A Turba - Camila Félix
A Turba - Camila Félix
A Turba - Camila Félix
Camila Félix
A TURBA
CAMILA FÉLIX
SUMÁRIO
CARTA
indícios 12
PROFUSÃO
esquiva 22
abalo 24
nostalgia 25
abismo 27
autoridade 29
nudez 30
apropriada 32
apartar 34
MULTIDÃO
agrava 37
iludida 39
aqui 41
acaso 43
privilegiada 46
áspera 47
indagação 48
noite 49
retorno 50
TURBILHÃO
banal 52
mãos 54
atenta 56
decisão 58
oposto 59
deliberações 60
entrega 61
AGRADECIMENTOS
INDICAÇÕES
“Dezenas de viagens por todo o país, centenas de
fitas cassete gravadas, milhares de metros de fita.
Quinhentos encontros; depois parei de contar, os
rostos desapareciam da memória. Um coro enorme,
às vezes quase não se escutam as vozes, apenas o
choro.” (P. 45)
parecia um sonho
aquele fim de tarde
alguns diriam pesadelo
mas não digo
pois tudo estava claro
mesmo as nuvens correndo no asfalto
em que pisavas constantemente
respigando lama nos meus
pés estatuificados
parecia mesmo um sonho
estar paralisada
apesar do perigo avançar
quase ao limite
da minha casca
para além do limite
do público e o privado
como surgir nua nos
corredores do trabalho
parecia tanto um sonho
um rosto transformado
veias e cores antes
não identificadas
quando jurava ontem
reconhecer no escuro com
o toque da palma todos
os traços desse amor
solidificado
como reconheço o amigo
mesmo o rosto sendo
um estranho vaso
parecia tanto um sonho
ter a coragem de
girar maçaneta, descer escadas
percorrer quarteirões
sem dizer as palavras
beijo, te amo
bom dia, boa noite,
não, juro que não te traio
juro, juro não quero
terminar, não quero
te deixar, por favor
foi só um momento de
cansaço, não se mate
não creio que você
me mate, juro
parecia muito um sonho
pensar que tinha
me libertado
PROFUSÃO
ESQUIVA
as flores da mesa
falsos plásticos
respiravam
imagina o desastre
associar a calma ao trauma
e viver de sons ligados
NOSTALGIA
todos os bancos:
reto e duro
mas teus seios
um bico eterno para dentro
uma queda sem concerto
ABISMO
ainda caminho
conto os postes velhos
analiso a mancha de óleo
iridescente
desejo a cadeira abandonada
e as tias do restaurante
atravesso
para que haja apenas abismo
AUTORIDADE
e esquecer se torna
mais poderoso
que o melhor dos mantras
NUDEZ
34º lá fora
e eu bati o queixo mais que
quando peguei aquela nevasca
perdida na alemanha
naqueles dias
eu não conseguia manter os olhos abertos
como agora
no alto o santo
(creio)
também chora
discorda dos outros
da graça
dizendo que é parte
que ser menina
é assim e
só piora
ILUDIDA
admite desce
o pódio não lhe pertence
ACASO
poderia evitar
mas sigo
o sangue secou
nas pontas do muro
chapiscado
a cicatriz da vacina queloideada
desapareceu no rasgar
da prensa
trocada
por maiores marcas
por menores palavras
todo mundo já
teve um dia
que escreveu uma carta de despedida
planejou cada passo que daria
e objeto que levaria (ou não) na mochila
e dormiu tranquila como se fosse pela última vez.
RETORNO
volta e meia
rememoro
no domingo regurgito
um refluxo do queijo
um susto de esquina
(as baratas da cidade
são folha seca com vento)
e no silêncio do seu quarto
o metal retorcido
(bombril e brilho faz um ruído
inconfundível)
pesam tranças e cachos e fios finos
na queda o som é grave
(o ruído do atrito
é inconfundível)
seca o sangue e ainda digo
melhor a dor
que a má vontade
TURBILHÃO
BANAL
nenhuma novidade
como uma árvore que range
com todos os ventos
sem nenhum tombamento
suas crostas caem
insetos traçam a dentro
caminhos iguais aos seus minúsculos
que não morrem secos
para depois de alguns meses
um dor contra qual
não há argumentos
a direita e a esquerda
são minhas mãos sem marcas
eu tenho pintas e manchas e cicatrizes
mas nenhuma falta de sol em partes
os dedos, a palma e mesmo a unha pintada
só sabem de liberdade
e
eu sei que
eu tenho a facilidade de ir embora cedo
e dificuldades em partir tão tarde
mesmo com a padaria já sem pão
eu não deixo rastro no colchão
eu deixo o pescoço intacto
eu tenho muitas histórias e dados e
a manhã inteira sem proferir palavra
eu tenho uma animação
e um revirar de olhos tatuado
permanentemente eu tremo
se criar um sorriso falso
eu tenho a memória fraca
de perpétuo álcool
de saber a roupa
- aquela preferida -
dos seus pais irmãos
irmãos
da textura no abraço
e a inteira seriedade
na responsabilidade
de me iludir que o tempo
dará passos largos
ônibus não lotado
fila curta
remarcações não dadas
eu tenho a confiança
de que tudo será válido
e divertido
e interessante
mas sabe,
eu não tenho uma aliança
um anel bonito com seu nome gravado
um certificado de união
um encoste de cortes que com sangue selou o pacto
qualquer promessa dita
ou juramento eclesiástico
e mesmo se eu tivesse algum desses
e mesmo se eu tivesse todos
querido
a minha mão é minha
a minha vida é minha
e por mais que tenhamos um relacionamento
eu não te devo satisfação de nada
ATENTA
mas deixo
me acostumar a uma unidade
depois de muita prática
em interpretar metafísicas
de privilegiados
e a observar fotos
com bigodes ternos
as linhas do colarinho
as veias do antebraço
como se cada nome
fosse um universo
de mil ou duas mil
páginas
tenho agora
uma proximidade
como se estivesse em casa
AGRADECIMENTOS