3 Vinte Anos Depois Autor Alejandro Dumas
3 Vinte Anos Depois Autor Alejandro Dumas
3 Vinte Anos Depois Autor Alejandro Dumas
1. O fantasma de Richelieu1
Num cômodo que já conhecemos do Palácio Cardinalício,2 um homem estava sentado a uma
mesa com quinas de cobre, abarrotada de papéis soltos e livros, a cabeça apoiada entre as mãos.
Às suas costas, as chamas ardiam numa ampla lareira, fazendo a lenha em brasa desabar às
vezes dos pesados suportes dourados que a sustentavam. O fulgor das labaredas iluminava por
trás o magnífico traje do meditativo personagem, a quem o brilho das inúmeras velas de um
candelabro iluminava pela frente.
Diante daquela samarra3 vermelha ricamente rendada, daquele rosto pálido, cabisbaixo e
absorto, diante da solidão do gabinete, do silêncio das antecâmaras e dos passos cadenciados da
guarda no corredor, seria de se pensar que a sombra do cardeal de Richelieu ainda habitava
aquele escritório que fora seu.
Infelizmente, era mesmo apenas a sombra daquele grande homem. A França enfraquecida, a
autoridade do rei vilipendiada, os grandes nomes senhoriais voltando a ser fortes e
contestadores, o inimigo no interior das fronteiras: tudo comprovava que Richelieu não se
encontrava mais ali.
Mas o que melhor demonstrava não ser do velho cardeal aquela samarra vermelha era o
isolamento, que mais parecia, como foi dito, o de um fantasma do que o de um ser vivo.
Chamavam também a atenção a ausência de cortesãos nos corredores desertos, os pátios
povoados de guardas, o escárnio popular vindo da rua e atravessando os vidros daquele cômodo
sacudido pelo sopro de toda uma cidade amotinada contra o ministro. A tudo isso se
acrescentavam estampidos distantes e regulares de tiros, felizmente disparados sem direção nem
consequência, apenas para mostrar aos guardas, aos suíços,4 aos mosqueteiros e aos soldados
postados ao redor do Palais Royal — pois até o próprio Palácio Cardinalício havia mudado de
nome — que também o povo dispunha de armas.
Esse fantasma de Richelieu era Mazarino.5
E Mazarino estava só, se sentindo enfraquecido.
— Estrangeiro! — ele murmurou. — Italiano! A grande acusação que se faz! Com apenas
essa palavra assassinaram, enforcaram e trucidaram Concini.6 E se eu deixar vão me assassinar,
enforcar e trucidar também, mesmo sem que eu tenha causado mal nenhum além de pressionar
um pouco. Bobalhões! Então não percebem que o inimigo não é o italiano que se expressa mal
em francês e sim uma gente com talento para o belo fraseado, com pura e perfeita dicção
parisiense? Isso mesmo — continuava o ministro com um fino sorriso que agora parecia
estranho em seus lábios exangues. — Isso mesmo, é o que dizem os boatos, é precária a sorte
dos favoritos. Mas se sabem disso, devem saber também que não sou um favorito qualquer! O
conde de Essex7 tinha um esplêndido anel de diamantes, oferecido pela amante real, enquanto a
mim coube um anel simples, com uma inscrição em código e uma data, mas abençoado na
capela do Palais Royal.8 Nem por isso conseguirão me destruir como pretendem. Então não
veem que com esse eterno grito de “Abaixo Mazarino!” estão na verdade dando vivas ao sr. de
Beaufort,9 ao sr. Príncipe,10 ou ainda ao Parlamento?11 No entanto, o sr. de Beaufort está preso
em Vincennes,12 o sr. Príncipe vai, mais cedo ou mais tarde, se juntar a ele, e o Parlamento…
Nesse momento o sorriso do cardeal assumiu uma expressão de ódio que era estranha na
placidez do seu rosto.
— Bem, com o Parlamento veremos o que fazer. Temos Orléans e Montargis.13 Ah! Não será
imediato, mas esses mesmos que gritam “Abaixo Mazarino!” ainda vão gritar “Abaixo essa
gente”. Um de cada vez. Richelieu, que todos odiavam quando estava vivo e de quem continuam
falando depois de morto, caiu mais baixo que eu. Foi afastado várias vezes e mais vezes ainda
achou que seria demitido. A rainha não me afastará e se eu for obrigado a fazer concessões ao
povo ela me apoiará. Se eu tiver que fugir, me acompanhará. E aí quero ver o que farão os
rebeldes sem rainha e sem rei. Ah! Quem me dera não ser estrangeiro; se fosse francês, se
tivesse um título de nobreza…
E voltou a cair em devaneios.
De fato, a situação era difícil e o dia que chegava ao fim a havia complicado ainda mais.
Levado por sórdida avareza, Mazarino esmagava o povo com impostos — deixando-lhe apenas
a alma, como disse o advogado geral Talon,14 e isso por não poder leiloá-la —, esse mesmo povo
ao qual se pedia paciência, alegando as vitórias conseguidas, mas que via não serem os louros
alimento que encha a barriga.15 Esse povo, enfim, há bastante tempo manifestava
descontentamento.
Mas não somente o povo, pois quando é só ele a reclamar a Corte não ouve, distante que
está, dele separada pelas classes burguesa e nobre. Mazarino, entretanto, cometera a
imprudência de investir contra os magistrados! Havia vendido doze licenças de oficial de
petição e, como os já existentes haviam pagado alto preço pelas suas, e a entrada desses recém-
promovidos as desvalorizava, eles se reuniram e juraram por tudo que é sagrado não aceitar
aquela decisão e resistir a todas as perseguições da Corte. Fizeram inclusive um pacto, prevendo
a possibilidade de um deles perder a licença, com os demais então se cotizando para um
reembolso compensatório.16
Eis o que havia acontecido, dos dois lados.
Em 7 de janeiro, cerca de setecentos ou oitocentos comerciantes de Paris se amotinaram
contra uma nova taxa que pesaria sobre a classe. Elegeram em seguida dez representantes para
uma entrevista com o duque de Orléans,17 que em ocasiões assim sempre procurava parecer
popular. O duque os recebeu e foi informado da decisão de não pagamento do novo imposto. Se
preciso fosse, os comerciantes estavam dispostos a se defender da cobrança real, até mesmo à
mão armada. O duque os ouviu com toda complacência, demonstrou otimismo, prometeu levar
as reivindicações à rainha e se despediu dos delegados com a habitual frase dos príncipes:
“Veremos o que se pode fazer.”
Os oficiais de petição, por sua vez, foram até Mazarino e um deles, porta-voz do grupo,
falou com tanta firmeza e arrojo que o cardeal ficou bem surpreso, encerrando a entrevista como
o duque de Orléans e dizendo que veria o que se podia fazer.18
Para ver o que se podia fazer, então, foi reunido o Conselho e mandado chamar o
superintendente das finanças, d’Émery.
O tal d’Émery era detestado pelo povo, para começar por ser superintendente das finanças, e
todo superintendente das finanças deve ser detestado. Mas é preciso acrescentar que o
personagem em questão fazia jus a tanto ódio.
Era filho de um banqueiro de Lyon, chamado Particelli, que passou a se chamar d’Émery
depois de cair em bancarrota.19 Mas o cardeal de Richelieu o considerava um grande talento
financeiro e da maneira mais elogiosa o apresentou ao rei Luís XIII como sr. d’Émery, sugerindo
que fosse nomeado intendente das finanças.
— Ótimo! — respondeu o rei. — Foi bom ter me falado do sr. d’Émery para esse cargo, para
o qual se espera um homem honesto. Ouvi dizer que tentaria me empurrar um patife chamado
Particelli, era o que eu temia.
— Sire!20 — respondeu o cardeal. — Que Vossa Majestade se tranquilize, o Particelli a que
se refere foi enforcado.21
— Melhor assim! — exclamou o rei. — Não à toa sou chamado de Luís o Justo.
E assinou a nomeação do sr. d’Émery.
Esse mesmo d’Émery em seguida se tornou superintendente das finanças.
Ele foi então chamado, da parte do ministro, mas chegou lívido e assustado, dizendo que,
naquele dia mesmo, o filho acabava de escapar de uma tentativa de assassinado na praça do
Palácio: a multidão o havia reconhecido e criticava o luxo em que vivia a sua mulher, que tinha
um apartamento todo em veludo vermelho, com passamanes de ouro. Era a filha de Nicolas Le
Camus, secretário em 1617, que havia chegado a Paris com vinte libras e, mesmo guardando
para si uma renda de quarenta mil libras, pouco tempo antes repartira entre os filhos uma fortuna
de nove milhões.
O jovem d’Émery por pouco não fora estrangulado, pois um dos revoltosos ameaçava torcer-
lhe o pescoço até que devolvesse o ouro devorado. O Conselho nada pôde resolver naquele dia,
visto o superintendente estar abalado demais para poder trabalhar.
No dia seguinte, o primeiro presidente Mathieu Molé,22 cuja coragem nesse tipo de coisa se
igualava, segundo o cardeal de Retz, à do sr. duque de Beaufort e à do sr. príncipe de Condé,23
ou seja, os dois homens considerados os mais corajosos da França, no dia seguinte, dizíamos, o
primeiro presidente foi, por sua vez, atacado: em represália aos males que lhe eram impostos, a
turba o ameaçou fisicamente. Porém, com sua calma habitual e sem se alterar, o primeiro
presidente respondeu aos agitadores que, caso não obedecessem aos desígnios do rei, patíbulos
seriam erguidos em praças públicas e neles seriam enforcados os mais ruidosos. Estes últimos,
exatamente, responderam ser até bom que se erguessem forcas, pois serviriam para os maus
juízes, que compravam os favores da Corte às custas da miséria do povo.
E isso não parou por aí: no dia 11, indo a rainha à missa na catedral de Notre-Dame, como
de praxe aos sábados, foi perseguida por mais de duzentas mulheres que, aos gritos, pediam
justiça. Na verdade, não tinham má intenção alguma e queriam apenas se pôr de joelhos,
esperando comover Sua Majestade. Mas a guarda as impediu e a rainha continuou o seu
caminho altiva e orgulhosa, sem ouvir os clamores.
Na tarde desse mesmo dia, o Conselho novamente se reuniu, confirmando a necessidade de
se sustentar a autoridade real. Como consequência, convocou-se o Parlamento para o dia
seguinte.
Na noite desse dia é que tem início essa nova história aqui narrada. O rei, então com dez
anos de idade, acabava de sair de uma varíola e, a pretexto de agradecer a Nossa Senhora o
restabelecimento da saúde real, a guarda, os suíços e os mosqueteiros foram colocados de
prontidão e distribuídos em torno do Palais Royal, ao longo do rio Sena e na ponte Neuf.24
Terminada a missa, ele foi ao Parlamento e, num trono de justiça25 improvisado, não só manteve
seus éditos passados, mas ainda outorgou cinco ou seis, cada um mais nefasto que o outro,
segundo o cardeal de Retz. Tanto assim que o primeiro presidente, que, como vimos, vinha até
então se posicionando a favor da Corte, veementemente se opôs àquela maneira de se trazer o rei
ao palácio, de surpresa, para constranger a liberdade dos sufrágios.
Porém os que mais claramente se opuseram aos novos impostos foram o presidente
Blancmesnil e o conselheiro Broussel.26
Despachados os éditos, o rei voltou ao Palais Royal. Muitos populares se encontravam em
seu caminho. Sabia-se que ele vinha do Parlamento, mas como não se conhecia o teor das
decisões tomadas, se favoráveis ao povo ou para oprimi-lo ainda mais, grito nenhum de alegria
ecoou à sua passagem, felicitando-o por ter recuperado a saúde. Todos os rostos, pelo contrário,
se mostravam abatidos e preocupados, com alguns até assumindo ares ameaçadores.
Mesmo depois de seu retorno, as tropas continuaram a postos: temia-se o início de uma
rebelião quando se soubesse o resultado da sessão parlamentar. De fato, assim que se espalhou a
notícia de que o rei havia aumentado os impostos, em vez de amenizá-los, grupos se formaram
aos brados de “Abaixo Mazarino! Viva Broussel! Viva Blancmesnil!”, já que os dois últimos
haviam falado a favor do povo. E este não deixava de lhes ser grato, mesmo que sua eloquência
tivesse fracassado.
Procurou-se dissipar esse início de tumulto e calar os gritos, mas como sempre acontece em
casos assim, os grupos aumentaram e os gritos redobraram. Os guardas do rei e os suíços
acabavam de receber ordem não só de se manterem firmes, mas também de estender patrulhas às
ruas Saint-Denis e Saint-Martin, onde os tais agrupamentos populares pareciam mais
importantes e agitados, quando foi anunciado no Palais Royal o preboste dos comerciantes.27
Ele foi logo recebido: vinha dizer que se não interrompessem de imediato aquelas
demonstrações hostis, em duas horas Paris inteira estaria de armas em punho.
Deliberava-se sobre o que fazer, quando Comminges,28 tenente da guarda, entrou com o
uniforme todo rasgado e o rosto sujo de sangue. Vendo-o assim, a rainha deu um grito e
perguntou o que havia acontecido.
E o que havia acontecido foi que, com a presença da guarda, os ânimos populares se
alvoroçaram. Sinos tocaram a rebate. Comminges não hesitou, prendeu um suspeito que parecia
ser um dos principais agitadores e, para dar exemplo, mandou que o enforcassem na Croix-du-
Trahoir.29 Os soldados o levaram para a execução, mas na área do mercado aberto foram
atacados a pedradas e a golpes de alabarda. O condenado aproveitou a oportunidade para
escapar, tomou a rua dos Lombardos e entrou numa casa, que não demorou a ter sua porta
arrombada.
Foi inútil esta última violência, pois o fugitivo não foi encontrado. Comminges deixou
alguns homens no local e, com o restante do destacamento, voltou ao Palais Royal para contar à
rainha o acontecido. Durante todo o percurso, foi perseguido por gritos e ameaças, com vários
dos seus subordinados feridos a paus, lanças e alabardas. Ele mesmo recebeu uma pedrada, que
lhe abriu o supercílio.
O relato confirmava a opinião do preboste dos comerciantes de que não haveria como
enfrentar uma revolta mais séria. O cardeal fez circular entre a população a notícia de que as
tropas tinham sido postadas ao longo do rio e na ponte Neuf apenas por causa da cerimônia, mas
já seriam retiradas. De fato, por volta das quatro horas da tarde elas tomaram a direção do Palais
Royal. Um posto avançado foi deixado na barreira dos Sargentos, outro nos Quinze-Vingt e um
terceiro na colina Saint-Roch.30 Os pátios e andares térreos do Palais Royal ficaram cheios de
suíços e de mosqueteiros, à espera.
Era essa a situação geral, no momento em que nossos leitores foram levados ao gabinete do
cardeal Mazarino, aquele mesmo que antes fora do cardeal de Richelieu. Vimos com qual estado
de espírito ele ouvia os clamores do povo e os estampidos de fuzis que ecoavam até ali.
Ele bruscamente ergueu a cabeça, agitado como alguém que acaba de tomar uma decisão,
cravou os olhos num enorme relógio que já ia soar dez horas e, pegando um apito de cobre em
cima da mesa, sempre ao alcance da mão, soprou forte duas vezes.
Uma porta escondida na tapeçaria da parede se abriu sem fazer barulho e um homem vestido
de negro entrou em silêncio, postando-se de pé atrás da poltrona.
— Bernouin — disse o cardeal, sem nem mesmo se voltar, pois sabia ser o seu camareiro
que estava ali, atendendo ao duplo chamado do apito —, quem são os mosqueteiros de guarda
no palácio?
— Os mosqueteiros negros,31 monsenhor.
— De qual companhia?
— Companhia Tréville.
— Algum oficial dessa companhia se encontra na antecâmara?
— O tenente d’Artagnan.
— Ele é bom, imagino.
— É sim.
— Traga uma roupa de mosqueteiro e me ajude a vesti-la.
O criado saiu tão silenciosamente quanto havia entrado e voltou pouco depois, com o traje
pedido.
Soturno e pensativo, o cardeal começou e despir os trajes cerimoniais usados para assistir à
sessão do Parlamento, pondo no lugar a túnica militar em que aliás ele se sentia à vontade,
graças às suas antigas campanhas na Itália.32 Já vestido, ele disse:
— Chame d’Artagnan.
O criado dessa vez saiu pela porta central, mas sempre silencioso e mudo. Podia ser
comparado a uma sombra.
Sozinho, o cardeal se admirou, com certa satisfação, no espelho. Era ainda moço, apenas
quarenta e seis anos, proporções elegantes, somente um pouco abaixo da média, em altura.
Tinha a pele firme e bonita, o olhar cheio de ardor, o nariz forte, sem no entanto destoar, com
testa larga e majestosa. Os cabelos castanhos encaracolavam um pouco e a barba, mais escura e
sempre bem realçada a ferro quente, conferia-lhe boa aparência. Atravessou a tiracolo o boldrié,
olhou satisfeito as mãos, que eram bonitas e tratadas com todo cuidado. Em seguida, deixando
de lado as luvas de camurça do uniforme, calçou simples luvas de seda.
Nesse momento a porta se abriu.
— O sr. d’Artagnan — anunciou o camareiro.
Um oficial entrou.
Era um homem de trinta e nove ou quarenta anos, compleição miúda, mas forte, elegante,
olhos vivos e inteligentes, barba escura e cabelos já começando a ficar grisalhos, como acontece
quando achamos — sobretudo os de tez morena — a vida muito boa ou muito ruim.
D’Artagnan deu quatro passos no gabinete, lembrando-se, pois estivera ali uma vez, no
tempo do cardeal de Richelieu.33 Percebendo não haver ninguém senão um mosqueteiro da sua
companhia, fixou os olhos nessa pessoa e só então reconheceu o cardeal.
Manteve-se de pé em pose respeitosa, mas digna, como se deve comportar um homem de
boa condição que frequentemente na vida teve oportunidade de estar na presença de grandes
senhores.
O cardeal o observava com seu olhar, que era mais perspicaz do que profundo, examinando-
o com atenção. Após alguns segundos de silêncio, ele afinal perguntou:
— É o tenente d’Artagnan?
— Eu mesmo, monsenhor.
Mazarino continuava a fitar aquele rosto inteligente, com traços cuja excessiva mobilidade
os anos e a experiência haviam podido conter, mas o tenente enfrentava o exame como alguém
que, em outros tempos, já havia sido observado por olhos bem mais penetrantes que aqueles cuja
investigação devia agora tolerar.
— Cavalheiro — disse o cardeal —, preciso que me acompanhe… ou melhor, eu o
acompanharei.
— Estou à disposição de monsenhor — respondeu d’Artagnan.
— Gostaria de pessoalmente inspecionar os postos em volta do Palais Royal. Julga haver
algum perigo?
— Perigo, monsenhor? — espantou-se d’Artagnan. — Qual?
— Dizem que o povo está em alvoroço.
— O uniforme dos mosqueteiros do rei é muito respeitado, monsenhor, e mesmo que não
fosse, eu e mais três companheiros podemos pôr em fuga uma centena de arruaceiros.
— Não viu o que aconteceu a Comminges?
— O sr. de Comminges está na guarda e não nos mosqueteiros — respondeu d’Artagnan.
— Isso significa — completou o cardeal com um sorriso — que os mosqueteiros são
melhores soldados que os guardas?
— A cada um o amor-próprio do seu uniforme, monsenhor.
— Isso quer dizer que sou uma exceção — continuou sorrindo o cardeal —, pois bem vê que
deixei o meu para tomar o seu.
— Quanta modéstia, monsenhor! Tivesse eu o de Vossa Eminência, me contentaria com ele
e nunca procuraria outro.
— Pode ser, mas para sair esta noite talvez não fosse o mais seguro. Bernouin, meu chapéu.
O camareiro entrou, trazendo o chapéu de abas largas do uniforme. O cardeal o colocou de
maneira bem elegante e se voltou para d’Artagnan.
— Têm cavalos já prontos na estrebaria, não é?
— Temos sim, monsenhor.
— Pois então, vamos.
— Quantos homens devo chamar?
— O senhor disse que quatro mosqueteiros põem em fuga uma centena de arruaceiros.
Como podemos encontrar duzentos, chame oito.
— Quando monsenhor quiser.
— Sigo-o. Ou melhor — corrigiu o cardeal —, vamos por aqui. Ilumine o caminho,
Bernouin.
O criado pegou uma vela, o cardeal uma pequena chave dourada na sua escrivaninha e,
depois de abrir a porta de uma escada secreta, chegaram ao pátio do Palais Royal.
2. Uma ronda noturna
Dez minutos mais tarde, a pequena tropa saía pela rua dos Bons-Enfants,
por trás da sala de espetáculos que o cardeal de Richelieu mandara
construir para a encenação de Mirame e que seu sucessor, com gosto mais
musical que literário, recentemente cedera para a apresentação das
primeiras óperas montadas na França.34
O aspecto da cidade evidenciava a iminência de uma grande agitação.
Inúmeros grupos percorriam as ruas e, apesar do que dissera d’Artagnan,
acompanhavam com ares de atrevido escárnio a passagem dos militares,
mostrando que os burgueses haviam deixado de lado a habitual mansidão,
assumindo postura mais belicosa. De vez em quando, o som de alguma
algazarra vinha da área do Halles.35 Tiros de fuzil pipocavam para os lados
da rua Saint-Denis e eventualmente, sem que se soubesse por quê, algum
sino começava a bater, ao sabor do capricho popular.
D’Artagnan continuava seu caminho com a tranquilidade de quem de
forma alguma se impressiona com semelhantes ninharias. Quando algum
grupo parava no meio da rua, ele deixava seu cavalo seguir em frente,
como se nada houvesse. Fossem rebeldes ou não, quem estava ali devia
imaginar que tipo de homem tinha diante de si. E todas as vezes o grupo se
abria para dar passagem à patrulha. O cardeal invejava toda aquela calma,
atribuindo-a ao hábito do perigo, mas nem por isso deixava de reconhecer,
no oficial sob cujas ordens ele temporariamente se colocara, a espécie de
consideração com relação ao que a elementar prudência exige da mais
afoita coragem.
Quando se aproximaram do posto da barreira dos Sargentos, a sentinela
gritou: “Quem vem lá?” D’Artagnan pediu ao cardeal a senha e respondeu:
Luís e Rocroy.36
Feito, com essas palavras, o reconhecimento, d’Artagnan perguntou se
não era o sr. de Comminges que comandava o posto.
A sentinela apontou então para um oficial que, de pé, conversava com
um cavaleiro, tendo a mão apoiada no pescoço do animal. Era aquele por
quem d’Artagnan havia perguntado.
— É o sr. de Comminges — disse d’Artagnan ao cardeal, que conduziu
o seu cavalo na direção deles.
Por discrição, o mosqueteiro recuou, mas pela maneira como os dois
oficiais, o que estava a pé e o que estava a cavalo, tiraram seus chapéus,
confirmou-se que haviam reconhecido Sua Eminência.
— Parabéns, Guitaut37 — disse o cardeal ao cavaleiro —, em que
pesem os seus sessenta e quatro anos, vejo que continua o mesmo, atento e
diligente. O que conversava com esse jovem?
— Monsenhor — Comminges respondeu —, eu o fazia notar que
vivemos uma época bastante singular e que este dia de hoje se assemelha
muito àqueles da Liga,38 de que tanto ouvi falar quando era moço. Imagine
que, nas ruas Saint-Denis e Saint-Martin, simplesmente se falava em se
levantarem barricadas.
— E o que Comminges respondia a isso, meu caro Guitaut?
— Monsenhor — tomou a iniciativa o próprio Comminges —, respondi
que, para uma reedição da Liga, falta algo que me parece bem essencial:
um duque de Guise. Aliás, as coisas nunca se repetem iguais.
— Uma Liga não, mas farão uma Fronda, é o que dizem — continuou
Guitaut.
— E o que vem a ser uma Fronda? — perguntou Mazarino.
— É o nome que dão ao partido deles, monsenhor.
— De onde vem o nome?
— Parece que, há alguns dias, o conselheiro Bachaumont39 comentou
no palácio que todos esses agitadores parecem meninos que brincam com
fundas40 e atiradeiras nos fossos de Paris e se dispersam assim que veem
um oficial do prebostado,41 voltando a se juntar logo que ele passa.
Pegaram a palavra solta no ar, como fizeram os maltrapilhos de Bruxelas,42
e passaram a se chamar frondistas. Desde então, tudo se remete à Fronda:
os pães, os chapéus, as luvas, os casacos, os leques. Prestem atenção,
ouçam.
Naquele momento, uma janela tinha sido aberta e um homem, apoiado
no parapeito, começou a cantar:
Um vento de Fronda
Se levantou na manhã;
Acho que rugindo
Contra Mazarino.
Um vento de Fronda
Se levantou na manhã!43
Eram mais ou menos onze horas da noite. Mal tinha dado cem
passos por Paris e Gondy percebeu que uma estranha mudança
havia acontecido.
A cidade inteira parecia habitada por seres fantásticos.
Sombras silenciosas arrancavam a pavimentação das ruas,
arrastavam e faziam tombar carroças, e outras abriam valas
capazes de engolir companhias inteiras de cavaleiros. As
diligentes criaturas iam, vinham, corriam como demônios que
cumprissem alguma obra desconhecida: eram os mendigos do
Pátio dos Milagres,349 agentes do distribuidor de água benta da
Saint-Eustache, preparando as barricadas para o dia seguinte.
Gondy olhava com algum temor aquelas pessoas do lado
obscuro da cidade, aqueles trabalhadores noturnos,
perguntando-se se, depois de fazer tantos seres imundos
saírem das suas tocas, teria o poder de mandá-los de volta.
Quando um deles se aproximava, seu ímpeto era o de fazer o
sinal da cruz
Mas chegou à rua Saint-Honoré e tomou-a na direção da
rua da Ferronnerie. Ali o aspecto era outro, com comerciantes
que corriam de loja em loja. As portas pareciam trancadas,
mas estavam apenas encostadas e se abriam e fechavam dando
passagem a homens que pareciam querer esconder o que
carregavam. Eram lojistas que, tendo armas, emprestavam aos
que não tinham.
Um deles ia de porta em porta, dobrado sob o peso de
espadas, arcabuzes, mosquetes, instrumentos bélicos de todo
tipo, que eram distribuídos na medida em que ele passava. À
luz de um lampião, Gondy reconheceu Planchet.
O coadjutor voltou às margens do Sena pela rua de la
Monnaie. Grupos de burgueses de capa preta ou cinza,
indicando sua origem na alta ou na baixa burguesia,
respectivamente, por ali estavam parados imóveis, enquanto
alguns indivíduos isolados iam de um grupo a outro. Todas
aquelas capas cinza ou pretas deixavam que se visse, pelas
costas ou pela frente, a ponta de uma espada ou o cano de um
arcabuz ou mosquete.
Chegando à ponte Neuf, Gondy descobriu haver uma
barreira de controle. Um homem se aproximou dele.
— Quem é? Não o reconheço como um dos nossos.
— Então não reconhece os próprios amigos, meu caro sr.
Louvières — disse o coadjutor erguendo o chapéu.
O rapaz o reconheceu e se inclinou.
Gondy continuou seu caminho até a torre de Nesle,350 onde
percebeu uma longa fila de pessoas que deslizavam ao longo
dos muros. Era como uma procissão de fantasmas, pois
estavam todas cobertas por capas brancas. Quando chegavam a
determinado ponto, pareciam sucessivamente se evaporar
como se a terra se abrisse a seus pés. Gondy se acotovelou
numa quina do parapeito e as viu desaparecer, da primeira à
penúltima.
A última, justamente, ergueu os olhos, provavelmente para
confirmar não estarem sendo observadas e, apesar da pouca
claridade, notou o intruso. Dirigiu-se até ele e encostou-lhe
uma pistola na garganta.
— Calma, sr. de Rochefort — pediu Gondy com um tom
alegre. — Não se brinca com armas de fogo.
Rochefort reconheceu a voz.
— Monsenhor?
— Eu mesmo. E quem são essas pessoas que estão sendo
levadas para as entranhas da terra?
— Meus cinquenta recrutas emprestados pelo cavaleiro de
Humières e que se preparam para o corpo da guarda montada
do rei. Mas o único equipamento que receberam foi essa capa
branca.
— E aonde estão indo?
— Ao atelier de um escultor amigo meu. Estamos
descendo pelo alçapão por onde entram os seus mármores.
— Muito bem — disse Gondy estendendo a mão a
Rochefort, que voltou ao alçapão e fechou a tampa ao descer.
O coadjutor voltou para o arcebispado. Era uma hora da
manhã. Abriu uma janela e se debruçou para ouvir.
Por toda a cidade se espalhava um rumor estranho, inédito,
desconhecido. Sentia-se que algo inusitado e terrível se
passava em todas as ruas, escuras como abismos. De vez em
quando ouvia-se um estrondo como o de uma tempestade que
se prepara ou de vagalhões que crescem. Mas nada muito
claro, distinto ou explicável vinha em mente, como os sons
misteriosos e subterrâneos que antecedem os terremotos.
A obra da revolta se prolongou assim pela noite inteira.
Com o dia amanhecendo, Paris ao despertar pareceu se
assustar com o próprio aspecto. Era como uma cidade sitiada.
Homens armados estavam postados em barricadas, com
olhares ameaçadores e mosquetes no ombro. Expressões de
comando, patrulhas, prisões e até execuções eram o que o
transeunte encontrava a cada passo. Qualquer um com chapéu
de penacho e espada dourada era parado e forçado a gritar
“Viva Broussel!, Abaixo Mazarino!”. Quem se negasse ao
ritual era vaiado, insultado, às vezes espancado. Ainda não
havia mortes, mas estava claro não faltar vontade para tanto.
Barricadas tinham sido erguidas até as proximidades do
Palais Royal. Da rua de Bons-Enfants à da Ferronnerie, da
Saint-Thomas-du-Louvre à ponte Neuf, da rua de Richelieu à
porta Saint-Honoré, mais de dez mil homens armados se
mantinham preparados. Os mais próximos das grades de
proteção gritavam provocações às sentinelas impassíveis do
regimento da guarda, postadas ao redor de todo o Palais Royal.
Como esses soldados ficavam perto dessas grades fechadas, a
situação deles era bastante precária. No meio de tudo isso,
circulavam bandos de cem, de cento e cinquenta ou até
duzentos indivíduos esquálidos, lívidos, esfarrapados
carregando espécies de faixas em que se lia: “Vejam a miséria
do povo!” E por todo lugar em que esses grupos passavam,
gritos frenéticos se levantavam. Como eram muitos os bandos
desse tipo, a gritaria era incessante.
Foi grande o espanto de Ana da Áustria e Mazarino ao
acordarem e serem informados de que a Cité, tranquila na
véspera, despertara febril e agitada. Nenhum dos dois levou a
sério os relatos e disseram só acreditar nos próprios olhos e
ouvidos. Então viram, ouviram e se convenceram.
Mazarino deu de ombros e fez como se desprezasse
plenamente aquele populacho, mas ficou visivelmente pálido
e, trêmulo, correu ao gabinete, escondendo melhor seu ouro e
joias em caixas, além de enfiar nos dedos os diamantes mais
valiosos. Já a rainha, furiosa e abandonada às próprias
decisões, mandou chamar o marechal de La Meilleraie,
ordenando-lhe que se pusesse à frente de quantos homens
quisesse e fosse ver que brincadeira era aquela.
O marechal era normalmente bastante ousado e não
imaginou o pior, imbuído do descaso que os homens de armas
tinham pelo populacho. Convocou cento e cinquenta homens e
quis sair pela ponte do Louvre, mas ali se deparou com
Rochefort e seus cinquenta cavaleiros, acompanhados por
mais de mil e quinhentas pessoas. Não havia como forçar
semelhante barreira. O marechal então nem mesmo tentou
passar e subiu ao longo do rio.
Mas na ponte Neuf ele encontrou Louvières e seus
burgueses. O marechal quis atacar, porém foi recebido a tiros
de mosquete, enquanto pedras caíam como granizo de todas as
janelas. No confronto, ele acabou perdendo três homens.
A tropa bateu em retirada na direção do bairro do Halles,
encontrando, porém, Planchet e seus alabardeiros. As armas
foram apontadas ameaçadoras contra o marechal, que pensou
em passar por cima daquelas capas cinza, mas as capas cinza
não se moveram e teve, o militar, que recuar na direção da rua
Saint-Honoré, deixando para trás quatro de seus guardas que
tinham sido mortos sem muito alarde, por arma branca.
Tomou então a rua Saint-Honoré, onde encontrou as
barricadas do mendigo da Saint-Eustache, guardadas não só
por homens armados, mas também por mulheres e crianças.
Mestre Friquet, na posse de uma espada e uma pistola que
Louvières lhe dera, havia organizado um bando de pivetes
como ele e fazia uma barulheira dos infernos.
O marechal julgou esse ponto mais vulnerável que os
anteriores e resolveu forçá-lo. Mandou vinte homens atacarem
a pé e derrubarem a barricada, enquanto ele e o restante da
tropa a cavalo os protegeriam. Os vinte soldados seguiram em
linha reta contra o obstáculo, mas lá chegando, de trás das
vigas, de entre as rodas das charretes, do alto dos montes de
pedra, uma resistência terrível se desencadeou e, ouvindo o
barulho, os alabardeiros de Planchet apareceram na esquina do
cemitério dos Inocentes e os burgueses de Louvières na
esquina da rua de la Monnaie.
De La Meilleraie se viu preso entre dois fogos.
O marechal era um bravo e resolveu morrer onde estava.
Devolveu cada pancada e gritos de dor começaram a ser
ouvidos na multidão. Os guardas, mais bem treinados,
atiravam com mais precisão, mas os burgueses, mais
numerosos, os esmagavam debaixo de um verdadeiro furacão
de ferro. Homens caíam à sua volta como teriam caído nas
batalhas de Rocroy ou de Lérida. Fontrailles, seu lugar-
tenente, já estava com o braço quebrado e o seu cavalo levou
um tiro no pescoço, tornando o controle muito difícil, pois a
dor o levava à loucura. Enfim, o oficial estava naquele
momento supremo em que mesmo o mais corajoso sente um
calafrio passar por suas veias e o suor gotejar pela testa,
quando, de repente, a multidão se abriu do lado da rua Arbre-
Sec, aos gritos de “Viva o coadjutor!”.
Trajando sobrepeliz episcopal e capuz de malhas, Gondy
apareceu, passando tranquilo através do tiroteio e distribuindo
à volta suas bênçãos, com a mesma placidez de quando
conduzia a procissão de Corpus Christi.
Todos caíram de joelhos.
O marechal o reconheceu e correu até ele.
— Tire-me daqui, pelo amor de Deus, ou meus homens e
eu estamos com os minutos contados.
O tumulto era tal que não se ouviria um trovão no céu.
Gondy ergueu a mão e pediu silêncio. Todos se calaram.
— Meus filhos — disse ele —, houve engano quanto às
intenções do sr. marechal de La Meilleraie. Ele se compromete
a, voltando ao Louvre, pedir pessoalmente à rainha a liberdade
do nosso Broussel. Não se compromete, marechal? — Gondy
acrescentou, virando-se para o militar.
— Diacho! Como não me comprometeria?! Não esperava
me livrar tão fácil.
— Ele nos dá sua palavra de fidalgo — confirmou Gondy.
O marechal ergueu a mão mostrando concordar.
“Viva o coadjutor!”, gritou a multidão. Alguns inclusive
acrescentaram “Viva o marechal!”, mas todos retomaram em
coro: “Abaixo Mazarino!”
A multidão abriu passagem e o caminho pela rua Saint-
Honoré seria o mais curto. As barricadas foram afastadas e o
marechal, com o restante da tropa, bateu em retirada,
precedido por Friquet e seus meliantes, uns fingindo bater
tambor, outros imitando o som de clarins.
Foi quase uma marcha triunfal, só que assim que os
guardas passavam, as barricadas voltavam a se fechar. O
marechal se sentia bem intranquilo.
Enquanto isso, como foi dito, Mazarino estava em seu
gabinete, organizando seus negócios pessoais. Mandara
chamar d’Artagnan, mas no meio de todo aquele tumulto não
esperava vê-lo, pois o tenente não estava de serviço. Após dez
minutos, no entanto, ele apareceu à porta, com seu inseparável
Porthos.
— Ah! Entre, entre, monsou351 d’Artagnan — exclamou o
cardeal —, são muito bem-vindos, o senhor e o seu amigo. O
que está acontecendo nessa maldita Paris?
— O que está acontecendo? Nada bom, monsenhor! —
disse d’Artagnan balançando a cabeça. — A cidade está em
plena efervescência e, ainda há pouco, eu e meu amigo, sr. du
Vallon aqui presente, seu servidor, atravessando a rua
Montorgueil, apesar do meu uniforme ou talvez até por causa
dele, fomos cercados e queriam que gritássemos “Viva
Broussel!”. E monsenhor quer saber o que mais queriam que
gritássemos?
— Por favor, por favor.
— “Abaixo Mazarino!” É quase uma senha.
Mazarino sorriu, mas ficou bem branco.
— E gritaram?
— É claro que não! Não estava disposto e o sr. du Vallon
anda meio gripado, também não quis. E então, monsenhor…
— Então o quê?
— Basta olhar meu chapéu e minha capa,
E ele mostrou quatro buracos de bala na capa e dois no
feltro do chapéu. Já nas roupas de Porthos, uma alabarda havia
rasgado um dos lados e um tiro de pistola cortado ao meio o
penacho.
— Diavolo! — exclamou o cardeal, pensativo e olhando os
dois amigos com ingênua admiração. — Eu teria gritado!
Nesse momento o tumulto soou mais próximo.
Mazarino enxugou a testa, olhando ao redor. Tinha muita
vontade de ir até a janela, mas teve medo.
— Dê uma olhada para ver o que está acontecendo, sr.
d’Artagnan — ele pediu.
O mosqueteiro foi até lá, despreocupado como sempre.
— Ai, ai, ai! O que é isso? O marechal de La Meilleraie
está voltando, mas sem chapéu. Fontrailles tem um braço na
tipoia, alguns guardas estão feridos, cavalos sujos de sangue…
Ei! O que estão fazendo as sentinelas? Estão apontando armas,
vão atirar!
— Têm ordem de atirar se o povo se aproximar do Palais
Royal — disse Mazarino.
— Se atirarem, está tudo perdido! — exclamou
d’Artagnan.
— Temos as grades.
— As grades?! Não duram cinco minutos. Vão ser
arrancadas, entortadas, trituradas! Não atirem, diabo! —
berrou d’Artagnan abrindo a janela.
Apesar do aviso, que no meio do tumulto nem foi ouvido,
três ou quatro tiros de mosquete foram disparados e houve
depois uma terrível saraivada. Ouviam-se as balas ricochetear
na fachada do palácio. Uma delas passou por baixo do braço
de d’Artagnan e foi espatifar um espelho em que Porthos se
admirava satisfeito.
— Ohimé!352 — exclamou o cardeal. — Um espelho de
Veneza!
— É cedo ainda para se lamentar, não vale a pena, pois é
provável que dentro de uma hora não reste mais espelho
nenhum no Palais Royal, sejam de Veneza ou de Paris.
— Mas o que fazer? — perguntou, trêmulo, o cardeal.
— Ora, é simples! Entregar a eles Broussel, já que
insistem. Que diabos foi querer com um conselheiro do
Parlamento? Não serve para nada!
— E o sr. du Vallon, também acha? O que faria?
— Devolveria Broussel — confirmou Porthos.
— Venham comigo, venham. Vou falar disso com a rainha.
No final do corredor, ele parou e perguntou.
— Posso contar com os senhores, não posso?
— Não damos palavra duas vezes — disse d’Artagnan —,
e já nos apalavramos com monsenhor. Ordenai e
obedeceremos.
— Pois então entrem nesse gabinete e esperem — disse
ele, que deu a volta e entrou no cômodo por outra porta.
51. A insurreição cresce
— Hum…
— Viu? O que acha de dois adversários contra os quais é preciso,
além da tropa de Comminges, dez bons soldados? Não parece, sem
tirar nem pôr, se tratar de d’Artagnan e Porthos?
— Vamos revirar Paris pelo resto do dia — decidiu Athos — e se
até a noite não tivermos notícia deles, tomamos a estrada para a
Picardia. Tenho certeza, graças à imaginação de d’Artagnan, que não
vamos demorar a encontrar alguma indicação que esclarecerá as
dúvidas.
— Reviremos então Paris atrás de informação. Comecemos por
Planchet, que pode ter ouvido alguma coisa sobre o antigo patrão.
— Pobre Planchet! Você fala como se nada tivesse acontecido,
mas é possível que tenha sido trucidado. Com seus guerreiros
burgueses em campo, pode ter havido um massacre.
Como a hipótese era bem provável, foi com preocupação que os
dois amigos entraram em Paris pela porta do Temple e dirigiram-se à
praça Royale, onde esperavam ter notícias daqueles pobres
burgueses. Mas a surpresa foi grande, vendo-os a beber e conversar,
inclusive o capitão, ainda acampados na praça e possivelmente
pranteados por seus familiares, que teriam ouvido o canhão de
Charenton e os imaginavam no calor da batalha.
Athos e Aramis procuraram se informar com Planchet, mas ele
nada soubera sobre d’Artagnan. Quiseram levá-lo com eles, mas o
capitão não podia deixar seu posto sem ordem superior.
Somente às cinco horas todos voltaram para suas casas, dizendo
que chegavam da batalha; não tinham perdido de vista o cavalo de
bronze de Luís XIII.497
— Com mil trovões! — praguejou Planchet ao entrar na sua loja
da rua dos Lombardos. — Fomos vergonhosamente batidos. Nunca
vou me refazer disso!
84. A estrada para a Picardia