A Turba - Camila Félix

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A Turba

Camila Félix
A TURBA

CAMILA FÉLIX
SUMÁRIO

CARTA

indícios 12

PROFUSÃO

esquiva 22
abalo 24
nostalgia 25
abismo 27
autoridade 29
nudez 30
apropriada 32
apartar 34

MULTIDÃO

agrava 37
iludida 39
aqui 41
acaso 43
privilegiada 46
áspera 47
indagação 48
noite 49
retorno 50

TURBILHÃO

banal 52
mãos 54
atenta 56
decisão 58
oposto 59
deliberações 60
entrega 61

AGRADECIMENTOS

INDICAÇÕES
“Dezenas de viagens por todo o país, centenas de
fitas cassete gravadas, milhares de metros de fita.
Quinhentos encontros; depois parei de contar, os
rostos desapareciam da memória. Um coro enorme,
às vezes quase não se escutam as vozes, apenas o
choro.” (P. 45)

A guerra não tem rosto de mulher


Svetlana Aleksiévitch
CARTA

Eu não lembro de ter lido um livro de poesia que


trazia uma carta assim, no começo, onde epígrafes
não fossem mais do que análises elogiosas, ou críti-
cas obscuras. Já são mais de dez anos que leio to-
dos os livros de poesia que me são possíveis, mesmo
os independentes, mesmo os famosos textos insta-
gramáveis, a quantidade é imensa, e ainda não
me recordo de encontrar um livro que traga uma
carta explicativa assim. O fato é que me cansei de
sentidos abertos, de ter de explicar tantas vezes a
ideia do poema, queria deixar as coisas mais claras,
como quando vamos no museu e a obra tem uma
placa com nome, origem, data, uma explicação
básica. Logo, se você não gosta da ideia e prefere
ter sua própria interpretação, proponho pular os
parágrafos abaixo.
A primeira ideia desse livro foi falar das minhas
sensações enquanto mulher, um olhar sobre o femi-
nino por um todo, mas um olhar, obviamente, sub-
jetivo. Nasci e cresci como mulher, com todas as
características e hábitos, mas costumava ignorar
alguns assuntos, algumas conversas desse uni-
verso, talvez pela idade, talvez pela inocência.
E poderia abstrair eternamente, como fazem a
maioria dos homens, se a vida não me fizesse abrir
meus olhos obrigatoriamente. A maturidade che-
ga, com ela as informações e uma certeza de que
praticamente todas as mulheres que eu conhecia,
já tinham passado por alguma das situações que
falo aqui: foram abusadas, passaram por abor-
tos, foram perseguidas e ameaçadas por algum
homem. Não que eu não soubesse dessa realidade
antes, eu sabia, ou ouvia, eu lia, eu escutava, eu
chorava com as poesias do Slam das Manas que
falavam diretamente dados, sensações, fatos. Con-
tudo, nunca tinha escrito sobre isso, porque nunca
tinha sentindo tão próximo, tão pulsante na pele,
na carne viva.
No primeiro momento resolvi dedicar um poema
para cada mulher que conhecia, pois elas repre-
sentavam uma situação, ou várias das aqui es-
critas. Mas a questão é que conheço mulheres
demais e, para alcançar o objetivo, esse livro de-
moraria anos para ser escrito, além de ficar de um
tamanho próximo àquele livro português, de mais
de duas mil páginas que tenta reunir poesias do
mundo todo. Entendi que cada situação tem tan-
tos rostos, e tão diversos, que circunda uma grande
quantidade de mulheres. E por isso esse nome:
A Turba, que é um sinônimo de multidão, turbi-
lhão, profusão, os títulos dos capítulos.
As diferenças da variação de cada palavra, ou da
intenção da aglomeração de pessoas, depende da
pessoa que teoriza sobre elas. A minha teoria é que
todas representam um caos indefinido, assim como
as reações das mulheres aos diferentes abusos. Al-
gumas se rebelam, algumas combatem, algumas se
submetem, algumas se matam, tudo pode acontecer.
Reuni nesse livro poemas escritos nos últimos oito
anos, de 2012 a 2020, desde quando comecei a es-
crever poemas, mas adaptei muitos dos antigos a
minha escrita atual. A ideia é a mesma, já as pala-
vras, a forma de organizar as palavras, não mais.
E todos eles falam sobre esse tema, ser mulher, as
sensações, os sofrimentos bem femininos. Talvez
vocês discordem, talvez eu esteja enganada, verei
com o passar o tempo.

Perdurei muito na dúvida de colocar poemas que


falam de amor, principalmente, dos meus vários
poemas que falam da dor de cotovelo. Mas nesses
dias tive um pesadelo terrível, em que uma mulher
enfrentava toda uma odisseia, literalmente, um
lago de sapos, uma casa aos pedaços, um labirinto
e mais coisas ainda que não lembro direito, para
ficar com um homem que havia a rejeitado. Acredi-
to, estudo e escrevo muito a partir dos sonhos, acho
que me deram essa resposta.
Finalizando, acredito que o objetivo desse livro pas-
sa muito por um desejo de crescimento. Torço para
que sejamos cada vez mais livres, que tenhamos
condições de escolher e viver bem com qualquer sit-
uação que encontrarmos, e que sejamos compreen-
didas e apoiadas pelas mulheres próximas. Torço
principalmente para que eu aprenda e coloque isso
em prática cada vez melhor com o passar do tempo.
Torço para que pelo menos algum desses poemas
ajudem no aprendizado, na empatia, na prática do
respeito à liberdade feminina na vida de vocês.
INDÍCIOS

parecia mais papel o


pano incrivelmente branco
a enfermeira ensinou rápido
enquanto colocava
roupa de cama
na maca
dobra e dobra até ficar pequeno e
caber no meio das pernas
e não tira
com ele saberemos a quantidade
pelo tamanho da mancha
se atravessar e pingar no chão como
foi com a calcinha estou ferrada
ou livrada
pensei e lembrei que sai e não
limpei a cozinha
como limpo desde que era menina e que
parecia mais papel o
pano encardido que torcia e usava
todo dia limpando a pia
não existiam ainda ambulantes com cartazes
com delicadeza na janela do carro
com aquela pilha enorme
de 10 panos alvejados por 10 reais
na esquina da entrada do morro do papagaio
e sorriso
um mesmo deveria ser lavado e lavado
com um pouco de cloro na água num litro
eu sabia mas nunca fiz
isso e várias outras coisas
que agora reverberam na minha cabeça como
se ela fosse uma caixa oca e
claro
branca limpa
parecendo mais o papel
da minha agenda eu
sei muito bem os dias o
ciclo estudado nos mínimos
não era possível não
era nem cogitada a
possibilidade, e agora?
II

parecia mais um pijama


aquela blusa alaranjada
e a apertada calça roxa
que ficou estragada
queria dizer, querida,
não se usa juntas
assim
cores terciárias
eu juro que policio os meus julgamentos
mas parecia muito um pijama
como
parecia que eu ignorava
que ela não parava de chorar
nem um segundo
e que eu não dormiria
nem um minuto inteiro daquela madrugada
mas sonhava em falar, querida,
eu sinto muito dizer isso, mas
ninguém deveria sair na rua com
essa mesma roupa
se por acaso a calça fosse
preta, branca, verde musgo ou bege
como
se por acaso não fosse calça e sim
curtos um short ou uma saia
alguns usariam como justificava
mas parecia sim um pijama
de inverno ainda
que nada tinha de indecente
apesar de ser verão
e quente
e ninguém precisar de cobertores
eu mentalmente dizia, querida,
ninguém aqui está sem se cobrir
assim
até quem diferente de você
não tem sangue e evidências de violência
e você também está quase
nua ao puxar e repuxar
sua blusa
aumentando como
parece, essa roupa, um pijama
eu imagino que é essa a reação
de quem gostaria
de que nada mais encostasse
dedos, mãos, bocas ou panos
(quantas vezes já percebemos abusados
pela recusa aos abraços)
mas no desespero
é o ínfimo que mais apavora
ela dizia ininterruptamente
como o chão era duro
e que tinha ficado com gosto
de terra na boca
e eu me segurava
queria perguntar
como
querida
você vai pegar o ônibus pra casa
com essa roupa que nada combina
e ainda está destruída?
enquanto eu inconscientemente reprimia
que o que eu queria mesmo
era perguntar
como
querida
vamos viver depois desse dia?
III

parecia um sonho
aquele fim de tarde
alguns diriam pesadelo
mas não digo
pois tudo estava claro
mesmo as nuvens correndo no asfalto
em que pisavas constantemente
respigando lama nos meus
pés estatuificados
parecia mesmo um sonho
estar paralisada
apesar do perigo avançar
quase ao limite
da minha casca
para além do limite
do público e o privado
como surgir nua nos
corredores do trabalho
parecia tanto um sonho
um rosto transformado
veias e cores antes
não identificadas
quando jurava ontem
reconhecer no escuro com
o toque da palma todos
os traços desse amor
solidificado
como reconheço o amigo
mesmo o rosto sendo
um estranho vaso
parecia tanto um sonho
ter a coragem de
girar maçaneta, descer escadas
percorrer quarteirões
sem dizer as palavras
beijo, te amo
bom dia, boa noite,
não, juro que não te traio
juro, juro não quero
terminar, não quero
te deixar, por favor
foi só um momento de
cansaço, não se mate
não creio que você
me mate, juro
parecia muito um sonho
pensar que tinha
me libertado
PROFUSÃO
ESQUIVA

prometo lembrar apenas


que tudo pulsava ao
meu menor contato

as flores da mesa
falsos plásticos
respiravam

um dia compus uma música


com o prato
entre o ventre e a parede
a louça suja
entoava

prometo deixar o resto


empoeirando
entre as aulas do ensino médio
e os eventos
de toda uma infância
entediada

quando outros contam, não rememoro


olho:
como se carregasse a ilusão
de existir uma história
sem verossimilhança
sem sombra de ter sido verdade
ABALO

queria nunca mais construir juntos uma casa


ou ver uma samambaia
e re-sentir o calafrio
um risco frio nas costas
depois do trinco fechar a porta

queria nenhuma avalanche de imagens


na intensidade de ter
manhãs despreocupadas
onde a inexistência dos sons
transforma o colocar de
um copo no chão
no som igual ao
dos nossos orgasmos
que reverberam altos
além dos travesseiros
violentamente arremessados
entre o ar e a poeira
rodando como mágicos

imagina o desastre
associar a calma ao trauma
e viver de sons ligados
NOSTALGIA

descendo pelas paredes


a água molhou o vidro
sem o sépia de outros tempos
molhado é
um fio comprido
um gosmento de leite

hoje ela cochicha entre as rugas


em um mundo sem nossos frestes
descasca pedaços azul-marinho
pensa no primeiro inquilino
no gosto
dos primeiros rabanetes

a fumaça da manhã espalha


na neblina
entre camadas de cal e tinta
amianto
o meio-metro da namoradeira
um frio
em que as pedras do oitocentismo
tem seu cheiro
e os arcos da varanda
e a abóboda interna do pátio
e as passagens vernaculares da velha cozinha
voltas do lenço

são seus cabelos

todos os bancos:
reto e duro
mas teus seios
um bico eterno para dentro
uma queda sem concerto
ABISMO

canteiros descuidados encobrem


com arbustos espinhentos
meios cactos de aranhas
interior de leite
e pontas cor de vinho
os risos
e o disparar do coração
refletido no rosto

esse branqueamento no escuro


é inútil dizer se ele branqueia
ou avermelha
é inútil nomear no ar amarelo
no material cinza escuro
a preto

por que cores?


se o que verei são olhos loucos
brancos pretos e imóveis
desaparecerei
até o dia em que a noite for segura e bela
com estrelas cadentes
e barulho de cigarras longínquas
em um lugar livre
até o dia em que não haja sobressaltos
em esquinas andares ou vistas
constantes

ainda caminho
conto os postes velhos
analiso a mancha de óleo
iridescente
desejo a cadeira abandonada
e as tias do restaurante
atravesso
para que haja apenas abismo
AUTORIDADE

poderia lhe escrever um livro


se minha avó não dissesse:

lembrar é sofrer duas vezes

e esquecer se torna
mais poderoso
que o melhor dos mantras
NUDEZ

a pele que cobrias


agora esfria
já que virastes seda
ou melhor
cambraia transparente
e deixa o ar circular

as ruas ainda lembram


com suas pedras faltantes
olhares exultantes
e o lixo
as portas do hall de entrada
de vidraças quebradas
da sua casa com
aquelas janelas sem luar

a mesa que junto me derrubastes


com tapa e sangue
naquele lanche matutino
permanece a mesma
a evito todos os dias
mas não consigo
como e observo o passado ao lado
como se observasse de lá
do tempo antigo em que estavas comigo
de quando lona deveria arrastar

quantas camadas de renda ou cortiça


se cria sobre as peles
mesmo as que como as suas são lisas
o peso como correntes de condenados
suaviza mas nunca deixa que se veja
desacompanhado
a nudez é impossível
APROPRIADA

não sei bem quando começou


nem sei se começou
ainda parece estar
no antes
de qualquer número etapa fase
sei o que gosto
e é a primeira vitória
mas contar e mostrar e explicar
como
contar antes que eu sei
contar antes mesmo
que eu gosto

não sei bem quando isso começou


o receio de impulsar
e da força
que farão de volta
o receio de chocar
na falta de ânsia
e deleite e zelo e ânimo
conduzir é um verbo
de tantas conjugações
quanto significados
não sei bem quando termina
a paciência nas curvas
de uma rotina quadrada
a aparência liberta
para usar todas
as palavras
a segurança de ter passado
do zero o chão a largada
e levar a mão
o dedo o lábio e
o que mais for agradável
APARTAR

34º lá fora
e eu bati o queixo mais que
quando peguei aquela nevasca
perdida na alemanha
naqueles dias
eu não conseguia manter os olhos abertos
como agora

desviei para o rejunte o olhar fixo


já que percorrer as manchas
do velho azulejo
começa a produzir um sentido
(e conhecemos o movimento
do papel de parede amarelo)
ninguém disse que seria assim
eu li
mas entre ler e viver há uma longitude
como agora
pela oitava hora
li que o fim é em minutos
mas no comprimento desses segundos
vou ao sol e volto

fechar os olhos é o maior perigo


a tática é
não deixar o olhar vagar
para ter o equilíbrio
(não é como se precisasse equilibrar)
deitada reta no piso fresco
precisava perdurar cada átimo
de paz

precisava não existir


para a dor não atacar
mais
MULTIDÃO
AGRAVA

cama elástica de mola


no alto o santo
também se diverte
aliviado agora
depois da temporada na geladeira
e de tanto derrubado
no sábado da faxineira

o espaço do pulo e do quarto


é bem menos
do que o recomendado
dois corpos não passam
mesmo os pequenos
os desesperados
resta afastar a cabeça
e lutar
tanta quanto a besta

no alto o santo
(creio)
também chora
discorda dos outros
da graça
dizendo que é parte
que ser menina
é assim e
só piora
ILUDIDA

poderia jurar que acabaria


o coração crescendo no peito
os braços o pescoço os olhos
sentir apenas o
vermelho e escuro no pulsar duro
como se fosse comigo

por trás de um vidro


uma parede de tijolos
uma porta de alumínio
uma granulação
de lâminas de madeira
formando a mais barata
separação de um domínio
algumas vezes
de um extermínio

um grito um som de algo


partindo caindo sumindo

poderia jurar que acabaria


contaria do passado
não ouviria alguém
com o mesmo rosto que o meu
ou mais jovem que o meu
contar e mostrar
que aconteceu consigo
AQUI

aqui tudo parece antigo


somos década de setenta
arquitetura moderna
só resta pasteurizar

os vidros deixam entrar todas as imagens


as árvores tocam
reflexos cegam
quase pensam que tudo existe
acima de dez metros do ar

e na maciez dos sofás frígidos


o cinquentão de terno cinza
e músculos duros
estrangula
sobre barulhos de gastura
mata
suga a pele
aperta
pois a janela mais alta
é baixa

o exército é azul mar e verde


ornados com nomes dourados
enfileirado para o comandante
branco
e duplo
[o que comanda não se mostra]

as flores cobrem suas entradas


de cores e espécies diversificadas
tudo nasce
tudo cresce
sobre folhas secas
de uma floresta devastada
principalmente insetos
traças e aranhas
- aos montes –
nas persianas empoeiradas
que te escondem

admite desce
o pódio não lhe pertence
ACASO

poderia evitar o seu rosto


nos meus cílios
se olhasse antes as contracapas
se gastasse mais tempo
escutando os instintos
se tivesse a mania dos amigos
de cheirar o meio dos livros
sejam eles novos
ou antigos

poderia ter evitado essas lágrimas


se não deixasse me levar pelas fichas
aquelas muito preenchidas
e a ideia de adentrar em um mundo
que muitos compartilham

poderia evitar
mas sigo

penso que leio as mesmas páginas que você leu um dia


apesar de tantos outros também
juntarem essas palavras
e formarem essas frases
até sentirem o polegar tremer, travar
e parecer que não aguentariam chegar
até o fim do capítulo

mas lembro que eu lia até números redondos


e parava no meio de um parágrafo
no meio de sílabas
até que você disse
leia como se assistisse séries
leia como se acompanhasse uma novela
e quantas vezes perco a hora
para não deixar sem terminar
um episódio de um livro

penso quais pensamentos você teve


quando leu essas mesmas linhas
o que me contaria a noite
quando te perguntasse
o que tinha feito da sua rotina

mas lembro que não imaginava


que essas folhas encadernadas
escolhidas pelo acaso
das estantes empoeiradas
poderiam abalar tanto
a minha filosofia
de viver sem lembrar
que você existe
e lê
e pensa
além do que um dia compartilhou comigo
PRIVILEGIADA

as roupas se aglomeram no final da cama


e a poeira, a louça
os fios de cabelo
os pêlos dos gatos
o lixo no canto do armário

como a história de uma cidade


que cresceu desgovernada
hoje em dia nada
definha
nada se organiza
quando a tristeza faz raízes
pior que uma hera venenosa
de alguma fábula
tudo compulsoriamente
cresce e domina
ÁSPERA

a lembrança está no tocar de dois dedos


polegar e médio
a blusa sedosa
a parede áspera
a pele sedosa que empurravas
a pele ficando áspera enquanto
secamente atritavas

o sangue secou
nas pontas do muro
chapiscado
a cicatriz da vacina queloideada
desapareceu no rasgar
da prensa
trocada
por maiores marcas
por menores palavras

o silêncio que empurra


a paixão curada não fala
INDAGAÇÃO

talvez por causa dos meus cabelos


mas tenho uma amiga cacheada
tenho uma conhecida de crespos que

talvez por que respondo e converso


mas tenho uma conhecida muda
tenho uma amiga que apenas andava na rua e

talvez por que perca o controle no álcool


mas tenho uma amiga que só bebe água
tenho uma conhecida que não sai de casa e mesmo assim

talvez por causa dessa necessidade de ser amada


mas tenho uma conhecida que faz terapia a anos
tenho uma amiga que não gosta de homens e
a história é a mesma: eles
NOITE

todo mundo já
teve um dia
que escreveu uma carta de despedida
planejou cada passo que daria
e objeto que levaria (ou não) na mochila
e dormiu tranquila como se fosse pela última vez.
RETORNO

volta e meia
rememoro
no domingo regurgito
um refluxo do queijo
um susto de esquina
(as baratas da cidade
são folha seca com vento)
e no silêncio do seu quarto
o metal retorcido
(bombril e brilho faz um ruído
inconfundível)
pesam tranças e cachos e fios finos
na queda o som é grave
(o ruído do atrito
é inconfundível)
seca o sangue e ainda digo
melhor a dor
que a má vontade
TURBILHÃO
BANAL

até hoje 150


não seria número exato não fosse
certas desregulações
para ouvir

(sua dor entendo porque me tiraram o pâncreas


um risco no umbigo
um desmaio de cólica
um fincar que anuncia o girar da órbita)

o que é uma vez na vida


perto de 500
como você entende
que há montes de glândulas
há montes de órgãos
que incham e mudam
desincham de novo
toda semana?

(é como viver em um ritual


como lidar com o caos?
viver na instabilidade)

nenhuma novidade
como uma árvore que range
com todos os ventos
sem nenhum tombamento
suas crostas caem
insetos traçam a dentro
caminhos iguais aos seus minúsculos
que não morrem secos
para depois de alguns meses
um dor contra qual
não há argumentos

(imagina uma avó que aguentou 18 vezes)

e que quando perguntam


ela trata como
frivolidades
MÃOS

a direita e a esquerda
são minhas mãos sem marcas
eu tenho pintas e manchas e cicatrizes
mas nenhuma falta de sol em partes
os dedos, a palma e mesmo a unha pintada
só sabem de liberdade
e
eu sei que
eu tenho a facilidade de ir embora cedo
e dificuldades em partir tão tarde
mesmo com a padaria já sem pão
eu não deixo rastro no colchão
eu deixo o pescoço intacto
eu tenho muitas histórias e dados e
a manhã inteira sem proferir palavra
eu tenho uma animação
e um revirar de olhos tatuado
permanentemente eu tremo
se criar um sorriso falso
eu tenho a memória fraca
de perpétuo álcool
de saber a roupa
- aquela preferida -
dos seus pais irmãos
irmãos
da textura no abraço
e a inteira seriedade
na responsabilidade
de me iludir que o tempo
dará passos largos
ônibus não lotado
fila curta
remarcações não dadas
eu tenho a confiança
de que tudo será válido
e divertido
e interessante
mas sabe,
eu não tenho uma aliança
um anel bonito com seu nome gravado
um certificado de união
um encoste de cortes que com sangue selou o pacto
qualquer promessa dita
ou juramento eclesiástico
e mesmo se eu tivesse algum desses
e mesmo se eu tivesse todos
querido
a minha mão é minha
a minha vida é minha
e por mais que tenhamos um relacionamento
eu não te devo satisfação de nada
ATENTA

ele não cobra nada


saber marcar comemorar datas
caminhar de mãos dadas
ou qualquer maior confirmação
da nossa relação escassa

minguada é a língua descompromissada

a pressa pode até parecer


ser
aquela vontade que fez a grávida quebrar o vaso
para sentir o gosto do barro molhado
lamber a parede
morder o sabonete
e não pura individualidade
pode até parecer
ser
algo que valha a pena
não existir ápice
não existir preliminares
venha a nós o vosso reino
para que seja feito o vosso auge?
pode até parecer
mas sabe
quantas vezes saímos desatentas correndo
é o último é esse não dá tempo
a chave a garrafa o fone em casa
ao contrário a costura
a meia dobrada
habituados ficam incômodo e falta

a esperança cega mais que a ilusão descarada

até que alguém de fala


até que outro alguém te encontra
até que
ele assume o relacionamento sério com outra
no Facebook
DECISÃO

seriam precisos trezentas montanhas percorridas


na secura do verão,
e não nessa cobertura
vinha de inverno
tão fresca tão contemplativa

porque todas as palavras


acumuladas engolidas na saliva
como uma gordura sedentária
de tantas estações submissas
se dissolveram em uma linha
como um gozo:
não sou sua
OPOSTO

a força é tanta que


há dias que não canso
um músculo
fecho os olhos e posso
sorrir até bem depois do almoço
um entrelaçar de dedos
um ritmo correspondente
os flashes de um dia
ou a gravação complexa
de um filme nada honesto
acima de tudo a força
de ser eu e eu mesma
de me conhecer tão bem
de me tratar tão bem
que o inverso igual
é surpreendente
DELIBERAÇÕES

decidi que não deixaria acontecer


existir traços do acontecer
pois ela se acostumou

decidi que não teria filhos


pois ela precisava desse apoio

decidi que não priorizaria fidelidade


pois ela se consome na desconfiança

decidi que não me casaria


pois para ela o casamento é eterno

decidi que não aceitaria nenhum dinheiro


pois ela se tornou dependente

decidi que não poderia deixar o amor menor


que o medo de perder
pois isso fez ela continuar apesar de tudo
ENTREGA

sonho que enfio dedos


penso em como eles fazem
e faço
apesar dos meus ficarem sempre secos

seria perfeito não fosse


minha convicção de que o sexo
se mistura a amizade
todo ano perco um
e isso é tão melhor que o passado
e os meses
não quero que chegue ao outro lado

mas deixo
me acostumar a uma unidade
depois de muita prática
em interpretar metafísicas
de privilegiados
e a observar fotos
com bigodes ternos
as linhas do colarinho
as veias do antebraço
como se cada nome
fosse um universo
de mil ou duas mil
páginas
tenho agora
uma proximidade
como se estivesse em casa
AGRADECIMENTOS

Esse livro foi possível graças as várias mulheres incríveis


que me cercam, que me inspiraram, que me deram força,
que me deram coragem e principalmente sempre me in-
centivaram.
Agradeço imensamente a Rita Morais, a melhor amiga
do mundo, que revisou o texto e esteve presente em todos
os momentos.
Agradeço a Ana Luiza, minha irmã, que me escutou e me
ajudou. Junto com ela fiz uma série de vídeos-poemas
que agora estão disponíveis no instagram, é só procurar
#aturbapoesia ou acessar meu perfil @camilaofelix.
Agradeço a Maísa Moraes, minha amiga que sempre me
incentiva e me fez enxergar vários sentimentos coloca-
dos nesses poemas.
Agradeço a Bruna Stéphane, que conversou tantas vezes
comigo e me inspirou tanto em todos os anos de amizade
e poesia.
Agradeço a todas as participantes do Coletiva Manas,
como integrante e organizadora de saraus e slams convi-
vi 4 anos com diversas poetas que me ensinaram muito.
Apesar de ter uma poesia diferente, não tão marginal
quanto a dessas meninas, eu me inspiro muito na escri-
ta delas. Thais Kals, Joi Gonçalves, Karine Bassi, Nívea
Sabino, Bea, Eliza Castro, Zi Reis, Vênus, Lele Cirino,
Thamara Selva, Camyla Bruxa, Débora, Luna, Belinha,
Norma de Souza Lopes, Abelha, Natana Coelho, Aline,
Giuliana, Gigi Reis e várias outras que não lembro o
nome agora mas são parte das Manas. Agradeço as mul-
heres que me ajudaram pelas suas história e que provav-
elmente não lerão essas palavras, mas tiveram seus no-
mes lembrados, sua história indiretamente registrada,
mesmo que de forma generalizada. Minha mãe, Iraci.
Minha avó, Maria Rosa. Minha madrinha, Altamira.
Minhas outras tias. Minhas primas, Paulinha, Raquel,
Tamiris. Minhas vizinhas. As mulheres conhecidas do
bairro. Minhas colegas das escolas ou cursos ou apenas
da vida.
E por último agradeço as diversas poetas e escritoras que
me inspiraram tanto, na próxima página fiz uma lista de
livros incríveis que li e me inspiraram e que recomendo.
LIVROS QUE LI, ME INSPIREI E RECOMENDO

- Para montar a lista eu simplesmente abri minha lista


de livros lidos no Skoob e resgatei os nomes, começando
pela última leitura.

Qualquer livro da Sally Rooney


Qualquer livro da Luiza Romão
Qualquer escrita, mesmo a legendas das fotos do insta-
gram da Júlia de Carvalho Hansen
A primavera das pragas da Ana Carolina de Assis
Qualquer livro da Carla Diacov
Fevereiro da Eveline Sin
Qualquer escrito da incrível Flávia Péret
A lista da Jennifer Tremblay
A duração do deserto da Nina Rizzi
História da água da Laura Cohen Rabelo
Não Sou Uma Dessas, e a série Grils da Lena Dunham
Liv Lagerblad: poemas na série Kraft
Os livros da Svetlana Aleksiévitch que também está no
começo do livro
Toda as palavras que envolvem a Simone de Behavoir
O Papel de Parede Amarelo da Charlotte Perkins Gil-
man, citado no poema APARTAR
Rabo de Baleia da Alice Sant’Anna
Os incríveis livros da Patti Smith
Os incríveis livros da Sofi Oksanen
Qualquer livro da Annita Costa Malufe
Os escritos da Maria Gabriela Llansol
Qualquer palavra que envolva a Sylvia Plath
Os poemas da Hilda Hilst
Os escritos filosóficos da Marcia Tiburi
Os poemas da Angélica Freitas
Os poemas da Ana Martins Marques
As obras da Marguerite Duras
A incrível Gertrude Stein
Qualquer livro da Fernanda Young
Delírio da Laura Restrepo
Os livros da Liliane Prata
Nora Roberts e suas personagens fortes
Cartografia Sentimental da Suely Rolnik
O último romance que li, Teto Para Dois da Beth O’Leary
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