um passo para trás, tornando livre sua visão para ver
o quadro.
— Você — respondi, colocando a paleta sobre a mesa e o pincel
dentro do recipiente com água.
Sim, eu tinha desenhado Maverick.
Tinha desenhado a imagem que vi hoje mais cedo ao olhar para
cima e encontrá-lo me encarando através da janela. Apesar de não
ter traços perfeitos, dava para saber sobre o que se tratava a
ilustração.
Lentamente, Rick se aproximou, empurrando a cadeira enquanto
seus olhos azuis se mantinham fixos no quadro.
— É bem melancólico — murmurou com a testa franzida.
— Pois é — soltei um riso sem graça enquanto esfregava as
mãos em um pano.
— É assim que me vê? — Ele se virou em minha direção e me
olhou nos olhos. — Triste e melancólico?
Encolhi levemente os ombros enquanto encarava o quadro e
pensava a respeito.
— Talvez um pouco, sim — admiti e voltei a encará-lo. — Mas
vejo muito mais do que isso…
— Por que foi embora? — perguntou de repente, me impedindo
de terminar. — Da última vez, por que foi embora daquela forma?
Engoli em seco e abaixei o olhar, me lembrando da lembrança
horrível.
— Eu ouvi… Eu ouvi você no banheiro quando disse que não
largaria tudo por causa de uma “aventura sexual” — fiz aspas com os
dedos ao dizer aquela última parte. — Então fui embora, porque
estava cansada de acreditar em você e sofrer por isso.
A expressão de Maverick continuou impassível.
— Então, se sou tão ruim assim, por que está aqui?
— Porque, apesar de tudo, não gosto de guardar mágoa, então
no meu coração eu te perdoei. E quando fiquei sabendo que você
estava nessa situação por ter dirigido com pressa para me alcançar
no aeroporto, me senti culpada.
— E decidiu que era uma boa ideia vir me ajudar seis meses
depois? — Seu olhar era acusador.
— Eu só soube de tudo isso seis meses depois — expliquei,
jogando o pano sujo de tinta na mesa. — Todos me prometeram não
falar de você depois que eu partisse e cumpriram fielmente com a
promessa, mas Killian apareceu lá em casa essa semana e contou
tudo. Não sei em que momento meu irmão passou de “eu odeio ele”
para “vou cuidar dele”, mas aconteceu.
— Killian se culpou porque me deu um soco na têmpora pouco
antes de eu sair com o carro, então pensou que o acidente foi
causado por causa disso. Na mente dele, o soco me desnorteou e
me fez perder o controle do veículo, mas não foi nada disso. Tudo
aconteceu porque eu fui descuidado — seu tom era baixo e triste
conforme ele encarava as próprias pernas. — Ninguém deve se
culpar por esse acidente, nem mesmo você. Sou o único culpado.
— Acidentes acontecem, você não foi o primeiro nem o último,
Maverick. — Sem me aguentar, dei um passo em sua direção e
pousei a mão em seu ombro, sentindo-o ficar tenso debaixo do meu
toque. — Mas não pode desistir de si por causa de um acidente.
— Eu nunca disse que você era só uma aventura sexual — seu
tom saiu baixo, quase rouco, e seu olhar encontrou o meu.
— O que?
— Eu estava em ligação com Kennedy, um maioral da NHL.
Aquela parte que você ouviu foi metade do que eu tinha para dizer. A
intenção daquela ligação foi abrir mão do meu cargo para poder
cumprir tudo o que eu te prometi na noite anterior.
Olhei nos olhos de Rick, sentindo minha garganta se fechar.
Eu tinha feito isso?
Fui capaz de ir embora por ter entendido errado uma situação?
Não podia ser.
Eu o ouvi com clareza.
Mas depois ele foi atrás de mim, me ligou diversas vezes e até se
acidentou, tamanho era o desespero de me alcançar e me impedir de
ir embora.
Alguém faria isso por uma simples “aventura sexual”?
— Ai, meu Deus — murmurei, pousando a mão no peito ao sentir
o coração acelerar.
Eu tinha feito besteira.
Uma besteira que prejudicou alguém.
Como seria capaz de me perdoar?
— Você está se culpando — Maverick disse, parecendo ler meus
pensamentos. — Já falei, não se culpe. Já passou. A vida é o que é.
— Não ache que dizer essas frases de Pinterest vai ajudar. —
Esfreguei minha testa, sentindo a cabeça doer. — Eu sou muito
idiota. Nunca imaginei que me odiaria tanto.
— Vai passar — respondeu Maverick, seco, empurrando a
cadeira para sair dali.
— Rick, espere, eu… O que você disse depois daquilo? —
perguntei, sem aguentar a curiosidade. — Depois de falar que não
largaria tudo por uma aventura sexual?
Ele me olhou por cima do ombro e suspirou baixo.
— Boa noite, Skyler.
Fiquei sozinha na sala de pintura sentindo o coração pesado
dentro do peito, a cabeça doendo e a garganta fechada com a
vontade frequente de chorar.
Todo mundo comete erros.
Era humano.
Mas, da forma mais horrível possível, provei que o que Maverick
disse na primeira noite que dormimos juntos era verdade.
Eu era impulsiva.
E meus impulsos me moveram a fazer a pior merda da minha
vida.
E ele provou que o que eu disse naquela primeira noite era
possível.
Ele perdeu o controle.
Em um único dia, nós dois fizemos coisas que juramos jamais
fazer.
E estávamos pagando por isso.
Ele, com o corpo. Eu, com o coração.
Mas, agora que eu sabia a verdade, não poderia voltar atrás ou
me esconder. Sim, sentia vergonha de mim mesma e demoraria um
bom tempo para conseguir me olhar no espelho novamente, mas
precisava ajudar Maverick a se reerguer. Era o mínimo.
E eu iria fazer isso.
De um jeito ou de outro.
No dia seguinte, praticamente não vi Skyler. Duvidava que ela
tivesse saído do quarto. Ainda assim, achei melhor não ir atrás de
mais informações e aproveitar a paz que sua ausência me causava
— paz, porque quando ela estava por perto eu sempre acabava
desejando coisas que não poderia ter.
Talvez, se eu ainda fosse o mesmo Maverick de antes do
acidente, as coisas fossem diferentes, mas agora eu tinha que
aceitar minha situação. Skyler podia até ter aceitado se envolver com
um quarentão, mas adicionar “amargo” e “quebrado” à essa lista
vinha seguido da palavra “impossível”.
Me senti bem em confrontá-la sobre nosso passado.
Essa nuvem densa que me torturou por tanto tempo precisava ir
embora em algum momento e descobrir que o motivo dela nunca ter
aparecido ou se preocupado comigo nos últimos meses era só
porque não sabia sobre o acidente foi um alívio. Não que eu fosse
deixá-la se aproximar se ela tivesse aparecido antes, de qualquer
forma, mas ao menos saber que ela se preocupou comigo teria me
feito bem.
Mas ela veio assim que soube a verdade.
Não queria pensar no que isso significava para não ter
esperanças.
A verdade é que eu não conseguia sentir raiva de Skyler.
Se ela partiu daquela forma ao entender errado o que eu disse
era porque eu a tinha deixado insegura ao terminar tudo com ela da
primeira vez por causa da minha carreira e da regra idiota que criei.
De certa forma, eu conseguia entender que ela fez isso para proteger
a si mesma, mas eu realmente queria que não tivesse feito. Talvez
estivéssemos juntos até hoje e nada disso tivesse acontecido.
Mas aconteceu.
E agora eu encarava o quadro que ela pintou, me perguntando
quando me tornei aquele homem amargo, sério, opaco. Não foi
quando sofri o acidente, nem quando comecei a usar a cadeira de
rodas.
Foi depois.
Foi quando minha ficha caiu e eu finalmente entendi que Skyler
não faria mais parte da minha vida.
E, agora que ela tinha voltado, eu estava fazendo de tudo para
afastá-la, porque não seria capaz de voltar a ser o que era antes e
ela merecia mais do que isso.
Muito mais do que isso.
— Maverick? — a ouvi gritar.
Deixei a caneca que segurava sobre a mesa e empurrei a cadeira
até estar no corredor.
Avistei Skyler enquanto ela subia o último degrau da escada e
seu olhar se iluminou ao me ver.
A morena estava com um coque alto segurando os fios densos e
escuros, as bochechas coradas e a respiração ofegante. O vestido
amarelo repleto de flores delicadas, transpassado em seu corpo e
amarrado na cintura lhe dava um ar leve e alegre, como o de uma
garota do campo.
— Ah, você está aí! — Balançando uma sacola grande de papel,
se aproximou de mim. — Eu trouxe umas coisinhas — seu tom de
voz extremamente animado me deixou receoso.
Da última vez que a vi, ela dizia que se odiava e parecia
extremamente aflita.
Agora, ela parecia uma pessoa completamente diferente.
— Coi…sinhas? — perguntei, arqueando as sobrancelhas.
Ela parou atrás de mim e começou a empurrar a cadeira em
direção ao banheiro.
— Coisinhas — concordou.
Empurrando a porta do banheiro com a mão, ela me enfiou lá
dentro, me deixando de costas para o espelho e abriu a sacola.
— Vamos dar um jeito em você. — Ela tirou uma navalha de
dentro da sacola e sorriu. — Voilá.
A lâmina brilhou na mão de Skyler.
— Preferia que você me deixasse viver por mais alguns anos —
murmurei, apertando as mãos no apoio de braço da cadeira. — É
sério.
— Minha mão é mais leve do que a de uma fada, se ela existisse.
— Deixando a navalha sobre a pia, ela buscou algo mais na sacola e
tirou uma tesoura de lá. — Prefere comprido ou curto?
— O que?
— O cabelo. — Sua mão voou até meus fios, puxando-os para
cima. — Estão muito compridos.
— Eu… Curtos?
Tentei me virar para me olhar no espelho, mas as mãos firmes da
morena me impediram de continuar.
— Só vou deixar que veja o resultado depois que eu terminar —
anunciou, pegando um pente. — Confie no processo.
— Já fez isso antes? — Não consegui esconder o receio em
minha voz.
Eram muitos itens cortantes juntos.
— Já passei a navalha na bexiga uma vez.
— E ela ficou intacta?
A morena abriu a torneira e me olhou com as sobrancelhas
arqueadas.
— Quer mesmo saber?
— Acho que não.
Depois de molhar meu cabelo, ouvi o som da tesoura conforme
Sky cortava cada mecha.
Tec. Tec. Tec.
A cada tec minha cabeça ia ficando mais leve.
As mãos de Skyler eram rápidas e precisas. Quando encarei
seus olhos, notei o quão concentrados estavam, as írises âmbares
focadas.
Então ela ligou uma maquininha de cortar cabelo e senti meu
coração se acelerar, mas fiquei em silêncio. Confia no processo,
Rick, repeti para mim mesmo.
E então ela se inclinou sobre mim, seus seios ficando bem
próximos do meu rosto, o decote tornando visível o início da
tatuagem entre eles.
Ela não fez de propósito, disso eu sabia. Meu barbeiro costumava
ficar na mesma posição quando cortava meu cabelo, mas ele não
tinha seios, muito menos um cheiro floral maravilhoso emanando de
sua pele bronzeada…
— Droga — ouvi Skyler murmurar.
— Tá tudo bem aí?
— Sim — respondeu com um sorrisinho nervoso no rosto.
Fechei os olhos e comecei a orar.
Depois de alguns minutos, a maquininha foi desligada.
— Já posso ver?
— Não — ela pigarreou. — Não — repetiu menos enfática do que
antes. — Ainda temos a barba.
A tortura se repetiu: Skyler se inclinou até ficar na altura do meu
rosto e começou a trabalhar com a navalha.
Seu hálito atingia meu rosto com leveza e quase pensei que se
ela me machucasse eu não iria sentir nada, de tão amortecido que
me sentia com a visão em minha frente.
Então ela sorriu, satisfeita, e afastou dos meus ombros todo o
cabelo que caiu com um pincel bem grande e fofo.
— E agora? Posso ver?
— Você é muito ansioso — reclamou enquanto mexia na sacola e
começava a misturar algo em um pote de plástico.
— Desculpe se não sou acostumado a deixar meu rosto livre para
qualquer pessoa aproximar uma lâmina dele — resmunguei,
deslizando a mão por meu rosto.
— Não sou qualquer pessoa. Se quisesse te matar, teria feito em
outro momento, de uma forma mais empolgante. — Voltando a ficar
em minha frente, ela pegou com o dedo uma massa verde dentro do
pote e depositou na minha testa.
Era gelado.
— O que está fazendo? — perguntei com a voz aguda, me
encolhendo.
— Skincare. — Ignorando minha reação, ela continuou a deslizar
toda aquela massa por meu rosto com as mãos delicadas. — É só
argila. Vou deixar por uns vinte minutos.
— Vinte?
Ela afastou minha mão quando tentei tocar o rosto e suspirou
baixo.
— Essa sensação gelada vai passar, não se preocupe.
Me dando as costas, começou a lavar as mãos e o pote na pia.
Foi difícil controlar a vontade de tocar meu rosto, mas fiquei
quieto, encarando as paredes claras do banheiro.
Senti algo quente começar a escorrer pelo meu nariz e deitei
levemente o rosto para trás.
— Skyler? — chamei baixinho.
Ela me olhou e logo seus olhos se arregalaram.
— Meu Deus! Eu te machuquei?
— Até diria que sim para te assustar, mas a verdade é que eu
tenho tido sangramentos nasais vez ou outra desde o acidente.
Ela secou as mãos e correu para fora do banheiro, sem dar
explicações.
Menos de um minuto depois, voltou com algo em mãos, que
enfiou no meu nariz antes mesmo de me dizer qualquer coisa.
— Isso vai resolver. — Com as mãos nos quadris, ela parecia
orgulhosa de si mesma enquanto encarava meu nariz.
— O que é?
— Absorvente interno.
— Só pode estar brincando.
— Bradley teve essa ideia genial uma vez, ele vive com o nariz
sangrando.
— Sangrou tanto que acabou o sangue do cérebro do rapaz e
não o deixou mais pensar direito — resmunguei, tocando o tampão
enfiado no nariz.
— Pare de ser chato. Brad é genial — resmungou, pegando o
celular e rindo baixinho.
A luz branca me atingiu pouco depois e olhei em direção à Skyler.
— Você me fotografou?
— Droga de flash — murmurou, dando um passo para trás.
Isso era um sim.
— Apague — ordenei.
— Eu quero guardar para sorrir em momentos que me sentir pra
baixo — explicou com um sorrisinho.
— É sério, apaga isso, eu devo estar ridículo. — Estendi a mão
para tentar pegar o celular da mão dela, mas Sky deu mais um passo
para trás. — Skyler!
— Desculpa! — exclamou bem humorada.
— Vem aqui!
Me inclinei para frente com um impulso forte na tentativa de
alcançá-la, mas acabei tombando a cadeira e cai no chão.
Skyler soltou uma exclamação de horror e se abaixou ao meu
lado.
— Rick! — Ela me segurou pelos braços, me ajudando a levantar.
— Se machucou? Meu Deus, eu apago a foto!
— Estou bem — murmurei, ajeitando a cadeira e fazendo força
para voltar a me sentar nela.
— Me desculpa mesmo — disse Sky com os olhos cheios de
lágrimas. — Não imaginei que fosse cair.
— Estou bem — repeti, enfático, incapaz de encará-la.
Eu tinha caído aos seus pés.
Como o homem fraco que era.
Como conseguiria olhar em seus olhos depois disso?
— Rick. — Senti meu rosto ser erguido quando duas mãos
quentes o seguraram. — Por favor, olhe para mim.
Fazendo uma força sobre-humana, ergui o olhar e encarei Sky.
— Você não precisa passar por isso — sussurrou como se fosse
um segredo nosso. — Você pode andar. Eu conversei com o médico
por ligação e ele confirmou que sua perna direita está pronta para
tentar. Por favor, você precisa tentar.
— Eu já tentei — admiti. — Já tentei e falhei.
— E vai desistir logo na primeira derrota? Não é você o menino
que sofria bullying, mas que passou por cima de todos e fez história?
— É diferente…
— Tem razão, é diferente. — Soltando o meu rosto, ela arrancou
o tampão do meu nariz com um puxão firme e deu de ombros. — Da
última vez não veio alguém da Flórida para te ajudar, mas dessa vez
sim. Eu estou aqui.
Incapaz de responder, apenas a observei jogar o tampão sujo de
sangue no lixo e lavar as mãos.
Tocando meu nariz, notei que tinha estancado o sangramento.
Talvez Bradley não fosse tão patético assim.
— Pode tirar a argila em dez minutos — avisou com o semblante
desanimado e pegou a sacola, caminhando até o quarto de
hóspedes.
— Skyler, espere. — Empurrando a cadeira até o quarto, parei no
vão da porta aberta, observando-a se jogar na cama.
— O que? — perguntou com a voz irritada enquanto encarava o
teto.
Eu ia mesmo fazer isso?
Aparentemente, sim.
Acontece que eu não conseguia lidar com o fato de estar
decepcionando Sky.
— Amanhã… Amanhã eu gostaria de ir lá embaixo observar você
lançar o graveto pro Zorro.
Ela se apoiou nos antebraços e se ergueu levemente para me
encarar.
— Só observar?
— Participar, talvez. Não posso exagerar.
Ela sorriu abertamente.
— Já é um começo. Um bom começo.
Sorri de canto, sentindo meu rosto repuxar por causa da argila,
mas não me importava.
Era um bom começo.
— Um andador?
Maverick olhava para o objeto com horror.
Killian tinha vindo mais cedo, acompanhado de Tony, para ajudar
Rick a descer as escadas. No andar de baixo, ele olhou para a
própria casa como se a estivesse vendo pela primeira vez,
observando os detalhes das paredes, quadros e vasos de planta com
olhos atentos.
Mas ele estava ansioso para ir para o lado de fora e não esperou
para empurrar a cadeira até lá. O sol irradiava um calor
aconchegante. A grama do jardim parecia ter sido pintada nos tons
de verde da minha paleta. Era um dia perfeito. Zorro parecia
extremamente feliz por ter seu dono ali com ele pela primeira vez em
algum — ou muito — tempo.
— Voltar a andar não vai ser fácil, Rick, e você vai ter que ir aos
poucos — expliquei, pousando a mão em seu ombro. — Mas vai dar
certo. Um fisioterapeuta vai te ver algumas vezes por semana, aliás.
Quanto mais ajuda, melhor.
Zorro deitou a cabeça nas pernas de Rick e choramingou, como
se estivesse implorando para começarmos logo a brincar com ele.
— Calma, rapaz, preciso de tempo pra isso. — Rick acariciou as
orelhas do cachorro. — Tenha paciência.
— Quanto antes começarmos, melhor — peguei o andador e o
posicionei de frente para Rick. — E não se preocupe, você não vai
cair.
— Como pode ter certeza? — perguntou de mau humor, puxando
o andador para perto e começando a fazer força para levantar.
— Porque ele — apontei para o objeto — está aqui justamente
para isso e você ainda pode contar com a perna direita. E, se isso
não bastar, eu estou aqui.
Rick riu baixo e assentiu.
— Você tem bons argumentos — admitiu, ficando lentamente de
pé.
Seu corpo tremeu levemente e quando fez menção de voltar a se
sentar, pousei a mão em suas costas, impedindo-o de voltar atrás.
— Treinei eles a noite toda e tem muitos outros guardados aqui
dentro caso seja necessário.
Rick ficou parado, encarando o chão, seus braços fortes
parecendo tensos e os nós dos dedos estavam esbranquiçados
devido a força que fazia ao segurar o andador.
— Se não se adaptar, podemos tentar as muletas. — Empurrei a
cadeira para longe e continuei com a mão apoiada em Rick.
Ao olhar para suas pernas, notei que a direita estava levemente
dobrada.
Ele estava depositando todo o peso na outra perna.
— Quer tentar dar um passo? — incentivei com a voz calma, sem
querer pressioná-lo.
— Acho que quero ficar assim um pouco — sua voz estava
trêmula e ele abriu um sorriso nervoso. — Você pode lançar o
graveto para ele? Zorro vai ficar de mal comigo se demorarmos mais.
— É claro. — Me afastei e peguei o graveto em questão.
Um assovio foi o bastante para atrair a atenção do doberman e
quando ele me viu balançar o pedaço de madeira no ar, suas orelhas
se ergueram e sua boca se fechou, uma posição que eu sabia ser de
alerta.
Ele estava pronto para essa tarefa.
— Jogue naquela direção — instruiu Rick, apontando com a
cabeça. — Ele vai se enfiar no meio das árvores até encontrar o
graveto.
Assim o fiz.
Os olhos escuros de Zorro seguiram o objeto até sumir e logo ele
saiu correndo na direção das árvores com uma tarefa estabelecida
em mente.
Eu ri, me divertindo ao ver como ele ficava feliz quando tinha um
graveto para buscar e me voltei para Rick.
Ele estava mais perto do que antes.
— Você andou? — perguntei, com um misto de orgulho e
decepção.
Queria ter presenciado seus primeiros passos.
Eu cheguei até aqui com ele e era meu direito ver seu avanço.
Mas, ao menos, era bom saber que ele tomou coragem para
andar.
— Queria ter certeza que ainda consigo fazer isso antes de ser
assistido. — E então deu mais um passo, lento e um tanto
atrapalhado.
— Sua perna esquerda saiu mesmo intacta do acidente? —
perguntei com curiosidade.
— Tendo em vista como a direita ficou, eu poderia dizer que sim,
mas houve torção e deslocamento do osso, algo que foi resolvido
com um puxão firme e uma dor infernal.
— Que droga.
— Pois é — ele fez careta —, mas a perna esquerda não dói
mais, só não é tão firme quanto antes. E a direita dói às vezes, mas
fica menos frequente a cada dia.
— Nunca sentiu raiva de mim, Rick?
Ele ergueu o olhar e me encarou com seriedade, passando os
olhos por todos os detalhes do meu rosto, antes de rir baixo e
balançar a cabeça, encarando o horizonte.
— Se senti, não lembro. Até onde sei, o que senti sobre você é
algo completamente oposto.
Desviei o olhar e observei Zorro se aproximando com um galho
gigante na boca.
— Acho que ele pegou o galho errado — avisou Rick, rindo ao
observar o cão.
— Meu Deus, como terei forças para lançar isso?
— Ele está te desafiando.
Arqueei as sobrancelhas.
— Quem? Deus?
Maverick soltou uma risada alta e sincera, do tipo que eu não
ouvia desde…
Desde muito tempo.
Solange apareceu na janela, inicialmente com um olhar
preocupado, mas ao ver que Rick estava feliz, ela sorriu e fez um
“joinha” para mim.
— Zorro — respondeu enfim Maverick, me olhando com
divertimento no olhar —, mas, tendo em vista o que você aguentou
desde que chegou aqui, talvez Deus também esteja colocando
desafios em sua vida.
— Meu maior desafio foi ficar longe de você — admiti em voz
baixa e acho que Rick ouviu, pois um músculo saltou em sua
mandíbula, o mesmo que eu já conhecia bem.
Um carro preto apareceu no caminho de cascalho que levava até
a porta da casa, nos obrigando a esquecer o que acabei de dizer e
achei melhor assim.
Eu precisava controlar minha boca.
— Quem é? — perguntou Rick, encarando o homem baixo que
descia do carro com um monte de coisas.
— Acho que é o fisioterapeuta — respondi, também olhando para
o homem, que acenou.
— Ah.
Killian foi quem resolveu isso para mim e pesquisou o melhor
fisioterapeuta da região.
Não consigo descrever a felicidade de meu irmão ao saber que
Rick tinha aceitado finalmente iniciar o tratamento. Suas palavras
incluíram algo sobre saber que estava certo ao ir me buscar na
Flórida, depois ele disse que eu operava milagres e finalizou
prometendo que na próxima semana viria me buscar para
comemorarmos no Reinor’s.
— Enquanto você fica com ele, eu vou guardar essa cadeira em
um lugar bem escuro e escondido dentro da sua casa — avisei,
apontando para a pobre cadeira parada longe de nós.
— Não sei se é uma boa ideia…
— Rick, não chegamos até aqui — apontei para o andador —
para voltar para lá — apontei para a cadeira. — Em breve vamos nos
desfazer dele também, então aproveite enquanto pode.
— Você é insistente.
— Só porque quero te ver bem — respondi com sinceridade e
depositei um beijo em sua bochecha. — À luz do dia consigo ver que
sou uma péssima barbeira, mas você ficou bem assim. Na verdade,
você fica bem de qualquer jeito.
— Pensei que você fosse tirar a barba. — Rick deslizou a mão
pelo rosto.
— Eu gosto dela, só precisava de um pequeno reparo. — Apesar
de falar da barba, não me referia apenas a ela.
— Obrigado por ontem… Eu precisava disso. Precisava me
cuidar. Mas não tinha forças, sabe?
Eu conseguia entender.
Era mais do que algo físico.
Envolvia o emocional e se ele estava sem forças, então até a
pessoa mais forte do mundo não conseguiria erguer um dedo sequer.
— Será sempre um prazer passar argila no seu rosto e enfiar
absorventes internos no seu nariz.
Me afastei ainda ouvindo Maverick rir.
Ele tinha rido mais nessa manhã do que eu conseguia me
lembrar.
Nem no passado eu me lembrava de tê-lo visto rir assim: leve,
como se um peso tivesse sido tirado de seus ombros.
Empurrando a cadeira para dentro da casa, prometi a mim
mesma que sempre faria de tudo para ver Maverick alegre, porque
isso também me deixava feliz e por mais que essa descoberta
tivesse balançado meu mundo, eu já fazia ideia do que iria acontecer
se eu voltasse para cá.
Era impossível deixar meu coração longe de Maverick.
O fisioterapeuta não teve dó de mim.
E eu não me importei com isso.
Depois de tanto tempo parado, eu sentia um gás inexplicável
dentro de mim, uma vontade de tentar, mesmo com medo. E o medo
era grande. Medo de falhar, de decepcionar alguém —
especialmente Skyler, que parecia tão esperançosa —, e
especialmente medo de desistir e descobrir que eu realmente não
tinha mais conserto.
— Quem diria, hein? — brincou Killian enquanto abotoava minha
camisa social escura, escolhida por ele mesmo. — O poder de uma
mulher na vida de um homem é subestimado. Em apenas alguns
dias ela conseguiu o que eu não consegui em meses.
— Saint Clair…
— Tudo bem, eu te perdoo por isso, não precisa se explicar! —
me cortou, se afastando para pegar alguma coisa.
Eu estava sentado na poltrona enquanto ele me vestia.
Pois é, eu podia fazer isso sozinho, mas o rapaz estava
estranhamente animado e solícito. Não quis magoá-lo ao negar sua
ajuda.
— Obrigado por ter trazido sua irmã. — Deslizei a mão por meu
cabelo, agora bem mais curto do que antes e com falhas em alguns
lugares. — Eu sei que me tornei um ser humano obscuro e
desagradável, mas Sky…
— Eu sei, ela tem algo. — Killian se aproximou novamente e
borrifou tanto perfume em minha direção que comecei a tossir. —
Não é só porque Sky é minha irmã, mas eu sei que ela é especial.
Muito especial. Sempre foi. É por isso que nunca concordei muito
com a relação dela e daquele Tyler, eu queria ver minha irmã ao lado
de alguém que soubesse valorizar o quão especial ela é, e por mais
que tenha sido difícil de engolir no início, agora enxergo que você,
treinador, sabe valorizar minha irmã como ela merece.
— Pra quê tanto perfume, eu posso saber? — perguntei com a
garganta arranhando e me levantei antes que Killian tentasse mais
alguma coisa.
O andador era bom, mas eu sentia que logo acabaria desistindo
dele.
Me sentia um idoso corcunda sempre que o utilizava.
— Porque hoje nós vamos comemorar sua evolução. — Killian
me olhou dos pés à cabeça e sorriu com satisfação. — Bonitão.
— Nós quem?
— Algumas pessoas.
Ele não era bom em esconder as coisas.
— Você já contou a ela a verdade? — Killian perguntou, cruzando
os braços.
— Não e nem sei se vou. Algumas coisas é melhor deixar no
passado. Não quero confundir Skyler ou fazê-la pensar que sou o
mesmo homem por quem ela se apaixonou ano passado.
— Mas… Mas você não é apaixonado por ela até hoje?
Os olhos cor de mel de Killian Saint Clair pareciam repletos de
preocupação.
— Kill, você trouxe sua irmã até aqui para quê exatamente?
Ele desviou o olhar.
— Pensei que vocês merecessem finalmente ficar juntos já que
agora não tem nenhuma regra que os separe.
— Killian… — Respirei fundo e fechei os olhos, massageando um
ponto na minha testa.
— Eu sei que vocês sofrem com toda essa distância e não vejo
porquê sofrer à toa quando se pode resolver tudo com um pouco de
diálogo e sinceridade.
Ter vinte e poucos anos era assim: você pensa que tudo é fácil de
ser resolvido e que o amor é simples assim, basta diálogo e
sinceridade.
Mas, depois de algum tempo, você descobre que a vida é mais
complicada do que isso.
— Sua irmã merece alguém melhor do que o homem que me
tornei — murmurei, colocando fim ao assunto, simplesmente porque
falar sobre Skyler ainda era difícil para mim.
Especialmente ter que admitir que eu não era mais capaz de ser
a pessoa que ela merecia.
— Se o senhor diz, não vou discutir. — Killian me seguiu para
fora e me ajudou a descer os degraus quando cheguei na escada.
A casa estava silenciosa, o que era anormal desde que Skyler
chegou.
Mas a luz da sala de jantar estava acesa.
Caminhando devagar até lá, com Kill logo atrás de mim, me
surpreendi com os gritos e aplausos quando parei na porta da sala e
dei de cara com todos os rapazes do time que um dia fui técnico.
Todos os rostos que eu conhecia tão bem…
Killian deu um tapa em minhas costas e riu.
— Eles sentiram saudades e agora que tenho certeza que você
não vai atirar um vaso no primeiro que passar pela porta, decidi que
era um bom momento para virem te ver — explicou, puxando a
cadeira da ponta da mesa e me chamando com um aceno.
Mas não consegui me mover.
Todos os rapazes me conheceram quando eu estava em minha
melhor forma, quando eu conseguia fazer uma competição de supino
e ainda vencer, quando eu conseguia patinar com a mesma
facilidade que respirava…
Eles com certeza sabiam que em algum momento me envolvi
com a irmã de Killian, o que ia completamente contra nossa regra,
mas não vi ódio ou mágoa em seus olhares, como pensei que seria.
Eu vi admiração.
Como se nada tivesse mudado.
E simplesmente não consegui me aguentar.
— Ah, não! — gritou Colin Leblanc. — Vai chorar, treinador?
— Vai chorar! Vai chorar! Vai chorar! — Bradley puxou o coro.
Como não chorar diante dessa cena?
Não era um choro de tristeza, mas de alívio, e acima de tudo,
alegria.
Eles estavam aqui por mim, para mim.
Por tanto tempo os afastei, acreditando que jamais conseguiria
lidar com a rejeição e indignação, que nunca passou por minha
mente ver uma situação diferente daquela.
Nunca antes chorei na frente deles.
Mas por que me segurar?
— É tão bom te ver, treinador. — Shawn, que nem vi quando se
aproximou de mim, agora me abraçava.
— Sai daí, puxa-saco! — reclamou alguém.
— Deixa ele, faz tempo que ele chora com saudade do treinador
— Brad retrucou.
Sequei os olhos e ri baixo, negando com a cabeça.
Tinha sentido tanta falta disso.
Dessas discussões sem sentido e provocações.
Shawn me acompanhou até a cadeira e afastou o andador
quando me sentei.
Uma taça de vinho foi colocada em minha frente.
Passei os olhos por todos sentados à mesa, mas não encontrei o
rosto que procurava.
— Minha irmã a levou para sair um pouco — avisou Colin. — Ela
provavelmente vai dormir fora, espero que o senhor não morra de
saudades. Claire a convidou para uma excursão por Quebec.
Ri baixo.
— Senti saudades do seu humor, Leblanc.
Além disso, eu tentaria mesmo não “morrer” de saudades.
Descobrir que Killian Saint Clair tinha trazido Sky até aqui para de
alguma forma nos aproximar novamente foi um pouco estranho. Eu
sabia que ele tinha me perdoado pelo tempo que escondi minha
relação com ela, mas não imaginava que ele apoiaria a ideia de eu e
sua irmã reatarmos — ideia essa que ele precisava esquecer, porque
não tinha possibilidade de Sky e eu darmos certo agora.
Ela era jovem e merecia alguém que a acompanharia quando ela
quisesse sair para dançar, que toparia suas aventuras e a protegeria
caso algum babaca a encurralasse em uma rua deserta.
Eu não tinha mais a capacidade de ser essa pessoa.
— Treinador, agora que não está mais no time, pode contar pra
gente quem era seu favorito?
Todos os olhares se voltaram para mim.
— E você ainda tem dúvidas? Olhe só quem ele escolheu para
ficar perto dele esse tempo todo! — Colin apontou para Killian, que
encolheu levemente os ombros e bebericou um pouco de vinho.
— Isso é só porque ele não tinha a Saint Clair que ele queria,
então ficou com o que sobrou. — Bradley abriu um sorriso
provocante. — Duvido que Killian vai passar tanto tempo aqui a partir
de agora.
— Ei, cara, como se sente sabendo que o treinador está pegando
sua irmã?
A mesa ficou silenciosa depois da pergunta de Colin.
Todos olharam para Killian, parecendo se perguntar se ele voaria
no pescoço do amigo ou no meu.
Mas tudo o que Killian fez foi demonstrar indiferença.
— Pelo menos vou poder dizer que o melhor técnico que a
Montreal Monsters já teve é meu cunhado, enquanto vocês, seus
babacas, vão continuar chupando o dedo até decidir quem é o
favorito dele.
Nunca ouvi os rapazes gritarem tanto.
Colin ficou vermelho como um pimentão.
Era a primeira vez que eu via Killian lhe dar uma resposta tão
afiada.
— Já chega, já chega — falei quando o riso foi ficando cada vez
mais baixo, até se silenciar de vez. — Não quero ver ninguém
falando de Skyler dessa forma. E se estão tão curiosos, saibam que
não estou “pegando” a irmã do Killian — fiz aspas com os dedos —,
então chega dessas especulações.
— Poxa, realmente pensei que tinha um romance aí. — Bradley
pareceu triste.
— Que droga. Vou ter que encontrar outra forma de zoar Kill. —
Colin revirou os olhos.
— Preciso pedir perdão a todos vocês pela quebra de confiança
— falei, chamando a atenção para mim novamente. — Eu criei uma
regra e depois passei por cima dela, mesmo sem ter o direito. Não fui
o homem de confiança que prometi ser e me arrependo por isso,
mas…
Parei de falar ao notar o que tinha acabado de falar.
Me arrependo por isso.
Será mesmo?
Olhei para Killian, que arqueou as sobrancelhas, e depois para os
outros rapazes, que pareciam tentar decifrar o que eu estava
pensando.
— Acho que vocês merecem saber a verdade. — Bebi um pouco
de vinho antes de continuar: — Me arrependo de ter quebrado a
confiança de vocês, mas faria tudo novamente. Nunca conheci
alguém tão especial e nenhuma regra seria capaz de me deixar
arrependido por tudo o que passei com ela.
Silêncio.
Todos os olhares focados em mim.
Será que eu tinha chocado os rapazes?
Provavelmente.
— Eu sabia que o senhor era um romântico — Bradley foi o
primeiro a falar.
Talvez eu fosse.
E então, quando todos decidiram dar uma opinião, a sala virou
um verdadeiro mercado de peixe. Alguns fazendo apostas sobre
quando eu e Skyler nos casaríamos, outros indo além, sobre quantos
filhos teríamos.
Eu ri, porque não podia dissuadir os rapazes a desistir dessas
ideias malucas, mas dentro de mim eu sabia que nada disso iria
acontecer.
E tinha que lidar com isso.
A excursão foi maravilhosa, mas durou mais do que eu
esperava.
Eu pretendia ficar fora um dia e uma noite, mas fiquei o dobro
disso.
Conhecemos as riquezas naturais da província, passamos a noite
em um hotel e depois visitamos um lugar com paisagens
extraordinárias. Tirei diversas fotos, gravando em minha mente o
máximo de detalhes possíveis para fazer uma ilustração depois.
O ônibus quebrou no meio do caminho de volta a Montreal e
fomos obrigados a passar um dia inteiro aguardando por ajuda, já
que estávamos no meio do nada, em um lugar onde não tinha sinal
de internet e ficava cheio de lama quando chovia. A ajuda só chegou
quando estava anoitecendo.
Claire se divertiu muito com tudo e eu talvez tivesse me divertido
mais também, mas não foi o que aconteceu e eu sabia o motivo.
Minha mente estava em outro lugar, preocupada com outra
pessoa e eu não conseguia evitar.
Será que Maverick estava bem?
Ele estava conseguindo passar por cima dos medos e não
desistir?
O fisioterapeuta era mesmo bom?
Alguém estava jogando o graveto para Zorro?
Eram tantas perguntas, eu só conseguiria ficar bem ao chegar na
casa de Rick e ver tudo com meus próprios olhos.
— Você não se esqueceu dele, não é? — perguntou Claire com a
voz sonolenta.
Já era quase madrugada e o ônibus tinha acabado de chegar em
Montreal.
Estávamos quebradas, Claire mais do que eu, aparentemente.
— Eu…
— Não precisa ter medo de me contar, eu sou sua amiga. — Ela
fechou os olhos. — Só acho que ele não te merece depois de tudo
aquilo.
Claire me ajudou no meu pior momento, quando eu estava
destruída ao pensar que Maverick tinha mentido para mim.
E ela ainda não sabia a verdade.
Eu não queria estragar a viagem contando meus dramas, mas
talvez fosse hora de contar a ela.
— Ah, Claire… Eu fui tão precipitada e entendi tudo errado.
Ela voltou a abrir os olhos claros e me encarou.
— O que quer dizer?
— Aquilo que eu ouvi ele dizer… Na verdade, ele estava em uma
ligação com alguém da NHL, abrindo mão do cargo de técnico,
apenas para ficar comigo.
— Mentira.
— É sério!
Claire ficou em silêncio e encarou a janela do ônibus, pensativa.
— Então é por isso que ele parecia tão fora de si na porta de
Colin, pouco antes do acidente — murmurou, como se as
engrenagens de sua mente estivessem se encaixando.
— Eu não consigo evitar me sentir péssima.
— Então, agora que vocês sabem a verdade, por que não ficam
juntos de vez?
— Não é tão simples — murmurei, desviando o olhar. — Maverick
não demonstra, mas sei que deve ter mágoa de mim depois de tudo
o que fiz. Quando cheguei em sua casa, a primeira coisa que ele fez
foi me mandar embora.
— Então o que pretende ficando na casa dele e colocando seus
sentimentos em jogo?
— Eu vou me controlar. Vim aqui para ajudá-lo a se reerguer e
assim que isso acabar, eu vou embora. Ontem recebi um e-mail e
acho que vou responder.
Claire se empertigou e me encarou.
— Que e-mail?
— Uma galeria italiana me convidou para expor um de meus
quadros nela durante dois meses, muita gente passa por lá e é uma
ótima oportunidade para atrair pessoas importantes.
— Amiga! — Claire apertou minhas mãos. — Isso é maravilhoso!
— Eles viram a arte que fiz para a Patins Stanwick e me
ofereceram essa oportunidade. Eles apoiam artistas jovens que
ainda estão buscando crescer na área.
— Você tem que ir! Além disso, vai poder conhecer a Itália, é um
sonho. Só massas e vinhos de qualidade, homens bronzeados e
lugares históricos. Ah, a Itália…
Claire parecia mais feliz do que eu fiquei quando recebi o e-mail.
A verdade é que eu fiquei, sim, feliz, mas mais uma vez ter que
partir e me afastar de Maverick não era algo muito atrativo para meu
coração. Ainda assim, eu não poderia ficar na casa dele para sempre
e ir direto para a Itália poderia ser bom para mim.
— Vai trazer uma lembrancinha para mim? — perguntou Claire,
voltando a fechar os olhos.
Sorri.
— É claro.

Era exatamente duas da madrugada quando entrei na mansão de


Maverick, aliviada por finalmente poder descansar em uma cama
confortável.
A casa estava escura e silenciosa, mas tudo parecia exatamente
igual e andei na pontinha dos pés para não fazer barulho. Subi cada
degrau da escada com cuidado, iluminando o caminho com a luz do
meu celular e fui direto para a porta do quarto de hóspedes.
— Você voltou.
Quase gritei de susto ao ouvir a voz forte e baixa vindo da porta
de Maverick.
Olhando em sua direção, pousei a mão no peito para acalmar o
coração acelerado e o observei através do pequeno vão da porta
aberta.
Com o escuro, o máximo que consegui foi ver o brilho de seus
olhos.
— Meu Deus, você tinha que me assustar desse jeito? —
perguntei, ofegante, e balancei a cabeça.
— Só quis ver com meus próprios olhos que você não fugiu de
novo. Boa noite.
Ele fez menção de fechar a porta, mas eu não podia deixar.
Não depois do que ele disse.
— Rick, por favor… — falei em um tom baixo. — Você sabe que
não vou fugir.
— Como posso ter certeza? A informação que recebi é que você
estaria de volta ontem — senti certa mágoa em sua voz.
— O ônibus quebrou.
— O ônibus quebrou — repetiu, seco.
— Por que tudo isso, afinal? Sentiu saudades de mim?
Maverick não respondeu.
Então eu estava certa. Ele sentiu mesmo saudades de mim.
Não consegui segurar o sorrisinho que surgiu em meus lábios,
nem o calor que atingiu meu coração.
— Ah.
— Pois é — respondeu baixo. — Mas, enfim. Você voltou.
Encarei seus olhos.
— Eu também.
— O que?
Engoli em seco.
— Também senti saudades — conclui antes de abrir minha porta.
— Boa noite.
— Boa noite.
Fechamos a porta ao mesmo tempo.
Mas, ao fechar os olhos naquela noite, minha mente foi tomada
por sonhos com Maverick. Não os mesmos sonhos de antes, com o
Maverick que conheci no fim do ano passado, mas novos, com o
Maverick levemente carrancudo e sentimental que eu estava
convivendo.
E, de alguma forma, eu consegui desejá-lo tanto quanto o desejei
antes.

No dia seguinte, Rick recebeu visitas o dia todo e praticamente


não nos vimos.
Agora que as pessoas sabiam de sua evolução, queriam poder
vir ver com os próprios olhos. Enquanto ele conversava com o atual
técnico do Montreal Monsters na sala do divã, recebi um homem
baixo chamado Kennedy e o levei até a cozinha para aguardar
alguns minutos até que Rick pudesse vir recebê-lo.
Ele me observava com curiosidade, o que quase me deixou
incomodada enquanto lhe servia um copo de suco de morango.
Abri um sorriso sem graça e desviei o olhar, me perguntando o
que tinha de errado com o homem. Ele tinha se recusado a sentar na
cadeira que ofereci, mantendo os braços cruzados e a expressão
deixando claro o descontentamento.
— Então você é a mulher que virou a cabeça de Maverick
Stanwick — anunciou e eu não sabia dizer se estava bravo ou
admirado.
— Eu… Sou?— Arqueei as sobrancelhas e lhe estendi o copo de
suco, mas ele não pegou.
— A beleza é extraordinária, mas já o vi com mulheres tão
bonitas quanto. — Ele coçou o queixo. — Algumas até mais.
Pousei o copo na ilha da cozinha, ainda me sentindo confusa, e
olhei em volta, me perguntando se ele estava falando sobre outra
mulher que pudesse estar aqui.
Infelizmente, eu era a única.
— Maverick era o melhor que nós tínhamos, mas você acabou
com ele. — Finalmente demonstrando raiva, ele apontou o dedo em
minha direção. — Você o destruiu e agora tem coragem de voltar
aqui para ver o estrago que fez.
Dei um passo para trás, sentindo o coração acelerar dentro do
peito.
— Eu não destruí ninguém — tentei me defender, ainda me
sentindo confusa com a súbita agressividade do homem para cima
de mim. — O senhor não me conhece.
— Conheço mais do que imagina, Skyler. Rick me ligou no dia
que sofreu o acidente e contou que estava apaixonado pela irmã do
capitão do time e que estava disposto a largar tudo por você. Ele
disse que você era diferente, especial, que era a mulher que ele
queria para a vida dele e toda essa baboseira que homens
apaixonados falam. E logo depois ele correu com o carro até quase
se matar. Quer mesmo que eu acredite que uma coisa não tem nada
a ver com a outra?
Engoli em seco.
Então essa era a parte que Rick decidiu não me contar no outro
dia?
Que ele tinha dito todas essas coisas durante a ligação?
E por que esse homem estava jogando tudo isso na minha cara?
— O mínimo que você deveria fazer é não dar as caras por aqui
nunca mais — continuou, praticamente cuspindo em mim. — Deixe
Maverick em paz ou então eu vou prejudicar seu querido irmãozinho
até ele…
— Conclua essa frase, Kennedy, e vai descobrir que o acidente
não me tirou a capacidade de dar um soco bem dado na cara de
quem merece — veio a voz de Rick conforme ele entrava na cozinha,
acompanhado do atual técnico do Montreal Monsters.
— Boa tarde, Kennedy — disse o homem de braços cruzados e
expressão séria. — Tenho a impressão de que você estava prestes a
concluir uma ameaça ao capitão do meu time.
Kennedy riu e encarou Maverick.
— Você está fazendo tudo isso por causa dela? Sério? —
perguntou, apontando para mim. — Você já teve melhores, Maverick.
— Saia da minha casa agora, Kennedy — a ordem de Rick veio
baixa e séria.
— Eu vou acompanhá-lo até a porta, já estava de saída mesmo.
— O técnico deu um tapa no ombro de Rick antes de encarar
Kennedy. — Você primeiro.
— Nunca deveria ter dado meu voto de confiança a um homem
tão fraco, que deixa qualquer mulher destruí-lo — falou Kennedy
antes de nos dar as costas.
Só consegui voltar a respirar direito quando ouvi a porta da frente
se fechar.
Minhas mãos tremiam e meus olhos se encheram de lágrimas.
Olhei para Rick, que agora usava uma muleta debaixo do braço
esquerdo e senti uma lágrima escorrer.
Ele xingou baixo e andou até mim com dificuldade.
— Exclua da sua mente agora mesmo tudo o que Kennedy te
falou — disse baixo, olhando para mim. — Agora, Skyler.
— Mas como, se ele estava certo?
— Kennedy só está com raiva porque eu tive coragem de seguir
meu coração. Foi ele quem disse que eu estava largando tudo por
uma aventura sexual e que em algumas semanas você não estaria
mais aqui. E agora ele chega e é recebido justamente por você…
— Ele me contou o que você disse na ligação. — Sequei minhas
lágrimas e encarei Rick. — Aquilo que você não quis me contar
naquela outra noite.
Ele desviou o olhar.
— Entendo.
— Por que não quis me contar que em algum momento já sentiu
que eu era a mulher da sua vida?
— Porque eu ainda sinto isso, droga! — exclamou, me dando as
costas. — E eu não posso nutrir mais esse sentimento dentro de
mim!
— Rick, você não pode sair andando depois de me dizer uma
coisa dessas! — Andei em sua direção e me coloquei em sua frente,
o impedindo de continuar a andar. — Por que não pode mais nutrir
esse sentimento dentro de você?
Ele não me encarou ao falar:
— Você é jovem, cheia de vida, alegre e risonha. Eu não serei
capaz de acompanhar seu ritmo, você merece alguém que consiga
te levar para dançar, para patinar, alguém que consiga ser bom o
bastante para… Para você.
— Rick… — Pousei a mão em seu rosto, obrigando-o a me
encarar e sorri levemente. — Eu não quero essas coisas se não for
com você.
Sua testa franziu levemente.
— O que quer dizer?
— Exatamente isso. — Sorri. — Eu quero você, Maverick.
Ele piscou, engoliu em seco, olhou em volta, como se estivesse
procurando alguma coisa.
— O que foi? — Arqueei as sobrancelhas.
— Só quero ter certeza de que ninguém vai entrar aqui
anunciando que é uma pegadinha.
Não consegui segurar o riso.
— Não é uma pegadinha — murmurei, me erguendo na ponta
dos pés. — E eu posso provar.
— Ah, é? — Ele abaixou levemente o rosto, seus olhos descendo
até meus lábios.
Assenti e aproximei nossos lábios, sentindo a respiração de Rick
se misturar com a minha.
Eu não podia acreditar que iria beijá-lo depois de tanto tempo,
depois de desejar isso pelos últimos meses inteiros…
— Olha quem veio te ver! Ah… — a voz de Solange morreu
quando ela nos viu.
— O que foi, querida? — Tony, seu namorado, olhou em nossa
direção e sorriu. — Ah, o amor.
Dei um passo para trás, me afastando de Rick e abri um
sorrisinho amarelo.
— Eu preciso ir lá em cima terminar uma coisa — avisei, incapaz
de encarar todo mundo.
Rick soltou uma risada abafada.
— Sky? — me chamou antes que eu abandonasse o cômodo e
me encarou com intensidade antes de falar: — Esta conversa ainda
não acabou.
Sorri.
Eu sabia que não.
Pouco após anoitecer, recebi uma ligação dos meus pais.
Eles estavam arrumando as malas para vir passar uns dias
comigo.
Hugh não viria dessa vez, porque alguém tinha que ficar na casa
para cuidar dos pássaros do meu pai.
Eles estavam ansiosos para me ver.
Eu sentia saudades dos meus pais, mas não aceitei que me
visitassem durante todo esse tempo porque não aguentaria ver
minha mãe chorar ou meu pai sentir pena ao ver como o acidente me
deixou. Mas, agora que eu estava um pouco melhor e tinha
abandonado a cadeira, me sentia mais confiante para vê-los.
O fisioterapeuta estava chocado com a rapidez com que eu
estava evoluindo e a verdade é que se tratava mais da minha mente
do que do meu corpo. Quanto mais confiança eu sentia para dar um
novo passo, mais rápido as coisas aconteciam e mais passos eu
sentia vontade de dar. Meu corpo tinha capacidade para andar, eu só
precisava me acostumar novamente e isso incluía parar de precisar
de objetos de apoio o tempo todo. Começou com a cadeira e poucos
dias depois dei tchau para o andador. Agora que estava usando
apenas uma muleta, mal podia esperar para finalmente migrar para a
bengala.
— Rick? — Ouvi Skyler dar batidinhas na porta da sala. — Posso
entrar?
Estava chovendo forte lá fora e as luzes piscavam vez ou outra.
Sentado no divã, eu acariciava as orelhas de Zorro, que apoiava
a cabeça em minha coxa.
— É claro — respondi, me virando para observar Sky entrar e
fechar a porta.
— Tem mais algum visitante chegando aí que eu deveria saber?
— brincou, vindo se sentar ao meu lado no divã.
Ela estava com as mãos manchadas de grafite, sinal que andou
criando esboços.
— Na verdade, sim. — Sorri de canto e olhei para Zorro. — Meus
pais estão vindo aí.
— Quando? Hoje? — Senti pânico em sua voz e neguei com a
cabeça, tranquilizando-a.
— Talvez amanhã. Não sei o horário.
Ela encarou a lareira, que estava apagada, e engoliu em seco
audivelmente.
— Então é melhor eu ir embora.
— Não. — Segurei sua mão e a apertei levemente. — Depois do
que falamos hoje mais cedo, como vou aguentar se você for embora
novamente?
Ela me encarou com aqueles olhos âmbares intensos e sorriu.
— Eu vou voltar. Eu sempre volto. Mesmo que demore dias ou
meses. Eu acabo voltando e você sabe disso.
— Não quero mais ter que esperar meses pelo seu regresso, Sky.
— Levei sua mão até minha boca e depositei um beijo ali. — Isso me
quebraria muito mais do que o acidente que sofri. Sua ausência foi o
que me deixou assim, amargo e desagradável, não os machucados.
E depois que você voltou, eu consegui finalmente me reerguer.
Consegui sentir vontade de viver novamente.
— Eu aprendi a patinar — ela revelou, sorrindo com os olhos
levemente tristes e me olhou. — Segui suas dicas e pratiquei. Agora
eu consigo patinar sem levar nós dois para o chão, Rick.
Meu coração apertou.
Abaixei o olhar, incapaz de encará-la nos olhos.
— Eu nunca mais vou conseguir patinar, Sky.
— O que? Quem disse isso?
— O médico.
Ela ficou em silêncio, sua respiração forte sendo a única coisa
que eu conseguia ouvir.
— Não — falou depois de um tempo, negando com a cabeça. —
Eu não aceito isso.
— Sky…
Ela se levantou abruptamente e começou a andar de um lado
para o outro, com as mãos apoiadas nos quadris.
— Eu não aceito “nunca” como resposta, Rick. Patinar era sua
vida, por causa de mim você dirigiu daquele jeito e acabou perdendo
o controle e…
Ela começou a soluçar conforme falava e eu me levantei, porque
não conseguia vê-la se culpar e ficar parado.
As coisas que Kennedy falou mais cedo ainda estavam na mente
de Skyler e agora eu sabia o quão mal fizeram a ela. Se eu o visse
novamente, provavelmente daria o soco que falei.
Deixando a muleta para trás, manquei até ela, sentindo meu
joelho latejar no processo, mas o ignorei.
— Skyler — falei em um tom alto, puxando-a pela cintura e a
abracei.
Ela silenciou e chorou baixo no meu peito, os braços trêmulos
segurando minha cintura.
— Algumas coisas são o que são, Sky… — murmurei,
acariciando seu cabelo em uma tentativa de acalmá-la. — E talvez…
Ela ergueu o olhar para mim e apoiou o queixo em meu peitoral.
— O que?
Desviei o olhar e sorri.
— Talvez essa seja a oportunidade da gente provar que aquilo
tudo não era apenas um lance.
Afinal, era fácil gostar quando tudo estava bom e fácil.
Mas o amor de verdade surgia das dificuldades, assim como Tony
me disse.
Eu acreditava nisso.
— Seus pais ficarão por quanto tempo? — perguntou, secando
as lágrimas.
— Uma semana, provavelmente.
Ela concordou.
— Então eu vou ficar esse tempo na casa do meu irmão e depois
eu volto para você, está bem? — Ela ficou na ponta dos pés e beijou
meus lábios com ternura.
— Está bem — respondi baixinho, quase anestesiado.
Seria capaz de aguentar mais uma semana.
Mas, depois disso, não a deixaria ir embora.
Não mais.
Mas, antes, precisava provar para mim mesmo que ainda era
capaz de ser o homem que Skyler merecia.

Ela partiu na manhã seguinte e meus pais chegaram logo após o


almoço.
Estavam um pouco mais grisalhos do que da última vez que nos
vimos, mas seus sorrisos eram exatamente iguais aos que eu me
lembrava. Eles me abraçaram com tanta força que senti minhas
costelas doerem, mas não reclamei, porque era bom ter os dois aqui
comigo.
— Você está tão bonito, meu filho. — Minha mãe apertou meu
rosto e o balançou. — Tão elegante…
Eu tinha mesmo me arrumado bem para receber esses dois,
penteado meu cabelo para trás, ajeitado a barba e colocado um
casaco novo.
Queria causar uma boa impressão.
— Como você está, Rick? — Meu pai pousou a mão no meu
ombro e me encarou com um sorriso nos lábios finos.
— Melhorando — respondi com sinceridade, retribuindo o sorriso.
— Sua casa está tão bela quanto me lembro. — Minha mãe olhou
em volta e ri ao ver seus lábios formarem um “O”.
— Tem uma sala nova no andar de cima, acho que vocês vão
gostar — anunciei, pensando em como eles iriam reagir quando eu
mostrasse a sala de pintura e contasse um pouco sobre Skyler.
— Zorro está aqui? Trouxe um presentinho para ele, já que é o
único neto que tenho — meu pai brincou, mas eu sabia que tinha um
fundo de verdade ali.
Não era segredo que os dois já tinham perdido as esperanças em
mim.
Eu não me ofendia. Na verdade, por muito tempo também pensei
como eles, mas depois de Skyler eu comecei a crer que finalmente
teria coragem de realizar alguns sonhos, inclusive o de ser pai.
Se fosse ao lado dela.
— E como estão as coisas por aqui? Nos conte tudo. — Minha
mãe passou o braço pelo meu e me acompanhou pela casa
conforme eu ia atualizando-os sobre tudo o que me lembrava.
Não era muita coisa, mas meus pais estavam aqui e eu me sentia
um pouco mais tagarela do que o normal.
Conversamos muito.
Solange nos ofereceu seus biscoitos com gotas de chocolate e
canecas de leite.
Minha mãe engatou em uma conversa com ela sobre receitas
que ambas dominavam.
E assim fiquei sozinho com meu pai, que parecia me analisar a
todo momento.
— O senhor tem algo a dizer ou vai apenas ficar me olhando até
eu achar que fiz algo de errado? — perguntei, sentado de frente para
ele na sala de jantar, e peguei um biscoito do prato.
— Só quero ver o que mudou em você desde a última vez que
nos vimos.
— Já conseguiu descobrir alguma coisa?
Ele deu de ombros.
— Para começar, você falou de uma mulher para nós. Uma
mulher específica. Depois, revelou que a sala de pintura foi feita para
ela.
— E daí? — Arqueei as sobrancelhas e mordi um pedaço do
biscoito crocante, sentindo-o desmanchar em minha boca.
— E daí que da última vez você não estava apaixonado e agora
está. É notável.
Sorri e abaixei o olhar, sem me preocupar em negar.
— Qualquer mulher que tenha fisgado seu coração tem minha
admiração. — Meu pai bebeu um pouco de leite. — Eu quero
conhecê-la.
— Sendo sincero, também quero que vocês se conheçam, mas
não agora. Quero provar ser digno dela antes de dar os próximos
passos e isso inclui apresentar vocês.
— Como assim? — Suas sobrancelhas grisalhas se arquearam.
— Ela não te acha digno dela?
— Não, pai, eu não me acho digno dela. Depois do acidente, eu
desenvolvi algumas inseguranças extras e Sky é tão jovem e cheia
de vida…
— Assim como você, ora! — exclamou, parecendo bravo. —
Maverick, não vai me dizer que está colocando essas baboseiras na
sua mente apenas para dificultar ser feliz com alguém?
— Tenho medo de não ser o bastante.
— Ela alguma vez já demonstrou isso?
— Bem, não, mas…
— Então é isso, já entendi tudo. — Batendo com as mãos na
mesa, meu pai me olhou nos olhos com firmeza. — Quer saber,
quando eu e sua mãe partirmos, volte a fazer as coisas que você
fazia antes do acidente. Saia dessa casa, se divirta e prove para si
mesmo que, apesar de algumas cicatrizes a mais, você é tão digno
dela quanto era antes.
Ri baixo, porque a ideia parecia absurda, mas o olhar sério do
meu pai me fez entender que ele não estava de brincadeira.
Talvez ele tivesse razão.
Além disso, ele era meu pai e sabia das coisas. Sempre falou as
coisas para o meu bem.
— Obrigado por ter vindo, pai — falei, finalmente, e apertei
levemente sua mão. — E quem sabe, algum dia, Zorro deixe de ser
seu único neto.
A alegria no rosto do meu velho me fez rir pelo resto da noite.
Fazia três dias desde que deixei a casa de Maverick e vim
passar um tempo com meu irmão. Apesar de ter partido com o
coração apertado dentro do peito, sabia que era por um bom motivo.
Maverick teria a oportunidade de passar alguns dias na companhia
de seus pais e eu sabia que isso lhe faria bem.
Aproveitei esses dias longe para adiantar algumas artes digitais
que tinham sido encomendadas, passar um tempo com os meninos e
sair um pouco por Montreal, que era bem diferente nessa época do
ano. Sem a neve e a decoração de natal, o clima era diferente, as
pessoas usavam menos blusas e os rinques de patinação ao ar livre
haviam sido retirados.
Claire me levou hoje mais cedo em uma cafeteria muito fofa e
aconchegante e tinha acabado de me deixar em casa. Para minha
surpresa, a porta de entrada estava trancada e eu não tinha mais a
chave reserva.
Olhei para o céu, notei que as nuvens estavam carregadas, como
sempre ficavam nessa hora do dia. Uma tempestade estava se
aproximando.
Fechei a mão e bati na porta com força algumas vezes.
Um minuto inteiro se passou e ninguém abriu para mim.
Olhei pela janela, tentando descobrir alguma movimentação na
casa e gritei por Killian.
De repente, a porta foi aberta, mas não totalmente.
E quem me recebeu não foi um dos meninos, mas uma garota de
altura mediana que mascava chiclete da forma mais barulhenta
possível e me encarava como se eu fosse uma visita indesejada.
— Que é? — perguntou e sua voz foi mais irritante do que o
chiclete.
Parei em sua frente, estranhando o fato de ela não me dar
passagem para entrar.
— Pode me dar licença, por favor?
— Fala logo o que você quer, garota.
Arqueei as sobrancelhas, me perguntando de onde ela tirou
tamanha ousadia.
— Quero que saia da minha frente.
— O que é, Bethany? — Veio uma voz abafada do lado de dentro
da casa.
Era Colin?
— Uma garota querendo entrar, já estou resolvendo.
— Colin! — gritei, ficando na pontinha dos pés. — Colin, sou eu!
Ouvi passos se aproximarem e finalmente a porta foi
escancarada.
Colin estava sem camisa enquanto a tal da Bethany estava com a
blusa do avesso.
— Sky! — Ele me puxou pela mão e me abraçou, me tirando do
chão e me rodando no ar. — Irmã postiça, que bom que voltou!
Me colocando no chão, ele olhou para Bethany, que nos encarava
com descrença.
— Acho que seu Uber chegou — avisou ele, apontando para um
carro que tinha acabado de parar no meio-fio. — Tchau, Beth.
Ela apenas revirou os olhos e seguiu para o carro.
Colin me puxou para dentro e fechou a porta.
— Graças a Deus que você chegou, ela não queria ir embora de
jeito nenhum — reclamou ao se jogar no sofá. — Antes que
pergunte, Kill e Brad saíram para fazer compras, mas não vão
demorar.
— Você merece coisa melhor do que esse tipo de garota, Colin.
— Me sentei na poltrona e o encarei. — Não sei porque insiste nisso.
— Eu sei. — Ele abriu um sorrisinho torto. — Acho que ainda não
estou pronto para encarar a realidade, então continuo me
envolvendo com esse tipo de garota. Mas prometo te avisar no futuro
se algo mudar.
Sorri de canto e peguei o celular para analisar meu e-mail e ver
se tinha alguma novidade.
— E você? — Colin chamou minha atenção. — Como andam as
coisas com Rick?
Dei de ombros.
— A gente conversou, mas sinto que ainda tem uma parede entre
nós e eu não sei o motivo.
— Rick mudou pra caramba, antes era um homem seguro de si e
confiante, mas agora me parece o tipo de pessoa que não reconhece
o próprio valor. Quando ele fala de você, consigo ver o carinho e
admiração que sente, mas também sinto que ele não se acha mais
capaz de estar com você.
— Isso me deixa muito triste — comentei com sinceridade,
deixando o celular cair em meu colo. — Queria muito que ele
conseguisse enxergar o valor que tem. Pra mim, Rick tem tanto valor
quanto seis meses atrás.
— Então diga a ele, ué. — Colin sorriu. — E beije o homem. Ele
deve ter se esquecido como é o toque feminino.
— Então ele realmente… — Pigarreei baixo e encarei Colin. —
Ele realmente não se envolveu com ninguém depois que eu parti?
— Depois que foi anunciado que ele não era mais nosso técnico,
as mulheres que antes viviam atrás dele simplesmente sumiram.
Nem todo mundo soube sobre o acidente, Rick preferiu manter
segredo, sua equipe continuou a cuidar das redes sociais e o motivo
de sua saída do time não foi revelado com exatidão. Enfim, sabe
como é… — O ruivo deu de ombros. — Além disso, acredito que
mesmo se alguém tivesse ido atrás dele, ele não teria aceitado a
atenção.
— Que merda.
— Acha mesmo? — Colin arqueou as sobrancelhas.
Eu abri um sorrisinho de canto e me levantei, lembrando de uma
arte que tinha para finalizar.
— Não. É bom que os urubus tenham parado de ficar em cima da
minha carniça.
Nunca ouvi Colin rir tão alto.
— Ei, Saint Clair — me chamou quando eu estava subindo as
escadas. — Sábado à noite no Reinor’s. Não vai furar com a gente!
Eu não tinha planos e precisava mesmo me distrair.
Sábado no Reinor’s, então.
Meus pais foram embora na sexta à noite.
Nos dias que ficaram aqui, levei ambos para conhecerem minha
fábrica de patins e depois para o centro de Montreal, onde dei meu
cartão na mão da minha mãe para que ela pudesse comprar todos
os tecidos que quisesse.
Ela adorava costurar e ficou apaixonada quando passamos na
frente de uma loja de tecidos bastante famosa na cidade.
Meu pai aceitou a garrafa de whisky envelhecida que eu
guardava no bar de casa como um presente.
Eles me elogiaram de todas as formas possíveis e antes de partir,
meu velho me lembrou sobre o que conversamos no outro dia e era
exatamente esse conselho que eu estava seguindo agora.
Era sábado e Killian revelou que todos iriam para o Reinor’s
beber um pouco e ouvir umas músicas, exatamente o tipo de coisa
que se fazia por lá.
E eu decidi ir.
Tentei não colocar roupas pretas demais, afinal, seria minha
primeira vez participando da sociedade depois de tantos meses e
não queria assustar ninguém.
Optei por uma blusa de gola alta azul marinho, um casaco cinza e
um relógio para trazer brilho em meio aos tons opacos. Passei mais
perfume do que Killian borrifou da outra vez e aparei a barba para
que ficasse perfeita.
Peguei a bengala e a chave da Ferrari, disposto a dirigir meu
possante pela primeira vez em tanto tempo.
Era uma mistura engraçada: uma bengala e uma Ferrari.
Mas era a minha mistura.
E eu estava começando a gostar dela.

A entrada do Reinor’s estava lotada, como sempre.


E a música altíssima.
Tudo exatamente como na noite em que conheci Skyler.
Mas, dessa vez, diversos olhares se voltaram para mim quando
finalmente coloquei meus pés dentro do lugar. E não foram olhares
de horror ou estranheza, mas curiosos e, eu ousava dizer, até
interessados.
Caminhando sem pressa com minha bengala, fui até o bar para
pedir uma bebida. Precisava relaxar um pouco, mas não iria
exagerar, pois estava dirigindo. Uma cerveja bastava.
Depois que a garrafa gelada foi deixada em minha frente, bebi
um pouco do líquido inebriante, sentindo-o descer confortavelmente
por minha garganta.
— Uma vodka pura, por favor — ouvi uma voz feminina pedir.
Nem precisava olhar para saber de quem se tratava.
Sorrindo de canto, me virei para encarar Skyler, que estava…
Não podia mais descrevê-la como “linda”. Era pouco para o que
eu achava.
Seus olhos estavam pintados de preto e os lábios num tom
vermelho-sangue. O cabelo solto lhe trazia um ar selvagem que me
deixou sem fôlego.
Ao contrário da primeira vez que nos vimos, quando chegou sua
bebida, ela não se afastou. Graças a Deus por isso.
Não aguentaria ter que procurá-la mais uma vez no meio daquele
mar de gente.
— Está sozinha? — perguntei, arqueando as sobrancelhas.
— Só até você chegar. — Ela me lançou uma piscadela e
bebericou a vodka.
— Você usou essa última semana para ficar ainda mais bonita?
— Enrolei uma onda escura do cabelo sedoso em meu dedo,
sentindo a necessidade de tocar essa mulher de alguma forma.
— Tudo o que eu fiz nessa última semana foi sentir saudades de
você. — Ela deu um pequeno passo em minha direção e inclinou
levemente a cabeça para o lado. — Mas você, Maverick, com
certeza usou esses dias para algo bom. Acho que ouvi suspiros
quando você chegou.
— Só me importo se um desses suspiros for o seu — revelei com
sinceridade, deslizando o dedo por seu queixo delicado.
— Estou suspirando até agora por você.
Sorri.
Depois de beber um grande gole da cerveja, deixei a garrafa de
lado e segurei a mão de Skyler.
— Quero dançar com você — revelei, convidando-a com o olhar.
— Tem certeza? — Ela pareceu preocupada. — Não quero que
fique com dor nas pernas por forçar demais. Na verdade, não sei se
estou tão afim assim de dançar.
— Qual é, vai me negar uma dança, Skyler? — Fingi decepção.
— Só uma…
Ela sorriu de canto e me encarou por alguns segundos com
aqueles olhos adoráveis antes de se dar por vencida e me puxar
para a pista.
Por mais que eu tivesse ficado receoso sobre como seria dançar
estando com a bengala, tudo aconteceu melhor do que pensei e eu
sabia que Skyler foi quem contribuiu para isso.
Ela manteve os braços em volta do meu pescoço enquanto
balançava no meu ritmo, mantendo nossos olhares fixados um no
outro. Senti um tapa amigável em meu ombro e olhei a tempo de ver
Bradley passar com um sorriso gigante enquanto erguia os polegares
em um “joinha”.
— Você teve tanto medo de ser odiado por eles, só não
imaginava que seu time adora um romance — disse Skyler com o
rosto próximo ao meu, abrindo um sorriso largo.
— Não, eles adoram o nosso romance.
Ela arqueou as sobrancelhas.
— E nós temos um?
Foi minha vez de arquear as sobrancelhas.
— Você aceitaria?
Ela deu de ombros.
— Você não pediu.
Skyler sabia entrar no jogo e dominar ele sem que eu notasse.
Isso me excitava.
— Acho que um pedido desses precisa ser feito em um lugar
menos barulhento — murmurei no ouvido de Sky.
Ela mordeu o lábio inferior e assentiu.
— Você veio de carro?
— Está no estacionamento.
Ela mal esperou eu terminar de falar para me arrastar para fora.

Quando Rick entrou no Reinor’s, Claire cutucou minhas costelas


e indicou o recém-chegado com a cabeça.
As pessoas à minha volta pareceram parar o que faziam para
admirar o homem alto e misterioso. E, Deus, ele estava lindo. Com
aquela bengala ele passava o ar de alguém que já viveu coisas que
nem todos tiveram a sorte — ou o azar — de viver.
O tipo de homem que as pessoas dariam muita coisa apenas
para ter a oportunidade de passar algum tempo em sua presença e
desvendar um pouco de tudo que ele trazia dentro de si.
E ter esse homem me olhando com admiração, falando no meu
ouvido e dançando comigo foi empolgante. Eu me sentia em um
primeiro encontro, meu coração palpitava e minhas mãos suavam.
Esse novo homem, esse novo Maverick, parecia apenas uma versão
mais cheia de história do que a outra, com mais cicatrizes e mais
batalhas. Eu gostava dessa nova versão.
Não.
Eu amava Maverick.
Amava.
E era por isso que, pouco depois de entrarmos em seu carro, eu
não esperei para subir em seu colo e colar nossos lábios. Foram
meses amando esse homem em silêncio, lutando contra o
sentimento forte e insistente, me convencendo de que se eu tivesse
força de vontade o bastante ele iria passar, mas não passou.
E como eu sabia que era mesmo amor?
Essa era fácil.
Lance nenhum me faria sair da Flórida e vir parar em Montreal
apenas para ajudar um homem.
Lance nenhum me faria lutar tanto pelo bem-estar de alguém.
Lance nenhum me faria ter um caderno repleto de desenhos de
uma única pessoa.
Não.
Maverick Stanwick não era apenas um “lance”.
Era amor.
O meu amor.
— Espere, espere… — Ele afastou nossos lábios e olhou em
meus olhos. — Você deixou o cheque de dez mil para trás aquela
vez. Por quê?
Sorri de canto e enfiei os dedos em seus cabelos.
— Porque eu não fiz nada daquilo por dinheiro — admiti,
encostando a testa na dele. — Nunca foi por dinheiro. E você
merecia saber disso.
E então ele desistiu de manter a conversa e voltou a me beijar,
pressionando os lábios inchados contra os meus.
Suas mãos grandes voaram pelo meu corpo, apertando cada
curva, me fazendo arfar e desejar mais. Por sorte, vim de vestido ou
já estaria me contorcendo dentro da calça.
Rick massageou meu seio por cima do vestido e desceu a boca
por meu pescoço, deixando um chupão logo acima da clavícula. Sua
outra mão me ergueu o bastante para ser possível puxar minha
calcinha para baixo.
— Os vidros são escuros o bastante para isso? — perguntei,
ofegante, puxando sua calça para baixo com um pouco de
dificuldade pela falta de espaço.
Rick me ajudou como pôde, contorcendo o corpo grande no
banco de couro até que fosse possível descer a calça o bastante
para libertar o membro, que praticamente saltou para fora.
— Isso importa? — Maverick abriu um sorrisinho. — Os vidros?
— Acho que não. — Voltei a atacar sua boca e me posicionei em
cima dele, me esfregando contra sua extensão para mostrar o quão
molhada eu estava.
Ele grunhiu, impaciente, e eu sorri.
Era exatamente essa a reação que eu queria causar.
Pousando as mãos grandes e firmes em meus quadris, ele me
fez descer pela extensão de seu membro rígido e arfei ao ser
completamente invadida por ele.
Gemendo contra sua boca e me inclinando para não bater a
cabeça no carro, me movi da melhor forma que consegui, incapaz de
ficar parada. Suas mãos me ajudaram a ir cada vez mais fundo, mais
rápido.
Os vidros ficaram embaçados e apoiei minha mão em um deles,
sentindo certa satisfação ao ver a marca que ficou ali.
Maverick jogou a cabeça para trás, apoiando-a no encosto do
banco e fechou os olhos enquanto uma veia saltava furiosamente em
sua testa.
— Ei — chamei, agarrando seus cabelos e puxando sua cabeça
para perto da minha. — Abra esses malditos olhos azuis, Maverick.
Eu quero te ver quando você chegar ao paraíso.
Ele obedeceu, parecendo se divertir com minha ordem, mas logo
seu rosto mudou para uma expressão mais séria e sofrida, como se
ele estivesse prestes a atingir algo grande.
Eu também estava.
E quando o clímax chegou para mim, mordi o lábio inferior com
força e apoiei minha testa na dele, sentindo espasmos por todo o
meu corpo suado e quente.
Rick me acompanhou enquanto falava um palavrão e tremia
levemente debaixo de mim ao atingir o próprio ápice.
Me deixei desabar sobre seu peitoral, ainda com a respiração
ofegante, sentindo minha pele molhada de suor dentro do carro
abafado.
— Por que somos sempre tão apressados? — perguntei baixinho.
— Não se preocupe com isso, esse é só o início da noite, amor.
— Aquele tom rouco e provocante que desejei por tanto tempo ouvir
novamente quase me causou mais um orgasmo.
Depois que nos recuperamos o bastante, pulei para o banco do
carona e enviei uma mensagem para Claire, avisando que estava
indo embora com Rick. Ele, incapaz de manter as mãos longes de
mim, segurava minha coxa com uma delas enquanto guiava o
volante com a outra.
Mais tarde, descobri que Rick tinha toda a razão.
Nossa noite demorou a terminar, afinal, ele me manteve acordada
por muito tempo enquanto “tirava o atraso” — palavras dele — e
acho que nunca me senti tão cansada e satisfeita na minha vida.
Mas, pouco antes de dormir, notei que Rick parecia ter pequenos
espasmos e por sua expressão contida de sofrimento, me dei conta
de que tudo o que fizemos foi de grande impacto para sua perna. Ele
tinha ignorado isso até aqui, mas seria impossível dormir com dor.
— Rick? — chamei, me sentando na cama e liguei a luz do
abajur. — Está tudo bem?
Ele assentiu, mas ao ter mais um espasmo, acabou negando.
— É só um músculo irritante que não gostou de ter sido acordado
— disse, forçando um sorriso e levou minha mão até seus lábios. —
Durma. Você está cansada.
Jamais conseguiria dormir sabendo que ele estava com dor.
Afastando a coberta de cima de nossos corpos, me inclinei sobre
a perna direita de Rick, observando as cicatrizes esbranquiçadas do
que um dia foram cortes profundos. Sua pele não era uniforme e
tinha marcas por praticamente toda a extensão, não conseguia
imaginar como ficou no momento do acidente.
— Onde dói? — perguntei em um tom baixo.
— Aqui. — Ele pousou a mão em cima da coxa. — É sério, isso
não é necessário…
Mas eu o ignorei.
Depois de afastar sua mão, pressionei os dedos firmes sobre o
local que Rick indicou, observando quando fechou os olhos.
— Dói?
— Dói, mas… É bom — admitiu com a respiração sôfrega.
Entendendo isso como um sinal para continuar, intensifiquei a
massagem, movendo minhas mãos em círculos lentos e firmes,
vendo a expressão de Rick pouco a pouco se suavizar e seus
espasmos pararem.
Quando tive certeza de que ele estava verdadeiramente melhor,
depositei um beijo sobre a área massageada e me deitei em seu
peitoral. O braço forte de Rick envolveu meus ombros e ele beijou
minha cabeça.
— Quando eu acordar, você ainda vai estar aqui amanhã? —
perguntou de olhos fechados.
Assenti levemente e estiquei o braço para desligar o abajur.
— Estarei, meu amor. Eu estarei aqui.
Contrariando as outras vezes que dormimos juntos, quando
abri os olhos, Skyler já estava acordada e me observava com uma
expressão serena e levemente divertida. Com a cabeça apoiada na
mão, seus cabelos caíam como uma cascata por seus ombros e
seios, a luz do sol que entrava pela janela clareava seu rosto e
tornava seus olhos cristalinos.
Era uma visão vinda do paraíso.
Eu me sentia extremamente privilegiado por tê-la na minha cama.
— Ei — sua voz estava rouca conforme ela se inclinava em
minha direção e depositava um beijo em meu queixo. — Eu não fui
embora, está vendo?
Sorri, ainda com preguiça, e deslizei a mão pelo braço de Sky,
sentindo os pelinhos se eriçarem.
— Estou vendo — murmurei com a voz rouca e desci o olhar por
seu corpo. — Estou vendo muito bem.
— Ótimo, agora que me viu, vou tomar um banho. — Ela se
levantou e caminhou até o banheiro como uma perfeita sedutora,
balançando os quadris a cada passo enquanto seus cabelos
dançavam por suas costas.
— Não sei se foi um convite, mas vou me juntar a você. — Joguei
a coberta para o lado e apoiei os pés no chão.
Depois de juntar confiança o bastante para me levantar sem
apoio algum, lentamente me ergui e dei um passo, sentindo cada vez
mais firmeza para continuar sem a bengala.
Quando entrei no banheiro, Skyler já estava debaixo do chuveiro
com a água escorrendo por seu corpo, passando por todos os
lugares que eu conhecia bem. O cabelo grudou ao redor dos seios,
mas ela logo puxou os fios para trás e me encarou pelos cantos dos
olhos.
— Como está a perna hoje?
Dei mais alguns passos lentos e entrei dentro do box junto com
ela.
— Depois da sua massagem, nem parece que essa perna já teve
uma fratura exposta — comentei de bom humor.
Aparentemente eu tinha aprendido com Skyler a fazer piadas de
coisas ruins.
Melhor rir do que chorar, era sua filosofia e eu concordava.
— Vem aqui. — Ela me puxou pela mão com cuidado até que eu
estivesse debaixo do jato de água e me virou de costas para ela.
— Pensei que a gente fosse se divertir um pouco aqui…
— Sua perna precisa de um tempo para se recuperar, mas vou te
ensinar que existe prazer em outras coisas simples, como, por
exemplo, quando alguém esfrega as costas da gente. — Sky
estendeu uma esponja repleta de espuma para que eu entendesse o
que ela estava prestes a fazer.
— Minha perna não precisa de descanso — resmunguei, mas
sabia que ela tinha razão.
Sua massagem foi o que me ajudou a dormir noite passada, mas
vez ou outra eu ainda sentia um pouco dos efeitos por ter feito muito
esforço.
— Apenas fique quieto e aproveite — disse com a voz suave
antes de começar a passar a esponja por minhas costas.
Apesar de estar afim de outra coisa, não podia negar: a sensação
de ter as costas esfregadas por alguém era maravilhosa.
Relaxante.
Quase um orgasmo, realmente.
E, quando Sky terminou, fiz questão de virá-la de costas para
mim e colocar seus cabelos para frente, disposto a causar nela o
mesmo prazer que me proporcionou.
Ela inclinou a cabeça para frente e apoiou as mãos na parede
enquanto parecia estar derretendo em minhas mãos.
— Como… Como foi com os seus pais? — perguntou baixinho.
— Foi ótimo. Eles adoraram a sala de pintura e querem muito te
conhecer algum dia.
— Você falou de mim? — Senti Sky ficar levemente tensa
debaixo do meu toque.
Envolvi sua cintura com meus braços e depositei um beijo em seu
ombro.
— Eu falei sobre tudo o que é importante para mim.
— Hum… Nesse caso… — Ela se virou dentro dos meus braços
e me olhou nos olhos. — Eu preciso falar com você.
Seu tom sério me deixou um pouco receoso com o que estava
por vir.
— O que foi?
Ela desviou o olhar para meu peitoral e ficou em silêncio por
alguns segundos.
— Eu recebi uma proposta — começou, voltando a erguer o
olhar. — Uma galeria italiana muito frequentada quer expor um
quadro meu por dois meses e no final vai acontecer um leilão. Se eu
tiver sorte, alguém “grande” pode querer meu quadro e isso pode me
fornecer dinheiro o bastante para abrir minha própria galeria. Já
tenho algumas economias, aliás. Mas eu preciso estar lá durante
esse tempo, porque algumas pessoas gostam de conhecer e
conversar com o artista, entende?
— Eu compro seu quadro — falei, porque não queria que ela
ficasse longe de mim novamente. — Pago o preço que for.
Sky riu e negou com a cabeça.
— Você nem viu o quadro!
— Eu conheço o seu talento, meu amor. — Apertei-a levemente
em meus braços. — Mas entendo o quão importante isso seria para
você e eu apoio.
— Eu pensei em te convidar para ir comigo, mas você precisa
ficar aqui e se cuidar, continuar com a fisioterapia, jogar o graveto
para Zorro todos os dias e cuidar da minha sala de pintura até que
eu volte.
Sorri.
— Você já pensou em tudo, não é?
— Sim, mas, tem mais uma coisa… — Ela mordeu o lábio inferior
e arqueou as sobrancelhas. — Quero que você seja meu modelo
para esse quadro.
— Eu? Mas… Por quê?
— Vladimir estava certo quando disse que eu era “mais do
mesmo” — ela fez aspas com os dedos —, não posso levar uma
paisagem para a Itália. Quero levar sentimentos. E você é a maior
fonte de sentimentos que eu conheço. Eu quero retratar sua silhueta,
suas cicatrizes, sua história. Seu corpo conta sua história e eu quero
levá-la comigo para a Itália.
Skyler me deixou sem palavras.
Ela despertava em mim todos os sentimentos mais profundos e
verdadeiros, o amor mais verdadeiro, puro e belo.
A verdade é que, de todos os momentos que tivemos, os únicos
que nos destruíram de alguma forma foram os que não estávamos
juntos. E, quando as dificuldades vieram e nós dois estávamos
quebrados, foi o amor que nos fez lutar.
Ao menos, o meu.
Porque eu amava essa mulher.
E faria de tudo para ter seu amor de volta.
— Eu aceito ser sua musa inspiradora — brinquei e beijei sua
testa. — Quando começamos?

Pedi para Rick posar nu, porque eu iria retratar seus contornos e
seria essencial conseguir ter uma visão completa. Depois de sairmos
do banho, ele apenas se enrolou em um roupão e me esperou
colocar um vestido leve antes de descermos para tomar café.
Solange tinha preparado muita coisa, de alguma forma ela sabia que
eu estava aqui de novo.
Depois do café, subimos direto para a sala de pintura, pois não
havia tempo a perder.
Sentado em um banco simples e virado de lado para mim, Rick
tentava diferentes poses. A luz que entrava pela janela de vidro foi
essencial para destacar tudo o que eu precisava. Sua bengala
estava apoiada na parede, porque achei importante retratá-la
também.
— O que acha de algo assim, tipo “O Pensador”? — perguntou,
apoiando a cabeça na mão como a escultura.
Ri baixo enquanto amarrava o avental em minha cintura.
— Prefiro “O Rick”, porque a outra opção já existe. — Peguei
meu lápis e analisei a ponta para ter certeza de que estava boa.
Depois de pensar um pouco, Rick cruzou os braços sobre os
joelhos e inclinou o rosto para cima.
Seus ombros passavam um ar de desânimo, mas seu rosto trazia
esperança, como se ele estivesse lutando consigo mesmo para não
desistir.
Era perfeito.
— Preciso que fique assim pelas próximas horas — avisei
enquanto começava a rabiscar a tela.
— Vou merecer uma compensação mais tarde — ele disse sem
se mover.
— Com certeza terá, amor — murmurei, concentrada, enquanto
fazia traços rápidos e leves.
Rick se mostrou um modelo um tanto tagarela, contando
experiências da adolescência, situações engraçadas da infância,
lembranças favoritas e coisas que ainda pretendia fazer.
Apesar de não responder com frequência — eu ficava bastante
silenciosa quando precisava me concentrar —, ouvi cada palavra
com atenção e carinho.
Fizemos duas pausas, uma quando ele precisou usar o banheiro
e outra quando ficou com fome, mas não mais que isso.
Levei um bom tempo para terminar de retratar o cenário e mais
um pouco para Rick, mas quando terminei de adicionar as cores,
larguei os pincéis e estiquei o corpo, ouvindo os ossos estalarem.
Só podia imaginar como estava o corpo do meu pobre modelo.
— Acho que chega por hoje — murmurei, estendendo-lhe o
roupão de volta. — Amanhã adicionarei sombras e luzes, vai ser
mais rápido. Prometo não te fazer ficar parado assim por muito mais
tempo.
Depois de vestir o roupão, Rick se aproximou do quadro e o
analisou.
— Está valendo a pena. É uma droga pensar que não poderei
ficar com esse quadro. — Ele me puxou pela mão e sorriu. — Essas
mãos — ele ergueu minhas mãos manchadas e beijou meus dedos
— valem muito.
— Você foi um modelo excepcional, acredite. Mas acho que é
melhor te colocar para descansar um pouco.
— Aaaah, Skyler… — resmungou, soltando minhas mãos e
caminhando para fora da sala. — Passei tempo demais
“descansando” nos últimos meses.
Arranquei meu avental e o segui.
Rick parecia pouco a pouco se esquecer da bengala.
Seus passos eram um pouco desajeitados, mas dava para notar
que ele sentia mais confiança em si e isso bastava.
— Bem, se não quer descansar, o que quer fazer? — Arqueei as
sobrancelhas.
Ele parou em frente a uma prateleira de madeira no corredor e
puxou uma caixa.
— Pedi para deixarem isso aqui hoje mais cedo. — Ele me
entregou a caixa. — Quero que patine para mim.
Arranquei a tampa e encontrei um belo par de patins brancos
Stanwick.
O cheiro de couro novo me inundou de prazer.
— Os rinques ao ar livre só voltam em novembro — comentei,
erguendo o olhar. — Acho que não vai ser possível.
— Ah, meu amor… Apenas se vista, eu dou um jeito no resto. —
Ele piscou para mim e sumiu dentro do quarto.
Dando de ombros, segui até meu quarto, ansiosa para descobrir
o que Rick iria aprontar.
Ele nunca decepcionava.
Tony abriu o centro de treinamento para mim quando revelei
que queria levar Skyler para patinar. Ele estava mais alegre do que o
habitual, especialmente depois de presenciar aquela cena na
cozinha quando eu e Sky quase nos beijamos.
Ele sabia que as coisas entre nós estavam indo bem.
Mas, antes de Sky ir para a Itália, eu queria fazer mais uma coisa.
Uma última coisa.
— Caramba, Rick! — exclamou, girando no centro do rinque. —
Esse lugar é grande demais!
O rinque ficava pequeno quando vários homens estavam lá
dentro lutando para ver quem conseguia fazer mais gols.
Mas Sky, que tinha um tamanho mediano, pesava no máximo
sessenta quilos e tinha um corpo delicado, parecia apenas uma
formiguinha ali no meio do vazio.
Seus cabelos soltos balançavam e voavam e, por sorte, ela tinha
colocado uma calça elástica o bastante para todos os movimentos
que fazia.
— Aqui. — Parado do lado de fora do rinque, estendi um stick e
um disco para ela. — Tente fazer alguns gols para mim.
— Quer mesmo me fazer jogar hóquei e virar um grandalhão
correndo atrás do pobre disco? — provocou, deslizando até mim e
pegando as coisas.
— Para isso você primeiro precisa virar o grandalhão e isso
implicaria em nascer novamente, amor. — Apoiei os braços na
divisória entre o rinque e a arquibancada e sorri. — E eu gosto da
forma que você nasceu.
Ela riu alto conforme patinava até próximo do gol e posicionava o
disco.
— E agora?
— Estabeleça uma distância aceitável entre você e o disco —
instruí — e posicione o stick mais para trás. Precisa bater com força.
— Está bem. — Ela mordeu o lábio enquanto seguia meus
conselhos.
— Abra mais as mãos!
Ela concordou e abriu mais as mãos, mas parecia insegura.
E é por isso que errou o primeiro lance.
Não chegou nem a acertar o disco.
— Se aproxime um pouco mais, está muito longe.
— Eu não levo jeito para isso. — Ela se virou para mim com os
ombros caídos e uma expressão de desânimo.
— Leva sim, para com isso. Vai mesmo desistir depois da
primeira derrota? — Arqueei as sobrancelhas. — Não foi você quem
me fez persistir até conseguir?
Ela bateu com o stick no chão e voltou a se virar para o disco.
— Odeio quando usam minhas armadilhas contra mim —
murmurou antes de fazer um novo lance.
Apesar de não atingir o gol, foi um bom lance.
— Mais um pouco de força e você fará um belíssimo gol.
— Mais um pouco de força e eu acerto ele na sua testa. — Ela
estava adoravelmente brava.
Eu sabia que não era fácil falhar.
Mas Skyler veria que, no final, iria valer a pena.
Eu daria tudo para poder enfiar um par de patins nos pés e ir até
ela, ajudá-la não só com palavras, mas também com toques,
posicionando-a da melhor forma, indicando onde deveria acertar e
roubando um beijo vez ou outra.
Mas eu não podia.
E, apesar disso, observá-la deslizar pelo gelo de forma tão alegre
e radiante me fazia sentir como se fosse eu mesmo ali, patinando da
forma livre de sempre.
— Ai, meu Deus! — exclamou alto, erguendo o stick acima da
cabeça e fazendo uma dancinha engraçada.
O disco tinha entrado no gol.
Sorri e arqueei as sobrancelhas conforme a observava se
aproximar.
— Você viu? — perguntou, parando em minha frente e se
segurando na divisória.
— Mais alguns dias de treino e você vai poder ocupar o lugar do
seu irmão e virar a nova estrela do Montreal Monsters — brinquei,
pousando minhas mãos sobre as dela.
— Eu não quero ser a estrela do Montreal Monsters. — Ela
pousou a mão no meu rosto e sorriu de uma forma adorável. — Só
quero ser a sua estrela.
Ela era tão mais que isso, talvez nem fizesse ideia do quanto…
— Ok, mais um gol. — Ela voltou a deslizar até o disco e o
posicionou no lugar de antes. — Se eu acertar esse, daqui um ou
dez anos, não importa o tempo, você vai voltar a patinar e nós dois
vamos patinar juntos, Maverick Stanwick.
Sorri.
O otimismo dela me contagiava.
Fiquei em silêncio e observei enquanto ela se preparava,
parecendo confiante.
Mas fiz careta quando Sky errou o lance.
O disco chegou próximo do gol, mas sua força não foi forte o
bastante para fazê-lo entrar na rede.
Ela largou o stick e deslizou até o disco.
Me surpreendi ao ver a garota teimosa chutar o disco — da
melhor forma que conseguiu com aqueles patins — mas foi forte o
bastante para fazê-lo entrar no gol.
E ela comemorou, porque não importava como foi, de uma forma
ou de outra ela tinha conseguido o que queria.
E eu sorri, porque a vida com Skyler era assim, ela dava um jeito
de ser feliz e eu a queria para a minha vida.
Para toda ela.
Comprei minha passagem de ida para a Itália mais tarde naquele
dia e Rick fez questão de pagar, como uma compensação por eu ter
devolvido o cheque de dez mil aquela vez.
Contei a ele tudo o que a divulgação da minha arte por meio de
sua marca de patins fez, todas as encomendas que recebi, elogios, o
reconhecimento cada vez maior através das redes… Ele ficou muito
feliz por saber que tinha me ajudado de alguma forma e pediu que eu
compartilhasse algumas das artes digitais para ele ver como eram.
Depois, implorou para que, assim que eu voltasse da Itália,
pudesse criar uma ilustração digital para sua marca. Eu aceitei, é
claro, afinal não conseguia negar seus pedidos. Algo me dizia que
Maverick se tornaria meu cliente mais frequente e o pagamento seria
feito com beijos e algumas coisas mais que só se pode fazer sem
roupas.
Às vezes com elas, também, mas eu preferia sem.
Passei a noite com ele e no dia seguinte voltei para meu quadro,
ansiosa para vê-lo ficar pronto logo. Levaria mais algum tempo, mas
algo me dizia que daria tudo certo. Rick posou novamente para mim
e só saiu quando seu fisioterapeuta chegou.
Eu ficava muito feliz por vê-lo animado com as consultas, parecia
verdadeiramente empenhado em ficar cada vez melhor.
Mais tarde naquela noite, Killian ligou alegando que Colin havia
torcido o tornozelo no treino, Bradley contraiu um resfriado forte e ele
estava, em poucas palavras, desesperado por ajuda. E foi assim que
eu aceitei ir passar uns dias em sua casa para ajudar os rapazes em
meio a essa crise.
Rick foi quem me levou até lá.
Eu não sabia quantos dias passaria ajudando os pobres coitados,
nem se teria alguns de sobra para passar com Rick antes de ir para
a Itália e isso nos deixou um pouco desanimados.
— Acho que você está se tornando uma espécie de enfermeira —
brincou Rick enquanto conversávamos dentro do seu carro.
Já tínhamos chegado há pelo menos dez minutos, mas gastamos
esse tempo conversando, ninguém estava pronto para se afastar.
— Sou a pior possível. Se eles me irritarem, vou colocar a
navalha pra trabalhar. — Pousei a mão no rosto de Rick, notando
que seus olhos azuis pareciam tristes. — Ah, Rick…
— Parece que tudo tenta me afastar de você. — Ele riu baixo e
virou o rosto para beijar minha mão. — Vai chegar um dia que eu não
vou mais deixar isso acontecer.
— Na minha próxima viagem, você irá comigo — prometi,
aproximando nossos rostos e depositando um beijo em sua boca. —
Notting Hill, lembra?
Seu olhar pareceu recuperar um pouco do brilho de sempre.
Isso me tranquilizou.
— Vai ser maravilhoso. — Ele beijou minha testa e abriu a porta
do carro. — Vamos, antes que seu irmão pense que eu estou
macetando você dentro desse carro.
Minha risada foi tão forte e inesperada que acabei emitindo o
famoso som de porquinho.
Killian abriu a porta e foi como se estivesse vendo sua salvação.
— Graças a Deus, você está aqui. — Ele pegou a mala de minha
mão e fez sinal para que eu entrasse.
Rick se aproximou com o quadro que eu precisava finalizar e uma
maleta com meus objetos de pintura.
Peguei a maleta para ajudá-lo e entrei na casa.
Colin estava sentado no sofá, com a perna esquerda apoiada na
mesinha de centro, o tornozelo envolto por uma faixa.
— Sky. Treinador — cumprimentou ele com a voz desanimada.
Todo mundo estava desanimado hoje?
— Leblanc — Rick foi mancando até o rapaz. — Nunca o vi tão
derrotado — disse, apertando o ombro dele.
— Obrigado, significa muito para mim — resmungou Colin,
fazendo careta enquanto tentava mudar de posição.
Deixei a maleta sobre a mesa e peguei o quadro da mão de Rick.
— Obrigada. — Depositei um beijo em sua bochecha. — Vai ficar
mais um pouco?
— Infelizmente, não. Preciso resolver umas questões. — Ele
acariciou meu rosto. — Vou sentir saudades.
Sorri e assenti.
Eu também iria sentir.
— Killian, desce logo antes que eles comecem uma pegação e eu
seja obrigado a observar! — gritou Colin.
Meu irmão já descia os degraus da escada.
— Já estou saindo, estou saindo! — Rick nos deu as costas e
fechou a porta atrás de si após sair.
Fiquei parada no mesmo lugar até ouvir o ronco da Ferrari sumir,
o que indicava que ele tinha mesmo ido embora.
Bradley saiu do banheiro enquanto assoava o nariz com tanta
força que quase senti faltar ar nos meus pulmões.
— Ah, Sky, você está aqui — sua voz estava fanhosa e seus
olhos lacrimejavam. — Bom te ver.
— Igualmente. — Forcei um sorriso, me perguntando se o que o
infectou era muito ou pouco contagioso.
— Sky, eu tentei fazer uma sopa, mas não deu muito certo. — Kill
coçou a cabeça. — Enquanto troco o curativo de Colin, você poderia
preparar alguma coisa cheia de vitaminas para tentar reerguer Brad?
— Preciso ficar bem até o próximo jogo. — Bradley esfregou o
nariz com a mão e fez uma cara engraçada. — Droga, eu só queria
respirar.
— Pelo menos você pode andar sem sentir uma dor infernal. —
Colin deitou a cabeça no encosto do sofá e fechou os olhos. — Não
quero ter que ficar fora do próximo jogo. Merda.
— E quando é esse jogo, afinal? — Encarei Killian.
— Em seis dias — responderam os três homens.
Brad tinha chances de melhorar até lá.
Colin eu não apostaria muito.
— Ok, eu vou preparar a sopa, Brad vai tomar um banho quente
para inalar o máximo de vapor possível e Killian coloca uma bolsa de
água quente no tornozelo de Colin depois de terminar o curativo,
tudo bem?
— Eu sabia que essa casa precisava de uma mulher —
murmurou Colin.
Bradley se enfiou de volta no banheiro e logo ouvi o som do
chuveiro.
Killian sorriu, parecendo verdadeiramente aliviado por me ter ali.
— Tenho muita sorte de ter você como irmã.
— Sim, você tem — concordei, lançando-lhe uma piscadela antes
de ir para a cozinha.
Eu tinha seis dias para ajudar esses rapazes a se reerguerem.
E, pelas minhas contas, não sobraria nenhum para passar com
Rick antes da viagem.
Suspirei baixo.
Amar era bom, menos quando a distância entrava no meio.
Dias depois, Bradley estava bem melhor, mas Colin não teve a
mesma sorte.
Não existia sopa nesse mundo que ajudasse seu tornozelo.
Ainda assim, ele pareceu mais conformado. Segundo o próprio,
se ele brilhava dentro do rinque, também seria capaz de brilhar fora.
Também consegui terminar meu quadro. Os detalhes que
faltavam quando cheguei aqui eram poucos, bastou um único dia
para que eu finalizasse e ao vê-lo pronto foi quando minha ficha
finalmente caiu e eu me dei conta de que o levaria comigo até a Itália
para mostrá-lo ao mundo.
Eu não poderia ter escolhido modelo melhor do que Maverick.
Apesar de ser apenas um homem para quem visse, eu sabia
quem era aquele homem e tudo o que ele representava.
Qualquer pessoa que tivesse a oportunidade de levar essa arte
para a casa teria muita sorte.
— É bom ver que não vou precisar te colocar no banho dessa vez
— brincou Claire enquanto me observava deslizar o batom vinho
pelos lábios.
O dia do jogo tinha chegado e mais uma vez ela veio me buscar
para irmos juntas.
Já que o clima em Montreal estava — por um milagre — mais
quente do que o normal, aproveitei para colocar um cropped preto de
couro e calças jeans wide leg.
No pescoço, coloquei novamente o colar de Saturno, porque ele
me trazia boas lembranças e na bolsa coloquei o caderno de
margaridas.
— Está esperando a mensagem de alguém? — perguntou Claire
enquanto me observava encarar a tela do celular pela vigésima vez.
— Rick não me responde desde ontem — desabafei.
Ele não era a pessoa mais ligada ao celular que existia, mas
trocamos mensagens todos os dias desde que cheguei e ele não
falou nada sobre um possível sumiço.
— Vocês estão bem?
— Sim! — exclamei, enfiando o celular dentro da bolsa. — Droga,
vamos.
Odiava não saber se ele estava bem, se algo tinha acontecido ou
se Rick tinha simplesmente esquecido de me responder.
Mas, se fosse o caso, eu também odiaria, porque imaginar que
ele teria me esquecido era péssimo.
Dentro do carro de Claire, olhei para o banco de trás, mas não
encontrei a chuva de ursos de pelúcia como da última vez.
— Fim do ano tem mais e eu vou levar o dobro do que levei esse
ano, pode acreditar — prometeu ela enquanto dirigia. — Aliás, que
horas sai seu voo para Roma?
— Duas da madrugada. — Eu tinha escolhido viajar durante a
noite para poder dormir ou ao menos tentar.
Mas se Rick não me respondesse, iria ansiosa daqui até a
Europa e não queria que isso acontecesse.
— Então você vai vir para cá depois do jogo para buscar as
malas? — Ela me olhou pelos cantos dos olhos claros. — Quer que
eu venha com você?
— Seria ótimo, obrigada — agradeci.
Eu não sabia se Rick iria aparecer no jogo.
Ele não tinha me falado nada sobre isso.
Tentei não ter esperanças, para não me decepcionar caso ele
não aparecesse.
— Vai dar tudo certo, Sky. — Claire apertou minha mão. —
Acredite.
Forcei um sorriso.
— Eu acredito.
No estádio, as torcidas pareciam estar ansiosas por sangue.
Hóquei, apesar de acontecer no gelo, era um esporte que
deixava as pessoas loucas por fogo, ansiosas por verem as emoções
aflorarem e por socos entre os jogadores.
— Quer que eu compre o refrigerante hoje? — perguntei, antes
de seguir para a arquibancada.
— Não, pode ir, eu vou ao banheiro primeiro — disse Claire, me
descartando com um aceno.
Dei um passo em sua direção.
— Eu vou com você.
A ruiva abriu um sorriso nervoso.
— Amiga, sério, já estamos atrasadas, logo vai começar. Vai lá
pegar um lugar para nós! — Ela me deu um leve empurrão no
ombro, que eu estranhei.
Claire estava agindo estranho.
Ainda assim, segui para a arquibancada, notando que a maioria
dos lugares já estavam ocupados. Consegui dois lugares bem no
centro, mas fiquei de pé para que fosse mais fácil para Claire me
encontrar.
A maioria das pessoas já estava sentada, devorando suas
pipocas, cachorros quentes ou pretzels.
Fiquei triste ao notar que, dessa vez, não tinha brincadeiras
rolando para distrair os torcedores. Eu tinha gostado da última vez.
— Fiquei sabendo que o antigo técnico do Montreal abandonou o
cargo por causa de um acidente — disse um homem sentado na
minha frente.
— Será que é verdade? A NHL não falou nada sobre isso —
respondeu a mulher ao seu lado.
Observei o casal discretamente, curiosa com a conversa.
— Se for, é uma pena. O cara mandava bem.
— E era um gato — ela suspirou alto.
Tive que segurar o riso.
O cara não ficou muito contente com o elogio que a mulher fez a
Maverick.
Peguei o celular dentro da bolsa mais uma vez, apenas para ter
certeza que Rick não tinha respondido, mas fiquei triste mesmo
assim ao não ver nenhuma notificação em seu nome. Aproveitei para
mandar uma mensagem à Claire, perguntando onde ela estava. Nas
minhas contas, já tinha dado tempo o bastante para ela fazer xixi
pelo menos umas três vezes.
— Moça, você vai sentar? É que já vai começar — perguntou um
homem atrás de mim.
Ele usava a camisa vermelha e branca do Montreal Monsters.
Sorri.
— Mil desculpas.
Só notei que a maioria das luzes havia se apagado depois que
me sentei.
E a música tinha parado.
Olhei no telão do centro do estádio, mas não vi a imagem dos
jogadores prestes a entrar no rinque, como costumava acontecer
pouco antes de começar o jogo.
E nada de Claire.
Merda.
— Um, dois, três, testando… — uma voz forte soou nas caixas de
som de todo o estádio.
Uma voz forte e muito, muito conhecida.
Ele estava aqui.
Ele estava aqui!
Meu coração deu um salto.
Mas por que não me contou?
E, droga, onde estava Claire?
— Antes de começarmos o embate entre esses dois times
monstruosos, eu quero contar uma história para vocês — continuou
Rick, sem aparecer em lugar algum.
Olhei em volta, mas não o vi.
Só conseguia ouvir sua voz.
Eu e o estádio todo.
As pessoas ficaram em silêncio e começaram a procurar onde
estava o dono da voz, seus sussurros tomando conta do estádio.
— Essa história começou em um dia frio de novembro do ano
passado e tem dois personagens principais: eu e ela.
Meu coração acelerou.
Acelerou muito, eu quase conseguia senti-lo sair pela boca.
Rick, o que você está fazendo?
O estádio ficou silencioso, as pessoas pareceram desistir de
procurar o dono da voz e prestavam atenção em sua história.
— E vocês precisam saber de um detalhe: eu fiquei louco por ela
desde o primeiro momento. Sério, louco mesmo, cheguei a pedir
para meu detetive particular descobrir quem era a mulher dos olhos
âmbares que tinha esquecido a jaqueta no meu carro. — Rick
pigarreou. — Ele perguntou se eu estava bêbado e depois desligou
na minha cara.
O estádio balançou com o riso alto das pessoas.
Abaixei o rosto para esconder o sorrisinho que se formava em
meus lábios.
— Mas o que importa é que a gente acabou se encontrando de
novo e ela finalmente conheceu o divã da minha casa e, bem, vocês
podem imaginar o que aconteceu…
Um coro de “hmmmmm” se seguiu.
Eu fiquei vermelha.
— Mas eu magoei ela, porque queria seguir uma regra que
impedia que ficássemos juntos e depois ela se foi, porque temia que
meus sentimentos não fossem verdadeiros.
Silêncio.
O pessoal parecia realmente concentrado naquela história.
Eu também estava, mas ao contrário do resto das pessoas, eu
conseguia visualizá-la em minha mente com clareza e sequei uma
lágrima que escorreu quando me lembrei do quão difícil foi ficar
longe de Rick por tantos meses.
— Eu juro que tentei esquecer essa mulher, mas ela é diferente.
Tem os cabelos mais escuros que já vi e olhos quase amarelos. Mas,
acima de tudo, têm um coração puro e especial e é uma artista muito
talentosa. Por favor, vocês podem me ajudar a encontrá-la?
As pessoas começaram a olhar em volta e eu mordi o lábio
inferior para segurar o sorriso.
Abaixei o olhar, porque estava quase entrando em colapso.
— Moça? — chamou uma criança ao meu lado e quando a olhei,
seus olhos brilharam. — É ela! Eu achei! — gritou, pulando o mais
alto que podia enquanto apontava em minha direção.
Sua mãe a puxou para o lado, sorrindo como um pedido de
desculpas ao me ver, mas seu sorriso desapareceu e ela pareceu
chocada.
— Ah, céus, Kitty está certa.
Mais pessoas começaram a prestar atenção em mim, a apontar
em minha direção e a exclamar para que o dono da voz me
encontrasse.
— Eu sei que você está aqui, Sky — murmurou Rick no
microfone de um jeito provocante.
E então minha imagem em tempo real passou a estampar o telão
do estádio.
As pessoas gritaram e comemoraram.
Eu cobri o rosto com uma das mãos enquanto sorria, tomada por
vergonha e timidez por ser o centro das atenções.
— Aí está ela. Apreciem a beleza dessa obra de arte em forma
de mulher, eu imploro.
Rick queria me matar de vergonha.
Só podia ser.
Quando as pessoas ficaram quietas, ele voltou a falar:
— Ok, a história ainda não acabou e, se depender de mim, está
só começando.
Exclamações e suspiros apaixonados tomaram conta do lugar.
Todos amavam uma história de amor.
E essa era a minha história de amor.
Se eu conseguisse sobreviver até o final do discurso de Rick,
talvez tivesse a sorte de finalmente vivenciá-la.
Uma luz branca foi lançada no início dos degraus da
arquibancada, revelando — finalmente — Maverick Stanwick em
toda a sua beleza e elegância.
Ele estava com a perna direita levemente dobrada enquanto
segurava a bengala com uma das mãos e o microfone com a outra.
Trajado com uma camisa social preta que marcava os músculos
dos braços e peitoral forte, ele sorriu quando nossos olhares se
encontraram.
Maverick tinha ganhado peso desde que cheguei.
Isso fez muito bem a ele.
— Skyler — começou ele, descendo os degraus um a um. — Eu
sei que você está prestes a partir por algum tempo, mas quero que
vá sabendo que aqui em Montreal existe um homem que te ama com
a própria vida. — Ele parou no degrau da minha fileira e abriu um
sorrisinho amarelo. — Poderia me dar licença?
As pessoas se apertaram para deixá-lo passar, o que foi
engraçado.
Um homem grande com uma bengala, atravessando uma fileira
repleta de gente, apenas para me alcançar.
— Agora sim. — Quando chegou até mim, estendeu a mão em
minha direção e eu a peguei, me levantando e ficando de frente para
ele. — Como eu estava dizendo, aqui em Montreal existe um
homem, eu, que é louco por você e que passaria por cima de
qualquer regra apenas para te ter ao lado dele todos os dias, pelo
resto da vida.
Sorri, encarando aqueles olhos azuis, e de repente me esqueci
que estávamos no meio de um monte de gente com celulares
apontados em nossa direção.
— Eu sempre segui regras, Sky, e nunca senti vontade de
quebrá-las. Mas quando você chegou, eu percebi que não queria
mais viver para o hóquei. Eu queria viver para você e regra nenhuma
jamais irá me impedir de fazer isso. — Rick se virou, entregando a
bengala para um homem que a segurou como se valesse ouro e
pegou uma caixinha dentro do bolso da calça.
Houve uma exclamação por todo o estádio.
Dessa vez, uma vinda de mim também.
— Eu não vou me ajoelhar, porque acabaria precisando de muita
ajuda para voltar a levantar, mas eu preciso saber, Sky. — Ele riu
baixo e abriu a caixinha. Um anel brilhante e delicado brilhou ali
dentro. — Você aceita viver um romance comigo?
Pousei a mão no peito, impedindo meu coração de pular para
fora.
Olhei para o anel, então para o homem que segurava a caixinha
e senti meus olhos transbordarem em lágrimas. Ele sorriu de canto e
secou uma delas quando escorreu.
O estádio estava tão silencioso que quase era possível ouvir a
respiração das pessoas.
Como negar esse pedido?
Seria impossível.
— Sim — respondi, enfim, soltando uma risada baixa e sequei
minhas lágrimas.
— Acho que o pessoal quer saber. — Ele estendeu o microfone
em minha direção e arqueou as sobrancelhas. — Pode repetir?
Eu ri e assenti.
— Sim! — exclamei, sentindo meu rosto esquentar novamente
quando minha voz soou alta por todo o estádio.
Rick entregou o microfone pro cara da bengala e segurou minha
mão.
— Desculpe o meu sumiço — falou ele conforme deslizava o anel
por meu dedo. — Eu precisava planejar tudo para que saísse
perfeito.
— Com algum esforço talvez eu consiga te perdoar — falei, me
aproximando e o abraçando pelo pescoço antes de grudar nossos
lábios em um beijo um tanto desengonçado, afinal, eu não conseguia
parar de sorrir.
E então o público explodiu em aplausos, gritos, assovios,
flashes…
Foi uma loucura.
Eu jamais teria sonhado com algo assim.
Foi perfeito.
— Meu carro está lá fora, talvez a gente possa aproveitar um
pouco antes de você partir — sussurrou em meu ouvido quando o
telão mudou a imagem para os jogadores e assim as pessoas
voltaram a se concentrar no que vieram fazer aqui.
Concordei e o segurei pela mão para sairmos dali.
Sky ficou chocada quando contei que Claire sabia sobre tudo.
Na verdade, os rapazes também sabiam, e foi Killian quem
roubou um dos anéis da irmã para que eu conseguisse providenciar
que o anel que eu encomendei fosse feito em um tamanho ideal.
Bradley deu um jeito de convencer o cara que controlava o som e
as luzes — aparentemente eles eram amigos — a me entregar um
microfone e ceder uns minutinhos antes do jogo.
Colin contribuiu ficando de boca fechada, porque ele era tagarela
[20]e não conseguia guardar segredos muito bem.
E assim eu consegui fazer a maior demonstração de amor da
minha vida.
Não podia negar, fiquei extremamente nervoso e minhas mãos
produziram tanto suor que acho que dava para encher um copo.
Passei noites em claro, pensando no que faria se algo desse errado,
se o microfone parasse de funcionar no meio do discurso, se eu
caísse de cara no chão, se ninguém prestasse atenção em mim ou,
pior de tudo, ela dissesse não.
A ansiedade era ótima em criar situações absurdas para tirar o
sono da gente.
Mas deu tudo certo, e agora que eu a tinha em meus braços,
nunca mais soltaria.
Acho que nunca vi Skyler sorrir tanto.
Foi adorável ver o quão tímida e envergonhada ela ficava com
tanta atenção, ela era do tipo de pessoa que preferia expor sua arte,
mas não a si mesma.
— Então a menininha arregalou aqueles olhinhos e começou a
gritar “é ela, é ela!” — contou, sentada no banco do carona enquanto
devorava uma cestinha de batatas fritas.
Antes de irmos para o carro, comprei algumas coisas para
comermos, mas a verdade é que eu não estava com fome.
Estava rolando o jogo dentro do estádio e pela primeira vez
preferi ficar do lado de fora do que lá dentro, prestando atenção em
tudo e traçando jogadas. Era bem mais interessante ficar aqui fora
ouvindo Skyler contar como foi a experiência que acabou de ter.
Quando, nos últimos vinte anos, pensei que alguma vez iria dizer
isso?
— Foi muito difícil ficar sem responder suas mensagens de
ontem pra hoje — admiti e enfiei uma batata na boca. — Mas eu
precisava fazer um suspense, sabe?
— E quase me matou do coração. — Sky colocou a cestinha em
cima do painel do carro e bateu uma mão contra a outra algumas
vezes para tirar o sal antes de pegar a bolsa e tirar algo de lá de
dentro.
O caderno de margaridas.
Ela o apertou contra o corpo por alguns segundos antes de se
virar para mim e estendê-lo em minha direção.
— É pra você.
Arqueei as sobrancelhas e peguei o caderno, curioso e intrigado.
Eu o conhecia, já tinha visto alguns dos esboços, mas da última
vez que o folheei ele estava praticamente vazio.
Agora, não tinha uma única folha em branco.
— Eu passei um tempo ilustrando coisas que me lembraram de
você durante os últimos seis meses, quando voltei para cá e te
encontrei novamente, tudo o que eu consegui desenhar era você.
Folheei o caderno com paciência, encontrando os antigos
esboços meus que eu já conhecia, mas também os novos, alguns na
cadeira de rodas, sempre sério e com o cabelo e barba grandes.
Mais para frente, no andador, e meu rosto parecia mais leve.
Além disso, meu cabelo e barba já tinham passado pelos cuidados
de Sky.
E então eu estava com a muleta e lançava um graveto para
Zorro.
Ela tinha eternizado naquelas folhas todo o meu processo, as
mudanças, o sorriso que aos poucos voltou a surgir em meu rosto,
meus olhos cada vez menos tristes e mais brilhantes…
— Nesse caderno tem cada face que eu conheci de você —
disse, pousando a mão sobre a minha quando fechei o caderno — e
eu amo cada uma delas.
Minha declaração de amor não chegava nem perto do impacto
que as palavras de Skyler me causaram.
Me virando para olhar em seus olhos âmbares, me perguntei
como seria capaz de deixá-la partir.
— Você é o lance mais certeiro que eu já dei. — Ri baixinho e
levei sua mão até minha boca. — Eu te amo muito. Faria cem gols
por você agora.
Beijei logo acima de onde o anel agora descansava e ela sorriu.
— Quando você voltar a patinar, eu com certeza vou cobrar.
Olhei em volta, notando que as pessoas estavam saindo do
estádio e o estacionamento estava pouco a pouco se esvaziando.
Eu não fazia ideia de quem tinha levado a melhor essa noite.
— Amanhã as redes vão se encher de fotos da gente — avisei.
— Então, não se assuste.
— Namorar gente famosa tem suas dificuldades. — Ela se
inclinou em minha direção e beijou meu queixo.
Seu celular vibrou de repente.
Arqueei as sobrancelhas, observando-a fazer careta conforme
encarava a tela.
— Está na hora de ir buscar as malas — disse com o tom
desanimado.
— Ei, olhe para mim. — Ergui seu queixo, fazendo-a me encarar,
e abri um sorriso para tranquilizá-la. — Esses dois meses vão voar e
logo você vai estar de volta para lançar gravetos para Zorro. Eu sei
que ele gosta mais quando você lança. Sua carreira vai alavancar
daqui pra frente, eu sei que vai, e vou estar te esperando com muito
orgulho aqui em Montreal quando retornar.
Sua expressão de desânimo foi substituída por esperança e
expectativa.
Era essa a Skyler que eu queria ver indo para a Itália.

Só saí do aeroporto quando o voo de Skyler partiu.


Ela me mostrou o resultado do quadro e eu tive certeza de que
ela não voltaria para cá com ele. Na Itália devia existir pelo menos
um ser de verdadeiro bom gosto que não perderia a oportunidade de
levar para casa uma obra tão bem feita e eu não dizia isso só por eu
ter sido o modelo.
Sky retratou sentimento de verdade naquela pintura.
Cada um poderia interpretar de uma forma de acordo com as
experiências pessoais, mas todos sentiriam ao menos alguma coisa
ao analisar a pintura com atenção.
Voltei para casa de madrugada, mas ao parar o carro, achei
estranho a sombra de um homem sentado nos degraus da entrada
com uma mala do lado.
Ao descer do carro e me aproximar, ficou nítido quem era o
visitante inesperado.
Hugh.
Ele se levantou assim que me viu e bateu as mãos na calça para
afastar a poeira.
— Rick, foi mal não avisar que estava vindo! — exclamou de
imediato, vindo em minha direção. — A verdade é que eu briguei
com a mulher que estou apaixonado e decidi passar uns dias longe
de Toronto pra esfriar a cabeça.
— Hugh…
— Eu sei que você não gosta de visitas inesperadas, mas eu
estava com saudades, não te vi por meses e acabei unindo o útil ao
agradável. Estou esperando há duas horas e um vizinho chegou a
chamar a polícia achando que eu era um intruso, mas sério, irmão,
eu não pretendo ficar por muito tempo…
Ele falava tantas palavras com tanta rapidez que eu estava
ficando com sede só de ouvir.
Hugh estava tão acostumado com meu mau humor habitual que
já tinha preparado um discurso para se desculpar. Mas ele era meu
irmão e para mim era um prazer recebê-lo em minha casa.
Talvez fosse hora de começar a demonstrar isso.
Pousando a mão em seu ombro, puxei-o para que me
acompanhasse para dentro.
Hugh ficou em silêncio, parecendo estranhar minha atitude, mas
me acompanhou.
— Eu tenho más notícias — avisei ao destrancar a porta e
acender as luzes.
— O quê? — Seus olhos se arregalaram conforme ele arrastava
a mala para dentro, sem afastar o olhar do meu.
— O Audi já era. — Abri um sorriso triste. — Você vai ter que
passar a usar a Harley.
Hugh nunca pareceu tão confuso.
— Harley?
Concordei.
— Davidson.
Levou alguns segundos, mas logo ele entendeu que eu estava
cedendo minha moto, caso ele quisesse andar por aí, e o abraço que
me deu foi mais forte do que na vez que lhe entreguei a chave do
Audi.
Mas, dessa vez eu retribuí o abraço, grato por ter meu irmão aqui
comigo.
Agora que eu tinha me resolvido com o amor, talvez pudesse
ajudá-lo.
E, quem sabe, quando eu terminasse, o meu amor já estaria de
volta para mim.
Eu torcia por isso.
Apesar da saudade diária que eu senti de Rick, a Itália se
mostrou uma ótima distração.
Experimentei vinhos deliciosos, massas muito bem preparadas,
queijos que pareciam ter sido feitos pelos próprios ratos — algo me
dizia que eles saberiam criar queijos deliciosos — e conheci
paisagens tão belas que não sabia se seria capaz de retratar
tamanha beleza nas minhas telas.
Mandei fotos de tudo para Rick, minha mãe e Claire. Os três
queriam se manter atualizados.
Fui muito bem recebida na galeria e todos os dias eu dava uma
passada no lugar para ver como estavam as coisas. Não foi exagero
quando o Google disse que centenas de pessoas passavam por ela
diariamente. Milhares, até, em dias mais cheios.
Quando minha estadia completou um mês e dois dias, fui
chamada na galeria para conhecer alguém que requisitava minha
presença.
Não era a primeira vez que isso acontecia, mas foi a primeira vez
que, ao chegar lá, dei de cara com um empresário japonês idoso
bem vestido, que encarava o quadro como se fosse um retrato de si.
— Senhor, essa é a artista. — A secretária da galeria fez um sinal
em minha direção. — Skyler Saint Clair.
O homem me analisou dos pés à cabeça antes de voltar a
encarar o quadro, sem dizer uma única palavra.
Dei um passo em sua direção e me virei, também olhando para a
pintura.
— Isto saiu de sua cabeça? — finalmente perguntou, ainda sem
me encarar.
— Eu tive um modelo — admiti, sorrindo ao lembrar de Rick. —
Um modelo excelente.
— Me sinto olhando para a imagem de alguém que luta
diariamente consigo mesmo. — Ele cruzou os braços. — Pura
melancolia.
Engoli em seco, sem ter certeza se isso era bom ou não.
— Acredito que certas coisas estão abertas para a interpretação
do espectador. Suas experiências passadas vão influenciar a forma
que vê as coisas hoje.
— Talvez.
Troquei um olhar com a secretária, que abriu um sorriso nervoso.
— Sabe, Skyler, há anos lutei contra a depressão e esse quadro
parece a representação exata do que é lutar com algo que está
tentando acabar com você. — O homem finalmente se virou para
mim, ainda sério, e continuou: — Eu precisava te dar os parabéns
pessoalmente.
Meu coração voltou a bater com calma.
Sorri, grata pelo elogio.
— Isso significa muito para m…
— Cinquenta mil — falou de repente, mantendo a seriedade.
Isso me calou.
— Como assim, senhor? — perguntou a secretária, dando um
passo à frente.
— Cinquenta mil pelo quadro. — Ele apontou para a obra em
questão.
A minha obra.
— Não prefere aguardar pelo leilão? — A mulher arqueou as
sobrancelhas finas.
— Não tenho tempo, vou embora hoje.
A mulher assentiu e se virou para mim.
— Bem…
Aceitar essa proposta implicaria em parar de expor meu quadro e
perder o leilão.
Mas os olhos da mulher pareciam me dizer que aquela era uma
proposta irrecusável, que não acontecia com frequência.
Pelo que eu sabia, os lances que ocorriam durante o leilão
podiam chegar a vinte e cinco, trinta ou até quarenta mil. Mas
cinquenta? Ao vir para cá, não imaginei que conseguiria tanto.
Se eu aceitasse, poderia voltar mais cedo para Montreal, para
Rick.
Além disso, teria grana o bastante para abrir minha galeria e
realizar meu sonho.
O que eu tinha a perder?
Me virei para o homem e sorri.
— Ele é seu.
Pela primeira vez na conversa, ele sorriu.
E eu sabia que tinha feito a coisa certa.

Voltei para Montreal três dias depois, quando a burocracia já tinha


sido resolvida, o dinheiro já estava na minha conta e os dez por
cento da galeria já haviam sido descontados.
Não avisei Rick sobre meu regresso.
Na verdade, não avisei ninguém.
Queria fazer surpresa.
Eu queria poder contar para todos sobre a proposta que recebi.
Segundo a secretária, foi uma das maiores propostas já feitas
naquela galeria para um artista iniciante e ela garantiu que eu fiz
bem em aceitar.
O avião pousou em solo canadense exatamente às dez da
manhã.
Um Uber me levou até a casa de Rick.
Pedi para ele me deixar no portão, porque queria ir caminhando
até a entrada.
Puxando minha mala de rodinhas e me segurando para não
correr, caminhei com um sorriso cada vez maior em meu rosto, me
sentindo ansiosa para abraçar Rick e contar todas as novidades.
O dia estava ensolarado, o quanto mais perto eu chegava da
casa, mais clara ficava a voz forte e alta do homem que eu amava.
Parei próxima de uma árvore, observando-o lançar um graveto
para Zorro, que correu como um foguete para pegá-lo.
Rick estava com a bengala, mas mal parecia se apoiar nela. Seu
jeans estava gasto e a camiseta colava perfeitamente em seu corpo.
Ele assobiou para Zorro, que correu de volta para ele e só soltou o
graveto quando Rick estendeu a mão.
Então eu assobiei e os dois olharam em minha direção.
Rick deixou o graveto cair.
Ele me encarava como se eu fosse fruto da sua imaginação.
Sorri, puxando a mala comigo conforme caminhava em sua
direção, vendo o exato momento em que ele largou a bengala para
trás, que caiu no chão ao lado do graveto e correu em minha direção,
mancando no processo, mas fazendo o seu melhor para ser rápido.
Seus braços me envolveram antes mesmo que eu percebesse.
E eu me senti em casa.
Abracei seu corpo com toda a minha força e enfiei o rosto em seu
peitoral, sentindo seu cheiro, seu calor, seu amor.
Rick enfiou o nariz no meu cabelo e fungou com força.
Sorri, porque estava feliz, mas também porque estava grata.
Nada poderia ser mais perfeito do que esse momento.
E, apesar de não poder eternizá-lo em um desenho, eu iria
guardá-lo para sempre em meu coração.
Alguns meses depois

Se alguém me perguntasse o que achei da Flórida, a primeira


coisa que eu diria era que o lugar parecia o inferno quando estava no
verão.
Não que eu conhecesse o inferno, mas eu conheci o Estado da
Flórida no verão e era quase a mesma coisa.
Meus sogros se esforçaram para me deixar o mais confortável
possível, ligando o ar condicionado no mínimo, colocando
ventiladores em minha direção e oferecendo sorvete o tempo todo.
Os pais de Skyler eram muito atenciosos, especialmente sua mãe,
que parecia não saber o que fazer para me agradar, então ela fazia
literalmente tudo o que podia.
Seu pai foi simpático, mas vez ou outra senti que o senhor Saint
Clair ainda estranhava o fato de Skyler estar namorando um cara
apenas quinze anos mais novo do que ele próprio.
Apesar disso, notei que eles estavam verdadeiramente felizes
com a felicidade da filha e isso parecia bastar.
Um dia antes de voltarmos para Montreal, Sky me levou para
conhecer sua sorveteria favorita e eu fui, porque estava morrendo de
tanto calor — não que fosse novidade.
— Sabe, depois que conheci o sabor do gelato, nunca mais
gostei tanto de sorvete quanto antes — admitiu, enfiando a colher na
bola de sorvete de pistache.
— Dizem que na Itália tudo é muito mais gostoso. — Lambi
minha casquinha quando vi que o sorvete estava derretendo por ela.
— Algum dia vou te levar até lá apenas para fazermos amor. Quero
ver se também vai ser mais gostoso.
Skyler riu.
— E tem como ficar melhor?
Bem, era verdade.
De qualquer forma, eu ainda pretendia levá-la até lá.
Quando chegou da viagem, ela contou tudo com tanta alegria e
satisfação que senti vontade de conhecer os segredos da Itália com
meus próprios olhos. Ainda não entendia como nunca cheguei a ir
até lá.
— Ah, não acredito… — Notei Skyler ficar tensa e se ajeitar na
cadeira.
Segui seu olhar, observando um rapaz de cabelos escuros que
tinha acabado de dobrar a esquina.
— O que foi, amor?
— É meu ex — revelou, parecendo querer evitar encará-lo. —
Tyler.
Ah.
Meu momento tinha chegado.
O rapaz olhou para nós, parecendo surpreso ao ver que Sky
estava acompanhada e pigarreou baixo.
— Sky — disse ele, acenando.
Ela forçou um sorriso.
— Tyler.
O rapaz se virou para mim e pareceu me analisar.
— E esse é?
— Maverick — respondi eu mesmo, sem desviar o olhar.
Notei o movimento de seu pomo de adão quando ele engoliu em
seco.
— Vocês estão…
— Juntos, sim — respondi novamente, porque Sky não tinha a
obrigação de falar com esse babaca.
Ele assentiu e acenou.
— Bem, felicidades, eu acho. — Forçando um sorriso, ele puxou
a porta da sorveteria e entrou no estabelecimento.
Olhei para Skyler, que parecia mais calma agora que ele tinha se
afastado e me lembrei de tudo o que ela me contou sobre ele. Eu
podia esquecer os surtos de ciúmes, afinal alguns adolescentes
acabavam tendo esses momentos, mas o tapa que ele deu nela?
Isso não.
— Sky, enquanto você termina o seu sorvete, vou lá dentro lavar
as mãos, ok? — perguntei, já me levantando e terminando de comer
minha casquinha.
— Está bem. Não demore, por favor.
Eu concordei.
Ela ainda parecia tensa.
— Vai ser rápido.
Ao entrar na sorveteria, não encontrei o rapaz.
Então fui direto para o banheiro e logo descobri que tinha ido
para o lugar certo.
Ele estava secando as mãos quando entrei e me encarou com
desconfiança.
— E aí? — falou, jogando o papel no lixo.
Eu estava parado na porta, deixando claro que ele não iria sair
sem passar por mim antes.
— Qual é a sua? — perguntou, cruzando os braços e empinando
o queixo.
— Fiquei sabendo algumas coisas a seu respeito — falei baixo,
sem desviar o olhar.
Ele riu com sarcasmo.
— Ah, é claro que sim, elas sempre falam que o ex é ciumento,
maluco, briguento e toda essa baboseira. — Revirou os olhos. —
Boa sorte com esse b.o. Você será o próximo ex a ser mal falado por
aí.
Eu nem precisei falar o que fiquei sabendo a respeito de Tyler e
ele mesmo já se entregou.
— Não pretendo me tornar “ex” de Skyler. — Finalmente dei um
passo em sua direção. — Se ela fosse tão ruim assim, você não teria
pedido para sair com ela algum tempo atrás, não é?
Ele engoliu em seco e deu um passo para trás, parecendo notar
que tinha se enfiado na cova que cavou para si mesmo.
— Olha, cara, eu não quero briga… — disse com a voz trêmula.
— É mesmo? Por que não bate em mim? Por que não soca
minha cara agora? Aqui, pode bater! — Virei meu rosto para ele,
como se estivesse oferecendo minha face e o agarrei pela camisa.
— Vai, bate! — rosnei, desafiando-o.
O rapaz se encolheu e começou a chorar.
Sim, chorar.
E eu o soltei, o observando se abaixar contra a parede.
— Você não vai bater em mim — murmurei, me dando conta
disso. — Porque é covarde e prefere bater em quem é mais fraco do
que você.
Ele nem respondeu.
— Mas eu não sou covarde — finalizei, indo até a pia lavar as
mãos — e não vou bater em você. Mas, se dirigir a palavra
novamente para minha mulher, saiba que não medirei esforços para
ir atrás de você. Está entendendo?
Ele concordou.
— Agora sai.
Ele se levantou tão rápido que ouvi seu osso estalar.
Depois que ele saiu, esperei alguns minutos e saí também, indo
me encontrar com Skyler.
— Nunca vi uma lavagem de mãos demorar tanto — disse,
sorrindo, enquanto se levantava e estendia a mão em minha direção.
— Talvez eu tenha feito mais do que isso.
— Eca. Não quero saber.
Sorri.
Ela não precisava saber a verdade sobre o que eu tinha feito.
Segurei sua mão e entrelacei nossos dedos.
No mesmo momento, Tyler saiu da sorveteria e passou por nós
tão rápido que pareceu um foguete. Ao menos ele tinha entendido o
recado.
A testa de Skyler franziu conforme ela tentava entender a reação
do ex, mas quando seus olhos encontraram os meus, ela voltou a
sorrir, provavelmente se dando conta de que não importava.
Porque não importava.
Ele era seu passado e não iria mais incomodá-la.
Já eu, era seu presente e, se desse sorte, também seu futuro.
2 anos depois

— Então… Eu acho que é isso.


Parado de mãos dadas com minha esposa em uma calçada
qualquer em Notting Hill, eu tirava uma foto da fachada da livraria
The book travel Co enquanto ela observava o lugar que sempre
desejou conhecer.
E era… Comum.
Normal.
Como qualquer outro.
Ok, tinha uma beleza aconchegante e as pessoas que estavam
ali pareciam encantadas, afinal o lugar apareceu em um filme muito
famoso, mas era só.
— Vamos entrar? — perguntei, dando um passo em direção à
livraria.
Skyler encarou a fachada por mais um tempo antes de negar com
a cabeça e me puxar de volta para seu lado.
— Não — respondeu, me surpreendendo.
— O quê? — Pisquei algumas vezes, duvidando ter entendido
certo. — Você não quer entrar?
Ela negou com a cabeça.
Mas o que…
— Sky, nós saímos de Montreal com você grávida de seis meses
apenas para vir conhecer esse lugar — lembrei-lhe. — O que houve?
Você não está feliz?
Ela pousou a mão enluvada em cima da barriga redonda e sorriu.
— Eu estou muito feliz — garantiu — mas é que a magia da
livraria está no filme, e se eu entrar lá e não der de cara com Hugh
Grant e Julia Roberts, a magia vai acabar.
Eu não conseguia entender.
Minha esposa tinha alguns pensamentos muito complexos.
— Gosto de pensar que eles estão lá nesse momento, com ela
dizendo que é apenas uma mulher pedindo para ser amada. — Seus
olhos brilharam de emoção. — É perfeito. Este momento é perfeito.
Acho que consegui compreender ao menos um pouco do que Sky
quis dizer e envolvi sua cintura, aproximando-a de mim.
O clima em Londres era bem frio nessa época, mas não
deixamos o hotel até que eu tivesse certeza de que Sky estaria bem
agasalhada dos pés à cabeça.
Sua gravidez estava quase entrando no sétimo mês e às vezes
ela parecia se esquecer disso. O médico a aconselhou a se manter
longe das tintas por um tempo e se concentrar nas artes digitais e
também a evitar subir e descer as escadas com muita frequência
para não correr o risco de cair — como acontecia com muitas
grávidas que tinham escadas em casa —, mas às vezes ela
esquecia e eu a pegava subindo as escadas com pressa e quase
acabava morrendo do coração.
Mas ela estava se saindo bem.
Seria uma ótima mãe, disso eu sabia.
E Zorro parecia ansioso para conhecer o residente que estava
chegando, afinal, passava horas deitado na barriga de Sky e a
acompanhava por todos os lugares que ela ia, como um verdadeiro
guarda-costas.
Quando Solange e Tony se casaram, alguns meses antes de nós,
Sky decidiu que não contrataríamos outra cozinheira. Ela descobriu
que gostava de cozinhar e tomou conta da cozinha, guardando
consigo as receitas de Solange para quando fosse necessário.
— Eu estou com fome — resmungou, me fazendo voltar ao
presente e fez careta. — Será que podemos dar uma paradinha para
comer?
Ela sempre estava com fome.
A última “paradinha” para comer foi feita menos de trinta minutos
atrás.
Mas alimentar minha esposa era um prazer para mim.
— Tem uma cafeteria aqui por perto — avisei, puxando-a pela
mão para andarmos.
Dessa vez Sky me acompanhou, parecendo encantada pela
vizinhança aconchegante, repleta de casas coloridas e alegres.
Já podia imaginar que surgiria um quadro dela no futuro para
enfeitar as paredes de casa.
E, até lá, eu já estaria com meu filho nos braços.
Sorri.
Ela tinha razão.
Era perfeito.
A vida passa em um piscar de olhos, e os dias, que parecem
tão compridos quando se é criança, se tornam extremamente curtos
na fase adulta.
Fazia três anos desde que voltei da Itália e o dinheiro que ganhei
lá continuava em minha conta, junto com quantias extras que eu já
tinha e outras que fui conquistando. Rick não me deixava usar
aquele dinheiro para nada, alegando que algum dia eu iria abrir
minha galeria com ele.
Mas esse plano foi adiado por muito tempo.
Muito mais do que eu previ.
A verdade é que eu queria abrir a galeria em Montreal, perto dele,
perto da nossa casa e da família que formamos. Para mim, Montreal
se tornou minha casa, passei a ir a todos os jogos do meu irmão
quando eram na cidade e a frequentar uma cafeteria na companhia
de Claire todas as segundas-feiras. Eu gostava daqui e tinha
escolhido esse lugar para me estabelecer.
E era por isso que eu estava demorando tanto para abrir minha
galeria.
Estava difícil achar um lugar que eu gostasse, que fosse bem
localizado e que tivesse a estrutura ideal para o que eu desejava.
Mas então, em uma segunda-feira de verão, enquanto eu
caminhava pela calçada de uma das ruas do centro da cidade logo
após me despedir de Claire na cafeteria, com meu filho risonho e
com perninhas agitadas no canguru, vi uma cena que me intrigou.
Vladimir Eastern colocando uma placa de “vende-se” nas
enormes portas de vidro do lugar que um dia foi sua galeria.
E pensar que vim até aqui por causa dele, mas quem me fez ficar
foi seu primo…
Sorri, tendo boas lembranças do dia que Rick me levou para
patinar logo depois que passei por uma das maiores desilusões da
minha carreira até aqui. Se não fosse por ele e seus incentivos
sinceros e empenhados, eu não tinha certeza se teria continuado a
buscar por meu sonho.
Que bom que não desisti.
Atravessei a calçada, indo em direção ao homem de cabelos
alaranjados e pele pálida.
Ele falava ao telefone e quando o alcancei, pareceu não me
reconhecer de primeira.
Apontei para a placa de “vende-se” e ele fez um sinal para que eu
esperasse um pouco enquanto se despedia na ligação.
Meu filho tentou se esticar para alcançar os cabelos de Eastern,
mas eu logo dei um jeito de segurar sua mãozinha que andava
fazendo estragos por aí. Bastava eu me virar e ele aprontava
alguma, com Rick sendo seu cúmplice na maioria das vezes.
Quando William nasceu, foi como se eu tivesse tido dois filhos:
Will e Rick.
O segundo mais babão do que o primeiro.
— Posso ajudar? — perguntou Vladimir, finalmente enfiando o
celular no bolso.
— O senhor vai mesmo desistir da galeria?
Apesar de tudo, Vladimir era um bom artista e eu reconhecia isso.
— Sabe como é, em algum momento o novo se torna mais
interessante que o velho, tem surgido muita coisa nova no meio
artístico… — Ele abriu um sorriso triste.
— Mas não vai desistir da sua arte, não é? Com a tecnologia,
você pode até mesmo criar uma galeria on-line para expor seus
quadros.
Foi então que ele olhou em meus olhos e pareceu se dar conta
de quem eu era.
Seu rosto ficou mais pálido do que já era.
— É você — disse, surpreso e um tanto chocado, descendo o
olhar para o meu filho. — E ele.
— William Stanwick, sim — respondi, balançando a mãozinha
gorducha que tinha agarrado meu indicador e se recusava a soltar.
— Me desculpe por aquela tarde, eu estava tão cansado dos
artistas sem talento que apareciam por aqui e agora você é esposa
do meu primo e… Isso é muito embaraçoso.
Rick sempre deixava claro que eles eram primos muito distantes.
— Vamos deixar o passado no lugar dele, o que acha? — sugeri,
notando o alívio surgir no rosto do homem.
— Esplêndido.
Voltei a apontar para a placa de “vende-se”.
— Eu gostaria de fazer uma proposta pelo lugar.
Vladimir arregalou os olhos, se virou para a placa e depois para
mim.
— Você? Mesmo? Quer dizer… — Ele pigarreou. — Se me
permite saber, o que pretende fazer aqui?
— A S. S. Clair Gallery — respondi, utilizando o nome que eu
assinava minhas artes.
O queixo de Vladimir pareceu ir parar no chão.
— Não acredito — murmurou, incrédulo, mas um tanto admirado.
— Suas artes estão tomando conta das redes. Você… Você ficou
famosa.
Sorri de canto e encolhi levemente os ombros.
— Graças ao seu conselho, acho que consegui deixar de ser
“mais do mesmo” e aprendi a me valorizar.
Eastern ficou vermelho como um pimentão enquanto soltava um
riso sem graça, provavelmente se lembrando de como foi grosso
comigo aquele dia.
— Bem… — Tirando um cartão do bolso, ele me entregou. —
Entre em contato com meu corretor. Ele vai te passar as
informações.
Concordei, guardando o cartão antes que William chorasse por
eu não tê-lo deixado enfiá-lo na boca.
— Agradeço, Eastern. E boa sorte.
Ele sorriu e assentiu, dando um passo para longe, mas então se
virou e me olhou uma última vez, rindo com descrença como se
estivesse se divertindo com as voltas que a vida dá, antes de
finalmente seguir seu caminho.
Me virei para a galeria, tentando observar seu interior através das
portas de vidro, mas agora era tudo um vazio lá dentro, sem cores,
sem nada.
Sorri.
Mal podia esperar para dar um jeito nisso.
Às minhas betas queridas, que estiveram comigo desde a
primeira palavra desse livro até a última, me dando conselhos, me
incentivando e, acima de tudo, surtando: Adriane Dias Aragão,
Belaisa Fávaro, Viviane Camargo, Joana Rebello S. Corrêa, Duda
Mota, Stefany Rose e Pâmela Jardim. Vocês são um time e tanto.
À minha revisora, Gabi, que nunca desiste de mim e tem a maior
paciência do mundo (além de compartilhar seus traumas amorosos
que eu amo ouvir). Sou muito grata por ter você para lapidar minhas
histórias.
Aos meus leitores, que surtam comigo a cada novidade, que não
deixam de me apoiar e me incentivar mesmo nos meus piores dias.
Em vocês eu encontrei uma espécie de família e cada livro que
escrevo é como um banquete preparado com muito carinho para
vocês. Obrigada!
E a você, que chegou até aqui. Espero poder te encontrar em
outras histórias no futuro.
Com amor,
Bia Fernandes

[1] Significado: nós nascemos para morrer.


[2] National Hockey League

Você também pode gostar