Nísia Floresta e Mary Wollstonecraft
Nísia Floresta e Mary Wollstonecraft
Nísia Floresta e Mary Wollstonecraft
1 Desde o direito ao voto à situação da mulher negra, importantes nomes destacam-se, como por exemplo,
Flora Tristan e Emma Goldman, Maria Lacerda de Moura e Maria Amélia Teles, Angela Davis e Carol J. Adams,
Vandana Shiva e Karen J. Warren, Chimamanda Ngozi Adichie e Naomi Wolf, (...).
2 Para mais informações sobre o tema, acessar o link https://www.youtube.com/watch?v=AuqLjTDApe8 .
3 Sobre a autora, Maria Lygia Quartim de Moraes descreve: “(...) foi uma intelectual libertária, uma ativista das
causas dos oprimidos, (...). Mary enfrentou obstáculos de natureza variada no decorrer da vida. Sua infância foi
prejudicada pela violência paterna; foi autodidata; enfrentou os limites sociais de seu tempo para conseguir
conquistar a autonomia financeira e sofreu os preconceitos moralistas com respeito à sua vida sexual e
afetiva.” (MORAES, 2016, p. 8-9).
4 Como a “independência financeira” e uma “política igualitária”.
A segunda, ganha proeminência pela razão de sua colaboração na construção de uma
“educação feminina”5 em sua nação6, tendo formado dessa maneira, eficientes e inovadoras
instituições de ensino para jovens “moças” e “meninas” (DUARTE, 2010, p. 11). Porém, não
só nisso, seus escritos também muito lhe auxiliaram em sua notabilidade, pois neles, a autora
tecia apaixonadas defesas em prol de seu sexo e de demais pessoas oprimidas e
marginalizadas, como indígenas7 e escravos8. Além de marcar presença na “imprensa
nacional”, Nísia entrou em contato com importantes figuras masculinas como Victor Hugo e
Auguste Comte, o que a fez conhecer importantes correntes filosóficas, como o “positivismo”.
Entretanto, a educação não lhe fugia das vistas, sempre estava em evidência em seus textos 9,
como observa Constância Lima Duarte, “O propósito de formar e modificar consciências
perpassa quase todos os livros, que se unem em torno de um projeto coerente e consciente de
alterar o quadro ideológico social.” (2010, p. 12).
No que toca às mulheres, Nísia possui uma forte produção, com “Direitos das
mulheres e injustiça dos homens” (1832), tendo uma notável importância, além de ter sido
considerado por ela mesma “(...) como uma tradução livre da Reivindicação dos direitos da
mulher.” (MORAES, 2016, p. 15). Nele, a autora contesta a razão para que a mulher nunca
esteja em posições de autoridade – leia-se “general”, “almirante”, “ministro de Estado” – e em
ofícios como o do direito, da saúde ou do ensino, e, semelhante à Mary, a autora “(...) vai
fundo em suas intenções de acender o debate e de abalar as eternas verdades de nossas elites
patriarcais.” (DUARTE, 2010, p. 13), tendo em vista o paradigma que era aceito em sua
época, qual seja, a mulher enquanto “rainha do lar” 10 e o homem “juiz”, com a mesma
também sendo entendida como alguém fraca, servil e de pouca inteligência, em contraste com
o homem (DUARTE, 2010, p. 21). Seu texto trata-se de refutações e reformas, mas sobretudo,
de justiça e igualdade.
Tendo realizado a apresentação dessas duas ilustres filósofas e de seus escritos, o texto
que se segue tem por ambição investigar se o cultivo da mente pode ser um caminho de
condução para a independência e autonomia feminina em “Reivindicação dos direitos da
mulher” e em “Direito das mulheres e injustiça dos homens”, respondendo também, dessa
forma, se a educação é capaz de tal feito, de atuar enquanto o elemento (ou um dos) que
possibilita a libertação da mulher.
5 Sobre o seu colégio, diz que “(...) entre as inovações aí reconhecidas, costumam ser lembradas o ensino do
latim, do francês e do inglês, bem como respectivas gramáticas e literaturas; o estudo da geografia e da história
do país; a prática da educação física; e a limitação do número de alunas por turma como forma de garantir a
qualidade do ensino.” (DUARTE, 2010, p. 17).
6 Sentia grande paixão e admiração por seu país (DUARTE, 2010, p. 15).
7 Em “A lágrima de um caeté” (1849), a autora apresenta a figura do indígena “(...) vencido e inconformado
com a opressão do branco invasor.” (DUARTE, 2010, p. 13).
8 Já em “Páginas de uma vida obscura” (1855) “(...) contém a história de um escravo, desde que foi trazido da
África ainda criança, seus atos de heroísmo e a dedicação ao trabalho até a morte.” (DUARTE, 2010, p. 13).
9 Nos quais, sempre encontrava-se duas manifestações de Nísia: uma da “mãe afetuosa” e a outra da
“professora zelosa” (DUARTE, 2010, p. 15).
10 Jean-Jacques Rousseau parece colaborar com tal perspectiva, pois diz: "O império da mulher é um império
de doçura, de habilidade e complacência; suas ordens são carinhos, suas ameaças lágrimas. Ela deve reinar na
casa como um ministro de Estado, fazendo com que comandem o que quer fazer. Neste sentido os lares mais
felizes são em geral aqueles em que a mulher tem mais autoridade (...).” (ROUSSEAU, 1995, p. 485)
Dado o quadro que a mulher encontrava-se – submissa e subserviente – Mary, como
boa filósofa, começa a se questionar da veracidade de todo esse paradigma, que subjuga seu
sexo, o inferioriza e lhe priva de seus direitos e escolhas; e com isso, a autora pergunta-se
“Quem fez do homem o juiz exclusivo, se a mulher compartilha com ele o dom da razão?”
(WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 21), à isso, a figura masculina não possui resposta, da
mesma forma que não o tem para diversas outras indagações, como por exemplo, por que só
tomando como base a força física o seu sexo pensa ser superior ao oposto? Diz Mary:
Certo grau de superioridade física não pode, portanto, ser negado – e é uma nobre
prerrogativa! Mas, não contentes com tal preeminência natural, os homens se
empenham em nos afundar ainda mais, apenas para converter-nos em objetos de
atração momentânea (...). (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 26)
A força física seria motivo suficiente para tal completa e absoluta opressão? De forma
alguma11! E mesmo assim, eles insistem que “(...) toda a criação foi feita apenas para a
conveniência e o prazer do homem.” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 47) 12. Não bastando
essa ausência de respostas válidas e coerentes, Mary constata que as mulheres são seres
“subordinados”, objetos passivos que não pertencem à espécie humana e portanto seres
esvaziados de direitos, escolhas e autonomia. Por não tratarem-se de pessoas, são vistas
também como “objetos de desejo”, os quais mais parecem como compulsivas máquinas que
buscam, sobretudo, agradar e servir ao seu mestre 13. Essas mulheres, diz Mary, sempre estão
cercadas na ignorância, em um problemático “estado infantil” – que as deixam completamente
dependentes das figuras masculinas – e suas instruções limitam-se nas esferas da
sensibilidade, da vaidade e da beleza, sob a liderança da insensatez e da desordem. E com essa
grande dependência e pouco acesso ao saber, as mesmas “(...) submetem-se cegamente à
autoridade.” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 45), pois desde muito cedo lhes fora ensinado
de sua incapacidade de traçar seu próprio caminho, de tomar suas próprias decisões14.
Com esse arsenal de aparências e sensações, a mulher “(...) emprega sua razão, sua
confusa razão, para lustrar suas correntes, em vez de rompê-las.” (WOLLSTONECRAFT,
2016, p. 130), pois não sabe como se desvencilhar delas, na verdade, muitas delas sequer têm
noção da necessidade deste livramento. E mais “(...) elas são feitas escravas de si mesmas e
precisam tornar-se atraentes para que o homem lhes empreste sua razão, a fim de guiar de
maneira reta seus passos cambaleantes.” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 185), e assim, a
beleza é tudo o que a mulher possui, sua grande arma, seu modo de viver. As graças e os
encantos são seus artifícios, seus aspectos fracos e frágeis uma regra. Suas virtudes? Somente
as que combinam com seu estado servil e obediente:
11 E Nísia Floresta também está ciente desse fato. Diz ela: “Se a força do corpo, em que reconhecemos sua
preeminência, é um pretexto suficiente para nos calcar aos pés, o leão tem um direito bem fundado de
preeminência sobre eles e essa espécie de bruto é mais generosa que a dos homens. Ainda que um pouco mais
feroz e bravio, o leão envergonha-se de empregar sua força quando há demasiada desproporção entre ele e
seu adversário.” (FLORESTA, 2010, p. 87).
12 Nísia Floresta também adquire tal concepção: “Os homens parecem concluir que todas as outras criaturas
foram formadas para eles, ao mesmo tempo em que eles não foram criados senão quando tudo isso se achava
disposto para seu uso.” (FLORESTA, 2010, p. 81)
13 Sobre a relação do homem e da mulher, Jean-Jacques Rousseau considera: "Um deve ser ativo e forte, o
outro passivo e fraco, é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco. (...) segue-se que a
mulher é feita especialmente para agradar ao homem. (...). (...) a mulher é feita para agradar e ser subjugada,
(...)” (ROUSSEAU, 1995, p. 424).
14 Jean-Jacques Rousseau possui uma linha de raciocínio familiar. Diz ele: “(...) a mulher não sabe julgar a si
mesma, por isso está sujeita ao julgamento do homem.” (ROUSSEAU, 1995, p. 458)
Se das mulheres devemos esperar quaisquer virtudes, são elas apenas negativas –
paciência, docilidade, bom humor e flexibilidade, virtudes incompatíveis com
qualquer exercício vigoroso do intelecto. Além disso, ao viverem umas com as
outras e raras vezes absolutamente sós, elas ficam mais sob a influência dos
sentimentos do que das paixões. (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 83).
A proteção, o cuidado e a dependência são seu mundo. Os sentimentos são seus únicos
conhecimentos, não em vão que suas metas resumem-se em se verem amadas e casadas, quase
nunca buscando serem boas mães15ou em desenvolver seus intelectos. E assim o entendimento
é afastado das mulheres, e no seu lugar, se tem a ânsia por agradar e ganhar atenção,
realizando, dessa forma, a manutenção de suas trivialidades e arquétipos, como por exemplo,
a de se assemelhar à criaturas divinas, qual é, anjos 16 ou a de serem “escravas pacientes”
(WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 91). Seu ensino? Trata-se sempre da paixão, da
sensibilidade, da aparência e por fim, do sentir. A educação que as mulheres recebem é uma
“educação dos sentidos”. Essa é a doença que as oprime, que lhes priva e proíbe, que rouba
toda sua autonomia, independência e liberdade de conhecer, saber e simplesmente de viver.
E para essa doença, Mary dá uma solução: estimular e fortificar o intelecto! A autora
diz: “Fortaleça a mente feminina, expandindo-a, e haverá um fim à obediência cega.”
(WOLLSTONECRAFT, 2010, p. 45). E que melhor maneira de iniciar tal processo se não via
a educação? Para Mary, o ensino é o “(...) primeiro passo para formar um ser que avança de
forma gradual até a perfeição.” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 77) e é nessa formação que
reside a independência, a liberdade e a autonomia feminina, ou seja, para esse caminho
formativo libertário. O que Wollstonecraft propõem é a “educação do entendimento”, uma
contraposição à “educação dos sentidos”, cuja baseia-se no exercício da razão e da virtude, na
ânsia pelo conhecimento e pela instrução, que direciona as ações não mais unicamente pelo
caminho do coração, mas também para a mente. E para a autora, toda essa condução para as
alegrias da educação, jamais trata-se de uma inversão na hierarquia dos poderes, muito pelo
contrário, sua intenção com esse ensino é muito mais direcionado para o bem estar de seu
sexo e pela conquista e retomada de seus próprios corpos e mentes do que qualquer outra
coisa: “Não desejo que tenham poder sobre os homens, mas sobre si mesmas.”
(WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 87).
Com esse cultivo da mente em detrimento da manutenção da beleza, os horizontes são
expandidos; é compreendido as limitações da “educação dos sentidos”, por exemplo, de que
“(...) a elegância é inferior à virtude, (...).” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 27), na qual, ela
se baseia fortemente; ou de que beleza ou sensibilidade não sustentam por si sós um
relacionamento, seja ele qual for e que na verdade “É o respeito pelo entendimento que
mantém viva a ternura pela pessoa.” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 125) e não as graças ou
os encantos da mesma, uma vez que tudo isso é demasiado temporário, passageiro17.
15 Com exceção às mulheres de camadas pobres, ao que Mary diz “De fato, o bom senso que tenho
encontrado entre as mulheres pobres, que tiveram poucas vantagens da educação e, ainda assim, agem
heroicamente, confirma minha opinião de que as tarefas triviais tornaram a mulher uma pessoa frívola.”
(WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 103).
16 Ao que Mary prontamente diz “Por que se diz às meninas que elas parecem anjos ou que uma gentil e
inocente fêmea é o objeto que mais se aproxima da ideia que formamos de anjos do que qualquer outro, senão
para rebaixá-las como mulheres? Ao mesmo tempo, diz-se a elas que só se parecem com anjos quando são
jovens e bonitas; consequentemente, sua pessoa, e não suas virtudes, recebe essa homenagem.”
(WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 124).
Entendendo o benefício mútuo dessa educação, Mary faz um pedido: “Apelo para seus
entendimentos e, na posição de semelhante, reivindico, em nome de meu sexo, alguma
simpatia em seu coração. Eu lhes suplico que ajudem a emancipar suas damas de companhia,
a fim de que se tornem suas companheiras!” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 190). E por
fim, tece uma importante consideração: “Que a mulher compartilhe dos direitos, e ela irá
emular as virtudes do homem, pois se aperfeiçoará quando emancipada; caso contrário, que se
justifique a autoridade que escraviza um ser tão frágil a seu dever.” (WOLLSTONECRAFT,
2016, p. 243-244). Nada mais justo do que isso, se não há de ter liberdade, que ao menos haja
uma justificativa coerente e plausível para tais atos, se é que tal ação é possível.
17 Além de tudo, Mary tem ciência de que enquanto as mulheres se manterem nesse estado servil, ignorante e
subserviente, em contraposição ao homem, a humanidade pouco avançará em sua moralidade ou em seu
próprio progresso enquanto civilização. Diz ela: “Deve-se estabelecer mais igualdade na sociedade, caso
contrário, a moralidade nunca ganhará terreno; e tal igualdade virtuosa não se assentará com firmeza, mesmo
quando fundada sobre uma rocha, se metade da humanidade estiver acorrentada ao fundo pelo destino,
porque ela será continuamente minada pela ignorância ou pelo orgulho.” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 180-
181), ou seja, a formação das pessoas se mostra fundamental para o desenvolvimento coletivo e social. E mais:
“A maioria serve de pedestal à minoria. Portanto, arriscar-me-ei a afirmar que, até que as mulheres sejam
educadas de forma mais racional, o progresso da virtude humana e o aperfeiçoamento do conhecimento
encontrarão contínuos obstáculos.” (WOLLSTONECRAFT, 2016, p. 62-63). O progresso só se dá com as
mulheres incluídas, com todo o meio social, com ninguém sendo deixado para trás.
18 Desse “nutrir”, Nísia o vê como algo demasiado necessário e útil para a sociedade, porém que é pouco ou
nada reconhecido: “Todos sabem, nem se pode negar, que os homens olham com desprezo para o emprego de
criar filhos e que é isso, às suas vistas, uma função baixa e desprezível; mas se consultassem a natureza nesta
parte, sentiriam sem que fosse preciso dizer-lhes, que não há no Estado Social um emprego que mereça mais
honra, confiança e recompensa.” (FLORESTA, 2010, p. 82).
A razão para que a mulher não esteja nos mesmos cargos e postos do que o homem é
simples e já foi mencionada: se a figura feminina foi gerada com o propósito de sua existência
voltado todo para a figura masculina, não é de se admirar que a mesma não adentre esses
campos, uma vez que, esse não é o seu lugar, pois na hierarquia de poder, ela acha-se serva,
enquanto quem está acima disso, é considerado senhor (FLORESTA, 2010, p. 85).
Evidentemente, Nísia enxerga nisso um completo disparate “Exigir uma servidão a que eles
mesmos não têm coragem de se submeter, de um sexo, (...) e querer que lhes sirvamos de
ludíbrio, nós, a quem eles são obrigados a fazer corte e atrair em seus laços com as
submissões mais humilhantes!” (FLORESTA, 2010, p. 86), visto que, de pouco fundamenta-
se seu jugo, com a diferença física do corpo sendo o único argumento para tais atos bárbaros e
desumanos (FLORESTA, 2010, p. 87). Seu poder, portanto, é construído com bases
argumentativas demasiadas frágeis e insuficientes.
O homem para Nísia é um ser “obstinado”, uma “grande criança”, “extravagante”,
sempre insatisfeito: “(...) que, quanto mais se procura agradá-los, tanto menos se consegue; ou
se por acaso se tira algum proveito, nunca é equivalente aos seus cuidados.” (FLORESTA,
2010, p. 87). E é nesse permanente descontentamento que a mulher encontra-se subjugada,
tornando-se um ser demasiado “subordinado e dependente” dessa criatura em estado eterno de
aborrecimento. Para ilustrar tal concepção, Nísia descreve a perspectiva de um certo autor não
nominado por ela:
(...) os mais prudentes dentre eles têm julgado não ser preciso conceder às mulheres
as doçuras da liberdade, mas sim conservá-las toda sua vida em um estado de
subordinação e dependência absoluta dos homens. A razão, que ele produz para
sustentar esta tese tão extravagante, é que nós não somos capazes de nos governar a
nós mesmas. (FLORESTA, 2010, p. 88).
E já que a mulher não está apta para governar-se, deixe que o homem encarregue-se
disso, não é mesmo? Se em Mary, a figura feminina é associada à um anjo, em Nísia, a
mesma é relacionada à lua: “que, (...) não brilha senão por uma luz emprestada; não temos
mais que um falso resplendor mais próprio a surpreender a admiração do que a merecê-la; nós
somos inimigas da reflexão; a maior parte de nós não pensa senão por acaso, ou por um
arrebatamento, (...).” (FLORESTA, 2010, p. 89). Entretanto, se a razão é concedida à mulher
por meio de um empréstimo, e portanto não é natural dela, por que a anatomia de ambos os
sexos haveria de ser a mesma? Nísia observa:
19 A autora preocupa-se em traçar uma educação distinta da que se é recebida na própria constituição de seu
colégio e em demais textos, mas, não neste, nesse, ela preocupa-se, sobretudo, em desmantelar a crença da
mesma busca refutar todos os argumentos que fazem pensar que a mulher não é capaz de
receber uma educação mais justa e igualitária, como a que Mary desenvolve em seu texto, e
sobretudo, de provar que a mulher é tão capaz quanto o homem para realizar qualquer ofício
que seja, indiferente se “magistério” ou “ciência”.
Nísia constata, com todas essas igualdades demonstradas anteriormente, que “(...) se
nós gozamos as mesmas facilidades e se nos permite, como a eles, entregar-nos ao estudo, não
se pode duvidar que nós avançaríamos pelo menos em igual passo, nas ciências e em todos os
conhecimentos úteis.” (FLORESTA, 2010, p. 91-92). Nos é negado o estudo? Diz Nísia, pois
bem, saiba que se tivéssemos esse direito, nós iríamos tão bem como vocês vão, dado que, o
nosso intelecto é o mesmo que o de vocês. E que se há a negação, ela é baseada unicamente
na injustiça cometida pelo seu sexo perante ao meu. Nos é negada a ciência também? Com
justificativas para lá de incoerentes e inválidas? 20 Pois tenha consciência de que se a mesma
estivesse disponível a nós, não seríamos arrogantes e prepotentes como vocês, homens,
passam a ser quando esse saber está em suas mãos 21, muito pelo contrário, “Se se admitisse às
mulheres a uma partilha igual das ciências, e das vantagens, que trazem, ou que delas
derivam, elas seriam menos sujeitas à vaidade que esses conhecimentos costumam ocasionar.”
(FLORESTA, 2010, p. 93-94)22. E sabendo das capacidades da mulher, a autora levanta a
intimidante questão: Seria o medo de sermos melhores e mais bem preparadas do que vocês
que impedem de nos entregar a ciência para o nosso uso, tal como vocês, homens, o fazem?
(FLORESTA, 2010, p. 94). Mais uma vez, é exposto o potencial do sexo feminino e até
mesmo uma melhor execução de ofícios em comparação ao sexo masculino.
E há, inclusive, uma capacidade natural que não pertence ao homem, a qual a mulher
estando com ela, esbanja talento, qual é, a “eloquência”, a “retórica” 23, que Nísia, orgulhosa e
ciente dessa nobre habilidade, diz: “Toda arte oratória das escolas não é capaz de dar a um
homem essa eloquência e facilidade de se expressar, que a nós nada custa (...).” (FLORESTA,
2010, p. 95). O homem, por fim, torna-se ofuscado pelo brilho retórico da mulher. E assim,
Nísia conclui de que se a retórica da mulher é mais bem desenvolvida que a do homem, a
ciência também deve estar ao alcance de seu sexo (FLORESTA, 2010, p. 96).
Eu duvido que o nosso sexo quisesse passar tantos anos tão inutilmente, como fazem
esses homens, que se apelidam filósofos; se quisesse aplicar-se ao estudo da
natureza, estou persuadida que acharíamos um caminho mais breve para chegarmos
a esse fim. Não faríamos, como certos homens, que empregam anos inteiros e
algumas vezes mesmo toda sua vida, a raciocinar sobre entes de razão e bagatelas
imaginárias, que só existem em seus próprios cérebros. (FLORESTA, 2010, p. 97).
Nem só filósofas equivalentes ou “melhores” do que os homens, mas também teólogas
e boas cristãs (FLORESTA, 2010, p. 99). Em resumo, “(...) não há ciência, nem cargo público
no Estado, que as mulheres não sejam naturalmente próprias a preenchê-los tanto como os
homens.” (FLORESTA, 2010, p. 100) e portanto, iguais oportunidades deveriam ser dadas,
inclusive na educação, em um ensino como o de Mary, que busca, sobretudo, propiciar
autonomia e independência para as mentes e os corpos femininos. E estando atenta para este
fato, ou seja, para a importância da educação para o seu sexo, Nísia afirma “(...) os homens
nos têm inteiramente privado de todas as vantagens da educação (...). Assim, faltas de
educação, somos entregues a todas as extravagâncias porque nos tornamos desprezíveis (...).”
(FLORESTA, 2010, p. 103). Com a privação do ensino que valorize o intelecto, a mulher
sequer tem meios para ser instruída, tampouco independente e conhecedora de seus direitos.
Valorizando a beleza no lugar do “entendimento” ou do “bom senso” a mulher, para a autora,
sempre se encontrará presa na dependência e na subserviência, por isso a importância de uma
transformação na educação feminina, fato este, o qual Nísia Floresta sabe muito bem 24. E
como se não bastasse, a negação do ensino prejudica a ambos, homens e mulheres:
24 “(...) Não, o bom senso deve sempre exceder a beleza do rosto, porque o ascendente, que a razão tem
sobre os corações, é mais durável. Eis porque exorto a todas as mulheres a desprezar os vãos divertimentos e a
aplicar-se à cultura de suas almas, a fim de se tornarem capazes de obrar com toda dignidade a que a natureza
nos destinou (...).” (FLORESTA, 2010, p. 106).
independência e autonomia de seus corpos e mentes por meio do desenvolvimento da razão, e
sobretudo, permitir justiça e igualdade para suas semelhantes. Em uma palavra,
reivindicações, com todas elas podendo serem conquistadas por meio da educação, de um
ensino de qualidade, que priorize o exercício da mente, o uso adequado das paixões e das
virtudes, e que não proíba o uso da razão e da ciência, pois conhecimento algum deve ser
privado, indiferente de quem for. Seja Mary ou Nísia, a libertação da mulher só se dá com o
cultivo da mente, em semear e colher saberes, em permitir conhecer, seja a si próprio ou ao
cosmos e tudo o que nele habita.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUARTE, Constância Lima; FLORESTA, Nísia. Nísia Floresta. Recife: Massangana, 2010.
História do feminismo: história, vertentes e objetivos de um movimento - História FM,
episódio 25. Entrevistada: Prof. Joana Maria Pedro. Entrevistadores: Icles Rodrigues. 01 de
março de 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?
v=AuqLjTDApe8&list=PLkmOzf6_ZiZEotWmmczXrX72jzN Iq_afd&index=111 . Acesso
em 04 de junho de 2023.
MILL, Stuart. A sujeição das mulheres. São Paulo: Escala, 2006.
PLATÃO. Menêxeno ou a Oração Fúnebre. Lisboa: Gaudium Sciendi, 2015.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo,
2016.