Vivências e (Re) Existências Universitárias Pelos Direitos LGBTQIA

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Revista COR LBGTQIA+, Curitiba, v. 1, n. 1, p. 39 - 54, jul/2021.

Vivências e (re)existências universitárias


pelos direitos LGBTQIA+
Ísis Gois
Danilo Fagundes
Caetano Goulart
Bruna Gabriela Ribaldo
Bruno Henrique Rocha
Jéssica Moura Ribeiro
Magnus Régios Dias-da-Silva
Denise Leite Vieira

O Brasil é um dos países mais hostis mesmo que a educação deva trabalhar
para a população LGBTIQIA+ com temas transversais a fim de reduzir
(BENEVIDES; NOGUEIRA, 2019) e mesmo disparidades sociais na população, há
com avanços político-sociais muitas repressões ou desinteresse pela
importantes nas últimas décadas que introdução/continuidade dos mesmos na
buscam trazer equidade à população, educação.
esta encontra-se distante. É necessária a Contudo, a evasão escolar na educação
reflexão de que a população LGBTQIA+ básica e dificuldade de acesso e
não é uma população hegemônica e, permanência na educação superior é
além disso, é perpassada por diferentes uma realidade para pessoas LGBTQIA+,
vivências e intersecções que impactam principalmente para as pessoas trans e
divergentemente suas experiências, travestis. O Brasil possui, assim, um
como raça/cor, idade, gênero, cenário de grupos sociais sub-
escolaridade, situação socioeconômica e representados e vulnerabilizados,
demais aspectos sociais. marcados pelos determinantes sociais
A educação básica já se apresenta da saúde (limitação de acesso à
desafiadora para aquelas pessoas pela educação, à moradia, à segurança
qual a expressividade de sua identidade alimentar e nutricional, ao trabalho etc.)
é marcada por violências simbólicas, e um contexto educacional no nível
psicológicas e físicas; superior marcado por estudantes de

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classe média a alta frequentando Porém, por mais que o contexto


universidades públicas e gratuitas e, os universitário seja apontado como um
de classe baixa, majoritariamente negras lugar com menor incidência de
(pretas e pardas), com escolaridade de preconceitos, pessoas trans e travestis
qualidade regular a ruim tentando pagar ainda se sentem inseguras nesses
estudos em universidades particulares espaços; além de enxergarem a
(HERINGER, 2018). universidade como um espaço que não
Quando se inclui as pessoas trans e as compreende e com consequente
travestis dentro da discussão deste sentimento de isolamento social neste
sistema educacional, encontra-se um cenário (SCOTE & GARCIA, 2020).
cenário de evasão escolar desde a
educação básica, em razão da A Universidade tem o dever social de criar e
oferecer políticas de manutenção das existências
discriminação imposta pelos demais trans, pois a realização de um curso universitário
pode proporcionar, para esse segmento, maior
estudantes cisgênero e expulsões de aceitação por parte da família e pela sociedade,
como um todo (SCOTE & GARCIA, 2020).
casa pelas famílias, motivadas pela
normatividade social acerca da A partir disso, discutimos o papel das
cisgeneridade e da heterossexualidade. universidades na promoção de políticas
Estas idealizações, acerca da identidade de acesso (vagas afirmativas) e de
e expressão de gênero, assim como da permanência (utilização de banheiros de
orientação sexual, voltam-se à acordo com a identidade de gênero,
binaridade de gênero, produzindo visibilidade, contar com uma comissão
hierarquias e exclusões, as quais de diversidade, bolsas etc.) inclusivas
culminam na evasão ou na dificuldade que entendam a interseccionalidade
de permanência na educação básica. presente na população brasileira e os
Uma pesquisa com pessoas LGBTQIA+ grupos sociais sub-representados na
indicou que “de um total de 629 sociedade.
entrevistados/as, 26,8% relataram que Cabe sublinhar que o movimento aqui
foram marginalizados/as por analisado, de abertura ao repensar sobre
professores/as ou colegas na escola ou o acesso de pessoas trans aos banheiros,
faculdade” (BENTO, 2011). se insere no contexto brasileiro dos
Mas para além desse acesso e das últimos quinze anos, portanto, na época
dificuldades, é necessário refletir sobre a do surgimento de ambulatórios e
permanência de pessoas trans e travestis clínicas voltados a travestis e trans, da
nos cursos de ensino superior. Pontos implementação das cotas no ensino
positivos, como o direito à utilização do superior nacional e, de forma mais
nome social no ensino superior e vagas ampla, na disseminação de discussões
afirmativas (cotas) para esta população, sobre diferenças que buscaram ampliar e
são afirmações que facilitam o acesso e aprofundar a democratização da
a permanência. universidade.

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Tal movimento não se deu sem


resistências internas e externas, como
atestam as reações de segmentos sociais
que passaram a associar as
universidades a espaços suspeitos,
gerando perseguições a professores/as e
propostas de censura (CERVI et al, 2019).
Apesar do cenário político-social do
Brasil, a partir da luta dos movimentos
sociais LGBTQIA+, a comunidade vem
ganhando visibilidade e conquistando
direitos: acesso à hormonização e
procedimentos cirúrgicos no Sistema
Único de Saúde (SUS) a partir da criação
da Portaria do Ministério da Saúde (MS)
No 1.707 de 2008, que estabeleceu o
"Processo Transexualizador no SUS" e
9 sua redefinição e ampliação pela
Portaria MS No 2.803/2013.
Além disso, outros marcos legais
importantes foram a Política Nacional de
Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais
(2012); direito ao uso do Nome Social no
âmbito do SUS pela Portaria MS N°
1.820/2009 e, posteriormente, o
reconhecimento das identidades trans e
travestis, e o uso do nome social no
âmbito da administração pública federal
direta, autárquica e fundacional pelo
Decreto da Presidente da República N°
8.727/2016; despatologização da
homossexualidade (1990) e das
identidades trans (2018) pela
Organização Mundial da Saúde; decisão
do Supremo Tribunal Federal de direito
à retificação do nome e gênero desde a
certidão de nascimento nos cartórios de
registro civil sem a necessidade de

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“laudos” médicos pelo Provimento 73º Sexual em 2018, e a aprovação do


de 2018 e equiparação da LGBTfobia ao Núcleo TransUnifesp como órgão
crime de racismo a partir do Projeto de complementar 4 ligado à reitoria em
Lei (PL) 4.240/2019 (BRASIL, 2020). 2020.
No entanto, o acesso à saúde integral e Em reunião ordinária de 9 de setembro
à cidadania ainda é um obstáculo para de 2020 o Conselho Universitário da
muitas pessoas da comunidade. Universidade Federal de São Paulo
Portanto, as universidades possuem um (Consu/Unifesp) aprovou a ascensão do
papel fundamental na promoção e Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e
desenvolvimento de projetos e ações Assistência à Pessoa Trans Professor
extensionistas que articulem estudos, Roberto Farina (Núcleo TransUnifesp -
pesquisas e o retorno, não só NTU) como órgão complementar da
assistencial, para estes grupos sociais. A universidade. Desde a sua criação, em
inclusão de demandas em saúde e 2016, o NTU viabiliza cuidados em
cidadania da população LGBTQIA+ nas saúde e promoção de cidadania a
grades curriculares de cursos superiores pessoas trans e intersexo, por meio de
de formação de profissionais da saúde atividades de ensino, pesquisa, extensão
tem demonstrado resultados positivos e assistência.
na redução de estigmas sociais e
estereótipos, além de melhorar as
atitudes de estudantes e auxiliá-los(as) a
compreender as demandas das
comunidades LGBTQIA + (JOY; NUMER,
2018).
Da primeira cirurgia plástica realizada
em uma pessoa trans em 1971¹ pelo
Professor Roberto Farina até os dias de
hoje, muitos avanços e desafios na
Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) foram enfrentados nesses
últimos cinquenta anos. Entre as
atividades e marcos mais importantes
nesse período destacam-se a realização
dos Fóruns LGBTQIA+ que começaram
em 2016 (I-IV)², as Reuniões Foto representativa de uma das reuniões extensionistas mensais abertas à
comunidade, evidenciando o protagonismo de estudantes bolsistas
Extensionistas Mensais que são abertas extensionistas da Unifesp em diálogo com o movimento social trans e
parceria com profissionais de saúde de outros serviços. Na reunião do dia 31
à comunidade em geral, o I Encontro de julho de 2018, contou-se com a participação e debate de Alexandre Peixe
do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades - IBRAT e de Ricardo Martins
Brasileiro de Saúde Trans em 2017³, a coordenador do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais
do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP.
disciplina eletiva Sexualidade e Saúde

¹ Professor Roberto Farina foi pioneiro nas cirurgias plásticas urogenitais para redesignação do sexo. Em 1971 operou Waldirene
Nogueira, mas foi processado pelo Ministério Público e Conselho Federal de Medicina em 1976 a despeito do reiterado interesse e 42
satisfação das pessoas trans à época. Mais informação, ver matéria da CNN: A História de Waldirene. | ² I Fórum LGBTQIA+. Mais
informações: 2016 - I Fórum de Debates Sobre Transexualidade e Travestilidade e Atenção Integral à Saúde. IV Fórum LGBTQIA+ na
Unifesp: Históricos e Desafios: IV Fórum LGBTQIA+ na Unifesp: Históricos e Desafios.
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Com isso, para a criação e


manutenção de um ambiente
universitário inclusivo e atento ao
seu corpo discente como também
às comunidades LGBTQIA+ da
população em geral, para as quais
as universidades se propõem a
devolver conhecimentos e
cuidados, alguns pontos essenciais
devem ser perseguidos:

Apoio Institucional: O suporte institucional e a


colaboração entre todas as pessoas representantes da

1 universidade (reitoras(es), coordenadoras(es), docentes e


discentes) são um passo fundamental, além de ser
necessário para reflexão, reformulação e elaboração de
políticas da universidade. (JOY; NUMER, 2018)

Representatividade: A criação de uma Comissão de


Diversidade Sexual e de Gênero nas Universidades que
sejam, também, contempladas, não só por todos os

2
níveis de representatividade institucional, mas também
por pessoas integrantes das comunidades LGBTI+
quando possível, a qual busque promover junto à
Instituição: linguagem, espaços e educação inclusiva
sem vieses cis-heteronormativos, principalmente os que
trazem segregação.

Dialogicidade: Conhecer, articular e participar dos

3
movimentos sociais, associações e ONGs LGBTQIA+ que
atuam na fomentação de políticas públicas na saúde e
direitos em geral para compreensão fidedigna das
demandas das comunidades na região da universidade.

³ Encontro Brasileiro de Saúde Trans. I Encontro Brasileiro de Saúde Trans - BRPATH. | 4Em reunião ordinária de 9 de setembro de 2020
o Conselho Universitário da Universidade Federal de São Paulo (Consu/Unifesp) aprovou a ascensão do Núcleo de Estudos, Pesquisa,
Extensão e Assistência à Pessoa Trans Professor Roberto Farina (Núcleo TransUnifesp - NTU) como órgão complementar da
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universidade. Desde a sua criação, em 2016, o NTU viabiliza cuidados em saúde e promoção de cidadania a pessoas trans e intersexo,
por meio de atividades de ensino, pesquisa, extensão e assistência. https://www.unifesp.br/noticias-anteriores/item/4807-nucleo-
transunifesp-torna-se-orgao-complementar-da-universidade#
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Produção de conhecimentos: Elaboração de Projetos e


Ações extensionistas que integrem os pontos anteriores

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e que, a partir da relação estabelecida universidade-
comunidade, possam: produzir conhecimentos, prestar
cuidados na área da saúde, educação e capacitação
profissional estabelecendo vínculo e um diálogo
conjunto entre as partes.

Formação: A atualização das grades curriculares,

5
principalmente da área da saúde e direito, trazendo
vivências e demandas de comunidades diversas, é
essencial para que haja mudanças substanciais na
sociedade a médio e longo prazo.

Relatos de experiência de estudantes

“ A universidade, que em um primeiro


momento se mostrou como um não
lugar para mim, se tornou um espaço de
estudantes, algumas que não
conseguiram concluir seu curso e
desistiram. Motivado pelo desejo de
grandes experimentações, descobertas, permanecer na universidade, busquei
oportunidades, diálogo e de muito ajuda com diversos amigos, professoras
acolhimento. Foi na Unifesp que, no ano do meu curso, nos caminhos
de 2015, meu segundo ano do curso de institucionais e por outras pessoas trans
Ciências Sociais, eu me reconheci como que compartilhavam desta mesma
homem trans. situação e poderiam somar na luta. Um
Entretanto, nesta época, ainda não dos pontos cruciais na minha trajetória
tínhamos o direito de utilizar o nome foi ter sido convidado a dialogar com as
social na lista de chamada e nos outros Pró-Reitoras que estavam à frente da
espaços da universidade, o que Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e da
acarretou em diversas situações de Pró-Reitoria de Graduação na época,
constrangimento e violências, após diversos relatos meus na Ouvidoria
experimentadas não só por mim, mas da Unifesp. Nessa aproximação, tive a
por várias outras pessoas trans oportunidade de falar sobre toda a

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situação em que eu e as outras pessoas construção de quatro Fóruns LGBTQIA+,


trans nos encontrávamos, e saí da a publicação da Carta de Princípios
reunião com o compromisso da Unifesp Relacionada à 4Diversidade Sexual e de
de transformar essa situação e garantir Gênero da Unifesp, e a publicação da
nossos direitos. Portaria Reitoria nº 3492/2020, que
O ano de 2016 foi um dos anos mais normatiza os princípios de diversidade
importantes, pois somamos à luta de sexual e de gênero dentro da Unifesp.
estudantes trans de vários campi da Hoje, como ex-estudante da graduação
Unifesp com o compromisso de da Unifesp, percebo o quanto o
diversos(as) docentes, Pró-Reitores(as), fortalecimento da Comissão e a
TAEs e parceiros(as). Juntos, construímos transformação da Unifesp em uma
o I Fórum LGBTQIA+ da Unifesp, que Universidade cada vez mais diversa e
teve o objetivo de discutir e repensar as inclusiva foi essencial para a minha
políticas institucionais voltadas para o permanência e para a conclusão do meu
público LGBT na universidade. Esse curso. É de extrema importância
nosso primeiro encontro abriu as portas construir diálogos coletivos e
para diversos caminhos e juntos representativos para que os espaços e as
formamos a Comissão de Diversidade Universidades se tornem mais diversas e
Sexual e de Gênero da Unifesp. Além de, seguras para as pessoas LGBTIQIA+".
nesse mesmo ano, ter ocorrido o “Fórum
de Debates sobre Transexualidade e
Travestilidade e Atenção Integral na
Saúde da Unifesp” e termos conquistado
o direito a utilizar o nome social, em
exclusivo, em todos os sistemas da
universidade.
A Comissão de Diversidade Sexual e de Bruno Henrique Rocha - Homem transgênero, bissexual,
bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Gênero da Unifesp tem sido um espaço São Paulo, pós-graduando do curso de Especialização em
Direitos Humanos e Lutas Sociais do CAAF Unifesp e membro
de diálogo, construção e de conquistas da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Unifesp.
muito importantes, no qual discutimos e
pensamos em ações voltadas à questão
do uso do nome social, da saúde integral
à população trans e travesti, a utilização
dos banheiros pelas pessoas trans, o
combate à LGBTfobia e os casos de
transfobia que ocorreram e que ainda
ocorrem nos diversos campi, entre
outros. Também protagonizamos a

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“ O ano é 2013, buscava um curso que


trouxesse a intersecção entre as áreas
de informática e de saúde. Encontrei
turma e professores(as) sobre minha
mudança de identidade de gênero,
conversei muito com as pessoas. Apesar
uma oportunidade inesperada na de ser algo extremamente íntimo, esse
UNIFESP, um curso chamado momento de mudança influencia muito
"Tecnologias em informática para a convivência com as pessoas com quem
saúde". Nessa época passava por uma já convivemos, pensando nisso achei
fase confusa na minha vida, sentia a prudente preparar as pessoas a fim de
disforia de gênero intensificar-se cada evitar constrangimentos e conflitos.
vez mais. Um sentimento que me Quando estava pronta, publiquei uma
acompanhava desde a juventude, declaração: E hoje digo, com certeza,
incompreendido, mas que causa um que o que me aprisionava nos braços da
incômodo tremendo no dia a dia. tristeza, hoje TRANSborda uma alegria
A universidade foi um ambiente de interior de libertação. Me liberto, com a
amadurecimento, desenvolvi muito mais confiança de que não tenho nada a
que conhecimentos técnicos ou temer em ser eu mesma. Prazer meu
tecnológicos. Além de apreender nome é Jéssica! Uma mulher transexual.
integrais e derivadas, desenvolvi senso Com anseios, sonhos e desejos, como
crítico e político. Apesar de até hoje qualquer um. Não, não espero aceitação,
ainda ter dificuldades em mas respeito. Acima de tudo. A quem
relacionamentos sociais, comecei a ter quiser, estou disposta a explicar sobre
interações sociais com pessoas muito esse momento na minha vida. Mudanças
mais maduras. Conviver com pessoas principalmente estéticas acontecerão,
assim me ajudou a superar meus medos como algumas pessoas já devem ter
das reações sociais, e foram essas percebido, mas meu caráter, dignidade e
mesmas pessoas que contribuíram muito integridade continuarão os mesmos.
no momento da minha transição de Peço que não se assustem ou se
gênero, simplesmente sendo empáticas escandalizem o mínimo com essas
e compreensíveis. mudanças, principalmente em coisas
Em 2016, após acompanhamento com mais evidentes, como a forma de me
psicólogos e psiquiatras do ambulatório vestir e me portar.
de travestis e transexuais do Centro de A minha própria preparação e
Referência e Treinamento do SUS/SP, preparação das pessoas ao meu redor foi
me preparei para assumir uma algo muito importante. Fui bem aceita
identidade de gênero que me ajudasse a pela turma Tecnologia em informática
superar uma grave angústia e da Saúde TIS4 - UNIFESP. Inclusive, me
desconforto que possuía comigo mesma. aceitaram tão bem que,
Comuniquei a meus e minhas colegas de espontaneamente, já adotaram meu

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nome escolhido. Professores e meus colegas precisaram confirmar


professoras me elogiaram por ter minha história.
encontrado meu caminho, depositaram O banheiro também era outra questão
confiança e empatia, que essa era uma delicada, mas para evitar conflitos nas
necessidade e que minhas mudanças primeiras fases da mudança, aprendi a
não me fariam deixar de ser uma ótima usar os banheiros mais discretos da
aluna e, até hoje, ainda me emociono universidade, com menor
lendo as mensagens daquela época. movimentação. Em 21 de julho de 2016,
Depois dessa fase dei início ainda a minha primeira intervenção cirúrgica,
procedimentos oficiais, legais e cabíveis minha aparência já havia mudado
para formalizar a minha identidade bastante, com o passar do tempo
felizmente reconhecida. Fiz um esforço tornou-se um pouco mais fácil usar
junto à Pró-Reitoria de Graduação para qualquer banheiro sem problemas, mas
aplicação do nome social e tratamento no início era bem complicado.
adequado. Em 11 de abril de 2016, Também precisei lutar por
consegui realizar a abertura de processo reconhecimento nos contextos anexos
jurídico extenso para mudança do nome da universidade, como mudança de
e gênero registrados em cartório. nome social no currículo Lattes. Sempre
A Pró-Reitoria de graduação me deu um foi necessário contar com apoio jurídico
suporte muito importante, mudaram e saber argumentar bastante sem
meu nome social no sistema, me ignorância apresentando leis como:
providenciaram documentos e crachá, Administração Pública Federal direta,
me recordo até de uma frase onde o autárquica e fundacional Portaria MPOG
secretário me perguntou se eu não N° 233/2010; Parecer MEC/SECAD Nº
gostaria de atualizar minha foto no 141/2009; Indicação 6497/2010
crachá também. Nem tudo era uma Instituições Federais de Ensino; e
maravilha, apesar da empatia das Deliberação CEPE/IFSC Nº 006/2010,
pessoas ao meu redor, infelizmente os revogada pela Resolução CEPE nº
sistemas da universidade ainda não 103/2019.5
estavam preparados para contemplar os Depois de passar por uma série de
direitos das pessoas trans ao nome experiências, conheci o professor e
social. Fiz minha mudança de nome bem Doutor Magnus, e seu trabalho em
no começo da normativa que permitia o andamento com o Núcleo de Estudos,
uso do nome social, em muitos lugares Pesquisa, Extensão e Assistência à
da universidade a mudança não surtiu Pessoa Trans Professor Roberto Farina
efeito, passei por muitas experiências (Núcleo TransUnifesp). Foi uma
desagradáveis na biblioteca e no oportunidade incrível de apoiar uma
restaurante universitário, em um dos linda e importante iniciativa para a
casos fui impedida de usar o restaurante, saúde de pessoas da comunidade de

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https://sig.ifsc.edu.br/sigrh/public/colegiados/filtro_busca.jsf
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travestis e transexuais. Contribuí com a


elaboração de proposta de prontuário do
Núcleo, meu TCC que elaborado com
muito carinho e propósito atingiu nota
máxima na avaliação, além da honra de
participar como facilitadora do “I Fórum
de Debates sobre Transexualidade e
Travestilidade e Atenção Integral na
Saúde” que aconteceu no dia 16 de
setembro de 2016, em um anfiteatro
UNIFESP. O Núcleo TransUnifesp é um
Jéssica Moura Ribeiro – Mulher, informata em
instrumento importantíssimo para uma
saúde, atuante no meio acadêmico e profissional.
universidade mais inclusiva em suas três
verticais: ensino, pesquisa e extensão.
Em 2017, concluí minha graduação.
Minha turma e eu recebemos uma
homenagem surpresa incrível durante
minha formatura, fomos
reconhecidas(os) pela nossa
perseverança e apoio mútuo que
superou os preconceitos sociais, com um
destaque para a primeira aluna
transgênero a se graduar na UNIFESP.”

Cerimônia de colação de grau de Jéssica Moura Ribeiro


no curso de graduação em Tecnologias em Informática
para Saúde como estudante trans pioneira e diplomada
com nome e gênero corrigidos institucionalmente na
Unifesp em 2017.

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“ Mesmo fazendo parte da comunidade


LGBTQIA+, meu contato com a
militância tem início bem marcado no
Assim, sob a orientação conjunta de dois
docentes e a colaboração das
enfermeiras do ambulatório e de um
ano de 2016, meu primeiro ano de colega de classe que também carrega o
graduação no curso de enfermagem da título de meu namorado, desenvolvi
EPE-UNIFESP. Na orientação de um meu Trabalho de Conclusão de Curso
trabalho em grupo sobre violência (TCC) sobre assistência de enfermagem à
contra a mulher, a professora solicita população trans, publicado na Revista
que tenha uma parte dedicada a Brasileira de Enfermagem (ReBEn), um
“Ensinar mulheres a não serem dos principais periódicos de
estupradas”. A solicitação gerou enfermagem do país.
incômodo em todo grupo, que resolveu Como ex-aluno da graduação e aluno da
mudar, por conta própria, o tema do pós-graduação da UNIFESP, percebo o
trabalho para violência de gênero, quanto foi importante na minha
abordando também machismo, formação ter encontrado professoras(es)
LGBTfobia, transfobia, além de sugerir dispostas(os) a se desconstruir e a
educação a fim de diminuir a violência. construir conhecimentos mesmo em
A professora em questão percebeu a áreas que lhes eram distantes, ter
falha, pediu desculpas pela abordagem e encontrado um espaço acolhedor de
sugeriu que eu estudasse mais o assunto ensino, pesquisa e assistência de uma
que é tão escasso nos cursos de saúde, temática tão sensível e contar com uma
me indicou docentes para orientação e Comissão da Diversidade Sexual e de
me falou sobre o Núcleo de Estudos, Gênero empenhada em promover um
Pesquisa, Extensão e Assistência à ambiente universitário mais inclusivo e
Pessoa Trans Professor Roberto Farina menos hostil para pessoas LGBTQIA+,
(Núcleo TransUnifesp), onde fui sem sombra de dúvidas tornou a
estagiário do 2° ano até o término da experiência da graduação mais leve e
graduação. me fez um profissional, pesquisador e
A vivência no Núcleo me proporcionou cidadão melhor.”
uma experiência singular sobre questões
de saúde, gênero e sexualidade, além de
promover grande incentivo para
realização de pesquisas, principalmente
por conta de suas reuniões Danilo Fagundes – Homem cisgênero, gay, preto, bacharel em
Enfermagem e pós-graduando de Enfermagem em Saúde
extensionistas mensais abertas ao Pública pela EPE-UNIFESP, enfermeiro no Hospital Alemão
Oswaldo Cruz, enfermeiro voluntário no Núcleo TransUnifesp,
público. Em razão deste incentivo não
colaborador da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero,
desisti quando algumas pessoas do e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração de
Serviços de Saúde e Gerenciamento de Enfermagem (GEPAG)
corpo docente me disseram "não", até da UNIFESP.
encontrar a docente que disse "Vamos
fazendo e eu o convenço a participar".

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“ É sabido que a universidade,


enquanto instituição, pode repetir
violências sistêmicas às pessoas que, de
lugar onde me sentisse acolhido e após
retornar para São Paulo e ingressar na
Unifesp, percebi a importância de me
alguma forma, fogem de costumes e organizar coletivamente com outras
tradições que foram consolidadas pessoas LGBTQIA+, seja no espaço
historicamente no Brasil e no mundo; e acadêmico ou fora dele. A partir daí,
é um ambiente ainda pouco acolhedor comecei a me engajar em movimentos
às pessoas LGBTQIA+, principalmente sociais e procurar por outras pessoas
trans e travestis, que encontram LGBTQIA+, principalmente trans, nos
enormes desafios já no ensino básico. espaços que frequentava, isso foi o que
Nesse sentido, o fortalecimento de me motivou a continuar estudando e
ferramentas institucionais e espaços possibilitou pensar a minha existência
inclusivos que promovam a saúde, para além dos estigmas sociais que
educação e integração social dentro das havia tido contato até então.
universidades e ambientes de educação Procurei o Núcleo de Estudos, Pesquisa,
formal como um todo, podem significar Extensão e Assistência à Pessoa Trans
a permanência de estudantes LGBTQIA+, Professor Roberto Farina (Núcleo
e para além disso, a consolidação de um TransUnifesp) em busca de atendimento,
cenário onde as minorias sociais sejam e encontrei ali a possibilidade de
cada vez menos associadas à violência e coletivamente construir uma
possam ser reconhecidas também como universidade mais acolhedora e
sinônimo de produção de conhecimento inclusiva. Como estudante, pessoa trans
e ciência. e hoje bolsista do Núcleo TransUnifesp,
Passei a me reconhecer enquanto vejo a necessidade de estar presente e
pessoa trans a partir do ensino médio, valorizar espaços como este, bem como
mas foi na universidade onde comecei a pautar formas de criar novas ações que
ter uma consciência maior do que isso possam integrar cada vez mais pessoas
significava para mim. Em primeiro no âmbito universitário e sociedade
momento, a universidade onde estudava como um todo.
me recebeu de braços abertos e tive Ser uma pessoa transgênero no ensino
apoio institucional para permanecer superior é uma vitória coletiva, na
estudando, no entanto não encontrei medida em que simboliza a apropriação
espaços estudantis onde pudesse de espaços que são constantemente
compartilhar minha experiência e ao conquistados e reiterados pelo
menos ter contato com outras pessoas movimento LGBTQIA+.
que não fossem cisgênero, então deduzi A presença desse grupo social na
que a universidade não era meu lugar. universidade deve ser valorizada
Num período de um ano, eu me mudei enquanto vetor de conhecimento capaz
de cidade três vezes em busca de um de expressar uma rica vastidão de

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saberes que diferem da narrativa cis-


heteronormativa. Com a organização
coletiva e participação em movimentos
“ Ser uma mulher trans, seja dentro de
uma universidade ou fazendo compras
cotidianas em um mercado ainda é uma
sociais dentro e fora da universidade, surpresa para muitas pessoas que
dialogando com as diversas realidades, frequentam estes espaços “comuns”,
de maneira interseccional, é possível marcados por violências simbólicas que
criar alternativas à conjuntura atravessam os olhares de curiosidade e
excludente na qual vivemos e pensar em espanto. Além do sentimento de solidão
uma universidade plural, acessível às de minha parte por frequentemente,
pessoas trans, travestis e LGBTQIA+ também, não ver as minhas e os meus
como um todo". dentre estes espaços.
Dentre minha trajetória estudantil que
de forma indissociável ocorreu
concomitante a minha compreensão de
quem era Ísis, me encontrava vulnerável
Caetano Goulart - Homem transgênero, bissexual, graduando
em História pela Universidade Federal de São Paulo, bolsista por não conhecer meus direitos, sem
do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assistência à compreensão mais ampla de toda uma
Pessoa Trans Professor Roberto Farina (Núcleo TransUnifesp).
estruturação social na qual eu estava
inserida e sem apoio fidedigno
estudantil ou institucional com relação à
busca por minha cidadania ou direito ao
meu nome.
Após a graduação em nutrição, muitas
inseguranças se instalaram juntamente a
uma pandemia ao pensar em minha
inserção no mercado de trabalho. No
entanto, estava construindo minha
consciência política e social ao perceber
tantas lacunas nos cuidados e nas
formações em saúde para com a minha
comunidade. Com isso, comecei a
estudar e a fazer associações a demais
profissionais da saúde que também
percebiam este cenário. Comecei a
palestrar em diversos centros
acadêmicos, universidades e em um dos
meus conselhos de classe com o intuito
de posicionar estas lacunas e a
necessidade urgente de pensarmos

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Após este período, que se apresentou


exaustivo, pois o desconhecimento era
quase que geral sobre a população trans
“ A Universidade, enquanto lugar de
replicação da heterocisnormatividade,
seja ela através de discursos de
e suas demandas; voltei remotamente à professoras e professores ou implícita
ambientes acadêmicos que gostariam de nos conteúdos (ou na falta destes)
pensar diversidade e saúde, mas, mesmo ensinados na área da saúde, que
nestes espaços, há presença de violência tampouco se preocupam em discutir ou
e conheci o epistemicídio, a partir da incluir assuntos que dizem respeito às
frequente desvalorização dos comunidades LGBTQIA+ é, também, um
conhecimentos que eu estava espaço onde pode ser possível criar
construindo. estratégias que driblem essa falha no
Atualmente, como bolsista do Núcleo processo educacional. Considerando
TransUnifesp, membro da comissão da isso, em 2018, eu, juntamente com
diversidade sexual e de gênero e outras colegas de turma da Enfermagem,
mestranda na Universidade Federal de criamos o projeto de Extensão Reexistir,
São Paulo tenho mais segurança, vejo voltado à promoção da saúde, direitos
cotidianamente os meus e consigo humanos e cidadania para a população
estabilizar meus objetivos de pesquisa e LGBTQIA+. Nesse projeto é que,
docência na busca por atuar por e para anteriormente à pandemia,
minha comunidade, além de poder aos frequentávamos o CRD (Centro de
poucos auxiliar em uma mudança social Referência e Defesa da Diversidade) e
positiva para a população LGBTQIA+. fazíamos rodas de conversa com a
No entanto, se houvesse movimentos população vulnerabilizada de LGBTQIA+
estudantis LGBTQIA+ e mais que lá frequentavam, numa troca única
universidades preparadas e promovendo de conhecimentos e experiências e hoje,
espaços e conhecimentos inclusivos, embora não seja possível estarmos mais
muitas das disparidades vividas por mim nesse ambiente devido à pandemia,
e por demais pessoas poderiam ser criamos a estratégia de encontros online
evitadas.” para discussão de diversas temáticas
que dizem respeito ao objetivo do
projeto, como: discussão sobre conceitos
de gênero e sexualidade; vivência e
Ísis Gois - Mulher trans, parda, bacharel em Nutrição com inclusão de pessoas LGBTQIA+ com
Aperfeiçoamento Ambulatorial em Nutrição e Saúde Coletiva
deficiência; direitos LGBTQIA+; velhices;
pela UNITAU e Especialização em Comportamento Alimentar
pela Faculdade Global. Atualmente é bolsista de apoio ao transgeneridade e os equipamentos de
Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa
Trans Professor Roberto Farina (Núcleo TransUnifesp) e
saúde; entre outros.
ingressante no mestrando em Endocrinologia Clínica pela Essa necessidade de ocupar espaços
Escola Paulista de Medicina da UNIFESP.
dentro da universidade vem dessa falha
da própria instituição em nos incluir. Ou

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seja, nós, pessoas LGBTQIA+, precisamos Nossas vivências e resistências


nos fazer visíveis e nos incluir em todos evidenciam, portanto, a importância da
espaços possíveis, uma vez que, a atuação protagonista de estudantes
depender de toda a estrutura LGBTQIA+ nas universidades, pela
heterocisnormativa - que deve ser articulação intra e extramuros com a
desconstruída -, nunca seríamos sociedade, na busca incansável por
incluídas". maior equidade social. Essa atuação
deve estar associada ao suporte
institucional às demandas das(os) mais
diversas(os) estudantes, tanto para
Bruna Gabriela Ribaldo - Mulher cisgênero, lésbica, graduanda
em Enfermagem pela EPE-UNIFESP, atual bolsista do Núcleo
aplicação de seus direitos, aproximação
de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans e valorização do diálogo com os
Professor Roberto Farina (Núcleo TransUnifesp) e uma das
criadoras do Projeto de Extensão Reexistir. movimentos sociais e comunidades
afins, quanto na produção de
conhecimentos mais emancipatórios, ou
seja, que se oponham aos vieses
acadêmicos do determinismo biológico e
da lógica colonial, cisgênero e
heteronormativa. Reforça-se aqui,
sobretudo, a necessidade da
continuidade da articulação e
protagonismo de estudantes, quer sejam
a partir dos movimentos estudantis e
coletivos quer em comissões de
diversidade sexual e de gênero
(institucional e interinstitucional), para
problematizarem discussões do
contemporâneo LGBTQIA+, em cenários
intramuros e extramuros, buscando
valer, de fato, o papel de transformação
social das universidades.

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