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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE: CLÍNICA E CULTURA
TRANÇAS CLÍNICAS:
uma perspectiva sobre o corpo do analista no encontro transferencial
Porto Alegre
2023
LUÍSA PELLEGRINI COMERLATO
TRANÇAS CLÍNICAS:
uma perspectiva sobre o corpo do analista no encontro transferencial
TRANÇAS CLÍNICAS:
uma perspectiva sobre o corpo do analista no encontro transferencial
Banca Examinadora
À Andrea Ferrari que deu corpo a esse texto com seus apontamentos, sugestões, dire-
cionamentos e, principalmente, com sua aposta, que, nas rasuras desse trajeto, puderam
movimentar a pesquisa. Sem suas orientações e biblioteca, esse texto não existiria;
Aos professores da banca pela presença: é só com seus corpos que esse momento fez-se
possível;
À minha família, os que me pegaram no colo e, na minha testa, fizeram o sinal da cruz,
dos que já foram da vida e em vida, porque “as crianças são levadas pela mão de gente
grande”;
Aos colegas de profissão, de instituição e de grupo de pesquisa NEPIs, principalmente
às amigas Larissa Moraes e Maria Eduarda Tenório, pelos encontros e, especialmente,
desencontros, que me colocaram em encruzilhadas a repensar meus trajetos;
À Eduarda Xavier, pela leitura atenta e delicada, que acolhe e ensina, fundamental nos
caminhos que esse texto percorreu e que eu pude percorrer nesses anos de ser “um ombro
amigo e meu abrigo”;
À Cristine Kapustan, pela transformação de um encontro de trabalho em amizade, que me
fez aprender, em cena, o lugar do corpo e me faz seguir pensando a clínica “todo dia de
manhã quando tomo meu café amargo”;
Ao Lucas Barros de Assis que, pela janela lateral, me apresentou os seus mistérios, dando
a esse texto sua formatação, "sem querer descanso nem dominical";
À Julia Castilhos que, durante esses dois anos, muito suportou minhas palavras ao vento,
do deserto às cachoeiras, e me faz voltar a sonhar que “o mundo inteiro está naquela
estrada ali em frente”;
À Judith que "me sorriu latindo";
A todos que, com ou sem paciência, emprestaram seus ouvidos às minhas elucubrações
que ainda não tinham a materialidade da escrita. Pelo monotemático da minha narrativa,
sou réu confesso e, por isso, eu peço perdão;
A todos meus pacientes e seus familiares, que me ensinaram que a vida precisa de movi-
mento e que o encontro na análise pode ser a terceira margem do rio, capaz de movimentar
o próprio conceito de movimento, o que também me arrebate em movimentos;
Ao meu corpo que, apesar de sua miopia, me permite correr (não sei do quê, nem pra
onde), mas que, nesses dois anos, me fez chegar neste texto.
Resumo
Esta dissertação nasce de questões suscitadas por encontros transferenciais na clínica com
crianças diagnosticadas com o Transtorno do Espectro Autista. Dentre as particularidades
deste trabalho, deparei-me com diversos questionamentos, especialmente, pelos momen-
tos de recusa ao outro e de buscas pela repetição sensorial. Recolhendo da clínica interro-
gantes, essa pesquisa toma no a posteriori da experiência, elementos para pensar o modo
como tais atendimentos colocam em primeiro plano o corpo. O recurso metodológico
encontrado foi a elaboração de três narrativas, que tiveram como cenário três sessões de
diferentes pacientes, com a intenção de voltar o olhar ao corpo do analista nessas cenas.
As narrativas foram analisadas pela construção de três categorias: maneirismos, agencia-
mentos e transversalidade. Em uma proposta de debater teoricamente aspectos decantados
dos escritos clínicos, articulando os conceitos apresentados na primeira parte do trabalho
para dar subsídios à discussão das cenas, há uma apresentação da instituição e do serviço
onde ocorreram os atendimentos clínicos. Na sequência, o texto adentra a teoria psica-
nalítica aproximando-se do conceito de transferência, para prosseguir aprofundando os
preceitos da psicanalista Piera Aulagnier. Destaquei seus escritos pela relação que ela
estabelece entre o aparelho somático e psíquico, ao tomar o corpo enquanto central para a
psique inaugurar e sustentar, ao longo da vida, seu trabalho de representação. Em paralelo
a isso, a proposta da existência de três processos de funcionamento do aparelho psíquico
- originário, primário e secundário - permite uma leitura metapsicológica capaz de dar
consistência à discussão das cenas clínicas. Isto é, permitiu uma chave de interpretação
sobre a recusa ao outro e uma fixação em determinados estímulos sensoriais relacionadas
a forma de representação pictográfica - própria do processo originário. O reconhecimento
da diferença substancial existente entre minha posição como analista e a das crianças ins-
tigou a hipótese quanto a necessidade de uma modificação em mim para estar disponível a
esse encontro transferencial. Para tal, encontrei no perspectivismo ameríndio a suposição
de uma forma de produção de uma torção do modo a sustentar pela diferença a dispo-
nibilidade que passa pela corporeidade. A teorização de Viveiros de Castro possibilitou
um caminho de leitura pela via da produção de um estado de devir. Na direção de arti-
cular a minha experiência clínica e as duas teorias, esse texto buscou estruturar-se como
um trançado. A aposta aqui é que essa trança possa aprofundar a sustentação teórica da
pesquisa em paralelo à clínica, apontando, através dessa articulação, direcionamentos que
produzam contornos ao objeto dessa pesquisa: o corpo do analista na transferência.
Palavras-chave: Psicanálise. Perspectivismo ameríndio. Piera Aulagnier. Transtorno do
Espectro Autista. Corpo do analista.
Abstract
This master thesis was born from questions raised by transference encounters in the clinic
with children diagnosed with Autism Spectrum Disorder. Among the particularities of
this work, I came across several questions, especially because of the moments of re-
fusal to the other and of searches for sensory repetition. Collecting testimonials from
the clinic„ this research takes in the experience a posteriori, elements to think about how
such treatments put the body in the foreground. The resource found was the elaboration
of narratives, from three sessions of different patients, with the intention of turning the
look to the analyst’s body in these scenes. In order to provide context for the discussion
of the scenes, I introduce the institution where the clinical care took place. Next, the text
enters psychoanalytic theory approaching the concept of transference, to continue deep-
ening the precepts of the psychoanalyst Piera Aulagnier. I highlighted her writings for
the relationship she establishes between the somatic and psychic apparatus, by taking the
body as a central element of the psychic apparatus to inaugurate and sustain, throughout
life, its work of representation. In parallel to this, the proposal of the existence of three
processes of functioning of the psychic apparatus - originary, primary and secondary -
allows a metapsychological reading capable of giving consistency to the discussion of
clinical scenes. Thus, it allowed a key to interpretation about the refusal of the other
and a fixation on certain sensory stimuli related to pictographic representation - typical
of originary process. The recognition of the substantial difference between my position
as an analyst and that of children instigated the hypothesis of a necessity of a personal
adaptation in order to be available for this transference encounter. For this, I found in
Amerindian Perspectivism the assumption of a form of production of a twist in order to
sustain by difference the availability that passes through corporeality. Viveiros de Castro’s
theorization made possible a path of reading through production of a state of becoming. In
order to articulate my clinical experience and these two theories, this text sought to struc-
ture itself as a braid. The narratives were analyzed by constructing three categories taken
from Viveiros de Castro’s theory: mannerisms, agencies and transversality. In a proposal
to theoretically discuss aspects decanted from clinical writings, articulating concepts pre-
sented in first part of work between perspectivism and psychoanalysis. The bet here is
that this braid can deepen theoretical support for research parallel to the clinical context,
pointing out through this articulation directions that produce contours to the object of this
research: the analyst’s body in transference.
Keywords: Psychoanalysis; Amerindian Perspectivism; Piera Aulagnier; Autism Spec-
trum Disorde; Analyst’s body.
Sumário
1 Introdução .....................................................................................................................7
2 Por CER de lá..............................................................................................................11
2.1 Prelúdio ..............................................................................................................11
2.2 A instituição.......................................................................................................13
2.3 Público................................................................................................................14
3 Um tom de transferência ............................................................................................19
3.1 Todos os olhos se voltam para mim .................................................................19
3.2 Você fala que sim, que me compreende...........................................................23
3.3 Eu e você, Temos coisas até parecidas.............................................................28
4 Nascimento de um corpo ............................................................................................35
4.1 Origem de um sujeito........................................................................................36
4.2 Origem de um aparelho psíquico.....................................................................46
4.3 Origem de um aparelho somático....................................................................64
4.4 Origem de uma clínica......................................................................................77
5 Tudo ainda é tal e qual e nada é igual .......................................................................89
5.1 Perspectivismo ameríndio ................................................................................89
5.2 Uma psicánalise transversal...........................................................................104
6 Corpo no e do texto: metodologia............................................................................115
6.1 A Pele: pesquisa psicanalítica e seus derivados............................................115
6.2 As vísceras: da teoria às narrativas ..............................................................118
7 As narrativas e suas reverberações .........................................................................127
7.1 Acrobata...........................................................................................................128
7.2 São João ...........................................................................................................131
7.3 Prendedor ........................................................................................................132
7.4 Maneirismos ....................................................................................................135
7.5 Agenciamentos.................................................................................................142
7.6 Transversalidade .............................................................................................152
8 Considerações finais: um texto que trançou corpo................................................166
Referências....................................................................................................................171
7
1 INTRODUÇÃO
suas questões. Além de abrir novos interrogantes no que concerne a como dar sequência a
essa disponibilidade, não apenas no trabalho com o desenho, mas também a outras formas
de endereçamentos na clínica com a infância, como brincadeiras e jogos.
É nesse ponto que surge o desejo pela continuidade e aprofundamento desse pro-
blema de pesquisa, como uma possibilidade de tomar questões que afetam o atendimento
de crianças de forma ampla e colocam nesse alguns interrogantes sobre o lugar do analista
no processo e as resistências que ali podem emergir. Entretanto, nesse momento, com a
pretensão de não reduzir essas investigações às produções gráficas. É justamente nessa ar-
ticulação que é possível condensar as interpelações que decantaram dessa pesquisa como
a intenção de investigar, a partir da experiência, por quais vias, o analista que trabalha
com crianças se mantém disponível à multiplicidade desses encontros transferenciais e,
por quais modos, esses o atravessam. Há uma associação entre ambas pesquisas, contudo,
também é possível situar uma tentativa de deslocamento, pois antes o foco estava colo-
cado na produção do paciente, e, nesse outro momento, passa ao trabalho do analista. A
amplitude desse objetivo tornaria impossível tocar tal questão, por isso, o direcionamento
dessa dissertação foi pensar o modo como alguns atendimentos com crianças que recusam
o outro e permanecem em repetições sensoriais produzem efeitos no corpo do analista.
O deslocamento do escopo da pesquisa para fora da questão do desenho produziu,
em paralelo, a necessidade da busca por situar diferentes arcabouços teóricos. Nessa dire-
ção, persegui, pela via da psicanálise, autores que pudessem promover uma consistência
metapsicológica a essa pergunta. Em tal percurso, deparei-me com a psicanalista Pi-
era Aulagnier3 e encontrei em sua obra uma multiplicidade de conceitos que permitiram
à dissertação a densidade de uma teoria que opera pela ética da psicanálise e investiga
a articulação entre o aparelho psíquico e somático. Contudo, a intenção por encontrar
diferentes ângulos de debate para a questão promoveu a busca por outro campo, princi-
palmente para pensar a posição do corpo do analista. Nesse percurso, esse texto enlaçou a
metapsicologia de Aulagnier com o perspectivismo ameríndio pela ótica do antropólogo
Eduardo Viveiros de Castro, a fim de discorrer sobre as questões clínicas abordadas. A
3
Apesar das grandes contribuições de Piera Aulagnier à psicanálise, é escasso o acesso a sua obra,
tanto por um reduzido número de edições de seus textos, quanto por poucas tradução ao Português. Em
função disso, muitos dos livros consultados foram de traduções do Espanhol, todas as referências retiradas
desses foram traduzidas por mim. Essa nota pretende esclarecer algumas escolhas utilizadas. Nos livros
de Piera Aulagnier, optei pelas expressão “investimento”, enquanto em algumas traduções do espanhol
a palavra privilegiada foi “catexia”. Quanto ao conceito da representação do processo primário, tanto no
português como no espanhol, encontram-se traduções que utilizam as palavras fantasia e fantasma, por vezes
indistintamente. Em decorrência disso, buscou-se na obra original a palavra utilizada para que no texto
fosse mantido uma só expressão. Desta forma, optei pelo uso da expressão “fantasia”. Além disso mantive
a grafia de alguns conceitos tal como nos textos consultados, isto é, Outro e Eu com letras maiúsculas.
10
sustentação do escrito por essas duas teorias não buscou o estabelecimento de um comum
entre ambas, mas a possibilidade de um tensionamento que produza novos questionamen-
tos.
Na direção de articular as duas teorias e a minha experiência clínica, esse texto
buscou estruturar-se como um trançado. Isto é, uma proposta de enodar esses três fios
que sustentam o trabalho, de modo a associá-los, mas não apagar suas diferenças; em um
movimento constante de sobreposições e retornos. A aposta aqui é que essa trança possa
aprofundar a sustentação teórica da pesquisa em paralelo à clínica, apontando, através
dessa articulação, direcionamentos que produzam contornos ao objeto dessa pesquisa: o
corpo do analista na transferência.
O desejo por perseguir essa investigação teórica e o percurso da escrita dessa dis-
sertação ocorreu concomitante à minha prática clínica. Também é possível afirmar que
foi um modo de encontrar meios de dar vazão ao que vivencio nas cenas de atendimento.
Efetivamente, é o que havia acontecido no trabalho de conclusão de curso, entretanto,
após tornar-me psicóloga, minha experiência ganhou outras dimensões. Além dos aten-
dimentos no consultório particular, passei a integrar a equipe de uma instituição que é
uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e um Centro Especializado
em Reabilitação Física e Intelectual (CER-II). É dessa experiência que recolho as cenas
clínicas que serão trabalhadas neste escrito. Por isso, na sequência tentarei produzir um
panorama desse espaço e do trabalho lá realizado para dar a materialidade textual à arqui-
tetura dessa pesquisa.
11
2 POR CER DE LÁ
"Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
...
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada caminhando a esmo"
Lamento Sertanejo, Gilberto Gil
2.1 Prelúdio
A temperatura está baixa, uma neblina fina cobre essas ruas pouco movimentadas,
mas largas - com duas pistas de cada lado e um canteiro no meio. Uma praça no meio
da quadra apenas aumenta a sensação de se estar em um espaço aberto quase desabitado.
Essa rua que se inicia na avenida principal da cidade precisa ser percorrida por completo:
três quadras, em um passo lento, até que logo antes da última esquina se vê um muro de
concreto com uma inscrição de quatro letras - APAE.
Quando na frente da instituição, um portão eletrônico é aberto e assim passando
os muros que separam o pátio da calçada, é possível ver o tamanho do prédio, que nessa
primeira vista, pode parecer maior do que quando se adentra o espaço. Há um aspecto
curioso nesse externo - a falta de janelas, o que dá a quem está chegando ainda mais
certeza sobre onde está a entrada, em sua porta de vidro posicionada à direita do prédio.
Nesses quase 30 metros que separam a rua da entrada, você, visitante, se tiver sorte
já pode começar a experimentar um pouco do trabalho ali realizado e se perguntar o que
estão esses adultos de jaleco fazendo com crianças nesse pátio que parece sem grandes
atrativos. Uma pracinha interditada do lado esquerdo de quem entra, mostra que obras
estão acontecendo e as mudanças são constantes e lentas.
Logo antes da porta de vidro, agora só se você for um dos visitantes mais atentos
percebem uma listagem do que podemos chamar das filiações desse espaço. Temos um
totem do Sistema Único de Saúde - SUS - o pai público - e uma lista de diversas empresas
e pessoas que realizaram doações - o pai privado. Que a atenção a esse fato germine como
uma discussão política, capaz de, como na adolescência, levantar questionamentos a esses
dois pais. Tanto no papel da iniciativa privada na saúde pública, como na pergunta de a
12
Maio de 2021
2.2 A instituição
Para iniciar esse escrito, optei por tentar situar o espaço no qual atuo enquanto
psicóloga. Localizada na região metropolitana de Porto Alegre, é uma Associação de
Pais e Amigos dos Excepcionais, instituição tradicional no atendimento a pessoas com
deficiência no Brasil, mas que, nessa cidade, nunca foi ligada à área de educação, e sim
à secretaria de assistência social, tendo sempre como escopo de trabalho atendimentos
clínicos. No ano de 2018, foi conveniada ao Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto
um Centro Especializado de Reabilitação II - Física e Intelectual, um serviço de média
complexidade do governo do estado. Atualmente, é referência para três municípios da
região, ou seja, recebe encaminhamento e atende usuários desse território ampliado.
A particularidade da coexistência de ambos os contratos com os órgãos públicos
implica algumas exigências burocráticas para a manutenção dos tratamentos e o estabe-
lecimento de balizas que sustentam a entrada, permanência e alta dos pacientes, todos
baseados na diretriz de reabilitação intelectual e física pelo CER e na regulação da pre-
feitura pela APAE. Aqui, irei, brevemente, apontar alguns pilares do trabalho realizado
no vínculo com o SUS, especialmente pela reabilitação intelectual, pois é esse o contrato
que rege os atendimentos que compõem as cenas clínicas que fazem parte desse escrito.
Além disso, é com esses usuários que trabalho majoritariamente, esse é também o vínculo
do maior número de pacientes que estão, atualmente, no serviço. Entretanto, não realiza-
remos um extenso percurso ou levantamento da política, uma vez que esse não é um dos
objetivo da pesquisa, mesmo reconhecendo que há especificidades na atuação do psicó-
logo junto às políticas públicas, a extensão e o devido aprofundamento nessas questões
desviaria o escrito do que se propõe e pode ser encontrado de forma mais elaborada em
outras pesquisas.
Outro aspecto importante a ser pontuado é que grande parte da primeira equipe
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2.3 Público
Apesar de não existir uma restrição de idade, o público que chega para atendi-
mento no CER Intelectual é, em sua grande maioria, composto por crianças - idades me-
nores têm prioridade no momento de conseguir a vaga após o encaminhamento. Adoles-
centes e adultos com questões similares a dessas crianças são direcionado normalmente a
15
4
Nesse momento, o Sistema Único de Saúde utiliza o CID-10, Classificação Estatística Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, como manual diagnóstico. Apesar da existência de uma
atualização recente, a décima primeira edição no ano de 2022.
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paralisia cerebral, mas, posteriormente, também foi incluída, a essa, a condição de porta-
dor de TEA. A lesão teve como consequência uma deficiência visual, e havia uma recusa
à utilização de óculos, além da existência de um padrão hipertônico com a contração
involuntária dos músculos. As outras duas crianças não têm uma condição orgânica diag-
nosticada associada ao TEA. Os três possuem algumas manifestações sintomáticas simi-
lares, como a seletividade alimentar e a presença de movimentos estereotipados, além de
uma recusa ao outro e, no momento dos atendimentos narrados, a não apropriação da fala
enquanto uma forma de comunicação.
As imagens que serão montadas nas três cenas clínicas também pretendem exem-
plificar a multiplicidade do público que tentamos expor ao longo desta secção. Ou seja,
são três situações clínicas que, por mais que digam de um recorte de todo trabalho rea-
lizado no CER, em alguma medida, refletem, pelas diferenças e similaridades, um pano-
rama dos pacientes assistidos pela instituição. Porém, não poderia deixar de apontar que,
para além disso, os recortes clínicos que serão trabalhados formam um mosaico de ques-
tões que me tocaram, especialmente, no ponto dessa pesquisa a movimentar o pensar no
que se produz no corpo da analista na cena. Justamente, para considerar os desdobramen-
tos da minha implicação enquanto clínica/pesquisadora nas escolhas pelos recortes que
estão aqui incluídos, é que, na sequência, o debate irá teoricamente imergir na retomada
de um percurso sobre a transferência para avançar nesse problema.
19
3 UM TOM DE TRANSFERÊNCIA
Mesmo em um momento que pode ser considerado tão inicial na literatura psi-
canalítica, há um acento colocado no que é a relação transferencial pela implicação do
analista nesse fazer. Portanto, está posta a insuficiência de um trabalho que não considere
a leitura da transferência, ou seja, Freud pontua a necessidade de o analista estar advertido
do lugar que ocupa e, a partir disso, pautar suas intervenções.
Dessa forma, a transferência tem então uma dupla dimensão do que é colocado
pelo analisando - enquanto reprodução de vivências, projeções, atuações - na figura do
analista e o modo como esse responde a tal relação. Esse aspecto é importante para
pontuar o quanto ambas as figuras que compõem um tratamento montam esse processo.
O que podemos recolher, por exemplo, do texto “Construções na análise”, no qual Freud
(1937/2021b) discorre sobre o trabalho realizado, colocando uma questão sobre qual é a
tarefa do analista durante esse percurso.
ser apreendido com simplicidade - pois tanto a concordância quanto a negativa podem ser
polissêmicas. O que desloca a importância do que é dito para os desdobramentos possíveis
que o analisando pode dar à associação, idealmente, rememorando algo de sua história
(Freud, 1937/2021b). A ênfase nessa continuidade associativa é o que o psicanalista
propõe como o trabalho de construção produzido na análise.
Mesmo circunscrevendo a regra fundamental à associação livre por parte do pa-
ciente, respondida pela atenção flutuante da parte do analista, Freud constantemente ao
longo da sua obra destaca que a ocorrência de uma análise se dá apenas com o estabe-
lecimento da transferência. Essa questão fica evidente, por exemplo, no texto “Sobre
psicanálise ’selvagem”’ (1910/2021f), no qual o autor discorre criticamente sobre como
uma interpretação deve ser realizada. Ou seja, o autor tangencia os modos que permitem
que uma intervenção tenha efeitos passíveis de deslocamento na clínica, nesses destaca a
necessidade do estabelecimento da transferência.
Ou seja, não basta que a interpretação do analista tenha um valor de verdade in-
consciente, pois faz-se necessário que esse enunciado esteja incluído em uma série que
compõe a relação transferencial.
Desse modo, somos levados a considerar que essa afirmativa freudiana - em pa-
ralelo com o que foi recortado anteriormente do texto “Construções na análise”(Freud,
1937/2021b) - coloca em destaque que o enunciado tanto do analista quanto do anali-
sando ganha consistência, apenas na medida em que, é sustentado pela transferência. O
psicanalista, portanto, expõe a essencialidade desse encontro para que possa ocorrer o
tratamento. O que pretendemos sublinhar, neste momento, é como, nessa dinâmica, estão
implicados ambos que compõem esse conjunto, concepção que está nos textos freudianos.
Para dar sequência a essas balizas do conceito de transferência, retomamos o texto
freudiano “Sobre o início do tratamento” (1913/2021e), para ressaltar uma passagem so-
bre o uso do divã na análise que pode contribuir para adensar um pouco mais o debate
22
aqui proposto.
Na leitura integral dessa passagem, há dois aspectos colocados que apontam para o uso
do divã: o insuportável para Freud de “todos os olhos” se voltarem a ele; e como manter o
contato visual pode produzir consequências nas associações do paciente. Ou seja, assim
como evidenciado sobre a transferência, aqui também analista e analisando são incluídos
nesse cálculo que resultará na formação do setting. É interessante considerar que a pre-
sença dos dois argumentos no texto indicam a não prevalência de um e a composição de
ambos na construção da técnica. As frases grifadas mostram como Freud (1913/2021e)
não se furtou de inserir suas particularidades na teoria psicanalítica, o que talvez coloque
a cada um, que pretende trilhar este fazer, a necessidade de voltar seus olhos para perceber
os próprios limites. É possível considerar que a questão freudiana destaca um aspecto que
está relacionado ao corpo na análise, como pretende investigar essa pesquisa.
Por uma afinidade teórico-clínica, esse escrito tem como alicerce a psicanálise
freudolacaniana, o que não restringe o trabalho a esses dois autores, mas aponta uma base
comum entre o trânsito percorrido nessa dissertação. Ao longo da pesquisa, busquei o
aprofundamento na teoria de Piera Aulagnier que encaminhou a outro direcionamento
a teorização psicanalítica aqui utilizada. Entretanto, o aspecto a ser ressaltado nos três
autores serve para sustentar o conceito de transferência como um único fenômeno no qual
estão implicados ambos personagens de uma análise. Ou seja, promove o embasamento
para contornar a pergunta da pesquisa à posição do analista em cena.
Ao longo de sua obra, Freud utiliza o termo contratransferência para conceituali-
zar a implicação do analista no processo, demarcando, desse modo, as reverberações do
que é colocado pelo paciente transferencialmente naquele que o atende, ou, como dito
por Freud (1910/1996a), “o que surge como resultado da influência do paciente sobre os
seus sentimentos inconscientes” (p.150). Entretanto, o trabalho aqui em questão pretende
investigar, justamente, o que há de comum e que marcas fazem a composição da posição
do analista na transferência, não como um resultado do que é posto pelo paciente, mas que
aponte na direção de colocar em questão o desejo do analista. Isto é, em uma suposição
23
Para trazer ao debate aqui proposto a perspectiva lacaniana, iremos nos deter em
seu texto “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1958/1998a), no qual
o psicanalista aprofunda algumas de suas teorizações sobre a transferência. Para com-
preender esse escrito, é importante antes situá-lo no tempo em que foi produzido. Es-
pecialmente, considerar que há ali uma intenção crítica de colocar em questionamento
a maneira como a transmissão da psicanálise e a clínica ocorriam na época. Isto é, o
problemático que o autor considerava ser um afastamento dos preceitos freudianos. Para
argumentar nessa direção, Lacan (1958/1998a) põe em evidência, na discussão, a posi-
ção do analista levantando diversos questionamentos sobre essa, justamente para afastar
o processo de uma análise de um percurso que permaneça restrito “a seu Eu (do analista)
e à realidade”(p. 597).
Lacan (1958/1998a) retoma as concepções expostas em "A Interpretação dos so-
nhos” para formular como, segundo Freud, o sonho seria a metáfora do desejo, de forma
a articular, a partir da linguística, o modo como essa estrutura se desenrola. Desenrolar
esse que ocorre também pela impossibilidade do desejo de encontrar uma satisfação, o
que desloca a questão, não para na intenção de dar um fim a ele, mas sim em encontrar
um modo de sustentá-lo na continuidade dessa busca. Tal apontamento tem consequên-
cias no que o psicanalista compreende como a direção do tratamento em uma análise,
pois, partindo da insatisfação inerente ao desejo, o trabalho, de modo algum, deve ten-
tar resolver esse impossível, pois “a demanda é propriamente aquilo que se coloca entre
parênteses na análise, estando excluída a hipótese de que o analista satisfaça a qualquer
24
Portanto, de forma análoga a Freud, vale considerar que Lacan (1958/1998a) im-
plica o analista, na medida em que, este deve assumir e sustentar o que chama de a posição
“de morto” para não responder à demanda do paciente e assim permitir a permanência da
busca pelo desejo. Metáfora proveniente do jogo de bridge, no qual algumas cartas são
retiradas e, no processo de buscar saber quais cartas estão ali, pode-se encontrar uma res-
posta sobre a continuidade do jogo. Pois, o estabelecimento da transferência passaria pelo
ato de colocar para a pessoa do analista uma busca por satisfação. Esse, ao não responder
com seu ser, pode fazer emergir as questões do paciente - que estão sendo transferidas à
figura do analista - como dito por Freud (1895/2016). Apesar de nomeado como morto, há
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uma agência em incorporar essa posição, uma vez que passa por um retirar-se do lugar im-
putado a si nesse encontro, uma “abnegação imposta”, como afirma Lacan (1958/1998a).
Além disso, o psicanalista pontua que não é propriamente o ato de produzir frustrações no
paciente, mas sim que, na medida em que ele não é gratificado e não tem sua suposta de-
manda atendida, o que é colocado em evidência faz com que “reapareçam os significantes
em que sua frustração está retida” (Lacan, 1958/1998a, p.624).
Para que ocorra tal dinâmica é necessário fundar um laço transferencial; o que
ocorre pelo processo de imputar um saber ao analista. Nesse laço, o paciente é capaz de
construir o endereçamento de uma demanda, ou seja, torna-se um modo do analisando de
colocar esse outro no lugar daquele que sabe sobre seu sofrimento e, assim, buscar uma
resposta para livrá-lo deste. Entretanto, há um descompasso entre o que o analista pode
oferecer e o pedido do analisando a esse:
Se eu o frustro, é que ele me demanda alguma coisa. Que eu lhe responda, jus-
tamente. Mas ele sabe muito bem que isso seriam apenas palavras. Tais como
as recebe de quem quiser. Ele nem tem certeza de que me seria grato pelas boas
palavras, muito menos pelas ruins. Essas palavras não são o que ele me pede. Ele
me pede ... pelo fato de que fala: sua demanda é intransitiva, não implica nenhum
objeto (Lacan, 1958/1998a, p.643).
o desejo é aquilo que se manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém dela
mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a
falta-a-ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar
da fala, é também o lugar dessa falta. O que é assim dado ao Outro preencher, e
que é propriamente o que ele não tem, pois também nele o ser falta. . . (Lacan,
26
1958/1998a, p.633).
É esse ponto que Lacan (1958/1998a) destaca para marcar como a posição do
analista é a de quem encarna o Outro, mas é ele próprio também marcado pela falta. O
autor aprofunda, portanto, o argumento da impossibilidade de responder à demanda do
paciente, pois essa seria uma tentativa de tamponar a falta-a-ser do próprio analista. Dito
de outro modo, uma vez que o encontro com o objeto é sempre faltoso, a análise pensada
na direção de uma finalidade ganha um caráter de simulacro de verdade e de imposi-
ção de uma resolutividade, ou seja, em uma suposição do que é a realidade universal e,
consequentemente, produz um apagamento do particular.
Nesse argumento, Lacan (1958/1998a) critica explicitamente proposições contem-
porâneas ao seu texto que apontavam a cura pela via do fortalecimento do Ego e o fim
do tratamento definido pela identificação do paciente com o analista. Questão que o psi-
canalista calcula como problemática pelo caráter de sugestão, na medida em que há uma
suposição do que seria a melhor forma do paciente encontrar respostas e um apego ao que
é da ordem da realidade. Lacan (1958/1998a) expõe como a ênfase teórica nas relações de
objeto tem como consequência um afastamento do que é central em sua concepção - o de-
sejo -, pois este está justamente pautado pela falta e na impossibilidade de se satisfazer no
encontro com o objeto. Que o paciente venha buscá-la não é para Lacan (1958/1998a) um
problema, pois é na medida em que articula essa busca não realizada que pode voltar-se
na direção de reconhecer o próprio desejo.
Entretanto, a problemática para o autor está quando o analista responde como se
não fosse ele próprio marcado pela falta.
ter a demanda ativa produzindo espaço para a busca pelo desejo. “De tanto compreender
um monte de coisas, os analistas em geral imaginam que compreender é um fim em si e
que só pode ser um happy end” (Lacan, 1958/1998a, p.621), entretanto, para sustentar a
ética do trabalho, é necessário um afastamento do analista do seu próprio ser. Ou seja,
uma escuta que não se restrinja ao discurso na direção de montar um sentido da narrativa,
mas de suportar responder apenas da posição de transferência, suspendendo a repetição da
tentativa de tamponar a falta. Isto é, "não vai ter happy end", como diria Tom Zé.
Efetivamente, o discurso serve para manter o espaço à regra fundamental, ou seja,
ele não deve ser excluído porque também é o que sustenta o trabalho analítico, “isso mais
seria um obstáculo, pois todos sabem, os psicanalistas de crianças em primeiro lugar,
que é preciso um bocado de pequenos objetos para manter uma relação com a criança”
(p.623). A continuidade da associação livre se dá na medida em que o analista coloca em
cena sua presença, “que a princípio ela é apenas a implicação de sua escuta, e que esta é
apenas a condição da fala” (Lacan, 1958/1998a, p.624).
Lacan (1958/1998a) discorre sobre como, para dar consistência a essa presença,
há um preço a ser pago pelo analista.
Pagar com palavras, sem dúvida, se a transmutação que elas sofrem pela opera-
ção analítica as eleva a seu efeito de interpretação; - mas pagar também com sua
pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos
fenômenos singulares que a análise descobriu na transferência; - e haveremos de
esquecer que ele tem que pagar com o que há de essencial em seu juízo mais
íntimo, para intervir numa ação que vai ao cerne do ser (Kern unseres Wesens,
escreveu Freud [61): seria ele o único a ficar fora do jogo? (p.593).
"Senhor cidadão
Eu e você
Temos coisas até parecidas"
Senhor cidadão, Tom Zé
É com eles que um psicanalisante, para se fazer autorizar como analista da Escola,
falará de sua análise, e o testemunho que eles poderão colher pelo vívido de seu
próprio passado será daqueles que nenhum júri de aprovação jamais colhe (Lacan,
1967/2003, p.261).
Aulagnier toma esse ponto como problemático e, junto com outros psicanalis-
tas, retira-se da École Freudienne de Paris, esse movimento tem também consequências
teóricas para a autora que em diferentes escritos faz argumentos contrários à posição la-
caniana. Afirmando que tal formalização da École implica a crença em um saber último
que transforma o ato analítico como baliza normalizadora ao colocá-lo como uma prova
a ser conquistada,
esquecendo que qualquer que possa ser o preço que o analista pague no decorrer
de sua própria análise (em des-ser, em depressão ou em angústia) não estará no en-
tanto quite face àquele que vem demandar ser ajudado a reencontrar sua verdade.
Esse não “estar quite” implica que o “avanço da teoria”, muito desejável em si,
permanece coextensivo a uma repetida colocação à prova da experiência clínica e
do saber do analista (Aulagnier, 1967/1990a, p.97).
Decorre desse ponto também atravessamentos que tocam a teorização que a autora
realiza sobre o conceito de transferência, destacando o cuidado necessário de se estar
atento à possibilidade de ocorrerem excessos nessa relação. Em seu livro “Destinos do
Prazer” (1977/2016), Aulagnier discorre sobre o que, em sua concepção, é necessário para
preservar um espaço de análise, investigando quais vias podem romper com o contrato
analítico, por não manterem na relação transferencial o lugar de analista/analisando.
Aulagnier afirma que a transferência parte da relação que o sujeito estabelece com
os objetos e com os outros, transmitindo ao analista notícias do modo como representa o
mundo. Que existam reverberações da transferência capazes de produzir mudanças é o ob-
jetivo do espaço e o que atesta a eficácia de um tratamento. “Que outra coisa nos autoriza
a crer que a experiência analítica alcançou sua meta senão a nova resposta que nós e o ana-
lisando poderemos dar a uma pergunta presente desde a primeira entrevista?”(Aulagnier,
1977/2016, p.151). A tarefa do analista seria romper fixações pulsionais permitindo as-
sim que o sujeito possa exercer uma “função de antecipação de si mesmo” (Aulagnier,
1977/2016, p.19) e assim construir um projeto identificatório para representar-se.
Algumas dessas concepções teóricas serão aprofundadas ao longo desse escrito,
entretanto, para o argumento aqui exposto é interessante recortar os pontos que tocam a
transferência. Partindo do princípio que a função do aparelho psíquico é a de representar
a si e ao mundo, Aulagnier (1977/2016) destaca uma “força alienante”, tendência a aderir
a uma montagem da realidade sem conflitos, que acaba por matar o pensamento presente
tanto em quem é alienado, como em quem aliena. “O encontro alienante-alienado não
deve ocultar-nos que o primeiro projeta sobre o outro e realiza desse modo um desejo
de alienação que se referia e se refere a seu próprio pensamento” (Aulagnier, 1977/2016,
p.37). O exercício do pensamento próprio depende de uma construção de relações de
causalidade que ocorrem também pela capacidade de questionamento. Na alienação, essa
capacidade fica barrada, pois a relação fica de tal forma imbricada que o espaço para o
questionar e para a produção de algo novo é inexistente, ficando o sujeito submetido ao
que lhe aliena. Nessa dinâmica, é estabelecida uma relação de assimetria, na qual uma
das partes exerce um poder sobre a outra.
Esse encontro Aulagnier (1977/2016) define como uma relação que é um protó-
31
Quando esse rechaço já não é sustentado ativamente pelo analista, quando sua es-
cuta, suas interpretações, o objetivo que ele investe nesse projeto compartilhado
que deve ser uma análise já não vem a ajudar ao Eu do analisando a se opor à tenta-
ção de sua própria alienação ante o pensamento e o desejo do outro, passamos dos
caracteres de assimetria necessários à assimetria abusiva (Aulagnier, 1977/2016,
p.222).
investigar quais vias essa implicação assume em casos clínicos que exigem uma maior
disponibilidade do corpo do analista.
O encontro com teóricos que argumentam pela transferência com o recorte de qual
a experiência do analista nessa, é o que dará consistência para a leitura das cenas clínicas
a serem trabalhadas nessa dissertação. Nessa direção, Piera Aulagnier surge como uma
autora a ser aprofundada, uma vez que seu entendimento de transferência, em paralelo
ao que compreende como constituição subjetiva - especialmente, ao lugar que atribui às
experiências corporais -, encaminham a construção desse escrito a uma maior complexi-
dade. Para tanto, é necessário delimitar as balizas do que é uma análise para a autora e de
qual lugar o analista e o analisando atuam.
A análise é uma experiência onde os dois corpos em presença são igualmente ob-
jeto e sujeito da experiência. Poderíamos dizer que o objeto da experiência stricto
sensu é a relação vivida em seu movimento durante seus encontros. Esses dois
sujeitos que se prestam a experiência e que permitem que esta prossiga, ao falar,
ao pensar, ao experimentar os efeitos que resultam disso em seu próprio espaço
psíquico, vão a aproximar-se à posição do experimentador (Aulagnier, 1977/2016,
pp.209-210).
portar que a fonte de prazer para um, seja a fonte de sofrimento para o outro. Como,
por exemplo, a preservação de certos pontos de resistência que provocam prazer no anali-
sando e desprazer no analista, ou momentos de desenlace desses pontos são de angústia do
analisando e prazer do analista. Essas situações produzem espaços de assimetria na trans-
ferência, evidenciando que, em alguma medida, há uma diferença entre o que o analista e
o analisando esperam um do outro (Aulagnier, 1977/2016).
O analisando espera alguém que o livre do próprio sofrimento e o transmita um
novo modo de gozar, já para o analista a espera está colocada em “uma resposta que
ateste a (e a sua) verdade de um discurso teórico” (Aulagnier, 1977/2016, p.211), que
está constantemente posta em dúvida.
O escrito aqui construído também é uma forma de lidar com alguns resíduos trans-
ferenciais ainda não esquecidos. Esses estão colocados na materialidade de uma produção
teórica, que busca reverberar em questionamentos sobre o meu trabalho clínico. Essa é a
potência de uma construção que, em alguma medida, não é finalizada, mas propõe pontos
de articulação ao investigar um fazer transferencial e a teoria. Nessa direção, o texto se-
guirá detendo-se no que são especificidades que estão no corpo do trabalho aqui exposto.
35
4 NASCIMENTO DE UM CORPO
Foi, a princípio, esse interesse por encontrar uma forma de explicar manifestações
nos pacientes adultos, como a busca pela etiologia da neurose, que também construiu
uma consistência para apostar na possibilidade de se realizar o tratamento psicanalítico
com crianças. É instaurada, portanto, uma concepção de que o que acontece na infância
tem consequências na vida adulta, e o reconhecimento de que há sofrimento psíquico nas
crianças. Essas premissas contrariam uma noção desenvolvimentista de que a maturação
ocorre de maneira espontânea e universal, pois há um processo a ser galgado para que
cada um possa se colocar no mundo, o que não ocorre após o nascimento de maneira
natural, mas sim pelas relações que são construídas.
36
Decorreu, desse pressuposto, diversas construções teóricas sobre o que é particular e quais
as especificidades de uma análise com esses pacientes.
Entretanto, para colocar-se para pensar a clínica com a infância, é necessário ter
uma concepção de constituição subjetiva, uma vez que essa é o que sustenta o trabalho
analítico, pois é o que permite fazer uma leitura de qual o momento no qual o paciente
está e do que ocorre na cena do tratamento. Neste sentido, essa seção pretende narrar
teoricamente proposições embasadas na psicanalista Piera Aulagnier, que irão construir
as balizas para, posteriormente, subsidiar um modo de interpretar as cenas descritas e dar
a ver o que compõe meu próprio entendimento do que é o trabalho clínico.
entendimento, em outro texto, Freud (1937/2021b) argumenta que “sem especulação me-
tapsicológica e teorização – quase diria: sem fantasiar – não avançamos nenhum passo
sequer” (p.326). Desse modo, a metapsicologia ganha uma centralidade nas concepções
teóricas freudianas, o que não suspende a importância do trabalho clínico, mas é capaz de
dar uma consistência epistemológica a esse, ao articular um modelo que pretende explicar
o aparelho psíquico.
Da mesma forma, Aulagnier (1975/2001) vale-se dessas proposições freudianas
para articular sua teorização da constituição subjetiva com as explicações metapsicológi-
cas. Nesse sentido, há uma tentativa de delinear, em seu pensamento, o que vai marcando
o lugar do que pretende colocar como
O Eu antecipado pelo porta-voz, esse Eu projetado ... inclusive antes dessa ins-
tância poder advir na psique do infante, esse primeiro Eu que estará investido
pelo identificante é um Eu idealizado. É o porta-voz quem cumpre uma primeira
idealização do Eu do infante (Aulagnier, 1977/2016, p.32).
Tal idealização precisará ser abandonada - tanto pelo identificante, como pelo
identificado - para que o Eu possa investir em idealizações antecipadas, ou seja, no seu Eu
futuro. É nessa dinâmica que o identificante vai sustentando alguns pontos de referência
que se tornarão parte do projeto identificatório do sujeito. Essa função de antecipação
é construída na díade identificante-identificado e garante a existência do Eu, tornando-o
capaz de produzir escolhas de investimento libidinal, para encontrar os caminhos de seu
prazer. Assim, faz-se necessário que o identificante preserve uma idealização do identifi-
40
cado atual, em conjunto com a antecipação deste, “este devir é aquilo pelo meio do qual
o Eu se auto-antecipa” (Aulagnier, 1977/2016, p.23) é o que permitirá “a transformação
dos objetos que sustentarão seu desejo” (Aulagnier, 1977/2016, p.23).
É preciso marcar que o conceito de Eu, para Aulagnier, é uma construção central
de sua teoria que ressalta alguns dos aspectos base de suas proposições sobre a consti-
tuição subjetiva. É justamente a antecipação que sustenta o projeto identificatório e, por-
tanto, que subsidia a existência do Eu. Assim temos que a historicização constitui parte
das representações, pois, na mesma medida que o projeto identificatório narra o sujeito,
o Eu é capaz de construir relações de causalidade que constroem suas representações e
respondem aos questionamentos pela busca de uma apropriação discursiva. A conceitu-
alização da autora sobre o Eu diverge tanto do uso lacaniano, como freudiano, apesar de
utilizar o mesmo termo, o que é afirmado pela própria psicanalista durante sua obra.
Aulagnier (1986/1991) pontua, por exemplo, discrepâncias de seu conceito de Eu
com esse termo presente na segunda tópica freudiana. O cerne da diferenciação está na
importância, que a autora dá à linguagem, em como afirma que o Eu é composto pela sua
historicização de pontos que o representam, ou seja, na construção de seu projeto iden-
tificatório. É dessa forma que o Eu vai se inscrevendo na criança, “desde o começo, em
uma ordem temporal e simbólica” (Aulagnier e Hornstein, 1986/1991, p.369). O termo
freudiano não engloba essa dimensão da antecipação, salientada por Aulagnier. Além
disso, para a autora, não se trata de uma instância que “se localiza entre a realidade e
o Isso, que é o propriamente anímico” (Freud, 1926/2021c, p.220), como afirmado por
Freud. Ou seja, o Eu não seria o que media o conflito do mundo externo com o Isso.
Portanto, é possível localizar diferenças entre os dois psicanalistas na forma como com-
preendem a constituição subjetiva. Freud (1926/2021c) afirma que o Eu é “a camada do
aparelho anímico, do Isso, que foi modificada por influência do mundo externo (da reali-
dade)”(p.220), instância que tem a ambição de unificação e procura resolver as conflitivas
pulsionais com a realidade. Já para Aulagnier (1977/2016), o Eu recolhe do mundo ex-
terno elementos que se tornarão parte de seu projeto identificatório e a consequência disso
é a irrupção “no aparelho psíquico a categoria de temporalidade e, pela mesma razão o
conceito de diferença” (p.20), tanto no estabelecimento do que é a psique e o mundo ex-
terno, como na representação do Eu atual com o Eu antecipado, “a diferença de si mesmo
a si mesmo”(p.20). Permanece, portanto, como uma instância ligada à realidade, entre-
tanto, faz função propriamente na construção da realidade através das representações.
Por outro lado, Aulagnier (1986/1991) afasta-se de Lacan por considerar e res-
41
Uma violência primária, que designa o que no campo psíquico impõe-se desde
o exterior às custas de uma primeira violação de um espaço e de uma atividade
que obedece a leis heterogêneas ao Eu; por outro lado, uma violência secundá-
ria, que abre caminho apoiando-se em sua predecessora, da qual representa um
excesso prejudicial e nunca necessário para o funcionamento do Eu (Aulagnier,
1975/2001, p.34).
Esse primeiro modo de sustentar uma relação de assimetria que não se torne abu-
siva só é possível, segundo a autora, na medida em que o identificante realize suposições
que antecipem também a capacidade de autonomia do identificado, além de colocar em
perspectiva o que o infans ainda não se apropriou. Deste modo, é possível afirmar que
“a oferta prescinde a demanda” (Aulagnier, 1975/2001, p.33), mas essa deve ter uma re-
lação com o que é preciso em cada tempo para a manutenção da vida. Para Aulagnier
(1975/2001), a meta da violência primária é a transmissão de três alicerces para a sus-
tentação do Eu: “o sistema de parentesco, a estrutura linguística, e as consequências que
têm para o discurso os afetos que intervém na outra cena” (Aulagnier, 1975/2001, p.34).
Trata-se então de uma transmissão que dá testemunho da vivência do Eu, do próprio
porta-voz, que pode sustentar o Eu que está em curso.
43
5
A escolha por utilizar a expressão “abusiva” ocorreu pelo entendimento de que todo encontro tem algo
de excessivo e portanto é uma tentativa de marcar essa diferença ou uma pergunta sobre o que acontece
quando o limiar do excesso é transposto.
6
Interessante pontuar que, como colocado nessa passagem, Aulagnier não restringe a violência secun-
dária à relação entre duas pessoas, o que abre para uma dimensão social de considerar como há discursos
instituídos que reproduzem relações de poder ao cercearem as possibilidades de construção de sentido, invi-
abilizando a existência de escolhas outras. A autora aponta para as próprias sociedades psicanalíticas como
instituições que podem exercer a alienação. Efetivamente, essa é uma discussão muito mais profunda do que
o exposto aqui, não sendo o enfoque principal desse trabalho. Entretanto, vale apostar que esse comentário
sirva para pontuar como a dimensão política não pode ser suspendida do trabalho clínico, logo, o analista
não pode ignorar os atravessamentos dos discursos do contexto sócio-histórico no qual está inserido.
44
Isso acontece porque é no processo secundário que ocorre uma tratativa com o
mundo externo. O pensamento é uma via de busca por reencontrar uma experiência de
prazer, e tem como ponto de partida a lembrança de uma primeira satisfação que pro-
cura um investimento em uma nova meta através dos atos motores. Há, contudo, im-
passes nessa dinâmica, pois a intensidade das representações investidas que irão compor
a busca pela satisfação causam desvios nas associações representativas e uma regulação
pela fuga do desprazer. Ou seja, este é outro argumento sobre como o aumento da ener-
gia provoca dificuldades “no estabelecimento de uma ‘identidade de pensamento’”(Freud,
1901/1996b, p.625). O psicanalista afirma que o primeiro modo de funcionamento “não
pode fazer nada senão desejar”(Freud, 1901/1996b, p.624), o que tem como efeito a ne-
cessidade do processo secundário de investir para evitar certas lembranças e assim afastar-
se do desprazer. Entretanto, essa inibição não permite a descarga de excitação, o que faz
com que a energia livre retorne ao inconsciente e busque outra via para atingir sua meta.
Apesar das mudanças teóricas que compõem a obra freudiana, o lugar que as
intensidades dos afetos tem para o autor permanece sendo uma questão fundamental até
seus últimos textos. Em “A análise finita e infinita” (1937/2021a), por exemplo, Freud
discorre sobre a importância do fator quantitativo, inclusive para pensar os limites de
um tratamento psicanalítico, uma vez que “a análise só poderá dispender quantidades
determinadas e limitadas de energias”(p.345). Essa é, portanto, uma questão que não
perde espaço, sendo relançados “motivos para reconhecer a importância suprema do fator
quantitativo, assim como para enfatizar o direito da perspectiva metapsicológica em cada
tentativa de explicação” (Freud, 1937/2021a, p.338).
Aulagnier (1975/2001) utiliza dessa topologia apresentada por Freud para cons-
truir suas próprias proposições teóricas. Especialmente, considerando, assim como o psi-
canalista, que o aparelho psíquico é invadido pelos estímulos capazes de provocar o des-
prazer, pois aumentam o nível de excitação em seu interior. Para Aulagnier (1975/2001),
essa energia livre deve ser investida na construção de representações que irão permitir que
o Eu busque o prazer. Nessa direção, Aulagnier (1975/2001) considera que a psique busca
formas de representar os efeitos dos quais padece ao estar imersa em um espaço que lhe é
externo e, portanto, estranho. Dito de outro modo, o aparelho psíquico procura suspender
46
os excessos de energia, investindo esses para metabolizar o espaço, em que está inserida,
tornando-o representável. Desse modo, viver é propriamente uma experiência contínua
de encontro, provocando um estado permanente de buscar representações do mundo e de
si. “A psique e o mundo se encontram e nascem um com o outro, um através do outro;
são o resultado de um estado de encontro que qualificamos como coextensivo ao estado
de existência” (Aulagnier, 1975/2001, p.30).
Para teorizar sobre as possibilidades e formas que a representação assume, a psi-
canalista retoma a proposta freudiana da existência de duas formas de funcionamento do
aparelho psíquico: o processo primário e secundário. Entretanto, preconiza a existência de
um terceiro modo, que denomina de processo originário. Cada uma dessas formas de fun-
cionamento produzem diferentes modos de representação e de interpretação do mundo:
o pictograma, pelo processo originário, com a lógica em que tudo está referenciado e na
agência do próprio existente; a fantasia pelo processo primário, na qual tudo é um efeito
do desejo do Outro; e o enunciado pelo processo secundário, no qual se estabelece que
pela apropriação do discurso é possível conhecer a causalidade e ter acesso à verdade
(Aulagnier, 1975/2001). Apesar de afirmar uma preponderância do processo originário
no início da vida, seguida pela dos outros dois - considerando o curso do desenvolvi-
mento típico -, Aulagnier pontua que os três permanecem coexistindo com uma diferença
de intensidade. Portanto, a autora afasta-se de uma concepção de tomar a constituição
subjetiva como etapas a serem alcançadas e concluídas, mas sustenta três modos de fun-
cionamento que se articulam e se alternam, sendo possível um deles ser mais hegemônico
em determinado período do desenvolvimento ou em cada sujeito, pelo modo como se está
subjetivado.
No limite, o que está colocado é uma proposta que complexifica o curso da consti-
tuição, pois retoma alguns conceitos correntes da psicanálise, mas também inclui outros,
com um atravessamento metapsicológico evidente. Para dar sequência a conceitualização
da autora, irei discorrer sobre os três processos, com a pretensão de marcar as diferenças
e aproximações entre eles.
assim como para sustentar a compreensão da leitura de Aulagnier. Nesse sentido, optei
por discorrer sobre alguns conceitos freudianos antes de adentrar a relação que a psicana-
lista faz desses. Além disso, ao adentrar na teoria de Aulagnier, percorri a direção “anti-
horária” do funcionamento do aparelho psíquico, ou seja, iniciar pelo processo secundário
para finalizar com o originário. Tal escolha deu-se tanto pelo encontro articulado entre o
teorizado por Freud sobre o secundário e o primário com Aulagnier, mas também como
uma tentativa de propor um maior detalhamento sobre o processo originário, conside-
rando a exigência do entendimento desse para o objetivo dessa dissertação. É importante
situar ainda que ambos os autores, Freud e Aulagnier, possuem uma vasta e aprofundada
teoria psicanalítica composta por similaridades e diferenças. Dessa forma, essa disserta-
ção realiza apenas um recorte de seus pressupostos - o que não é capaz de abranger toda
essa complexidade -, mas que pretende articular hipóteses em relação à clínica da autora,
que serão abordadas posteriormente.
Como descrito na seção anterior, Freud (1901/1996b) discorre sobre ambos mo-
dos de funcionamento dos processos ao descrever seu modelo do aparelho psíquico. O
psicanalista afirma que ambos articulam-se para resolver o impasse entre a energia livre e
o mundo externo. O processo primário como o que busca a descarga das excitações, en-
quanto o secundário procura inibi-la para estar apto a realizar investimentos na atividade
de pensamento. É importante atentar para a forma que Freud (1901/1996b) utiliza para
nomeá-los e como justifica essa.
Dessa forma, é possível ler também no modelo proposto pela teoria freudiana
uma descrição de suas concepções sobre a constituição subjetiva. Freud (1901/1996b)
propõe, portanto, uma cronologia - a qual também podemos inferir certa hierarquia - para
dar conta de explicar a dinâmica do funcionamento do aparelho psíquico. “Os processos
primários acham-se presentes no aparelho anímico desde o princípio, ao passo que so-
mente no decorrer da vida é que os processos secundários se desdobram e vêm inibir e
sobrepor-se aos primários” (Freud, 1901/1996b, p.626). A hipótese arquitetada é então
que, nos primórdios da vida, há uma prevalência do processo primário que passará a ser
barrado pela ação do secundário, na medida em que, o recalcamento se inscreve. Isso
ocorre quando há maior força para a atuação dos modos de funcionamento do secundário,
48
“vêm inibir e sobrepor-se aos primários; é possível até que sua completa supremacia só
seja atingida no apogeu da vida”(Freud, 1901/1996b, p.626). O psicanalista afirma que tal
fenômeno provoca mudanças como a emergência de alguns sentimentos, por exemplo, o
nojo. Além disso, a possibilidade de investimento passa a ser regulada pela exigência do
mundo externo através da manutenção dos afetos. Essa leitura define a importância que a
ação do processo secundário tem na concepção freudiana e na sua proposta sobre a cons-
tituição subjetiva. O que chega ao ponto do psicanalista advogar sobre como uma menor
atuação do processo secundário refletiria em certa inabilidade do sujeito em se relacionar
com o social.
Entretanto, Freud (1901/1996b) ainda afirma que “é verdade que, até onde sabe-
mos, não existe nenhum aparelho psíquico que possua apenas um processo primário e,
nessa medida, tal aparelho é uma ficção teórica” (p.626). Poderíamos acrescentar que o
mesmo ocorre sobre o processo secundário, que não é capaz de ser totalmente eficaz na
inibição dos impulsos do processo primário, uma vez que “o suprimido continua a exis-
tir tanto nas pessoas normais quanto nas anormais e permanece capaz de funcionamento
psíquico” (Freud, 1901/1996b, p.630). Tal argumento aproxima-se das proposições de
Aulagnier, na medida em que prevê a coexistência de mais de um modo de funciona-
mento concomitantemente. Nessa direção, apesar de possuir um discurso que valoriza a
maior atuação do secundário, paralelamente, em mais de um momento de sua obra, Freud
também encurta a distância entre o patológico e o normal. No próprio livro “A interpre-
tação dos sonhos”(1901/1996b), o psicanalista diz supor que todas as pessoas sonham e
que o modo como esses se formam têm raízes comuns ao afirmar que o mundo onírico
é consequência das tensão das forças presentes no processo primário, como produtos do
que é recalcado pela ação do secundário.
É possível, portanto, presumir que a diferença entre os dois modos de funciona-
mento - com um jogo de forças entre eles - é o que forma o aparelho psíquico. Aulagnier
compartilha de tal interpretação ao formular sua teoria que argumenta pela coexistên-
cia dos diferentes sistemas representativos, que mantém suas particularidades no modo
como incidem sobre o aparelho psíquico, ao mesmo tempo que articulam-se entre si e
permanecem em atuação. A autora considera que mesmo o mais precoce dos modos de
funcionamento
Essas serão três línguas faladas pelo aparelho psíquico e a articulação entre elas
irá compor a realidade do sujeito, cada uma respondendo com seu modo de representação.
A psicanalista mantém similaridades com algumas premissas freudianas, especialmente,
na referência aos conceitos de processo primário e secundário. Aulagnier (1975/2001)
parte, por exemplo, da hipótese de que há uma dimensão temporal nas inscrições dessas
formas de funcionamento. Ao considerar que o processo secundário é o que só ganha
uma maior dimensão posteriormente - apesar de já dar notícias de sua existência de modo
bastante precoce. Entretanto, mesmo tendo como base as propostas freudianas, há dife-
renças na forma como a autora discorre sobre as particularidades desses processos e como
atravessam o funcionamento psíquico.
Primeiramente, Aulagnier (1986/1991b) enfatiza que esses processos são modos
de interpretar a realidade, afirmando que a psique decodifica os signos “utilizando chaves
diferentes segundo o momento em que se opera a interação”(p.118). Nesse sentido, é im-
portante marcar que o momento aqui não é referente apenas a dimensão cronológica, mas
de possibilidades particulares de responder a determinadas situações. Dessa forma, a cen-
tralidade da atuação referente ao processo secundário não está apenas na ação de barrar
os estímulos do processo primário - de recalcamento. Ou seja, não está apenas a serviço
de ser uma resposta às tentativas do processo primário de fazer escoar sua energia livre.
A autora recolhe da teoria freudiana a afirmativa de que o secundário é atravessado pelas
referências do mundo externo, contudo, Aulagnier (1975/2001) salienta o modo como tal
atravessamento aproxima a construção da realidade ao discurso cultural sócio-histórico
em que se está inserido. O que a psicanalista enfatiza, portanto, é como a cultura tem
implicações e opera “uma ‘colocação de sentido’ do mundo que respeitará um esquema
relacional” (p.30). Dito de outra forma, é a apropriação da compreensão das leis que
regem determinado espaço-tempo que possibilitam a construção de relações de causali-
dade e estabelecem uma compreensão e entendimento da realidade. Nessa via, Aulagnier
(1975/2001) mantém a centralidade da função em representar a si e ao mundo em sua te-
orização, o que no processo secundário que está diretamente relacionado com o discurso
social, no qual se ancora cada sujeito.
Para Aulagnier (1975/2001), o processo secundário inclui o Eu em um contexto
que é compartilhado entre aqueles que dividem um mesmo discurso social. Por esse
motivo, tal modo de funcionamento está presente muito precocemente, uma vez que o
porta-voz, em seu ato de violência primária, está transmitindo algumas colocações em
50
sentido próprias do processo secundário, pois ele mesmo é atravessado por esse. Ou seja,
é inerente ao discurso da violência primária, enunciado pelo porta-voz, uma tentativa de
empregar sentido às representações do bebê.
Por isso diremos que o que caracteriza a estrutura do Eu é o ato de impor aos
elementos presentes em suas representações - tanto tratando-se de uma represen-
tação de si mesmo como do mundo - um esquema relacional que está em conso-
nância com a ordem de causalidade imposta pela lógica do discurso (Aulagnier,
1975/2001, p.26).
os elementos, que permite que a realidade comum possa ser conhecida e, além disso,
questionada. Uma colocação a prova que pode manter pontos de certeza ou produzir novas
buscas de sentido. É com o processo secundário, portanto, que “a psique pode recusar, ou
modificar e reinterpretar” (Aulagnier, 1986/1991b, p.123) os discursos da cultura, assim
como, os ideais antecipados pelo porta-voz. Sendo assim, é possível perceber como o
projeto identificatório se apoia no discurso social com ferramentas para questioná-lo.
A possibilidade de afastar-se ou aproximar-se dos ideais é o que permite a ocor-
rência de ações de escolha e por isso da existência do Eu. É a inscrição da noção de
exterioridade e do sentido estar na associação entre os elementos que dá viabilidade à ca-
pacidade do Eu de escolher. Portanto, é na medida em que o sujeito reconhece um outro
e pode questioná-lo, que irá estabelecer sua própria relação nos encontros tanto com o
mundo quanto com o próprio corpo, ou seja, construir enunciados que serão o produto
de suas representações. Dessa forma, irá se desenhando a “relação sujeito-sociedade,
indivíduo-conjunto, discurso singular-referente cultural” (Aulagnier, 1975/2001, p.18).
A violência primária atua nessas intersecções, ao antecipar um Eu que tenha a
possibilidade de escolha, e, por esse motivo, diferencia-se da violência secundária. Essas
antecipações são infladas de sentidos, dessa forma, é válido afirmar que é o porta-voz
o responsável pelas primeiras incidências do processo secundário no infante. Aulagnier
(1975/2001) ressalta a brevidade do tempo para o surgimento do processo secundário,
apesar da longa distância até a compreensão de toda complexidade da associação entre
os elementos nas construções de causalidade. Além disso, é importante destacar que tal
afirmativa não significa que, uma vez que a manifestação do processo secundário é reco-
nhecida, esse modo de funcionamento será único ou mesmo hegemônico no aparelho psí-
quico. A coexistência entre os três processos será uma constante ao longo da existência,
por mais que tenham diferenças entre a predominância de um deles em determinado mo-
mento e modo de subjetividade. Nesse sentido, Aulagnier (1975/2001) aponta uma crono-
logia que define a constituição subjetiva, e paralelamente, mantém um argumento de que
esse processo não pode ser lido como etapas que são atingidas e concluídas de um modo
desenvolvimentista. A psicanalista coloca que as três formas de conhecimento da psi-
que “se sucedem no tempo, sem por isso excluírem-se entre si” (Aulagnier, 1986/1991b,
p.122). A autora ainda ressalta como esse modo de pensar o aparelho psíquico é impor-
tante para a psicanálise tomar o sujeito em toda sua complexidade, sem restringir o seu
entendimento sobre esse ou mesmo o trabalho de uma análise à construção de sentido, ou
seja, ao puro funcionamento secundário (Aulagnier, 1986/1991b).
53
A escritura que fará uso o primário possui este metasigno (quero dizer, o signo
“relação”) necessário para construir o fantasma do desejo presente entre o que
fantasmatiza e o desejo imputado ao outro, remodelado em sua posta em cena,
uma relação de fusão, de possessão, de domínio dos espaços, mas um só desejo
todo poderoso e sempre realizado (Aulagnier, 1986/1991b, p.143).
Dessa forma, o processo primário inaugura a cisão entre o que é o mundo externo
e a psique. É, portanto, no estabelecimento dessa diferenciação que o que lhe acontece é
percebido como uma imposição do desejo desse externo. Ou seja, passa-se a interpretar
a realidade pela lente de um estado de submissão à agência de um outro que é onipotente
sobre o sujeito e o mundo.
Para traçar o surgimento do processo primário, faz-se necessário considerar as
consequências implicadas na dependência do bebê decorrentes de sua condição de ima-
54
prazer, também interpreta como se esse fosse o responsável pelas sensações desprazero-
sas. Ou seja, enquanto no processo secundário, a representação construída do enunciado
procurava uma causa inteligível pela associação entre os elementos, o processo primário
toma as sensações percebidas prazer/desprazer, como efeitos de um desejo externo. Por
essa razão, Aulagnier (1975/2001) nomeia a metabolização própria do processo primário
como fantasia, afirmando que, enquanto o processo secundário é a colocação de sentido, o
primário seria a colocação em cena, justamente, por ser a marca inicial do reconhecimento
de um mundo fora, no qual a psique está inserida.
Diferentemente da teoria freudiana, Aulagnier (1975/2001) não compreende o
processo primário como a mais precoce das formas de funcionamento psíquico, ainda
que esteja presente em um momento extremamente inicial da vida. A percepção da exis-
tência de algo que lhe é externo ocorre, primeiramente, pela ação do porta-voz, presença
privilegiada que incide sobre a realidade do bebê a ponto de suspender a representação
de que tudo é uma pura continuidade de si, ou seja, “o originário é respondido pelo ‘se-
cundário’, que governa a conduta da mãe, encontro cujo primeiro efeito será o começo
da ação do processo primário” (Aulagnier, 1975/2001, p.70). Dessa forma, é possível
considerar que a violência primária, ao antecipar a construção de sentido para o bebê, é
capaz de impor uma presença que inaugura a compreensão de um mundo externo. Isto é, a
violência primária modifica as sensações percebidas pela psique produzindo a existência
de uma heterogeneidade.
Manifestações heterogêneas mas que a psique vai não apenas incluir na mesma
ideia de realidade, senão entre as quais vai começar por postular uma mesma re-
lação de causa-efeito. Na organização desse fragmento de realidade que o sujeito
habita e investe, assim como no funcionamento de seu corpo, o sujeito lerá pri-
meiro as consequências do poder exercido pela psique de outros que o rodeiam e
que são os suportes privilegiados de seus investimentos (Aulagnier, 1986/1991b,
p.119).
seu apaziguamento é representado nessa fantasia como efeito direto da ação do Outro.
A construção da fantasia produzida pelo processo primário inaugura uma realidade em
que a separação da psique com o mundo está colocada, pois ao reconhecer a incidência
do desejo do Outro, “a presença e a ausência serão interpretadas como consequências da
intenção deste"(Aulagnier, 1975/2001, p.76). Ou seja, é inaugurada a percepção da exis-
tência do objeto, mas esse está submetido à onipotência do desejo do externo. Diferen-
temente do processo secundário, esse modo de funcionamento não constrói a associação
entre os elementos do discurso social como formadora de sentido. Dito de outro modo, o
discurso não é reconhecido como parte de uma cultura - o que ocorrerá posteriormente -,
mas como uma consequência de um desejo que não é o seu.
Da mesma forma que argumenta sobre a atuação do processo secundário na psi-
que, Aulagnier (1975/2001) sustenta a coexistência das três formas de funcionamento
psíquico. Nesse ponto, discorre sobre como a percepção de um desejo externo, capaz de
regular a existência, não abandona o sujeito,
... pelo contrário, a obra de colocar em cena própria do primário, que testemu-
nha a produção fantasmática, tem o poder de infiltrar-se no campo do secundário,
ainda que este último se encontra dominado por um trabalho de ‘colocar sentido’
originado na instância chamada Eu (Aulagnier, 1975/2001, p.18).
A psicanalista afirma que o processo primário coloca em cena uma realidade que
está regida pelo desejo dos outros, o que fica marcado na infância como uma onipotência
dos adultos mais próximos da criança. Entretanto, mesmo após a passagem para uma vida
adulta com o reconhecimento de uma ordem simbólica capaz de representar os elementos
a partir de suas relações de causalidade,
... cada vez que um acontecimento do mundo vem a golpear e a transformar nossa
existência, o azar raras vezes ocupa um lugar no registro das causas. Ainda
que o sujeito esteja disposto a reconhecer a “naturalidade” do acontecimento,
não por isso reconhecerá a “naturalidade” de seu encontro com este (Aulagnier,
1986/1991b, p.119).
uma relação, por mais que a significação ainda não tenha ganho toda a profundidade pre-
sente no processo secundário. “Se, em um primeiro momento, o primário produz imagem
de coisa, em um segundo, a esta vem se agregar a imagem palavra como ‘significação
primária’, e não como signo linguístico” (Violante, 2001b, p.33). Portanto, algumas con-
cepções que estão na teoria freudiana apenas no funcionamento secundário, aparecem -
mesmo que de forma incipiente - em um momento anterior no processo constitutivo para
Aulagnier. É possível considerar que isso ocorre também pela incidência de um processo
ainda mais precoce que o primário na teorização da psicanalista: o originário.
No entanto, para além disso, Aulagnier reconhece desde os primórdios da vida
uma forma possível de representação como produto do processo originário. A autora, a
partir dessa proposição inovadora na psicanálise, parte de que, para o aparelho psíquico
ser capaz de produzir o que Freud chama de representação-coisa (trabalho do processo
primário), é necessário um recurso de metabolização anterior. Esse seria a construção de
uma imagem da coisa corporal que é a representação pictográfica, ou seja, um reflexo de
si mesmo.
A escritura do originário não pode dar uma forma diferente do que a corporização
figurativa proposta pelo pictograma, única figuração que a psique pode forjar de
suas próprias experiências afetivas, de seu próprio espaço, suas próprias produções
(Aulagnier, 1986/1991b, p.145).
Se se aceita que, nessa fase, o mundo - o exterior a psique - não existe fora da
representação pictográfica que o originário forja acerca dele, se deduz que a psique
encontra o mundo como um fragmento de superfície especular, no qual ela vê seu
próprio reflexo (Aulagnier, 1975/2001, p.51).
nário, por sua parte, se encontra sempre dominado pela lei do ‘tudo ou nada’ do amor ou
do ódio” (Aulagnier, 1975/2001, p.60). Ou seja, ao sentir prazer busca-se o movimento
de fusão - sendo esse a expressão da pulsão de vida no processo originário -, e o rechaço
ao sentir desprazer - correlato a pulsão de morte.
Uma vez que o processo originário é o que está fora do discurso falado, também
é complexo considerar como é possível tomá-lo em um processo analítico. Entretanto,
a psicanalista atribui um valor clínico importante a essa forma de funcionamento psí-
quico, pois afirma que, por exemplo, nos momentos de uma crise é possível ter notícias
da representação pictográfica. Não ficando restrito a esse aspecto, fora de tais eventos, é
possível perceber que “os efeitos se manifestarão sobre o Eu mediante esses sentimentos
indefiníveis” (Aulagnier, 1975/2001, p.62). O que aponta para a necessidade de também
reconhecer que há algo no sujeito que escapa ao sentido:
Não creio trair a complexidade do processo analítico se digo que sua meta é con-
seguir iluminar as razões e sem razão responsáveis do compromisso elegido por
um sujeito particular, e as consequências que dele resultam em sua relação com o
corpo, com os outros, consigo mesmo (Aulagnier, 1986/1991b, p.123).
sensoriais em zonas erógenas e, para que isso aconteça, é necessário que se experimente
um prazer mínimo, assim como um desprazer mínimo (Aulagnier, 1977/2016).
No mais precoce da vida, o único modo que há de representar esse prazer e des-
prazer é pelo pictograma, o que significa que “a única formulação que se poderia apli-
car seria a seguinte: a realidade é autoengendrada pela atividade sensorial” (Aulagnier,
1986/1991b, p.121). Ou seja, a realidade é indissociável dos efeitos sobre o soma, para-
lelamente a isso, nessa “primeira fase, é impossível separar no binômio zona-objeto com-
plementário o agente e o objeto do prazer” (Aulagnier, 1975/2001, p.127), desse modo, o
infante toma os afetos como consequências de sua onipotência.
Aqui estaria a base na qual se apoia todo sujeito ao longo da vida, que está na inte-
ração da atividade orgânica e a forma como essa toca o psíquico, pois se repete a relação
de amor e ódio - as ações de fusão e aniquilamento, de Eros e Tânatos. Essa repetição é
contínua e constante ao longo de toda existência, pois essas duas experiências inaugurais
de como os afetos são representados irão pautar os trilhos do desejo - entre o imperativo
ter que desejar e deixar de desejar (Aulagnier, 1977/2016). A infinita reatualização da
experiência de prazer ou desprazer ampara todos os modos de funcionamento psíquico,
entretanto, há uma diferença fundamental do pictograma para a fantasia e o enunciado,
pois a representação do processo originário é impossível de ser conhecida pelo Eu. Por
isso, Aulagnier (1986/1991b) argumenta que, nos momentos de uma crise, ocorre uma
“força de atração do originário” que faz com que o Eu fique siderado, perdendo a con-
sistência de seu projeto identificatório. Tomado pelo pictograma, ficam enfraquecidos os
signos de relação, e o sujeito encontra-se cerceado pelo postulado do autoengendramento
e a representação fixada no conjunto zona-objeto complementar.
dário, em todos os casos nos quais essas produções têm relação com a colocação
em cena e a colocação em sentido de um afeto (Aulagnier, 1975/2001, p.72).
Os efeitos somáticos pelos quais a vida do mundo abre brecha em todo novo orga-
nismo não são um fenômeno transitório, só param com nossa morte. Freud falava
de uma “fonte somática” do afeto; eu sugeriria animada a expressão de “fonte
somática da representação psíquica do mundo” (Aulagnier, 1986/1991b, p.145).
para a psique. “Antes que o olhar se encontre com um outro (ou com uma mãe), a psi-
que se encontra e se reflete nos signos de vida que emite seu próprio corpo” (Aulagnier,
1986/1991b, p.142). Tal indistinção entre o tempo do nascer e a emissão de estímulos
sensoriais pelo corpo não significa que não exista a necessidade de um trabalho psíquico
para representá-lo. Aulagnier argumenta inclusive que são as funções somáticas as res-
ponsáveis pela inauguração do que é a vida propriamente dita.
Há, no próprio corpo, uma exterioridade do aparelho psíquico, que permite a “co-
locação em vida” e, ao mesmo tempo, que exige a representação. Por exemplo, Aulagnier
(1975/2001) argumenta que “a percepção da necessidade abre caminho até a psique graças
a uma representação que põe em cena a ausência de um objeto sensível, fonte de prazer
para o órgão correspondente” (p.51). Articulando assim as exigências orgânicas à inscri-
ção psíquica, a não igualdade entre necessidade e pulsão não significa que entre ambos
não exista uma relação ou “uma dependência efetiva e persistente no registro do repre-
sentado” (Aulagnier, 1975/2001, p.50). A experiência de desprazer - pela necessidade -
e de prazer - de saciar a necessidade - é a condição essencial da capacidade da psique de
investir no aparelho somático propriamente dito, e essa é condição base para a existência,
“não esquecemos que se viver exige que certos objetos sejam passíveis de investimento e
investidos, há dois objetos cujo o investimento é uma condição igualmente vital: o sujeito
e seu corpo” (Aulagnier, 1977/2016, p.61).
Dessa forma, a psicanalista argumenta que ambos são indissociáveis e igualmente
importantes, entretanto, o corpo também é um espaço heterogêneo à psique e, por essa
razão, torna-se necessária a realização de um trabalho do aparelho psíquico do ato de
representar e do ato de representá-lo concomitantemente. Nesse sentido, o corpo é mais
um lugar, no qual é necessária a construção de uma relação. “O corpo ocupando o lugar
de outro preserva para a psique a última possibilidade de conservar o signo ‘relação’ em
seus ‘alfabetos’, signo indispensável para que se organizem as construções do primário
e do secundário” (Aulagnier, 1986/1991b, p.135). Portanto, não é apenas o processo
originário o responsável pela articulação das sensações somáticas, mas também as três
formas de funcionamento do aparelho psíquico que são atravessadas pelo corpo. No texto
“Nascimento de um corpo, origem de uma história” (1986/1991b), Aulagnier discorre
67
sobre a existência de três discursos sobre o corpo que coexistem e encadeiam-se ao longo
da vida, cada um associado a um dos processos: originário, primário e secundário.
o corpo, “assim como a nossa relação com a realidade, são função da maneira
como o sujeito ouve, deforma, e permanece surdo ao discurso do conjunto” (Au-
lagnier, 1986/1991b, p.123). É, portanto, a articulação entre os três processos que
incidirá sobre o aparelho somático. Cada vez que algo do corpo se apresenta,
como, por exemplo, uma enfermidade, é com o conjunto desses três que o sujeito
poderá responder, mesmo que as representações do processo primário e originá-
rio permaneçam não acessíveis à consciência, diferente do pensamento, próprio
do secundário. A seu lado e sem que possa ter conhecimento disso, o processo
Da mesma forma que é desse modo que os três processos articulam-se, esses tam-
bém são os pilares da construção do corpo enquanto um lugar de identificação. Isto é, a
historicização que compõe o projeto identificatório do Eu também deve ser pensada na
sua incidência sobre o aparelho somático. Tanto as experiências sensoriais, quanto o que
é desejado e dito sobre o corpo organizam uma narrativa que o sujeito irá tecer ao longo
da vida. Essa teorização de Aulagnier faz parte de seus pressupostos sobre o que sustenta
a existência do Eu em cada sujeito. Ou seja, sobre o corpo também é necessário que
exista a construção de uma história, pois, apenas dessa forma, é possível que esse seja um
espaço no qual a psique possa realizar suas inscrições, dando curso às funções do apare-
lho psíquico, uma vez que, “o Eu não pode habitar nem investir um corpo despossuído
da história do que viveu” (Aulagnier, 1986/1991b, p.134). A construção de uma história
identificatória será uma história libidinal, visto que ela também se fundamenta nas sen-
sações somáticas de prazer e desprazer. Nessa via, aqui temos, de forma concomitante,
tanto a formação das zonas erógenas, quanto do corpo como local de identificação.
Para que essa história seja traçada, é necessário o estabelecimento de um signo de
relação com o corpo: só assim pode “ocupar o lugar de aquele pelo qual e ao qual ‘suce-
dem acontecimentos’, e não o lugar do acontecimento mesmo” (Aulagnier, 1986/1991b,
p.133). Consequentemente, para que exista uma biografia é preciso que exista um bió-
grafo capaz de distinguir-se, ou seja, a inauguração da relação do espaço psíquico com o
espaço somático é o que possibilita uma articulação entre esses e, portanto, a construção
de uma história. Dessa forma, é válido afirmar que a ação dos processos primário e secun-
dário permite a existência desse signo de relação e, logo, a existência desses dois espaços.
69
Entretanto, não é possível desconsiderar a ação do originário, não só por essa dar subsídio
à inscrição dos outros dois processos, mas também por seguir representando, através do
pictograma, as sensações somáticas. Esses três colocados em movimento proporcionarão
a efetiva presença de um corpo relacional, no qual a psique poderá atuar com a “função de
mensageiro de suas manifestações somáticas, e igualmente ler nas respostas dadas a esse
corpo mensagens que lhe estariam sendo dirigidas” (Aulagnier, 1986/1991b, p.133). Ou
seja, investir em representações que compõem não só uma narrativa do que já lhe aconte-
ceu e do que lhe acontece somaticamente, mas também a incidência de um desejo sobre
o corpo, assim como, o desenrolar de uma busca pela satisfação, pois “todo investimento,
seja qual for o agente, tenta obter um estado de prazer” (Aulagnier, 1977/2016, p.20).
Para se trilhar um percurso nessa direção, torna-se essencial considerar a importância,
para a psicanalista, da possibilidade de eleição do Eu - que não pode estar fora da relação
que esse estabelece com o próprio corpo.
Por sua vez, essa eleição causal decidirá o lugar que ocupará o corpo (seu nas-
cimento, seu porvir, sua morte futura) em uma historização do processo identifi-
catório. O Eu não pode ser senão produzindo-se seu próprio biógrafo, e em sua
biografia deverá dar lugar aos discursos com os quais fala de seu próprio corpo e
com os quais o faz falar para si (Aulagnier, 1986/1991b, p.129).
esses pontos de certeza possam, ao mesmo tempo, ser maleáveis o suficiente para que o
sujeito suporte as mudanças inerentes à vida. O trabalho psíquico para manter o ato de
se identificar com o próprio corpo atua, portanto, em duas frentes, aparentemente contra-
ditórias, pois precisa tanto encontrar uma constância, quanto tolerar a inconstância sem
que nenhum dos dois pontos fique frágil no limite de romper as identificações do Eu.
Um pêndulo tênue, mas essencial para amparar o projeto identificatório, dando curso a
historicização do Eu ao longo de toda sua vida.
Uma vez que essa história foi escrita, exigirá a periódica inversão de uma parte dos
parágrafos, será necessário o desaparecimento de alguns e a invenção de outros,
para culminar em um trabalho de reconstrução, de reorganização de seus conteú-
dos e diante tudo de suas causalidades, deve permanecer aberta cada vez que isso
se faça necessário. Esta versão se mantém instável, e, só por isso, pode o sujeito
assegurar-se de sua própria permanência, sem deixar de aceitar as inevitáveis mu-
danças físicas e psíquicas que se sucederão enquanto a morte não vier a dar-lhes
um fim (Aulagnier, 1986/1991b, p.129).
A presença desse outro tem lugar para suprir a imaturidade biológica no nasci-
mento e de atender às exigências orgânicas necessárias para a sobrevivência. Entretanto,
não fica restrita a isso, pois há uma dimensão do atravessamento de sentido que é indis-
sociável do afeto transmitido, mesmo que a apropriação efetiva do sentido ocorra apenas
ao longo da constituição subjetiva. Por essa razão, Aulagnier (1975/2001) pontua como é
impreciso estabelecer o momento inaugural da atuação do processo secundário ou primá-
rio, mas que ambos atuam, mesmo que de forma incipiente, em um tempo bastante inicial
da vida em articulação com as sensações produzidas pelo aparelho somático.
Ou seja, a psicanalista considera que é também pela violência primária que os afe-
tos serão transmitidos, permitindo que as experiências sensoriais ganhem uma comple-
xidade, tanto de causalidade, na posterior percepção do externo, quanto da possibilidade
da construção de um saber sobre essas. Já no âmbito do originário, a psique pode recha-
çar ou tomar para si as excitações do aparelho somático representadas como um prazer
ou desprazer autoengendrados, mesmo quando são decorrentes de ações do porta-voz.
Aulagnier (1986/1991b) ressalta a necessidade de preservar a relação entre o corpo psí-
quico (a produção pictográfica), o relacional e o emocional, pois reitera que “essa relação
permitirá a colocação em forma e a colocação em cena da representação do corpo que a
criança construirá” (p.154).
Aulagnier (1986/1991b) afirma que o porta-voz tem uma dupla função: a de reco-
nhecer as necessidades do estado somático e a de antever ali a presença de um Eu futuro
que será capaz de escolher por si mesmo seus desejos. A forma como o porta-voz age
sobre esse corpo de quem cuida está marcada por um “conjunto de fatores que organizam
sua maneira de viver seu investimento sobre a criança” (Aulagnier, 1986/1991b, p.153).
Ou seja, a psicanalista afirma que a manutenção da vida - sustentada pelo porta-voz -
está entrelaçada ao projeto identificatório, pois irá tomar das experiências sensoriais in-
formações a serem decodificadas para a psique do infante, “decodificação, parcialmente
arbitrária e sempre singular” (Aulagnier, 1986/1991b, p.153), isso permitirá que o porta-
voz prossiga atuando nessa função, levando em consideração as mudanças necessárias
a cada momento. Dessa forma, o infante poderá sustentar suas próprias representações,
mesmo que, a princípio, estejam antecipadas pela função do porta-voz.
1986/1991b, p.153). Dito de outro modo, o que é lido nesse corpo legitima os afe-
tos percebidos pelo próprio agente do cuidado e atravessa a forma como este irá reagir
frente às manifestações somáticas da criança, determinando assim seu comportamento,
ou seja, “o conjunto daqueles seus atos que irão modificar o entorno da criança” (Aulag-
nier, 1986/1991b, p.153). Em paralelo a esse modo de ser afetado pela sensibilidade do
infante, é necessário que o porta-voz mantenha uma “reserva teórica” ou um momento de
“pausas emocionais” para ser capaz de modular o estado emocional desse encontro - entre
o infante e o outro. Com isso é capaz, por exemplo, de “não antever a morte no horizonte
em qualquer enfermidade ou a desnutrição em cada mamadeira rechaçada” (Aulagnier,
1986/1991b, p.154). Dessa forma, pode manter presente um “corpo do saber” que está
em articulação com os estados emocionais, nem alheio, nem subjugado a esses.
Considerando toda a complexidade de tal relação, a psicanalista afirma como é es-
sencial uma disponibilidade nas ações desse cuidado que, inclusive, envolve motivações
inconscientes - sobre o lugar dessa criança e do porta-voz enquanto criança e cuidador.
Isso porque “esse encontro vai exigir uma reorganização de sua própria economia psí-
quica, que deverá estender a esse corpo o investimento que até então gozava unicamente
o representante psíquico que o precedeu” (Aulagnier, 1986/1991b, p.151). Ou seja, é pre-
ciso que quem atua como porta-voz seja capaz de realizar um trabalho psíquico de seu
próprio Eu para assumir o lugar de “ser, para o infante, o enunciante e o mediador privi-
legiado de um ‘discurso ambiental’, daquele que transmite, sobre uma forma pré-digerida
e pré-modelada por sua própria psique” (Aulagnier, 1975/2001, p.34). A psicanalista
afirma que, culturalmente, essa é uma posição assumida pela mãe, existindo um discurso
que parte da prerrogativa de que ela deva ocupar tal função, entretanto, também afirma
que o porta-voz não deve estar restrito a uma só figura7 .
A atuação do porta-voz é extremamente complexa pelo lugar essencial que a re-
lação identificante-identificado tem na concepção de Aulagnier do que é o processo de
7
Apesar da autora incluir em seu texto essa ponderação sobre a possibilidade e, quiçá, necessidade da
circulação do lugar de porta-voz entre mais de uma pessoa, durante sua obra, atribui a mãe essa função.
Além disso, não há uma consideração sobre uma diversidade das possibilidades de maternidade, que não
restrinja essa ao biológico, ou a inclusão de uma outra figura a acompanhar a mãe que não seja nomeada
como ‘pai’. O que pode ser interpretado como um atravessamento da heteronormatividade na teoria. Entre-
tanto, pelo meu entendimento de que há uma viabilidade de construir uma chave de leitura nesses conceitos
que ampliem tal normatividade que está presente na escrita da autora, optei, nesse texto, por buscar recolher
de seus constructos possibilidades de expandir esses sem restringi-los nesses aspectos que entendo como
normativos, inclusive, para assim tencionar esses próprios. Afinal, quando se coloca em perspectiva toda a
complexidade dos conceitos de porta-voz ou de violência primária é bastante ilusório ou idealizado supor
que esse esteja a cargo de uma só pessoa que poderá sustentá-lo constantemente. Por essas razões, a termi-
nologia utilizada durante esse escrito privilegiou os termos “porta-voz” e “identificante”, por acreditar na
importância da forma como os conceitos são nomeados e na possibilidade de que essa forma de mudança
possa suspender, em alguma medida, a reprodução de uma normatividade.
74
constituição subjetiva. A psicanalista ainda afirma que a psique do porta-voz cumpre uma
função de prótese para a psique do infante, posição essa “comparável a do peito, enquanto
extensão do corpo próprio, por se tratar de um objeto cuja união com a boca é uma neces-
sidade vital, mas também porque esse objeto libera um prazer erógeno, necessidade vital
para o funcionamento psíquico” (Aulagnier, 1975/2001, pp.37-38). Ou seja, é o encon-
tro que ocorre nessa relação que permite a manutenção da vida, orgânica e psíquica do
sujeito. Nesse sentido, a experiência efetiva do encontro com o outro é o que sustenta a
articulação entre dois Eus, fundamental para a existência do projeto identificatório. O ar-
gumento de Aulagnier vai na direção de apontar como a incidência desse processo produz
reverberações nos dois lados desse encontro, ou sobre como quando um afeto é percebido
por um, invariavelmente, transmite algo para o outro.
A partir do momento em que a psique pode e deve pensar seu corpo, o outro e
o mundo em termos relacionais, começará esse processo de identificação que faz
com que todo lugar identificatório incida sobre a dialética relacional entre dois
Eus e que toda mudança em um dos polos repercuta sobre o outro (Aulagnier,
1986/1991b, p.135).
Há uma transmissão que é feita corpo a corpo, através dos componentes somáticos
de cada um, ou seja, no momento do encontro, a emoção sentida não fica fora dele, “uma
mão que nos toca sem prazer não provoca a mesma sensação que uma mão que sente
prazer ao tocar-nos” (Aulagnier, 1986/1991b, p.153). Importante acrescentar a esse fato
a indissociabilidade da emoção8 e do prazer/desprazer, “os sentimentos acessíveis ao Eu
são, em efeito, ora fonte de prazer, ora fonte de sofrimento: falar de um sentimento que
não nos provocaria nem prazer, nem sofrimento é um absurdo” (Aulagnier, 1977/2016,
p.146). Nesse sentido, a emoção torna cognoscível ao Eu o prazer ou o desprazer experi-
enciados, justamente, através dos efeitos que esses têm no aparelho somático.
No entanto, não é apenas o encontro identificante-identificado que é colocado pela
psicanalista nesses termos relacionais. Quando discorre, por exemplo, sobre um processo
de análise, Aulagnier (1977/2016) afirma que é essencial a esse percurso “a presença de
momentos em que uma experiência de prazer é compartilhada por ambos, e que impõe
necessariamente a presença de outros momentos nos quais se compartilhará igualmente
8
No texto “Nascimento de um corpo, origem de uma história” (1986/1991b), Aulagnier justifica a utili-
zação do termo emoção argumentando por esse não ter uma conceitualização no campo da psicanálise, ela
encontra em seu uso maior liberdade para incluir suas próprias reflexões sobre essa palavra. Nessa direção,
a define como “a parte visível desse iceberg que é o afeto, e, portanto, as manifestações subjetivas desses
movimentos de investimento e contrainvestimento que o Eu só pode apreender por resultar para ele em fonte
de emoção” (p. 130).
75
e poder sentir prazer com eles. Para alcançar esse fim, há uma mobilização de forças
libidinais de ambos os envolvidos.
Para que um trabalho semelhante possa se efetuar, é preciso que o desprazer, que
invariavelmente se entranhará seja acompanhado também pela presença de mo-
mentos de prazer: caso contrário, não seria possível investir nesse, salvo apelando
a psicopatologia ou dizendo, arbitrariamente, que o analista não está submetido às
leis que regem a economia psíquica de todos os sujeitos (Aulagnier, 1976/1991a,
p.318).
Para atravessar essas vivências, é necessário que o analista sustente não apenas o contrato
que mantém esse como um espaço de não equivalência dos afetos, mas também que atue
na direção do seu saber.
Saber esse que é permeado pelo questionamento, mas que da parte do analista
pode recorrer a “colocação a prova” ou a comprovação, durante o processo, inclusive do
que pode estar no registro do observável como, por exemplo, “o silêncio, as emoções
perceptíveis na voz do sujeito, a tranquilidade ou tensão que sentimos presentes em suas
atitudes corporais” (Aulagnier, 1977/2016, p.94). Novamente, o que pode ser observado,
do que passa pelo aparelho somático, tem um lugar de importância que deve ser pensado
no trabalho clínico, pois, por meio dessa observação e escuta é possível supor sobre a
constituição desse “corpo latente”, com toda sua complexidade. Isso só é possível através
do “que nosso corpo faz visível no registro da emoção e do sofrimento somático” (Au-
lagnier, 1986/1991b, p.128). Aqui há abertura também para pensar nesses dois corpos
que estão colocados em uma análise e de como o encontro transferencial reverbera no
aparelho somático do analista e analisando. Desse modo, é possível desenhar o papel que
o contato entre esses dois Eus tem no pensamento teórico de Aulagnier e como ela não se
furta a considerar a importância do aparelho somático, inclusive, na clínica.
É aproveitando esses aspectos que esse texto pretende seguir seu percurso. Apesar
de, em algumas referências utilizadas, Aulagnier restringir seus conceitos ao que seria o
trabalho com a neurose, a psicanalista também considera a importância da atenção ao
orgânico nas intervenções com outras estruturas ou do que chama de momentos de crise,
como quando afirma a necessidade da linguagem figurativa. Ou seja, de diferentes formas,
há um enlace entre o corpo e o pensamento clínico de Aulagnier, tanto quando considera
a constituição subjetiva, como quando lança luz sobre o trabalho do analista - nó que dá
sustentação à construção teórica dessa pesquisa. Pensando no recorte dos pacientes que
se trata esse escrito, é importante situar como algumas proposições do que foi recolhido
77
da obra de Aulagnier podem dialogar com o fazer clínico atravessado pelo recorte da
infância e da deficiência - público da presente dissertação. É nessa investigação que esse
texto ganha sequência.
a autora, condensou alguns argumentos sobre a potência de pensar a análise com crianças
por essa ótica. Violante (2001a) afirma que, apesar de Aulagnier não ter conduzido uma
análise infantil - assim como Freud -, a mesma tem uma conceitualização metapsicoló-
gica que fornece elementos importantes para a análise de crianças. A proposta do Eu na
teoria de Aulagnier, por exemplo, enquanto um projeto identificatório que é indissociável
da construção temporal, sustenta um pensamento clínico que pode envolver as crianças e
permite incluir na clínica seus cuidadores, como aqueles que podem amparar e antecipar
esse projeto.
O objeto autístico não tem o mesmo lugar, uma vez que não faz a função de um
espaço entre a psique e o mundo, dessa “área intermediária. Da mesma forma, ele não
permite um desenrolar para realizar uma separação que não seja vivenciada como uma
mutilação ao próprio corpo. Nessa direção argumentativa, Marisa Rodulfo (2001) afirma
que “o objeto transicional terá como função a de estabelecer uma ponte entre a subjetivi-
dade em percurso da criança que o cria e a alteridade, é dizer: o outro reconhecido em sua
diferença”(p.81). O objeto transicional tem para a criança o lugar de ser insubstituível,
uma vez que o sujeito está ligado a ele “por sua função na economia libidinal e não pela
sensação que produz” (Rodulfo, 2001, p.82).
É possível sintetizar tais proposições colocando que, quando a ligação ocorre pelo
puro estímulo, o objeto pode ser substituído por outro capaz de provocar a mesma sen-
sação. Apesar da desorganização ao separar-se do objeto autístico, quando o sujeito en-
contra outro capaz de provocar o mesmo estímulo, a repetição volta a ocupar a função
de autoestimulação. Dessa forma, o que Tustin (1975) conceitua é que, quando há a im-
possibilidade de um objeto assumir esse espaço transicional, a existência de um objeto
autístico implica em uma “hipertrofia compensadora dos processos de centralização no
próprio corpo, os quais irão, assim, adquirir todas as características de um sistema fe-
chado” (p. 67), pois determinada sensação ganha um lugar de centralidade para o sujeito.
Ou seja, a psicanalista inglesa realiza uma articulação teórica que enfatiza como ocorre
uma busca fixada por sensações, na qual algo barra a possibilidade do corpo ser marcado
enquanto um conjunto de zonas libidinais. Essas marcas ocorrem na relação, pois é a ar-
ticulação do estímulo com um a mais - a função de determinado objeto como de saciar a
necessidade fisiológica -, o que demanda o estabelecimento do reconhecimento do objeto
como algo externo.
Aulagnier (1986/1991b) relaciona o que é proposto por Tustin ao que concebe
como o funcionamento do processo originário. A psicanalista afirma que a impossibili-
dade de representar de uma forma diferente do que pelo autoengendramento tem como
consequência o apagamento de qualquer relação - seja com o outro ou com o próprio
corpo. Dessa forma, “o prazer não terá por suporte representativo uma fantasia de fusão,
mas acompanha uma atividade autossensorial” (Aulagnier, 1986/1991b, p.167), represen-
81
tação do postulado de autoengendramento. Por essa razão, não é possível que o processo
originário experiencie o autoerotismo, pois não há uma tentativa de encontrar, no objeto, o
estímulo de prazer para sua zona erógena, uma vez que não há distinção entre a psique e o
objeto, o que existe é a zona-objeto. Já a atividade autossensorial fica fixada na repetição
da sensação, preservando a indissociabilidade.
Todo estímulo imprevisto que vem do outro por ser de um espaço do mundo que
já não se percebe como um reflexo do espaço do corpo - será recebido como uma
intrusão que ameaça rompê-lo e destruir esse continente, o único que pode garantir
à psique a preservação de seu espaço e, com isso, de um aparato psíquico incapaz
de sustentar-se no vazio (Aulagnier, 1986/1991b, p.148).
83
modo, barra a conexão com a alteridade e até mesmo consigo mesma - na medida
em que também cerceia as sensações vivenciadas e os modos de representação
da fantasia e do enunciado. Aulagnier (1986/1991b) afirma que essas situações
clínicas “nos ilustram sobre as consequências da catástrofe que representa para
o sujeito o desaparecimento do signo ‘relação’ em seu capital representativo ou,
para ser mais exato, a redução de seu uso a uma forma relacional fixada de uma
vez para sempre, imutável” (p. 146). Entretanto, quanto a esse ponto, parece
existir uma divergência na obra da autora, pois, ao mesmo tempo em que faz
tal afirmativa, a psicanalista também pondera que o desaparecimento completo
de qualquer relação é incompatível com a existência. Portanto, aqui proponho a
leitura de que há uma incidência maior, no autismo, da representação pictográ-
fica, mas entendo que seria temerário qualquer afirmativa que o reduza ao puro
processo originário, não só pelos diferentes modos que o autismo pode se apre-
sentar, mas também por me aproximar mais da compreensão que um apagamento
total da existência do externo não permite a manutenção da vida. Em sua obra,
apesar de não dar muito espaço a nenhum desses argumentos citados, Aulagnier
(1986/1991b) declara que “a eficácia do conceito” do originário só pode ser ates-
tada em situações de crise psicótica, além de relacioná-lo ao funcionamento de
sujeitos autistas. Concomitante a essa proposição, a psicanalista reitera a inexis-
tência de um aparelho psíquico composto por apenas um modo de funcionamento,
seja ele secundário, primário ou originário. Isto é, a hipótese levantada pela autora
é a de que não há vida em um desaparecimento completo do signo de relação, ou
seja, Aulagnier (1986/1991b) sustenta que mesmo nas diferentes estruturas clíni-
cas há a articulação entre os três processos. É esse argumento que permite a leitura
que propus acima e, da mesma forma, a existência da clínica com esses sujeitos,
na aposta de que não estão destinados a pura repetição. Cada vez que nossa re-
Efetivamente, a questão levantada por essa hipótese põe em evidência que o traba-
lho psicanalítico precisa incidir sobre a articulação desses três modos de funcionamento
para operar na vida do sujeito, independente de sua estrutura clínica. Contudo, é possível
considerar que as diferentes formas como essas estruturas se manifestam enlaçam os pro-
cessos de modos distintos, o que tem consequências na intervenção no contexto de uma
análise.
Nessa perspectiva, faz-se importante situar que o recorte dessa dissertação é o
tratamento de crianças que possuem o diagnóstico de autismo e, por esse motivo, há
uma ênfase na leitura psicanalítica de Aulagnier e de autores que dialogam com seus
conceitos sobre a constituição desses sujeitos. A tese de Aulagnier sobre tal estrutura,
como trazido pelos recortes de sua obra citados aqui, foi o que traçou o caminho desse
texto pela conceitualização dos funcionamento dos três processos, principalmente, do
originário, e do que se compreende sobre o aparelho somático na teoria da autora. Pois a
intenção é tomar o trabalho clínico como dependente “não meramente de boas intenções
terapêuticas, mas do enorme desenvolvimento conceitual que a investigação psicanalítica
permitiu em relação às primeiras estruturações do corpo e da subjetividade da criança”
(Rodulfo, 2001, p.98).
Nesse direcionamento, considerando o papel do corpo na constituição subjetiva,
é importante não apagar como diferentes modos de funcionamento do aparelho somático
podem ter influência sobre a psique. Visto que “paralelamente aos objetos de necessidade
que são o alimento, o ar, o aporte calórico, durante a fase de vigília, é necessário um
aporte de informação sensorial contínuo; se não recebê-lo, a psique enfrenta dificulda-
des para poder funcionar” (Aulagnier, 1975/2001, p.48). Isto é, partindo do princípio de
que os estímulos sensoriais, inclusive pelas exigências orgânicas, colocam em marcha a
ação de representação, função fundamental da vida psíquica, é importante ponderar sobre
as consequências que dificuldades fisiológicas podem provocar na constituição subjetiva.
Marisa Rodulfo (2001) afirma que “os bebês com dano orgânico e mais ainda aqueles
afetados por comprometimento neurológico nos quais, com frequência o envolvimento
86
posso expor o que considero como alguns dos pilares desse trabalho: a importância do
corpo na constituição subjetiva e a necessidade desse ser representado, ou seja, de uma
intersecção constante do aparelho somático com o psíquico; e, os três processos psíqui-
cos que operam em coexistência ao longo da vida, principalmente, em como o processo
originário constitui um fundo representativo e atravessa os outros dois. Desses podemos
recolher a pergunta sobre como levar esses pilares a trabalhar para pensar a clínica e,
mais especificamente, direcioná-los para o campo de pesquisa, como aqui se propõe, a
colocar em questão a posição do analista nesse cenário. Sobretudo, considerando que
são pacientes que, com sua recusa ao outro, marcam uma diferença, em relação a mim,
mais substancial, pelo menos à primeira vista. Ou seja, que são sujeitos atravessados por
uma perspectiva diversa inclusive do que é predominante como modo de se colocar na
linguagem, pois não utilizam da fala como um recurso hegemônico.
Nessa via, para que essa discussão aprofunde tal problema de pesquisa me pare-
ceu importante recuar na teoria psicanalítica em busca de uma sustentação sobre o que
constitui uma perspectiva e de como pensá-la em sua multiplicidade. Portanto, antes de
adentrar nas cenas clínicas discutidas e na metodologia utilizada nessa pesquisa, escolhi
tomar os conceitos psicanalíticos até aqui apresentados em conexão com um autor de ou-
tro campo de saber: Eduardo Viveiros de Castro. Visto que o foco dessa dissertação é
pensar o lugar do corpo do analista na análise com crianças, a leitura psicanalítica encon-
trada para tal foi a metapsicologia de Piera Aulagnier, em enlace a essa a possibilidade de
recorrer ao antropólogo surge como uma abertura na forma de tomar o trabalho clínico.
Para apresentar tal hipótese, iniciarei trazendo algumas concepções que sustentam a teoria
do perspectivismo ameríndio.
89
ameríndia realiza uma inversão dessa concepção, uma vez que o encontro com o outro é
um reconhecimento do potencial de intencionalidade desse, ou seja, um ser passível de
agência, não determinado a priori. O encontro coloca em cena a intencionalidade, tanto
de convocar o outro, assim como do modo pela qual se responde à sua convocação. Há,
portanto, uma concepção epistemológica que valoriza a subjetividade, pois o ponto de
vista é constitutivo do próprio sujeito em sua máxima capacidade de ser agente, “aqui é
preciso saber personificar, porque é preciso personificar para saber” (Viveiros de Castro,
2018, p.52). Temos assim que a necessidade de personificar vale para todos os termos
dessa equação. Tais formulações levam Viveiros de Castro (2018) a apontar a proble-
mática do pesquisador estar advertido de seu lugar, destrinchando a ilusão da existência
de uma perspectiva universal, realizando, assim, uma crítica ao seu campo de estudo da
antropologia, mas que pode ser estendida a outras áreas do saber.
Nessa direção, tal formalização da posição do pesquisador aponta para uma maior
multiplicidade de leituras, pois vai de encontro a uma concepção universalista, também
calcada na ciência positivista e na filosofia ocidental. Viveiros de Castro (2018) ressalta
o mitológico em sua potencialidade de ampliação e circulação dos papéis, afastando-se
assim de uma utilização do mito pela via do totemismo.
indeterminação, sustentando assim um não saber sobre o outro, sem agenciá-lo do meu
ponto de vista, mas permitindo que o outro responda de sua própria natureza, com toda a
potência de intencionalidade ali possível de ser colocada, reconhecendo assim a existên-
cia da diferença. O autor enfatiza essa como a situação necessária de um encontro que
verdadeiramente dá espaço ao outro e que não o reduza a um pré conceito, ou a suposição
de que um conceito representa o mesmo para dois seres diferentes. Viveiros de Castro
(2018) afirma que há sempre forças que tensionam a abertura nesse evento,“ o vento vira,
as coisas mudam e a alteridade sempre termina por corroer e fazer desmoronar as mais
sólidas muralhas da identidade” (p.27).
Na queda das muralhas da identidade para dar espaço ao encontro com o outro,
está colocada a questão do reconhecimento da intencionalidade, uma vez que é essa quem
agencia o ponto de vista e é comum a todos, ainda que não se apresente como igual aos
envolvidos. Há aqui a crença de que todo ser possui um além do que é visto superficial-
mente, pois há uma perspectiva distinta. Nesse sentido, é propriamente contrária à visão
cartesiana, pois toda existência é passível de ser pensante, “é humano quem ocupa vicari-
amente a posição de sujeito cosmológico; todo existente pode ser pensado como pensante
(‘isto existe, logo isto pensa’)[grifo meu], isto é, como ‘ativado’ ou ‘agenciado’ por um
ponto de vista” (Viveiros de Castro, 2018, p.65).
Tais proposições teóricas sustentam-se em uma mitologia que tem como horizonte
a multiplicidade. Viveiros de Castro (2018) parte da premissa que a função do mito está
em ser uma narrativa da passagem da natureza à cultura, o que não se trata de um pro-
cesso evolucionista, como em uma filosofia antropocêntrica. Para o antropólogo, os mitos
contariam mais a natureza afastando-se da cultura e, dessa forma, narram os animais en-
quanto detentores de atributos humanos e isso não apaga a multiplicidade de posições:
“seria apenas necessário precisar que a centralidade de tal passagem (da natureza à cul-
tura) não exclui, muito pelo contrário, sua profunda ambivalência - seu duplo sentido
(em vários sentidos)” (Viveiros de Castro, 2018, p.60). Além disso, o pensamento indí-
gena compreende que os animais e outros existentes cósmicos ainda possuem atributos
humanos, por mais que não sejam tão evidentes.
Portanto, o mito seria, justamente, a narrativa que, de alguma forma, sustenta o
valor que o perspectivismo ameríndio atribui à possibilidade de agenciamento pelo ato
de assumir um ponto de vista. Pois, além do que foi dito acima sobre ser uma narrativa
da cultura e da natureza, o mito traça em si diferenças que são infinitas e internas, e não
finitas e externas como as diferenças entre as espécies em uma perspectiva classificatória.
92
Dessa forma,
Aqui se estabelece uma diferença fundamental tanto da mitologia animista - que aponta
para a semelhança substancial ou analógica entre os animais e os humanos; como para da
mitologia totemista - que se referencia a uma semelhança formal ou homológica entre o
que seriam as diferenças das espécies. A terceira margem do rio que propõe o perspecti-
vismo ameríndio é a afirmação de uma diferença humano/não-humano no interior de cada
existente, onde as semelhanças e diferenças se interpenetram. O outro lado dessa propo-
sição é que a condição de humanidade é sempre passível de questionamento, colocando,
assim como no mito, que as diversidades estão sempre armadas e podem ser suspensas
ou não. Dito de outro modo, “a humanidade de ‘fundo’ torna problemática a humanidade
de ‘forma’” (Viveiros de Castro, 2018, p.62). Há sempre uma indeterminação colocada,
porque o que é visível não é suficiente para determinar. É, portanto, apenas no encontro
que se constitui o saber, quando permite lugar à diferença. A pergunta tem inclusive uma
dupla direção, pois a própria condição de humanidade é passível de questionamento e,
portanto, de ser retirada.
De acordo com Viveiros de Castro (2018), a mitologia ameríndia narra um mesmo
ponto - a diferença da cultura e da natureza -, mas que, em termos de leitura, produz,
retroativamente, uma retirada de definições e insere o jogo da multiplicidade de sentidos,
pois “... cada ser mítico, sendo pura virtualidade, ‘já era antes’ o que ‘iria ser depois’, e
por isso não é, pois não permanece sendo, nada de atualmente determinado” (Viveiros de
Castro, 2018, p.58). Ou seja, ao supor a presença da equivocidade, permite a existência
constante de indeterminação, na medida em que a percepção é intercambiável. Dessa
forma, o mito não traz a narrativa de um processo, mas sim de uma metamorfose. O
que leva a questão a não estar em uma dinâmica de estabelecer um progresso, mas de
possibilitar uma dupla torção que aponta para um número indefinido de diferenças - não
o recorte de unidade, como o mitema da antropologia estruturalista. Viveiros de Castro
(2018) levanta inclusive um questionamento de que, na realidade, não estaria no registro
93
dade relacional da diferença, seu oposto não é a verdade, mas o unívoco enquanto
pretensão à existência de um sentido único e transcendente. O erro ou ilusão por
excelência consistiria, justamente, em imaginar que haja um unívoco por baixo do
equívoco (Viveiros de Castro, 2018, pp.-93-94).
e jaguares ao fazer com que ambos bebam ‘cerveja’ não está lá senão para que melhor se
perceba o que faz a diferença entre humanos e jaguares” (p.67).
Dessa forma, o perspectivismo põe em evidência o problema da tradução, pois, ao
não tomar o mundo como uma unidade, está colocado que “não há, enfim, um x que seja
sangue para uma espécie e cerveja para outra; há, desde o início, um sangue/cerveja que
é uma das singularidades ou afecções características da multiplicidade humano/jaguar”
(p.67). Não há um ponto de vista hegemônico que demarca o objeto em si. Ou seja, só se
pode estar em uma posição ou outra, “só existe o limite entre o sangue e a cerveja, a rigor;
a borda por onde essas duas substâncias ’afins’ comunicam e divergem"(p.67). Dito de
outro modo, não é possível ocupar concomitantemente dois pontos de vista.
a verdade, por isso também não é apenas uma questão puramente morfológica. A com-
plexidade ocorre porque não há simplesmente um ser sob a pele, como um essencialismo,
mas é sobre como a pele, ela mesma, ativa certo modo de funcionamento com os afetos
de cada existente. A metamorfose corporal é uma transformação metafísica.
Tal afirmativa aprofunda a discussão sobre a inconstância da condição de humani-
dade que ameaça a perspectivista ameríndia, uma vez que “a ‘personitude’ e a perspectivi-
dade’ - a capacidade de ocupar um ponto de vista - são uma questão de grau, de contexto
e de posição, antes que uma propriedade distintiva de tal ou qual espécie” (Viveiros de
Castro, 2018, p.46). A possibilidade de não ser mais capaz de ocupar tal condição tam-
bém é inerente à existência. Portanto, a incerteza sobre qual é o ponto de vista dominante,
ameaça, constantemente, a vida e a condição de humanidade de cada ser, pois não está
garantida, uma vez que o “‘humano’ é o nome de uma relação e não de uma substância”
(Viveiros de Castro, 2018, p.47). Essa posição reflexiva do coletivo é inevitável na rela-
ção com outros coletivos. Só se pode perder a condição de humanidade porque há aqueles
que não o são para nós e o são para si. Nessa dinâmica, nós podemos deixar de ser no
encontro com esse outro. Nesse ponto, Viveiros de Castro (2018) evoca a figura do xamã
como um diplomata entre os diferentes interesses interespecíficos, o que é possível, pois
eles são capazes de ver os outros seres como esses se veem - como humanos - sem perder
sua própria condição de humanidade com seus semelhantes.
O xamanismo amerindio pode ser definido como a habilidade manifesta por cer-
tos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais entre as espécies
e adotar a perspectiva de subjetividades "estrangeiras", de modo a administrar as
relações entre estas e os humanos. Vendo os seres não-humanos como estes se
veem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocuto-
res ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para
contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer. O encontro ou o
intercâmbio de perspectivas é um processo perigoso, e uma arte política - uma
diplomacia (Viveiros de Castro, 2018, p.48).
A afirmativa de que “os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no
diálogo transespecífico” (p.49) pode ser desdobrada em pensar o xamã como interlocutor,
como aquele que mantém a comunicação entre dois pólos, aqui espécies. Contudo, o
acréscimo da palavra ativo não é sem importância. A arte do xamanismo é fundada na
concepção de que é necessário personificar para saber; ou seja, o xamã precisa ativar o
ponto de vista do outro para assim realizar o diálogo, assumindo ele mesmo o ponto de
99
... as roupas animais que os xamãs utilizam para se deslocar pelo cosmos não são
fantasias, mas instrumentos: elas se aparentam aos equipamentos de mergulho ou
aos trajes espaciais, não às máscaras de carnaval. O que se pretende ao vestir
um escafandro é poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se
esconder sob uma forma estranha. Do mesmo modo, as roupas que, nos animais,
recobrem uma “essência” interna de tipo humano não são meros disfarces, mas
seu equipamento distintivo, dotado das afecções e capacidades que definem cada
animal (Viveiros de Castro, 2021, p.341).
Nesse sentido, a transformação corporal não se trata de uma fantasia que se veste para
passar-se por algo - assim como o corpo não é uma roupa que encobre uma essência -
, mas diz de um habitar o modo de funcionamento de outro ponto de vista. O que é
importante para considerar que a referência não está na busca pelo que está escondido,
mas em dar espaço ao ponto de vista do outro.
Viveiros de Castro (2018) discorre sobre a diferença na Amazônia indígena do
xamanismo-vertical e do xamanismo-horizontal, distinção composta “entre duas trajetó-
rias possíveis da função xamanica: a transformação sacerdotal e a transformação profética
(p.176). O xamanismo vertical estaria presente nos coletivos nos quais há uma separação
de duas posições distintas entre mortos e animais, “o que tem, por consequência, a pos-
sibilidade simétrica de uma ‘objetivação’ mais acabada dos não-humanos” (p.178), cons-
truindo o valor da ancestralidade na continuidade diacrônica entre vivos e mortos. Já no
xamanismo-horizontal, tem-se que “a diferença entre humanos vivos e humanos mortos é
pelo menos tão grande quanto a semelhança entre humanos mortos e não-humanos vivos”
(pp.176-177), o que aproxima os animais dos mortos e, logo, a possibilidade dos não-
humanos serem, em algum lugar, humanos e não estabelece uma descontinuidade entre
101
os vivos. Ou seja, “se o Outro arquetípico com quem se confronta o xamã horizontal é
teriomórfico, o Outro do xamanismo vertical tende a assumir as feições antropomórficas
do Ancestral” (p.176).
Entretanto, Viveiros de Castro (2018) afirma que, mesmo nas sociedades amerín-
dias nas quais se encontra a presença do xamanismo vertical, permanece a existência de
um xamanismo horizontal, “todo morto continua um pouco bicho; todo bicho continua
um pouco gente” (p.179). Dessa forma, o xamanismo horizontal, por ter como base o
perspectivismo, é uma prática da imanência, ou seja, há uma ativação de pontos de vista
que não têm uma descontinuidade estabelecida entre humano, não humano e morto. Dito
de outro modo, “o xamã horizontal amazônico marca, em sua onipresença na região, a
impossibilidade de uma coincidência perfeita entre poder político e potência cósmica”
(p.179).
Nesse ponto, Viveiros de Castro (2018) aproxima-se do conceito de devir proposto
por Deleuze e Guatarri como a descrição de “uma relação cuja apreensão é, a primeira
vista, dificultosa dentro do quadro analitico do estruturalismo, onde as relações funcio-
nariam como objetos lógicos molares, apreendidos essencialmente em extensão (oposi-
ções, contradições, mediações)” (p.184). Nessa direção, não se trata da existência de uma
instabilidade conceitual por carência, mas, efetivamente, da indeterminação própria da
estrutura, ou seja, da impossibilidade de categorização total. O devir, portanto, não busca
uma correspondência, nem uma produção. Ele é um modo de criar relações por uma “co-
nexão parcial” e desapropria ambos os termos a serem relacionados. Esse é o ponto de
articulação que o antropólogo estabelece com a arte xamânica transversal, pois
... o verbo devir, neste sentido, não designa uma operação predicativa ou uma ação
transitiva: estar implicado em um devir-jaguar não é a mesma coisa que virar um
jaguar. O jaguar "totêmico"em que um homem se transforma "sacrificialmente"é
imaginário, mas a transformação é real. E o devir ele próprio que é felino: em
um devir-jaguar, "jaguar"é um aspecto imanente da ação, não seu objeto transcen-
dente, pois devir é um verbo intransitivo (Viveiros de Castro, 2018, pp.184-185).
Desse modo, é inerente ao devir a multiplicidade, pois não se trata de uma produ-
ção por finalidade, mas de um modo de habitar o entre - por isso o interesse perspectivista
no conceito de devir. Todo devir é uma aliança, mas aqui não se trata de uma aliança
simbiótica e natural, já que nenhum ponto de vista apreende o outro. A referência está,
então, na possibilidade de estabelecer alianças contranaturais e de não suspender as dife-
renças. É precisamente aí que se dá a arte do xamanismo, pois “quando um xamã ativa um
102
devir-jaguar, ele não ‘produz’ um jaguar, tampouco se ‘filia’ à descendência dos jaguares:
ele adota um jaguar; ele coopta um jaguar - ele estabelece uma aliança felina” (Vivei-
ros de Castro, 2018, p.189). Isto é, o xamanismo é menos uma metamorfose e mais um
habitar outro modo de funcionamento. O devir encontra-se colocado “transversalmente
ao dualismo entre filiação, continuidade metonímica e semelhança serial, por um lado, e
aliança, descontinuidade metafórica e diferença opositiva, por outro lado” (p. 190). Há
um movimento de ocupar-se da diferença, ao mesmo tempo, ressaltando-a e anulando-
a. Para efetivar tal movimento, é necessário habitar a fronteira em um agir transversal.
Dessa forma, o que se estabelece é a exterioridade inerente às relações - a equivocidade
-, “não uma teoria das relações fechadas dentro dos termos, mas uma teoria dos termos
como abertos às relações” (p. 197). Marca-se, assim, uma distinção substancial da mito-
logia totêmica que narra a correspondência simétrica entre as diferenças e estabelece, por
meio disso, relações classificatórias, construindo estruturas (não à toa o subtítulo do livro
Metafísicas Canibais (2018) é “elementos para uma antropologia pós-estrutural”).
Viveiros de Castro (2018) aponta como esse habitar a fronteira e a percepção da
“relação como pura exterioridade” não desfaz as conflitivas existentes, mas, pelo contrá-
rio, dá espaço ao reconhecimento dessas. A função do xamã sustenta-se, na medida em
que, no jogo cosmológico, há diferenças entre o interesse de múltiplos pontos de vista que
podem ser ameaçadoras entre si.
Pois os dons podem ser recíprocos, mas isso não faz de sua troca um movimento
menos violento; todo o propósito do ato de donação é forçar o parceiro a agir,
extrair um gesto do outro, provocar uma resposta: roubar, em suma, sua alma
(a aliança como roubo recíproco de alma). E, neste sentido, não há ação social
que não seja uma "troca de dons", pois toda ação só é social enquanto, e apenas
enquanto, é ação sobre uma ação, reação a uma reação. Reciprocidade, aqui, quer
dizer apenas recursividade. Nenhuma insinuação de sociabilidade; menos ainda
de altruísmo. A vida é roubo (Viveiros de Castro, 2018, p.194).
de maneira a igualar perspectivas - por isso o xamanismo transversal. Para pensar essa
ação da arte xamânica é importante considerar novamente o lugar que o equívoco tem
no perspectivismo ameríndio, não como aquilo “que impede a relação, mas aquilo que a
funda e a propele” (p.91). Desse modo, a ação de ser o intérprete de dois mundos, própria
do xamã, “é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco” (p.91).
O ponto a ser destacado é como o não apagamento do equívoco está intimamente
relacionado com o reconhecimento da multiplicidade de pontos de vista. Esse outro modo
de perceber as relações tem implicações na possibilidade da existência de novas alianças
- de um devir. A potência dessas prerrogativas está na proposta de um modo de encon-
tro, que dá espaço à diferença, ativando ao máximo a intencionalidade dos interlocutores.
Nessa intencionalidade, está condensado um outro conceito de relação que tem o “de-
vir como multiplicidade intensiva universal” (pp.197-198). Com isso, temos que a lente
perspectivista permite “comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro ao presu-
mir uma univocidade originária e uma redundância última - uma semelhança essencial”
(p.91). Viveiros de Castro (2018) toma essa afirmativa como um pilar para discutir o
campo da antropologia, especialmente, os estudos etnográficos.
Para percorrer esse caminho, Viveiros de Castro (2018) inicia o livro “Metafísi-
cas Canibais” com o capítulo intitulado “O Anti-Narciso", em uma referência à obra de
Deleuze e Guatarri “O Anti-Édipo”. O autor discorre sobre como, se para a psicanálise o
mito de referência é o edípico, no centro da antropologia está a figura de Narciso em um
afã “pela determinação do atributo ou do critério fundamental que distingue o sujeito do
discurso antropológico de tudo aquilo que não é ele, isto é, que não é ‘nós’, a saber: o
não-ocidental, o não-moderno” (p.25). Em resposta a isso, o perspectivismo surge como
uma resistência “à força de ver sempre o Mesmo no Outro” (p.21) e, dessa forma, coloca
uma questão, ao tornar múltiplos os pontos de vista. Nessa esteira, põe em jogo a pergunta
sobre “o que acontece quando o classificado se torna o classificador?” (p.83). A extensão
do argumento recai sobre a filosofia ocidental de forma mais ampla, tornando importante
questionar se o princípio de universalidade não é um modo de colonizar o pensamento ao
supor no outro um ponto de vista, prévio e estereotipado, vindo de uma forma impositiva.
A radicalidade do perspectivismo está em um horizonte de um devir-outro, uma
vez que “não se trata de apagar contornos, mas de dobrá-los, adensá-los, enviesá-los,
irisá-los, fractizá-los” (p.27). A questão evoca a necessidade de que todo fazer esteja
atravessado pela multiplicidade. Nesse sentido, articular a chave conceitual - colocada
por Viveiros de Castro - não furta a psicanálise de problematizar sua própria teoria. Além
104
cimento deve admitir que, se são as perspectivas que criam os sujeitos, se não há
comensurabilidade perfeita entre as perspectivas, é porque elas abordam experi-
ências de indeterminação, ou seja, uma das facetas mais interessantes daquilo que
Lacan chamou de Real (Dunker, 2015, p.294).
Dunker (2015) utiliza tais proposições como argumento para repensar a lógica
diagnóstica, problematizando a existência de uma matriz neurótico-cêntrica na teoria psi-
canalítica. Essa matriz parte de uma premissa interpretativa na qual as experiências inde-
terminadas são inevitavelmente improdutivas. Esse cenário produz uma marginalização
de outras estruturas clínicas que não a neurose, tomando-as como deficitárias, ao presumir
a diagnóstica por uma lógica mononaturalista da existência de uma condição universal. O
psicanalista não utiliza o perspectivismo para analisar as estruturas clínicas em si ou para
justificá-las, mas para aprofundar sua argumentação sobre a própria ferramenta do diag-
nóstico, problematizando sua expansão que produz um tempo no qual “todas as formas
de vida, encontram-se regidas pelos parâmetros avaliativos e comparativos de produti-
vidade”(Dunker, 2015, p.287). Os produtos desses atravessamentos na psicanálise são
uma psicopatologia neurótico-cêntrica e androcêntrica permeada por um totemismo natu-
ralista. O que, por vezes, é respondido em uma tentativa de inversão que busca dar outro
centro à discussão - “um psicótico-centrismo, um feminino-centrismo ou um relativismo-
culturalista” (p.292), mantendo, portanto, uma matriz totemista, sem subverter a estrutura
do problema. O efeito do perspectivismo ameríndio está, precisamente, em propor outra
geometria, não mais sustentada por uma centralidade - uma vez que não há um universal
que mantenha fixa a estrutura.
Para avançar em tal debate, Dunker (2015) propõe uma aproximação ao multina-
turalismo da psicopatologia psicanalítica. Apoiando-se na concepção do perspectivismo
de que todo ponto de vista é total, logo, “todos existentes são centros potenciais de inten-
cionalidade”, tem-se que a condição de humanidade é o que há em comum entre humanos
e animais. Já para a psicanálise, não é a normalidade a condição comum entre os indi-
víduos, mas sim a patologia - a psicopatologia está até na vida cotidiana: “tais humanos
‘normais’ são uma perspectiva e uma forma de vida impossível, uma vez que esta não é
mais pensada como essência interior comum e universal, consoante ao humanismo trivial”
(Dunker, 2015, p.299). Colocar ambas as proposições em paralelo, é também afirmar pela
existência de um “potencial de intencionalidade” no interior de cada perspectiva, inclusive
em cada estrutura clínica - sendo todas dessas capazes de apreender “os demais segundo
suas próprias e respectivas características ou potências” (Viveiros de Castro, 2018, p.42).
107
Por essa razão é possível sustentar que uma estrutura não é deficitária em relação a outra,
uma vez que “não se trata de uma disputa para estabelecer a hegemonia entre modos de
ver, representar ou conceituar, mas uma luta para fazer reconhecer qual mundo é neces-
sário e obrigatório, tendo em vista um conjunto indeterminado de perspectivas possíveis”
(Dunker, 2015, p.299).
Dunker (2015) utiliza, desse modo, o perspectivismo ameríndio como uma chave
de leitura capaz de ampliar o debate em relação à expansão da razão diagnóstica, com
suas reverberações na psicopatologia psicanalítica. Esse não é o objeto dessa dissertação,
entretanto, tal argumento possibilita pensar a clínica com outras psicopatologias que não a
neurose, de forma a interpretá-las como não deficitárias. Nesse ínterim, faz-se necessário
recorrer a um modo de trabalho que não apague as especificidades presentes em cada
psicopatologia. Aqui vale retomar que os pacientes atendidos que estão narrados nas
cenas clínicas têm o diagnóstico de autismo, com sintomas como buscas autossensoriais
e uma recusa ao outro. Em sequência a tal argumento, é possível pensar o papel do
analista quando consideramos os atravessamentos do perspectivismo ameríndio propostos
até aqui.
Uma consequência do princípio da inexistência de um universal é a multiplici-
dade dos pontos de vista, o que coloca em jogo a necessidade de uma forma de relação
que abarque “as diferenças de potencial transformativo entre os seres” (Viveiros de Cas-
tro, 2018, p.180). A existência dessa multiplicidade é sustentada pelo perspectivismo, na
medida em que, mesmo o xamã - ser capaz de transcender as fronteiras interespécies - não
transforma-se em outro ser. Dessa forma, entende-se que não há uma confluência a outra
forma de vida, mas sim uma transformação que inscreve um devir. Esse é o argumento de
Viveiros de Castro (2018) para propor o conceito de xamã transversal, como esse habili-
tado a transitar por outras perspectivas, mas que mantém a premissa da impossibilidade
de um ponto de vista ser incorporado por outro. Assumindo assim os próprios limites das
relações. Tais limites não são tomados como simples barreiras rígidas e permanentes, mas
como constantemente tensionados pelo movimento do devir, enquanto criação de novas
alianças.
Há uma potência em aplicar esses termos à relação transferencial, ao considerar a
análise como um espaço no qual estão colocados em cena dois elementos. A partir dela,
temos o encontro de duas perspectivas diferentes: não só por ser uma relação de dois su-
jeitos, mas também por serem duas posições distintas - analista e analisando. Um mesmo
processo que põe a seus dois atores demandas que não são correspondentes, o que retoma
108
cer humano ao tocar de forma transversal outra perspectiva, por isso a ênfase nesse texto em tentar apreender
dessa dinâmica uma forma de relação capaz de sustentar a multiplicidade. Entretanto, a complexidade das
consequências possíveis da cena fundamental do encontro na mata não puderam ser abordadas em profun-
didade nessa dissertação. No capítulo “Perspectivismo e multinaturalismo na América Indígena” do livro
“A inconstância da alma selvagem”, Viveiros de Castro (2021) faz uma síntese sobre as possibilidades desse
encontro e sua relação pronominal que introduz o tema em sua obra.
111
nela” (Aulagnier, 1977/2016, p.69). Esse é um ponto essencial para que a relação não se
estabeleça em um estado de alienação. Há, em Aulagnier (1977/2016), um lugar privile-
giado para a dúvida ao direcionar a suspensão da certeza, que aponta para a continuidade
da busca pelo saber.
Saber que não se sabe é a posição menos natural que pode existir para o pen-
samento; é uma aquisição, muito secundária, sempre frágil, a aceitação de uma
verdade que se deve ao questionamento que muitas vezes havíamos desconside-
rado de uma certeza que a precedia... Este momento de dúvida é essencial para a
estrutura do Eu e para a disposição de uma atividade de pensamento que aceite a
supremacia do princípio de realidade, apesar de uma perda de prazer compensada,
é certo, por outro prazer vinculado com uma primeira conquista de uma autonomia
de pensar parcial (pp.63-64).
nicação. Esses pontos de distinção trazem uma complexidade a esse encontro, na medida
em que também é importante traçar que há, socioculturalmente, uma matriz hegemônica
fonocentrada, adultocêntrica e neurótico-centrada (Dunker, 2015). Tal panorama contex-
tual aponta para o lugar de privilégio ocupado por mim nesse encontro. A importância de
expor esse quadro está na necessidade de colocar em questão qual a diferença das posi-
ções para então pensar suas consequências. Ou como coloca Viveiros de Castro (2018),
“estamos todos necessariamente localizados por nossas ‘circunstâncias’ e nossas ‘confi-
gurações relacionais’, mas uns estão, e como!, mais sistematicamente localizados, mais
circunstanciados e mais configurados - que os outros” (p. 74). Esse lugar privilegiado
torna-se passível de um exercício maior de poder, com a possibilidade de um apagamento
de outras formas de vida que não a estabelecida hegemonicamente.
Os tensionamentos propostos por Eduardo Viveiros de Castro (2018), quanto ao
trabalho da antropologia, podem auxiliar em aprofundar tal questão. O antropólogo afirma
que, por mais que a etnografia tenha se afastado de uma visão paternalista que toma o
nativo enquanto primitivo, examinar “o pensamento selvagem” sob a lente da filosofia
ocidental é a permanência da busca por nós mesmos nos outros - outra volta do colonia-
lismo. A posição transversal do devir, proposta perspectivista, abre para outra possibili-
dade. Isto é, ao tomar a existência como um diálogo entre pontos de vista que não está
em transformar-se em nativo, aposta em, pelo devir-outro, fazer novas alianças entre ele-
mentos heterogêneos. Dessa forma, é necessário contra-analisar o próprio pensamento,
deixando-se afetar pela pensamento do outro. Esse leva a antropologia a ser um “projeto
de interiorização e estranhamento da razão que sempre a empurrou insistentemente, mui-
tas vezes à sua própria revelia, para fora da alcova sufocante do Mesmo” (Viveiros de Cas-
tro, 2018, p.23). Acrescentariainda que, na clínica, empurramos e, concomitantemente,
somos empurrados à produção da multiplicidade, o que tem seus próprios contornos a
depender da diferença entre os sujeitos que está colocada - e precisa ser sustentada. Tal-
vez esses contramovimentos sejam o âmago de um trabalho analítico, pois esse propõe a
busca pela inscrição de uma diferença do Eu.
A questão abordada por essa dissertação está em pensar como essas diferenças passam
inevitavelmente pelo corpo e, portanto, exigem uma disponibilidade do analista de permi-
114
tir que seu aparelho somático seja atravessado por tais diferenças.
Aqui foram recortados determinados elementos que apontam para algumas corre-
lações possíveis entre o perspectivismo ameríndio e as concepções metapsicológicas de
Aulagnier: a eleição do Eu com o potencial de intencionalidade; a alienação e o apaga-
mento da multiplicidade; o xamanismo transversal e a assimetria necessária; a atividade
de representação e a perspectiva; a violência e o estado de ameaça do ponto de vista; e o
lugar da relação com o corpo enquanto elemento fundamental das formas de vida. Além
de colocar em debate também suas diferenças enquanto dois modos distintos de tomar
o mundo, como mononaturalista ou multinaturalista. É possível a existência de outras
correlações que não foram abordadas nesse escrito e também a descrição do que afasta
ambas teorizações, mas, além desses traços de similaridade passíveis de serem apontados,
é preciso levar o debate ao ponto em que ambas teorias podem ser suplementares na dire-
ção de pensar o trabalho clínico. Nessa direção, a tentativa de propor tal diálogo é supor
nele a abertura para novas relações entre os conceitos que permitam questionar o lugar do
analista. Ou seja, a radicalidade e a potência de pôr a psicanálise a encontrar o perspecti-
vismo, está no fato desse transformar a relação em um contínuo “deslocamento reflexivo”
(Viveiros de Castro, 2018, p.72). Isto é, a possibilidade de uma dupla torção, da pergunta
sobre o conceito retornar para questionar o que é o conceito de conceito, do objeto ser o
sujeito, “porque é preciso personificar para saber” (Viveiros de Castro, 2018, p.52). Nesse
processo de contra-analisar o que é demasiadamente familiar, pensar a clínica talvez seja
não só pensar a transferência enquanto suas resistências do paciente e analista, mas em um
devir-transferencial, em analisar o momento em que uma nova relação é formada e o que
essa aponta de multiplicidade. Essas questões apontadas para essa pesquisa constroem a
pergunta sobre quais as consequências de colocar o corpo implicado nesse devir.
Dessa forma, a inclusão do perspectivismo nessa dissertação não tem a intenção
de analisar um outro modo de estar no mundo, de sujeitos que habitam seus corpos e a
linguagem em um limiar de distância maior do que é compartilhado socialmente, mas de
levantar a questão de como esse encontro com essa diferença reverbera no analista.
115
Essa dissertação tem a intenção de ser uma pesquisa que articula a teoria com a
experiência. Nesse sentido, ao abordarmos a problemática de pesquisa, a partir da con-
textualização teórica, até aqui apresentada, é importante ressaltar que o presente trabalho
intenta pensar os impactos no corpo do analista em atendimentos de crianças que man-
têm buscas por sensações e que não estão tão colocadas na relação com o outro. Sendo
então uma leitura de situações transferenciais em que estive implicada, essa é uma pes-
quisa que recolhe - no a posteriori seus efeitos - do encontro com o campo clínico seus
interrogantes.
Para dar subsídios ao percurso dessa pesquisa, buscou-se principalmente a articu-
lação entre dois autores que trazem o corpo para o debate - Piera Aulagnier, do campo
psicanalítica, e Eduardo Viveiros de Castro, do campo da antropologia. Os conceitos
filosóficos/antropológicos do perspectivismo podem ser lidos como uma ampliação da
metapsicologia da psicanalista e direcionar a discussão à figura do analista. Entretanto,
nesse texto, também há uma assumida tentativa de não fixar os conceitos psicanalíticos,
mas de produzir intersecções entre os autores, uma vez que “... não há um sentido único
para cada conceito, e sim uma articulação com a trama teórica, com a prática, com os
pares. Essa é a relação teoria e prática em psicanálise” (Rosa e Domingues, 2010, p.184).
É nesses meandros que essa pesquisa pretende se deter, permitindo a emergência
do que afeta e produz escritura do que são encontros inintencionais, guiados pela posição
de serendipidade proposta por Caon (1997). Nessa, está colocado tanto o desejo do pes-
quisador, como o modo como se aproxima do objeto, em atenção flutuante. Isso permite
manter um espaço aberto para encontros não antecipados, justamente, porque as mani-
festações do inconsciente irrompem nessa hiância que produz uma fissura no discurso
(Lacan, 1964/2008).
Tendo em vista o debate realizado até aqui, é importante ressaltar que toda pes-
quisa psicanalítica tem especificidades que a singularizam e fazem com que o pesquisador
que pretende adentrar esse campo o faça de modo, no mínimo, advertido das articulações
que perpassam o encontro com seu objeto, ou seja, das transferências que ali se esta-
belecem. Essas relações exigem certo distanciamento para se contruirem, o que vai ao
116
Para pensar a pesquisa psicanalítica talvez seja válido retomar que o encontro do
sujeito na análise é sempre faltoso por sua fugacidade, sendo apenas, nesse intervalo, que
é possível a emergência do inconsciente. O trabalho do analista é, justamente, não suturar
essa hiância, uma vez que é nela que o desejo do sujeito pode advir (Lacan, 1964/2008).
A posição do pesquisador vai por esse mesmo caminho: de sustentar a hiância na teoria,
apontando para uma subversão de um saber anterior que é o único modo possível a qual-
quer ciência para existir e avançar (Beividas, 1999). É na hiância que cada pesquisador e
analista pode se apropriar da teoria para avançar em seu fazer clínico.
Assim é com a pesquisa psicanalítica. Ela é sempre uma apropriação do autor que
depois de pesquisar o método freudiano descobre um método seu, filiado a essa
vertente e o singulariza na realização de uma pesquisa (Iribarry, 2003, p. 117).
Por essas considerações, vale ressaltar que a pesquisa, aqui sustentada, é um modo
como a articulação entre a clínica e a teoria reverberam em mim, culminando nesse es-
crito. Assim, salienta-se que esse texto não tem a intenção de produzir uma confirmação
teórica, mas sim uma apropriação de determinados conceitos para movimentar questiona-
mentos produzidos pelas relações transferenciais. A busca aqui se dá na direção de pensar
algumas especificidades que atravessam esses atendimentos, considerando que estes exi-
gem uma disponibilidade à invenção de outras formas de encontro para o estabelecimento
de um contato com o outro - uma vez que são crianças que, por vezes, recusam a relação
com o outro. Há aqui, portanto, o questionamento sobre quais as consequências para o
analista nessa diferença. No entanto, essa pergunta tem uma amplitude excessiva para
que essa dissertação pudesse traçar algumas respostas, por conta disso, as cenas clínicas
que aqui foram escolhidas foram as que produziram sensações físicas no meu corpo, en-
quanto analista. Tal problemática é importante para pensar como essas diferenças também
incidem sobre a pesquisa.
Para aproximar-me desse problema aqui colocado, foram construídas três narrati-
vas de cenas clínicas, nessas não me abstive de tomar o ato de escrita na primeira pessoa.
Em uma aposta de que talvez tal apropriação gramatical permita, de forma mais subs-
tancial, que os traços da arquitetura do meu corpo marcados transferencialmente possam
decantar em texto. Considerando que o objetivo a que esse estudo se propõe é recolher
da experiência clínica situações que tocam a materialidade do corpo para pensar quais
efeitos ali se produzem.
Essa subversão do sujeito acadêmico também faz função ao marcar uma diferença
que aponta para a particularidade da minha experiência e, especialmente, do cuidado em
não cair em uma possível mimetização do pensamento dominante, mas sim colocá-lo
em questionamento - como presente na discussão sobre a antropologia proposta por Vi-
veiros de Castro (2021). A abertura para repensar a teoria com um outro pensamento
permite a construção de novas alianças, o que não ocorre quando a direção é apenas in-
vestigar qualquer formulação a partir dos mesmos conceitos. Dessa forma, também não
se debate os limites da própria teoria, tornando-a imaculada ou universal. Nessa direção,
penso ser importante preservar o que há e se mantém como particularidade quando se
assume a autoria de um texto em primeira pessoa, o que aponta para um afastamento do
118
ciáveis, essas posições assumem a condição de existência no encontro com o outro. Isso
coloca em evidência mais um aspecto do objetivo dessa dissertação, pois aqui a intenção é
pensar os efeitos corporais do encontro com esses pacientes, portanto esses outros corpos
também são descritos, para colocar em questão as especificidades do encontro.
Foi nessa busca que encontrei, por sugestão da banca de qualificação e da minha
orientadora - Andrea Ferrari -, os textos de Piera Aulagnier. A potência das proposi-
ções teóricas ali expostas para investigar os aspectos corporais da relação transferencial
está, principalmente, em como o aparelho somático tem um lugar privilegiado, enquanto
articulador do funcionamento psíquico. Pois é esse que, através das exigências para a
manutenção da vida, põe em marcha a atividade de representação e, consequentemente,
a atuação do processo originário, primário e secundário - cada um deles atuando em sua
especificidade, mas em conjunto. Além disso, a atividade pictográfica, produto da re-
presentação do processo originário, constrói um “fundo representativo”, uma imagem do
corporal, na qual irão apoiar-se tanto a fantasia como o pensamento - os processos secun-
dário e primário. O pictograma é, justamente, a marca construída das primeiras vivências
representadas como autoengendradas, uma vez que o sujeito não reconhece, nesse mo-
mento, a existência de um externo, capaz de inscrever a dimensão do tempo e a cisão
entre zona corporal e objeto, por exemplo. Ou seja, o modo como o aparelho somá-
tico provoca um excesso de excitação - o aumento de energia livre -, exige da psique o
exercício de sua função de representação. Aqui se coloca a profunda importância que as
sensações físicas têm para a atividade psíquica, no desenrolar da constituição subjetiva e
ao longo da existência.
Essa contribuição metapsicológica é extremamente frutífera para discutir a clínica
com a infância e, de maneira mais específica, com sujeitos que possuem a busca excessiva
por estimulações autossensoriais - próprias do funcionamento do processo originário. A
conceitualização de Aulagnier (1986/1991b) permite pensar que, com a impossibilidade
de estabelecer uma cisão entre o interno e o externo, a estimulação contínua de uma sensa-
ção é capaz de manter o postulado do autoengendramento, que rege o processo originário,
e, consequentemente, sustentar a percepção da existência. Justamente por isso, a insistên-
cia nas repetições invariáveis como uma tentativa de aplicar ao mundo o maior limiar de
imobilidade. Tal leitura abre para aprofundar a função que determinados movimentos -
como a estimulação autossensorial - têm para o aparelho psíquico. Adentrar essa questão
é pensar suas reverberações na análise.
Aulagnier (1975/2001) afirma que o processo originário tem, na clínica, um lu-
120
gar importante, ao mesmo tempo, que não é passível de ser cognoscível a consciência
“já que não pode responder a nenhuma das leis que deve obedecer o ‘dizível’” (p.53). O
pictograma é tanto o que permanece sem sentido em todos os sujeitos, assim como é uma
‘força de atração do originário’ responsável por momentos de crise, no que a psicanalista
atribui ao atendimento de pacientes psicóticos, no qual o Eu não se reconhece e perde as
referências de seu projeto identificatório. Além disso, Aulagnier (1986/1991b), no texto
“Nascimento de um corpo, origem de uma história”, discorre sobre as formas que o ori-
ginário assume em sujeitos autistas, voltando seu olhar então a como a dificuldade de
reconhecer a alteridade e a fixidez da repetição de uma sensação somática, em especial
ao movimentos de autoestimulação sensorial, pode manter em excesso uma representa-
ção pictográfica e impedir a atuação dos outros modos de funcionamento psíquico. É
esse ponto que provocou a escolha pela teoria dessa autora na pesquisa, pois tomar seu
esquema de articulação entre os três processos psíquicos e o lugar do pictograma para
pensar a intervenção na clínica com sujeitos autistas põe no horizonte a complexidade da
posição do analista. A partir dela, pode-se discutir sobre o encontro possível da presença
do analista com um sujeito, cujas representações psíquicas ocorrem majoritariamente pe-
las percepções sensoriais de repetições invariáveis.
O encontro com essa teórica, portanto, complexifica o objetivo dessa dissertação,
na medida em que forra o solo da pesquisa. Dito de outro modo, tenho, como ponto
de partida, reverberações que ocorrem no meu corpo, enquanto analista implicada trans-
ferencialmente. O primeiro recorte deu-se ao considerar sobre quais situações clínicas
seriam abordadas e, assim, a direção escolhida foi pelo atendimento com crianças que
têm o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista, com sintomas de recusa ao outro e
de uma fixidez na busca por sensações. Trocando em miúdos, o fato do corpo estar en-
volvido em toda transferência ou na economia psíquica como um todo - pois é central aos
processos do funcionamento psíquico e é parte essencial do projeto identificatório (Au-
lagnier, 1986/1991b) - não torna menos importante considerar as especificidades desses
encontros. A direção de pensar as reverberações no aparelho somático da analista nessa
especificidade ocorreu porque são atendimentos que exigem, na cena clínica, uma coloca-
ção do corpo em um movimento ativo e em sua integralidade na intervenção. Em outras
palavras, são analisandos que a insistência pela atividade autossensorial produz um modo
de funcionamento corporal em uma intensidade da repetição e, logo, a intervenção precisa
atuar no limiar suportável da abertura que passa pela expansão do que é percebido pelas
sensações. Essa busca do analista tem como consequência ações que atravessam o próprio
121
cada, como dito anteriormente, pelas reverberações vivenciadas por mim nos atendimen-
tos clínicos. Na intenção de trazer à dissertação a minha experiência nessas transferências,
construí três narrativas curtas cada uma de uma sessão, o que estabeleceu um contorno e
delimitou o debate dessa pesquisa. A escolha pelos três atendimentos deu-se em função de
como esses provocaram sensações físicas em mim - as quais tentei expor nas narrativas -
e, por isso, convergem a questão levantada. Ao mesmo tempo, são cenas nas quais levanto
como hipótese que nesses efeitos entre analista e analisando algo de novo foi produzido.
É importante pontuar ainda que são escritos que têm o intuito de debater o que repercutiu
dos encontros em mim e, nessa direção, utilizei neles analogias como uma ferramenta
para marcar o lugar do ficcional na tentativa assumida de suspender uma pretensão pela
busca de um realismo - saída encontrada para o conflito da transmissão do encontro.
Retomando o objetivo da pesquisa de como pensar as reverberações no corpo do
analista a partir do recorte desses atendimentos, a cena a ser montada é a de um encontro,
ou seja, da presença de dois pontos de vista, - da existência de uma diferença -, pro-
vocando disjunção entre perspectivas, o que tem como consequências transformações em
ambas. Ou seja, para pensar os efeitos no corpo do analista também é importante perceber
as formas pelas quais os dois corpos, nesse encontro, se agenciam e assim afetam um ao
outro de maneira transversal. Nessa direção, as narrativas são um esforço de tentar trans-
mitir os efeitos somáticos despertados em mim e, sob a minha ótica, quais os contornos
desse encontro que os provocaram.
As três cenas foram escritas após o início do percurso do mestrado, já como um
recurso buscado para propor um modo de discutir o objetivo dessa pesquisa. A análise das
narrativas foram realizadas apenas após a escrita da primeira parte teórica desta disserta-
ção e, para tal, considerei algumas possibilidades de como decantar dos textos um debate
capaz de pôr em questão os corpos no encontro transferencial. A releitura das cenas,
posterior ao aprofundamento teórico, direcionou a percepção de contornos que, concomi-
tantemente, conectam os textos e desmembra-os em si - no interior de cada um. Dessa
forma, retirei das narrativas fragmentos que proporcionam um diálogo entre as cenas den-
tro de três constructos teóricos até aqui utilizados. Os pontos de foco que encontrei nas
cenas e que me parecem essenciais para pensar a pergunta dessa dissertação foram os ma-
neirismos, os agenciamentos e a transversalidade - três dimensões do encontro, ligadas ao
corporal e capazes de provocar disjunções, isto é, de expor a multiplicidade. Essa escolha
metodológica é uma aposta que elencar tais elementos, no a posteriori da escrita e do
embasamento teórico, produzam novas associações, tal como um devir é capaz de agir
126
As cenas que serão apresentadas foram escritas entre o final de 2021 e início de
2022, cada uma é um recorte de uma sessão de três diferentes pacientes, que ocorreram
nos anos de 2019, 2021 e 2022. Todos os atendimentos aconteceram na instituição que
atuo, sendo eu a psicóloga responsável pela condução do tratamento clínico dos pacientes.
As crianças tinham na época quatro, seis e sete anos e estavam em atendimentos semanais
individuais em psicologia.
Os três têm o diagnóstico Transtorno do Espectro Autismo (TEA), um deles com
dano neurológico e deficiência visual, decorrente de uma prematuridade extrema. Os ou-
tros dois não têm nenhum diagnóstico associado ao TEA. No momento do tratamento no
qual ocorreram as sessões narradas, nenhum dos três utilizava a linguagem verbal através
de palavras inteligíveis ou sons que parecessem direcionados à comunicação, faziam uso,
por vezes, da busca pelo outro em uma condução direcionada. Como, por exemplo, pe-
gando na minha mão e levando-a até a porta para abrí-la mesmo que a alcançassem com
as próprias mãos. Além disso, faziam buscas por movimentos estereotipados, descritos
por Aulagnier (1986/1991b) como autossensoriais. Os três possuíam restrições alimen-
tares importantes, mas apenas um deles foi diagnosticado com disfagia, em um período
do seu desenvolvimento, o que obrigava que todos alimentos fossem triturados antes da
ingestão. Nenhum deles possui feições sindrômicas, além disso, são corpos brancos, de-
signados como masculinos, inseridos em núcleos familiares com pai e mãe biológicos
presentes e, em nenhum momento, passaram por institucionalizações. Os pontos levan-
tados aqui em suas similaridades e diferenças ganharão outros elementos ao longo das
narrativas.
É importante, além dessa pequena caracterização dos pacientes, uma descrição
do meu corpo. Pois, esse é tanto sujeito dessa pesquisa como objeto, da mesma forma
que os pacientes das cenas narradas. Tenho um corpo branco, magro, designado como
feminino, e, tal como Edu Lobo, “brasileiro, de estatura mediana”. Meus músculos não
são substancialmente fortes, o que é compensado por um fôlego satisfatório. Essa relativa
boa capacidade pulmonar talvez seja o que faz meu tom de voz elevar-se com frequência,
principalmente, durante os atendimentos. Não tenho nenhuma dificuldade de locomoção,
nem lesões atuais ou pregressas importantes. O único ponto que me aproxima de uma
debilidade é uma visão monocular decorrente de significativa miopia que provocou o não
128
7.1 Acrobata
11
Aqui foram ressaltadas as particularidades dos maneirismos do meu corpo, entretanto, também é im-
portante pontuar as diferenças sócio-políticas desses encontros. Sou uma pessoa de classe média, terceira
geração familiar a poder frequentar a universidade, segunda a morar e primeira a nascer na capital. Os
pacientes das narrativas são moradores da região metropolitana de Porto Alegre, o pai de um deles possui
um pequeno negócio e os outros dois têm trabalhos formais de nível médio. Apenas a mãe de um deles
tem um trabalho formal, as outras duas permanecem em tempo integral dedicadas aos filhos. São todos os
primogênitos, dois tiveram o nascimento de uma irmã cada e o terceiro permanece filho único. Além disso,
os três frequentavam espaços da rede de educação, mas não possuíam outro local com atendimento espe-
cializado de terapias na rede de saúde de média complexidade. Essas também são diferenças importantes
que, por diversas vias, marcam uma maior distância condensada na minha vestimenta: o jaleco.
129
uma ideia de leveza extraordinária a quem o olha. Seus braços abertos elevados acima
dos ombros e da cabeça criam a linha vertical mais longa possível da ponta dos dedos das
mãos à ponta dos dedos dos pés. Esse movimento com os membros superiores tem um
andamento mais lento que os impulsos de suas pernas, produzindo um aparente harmo-
nioso descompasso. Durante a execução dessa coreografia irrompem alguns sons de sua
voz que chegam tão alto quanto os objetos jogados para cima, nos quais se distinguem
vogais interpostas.
Entretanto, ao aproximar a lente nesse espetáculo, é possível perceber a comple-
xidade montada na cena. A transparente leveza tem em seu cerne uma dureza excessiva
- para iniciar e dar continuidade aos movimentos, esse pequeno acrobata realiza uma
força imensurável. Por um funcionamento hipertônico, todo seu corpo se mantém em
um perene estado de contração. Os pés de bailarina são, na realidade, decorrência de um
encurtamento dos tendões, calcanhares que não tocam mais o chão. São os músculos en-
rijecidos do pulso ao cotovelo que mantém os braços estendidos, e a mão ora fechada, ora
com os dedos estirados. Os gritos são emitidos em um mesmo tom, frequência, volume e
timbre, sem modulação. Todas as partes do corpo enlaçadas por uma contração contínua.
Talvez remonte os primeiros setenta e quatro dias de uma vida incubada, consequência de
uma prematuridade extrema.
Uma possibilidade de aproximação ocorre pelo convite a me abaixar, o meu corpo
e seus adereços provocam interesse - meu cabelo e minha máscara são tocados. Brin-
quedos complementam minha arquitetura: óculos que remetem a super-heróis tapam meu
rosto, enquanto um pandeiro vira um chapéu a ser colocado e tirado da minha cabeça.
Mas o intercâmbio das posições é obstruído, os objetos transformados em órteses do meu
corpo são repelidos pelo acrobata, quando tento colocá-los nele.
Seu interesse me circunscreve. Posiciona-se nas minhas costas, de forma que não
posso vê-lo, sigo escutando seus pés saltitando no chão. Uma contração irradia do centro
da minha espinha e progressivamente se estende para a musculatura da minha lombar, e,
como um abraço, fecha sua circunferência enrijecendo meu abdômen. Entretanto, esse
fechamento não atenua, meus músculos não aliviam, é como se houvesse uma força pul-
sativa na porção final da minha medula que não cessa de não relaxar, mantendo meu
corpo tenso. A mão espalmada encontra minhas costas ou minha cabeça com toda força
do máximo de rigidez daquele corpo miúdo. Penso que é a espera pelo contato com essa
mão que transforma meus movimentos involuntários em apertos. Essa é uma hipótese,
por outro lado, poderia ser que a reação do meu corpo mimetiza o do meu paciente, meus
130
músculos se contraem e não destensionam da mesma forma como ele mantém seu padrão
hipertônico.
Abro a torneira, o som da água escorrendo pelo ralo suspende a atenção por mim
e pelos objetos. Proponho uma brincadeira de encher potes e esvaziá-los, o que faço so-
zinha. Entretanto, algo permanece, o acrobata segue olhando para a pia, coloco então a
minha mão e o convido a fazer o mesmo, o que o afasta ainda mais, agora perdi até seu
olhar. Insisto por uma reaproximação, arranco o papel toalha do suporte da parede e o
ofereço, primeiro na mão, depois tocando-o no braço. As suas mãos se contraem agora
em torno desse objeto, amassando-o: o movimento ganha função. Os saltos e o estender
dos braços são interrompidos, só retornam quando, após jogar o papel na pia, aguarda que
eu me aproxime com ele molhado, quase desfazendo-se na minha mão. Nesse percurso
de alguns segundos, em que afasto o papel pingando da água corrente em direção ao seu
braço, ele o ergue para me alcançar. Esse movimento contém um conflito invisível, ao es-
tender o braço parado em frente ao corpo, seus músculos precisam fazer uma força oposta
a contração muscular involuntária que percorre seus nervos. Mesmo assim agora aparenta
estar relaxado, como se a iminência de se umedecer, em alguma medida, liquifizesse sua
rigidez.
Capelinha de melão
é de São João
É de cravo, é de rosa, é de manjericão
São João está dormindo,
não me ouve não
Acordai, acordai, acordai, João
7.3 Prendedor
de um prendedor de roupas, o que não é algo incomum, afirma que já havia tentado tirar
antes de virem para o atendimento, mas que não teve sucesso. Em casa, não mais tem
acesso aos prendedores, porque desmonta-os para manter consigo essa parte, a mãe relata
que foi um acaso ter encontrado um nesse dia. Arrancar de sua mão provoca um desespero
imediato e irremediável. Meu braço ficou esticado no ar, e minha mão aberta em espera,
enquanto a sua permanece fechada, junto ao corpo, de maneira que nem enxergo a forma
do que segura. Dobrando-me e recolhendo o cumprimento, posiciono-me então na frente
de sua mãe e troco sua mão pela minha de forma sutil o suficiente para que ele pouco
fique sem a mão cerrada em torno da outra. Não sei o quanto reconhece a nova roupagem
de quem o acompanha, mas seguimos para a sala.
Entrando, senta em uma cadeira de escritório e, eu me posiciono em outra, ao seu
lado. Ambos estamos na altura da mesa, fica interessado em uma folha branca que está
ao seu alcance. Como um telespectador entusiasmado, observa o papel, sinto sua excita-
ção crescendo, na medida em que aperta a ponta dos dedos de ambas as mãos afastadas
enquanto o prendedor permanece em sua palma direita. Enxergo toda a força que aplica
contraindo não só seus braços, mas todo seu corpo, forma-se em seu rosto um bordado
com as linhas de expressão que o cerrar dos dentes provoca. É seguido desse movimento
que o escuto vocalizar pela primeira vez nesse dia, ainda que em volume baixo.
Tentando acompanhar e dar materialidade a seus movimentos, começo a rasgar a
folha, ao que ele não me acompanha com as mãos, mas seu olhar se direciona ao meu
ato. Levanto o papel até meu rosto e cada vez que o rasgo, trocamos olhares, pareço uma
sequência da folha parada na mesa, pois não há modificação nele, igualmente se anima
aperta os dedos e emite o som de algumas vogais. Enquanto isso, na mesa entre nós, os
fiapos de papel vão se emaranhando.
Algo produz uma mudança. Ele sai de onde está sentado e, como se o chão fosse
lava, passa para a minha cadeira. Espremidos no mesmo assento não mais podemos man-
ter contato visual, alinho seu corpo de modo a fazê-lo sentar no meu colo, com as costas
em meu peito. Meu corpo se transforma em sua cadeira e, da minha, aproveito suas rodas
para aproximá-la do espelho localizado na parede oposta da sala. Assim, posso voltar a
ver seu rosto e crer ser vista também.
Nessa posição, nossos 70 centímetros de diferença fazem com que seus tênis to-
quem minha calça. Faz uma rotação extensiva de suas pernas de forma a encaixar perfei-
tamente como um botão o peito do pé na parte posterior da minha panturrilha. Seguindo
seu movimento, posiciono meus membros superiores de forma a manter seu antebraço
134
sobre o meu, e minha mão sob a sua, tentando entrelaçar nossos dedos, o que só consigo
de princípio em sua mão esquerda. Na direita, o prendedor fica comprimido entre minhas
unhas e sua palma. Passo uma das partes do ferro no vão entre meu anelar e mindinho,
afasto-os enquanto pressiono os outros dedos em direção aos seus, sem deixar de mover
todo meu braço e o seu, por consequência. Nossas mãos permanecem sobrepostas, mas
abro os dedos descosturando o que sustentava o prendedor, que cai como uma agulha
perdida entre os novelos de papel picado que cobrem o chão. Não sinto seu peso sobre
minhas pernas, talvez pela sua magreza, talvez porque, nessa “desordem do armário em-
butido”, nem o percebo. O que se contrai são os músculos dos meus ombros até minhas
mãos, faço força para juntá-las na linha média dos nossos corpos, enquanto ele, por ve-
zes, faz força na direção oposta. Não sei se por não querer juntar suas mãos e rasgar o
papel ou se em uma repetição dos movimentos dos braços ao lado do corpo com as mãos
fechando-se no ar.
No vai e vem de nossos braços, alternando qual das forças ganha mais intensidade,
criamos um ritmo. As vocalizações ganham uma percussão dos pés tocando o chão e das
mãos rasgando as folhas. Os retalhos brancos formam uma nova camada que cobre nossos
corpos. Agora é a quatro mãos que tricotamos esse tecido de papel que passa a se enredar
em nosso colo, enquanto enredamos nossos corpos.
7.4 Maneirismos
Para a análise das cenas, compreendi como necessário iniciar o processo a partir
de um ângulo de visão amplificado para, posteriormente, adentrar no encontro entre os
corpos. Em função disso, a primeira discussão traz os recortes que dão a ver a multiplici-
dade de formas de vida em seus diferentes modos de assumirem um ponto de vista, isto
é, em seus diferentes maneirismos corporais. Para tal, é importante retomar o que é esse
conceito sob a ótica perspectivista.
Nesse sentido, tomei como termo para debater esses fragmentos o maneirismo
corporal, uma vez que este abrange não apenas a fisiologia, “mas aos afetos que atraves-
sam cada espécie de corpo, as afecções ou encontros de que ele é capaz (para evocarmos
a distinção espinosista), suas potências e disposições” (Viveiros de Castro, 2018, p.66).
Ao não restringir o aparelho somático a um efeito puramente biológico e instintivo, o
perspectivismo relaciona o conjunto de formas que o corpo assume à intencionalidade de
cada ser. Isto é, afirma que através do corpo cada um habita um ponto de vista, marcando
sua diferença na forma como é afetado e transita entre os encontros.
A escolha do termo maneirismo corporal como um dos vetores de análise, diz do
modo como uma forma de vida assume uma perspectiva. É importante pontuar que não
se trata de uma pura expressividade de um ato de revelação de uma essência. O corpo não
se limita ao fisiológico, entretanto, também não é desassociado deste. Ao compreender
a condição de humanidade como imanente - e não transcendente -, o perspectivismo pre-
sume que cada corpo é dotado de um potencial de intencionalidade, portanto, cada ato é
passível de ser interpretado enquanto uma manifestação da cultura. Ao ver a si mesmo
como humanos, as ações de seus corpos também são humanas, ou seja, “os não-humanos
veem as coisas como os humanos as vêem - isto é, como nós humanos as vemos em nosso
departamento. Mas as coisas que eles veem, quando vêem como nós vemos, são outras”
(Viveiros de Castro, 2018, p.64) - o sangue/cerveja. Dessa forma, o ato de se alimentar,
136
é constante, ao mesmo tempo em que a psique determina suas relações pelas representa-
ções, essas também as modificam, o que estabelece um estado de tensão ininterrupto. É a
tentativa de apaziguá-lo que mantém o funcionamento psíquico, pela formação de novas
representações. As excitações, portanto, precisam ser metabolizadas para assim serem re-
presentadas. Contudo não se trata de um encontro passivo, em que o sujeito apenas recebe
do externo e realiza esse trabalho psíquico. Ao mesmo tempo em que se constitui nesse
processo, há uma atividade na busca ou evitação de determinados estímulos, e esse modo
como cada um se posiciona é consequência do funcionamento psíquico - o que retoma
a concepção do maneirismo corporal enquanto forma de estar. Ou seja, no modo como,
concomitantemente, produz e sofre agenciamentos nas relações.
É a articulação entre os três modos de funcionamento do aparelho psíquico que
perpassa o agir. Em decorrência disso, é possível, em um tratamento, tomar uma posição
interpretativa de ler metapsicologicamente uma transferência. Como trabalhado anteri-
ormente no capítulo sobre a clínica, uma recusa ao outro e uma repetição na busca por
estímulos autossensoriais podem ser consequências de uma insistência da representação
pictográfica em seu postulado de autoengendramento e da complementaridade da zona-
objeto. Isto é, uma vez que o processo originário não reconhece a existência de algo
externo, a totalidade dos estímulos é representada como autoproduzida. Consequente-
mente, não há possibilidade de distinção entre o que pode ser causa de uma sensação em
um encontro da zona erógena com um objeto; o prazer ou desprazer está nessa união,
ou seja, “a complementariedade zona-objeto e seu resultado é a ilusão de que toda zona
autoengendra o objeto adequado a ela” (Aulagnier, 1975/2001, p.55). Um corpo capaz de
moldar-se a um espaço, em uma integração dos limites da fisiologia com o que o toca, e,
por outro lado, uma angústia de perda do corpo, com a necessidade de alterar o espaço:
a desacomodação da inércia do sentar parece insuportável (Prendedor). Dessa forma, o
movimento de integração pode ser o próprio corpo em sua dimensão estática como tam-
bém em seu funcionamento dinâmico: passa a saltar aos olhos o aparecimento de um
menino, que, na literalidade, desloca-se dando pequenos pulos por toda a extensão do
ambiente, como um ginasta no início do solo (Acrobata). Esses são dois trechos com
vetores de cinesia opostos mas que apontam na mesma direção da inércia da continui-
dade. Tal possibilidade de leitura amplia o entendimento do que são os contornos de um
corpo, contribuindo com a proposição de que a circulação de um maneirismo é também
um modo de habitar um espaço.
Da mesma forma, podem acontecer resistências à troca de postura, ou seja, à in-
138
terrupção da inércia propioceptiva. Além disso, o corpo também aplica seus movimentos
no espaço: Brinquedos são arremessados ao alto, e voam em direção ao teto até serem
sugados pela gravidade em queda livre. Os móveis, especialmente as cadeiras, têm suas
funções subvertidas, sendo deitados ao chão com as pernas ao ar. Ali permanecem, imó-
veis, esperando, enquanto o menino se movimenta entre e sobre eles, marcando, com seu
saltitar, um ritmo allegro moderato. Sua magreza somada ao compasso de seus pulos im-
primem uma ideia de leveza extraordinária a quem o olha. Seus braços abertos elevados
acima dos ombros e da cabeça criam a linha vertical mais longa possível da ponta dos
dedos das mãos à ponta dos dedos dos pés. Esse movimento com os membros superiores
tem um andamento mais lento que os impulsos de suas pernas, produzindo um aparente
harmonioso descompasso. Durante a execução dessa coreografia irrompem alguns sons
de sua voz que chegam tão alto quanto os objetos jogados para cima, nos quais se distin-
guem vogais interpostas (Acrobata). Aqui é possível perceber como os movimentos do
corpo incidem sobre o espaço, em um conflito que cada ser tem com a arquitetura de seu
corpo e dos lugares.
Nessa situação clínica, há outro aspecto que ganha destaque, como relevante à
compreensão do aparelho somático, isto é, encontra-se a incidência de padrões orgânicos,
que por uma diversidade de causas insiste no corpo - remonta os primeiros setenta e qua-
tro dias de uma vida incubada, consequência de uma prematuridade extrema (Acrobata).
Uma lesão no sistema nervoso ou uma alteração cromossômica pode incorrer em efeitos
sobre a musculatura, por exemplo, que têm como consequência estímulos constantes ou
sua pouca eficácia e ausência. Para que se suceda a alteração do padrão, é necessário que
ocorra um esforço com intensidade contrária, pois não há intervalo à força de empuxo pa-
dronizada A transparente leveza tem em seu cerne uma dureza excessiva - para iniciar e
dar continuidade aos movimentos esse pequeno acrobata realiza uma força imensurável.
Por um funcionamento hipertônico, todo seu corpo se mantém em um perene estado de
contração. Os pés de bailarina são, na realidade, decorrência de um encurtamento dos
tendões, calcanhares que não tocam mais o chão. São os músculos enrijecidos do pulso
ao cotovelo que mantém os braços estendidos, e a mão ora fechada, ora com os dedos
estirados. Os gritos são emitidos em um mesmo tom, frequência, volume e timbre, sem
modulação. Todas as partes do corpo enlaçadas por uma contração contínua (Acrobata).
É possível construir a hipótese de uma dificuldade de representar marcando uma dife-
rença do processo originário, pois cessar os movimentos pode exigir mais força do que
sua continuidade, uma vez que é necessário a ação de uma força contrária a que irradia nos
139
O objeto não é nada mais, nem outra coisa que a sensação de dureza característica
dessa coisinha de madeira ou ferro que a mão tritura e manipula com gestos este-
reotipados, esse movimento repetitivo que a derruba, a faz dar voltas, para que a
mão volte a recolhê-la (Aulagnier, 1986/1991b, p.147).
Ou seja, é pelos efeitos táteis, cinestésicos, visuais, olfativos, auditivos ou gustativos que
o movimento é mantido. Ao não ser representado como algo externo, o objeto é também
parte do próprio ser e sua perda tem efeito de destruição cessado no reencontro de algo
que produza uma sensação análoga. A mãe me alerta que ele segura um pedaço que foi o
ferro de um prendedor de roupas, o que não é algo incomum, afirma que já havia tentado
tirar antes de virem para o atendimento, mas que não teve sucesso. Em casa, não mais
tem acesso aos prendedores, porque desmonta-os para manter consigo essa parte, a mãe
relata que foi um acaso ter encontrado um nesse dia. Arrancar de sua mão provoca um
desespero imediato e irremediável (Prendedor).
Assim como não há distinção entre interno e externo, na atuação do processo origi-
nário, o prazer ou desprazer são percebidos como totais. Isto é, quando percebe no encon-
tro a “ausência do objeto ou na sua inadequação, por excesso ou por defeito, apresentar-
se-á como ausência, excesso ou defeito da zona mesma” (Aulagnier, 1975/2001, p.55).
Da mesma forma, “qualquer que seja a zona-objeto privilegiada pela figuração, toda ex-
periência de prazer o é só graças a irradiação totalizadora do prazer experimentado” (Au-
lagnier, 1975/2001, p.86). Como um telespectador entusiasmado, observa o papel, sinto
sua excitação crescendo, na medida em que aperta a ponta dos dedos de ambas as mãos
afastadas, enquanto o prendedor permanece em sua palma direita. Enxergo toda a força
que aplica contraindo não só seus braços, mas todo seu corpo, forma-se em seu rosto
um bordado com as linhas de expressão que o cerrar dos dentes provoca (Prendedor).
A partir desse momento narrado, pode-se reconhecer que há algo que ele vê que é capaz
de motivar um prazer que se expressa em todo o corpo, além de todos os outros estímu-
los sensoriais que o tocam, naquele momento, serem também tomados como prazerosos.
Intrigante leitura possível a partir dessa formulação que ao mesmo tempo que sustenta o
postulado do autoengendramento, como a não existência de um externo, talvez instigue
a própria construção de um corpo unificado, uma vez que nesse total da percepção do
prazer e do desprazer há uma integração dos sentidos.
141
... entre os estímulos captados por nossos receptores sensoriais, alguns em fun-
ção da qualidade e intensidade da excitação, entretanto, ainda mais em função do
momento no qual se efetiva o encontro zona-estímulo, serão fonte de uma expe-
riência sensorial capaz de levar sua irradiação ao conjunto das zonas (Aulagnier,
1986/1991b, pp.140-141).
A questão que pode ser colocada é como há também uma articulação entre o aparelho
somático e o psíquico, inclusive na dimensão da realidade, como os efeitos de uma lesão.
Ou seja, há consequências nos afetos e nos movimentos ao se ter músculos tensionados
intensamente e constantemente.
Nessa direção, é importante pensar quais os efeitos possíveis dessa forma de re-
presentação quando o afeto presente é o desprazer. Aulagnier (1986/1991b) coloca que
o desprazer é provocado quando o encontro com o objeto é marcado por sua ausência,
inadequação ou excesso. Nesses momentos, há uma tentativa de apagamento de toda
essa zona corporal, uma vez que não é possível um afastamento do objeto, pois ambos
formam um único elemento psiquicamente. Em outras proposições teóricas, Aulagnier
(1977/2016) realoca o desprazer em um contato com o ato desejante: o desejo de deixar
de desejar. Marisa Rodulfo (2001) articula esse desprazer e desejo com efeitos de inscri-
ção negativa das zonas corporais, isto é, no ponto em que o sujeito percebe a ausência,
inadequação ou excesso do encontro zona-objeto há uma tentativa de apagamento dessa.
O que ocorre, portanto, não é uma mutilação efetiva, mas de sua função, ou seja, junto
com o objeto, se tenta perder a zona: “que os olhos veem, mas não enxergam ou que as
mãos não pegam os objetos, senão se limitam ao flapping” (Rodulfo, 2001, p.73). Assim,
há uma tentativa de provocar a inexistência da zona, ao deixar de receber determinados
estímulos e, portanto, de deixar de desejar.
Por outro lado, é interessante investigar como a boca tem um lugar privilegiado na
constituição subjetiva. Aulagnier (1975/2001) aponta que o binômio boca-peito cumpre
uma necessidade vital, que tem função de protetização, pois o peito torna-se parte do
próprio corpo - quando em um encontro prazeroso. Entretanto, há situações em que esse
é marcado pelo desprazer. Esse desenrolar retoma as consequências colocadas acima
sobre a inscrição negativa e o apagamento da função de um órgão. Ou seja, a partir
142
7.5 Agenciamentos
A proposta aqui foi de tomar os maneirismos corporais como uma categoria capaz
de movimentar o pensar sobre os modos como cada corpo percebe e busca determinados
estímulos sensoriais, além da forma como esses têm e são efeitos da realidade orgânica
do aparelho somático. Tais proposições trabalhadas derivam, neste segundo momento,
a considerar quais as consequências desses maneirismos no encontro com o outro - cir-
143
Dessa forma, a condição de humanidade pode ser sempre perdida e conquistada, na me-
dida em que, as capacidades de agenciamento são colocadas no momento do encontro
com o outro.
A partir da imagem desse quadro, é possível considerar que o encontro entre dois
seres é sempre o encontro entre duas perspectivas. Em outras palavras, é a colocação
em cena das diferenças, uma vez que todos “são centros potenciais de intencionalidade,
144
creve um lugar diferente do atendimento com adultos que procuram o espaço analítico à
demanda e à posição do analista. A existência da alteridade pode impor ao mundo uma
diferença impossível de ser sustentada pelo sujeito, retirando-o da continuidade passível
que é representada pelo processo originário. Aulagnier (1986/1991b) aponta que a co-
locação em cena da violência primária é o que obriga o início de atuação do processo
primário, por meio do porta-voz, enquanto esse que atua para a manutenção da vida so-
mática e psíquica. Entretanto, em determinadas circunstâncias a presença da alteridade
só é suportável em um pequeno limiar, caso contrário, as sensações produzidas nesse en-
contro a tornam intolerável. Minha presença parece inibí-lo ainda mais, como se eu o
assustasse, é um constante desconforto entre uma ânsia por um fazer que talvez o ater-
rorize (São João). Esse é um questionamento incessante sobre qual o intervalo clínico da
intervenção como uma mensuração constante da angústia. Nessa via, há uma forma sin-
gular de almejar o estabelecimento de uma relação sem que essa se direcione à assimetria
abusiva - como colocado por Aulagnier (1986/1991b).
Nesse aspecto, a esperança equilibrista é não impor uma presença que torne o en-
contro insuportável, nem ser apagada ao ponto do não reconhecimento da alteridade. Meu
braço ficou esticado no ar, e minha mão aberta em espera, enquanto a sua permanece fe-
chada, junto ao corpo, de maneira que nem enxergo a forma do que segura. Dobrando-me
e recolhendo o cumprimento, posiciono-me então na frente de sua mãe e troco sua mão
pela minha de forma sutil o suficiente para que ele pouco fique sem a mão cerrada em
torno da outra. Não sei o quanto reconhece a nova roupagem de quem o acompanha, mas
seguimos para a sala (Prendedor). Posição complicada, em especial nessas situações, nas
quais há a tentativa de uma busca pela repetição sensorial como possibilidade da repre-
sentação pictográfica. Entretanto, a existência da alteridade, justamente, rompe com tal
postulado, logo, ameaça a forma como cada sujeito se sustenta.
Em função da impossibilidade de construir representações por outros processos,
“aos estímulos de fontes exteriores, o autista tentará opor seu poder de intrusão, exigindo
a não mudança do meio que o rodeia” (Aulagnier, 1986/1991b, p.147). Nesse sentido, há
uma intenção de proteger-se na medida em que garante a repetição idêntica, assim como o
corpo “por momentos pode não existir senão por um movimento rítmico, e em um balan-
ceio, reduzido em sua totalidade a pura sensação do movimento que o anima” (Aulagnier,
1986/1991b, p.147). A hipótese aqui é que isso que o sujeito aplica ao próprio corpo e ao
mundo é também colocado na relação com o outro, ou seja, há um apagamento da alteri-
dade. Para o reconhecimento dessa, é necessário, primeiramente, um modo de existência
146
que suporte a presença do outro - o que é possível quando o outro assume uma posição
análoga a atividade autossensorial e, a partir disso, marca sua diferença. Dito de outro
modo, é necessário sustentar a continuidade de um estímulo sensorial como uma tentativa
de estabelecer um primórdio de relação. Tentando acompanhar e dar materialidade a
seus movimentos, começo a rasgar a folha, ao que ele não me acompanha com as mãos,
mas seu olhar se direciona ao meu ato. Levanto o papel até meu rosto e cada vez que
o rasgo, trocamos olhares, pareço uma sequência da folha parada na mesa, pois não há
modificação nele, igualmente se anima aperta os dedos e emite o som de algumas vogais
(Prendedor). Nesse momento, para que ele me olhe, faço uso do papel, objeto buscado por
ele; essa é uma tentativa de introduzir na percepção de suas sensações o estímulo visual
da troca de olhar, ou seja, o princípio do que poderia abrir a um reconhecimento da minha
presença enquanto uma alteridade, não no signo da destruição, que tem o movimento do
outro como disruptivo.
Uma possibilidade de aproximação ocorre pelo convite a me abaixar, o meu corpo
e seus adereços provocam interesse - meu cabelo e minha máscara são tocados. Brinque-
dos complementam minha arquitetura: óculos que remetem a super-heróis tapam meu
rosto, enquanto um pandeiro vira um chapéu a ser colocado e tirado da minha cabeça.
Mas o intercâmbio das posições é obstruído, os objetos transformados em órteses do meu
corpo são repelidos pelo acrobata, quando tento colocá-los nele (Acrobata). Nessa cena,
parece existir uma manipulação do meu corpo similar a de um objeto, mesmo que minha
tentativa seja uma mimetização de seus atos, isto é, meus movimentos são rechaçados,
enquanto ele utiliza meu corpo para colocar adereços. De modo diverso do trecho ante-
rior, a minha tentativa de realizar atos similares aos dele não produziu aproximações, mas
afastamento, por vezes, inclusive um distanciamento dos gestos que ele fazia na minha
direção. Isso porque, por mais que estivesse em uma condição de objeto, ainda havia os
meus movimentos de encontro, diferente de uma busca pelos móveis da sala.
Ambos recortes são de intervenções minhas enquanto analista; nesse escrito, há a
tentativa de expor essas à luz de um desenrolar de um pensamento clínico fundamentado
na metapsicologia de Aulagnier. A proposta aqui é também investigar como esses atos
meus e deles são, concomitantemente, ações de agenciamentos. Há uma atuação do meu
corpo em uma tentativa de cruzar as fronteiras estabelecidas na diferença dos maneirismos
de cada um; retomando as proposições sobre o perspectivismo ameríndio, uma tentativa
de agenciar o outro. Entretanto, para dar sequência, é importante insistir que a análise é
uma relação entre duas pessoas, na qual ambas produzem agenciamentos. Voltando com
147
esse olhar à clínica, é viável supor que, na transferência, o analista realiza as intervenções
em uma tentativa de agenciar, enquanto o analisando coloca em cena suas demandas -
mesmo na intenção de uma recusa ao outro.
Essa formulação pode ser ilustrada na disputa pelo olhar na sequência das nossas
ações na cena do Prendedor. Algo produz uma mudança. Ele sai de onde está sentado e,
como se o chão fosse lava, passa para a minha cadeira. Espremidos no mesmo assento
não mais podemos manter contato visual, alinho seu corpo de modo a fazê-lo sentar no
meu colo, com as costas em meu peito. Meu corpo se transforma em sua cadeira e, da
minha, aproveito suas rodas para aproximá-la do espelho localizado na parede oposta
da sala. Assim, posso voltar a ver seu rosto e crer ser vista também (Prendedor). Há uma
fragilidade na manutenção do exercício de sustentar a troca do contato visual, quando se
está no encontro com sujeitos que se esquivam da alteridade. No fragmento destacado
dessa sessão, primeiro utilizo o rasgar do papel para encontrar sua mirada, contudo, seu
movimento de tomar meu corpo como o lugar para sentar-se suspende essa troca, que é
reestabelecida e mantida pela virtualidade. É possível construir a hipótese que, ao nos
aproximarmos do espelho, o reflexo da imagem garante uma mediação que permite que
a presença não se torne excessiva - para os dois. Isto é, tomando a hipótese de que se
trata de uma criança com uma recusa ao outro, a virtualidade do olhar através do espelho
pode ser interpretada como uma abertura a esse estímulo sensorial da visão, sem que este
ganhe uma dimensão disruptiva. Pois, sem o recurso do espelho, poderia passar do limiar
que o aparelho psíquico suporta para o desenrolar do funcionamento de seus processos,
ou seja, transpor o limite de estímulo capaz de ser metabolizado pela psique.
É importante retomar aqui a discussão de Aulagnier (1975/2001) sobre seus con-
ceitos de violência primária e secundária para avançar no debate. A escolha da psica-
nalista pelo termo violência é argumentada pela percepção de que todo encontro com
o outro provoca um estímulo sensorial excessivo para o sujeito, e, justamente por isso,
exige do aparelho psíquico um trabalho de representação. Esse excesso, ainda capaz de
ser metabolizado pela psique, é o que permite que o sujeito construa suas representações
e, consequentemente, seu projeto identificatório. Com tal formulação no plano de fundo,
é fundamental atribuir importância à particularidade de cada sujeito nesse processo; ou
seja, é viável supor, pelas especificidades das crianças que compõem essas narrativas, que
há diferenças em como cada forma de vida vivencia as experiências sensoriais. Mesmo
que sem adentrar na etiologia dessas diferenças, o que ocorre são variações na intensidade
da percepção sensorial, nas quais, por vezes, um determinado estímulo pode ser perce-
148
bido como insuportável, ultrapassando o que o sujeito pode antecipar. Tal percepção pode
provocar uma reação de retorno à atividade autossensorial, em uma busca pela repetição
da continuidade de um estímulo - apagando a presença de outros. Essa é uma forma
de garantir “à psique a preservação de seu espaço e, com isso, de um aparato psíquico
incapaz de sustentar-se no vazio” (Aulagnier, 1986/1991b, p.148). A premissa de Au-
lagnier está na suposição de que a psique está imersa em um espaço heterogêneo, o qual
precisa representar para permanecer capaz de desejar, que é o que inaugura e sustenta
a vida. Importante sublinhar ainda que as representações ocorrem pelas três formas de
funcionamento psíquico, que coexistem ao longo da vida (Aulagnier, 1986/1991b). Essa
afirmativa abre para a possibilidade de especular que é possível que uma insistência na
atividade do processo originário sustente a existência em momentos em que o aparelho
psíquico encontra-se fragilizado de recursos para operar outros modos de representação.
Esse ponto condensa a forma como as diferenças passam pelo corpo, dito de outro
modo, de como os maneirismos corporais atuam em uma dinâmica constante de conflito
entre o aparelho psíquico e os estímulos sensoriais. Nas brincadeiras de derrubar, meus
carrinhos percorrem a mesa até chegarem ao seu abismo e cair, já os seus são delica-
damente tomados em suas mãos e, por ele, posicionados no chão. Dessa forma, nossos
encontros são musicados por um “cai, cai balão” em ritmo de valsa. Há aí um descom-
passo entre nossas danças, sinto minha agitação crescente ao seu lado, uma tentativa
desesperada de contagiá-lo, como se essa fosse a forma de provocar sua movimentação.
O mesmo está na fala, é preciso que eu me contenha para não preencher com a minha
voz todo silêncio que recai sobre a sala (São João). A diferença perceptível nos nossos
movimentos alarga a distância do desencontro, enquanto sua imobilidade me provoca ím-
petos à aceleração, meus movimentos parecem inibí-lo ainda mais. Os afetos produzidos
no encontro transmitem-se em nossos corpos e através deles.
Retomando a cena do olhar através do espelho, para essa análise, é possível efe-
tuar outra torção. Isto é, argumentei a tentativa de sustentar o estímulo visual do encontro
com o outro pela insistência em manter a percepção de um traço de alteridade, enquanto
apontei seus movimentos como maneiras de suspender tal olhar em um afastamento do
outro e manutenção das mesmas sensações. Entretanto, em paralelo a essa interpretação,
é necessário construir também os espaços pelos quais essa montagem de cena atravessa o
meu corpo, que ali ganhou aparência de extensão. Nessa posição, nossos 70 centímetros
de diferença fazem com que seus tênis toquem minha calça. Faz uma rotação extensiva
de suas pernas de forma a encaixar perfeitamente como um botão o peito do pé na parte
149
posterior da minha panturrilha. Seguindo seu movimento, posiciono meus membros su-
periores de forma a manter seu antebraço sobre o meu, e minha mão sob a sua, tentando
entrelaçar nossos dedos, o que só consigo de princípio em sua mão esquerda (Prende-
dor). Ao deixar sua cadeira e sentar-se comigo, ele marca uma distância pelo olhar e pela
interrupção da cena que estava sendo construída entre nós com o recurso do papel. Con-
comitante a isto, contudo, aproxima-se de mim - também pelos meus movimentos para
isso -, de maneira tão intensa que, na sequência, consigo retirar da mão dele o prendedor.
Na direita, o prendedor fica comprimido entre minhas unhas e sua palma. Passo uma
das partes do ferro no vão entre meu anelar e mindinho, afasto-os enquanto pressiono
os outros dedos em direção aos seus, sem deixar de mover todo meu braço e o seu, por
consequência. Nossas mãos permanecem sobrepostas, mas abro os dedos descosturando
o que sustentava o prendedor, que cai como uma agulha perdida entre os novelos de pa-
pel picado que cobrem o chão (Prendedor). O que acontece sem que ele represente essa
retirada como uma perda do próprio corpo. A partir do debate anterior, é possível inter-
pretar que já não há uma fixação na estimulação provocada por esse objeto, enquanto uma
atividade autossensorial (Aulagnier, 1986/1991b). É um recorte de um momento no qual
ele pôde experienciar outros estímulos sensoriais, em que parte deles são decorrentes do
contato com o meu corpo.
Em uma proximidade extrema, entrelaçamos nossos corpos de forma que quando
eu movimento minhas pernas, as suas também se movem. Enquanto o agir de nossos
braços misturam-se, porque, apesar de sua pouca força, permito que seus gestos me con-
duzam, ainda que não totalmente, pois entrelaço meus dedos ao prendedor para deixá-lo
cair e aproximo minhas mãos da linha média para seguir rasgando o papel. Há um uso
do meu corpo como um instrumento de intervenção capaz de provocar o afastamento dele
da fusão com o objeto: é, nesse ponto, que ele pôde separar-se do prendedor sem as rea-
ções de sofrimento vivenciadas em outros momentos; inclusive sem nem perceber a perda
deste, pois deixou de ter a função que estava ocupando de estímulo. Apesar da subs-
tituição do objeto prendedor pelo meu corpo, proponho aqui a hipótese de que não há,
nessa mudança, uma repetição fixada como próprio da atividade autossensorial. Quando
eu também imponho meus movimentos, é preciso que ele suporte a existência de algo
que fure a totalidade da representação pictográfica - delicado limiar de abrir intervalos
no postulado do autoengendramento. Esse argumento sustenta-se na concepção de que
as três formas de funcionamento do aparelho psíquico coexistem, isto é, na possibilidade
de pensar essa intervenção como um modo de criar um estado no qual algumas represen-
150
tações da alteridade podem ser construídas sem que o sujeito as sinta como destrutivas.
A expansão de momentos que permitem a entrada do outro é uma leitura sobre a própria
direção da cura em casos de recusa à alteridade.
A outra camada passível de ser incluída nessa interpretação tem a dimensão de
considerar o meu corpo como um instrumento da intervenção. Decantar essa questão é
colocar em análise dois horizontes: as contingências que provocam essa necessidade e
suas consequências - justificadas pela discussão anterior sobre a centralidade que um es-
tímulo somático tem nas situações clínicas narradas e, logo, a utilização de recursos que
toquem essas; e dissecar os atravessamentos que tais transferências provocam nos afetos
do meu corpo. No trecho recortado do Prendedor, ao posicionar seu corpo em meu colo
e convergirmos nossos movimentos em um duplo agenciamento, é estabelecido um lugar
de proximidade que demanda a ação das minhas pernas aos meus braços. Esse conjunto
coloca meu aparelho somático em uma exigência de atuar na intervenção. O fato da forma
como se acomoda ser precedida pela suspensão do olhar, corta a cena na qual eu estava
operando o recurso do papel para manter o contato visual com ele. Ao nos levarmos para
a frente do espelho, não é apenas a retomada desse olhar que encontro, mas também a
possibilidade de eu ter uma visão dessa montagem em sua totalidade por outro ângulo.
Isto é, volto a enxergá-lo em uma distância podendo ver seu rosto, ao passo que também
olho minha própria imagem no espelho, circunstância não pouco significativa quando seus
movimentos de agenciamento apontam na direção de produzir o meu apagamento. Poder
ver-me, através do espelho, é um modo de suportar um exercício de desaparecimento ne-
cessário à intervenção sem permitir que esse extrapole o limite da minha identificação. A
hipótese levantada aqui é que, ao ter um panorama da cena de fora - pela visão do espelho
-, posso manter a proximidade e similaridade com ele e ainda assim sustentar a diferença.
Diferença essa importante à intervenção, pois é o que garante que meu corpo não re-
pita apenas a função de objeto que sustenta a atividade autossensorial, e também que eu
encontre contornos à resistência dessa disponibilidade física que toca o desaparecimento.
A questão que se articula nesse ponto é como a produção de mecanismos de
agenciamento atravessam os dois personagens de qualquer encontro e têm, na relação
transferencial com essas crianças, algumas particularidades. Em especial, em como uma
intervenção que coloca o corpo em cena da forma descrita nas narrativas impõe uma pro-
ximidade dos maneirismos desses outros do encontro. Dito de outro modo, essas relações
transferenciais trazem o funcionamento psíquico dos analisandos para o plano de uma in-
tensidade do aparelho somático. O ato de pensar sobre esses atravessamentos é dar espaço
151
para que essa dimensão da transferência possa ser analisada e que sejam investigadas as
resistências que ali habitam, pois é também a suposição de que uma análise perpassa o
corpo.
Desta forma, para investigar a relação entre os corpos no tratamento, é fundamen-
tal transitar pelos mecanismos de agenciamento e, portanto, refletir sobre como é parte do
processo de uma análise a proximidade que ocorre nesse encontro. Seu interesse me cir-
cunscreve. Posiciona-se nas minhas costas, de forma que não posso vê-lo, sigo escutando
seus pés saltitando no chão. Uma contração irradia do centro da minha espinha e pro-
gressivamente se estende para a musculatura da minha lombar, e, como um abraço, fecha
sua circunferência enrijecendo meu abdômen. Entretanto, esse fechamento não atenua,
meus músculos não aliviam, é como se houvesse uma força pulsativa na porção final da
minha medula que não cessa de não relaxar, mantendo meu corpo tenso. A mão espal-
mada encontra minhas costas ou minha cabeça com toda força do máximo de rigidez
daquele corpo miúdo. Penso que é a espera pelo contato com essa mão que transforma
meus movimentos involuntários em apertos. Essa é uma hipótese, por outro lado, poderia
ser que a reação do meu corpo mimetiza o do meu paciente, meus músculos se contraem e
não destensionam da mesma forma como ele mantém seu padrão hipertônico (Acrobata).
Nesse trecho, tentei percorrer a cadeia de afetos que transcorreram em meu corpo durante
a sessão. A necessidade de descrevê-los decorre, principalmente, do modo como essa
transferência trazia a minha consciência a percepção dos estímulos dos meus músculos
do tronco - deixando como resíduo uma dor na lombar. Focar nessa sequência é poder
investigar o que da particularidade do encontro com esse analisando é capaz de provocar
sensações. Isto é, nessa sessão, havia um agenciamento que aproximava meu corpo da
função de um objeto - como colocado anteriormente. Além disso, há outra dimensão do
agenciamento que é o ponto em que passo a perceber no meu corpo a similaridade dos
estímulos sensoriais vivenciados por ele. Uma hipótese passível de ser construída é a exis-
tência de uma camada transferencial que toca inclusive o aparelho somático não apenas
em seu âmago perceptível, mas nos estímulos sensoriais involuntários, como a contração
ou relaxamento muscular.
Na esteira desse argumento, é importante retomar que Aulagnier (1986/1991b)
sublinha que os efeitos do aparelho somático são o que inauguram o funcionamento psí-
quico, e apenas deixam de existir com a morte. A psicanalista afirma que, com o desen-
rolar da constituição subjetiva, “o sujeito recorrerá menos a seu corpo como transmissor
privilegiado das mensagens, se terá podido diversificar os destinatários tanto como os ob-
152
7.6 Transversalidade
xamã ative e seja ativado por outra perspectiva; nesse trânsito, está colocado o encontro
entre diferentes. Para decantar suas consequências, é preciso compreender que, para o
perspectivismo ameríndio, não há um universal, o que acarreta na impossibilidade de um
ponto de vista conter outro. Essa afirmativa põe em evidência que é inviável o apaga-
mento total das diferenças, e aponta para a construção de relações que as sustentem e as
transformem. A saída argumentativa encontrada por Viveiros de Castro (2018) está na
utilização do conceito de devir, com a proposta de um xamanismo que, na realidade, é
transversal, pois é a manutenção de um encontro na diferença, não imposta de maneira
vertical.
pernas, talvez pela sua magreza, talvez porque, nessa “desordem do armário embutido”,
nem o percebo. O que se contrai são os músculos dos meus ombros até minhas mãos,
faço força para juntá-las na linha média dos nossos corpos, enquanto ele, por vezes, faz
força na direção oposta. Não sei se por não querer juntar suas mãos e rasgar o pa-
pel ou se em uma repetição dos movimentos dos braços ao lado do corpo com as mãos
fechando-se no ar. No vai e vem de nossos braços, alternando qual das forças ganha mais
intensidade, criamos um ritmo. As vocalizações ganham uma percussão dos pés tocando
o chão e das mãos rasgando as folhas. Os retalhos brancos formam uma nova camada
que cobre nossos corpos. Agora é a quatro mãos que tricotamos esse tecido de papel que
passa a se enredar em nosso colo, enquanto enredamos nossos corpos (Prendedor). Os
desdobramentos dessa sessão envolveram, como colocado anteriormente, o encontro e o
desencontro da sustentação do olhar e, em paralelo, uma sequência de movimentos dos
corpos de afastamento e proximidades. Entretanto, o trecho aqui recortado demarca um
momento no qual algo da diferença de um contínuo se apresenta na relação transferencial,
construindo um fazer comum, que modifica o maneirismo corporal de cada um.
Para aprofundar esse argumento, é necessário resgatar os conceitos de Aulagnier
que permitem dar consistência metapsicológica a esse debate. As veredas interpretati-
vas que a cena pode percorrer lançam alguns aspectos para discussão. Partindo do ponto
da análise anterior, na proximidade impelida por essa transferência, há uma tentativa de
aplicar na intervenção uma continuidade dos estímulos sensoriais. O intervalo entre nós
é estabelecido quando não permaneço como um objeto/extensão de seu corpo e também
imponho meus movimentos na transferência; isto é, abrindo brechas no postulado do au-
toengendramento, ainda que minhas ações tenham como ancoragem a similaridade com
seus maneirismos. A proposta que pretendo desenvolver é que a sustentação desse inter-
valo pôde decantar na emergência de novas articulações, construídas pela alteridade, isto
é, a existência de um devir.
Retomando o trecho, é possível considerar que a díade da mistura corporal e agen-
ciamentos da mediação com os objetos (espelho e folha) inscreve um fazer compartilhado
em um ínterim que atravessa nossos corpos e utiliza como recurso a materialidade do pa-
pel no ato de rasgá-lo. Ação que demanda uma modificação em seus movimentos: Ambos
estamos na altura da mesa, fica interessado em uma folha branca que está ao seu alcance.
Como um telespectador entusiasmado, observa o papel, sinto sua excitação crescendo,
na medida em que aperta a ponta dos dedos de ambas as mãos afastadas enquanto o
prendedor permanece em sua palma direita (Prendedor). O recorte do início da sessão
155
Tomar esse argumento enquanto analista para pensar o trabalho clínico é colocar-
se na busca por atuar nesse intervalo. Nessa busca, compreende-se que a instabilidade é
inerente ao sujeito, ou seja, que a constituição ocorre no processo de construir certezas
e desconstruí-las - afirmativa que decanta em operar o espaço analítico como um lugar
que acompanhe o sujeito nessa travessia. É possível traçar um paralelo entre o projeto
identificatório e a assunção de um ponto de vista, correspondência viável na dimensão
do encontro ser a colocação em cena de dois projetos identificatórios, ou de duas pers-
pectivas. Deste modo, a hipótese é que, na clínica, é necessário a circulação entre dois
pólos de distância, ou, como coloca Aulagnier (1977/2016), entre a simetria e assimetria
na transferência. Entretanto, retomando o escopo dessa dissertação, ou seja, olhando para
atendimentos realizados com pacientes que têm uma recusa ao outro e uma maior fixidez
nas buscas por estímulos sensoriais -, é possível considerar qual a especificidade desse
atravessamento na circulação entre a simetria e a assimetria. A forma encontrada nesse
texto de trilhar tal direção é ressaltar a relação com o corpo, isto é, uma suposição de
que essas duas posições atravessam e são atravessadas pelo aparelho somático - por isso
o início dessas análises deu-se pelos maneirismos corporais.
Nesse sentido, é importante marcar que os pontos de resistência também podem
ser lidos no aparelho somático. Uma contração irradia do centro da minha espinha e pro-
gressivamente se estende para a musculatura da minha lombar, e, como um abraço, fecha
sua circunferência enrijecendo meu abdômen. Entretanto, esse fechamento não atenua,
meus músculos não aliviam, é como se houvesse uma força pulsativa na porção final da
minha medula que não cessa de não relaxar, mantendo meu corpo tenso (Acrobata). A
persistência dessas sensações durante a sessão e o resíduo desse encontro - que vem na
forma de uma, posterior, dor nas costas - são dois afetos produzidos transferencialmente
que percebo em meu corpo e que provocam afastamentos, o que precisa ser respondido
com movimentos que proponham o deslocamento dessas sensações. Isso porque para que
o trabalho de uma análise possa ocorrer
Isto é, dar lugar para que as resistências do analista também sejam investigadas
no processo de uma análise, é ter recursos para avaliar os atravessamentos das sensações
159
uma força oposta a contração muscular involuntária que percorre seus nervos. Mesmo
assim agora aparenta estar relaxado, como se a iminência de se umedecer, em alguma
medida, liquifizesse sua rigidez (Acrobata). A sequência de movimentos presentes nesse
recorte expõe a busca pela sensação tátil provocada pelo líquido em seu braço, que ocorre
entre o intervalo do esperar - que eu o toque com o papel molhado - e o agir - de retirar
o papel do suporte, amassá-lo e jogá-lo na pia. Há, portanto, a possibilidade de que eu
insira minhas ações. Suspende-se a minha posição como mais um objeto da sala a ser
manipulado e inscreve-se uma ânsia pelos meus movimentos como capazes de produzir
estímulos prazerosos. De forma análoga, os meus músculos aliviam, cessando a minha
expectativa pelo encontro com sua mão que eu não podia ver - um afastamento do meu
corpo ao dele que permite outra aproximação. Além disso, é estabelecida uma diferença
no fluxo dos movimentos: ao pegar o papel, ele o amassa - gesto que já realizava em um
contrair e espalmar a mão - e o joga sob a água corrente, ao que, posteriormente, permite
que eu me direcione com o papel molhado rumo ao seu braço.
Na cena anterior, meus movimentos que visavam sua direção eram reconduzidos a
um afastamento, enquanto ele era quem produzia as ações que trilhavam o encontro com
o meu corpo. Tal mudança na orientação de nossos gestos constrói um outro diálogo entre
nossos corpos, que exige dos dois uma ação e uma espera pelo outro. Outro ponto a ser
destacado é como a diferença marca-se nas próprias sensações somáticas, pois a busca por
novos estímulos sensoriais exige disjunções que promovam um intervalo nas repetições.
Ou seja, há uma reorganização necessária dos afetos com a busca por outra sensação. É
possível realizar a leitura de que cada percepção de um outro estímulo exige um traba-
lho do aparelho psíquico, pois a “metabolização que opera a atividade de representação
persiste durante toda a existência” (Aulagnier, 1975/2001, p.68). Dito de outro modo,
mesmo que as percepções sensoriais remetam a outro momento da constituição subjetiva,
põem em curso diferentes lugares da representação. Isto é, pensar a coexistência dos três
processos é articulá-los como uma historicização; que é a marcação de uma diferença,
uma vez que é o enlace entre os tempos, o que não está presente na pura repetição.
Dessa forma, esse trecho coloca no horizonte inclusive a possibilidade da inter-
venção na busca pela sensação tátil da água exigir a suspensão dos movimentos dentro
de seus padrões de maneirismo, mesmo que esses sejam atravessados pela lesão orgâ-
nica. Efetivamente, tal ato demonstra que não há uma impossibilidade física em estender
o braço em frente ao corpo e mantê-lo imóvel por alguns segundos, por exemplo. Entre-
tanto, há atravessamentos de seu aparelho somático que dificultam essa ação, ao exigir
161
que ele execute uma força contrária ao estímulo de movimento que irradia em sua muscu-
latura. Isto é, o encontro com uma vivência sensorial prazerosa é capaz de promover uma
modificação do padrão de maneirismos corporais e, em paralelo, uma abertura ao outro
em uma multiplicidade, uma vez que, ele passa a permitir que eu atue em sua direção, ao
mesmo tempo que faz movimentos para que isso ocorra.
Nesse sentido, o que a cena ilustra é a possibilidade da modificação com a reor-
denação das posições que estavam impostas inicialmente. Isto é, na medida em que me
afasto para propor outra intervenção trazendo a água para a cena, ele passa a fazer movi-
mentos que traçam esse encontro. Entretanto, é importante pontuar que tal fato só ocorre
após ele receber o estímulo auditivo de escutar o fluxo do líquido e o estímulo tátil, pois eu
o toquei com o papel molhado antes dele buscá-lo. Da mesma forma, é possível conside-
rar que essa construção só foi viável de ser armada, uma vez que, primeiramente, eu pude
me aproximar dele, o que provocou sua atenção em mim; deslocada, posteriormente, à
água quando abri a torneira. Essa é uma leitura que percebe como necessário o momento
inicial da sessão, no qual ele colocou os adereços em meu corpo e manteve-se nas minhas
costas, pois é pela sequência que os desvios foram possíveis. Nesse ponto, é interessante
retomar a expressão de Aulagnier (1986/1991b) quanto à existência de uma “fonte somá-
tica da representação psíquica do mundo” (p.145), ou seja, o modo como a percepção dos
estímulos sensoriais impulsiona a busca pelo prazer que é capaz de reordenar a forma de
estar no mundo - dito de outro modo, os maneirismos corporais. Analisar essa mudança
de postura aponta a uma transversalidade, isto é, poder assumir um estado outro, por mais
que ele não tenha deixado de conter seu padrão hipertônico, naquele instante, produz um
novo movimento: um estado de devir, no qual se torna capaz de ocupar também outra
posição.
Essa é uma hipótese de interpretação da narrativa construída, que foi escrita a par-
tir das sensações percebidas no momento da sessão e passa inclusive por reviver esses
afetos fisicamente no momento da elaboração do texto e de sua releitura da cena para a
análise. Essa chave explicativa reafirma a necessidade de uma disponibilidade do analista
que perpassa o corpo para que ocorra um encontro entre os dois sujeitos, ou seja, a vivên-
cia dos afetos produzidos transferencialmente, que têm especificidades em cada situação
clínica. Para tal disponibilidade, é necessário uma abertura a deixar-se agenciar pelo ou-
tro e, consequentemente, experienciar os estímulos sensoriais decorrentes desse encontro,
mesmo que esses sejam, a princípio, incompreensíveis.
É certo que o analista não pode e não tem que compreender o que ocorre em
162
o ritmo de um andar pela sala, que eu não enxergo. Talvez por estar com o rosto mais
próximo ao chão, escuto em um volume maior o barulho que a ponta de seus pés fazem
ao tocar o solo. Apesar de seu baixo peso, lembram a dança de uma quadrilha apressada
e solitária. Junta-se a esse som, estalinhos de objetos sendo arremessados para baixo.
Os carrinhos de brinquedo e os potes de tinta que haviam ficado em cima da mesa onde
brincávamos, tornam–se bombinhas que estouram no chão. Enquanto isso, caminha em
torno do meu corpo imóvel aproximando-se em seus pulinhos de pés equinos. Sinto a
fragilidade de quem pode ser pisado e atingido por um objeto. O medo passa para meu
corpo que se enrijece esperando um peso que o prense junto ao piso gelado. Temor que
cresce na medida em que o tempo passa e suas ações, que ocupam a sala, parecem se
acelerar. Começo a perder a imagem mental de por onde se movimenta. O que, em
outras vezes, foi uma brincadeira que durou segundos, passa a se estender, e sinto, no
meu corpo, uma agitação constante que tento conter. Não é a primeira vez que sinto
tal agitação com ele, ela surge em quase todos os atendimentos, mas normalmente está
ligada a sua imobilidade, a lentificação de seus movimentos que respondo quase com o
ímpeto de completá-los. Essa é a primeira vez em que ele se movimenta e eu não. Agora
a paralisia está em mim. Dessa música, ele é o sanfoneiro solo, ao som dos seus pés e
objetos, juntam-se inclusive pequenas vocalizações entoando um canto. Escuto sua voz
em um volume muito maior do que nas outras sessões. Tenho que me fiar na audição
enquanto aguardo a noite findar, não escuto uma movimentação para o acender da luz.
Sinto a tensão dos músculos dos meus braços esticados ao lado do corpo, uma mistura
de expectativa e movimento interrompido (São João).
A sequência da brincadeira coloca no horizonte a potência da clínica em um con-
tínuo desdobrar-se em novos movimentos. A cena, em princípio, era formada por um
simples apagar e acender das luzes e depois ganha consistência em um movimento de
troca, no qual o agente desse ato alterna e demanda outros movimentos do corpo, com o
deitar-se e o cerrar dos olhos. Em um segundo tempo, ela assume uma nova dimensão
com um giro que recai sobre o primeiro ato. Isto é, ele subverte um dos pontos da ação
que inaugurou a brincadeira, o acender das luzes sendo, dessa forma, capaz de aplicar
uma contenção às minhas ações. Minha presença parece inibí-lo ainda mais, como se eu
o assustasse, é um constante desconforto entre uma ânsia por um fazer que talvez o ater-
rorize (São João). É nessa dinâmica que ele promove uma suspensão da minha presença,
utilizando o veículo da brincadeira já estabelecida entre nós, ou seja, instiga a minha imo-
bilidade ao não acender a luz. Enquanto suspende meu olhar, meus movimentos e a minha
164
fala, há uma abertura para os seus e passa a ocupar todo o espaço da sala, fisicamente com
seu corpo pelo deslocamento, pelos objetos ao arremessá-los ao chão, e pela sua voz ao
balbuciar sons.
Aceito o convite a permanecer no solo em uma suposição da intencionalidade
dele ao não acender a luz. Não interpreto tal ato como um mero esquecimento ou como
um retorno a uma condição de repetição. Outorgo um valor da diferença nessa não-ação
na direção do interruptor, consequentemente, compreendo como necessário meu apaga-
mento da cena e aceito meu destino de permanecer deitada ao chão, mas aguardo que ele
o descontinue. Uma chave de leitura aos seus atos é a percepção da presença do outro
como ameaçadora, como se todos os espaços estivessem "submetidos ao poder onímodo
do desejo de um só”(Aulagnier, 1975/2001, p.72). Isto é, um efeito de uma inscrição do
processo primário em sua representação fantasiada que sustenta a diferença de um espaço
interno e outro externo, mas que, concomitantemente, apaga qualquer disjunção entre es-
ses ao supor que ambos são regidos pelo mesmo desejo. Encontra no ato de não acender a
luz um modo de apagar minha existência e, consequentemente, meu desejo na cena. Essa
é uma relação complexa entre ambos agenciamentos, pois transferencialmente sentia-me
convocada, de fato, a exceder a intensidade das minhas ações na sua presença. Há aí um
descompasso entre nossas danças, sinto minha agitação crescente ao seu lado, uma ten-
tativa desesperada de contagiá-lo, como se essa fosse a forma de provocar sua movimen-
tação (São João). É uma sensação possivelmente decorrente de seu próprio apagamento
no encontro, pelos seus maneirismos corporais lentificados e próximos à imobilidade.
Apesar da torção na cena que ele pôde produzir, a sensação de uma agitação per-
manece em meu corpo, entretanto, há uma mudança na direção dessa. Enquanto anteri-
ormente movia-me tentando controlar a intensidade de minhas ações, mas ainda com a
tentativa de agenciá-lo ao aproximá-lo do meu ritmo. A posterior agitação é atravessada
por uma percepção de fragilidade; ao que meu corpo torna-se rígido em uma incerteza
produzida pela impossibilidade de receber os estímulos visuais de forma ampla. Nesse
ponto, parece ocorrer que nosso contato provoca a inversão de determinados maneiris-
mos, cada um apropriando-se de parte do outro para a realização de um novo. Ele incorre
em uma ocupação do espaço atípica a sua, na qual põe em curso uma multiplicidade de
ações: um caminhar acelerado, um atirar os objetos e a utilização de sua voz. Dessa
forma, é possível supor que apropria-se de alguns de meus atos quando os suspende em
mim. Em contrapartida, o fato de eu permanecer ao solo sem saber o que está aconte-
cendo ao meu redor, coloca-me em uma posição de fragilidade, sinto-me sob ameaça, tal
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de seus conceitos para a interpretação das narrativas produzidas. Entretanto, essa pes-
quisa nasce a partir da inquietação com os efeitos da transferência em meu corpo, o que
produz uma pergunta sobre o lugar desse nos atendimentos clínicos. Efetivamente, en-
contrei algumas formas de examinar a questão pela teoria de Aulagnier, principalmente,
tomando suas concepções sobre a transferência e sobre a continuidade da importância do
corpo ao longo de toda existência. Restringir a essa leitura seria uma possibilidade de
encaminhamento desse escrito, que se encerraria na articulação da clínica com a própria
teoria psicanalítica. Entretanto, o percurso realizado anteriormente pelo perspectivismo
ameríndio, impulsionou que essa dissertação se deslocasse por outra vereda. A aposta
deu-se na possibilidade de abrir, nesse trabalho, um campo de diálogo entre a psicanálise
e o perspectivismo, enquanto uma via de tensionar a disciplina e, consequentemente, a
clínica psicanalítica.
A potência da presença do perspectivismo ameríndio está no princípio de sua aber-
tura para o encontro, como o espaço da indeterminação e, consequentemente, da constru-
ção do novo. A proposta de Viveiros de Castro põe, no horizonte, a dimensão da diferença
como inerente a qualquer encontro - tal concepção inscreve o constante desdobramento da
multiplicidade. Isto é, por uma lógica que compreende o não apagamento dos equívocos,
mas formas de dar contornos a esses. A particularidade do trabalho clínico escrito nas
narrativas foi o que produziu em mim a insistência pela articulação da psicanálise com
o perspectivismo ameríndio. Dito de outro modo, o reconhecimento da diferença subs-
tancial existente na clínica entre minha posição como analista e as crianças que têm uma
recusa ao outro e uma fixação em determinados estímulos sensoriais instigou a hipótese
quanto a necessidade de uma modificação em mim para estar disponível a esse encontro
transferencial. Para tal, encontrei no perspectivismo a suposição de uma forma de produ-
ção de uma torção do modo a sustentar pela diferença a disponibilidade que passa pela
corporeidade.
A proposta da manutenção de um trabalho clínico nessa diferença encontra, na te-
orização de Viveiros de Castro, um caminho de leitura pela via da produção de um estado
de devir. Ou seja, a percepção de que o encontro que sustenta a multiplicidade provoca
a inscrição de novos vínculos entre elementos diversos, o que não apaga as particularida-
des de cada um, mas os modifica. Tal proposição do perspectivismo ameríndio dialoga
diretamente com a pergunta dessa dissertação, isto é, o que reverbera em meu corpo pelos
encontros transferenciais modifica meus maneirismos e meus afetos nessa clínica. Em
paralelo, coloca em cena o que eu modifico nas crianças dessas narrativas.
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tre as três categorias, um nó. Isto é, trechos que, no princípio, separei para um debate
emaranharam-se nas outras discussões encaminhando a sequência da discussão à aproxi-
mações entre as diferentes categorias.
Essa situação ilustra a potência do texto, na medida em que, representa que esse
não é uma simples transcrição de um pensamento, mas a própria construção de algo. A
escrita enquanto ato é a colocação em cena, ao mesmo tempo, de pontos de afirmativa que
fecham em uma materialização e da abertura para a multiplicidade; para a continuidade
do enredamento de palavras e sentidos. Tal formulação dialoga com a hipótese dessa dis-
sertação: que a clínica ocorre no intervalo entre a sustentação de uma posição e a abertura
para o novo, o que pode ser transposto para o corpo como a disponibilidade para os afetos
produzidos no encontro. O modo como pude dar forma a esse intervalo no texto, deu-se
no movimento de trançar, o que por vezes sobrepôs cada aspecto aqui trabalhado: a psi-
canálise, o perspectivismo ameríndio e a clínica. Entretanto, essa sobreposição objetivou
não produzir apagamentos. Foi uma tentativa de não igualar por correspondência, mas
articular um diálogo capaz de apontar à multiplicidade do devir. Esse trançado ritmou o
escrito em um vai e vem argumentativo e produtor de questionamentos, na pretensão de
ter construído nesse enodamento alguns contornos à pergunta inicial.
Apesar da necessidade de amarrar um nó para que a trança não se desfaça, esse
texto também se encerra advertido de seu fracasso em dar conta da complexidade do tema,
tanto de pensar o que ocorre com o corpo do analista, e ainda mais da análise dos casos
clínicos aqui narrados, afinal, “também sei que qualquer canto é menor do que a vida de
qualquer pessoa”. A leitura desses foi um recorte temporal e, principalmente da minha
transferência com esses sujeitos e da minha elaboração pelas narrativas construídas. En-
tretanto, o texto pretendeu ser um testemunho da possibilidade da construção de alianças
entre elementos heterogêneos: entre o perspectivismo e a psicanálise; entre eu, enquanto
analista, e as crianças das narrativas, enquanto analisandos; entre meu corpo e outros
afetos.
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