A Felicidade, Desesperadamente
A Felicidade, Desesperadamente
A Felicidade, Desesperadamente
A FELICIDADE,
DESESPERADAMENTE
Martins Fontes
Esta obra foi publicada originalmente em francês com o
título LE BONHEUR, DÉSESPÉRÉMENT, por Éditions Pleins
Feux, Nantes. Copyright © Éditions Pleins Feux. Copyright ©
2001, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para
a presente edição.
1ª edição 2001
4ª tiragem 2010
Tradução
EDUARDO BRANDÃO
01-1116 CDD-190.2
Vou falar, então, da felicidade... Confesso que, diante de tal
tema, estou dividido entre dois sentimentos opostos.
Primeiro, o sentimento da evidência, da banalidade mesmo:
porque a felicidade, quase por definição, interessa a todo o
mundo (lembrem-se de Pascal1: "Todos os homens
procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o
motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos
que vão se enforcar...") , e deveria interessar ainda mais ao
filósofo. Tradicionalmente, historicamente, desde que os
gregos inventaram a palavra e a coisa philosophia, todos
sabem que a felicidade faz parte dos objetos privilegiados
da reflexão filosófica, que é até um dos mais importantes e
dos mais constantes. Vejam Sócrates ou Platão, Aristóteles
ou Epicuro, Spinoza ou Kant, Diderot ou Alain... "Não é
verdade que nós, homens, desejamos todos ser felizes?"2 A
resposta é tão evidente, nota Platão, que a pergunta quase
não merece ser feita. "De fato, quem não deseja ser feliz?"3
A busca da felicidade é a coisa mais bem distribuída do
mundo.
3. Ibid.
I - A felicidade malograda, ou as
armadilhas da esperança
16. Ibid.
Por quê?
18. Éthique, III, def. 1 das afeições (trad. fr. Appuhn, G.-F.,
1965, p. 196).
23. L'être et le néant, p. 467. E por isso que "o desejo está
fadado ao fracasso" (ibid., p. 466).
II - Crítica da esperança, ou a
felicidade em ato
Alguns exemplos...
30. Ver De anima, II, 3, 414 b 1-5, e sobretudo III, 10, 433 a
20 – b 30 (trad. Fr. Tricot, Vrin, 1982, PP. 81 e 204-7). Claro,
será necessário reler esse texto de um ponto de vista não-
finalista (e, portanto, nessa medida, nãoaristotélico), por
exemplo do ponto de vista de Spinoza (ver especialmente
Ética, IV, Prefácio: "O que chamamos de causa final nada
mais é aliás que o apetite humano na medida em que é
considerado como o princípio ou a causa primitiva de uma
coisa, [...] e esse apetite é na realidade uma causa
eficiente").
Seu amigo responde que foi de fato ao médico, mas que
não melhorou, que o próprio médico está preocupado, que
ele diagnosticou um problema cardíaco grave: "Vou ser
operado amanhã", escreve seu amigo, "uma operação de
peito aberto..." Preocupadíssimo agora, você responde
imediatamente, por fax ou e-mail. Mas passaram-se dois
dias para a carta dele chegar de Nova York. Ele dizia: "Vou
ser operado amanhã." Quando você recebe a carta, ele
tinha sido operado na véspera. Você escreve: "Espero que a
operação tenha corrido bem." É uma esperança, e se refere
ao passado.
Não é seu filho, não é sua filha, nem mesmo seu melhor
amigo. A operação correu mal. Ele morreu. Você escreve à
viúva: "Espero que ele não tenha sofrido." É uma esperança,
e se refere ao passado.
III - A felicidade
desesperadamente: uma
sabedoria do desespero, da
felicidade e do amor
"- Caro senhor, agrada-me muito saber disso. Está feliz com
a idéia de que existo; ora, como está vendo, eu existo
mesmo, logo vai tudo bem. Boa noite!"
- Sim...
55. Ibid.
Enfim, não sou budista e não vejo por que deveria ser.
Buda, é claro, me ilumina, e se eu fosse obrigado a escolher
uma religião, o budismo é sem dúvida aquela de que me
sinto menos distante, por toda sorte de razões, sendo a
mais evidente a seguinte: no budismo, não há Deus, o que,
para um ateu, é bem mais cômodo, afinal de contas! Mas
por que deveria ser necessário escolher uma religião? Não
vou fundar um ashram no Auvergne! Em compensação, a
verdade é que essa sabedoria do desespero, que acabo de
evocar, não deixa de recordar certos temas que os que
conhecem o budismo julgarão familiares. Por exemplo esta
anedota, que encontramos nos textos budistas: um dia,
alguém vai ter com Buda e lhe pergunta:
Eu lhe diria com muito gosto que isso não lhe diz respeito!
Mas vou responder: depende dos momentos, como
acontece com todo o mundo. Neste momento, não vai nada
mal, obrigado: a alegria me parece imediatamente possível.
Digamos que sou mais ou menos feliz, isto é, feliz. Eu
notava há pouco que não sou muito bem dotado para a
vida... É verdade. Mas trabalhei muito, filosofei muito, e
também tive muita sorte. Continuo vivo e contente de o
estar: salvo algum infortúnio ou angústia particular (é por
isso que não sou um sábio e nunca serei), amo a vida; como
diz Montaigne, em outras palavras, regozijo-me de viver e
lutar. Se isso não é uma felicidade, o que é a felicidade?
Nem uma coisa, nem outra. Sou mesmo ateu: não creio em
nenhum Deus, em nenhum sentido último ou absoluto, em
nenhum valor transcendental, em nenhuma vida depois da
morte...
Mas por que isso nos impediria de nos encontrar em certa
idéia da sabedoria ou da felicidade?
Sou tão ateu quanto se pode ser, mas procuro ser um ateu
fiel. A tradição judaico-cristã me esclarece, tanto quanto a
tradição grega, e às vezes também encontro nela lições de
sabedoria e de desespero. Se já estamos no Reino, para que
esperar outro?
Spinoza, que não era mais cristão do que eu, diz-se fiel ao
"espírito de Cristo"70. O que isso quer dizer? Que, para ele,
Jesus não era Deus, nem filho de Deus, nem se beneficiou
de nenhuma revelação sobrenatural: ele não passava de um
homem como outro qualquer, simplesmente mais sábio que
a maioria... É meu ponto de vista também. Digamos que é
minha maneira de permanecer fiel ao espírito de Spinoza...