A Forma Espacial Do Herói

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— Titulo da edição original: O autor e o herói na atividade estética.

— Texto de arquivos (1920-1930), não retomado pelo autor e deixado inacabado. O manuscrito não tem título e encontra-se mutilado de
sua parte inicial. A publicação original menciona as passagens ilegíveis (assinaladas com [il...]) assim como os cortes que foram
praticados (assinalados com [...]), que estia edição reproduz.
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O problema do herói
na atividade estética

A relação do autor com o herói, tal como se inscreve em sua arquitetônica estável e em
sua dinâmica viva, deve ser compreendida tanto sob o ângulo do princípio básico a que
obedece, quanto sob o ângulo das particularidades individuais que ela reveste neste ou
naquele autor, nesta ou naquela obra. Propomo-nos, em primeiro lugar, definir esse
princípio básico, em segundo, extrair dele os processos e os tipos de individuação e, para
terminar, verificar nossas posições mediante uma análise da relação do autor com o herói
nas obras de Dostoievski, Puchkin e outros.
Já enfatizamos o bastante que todos os componentes de uma obra nos são dados através
da reação que eles suscitam no autor, a qual engloba tanto o próprio objeto quanto a reação
do herói ao objeto (uma reação a uma reação); é nesse sentido que um autor modifica todas
as particularidades de um herói, seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus
atos, pensamentos, sentimentos, do mesmo modo que, na vida, reagimos com um juízo de
valor a todas as manifestações daqueles que nos rodeiam: na vida, todavia, nossas reações
são díspares, são reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem, e mesmo
quando o determinamos enquanto todo, definindo-o como bom, mau, egoísta, etc.,
expressamos unicamente a posição que adotamos a respeito dele na prática cotidiana, e esse
juízo o determina menos do que traduz o que esperamos dele; ou então se tratará apenas de
uma impressão aleatória produzida por esse todo ou, enfim, de uma má generalização
empírica. Na vida, o que nos interessa não é o todo

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do homem, mas os atos isolados com os quais nos confrontamos e que, de uma maneira ou
de outra, nos dizem respeito. E, como veremos mais adiante, é ainda em nós mesmos que
somos menos aptos para perceber o todo da nossa pessoa. Na obra de arte, em
compensação, na base das reações de um autor às manifestações isoladas do herói, haverá
uma reação global ao todo do herói cujas manifestações isoladas adquirem importância no
interior do conjunto constituído por esse todo, na qualidade de componentes desse todo.
Essa reação a um todo é precisamente específica da reação estética que reúne o que a
postura ético-cognitiva determina e julga e lhe assegura o acabamento em forma de um
todo concreto-visual que é também um todo significante. Essa reação global ao herói é assi-
nalada por uma posição de princípio, produtiva e criadora. De uma maneira geral, uma
relação assinalada por uma posição de principio é produtiva e criadora. O que na vida, na
cognição e no ato, designamos como objeto determinado, não recebe sua designação, seu
rosto, senão através da nossa relação com ele: é nossa relação que determina o objeto e sua
estrutura e não o contrário; é somente quando nossa relação se torna aleatória, como que
caprichosa, quando nos afastamos da relação de princípio que estabelecemos com as coisas
e com o mundo, que o objeto se nos torna alheio e fica autônomo, começa a se desagregar,
abandonando-nos ao reino do aleatório no qual perdemos a nós mesmos e perdemos
também a determinação estável do mundo. O autor não encontra uma visão do herói que se
assinale de imediato por um princípio criador e escape ao aleatório, uma reação que se
assinale de imediato por um princípio produtivo; e não é a partir de uma relação de valores,
de imediato unificada, que o herói se organizará em um todo: o herói revelará muitos
disfarces, máscaras aleatórias, gestos falsos, atos inesperados que dependem das reações
emotivo-volitivas do autor; este terá de abrir um caminho através do caos dessas reações
para desembocar em sua autêntica postura de valores e para que o rosto da personagem se
estabilize, por fim, em um todo necessário. Quantos véus, que escondem a face do ser mais
próximo, que parecia perfeitamente familiar, não precisamos, do mesmo modo, levantar,
véus depositados nele pelas casualidades de nossas reações, de nosso relacionamento com
ele e pelas

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situações da vida, para ver-lhe o rosto em sua verdade e seu todo. O artista que luta por
uma imagem determinada e estável de um herói luta, em larga medida, consigo mesmo. Os
mecanismos psicológicos desse processo não poderiam, tais como se apresentam, ser objeto
de nosso estudo, pois só temos acesso indireto a eles através do que ficou depositado deles
na obra de arte; em outras palavras, só através da história ideal de um sentido e das leis que
lhe regem a estruturação. Quanto a determinar a causalidade temporal, o desenvolvimento
psicológico desse processo, estes são pontos sobre os quais, no conjunto, ficamos à mercê
das hipóteses, e eles não têm nenhuma serventia para a estética.
Essa história ideal do sentido, um autor no-la conta somente em sua obra, e não, se for
o caso, em suas confissões sobre a sua obra ou no que formular sobre o processo de seu ato
criador. O que diz um autor deve ser considerado com a maior circunspecção pelas
seguintes razões: a reação global de que procede o todo do objeto decorre do desempenho
do ato criador e não é vivida como algo determinado - pois o que a determina se encontra
precisamente no produto criado, isto é, no objeto a que essa reação deu uma forma. O autor
reflete a posição emotivo-volitiva de seu herói e não a sua própria atitude para com o herói;
esta, o autor a terá concretizado em um objeto, e não poderia, enquanto tal, ser objeto de
análise de uma vivência reflexiva; o autor cria, mas não vê sua criação em nenhum outro
lugar a não ser no objeto ao qual deu uma forma; em outras palavras, ele só vê o produto
em devir de seu ato criador e não o processo psicológico interno que preside a esse ato.
Assim é, aliás, a natureza da vivência de qualquer ato criador: ele vive seu objeto e vive a si
mesmo no objeto, mas não vive o processo da sua própria vivência; o trabalho de criação é
vivido, mas trata-se de uma vivência que não é capaz de ver ou de apreender a si mesma a
não ser no produto ou no objeto que está sendo criado e para o qual tende. Por isso o autor
nada tem que dizer sobre o processo de seu ato criador, ele está por inteiro no produto
criado, e só pode nos remeter à sua obra; e é, de fato, apenas nela que vamos procura-lo.
(Os aspectos técnicos do ato criador, a perícia, são claramente perceptíveis, porém, de
novo, no objeto.) E quando o artista, além da obra criada e complementarmente a esta, em-
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preende falar-nos de seu ato criador, da relação criadora que ele não viveu interiormente e
que se concretizava numa obra (não a viveu, ele vivia o herói), ele substitui a obra já criada
por uma relação nova, mais receptiva. Quando o autor estava criando seu herói, só o vivia
através da imagem na qual havia inserido o principio de sua relação criadora com o herói;
quando o autor fala de seu herói (as confidências de um Gogol, de um Gontcharov),
expressa sua relação do momento com um herói já criado e determinado, transmite a
impressão que este produz nele como imagem artística e expressa a relação que teria com
um ser vivo, determinado, encarado de um ponto de vista social, moral, ou outro; o herói
daí em diante tornou-se independente de seu criador, e o autor, por sua vez, também se
tornou independente dele — homem, crítico, psicólogo ou moralista. Se levarmos em
consideração fatores aleatórios que condicionam o que diz o homem-autor ao se pronunciar
sobre seus heróis, fatores tais como: sua visão atual do mundo suscetível de ter se
modificado sensivelmente, suas aspirações, suas pretensões (Gogol), as considerações
práticas, a crítica, etc., fica evidente que esse tipo de declaração só pode proporcionar um
material incerto sobre a geração do herói. E um material que tem enorme valor biográfico e
pode, também, adquirir valor estético, mas somente depois que tiver sido posto em evi-
dência [il...] do sentido artístico da obra. O autor-criador contribuirá para nos esclarecer o
homem-autor, sendo apenas depois disso que o significado do que ele disser sobre seu ato
criador ficará completo e esclarecido. O herói não é o único que se separa do processo de
que emana, o autor faz o mesmo. E por esta razão que cumpre destacar a produtividade,
enquanto tal, da atividade criadora e da reação global ao herói: um autor não é o depositário
de uma vivência anterior, e sua reação global não decorre de um sentimento passivo ou de
uma percepção receptiva; o autor é a única fonte da energia produtora das formas, a qual
não é dada à consciência psicologizada, mas se estabiliza em um produto cultural
significante; a reação ativa do autor se manifesta na estrutura, que ela mesma condiciona,
de uma visão ativa do herói percebido como um todo, na estrutura de sua imagem, no ritmo
de sua revelação, na estrutura de entonação e na escolha das unidades significantes da obra.

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E apenas com a condição de haver compreendido o princípio dessa reação criadora
global de um autor diante do herói, de haver compreendido o princípio dessa visão do herói
que o gera enquanto todo determinado em cada um de seus componentes, que se poderão
determinar com rigor os critérios de conteúdo e de forma aplicáveis aos diversos tipos de
heróis, conferir-lhes um valor constante e constituir uma tipologia fundamentada e
sistemática deles. Nesse ponto reina, até agora, o mais completo caos na estética da criação
verbal e, principalmente, na história da literatura. A todo momento, esbarramos na confusão
total dos diversos tipos de abordagens e de critérios avaliativos. O herói positivo ou
negativo (a relação com o autor), autobiográfico ou objetivo, idealista ou realista, a
heroificação, a sátira, o humor, a ironia; o herói épico, dramático, lírico, o caráter, o tipo, a
personagem; o herói romanesco; a famosa classificação dos papéis cênicos: o galã (lírico,
dramático), o raciocinador, o ingênuo, etc. — todas elas classificações que não determinam
o herói, não são fundamentadas, não se ajustam umas às outras, e, por sinal, falta o próprio
princípio que possibilitaria ajustá-las, fundamentá-las. A abordagem mais séria desses
problemas resume-se aos métodos biográficos e sociológicos, que, entretanto, não dão pro-
vas de uma compreensão formal-estética suficientemente aprofundada do princípio criador
existente na relação do autor com o herói, a qual é substituída por uma relação psicológica
e social, passiva e transcendente* à consciência criadora: o autor e o herói não aparecem
como os componentes do todo artístico, mas como componentes da unidade transliterária
constituída pela vida psicológica e social.
A prática mais corrente consiste em extrair um material biográfico de uma obra e,
inversamente, em explicar uma obra pela biografia, contentando-se com uma coincidência
entre fatos pertencentes respectivamente à vida do herói e à do autor. Opera-se com o
auxílio de trechos que pretendem ter um sentido e, com isso, esquece-se completamente o
todo do herói e o todo do autor, o que faz que se escamoteie o essencial: a for
~. Transcendente traduz, aqui e mais adiante, o termo transgrediente que Bakhtin tira
da terminologia da estética alemã — sem ambigüidade terminológica possível com os
empregos calcados no francês e concernentes à filosofia idealista — no capítulo III — 1-2-
3, pp. 112, 120, 125.
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ma da relação com o acontecimento, a forma como este é vivido no todo constituído pela
vida e o mundo. Semelhantes confrontações factuais são particularmente bárbaras, assim
como a ótica pela qual se explicam uma pela outra as respectivas visões do mundo do herói
e do autor. E colocam-se em paralelo a formulação abstrata de uma idéia considerada
isoladamente no autor e a idéia correspondente que se irá buscar na boca do herói,
correlacionam-se as declarações políticas, sociais, de um Griboiedov e as declarações
correspondentes de seu herói, Tchacki, afirma-se a similitude de suas visões sociopolíticas
do mundo: assimilam-se, do mesmo modo, as opiniões de um Tolstoi e as de seu herói,
Levin. Como veremos mais adiante, é impossível qualquer correspondência teoricamente
fundamentada entre um herói e um autor, pois a relação é de natureza diferente. No caso
que acabamos de mencionar, sempre se ignorará o princípio fundamental de uma distinção
dos planos em que se situam o todo do herói e o todo do autor, se ignorará até a forma da
relação com uma idéia, ou mesmo com uma visão do mundo que, em principio, constitui
um todo teórico. E chega-se a discutir o herói como se se tratasse de um autor, como se
fosse possível discutir ou aprovar o que existe, e ter-se-á esquecido a refutação estética.
Acontece, por certo, que um autor converta seu herói no porta-voz de suas próprias idéias,
segundo o valor teórico ou ético delas (político, social), com o intuito de torná-las
verídicas, com o objetivo de difundi-las, mas o princípio estético da relação com o herói
não é respeitado; nesses casos, ocorre mesmo assim, a despeito da vontade e da consciência
do autor, um remanejamento da idéia que a fará corresponder ao todo do herói, e isso não
no interior da unidade teórica de sua visão do mundo, mas no interior do todo de sua pessoa
onde, junto com seu aspectofísico, com sua maneira de ser, com seu contexto de vida, essa
visão do mundo que lhe é própria representa apenas um componente desse todo; em outras
palavras, a propagação de uma idéia é substituída pelo que denominamos uma encarnação
do sentido daquilo que existe. Quando não ocorre tal remanejamento, teremos uma inserção
transliterária, não solúvel no todo da obra, e, para explicá-la, para avaliar a distância que se
introduziu entre a idéia, no significado puramente teórico que ela tinha para o autor, e a
forma que procurou encarná-la,
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incorporá-la ao todo constituído pelo pensamento de um herói, em outras palavras, para


descobrir a direção em que se efetuou esse remanejamento, será preciso ter compreendido
previamente o principio estético que fundamenta a relação do autor com o herói. Não
procuramos negar totalmente o valor das eventuais confrontações, que podem ser eficazes,
entre as respectivas biografias do autor e do herói, entre suas visões do mundo — em se
tratando de história da literatura ou de estética ~, denunciamos simplesmente o
procedimento puramente factual, desprovido de qualquer principio, tal como é praticado
atualmente, baseado na confusão total entre o autor-criador, componente da obra, e o autor-
homem, componente da vida, com total ignorância do princípio criador existente na relação
do autor com o herói. Daí resulta, de um lado, a ignorância e a distorção da pessoa ética,
biográfica, do autor, e, do outro lado, uma incompreensão geral do todo constituído pela
obra e o autor. Servir-se de uma fonte pressupõe que se tenha compreendido seu princípio
produtor; o procedimento aplicado nas ciências históricas para o estudo das fontes é
insuficiente quando se trata de utilizar a obra de arte como fonte biográfica, pois é um
procedimento que não leva em conta o princípio de funcionamento específico a essa fonte
[il...]. Reconhecemos que o erro metodológico que denunciamos, referente à relação com
uma obra de arte, afeta menos a história da literatura do que a estética da criação verbal,
área em que a formação histórico-genética exerce de modo todo especial suas devastações.
Não sucede o mesmo quando a estética se situa no âmbito da filosofia geral, onde o
problema da relação do autor com o herói é colocado em conformidade com um princípio
básico, ainda que nem sempre seja em uma forma pura. (No momento oportuno voltaremos
à tipologia dos heróis e à apreciação dos métodos biográficos e sociológicos.) Tínhamos em
vista as noções: 1) de empatia (Ein.fühlung) pelo fato de ela comportar expressamente o
princípio de uma relação estética do autor-contemplador com o objeto em geral e com o
herói em particular (que foi fundamentada da maneira mais profunda em Lipps); 2) de amor
estético (a simpatia social em Guyau e, numa ótica totalmente diferente, o amor estético em
Cohen). Acontece que essas duas [il...] concepções têm um caráter demasiado geral e
operam sem principio diferencial, quer se tra-

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te das diversas formas de arte, quer do objeto específico de uma visão estética, ou seja, do
herói (mais bem diferenciado em Cohen). Até sob o ângulo de uma estética geral, tanto um
quanto o outro desses princípios não nos parecem inteiramente aceitáveis, embora tanto um
como outro comportem inúmeros pontos exatos. Precisaremos levar em conta essas duas
noções na seqüência de nosso desenvolvimento. Por ora, não é a ocasião de darmos uma
apreciação global delas.
A estética da criação verbal ganharia em se inspirar mais na filosofia estética do que
nas generalizações pseudocientíftcas da genética, tal como elas se manifestam na história
da literatura. Ë lamentável que aquisições importantes da estética geral não tenham
exercido nenhuma influência sobre a estética da criação verbal. Chega-se a registrar como
que um temor ingênuo ante um eventual aprofundamento filosófico. E o que explica o nível
extraordinariamente baixo em que se encontra a problemática dos fatos de literatura.
Vamos agora dar uma definição muito genérica do autor e do herói, concebidos como
correlativos no todo de uma obra; depois, apresentaremos uma fórmula muito genérica da
inter-relação deles, fórmula esta que será submetida a uma diferenciação e a um
aprofundamento nos capítulos seguintes.
O autor é o depositário da tensão exercida pela unidade de um todo acabado, o todo do
herói e o todo da obra, um todo transcendente a cada um de seus constituintes considerado
isoladamente. Esse todo que assegura o acabamento ao herói não poderia, por princípio,
ser-nos dado de dentro do herói, o herói não pode viver dele e inspirar-se nele em sua vi-
vência e em seus atos, esse todo lhe vem -— é-lhe concedido como um dom -— de outra
consciência atuante, da consciência criadora do autor. A consciência do autor é consciência
de uma consciência, ou seja, é uma consciência que engloba e acaba a consciência do herói
e do seu mundo, que engloba e acaba a consciência do herói por intermédio do que, por
princípio, é transcendente a essa consciência e que, imanente, a falsearia. O autor não só vê
e sabe tudo quanto vê e sabe o herói em particular e todos os heróis em conjunto, mas
também vê e sabe mais do que eles, vendo e sabendo até o que é por princípio inacessível
aos heróis; é precisamente esse excedente, sempre determinado e constante de que se
beneficia a visão e o saber
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do autor, em comparação com cada um dos heróis, que fornece O principio de acabamento
de um todo — o dos heróis e o do acontecimento da existência deles, isto é, o todo da obra.
Com efeito, o herói leva uma vida cognitiva e ética, seus atos se orientam no acontecimento
ético aberto da vida ou no mundo pré-dado da cognição; o autor dirige o herói e sua
orientação ético-cognitiva no mundo da existência que é por principio acabado e que tira
seu valor, sem levar em conta o sentido por-vir* do acontecimento, da própria diversidade
de sua atualidade concreta. Se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo
acabado, não posso nem viver nem agir: para viver, devo estar inacabado, aberto para mim
mesmo — pelo menos no que constitui o essencial da minha vida —, devo ser para mim
mesmo um valor ainda por-vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade.
A consciência do herói, seu sentimento e seu desejo do mundo — sua orientação
emotivo-volitiva material —, é cercada de todos os lados, presa como em um círculo, pela
consciência que o autor tem do herói e do seu mundo cujo acabamento ela assegura; o
discurso do herói sobre si mesmo é impregnado do discurso do autor sobre o herói; o
interesse (éticocognitivo) que o acontecimento apresenta para a vida do herói é englobado
pelo interesse que ele apresenta para a atividade artística do autor. E nesse sentido que a
objetividade estética opera numa perspectiva que a distingue da objetividade cognitiva e
ética: esta depende de um juízo neutro, indiferente à pessoa e ao acontecimento e que se
exerce do ponto de vista de um valor ético e cognitivo, de um significado geral, ou consi-
derado como tal, ou que tende para esse significado geral; para a objetividade estética, o
que está no centro dos valores é o todo do herói e do acontecimento que lhe concerne, aos
quais serão subordinados todos os valores éticos e cognitivos; a objetividade estética
engloba e inclui a objetividade éticocognitiva. É claro que os valores cognitivos e éticos
não mais Poderão, por conseguinte, ser os fatores de acabamento de um
* Pré-dado traduz, neste texto, uma noção complexa (zadannost’) que entra em oposiçãocombinação com (1) o dado (dannost’),
(2) o que se Situa
na frente, à espera (predstojachtcheje) cuja grafia analítica por-vir transmite
melhor o Sentido.
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todo e, nesse sentido, são transcendentes à consciência, não só efetiva, mas também
possível, como que prolongada em pontilhado, do herói: o autor sabe e vê mais que ele, não
só na direção do olhar de seu herói, mas também nas outras direções, inacessíveis ao
próprio herói; é esta precisamente a postura que um autor deve assumir a respeito de um
herói.
Para encontrar o autor assim entendido numa dada obra, cumprirá separar tudo quanto
serve para o acabamento do herói e do acontecimento que sua vida constitui e que é, por
princípio, transcendente à consciência do herói, e, a partir daí, determinar o princípio de
unidade da tensão criadora aplicada; o depositário vivo dessa unidade que fundamenta o
acabamento é o autor, em oposição ao herói que, por sua vez, é o depositário da unidade
que fundamenta o acontecimento aberto, que não pode ser acabado por dentro, constituído
pela vida. A atividade que assegura o acabamento ao herói provoca também sua
passividade, assim como a parte é passiva em relação ao todo que a engloba e lhe assegura
o acabamento.
Daí decorre diretamente a fórmula geral do princípio que marca a relação criadora,
esteticamente produtiva, do autor com o herói, uma relação impregnada da tensão peculiar
a uma exotopia — no espaço, no tempo, nos valores — que permite juntar por inteiro um
herói que, internamente, está disseminado e disperso no mundo do pré-dado da cognição e
no acontecimento aberto do ato ético; que permite juntar o próprio herói e sua vida e
completá-lo até torná-lo um todo graças ao que lhe é inacessível, a saber, a sua própria
imagem externa completa, o fundo ao qual ele dá as costas, sua atitude para com o
acontecimento da sua morte e do seu futuro absoluto, etc.; que permite, finalmente,
proporcionar ao herói a razão de ser e o acabamento, sem levar em conta o sentido, as
aquisições e os êxitos de sua própria vida orientada para a frente dele mesmo. Essa atitude
do autor vai subtrair o herói ao acontecimento, singular e único, da existência, o qual
engloba o herói e o autor-homem, no qual o herói poderia situar-se ao lado do autor — quer
como companheiro, à sua frente, quer como adversário, quer, afinal, no interior do autor,
como ego —, vai subtrair o herói à solidariedade em comum e à responsabilidade coletiva e
vai engendrá-lo, enquanto novo homem, num novo plano da existência, onde ele não
poderia nascer por própria
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conta e pelas próprias forças, onde ele reveste uma carne nova que, para ele mesmo, não é
substancial e não existe. É [il...] .a exotopia do autor, seu próprio apagamento amoroso fora
do campo existencial do herói e o afastamento de todas as coisas no intuito de deixar esse
campo livre para o herói e para sua vida, é a compreensão que participa no acabamento do
acontecimento da vida do herói, exercendo-se a partir do ponto de vista real-coginitivo e
ético de um espectador que não toma parte no acontecimento.
Essa relação, formulada aqui de uma forma um tanto quanto genérica, comporta um
princípio vital e dinâmico: a exotopia é algo por conquistar e, na batalha, é mais comum
perder a pele do que salvá-la, sobretudo quando o herói é autobiográfico, embora esse não
seja o único caso: costuma ser tão difícil situar-se fora daquele que é o companheiro do
acontecimento quanto fora daquele que é o adversário; tanto faz situar-se dentro do herói,
ao seu lado ou à sua frente, todas estas são posições que, do ponto de vista dos valores,
desnaturam a visão e não contribuem para completar o herói e assegurar-lhe o acabamento;
em todos esses casos, os valores da vida triunfam sobre aqueles que são seus depositários.
A vida do herói é vivida pelo autor numa categoria de valores diferente daquela que ele
conhece em sua própria vida e na vida dos outros — participantes reais do acontecimento
ético aberto, singular e único, da existência —, é pensada num contexto de valores
absolutamente diferente.
Mencionarei três casos típicos do recuo que se introduz na relação simples do autor
com o herói, os quais aparecem quando o herói coincide com o autor na vida, ou seja,
quando no essen xxxx cial o herói é autobiográfico.
De acordo com uma relação simples, o autor deve situar-se fora de si mesmo, viver a si
mesmo num plano diferente daquele em que vivemos efetivamente nossa vida; essa é a
condição expressa para que ele possa completar-se até formar um todo, graças a valores que
são transcendentes à sua vida, vivida internamente, e que lhe asseguram o acabamento. Ele
deve tornar-se outro relativamente a si mesmo, ver-se pelos olhos de outro. A bem dizer, na
vida, agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando compreender, levar
em

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conta o que é transcendente à nossa própria consciência: assim, levamos em conta o valor
conferido ao nosso aspecto em função da impressão que ele pode causar em outrem -—
para a pura autoconsciência, de maneira imediata, tal valor não existe (para uma
autoconsciência real e pura); levamos em conta o fundo ao qual damos as costas, o que não
vemos nem conhecemos de maneira imediata, cujo valor não existe para nós e não é visível,
significante, cognoscível senão para os outros; e, finalmente, presumimos, levamos em
conta, o que se passará após nossa morte, o que é o resultado global da nossa vida e não
existe, claro, senão para os outros; em suma, estamos constantemente à espreita dos
reflexos de nossa vida, tais como se manifestam na consciência dos outros, quer se trate de
aspectos isolados, quer do todo da nossa vida; chegamos a levar em conta o coeficiente de
valor com que a nossa vida se apresenta aos outros, o qual difere profundamente daquele
que a acompanha quando a vivemos para nós mesmos, em nós mesmos. Mas o que
conhecemos e presumimos de nós mesmos através da visão do outro se torna totalmente
imanente à nossa consciência, parece ser traduzido para a linguagem da nossa consciência,
sem nela alcançar consistência e autonomia, sem romper a unidade de nossa vida orientada
para frente de si mesma, para o acontecimento por-vir e que não fica em repouso e jamais
coincide com a sua própria atualidade dada, presente; e quando esses reflexos chegam a
consolidar-se na nossa vida, o que pode acontecer, põem em ponto morto, freiam qualquer
realização e às vezes se adensam até nos fornecer nosso duplo saído da noite da nossa vida
— voltaremos a isso mais adiante. Tudo quanto pode nos assegurar um acabamento na
consciência de outrem, logo presumido na nossa autoconsciência, perde a faculdade de
efetuar nosso acabamento e apenas amplia em nossa consciência a orientação que lhe é
própria; ainda que conseguíssemos apreender o todo de nossa consciência, no acabamento
que ele adquire no outro, esse todo não poderia impor-se a nós e assegurar nosso próprio
acabamento, nossa consciência o registraria e o superaria, assimilando-o a uma modalidade
de sua unidade que, no essencial, é pré-dada e por-vir; a última palavra pertencerá sempre à
nossa consciência e não à consciência do outro; quanto à nossa consciência, ela nunca dará
a si mesma a ordem de seu próprio acabamen-

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to. Na vida, depois de vermos a nós mesmos pelos olhos de outro, sempre regressamos a
nós mesmos; e o acontecimento último, aquele que parece-nos resumir o todo, realiza-se
sempre nas categorias de nossa própria vida. Numa auto-objetivação estética do homem-
autor em forma de herói, esse regresso a si mesmo não deve ocorrer; para o autor-outro, o
todo do herói deve permanecer o todo último, é preciso separar o autor do herói/si mesmo
de modo contundente, determinar a si mesmo em termos de valores puros para o outro,
mais exatamente, ver em si mesmo o outro até o fim; pois, de fato, o fundo possível,
imanente à consciência, não é em absoluto a combinação estética da consciência de um
herói com seu fundo: este deve ressaltar uma consciência em seu todo, por mais profunda e
vasta que ela seja, ainda que ela percebesse o mundo inteiro e nela o tornasse imanente, o
processo estético deve proporcionar-lhe um fundo que lhe seja transcendente, o autor deve
encontrar um ponto de apoio fora dessa consciência para que ela se torne um fenômeno
esteticamente acabado —um herói. Assim também, meu próprio aspecto físico refletido
através do outro não é, de maneira imediata, o aspecto físico de um herói.
E quando o autor perde essa posição de valores que lhe assegura sua exotopia ao herói,
observam-se três tipos básicos de relação com o herói, com grande número de variantes no
interior de cada um desses tipos. Sem antecipar a seqüência de nossa exposição,
assinalaremos aqui apenas seus traços mais genéricos.
Primeiro caso: o autor fica sob o domínio do herói cuja orientação emotivo-volitiva
material, cuja postura cognitivo-ética no mundo possuem tanto prestígio para o autor que
este não pode ver o mundo e as coisas a não ser pelos olhos do herói e não pode viver sua
própria vida a não ser pelo interior do herói; o autor não encontra, entre seus próprios
valores, um ponto de apoio estável e convincente fora do herói. Claro, para que o todo
artístico, ainda que inacabado, possa mesmo assim se concluir, serão necessários fatores de
acabamento, e, por conseguinte, o autor deverá necessariamente encontrar um meio de
situar-se fora do herói (em geral, o herói não está sozinho e, no caso que analisamos, a
relação do autor só se estabelece com o herói principal), senão obteremos um tratado de
filoso-
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fia ou uma introspecção-confissão* ou então, finalmente, a tensão ético-cognitiva


encontrará sua resolução na vida através do ato-ação. Contudo, esses pontos de apoio
situados fora do herói, aos quais o autor, queira ou não queira, deve recorrer, não terão um
caráter fundamental, serão aleatórios e indecisos; esses pontos de apoio de uma exotopia
movediça flutuarão, sendo ocupados apenas relativamente a certas fases da evolução do
herói que não tardará a desalojar o autor da posição que este ocupava provisoriamente,
obrigando-o a procurar outra às cegas; esses pontos de apoio aleatórios costumam ser
fornecidos ao autor pelas outras personagens com as quais o autor se identificar,
reproduzindo-lhes o enfoque emotivo-volitivo que as liga ao herói autobiográfico, na
esperança de se libertar de seu herói, ou seja, dele próprio. Num processo desse tipo, as
modalidades de acabamento são díspares e pouco convincentes. Por vezes, quando logo de
saída o combate é desesperado, o autor, para manter-se fora de seu herói, contenta-se com
pontos de apoio convencionais que se prendem às técnicas puramente formais de narração e
de composição; o resultado é uma obra de produção mecânica e não de criação, o estilo
como conjunto operante de procedimentos de acabamento degenera em convencionalismo.
Precisemos que isso não se deve a uma concordância ou discordância entre as idéias do
autor e as do herói: para encontrar um ponto de apoio fora do herói, não é necessário nem
suficiente combater seus pontos de vista; a tensão de uma discordância vivida de maneira
interessada e peremptória é tão ineficaz, em termos de estética, quanto uma adesão
interessada ao herói. O necessário e encontrar, a respeito do herói, uma posição tal que sua
visão do mundo, com o que ela pode ter de certo ou de errado, de bem ou de mal —
indiferentemente — se reduza a não ser mais que um componente do todo concreto
existencial, intuitivamente perceptível, que ele constitui; o necessário é centrar os valores
no dado maravilhoso da existência do herói, após tê-los subtraído às coerções do pré-dado;
é, não o escutar e concordar com ele, mas vê-lo por inteiro, em toda a plenitude de sua
atualidade presente, e admirá-lo — o que não compromete em nada a importância de uma
postura ético-cognitiva sus-
* Introspecção~confissâo traduz, aqui e mais adiante, uma palavra composta bakhtiniana (samootchiot-ispoved’,j, literalmente,

auto-relato-confissão
39

cetível de acarretar uma concordância ou discordância que, longe de se perderem, guardam


toda a sua importância, limitando-se, todavia, a não ser mais que um componente do todo
constituído pelo herói; a admiração é pensada e se organiza em tensão; a concordância e a
discordância só significam a integridade, sem com isso a esgotar, da posição ocupada pelo
autor a respeito do herói. No caso que analisamos, essa posição singular é a única de onde é
possível ver o todo do herói e o mundo enquanto componente que o cerca, o delimita, e
contra o qual ele se destaca; essa posição exotópica ao herói não tira a estabilidade e a força
de convicção de uma visão completa de que pode beneficiar-se um autor, da qual decorre,
entre outras coisas, uma particularidade específica ao todo artístico do caso preciso que
estudamos; o fundo não é trabalhado, não é visto distintamente pelo autor-contemplador e
nos é dado de modo hipotético, incerto, de dentro do herói, do mesmo modo que nos é dado
o da nossa própria vida. Às vezes esse fundo está totalmente ausente: fora do herói e de sua
consciência, nenhum elemento da realidade está estabilizado; o herói não é aparentado com
o fundo do qual ele se destaca (com um ambiente e com um modo de vida, com a natureza,
etc.), não se insere num todo artístico necessário, não se movimenta como todo ser vivo se
movimenta contra o fundo de um cenário inerte e imóvel; não haverá fusão orgânica entre a
posição interior, ético-cognitiva, do herói e sua expressividade externa (seu aspecto físico,
sua voz, sua maneira de ser, etc.), pois como esta o envolve como uma máscara, fortuita e
não-essencial, ou então não atinge relevo algum, o herói não fica voltado para nós, só o
vivemos de dentro dele; os diálogos, tais como sucedem entre seres orgânicos, concretos —
cujas modalidades significantes, necessárias à execução artística, estão a cargo dos rostos,
das roupas, da mímica, da ambiência da vida, e que ultrapassam o contexto de uma dada
cena — começam a degenerar em debates interessados cujos valores são centralizados no
objeto debatido; e, finalmente, os constituintes que funcionam como elementos de
acabamento não ficam unificados, os traços do autor se dispersam e não lhe asseguram a
unidade, o autor pode ser substituído por uma figura convencional. E a esse tipo que
pertencem quase todos os heróis de Dostoievski, certos heróis de Tolstoi (Pedro, Levin), de
Kierkegaard, de
40

Stendhal e de outros escritores cujos heróis tendem em parte aos extremos desse tipo de
personagem.
Segundo caso: o autor tem o domínio do herói, introduz nele princípios de acabamento,
a relação do autor com o herói se torna, em parte, a relação do herói consigo mesmo. O
herói empreende determinar a si mesmo, a autoprojeção do autor se entranhou na alma do
herói e nas suas palavras.
Esse tipo de herói pode evoluir em duas direções. Primeiro, o herói não é
autobiográfico e o princípio de autoprojeção que o autor insuflou nele é apto para
assegurar-lhe o acabamento; se, no primeiro caso que analisamos, era a forma que se
perdia, neste, é o realismo da postura emotivo-volitiva do herói em sua vida que perde sua
força de convicção. Assim é o herói do pseudoclassicismo cuja postura interior é submetida
a um acabamento exclusivamente artístico: na menor de suas manifestações — ato, mímica,
sentimento, fala — o herói jamais se desvia do princípio estético de que emana. Segundo, o
herói é autobiográfico: tendo assimilado a autoprojeção do autor que lhe assegura o
acabamento, a reação global que lhe assegura uma forma, o herói a incorpora à sua própria
vivência e a supera; esse tipo de herói é refratário a qualquer acabamento interno, supera
interiormente tudo o que poderia determiná-lo totalmente e que ele considera inadequado a
si mesmo, vivência qualquer integridade acabada como uma limitação e lhe opõe um
mistério interior indizível. “Você acredita que estou inteiro aqui”, parece dizer, “você
acredita estar vendo tudo o que sou? O essencial, em mim, você não pode nem ver, nem
ouvir, nem conhecer.” Um herói assim é infinito para o autor, ou seja, ele sempre renasce e
sempre exige novas formas de acabamento que ele próprio destrói com sua autocons-
ciência. É o herói do romantismo: o romântico teme trair-se através de seu herói e deixa-lhe
sempre em alguma parte, dentro dele, uma espécie de respiradouro por onde o herói poderá
escapulir para elevar-se acima de sua própria forma de acabamento.
Terceiro caso: o herói é seu próprio autor, pensa sua vida esteticamente, parece
representar um papel; diferentemente do herói romântico infinito e do herói impenitente de
um Dostoievski, tal herói é auto-satisfeito e seu acabamento repleto de segurança.
41

A relação do autor com o herói, tal como a caracterizamos em linhas muito gerais, fica
mais complexa e varia de acordo com os fatores de ordem ético-cognitiva que determinam
o todo do herói e que, como vimos, são indissociáveis da forma artística em que um herói
se encarnará. Assim, a orientação emotivo-volitiva material de um herói pode ser valiosa
para o autor de um ponto de vista cognitivo, ético, religioso, e então teremos a heroificação;
essa orientação pode ser denunciada pelo fato de pretender indevidamente ser importante, e
então teremos a sátira, a ironia, etc. Tudo o que é transcendente à autoconsciência do herói
e que serve para seu acabamento pode ser utilizado para um ou outro desses fins (satírico,
heróico, humorístico, etc.). Assim, encontraremos uma satirização que joga com o aspecto
físico, uma zombaria das ambições ético-cognitivas que jogam com a expressividade
externa determinada pelo que em geral ela tem de demasiado humano, mas encontraremos,
da mesma forma, uma heroificação que se fundamenta no aspecto físico (a
monumentalidade na escultura); o plano de fundo, o que se passa às costas do herói e não
lhe é visível nem conhecido, pode tornar risíveis sua vida e suas pretensões: um pequeno
homem contra o fundo imenso do universo, um pequeno saber contra um fundo de ignorân-
cia, a certeza de ser o centro de tudo, de ser excepcional, confrontada com uma idêntica
certeza nos outros — em todos esses casos, o fundo é utilizado para desnudar, mas também
pode adornar, ser utilizado para heroificar o herói que sobe ao palco. Mais adiante veremos
como a satirizaçâo e a ironia sempre supõem uma possibilidade de serem vividas, ou seja,
possuem um grau menor de exotopia.
Trataremos de demonstrar, antes de mais nada, que os elementos que asseguram o
acabamento estético do herói são valores que lhe são transcendentes, que esses elementos
são inorgânicos na autoconsciência do herói e não participam do mundo da sua vida que
procede de seu interior, que não participam, em outras palavras, do mundo que é o do herói
vivo fora do autor — que esses elementos não são vivenciados como valores estéticos pelo
herói — e, para terminar, de estabelecer a relação existente entre esses constituintes e os
constituintes formais externos: a imagem e o ritmo.
Um único e mesmo participante não pode ocasionar o

42

acontecimento estético; uma consciência absoluta que não conta com nada que lhe seja
transcendente, que esteja situado fora dela mesma e a delimite por fora, não se presta a um
processo estético, só é possível participar dela, mas não vê-la como um todo acabado. O
acontecimento estético, para realizar-se, necessita de dois participantes, pressupõe duas
consciências que não coincidem. Quando o herói e o autor coincidem ou então se situam
lado a lado, compartilhando um valor comum, ou ainda se opõem como adversários, o
acontecimento estético termina e é o acontecimento ético que o substitui (panfleto, ma-
nifesto, requisitório, panegírico e elogio, injúria, confissão, etc.); quando não há herói,
ainda que potencial, teremos o acontecimento cognitivo (tratado, lição); quando a outra
consciência é a de um deus onipotente, teremos o acontecimento religioso (oração, culto,
ritual).
II

A forma espacial do herói

1. [O excedente da visão estética.]

Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes
concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não coincidem. Por mais perto
de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição
que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo
inacessíveis ao seu próprio olhar — a cabeça, o rosto, a expressão do rosto —, o mundo ao
qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva
relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando
estamos nos olhando, dois mundos diferentes se refletem na pupila dos nossos olhos.
Graças a posições apropriadas, é possível reduzir ao mínimo essa diferença dos horizontes,
mas para eliminá-la totalmente, seria preciso fundir-se em um, tornar-se um único homem.
Esse excedente constante de minha visão e de meu conhecimento a respeito do outro, é
condicionado pelo lugar que sou o único a ocupar no mundo: neste lugar, neste instante
preciso, num conjunto de dadas circunstâncias — todos os outros se situam fora de mim. A
exotopia concreta que beneficia só a mim, e a de todos os outros a meu respeito, sem
exceção, assim como o excedente de minha visão que ela condiciona, em comparação a
cada um dos outros (e, correlativamente, uma certa carência — o que vejo do outro é
precisamente o que só o outro vê quando se trata de mim, mas isso não é essencial para
nosso propósito pois, em minha vida, a inter-relação “eu-o

44

outro” é concretamente irreversível); tudo isso é compensado pelo conhecimento que


constrói um mundo de significados comuns, independente dessa posição concreta que um
indivíduo é o único a ocupar, e onde a relação “eu e todos os Outros” não é absolutamente
não-invertível, pois a relação “eu e o outro” é, no abstrato, relativa e invertível, porque o
sujeito cognoscente como tal não ocupa um lugar concreto na existência. Porém esse
mundo unificado do conhecimento não poderia ser percebido como o único todo concreto
que abarcasse toda a diversidade das propriedades existenciais, do mesmo modo que
percebemos o que temos diante dos olhos, pois a percepção efetiva de um todo concreto
pressupõe um contemplador único e encarnado, situado num dado lugar; o mundo do
conhecimento e cada um de seus elementos só podem ser pensados. Da mesma forma, uma
emoção interior e o todo da vida interior podem ser vivenciados concretamente —
percebidos internamente — seja na categoria do eu-para-mim, seja na categoria do outro-
para-mim; em outras palavras, seja como vivência própria, seja como vivência desse outro
único e determinado.
A contemplação estética e o ato ético não podem abstrair o fato de que o sujeito desse
ato e dessa contemplação artística ocupa na existência um lugar concreto, único.
O excedente de minha visão, com relação ao outro, instaura uma esfera particular da
minha atividade, isto é, um conjunto de atos internos ou externos que só eu posso pré-
formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde ele não pode completar-
se. Esses atos podem ser infinitamente variados em função da infinita diversidade das
situações em que a vida pode colocar-nos, a ambos, num dado momento. Mas em toda parte
e sempre o excedente da minha atividade existe e seus componentes tendem a uma
constância estável. O que nos interessa aqui não são atos que, em virtude de seu sentido
externo, implicam a mim e ao outro no acontecimento singular e único da existência e
visam à modificação efetiva do acontecimento e do outro que nele se inscreve enquanto
constituinte do acontecimento — estes são atos-ações propriamente éticos; o que nos
importa são os atos de contemplação -— atos, pois a contemplação é algo ativo e produtivo
-— que não ultrapassam o âmbito do dado representado pelo outro e se limitam

45

a unificar e a ordenar esse dado; os atos de contemplação, que decorrem do excedente da


minha visão interna e externa do outro, são, precisamente, atos propriamente estéticos. O
excedente da minha visão contém em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar
requer que eu lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me
com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo
colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com
tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um
ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e
de meu sentimento. Quando tenho diante de mim um homem que está sofrendo, o horizonte
da sua consciência se enche com o que lhe causa a dor e com o que ele tem diante dos
olhos; o tom emotivo-volitivo que impregna esse mundo das coisas é o da dor. Meu ato
estético consiste em vivenciá-lo e proporcionar-lhe o acabamento (os atos éticos —ajudar,
socorrer, consolar — não estão em questão aqui). O primeiro momento da minha atividade
estética consiste em identificar-me com o outro: devo experimentar — ver e conhecer — o
que ele está experimentando, devo colocar-me em seu lugar, coincidir com ele (como, de
que forma é possível essa identificação? Vamos deixar este problema psicológico de lado,
limitemo-nos a admitir como incontestável o fato de que, até certo ponto, essa identificação
é possível). Devo assumir o horizonte concreto desse outro, tal como ele o vive; faltará,
nesse horizonte, toda uma série de fatos que só são acessíveis a partir do lugar onde estou;
assim, aquele que sofre só terá, de sua expressividade externa, uma percepção parcial que
ele, por sinal, só conhecerá através da linguagem de suas sensações internas: ele não vê a
dolorosa tensão de seus músculos, o finito plástico de seu corpo, a expressão dolorosa de
seu rosto, e não vê o céu azul contra o qual se desenha para mim sua imagem externa
marcada de dor. E mesmo que ele visse o que vejo
— se se encontrasse na frente de um espelho, por exemplo —, não teria um enfoque
emotivo-volitivo apropriado a essa visão que, em sua consciência, não se situaria como ela
se situa na consciência do contemplador. No meu processo de identificação, devo abstrair-
me do significado autônomo dos fatos que são transcendentes à consciência do outro e que
utilizarei a ti-
46

tulo de informação, como dispositivo técnico que me permite identificar-me com ele; a
expressividade externa abre-me o acesso ao interior do outro, permite-me fundir-me com
ele por dentro. Mas será a fusão interna o objetivo principal da atividade estética para a
qual a expressividade externa não seria mais que um meio, uma fonte de informação? De
modo algum: para dizer a verdade, a atividade propriamente estética nem sequer começou.
Com efeito, vivida internamente, a situação daquele que sofre pode levar a um ato ético —
ajuda, reconforto, especulação cognitiva — e, de qualquer modo, após nos termos
identificado com o outro, devemos voltar a nós mesmos, recuperar nosso próprio lugar fora
daquele que sofre, sendo somente então que o material recolhido com a identificação
poderá ser pensado nos planos ético, cognitivo ou estético. Se não houver essa volta a si
mesmo, fica-se diante de um fenômeno patológico que consiste em viver a dor alheia como
a própria dor, de um fenômeno de contaminação pela dor alheia, e nada mais. A rigor, uma
identificação com o outro que acarrete a perda do lugar que somos os únicos a ocupar fora
do outro é quase impossível e, em todo caso, totalmente desprovida de utilidade e de
sentido. Quando me identifico com o outro, vivencio sua dor precisamente na categoria do
outro, e a reação que ela suscita em mim não é o grito de dor, e sim a palavra de reconforto
e o ato de assistência. Relacionar o que se viveu ao outro é a condição necessária de uma
identificação e de um conhecimento produtivo, tanto ético quanto estético. A atividade
estética propriamente dita começa justamente quando estamos de volta a nos mesmos,
quando estamos no nosso próprio lugar, fora da pessoa que sofre, quando damos forma e
acabamento ao material recolhido mediante a nossa identificação com o outro, quando o
completamos com o que é transcendente à consciência que a pessoa que sofre tem do
mundo das coisas, um mundo que desde então se dota de uma nova função, não mais de
informação, mas de acabamento: a postura do corpo que nos transmitia a sua dor tornou-se
um valor puramente plástico, uma expressão que encarna e acaba a dor expressa e num tom
emotivo-volitivo que já não é o da dor; o céu azul que o emoldura tornou-se um
componente pictural que traz solução à dor.
E todos esses valores que acabam a imagem do outro, eu

47

os extraio do excedente de minha visão, vontade e sentimento. Cumpre assinalar que os


processos que nos levam à identificação com o outro, a completá-lo e a acabá-lo, não se
situam necessariamente numa sucessão cronológica e apenas estamos procurando salientar
a distinção de sentido que diferencia essas operações, estreitamente entrelaçadas na nossa
vivência do outro. Uma obra de criação verbal conserva esses dois aspectos na menor de
suas palavras que tem uma função dupla: guia o processo de identificação e proporciona o
princípio de acabamento ao outro, sendo possível o predomínio de um desses dois aspectos.
Procuraremos, em primeiro lugar, examinar os valores plástico-picturais de ordem espacial
que são transcendentes à consciência do herói e de seu mundo, à sua orientação ético-
cognitiva, e que se prendem a um acabamento efetuado de fora, a partir da consciência que
o outro terá dele —o autor-contemplador.

2. [A exterioridade (o aspecto físico).]

Vamos examinar, em primeiro lugar, o problema do aspecto físico enquanto conjunto


dos componentes expressivos que constituem o corpo humano. Como vivemos o nosso
próprio aspecto físico e como vivemos o aspecto físico do outro? Em que plano da vivência
se situa seu valor estético? Estas são as questões em que basearemos a nossa análise.
Não há dúvida de que meu aspecto físico não entra no horizonte concreto de minha
visão efetiva, com exceção dos raros casos em que, como Narciso, contemplo meu reflexo
na água ou no espelho. Meu aspecto físico, a expressividade do meu corpo, são vividos por
mim internamente; é somente como fragmentos díspares, ligados à minha percepção
interna, que minha exterioridade é captada no campo das minhas sensações externas e,
acima de tudo, no campo da minha visão; mas essas sensações externas não representam a
minha última instância, mesmo quando me acontece perguntar-me se trata realmente de
meu próprio corpo, e a resposta só me é fornecida por minha percepção interna que
assegura também a unidade das imagens fragmentárias que tenho da minha expressividade
externa e as traduz em linguagem interna. A percepção é feita

48

assim: num mundo constituído em um todo que me é visível, audível e tangível, não
encontro minha exterioridade expressa enquanto objeto que constitui um todo igualmente
externo, objeto entre os outros objetos; encontro-me na fronteira do mundo que vejo e aí
não sou aparentado com o nível plástico-pictural. Se meu pensamento situa meu corpo no
mundo exterior como um objeto entre os outros objetos, minha visão efetiva não pode vir
em auxílio do meu pensamento fornecendo-lhe uma imagem correspondente.
Ë só nos voltarmos para a imaginação criadora, para o devaneio sobre nós mesmos, e
logo nos convenceremos de que ela não utiliza o aspecto físico, não evoca sua imagem
finita. O mundo de meu devaneio se dispõe à minha frente, semelhante ao horizonte que se
oferece à minha visão efetiva, e eu figuro nesse mundo como personagem principal que
seduz os corações, cobre-se de glória, etc., sem ter, com isso, a menor representação da
minha imagem externa, ao passo que a imagem das outras personagens que povoam meu
devaneio, ainda que sejam personagens secundárias, se apresenta com uma nitidez em geral
impressionante, que chega a transmitir a expressão dos seus rostos — espanto, admiração,
medo, amor —, mas aquele a quem se dirige o medo, a admiração, o amor, ou seja, eu, este
não o vejo, vivo meu eu por dentro. Mesmo quando sonho com meus encantos externos,
não tenho necessidade de uma representação de mim mesmo, registro apenas o resultado da
impressão sobre os outros. De um ponto de vista plásticopictural, o mundo do devaneio se
assemelha ao mundo da percepção efetiva; nele tampouco, a personagem principal não é
expressa externamente, não se situa no mesmo plano das outras personagens: enquanto
estas últimas são expressas externamente, a personagem principal, por sua vez, é vivida por
dentro. O devaneio não preenche as lacunas da percepção efetiva e não tem de preenchê-
las. O escalonamento dos planos em que se situam as personagens do devaneio aparece
com especial clareza no caso do devaneio erótico: a heroína, objeto do desejo, atinge nele
um grau supremo de nitidez externa, o herói — a personagem do devaneador —, tomado
em seu desejo e em seu amor, vive a si mesmo por dentro, sem a menor expressividade
externa. Encontramos a mesma multiplicidade no sonho (onírico). Ora, se começo a contar
meu devaneio ou meu sonho
49
a alguém, sou levado a transpor a personagem principal para o plano em que se situam as
outras personagens (mesmo quando a narrativa é feita na primeira pessoa), ou, pelo menos,
preciso levar em conta o fato de que todas as personagens da minha narrativa, inclusive eu,
serão percebidas num mesmo plano plástico-pictural pelo ouvinte, para quem todas as
personagens são o outro. Ë isso que diferencia o mundo da criação artística do mundo do
devaneio e da vida real: num dos casos, todas as personagens são representadas num
mesmo plano plástico-pictural da visão, no outro, o herói principal — eu —não é
representado externamente e não necessita de sua imagem. Revestir de uma carne externa
essa personagem principal da vida e do devaneio é a principal tarefa do artista. Por vezes, à
leitura primária de um romance, o leitor ingênuo substitui a percepção artística pelo
devaneio, um devaneio que não é mais seu devaneio livre, e sim o devaneio passivo,
determinado pelo romance, que o leva a identificar-se com o protagonista cujo acabamento
e, acima de tudo, o aspecto físico vai ignorar e cuja vida vivenciará como se ele próprio
fosse o herói.
Podemos tentar imaginar a nossa própria imagem externa, perceber-nos de fora,
traduzir-nos em termos de expressividade externa a partir da sensação interna que temos de
nós mesmos: está longe de ser fácil e requer um esforço específico, diferente daquele que
fazemos quando tentamos evocar o rosto meio esquecido de alguém que conhecemos
pouco; o problema que se coloca não é o de uma memória insuficiente de nosso aspecto
físico, mas o do princípio segundo o qual a nossa imagem externa nos opõe uma espécie de
resistência. Ë simples convencer-se, mediante uma auto-observação, de que o primeiro
resultado dessa tentativa será o seguinte: minha imagem, que represento para mim
visualmente, vai de início adquirir um contorno indeciso e fixar-se ao meu lado, vivida
internamente, e, quando muito, ela se destaca da minha autopercepção interna e desvia-se
um pouco para longe de mim; tal como um baixo-relevo, ela se destaca do plano da minha
percepção interna sem conseguir separar-se totalmente dela; é um pouco como se eu me
tivesse desdobrado sem me dividir completamente: o cordão umbilical da minha percepção
liga a expressividade externa à sensação interna que tenho de mim mesmo. Será necessário
um novo esforço para imaginar minha pessoa diante de
50

mim mesmo e para separar-me completamente de minha percepção interna. Por menos que
se consiga essa representação, o que mais impressiona nessa imagem externa de si mesmo é
ela ser vazia, ilusória e solitária. Como explicar isso? A explicação é simples: não temos, a
respeito dessa imagem, a abordagem emotivo-volitiva adequada que poderia dar-lhe vida e
incluí-la na unidade exterior do mundo plástico-pictural. As reações que percebem e
estruturam a expressividade do outro— admiração, amor, ternura, piedade, inimizade, ódio,
etc. —estão orientadas para a nossa frente e não são diretamente aplicáveis a nós mesmos;
estruturo meu eu interior — meu eu que ama, quer, sente, vê, conhece — de dentro, em
categorias de valores totalmente diferentes e que não são diretamente aplicáveis à minha
expressividade externa. Ora, minha percepção interna e minha própria vida se inserem em
meu eu que imagina e vê, não no eu imaginado e visto; não disponho em mim de uma
reação emotivo-volitiva capaz de dar vida ao meu próprio aspecto externo e de contê-lo, daí
esse vazio e essa solidão que o caracterizam.
Para dar vida à minha imagem externa e para fazê-la participar do todo visível, devo
reestruturar de alto a baixo a arquitetônica do mundo de meu devaneio introduzindo-lhe um
fator absolutamente novo, o da validação emotivo-volitiva da minha imagem a partir do
outro e para o outro; porque, dentro de mim mesmo, tenho apenas a minha própria
validação interna, uma validação que não posso projetar sobre minha expressividade
externa, pois esta é separada da minha percepção interna, o que faz com que me pareça
ilusória, num vazio absoluto de valores. Entre minha percepção interna — de onde procede
minha visão vazia — e minha imagem externa, é absolutamente necessário introduzir, tal
como um filtro transparente, o filtro da reação emotivo-volitiva — amor, espanto, piedade,
etc. — que um outro pode ter para comigo. E a visão que obterei através desse filtro interno
de outra alma, reduzida à categoria de instrumento, que dará vida à minha exterioridade e a
fará participar do mundo plástico-pictural. Não devo transformar o possível depositário
dessa reação de valor do outro a mim mesmo num ser determinado; este eliminaria no mes-
mo instante minha imagem externa do campo da minha representação e ocuparia o lugar
dela, pois é a ele que eu verei-

51

eu que estou, normalmente, situado na fronteira do campo de minha visão — com a reação
a mim mesmo que ele expressa, e ele introduziria, ademais, uma determinação ficcional em
meu devaneio no qual ele se dotaria de um papel de participante; ora, eu preciso é de um
autor que não participe do acontecimento imaginário. O que importa é transpor-me da
linguagem interna de minha percepção para a linguagem externa da expressividade externa
e entrelaçar-me por inteiro, sem resíduo, na textura plástico-pictural da vida, enquanto
homem entre outros homens, enquanto herói entre outros heróis. É fácil substituir essa
tarefa por uma tarefa especulativa: não há nada mais simples para meu pensamento do que
me situar no mesmo plano que os outros, pois em meu pensamento abstraio-me do lugar
que eu — único homem a podê-lo — ocupo na existência e abstraio-me também da
unicidade visível-concreta do mundo; é por isso que o pensamento não conhece as
dificuldades inerentes à auto-objetivação ética e estética.
A objetivação ética e estética necessita de um poderoso ponto de apoio, situado fora de
si mesmo, de uma força efetiva, real, de cujo interior seja possível ver-se enquanto outro.
— Na realidade, quando contemplo minha imagem externa naquilo que a faz viver e
participar de um todo exterior vivo- pelo prisma dos valores da alma do outro possível,
essa alma do outro, despojada de autonomia, essa alma-escrava, introduz algo de falso e
de totalmente alheio ao acontecimento-existência ético: não é uma geração produtiva e
enriquecedora na medida em que carece de qualquer valor autônomo, é um produto
fictício que turva a pureza óptica da existência; nesse caso opera-se como que uma
substituição óptica, cria-se uma alma sem lugar, um participante sem nome e sem papel.
É óbvio que não é pelos olhos de qualquer outro fictício que verei meu verdadeiro
rosto; captarei apenas uma máscara. Devo dar a esse filtro de uma reação viva do outro
uma consistência e uma autonomia fundamentadas, substanciais, autorizadas, devo
convertê-lo num autor responsável. A operação é comprometida pela gratuidade que ela
comporta para mim: de volta a mim mesmo, não devo fazer um uso pessoal de seu
julgamento. Não está na hora de aprofundar esses problemas num ponto em que
tratamos exclusivamente do aspecto físico. É óbvio que meu aspecto físico, enquanto
valor estético, não é um fato

52

imediato de minha consciência e se situa na fronteira do mundo plástico-pictural. Na


qualidade de protagonista de minha vida — real ou imaginária — vivencio-me, por
princípio, num plano diferente daquele em que se situam as outras personagens da minha
vida e do meu devaneio.
A visão que temos de nosso aspecto físico quando nos olhamos no espelho é de
natureza totalmente particular. Visivelmente, vemo-nos sem mediação. Ora, não é nada
disso; permanecemos em nós mesmos e só vemos o nosso reflexo, um reflexo que não
poderia, de maneira imediata, tornar-se um componente de nossa visão e de nossa vivência
do mundo: vemos o reflexo de nosso aspecto físico, mas não vemos a nós mesmos em
nosso aspecto físico, o aspecto físico não nos engloba por inteiro, estamos diante do
espelho, mas não estamos dentro do espelho; o espelho só pode fornecer o material de uma
auto-objetivação — um material que não é, para ser exato, sequer um material. De fato,
nossa situação na frente do espelho é sempre deturpada pois, na ausência de um meio de
abordagem de nós mesmos, também nesse caso identificamo-nos com o outro possível,
indeterminado, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição de valores a respeito de nós
mesmos; ou seja, é a partir do outro que, mais uma vez, tentamos dar-nos vida e forma; daí
essa expressão particular de nosso rosto tal como a vemos no espelho e que não temos na
vida. Essa expressão de nosso rosto refletido no espelho se compõe de certo número de
expressões que remetem a planos totalmente diferentes de nossa postura emotivo-volitiva,
os quais são: 1) a expressão de nossa postura emotivo-volitiva real, tal como está manifesta
no momento dado e está fundamentada no contexto da nossa vida; 2) a expressão do
julgamento do outro possível, da alma fictícia, não localizada; 3) a expressão de nossa
atitude para com um julgamento desse outro possível: satisfação, insatisfação. A relação
que temos com nosso aspecto físico não é de ordem estética e só se refere ao efeito que
eventualmente podemos causar nos outros — naqueles que nos vêem de maneira imediata
— em outras palavras, nosso julgamento não é feito para nós mesmos, mas para os outros e
através dos outros. Finalmente, a esses três tipos de expressão, pode-se ainda acrescentar
aquela que desejaríamos ver em nosso rosto, não para nós mesmos, naturalmente, mas para
os outros: na frente

53

de um espelho, quase sempre posamos, adotando esta ou aquela expressão que nos parece
essencial e desejável. Tais são as diversas expressões que, no nosso rosto refletido no
espelho, entram em luta e em simbiose fortuita. Nunca é nossa alma, singular e única, que
se encontra expressa no acontecimento-contemplação: sempre se introduz um segundo
participante —o outro fictício, o autor não fundamentado e não autorizado; não estou
sozinho quando me olho no espelho, estou sob o domínio de outra alma. Acontece até que
essa outra alma se condense até atingir uma espécie de autonomia: minha frustração, à qual
vem juntar-se a insatisfação motivada por meu próprio aspecto físico, dá consistência ao
outro — ao autor possível do meu aspecto físico; podemos desconfiar desse outro, odiá-lo,
querer destruí-lo: ao tentar lutar contra seu julgamento, condensamo-lo até instaurar sua
autonomia, seu ser localizado na existência.
A primeira tarefa do artista que trabalha no auto-retrato consiste precisamente em
eliminar a expressão do rosto refletido, o que só é possível porque o artista se situa fora de
si mesmo, encontra um autor autorizado e fundamentado em seu princípio: trata-se do
autor-artista que como tal triunfa sobre o artista-homem. Em todo caso, parece que sempre
é possível distinguir o auto-retrato do retrato a partir das características do rosto que
conserva algo de ilusório e que dá a impressão de não englobar o homem em sua totalidade.
O homem que ri no auto-retrato de Rembrandt sempre provoca em mim uma impressão
quase aterrorizante, assim como o auto-retrato de Vrubel, estranhamente imbuído de
distanciamento.
Dar uma imagem completa do seu próprio aspecto físico é muito mais difícil para o
herói autobiográfico de uma obra de criação verbal, quando essa imagem se insere no
desenvolvimento polimorfo da dinâmica romanesca, quando ela deve cobrir o homem
inteiro. Que eu saiba, não há uma única obra importante em que tentativas desse tipo
tenham chegado a bom termo, mas são muitas as tentativas parciais: algumas delas são o
auto-retrato infantil de Puchkin, Irtenev de Tolstoi, Levin também de Tolstoi, o homem do
subterrâneo de Dostoievski, etc. A criação verbal não apresenta (o que aliás é impossível) a
perfeição pictural do aspecto físico suscetível de entrelaçar-se aos outros aspectos do
homem constituído em um todo, tal como o estudaremos mais adiante.
54

Uma fotografia oferece apenas material para o cotejo, e, também nela, o que vemos é o
nosso reflexo sem autor. Esse reflexo, é verdade, não reproduz a expressão do outro
fictício, ou seja, é mais puro do que nosso reflexo no espelho, mas nem por isso é menos
fortuito, artificial, e não expressa nossa postura emotivo-volitiva na existência. E um
material bruto que não se Incorpora à unidade de nossa própria experiência da vida, por
falta do princípio que lhe permitiria a incorporação.
Não sucede o mesmo com o retrato executado por um artista que tem prestígio para
nós. Nele temos realmente uma janela que se abre para o mundo onde nunca vivemos, nele
vemos realmente no mundo do outro, através do outro impregnado de pureza e de
integridade, desse outro que é o artista, e esta é uma visão que equivale a uma adivinhação
e comporta algo de determinante. Pois o aspecto físico deve englobar-conter e acabar o
todo da alma — o todo da postura emotivo-volitiva e ético-cognitiva no mundo —,, e essa
função, o aspecto físico só a assume para outrem; para mim, é-me impossível sentir me
englobado e expresso pelo aspecto físico, e minhas reações emotivo-volitivas não se alojam
numa imagem concluída de mim. Não é na categoria do eu mas na categoria do outro que
posso vivenciar meu aspecto físico como valor que me engloba e me acaba, e devo
insinuar-me nessa categoria para ver a mim mesmo como elemento de um mundo exterior
que constitui um todo plástico-pictural.
O aspecto físico não deve ser considerado isoladamente na obra de criação verbal.
Certa lacunosidade do retrato pictural nela se encontra compensada por fatos que se
relacionam com o aspecto físico e são pouco acessíveis, ou inacessíveis, às artes plásticas,
tais como: o andar, os modos, a expressão cambiante do rosto ou do corpo num ou noutro
momento de uma vida, a expressão do tempo irreversível de uma vida em seu desenrolar, a
expressão do crescimento paulatino do homem que passa pela expressividade externa das
idades; as imagens da juventude, da maturidade, da velhice, em sua continuidade plástico-
pictural — todos estes aspectos que a expressão pode englobar e que constituem a história
do homem exterior. Para a minha consciência, essa imagem global está dispersa na vida e
não penetra no campo da minha visão do mundo exterior senão fortuitamente, de forma
fragmentária, pois faltam-lhe
55

precisamente a unidade externa e a continuidade. O homem não pode juntar a si mesmo


num todo exterior relativamente concluído, porque vive a sua vida na categoria de seu eu.
Não é por falta de material no plano de sua visão externa — ainda que sua insuficiência
seja considerável- mas por falta de um principio valorativo interno que lhe permitisse, de
dentro de si, ter uma abordagem para sua expressividade externa. Espelho, fotografia, auto-
observação nada mudarão. Na melhor das hipóteses, obtém-se uma falsificação, um produto
estético criado de modo interesseiro, a partir do outro possível, desprovido de autonomia.
É nesse sentido que o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua
visão e da sua memória; memória que o junta e o unifica e que é a única capaz de lhe
proporcionar um acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro
não a criasse. A memória estética é produtiva: ela gera o homem exterior pela primeira vez
num novo plano da existência.

3. [A exterioridade da configuração espacial.]

Uma importante particularidade da visão exterior, plástico-pictural, refere-se à


percepção das fronteiras exteriores que configuram o homem. Essa percepção é
indissociável do aspecto físico: registra uma relação com o homem exterior e com o mundo
exterior que engloba e circunscreve o homem no mundo. A consciência vive suas próprias
fronteiras exteriores de uma maneira diferente, vive-as numa relação consigo mesma. Ape-
nas o outro pode, de maneira convincente, no plano estético (e ético), fazer-me viver o
finito humano, sua materialidade empírica delimitada. Num mundo que me é exterior, o
outro se oferece por inteiro à minha visão, enquanto elemento constitutivo deste mundo. A
cada instante, vivo distintamente todas as fronteiras do outro, posso captá-lo por inteiro
com a visão e o tato; vejo o traçado que lhe delimita a cabeça, o corpo contra o fundo do
mundo exterior; no mundo exterior, o outro se mostra por inteiro à minha frente e minha
visão pode esgotá-lo enquanto objeto entre os outros objetos, sem que nada venha
ultrapassar o limite de sua configuração, venha romper sua unidade plástico-pictural,
visível e tangível.
Não sucede o mesmo com a experiência que tenho de mim, que nunca me propiciará
uma visão assim, nitidamente delimitada, de minha própria configuração externa. Faltam-
me não só os meios de uma percepção efetiva, mas também as noções que permitiriam
construir um horizonte onde eu possa figurar por inteiro, sem resíduo, de modo totalmente
circunscrito. No tocante à percepção efetiva, nada há que provar: situo-me na fronteira do
horizonte da minha visão, o mundo visível estende-se à minha frente. Ao virar a cabeça em
todas as direções, obtenho uma visão do espaço que me cerca de todos os lados e em cujo
centro eu me situo, mas não verei a mim mesmo cercado por esse espaço. No tocante às
noções, as coisas são um tanto mais complexas. Já vimos que, embora eu não esteja ha-
bituado a representar-me a minha própria imagem, consigo, à custa de certo esforço,
representar-me essa imagem, delimitada de todos os lados, claro, como se se tratasse de
outro. Porém essa imagem não é, internamente, convincente: não deixei de vivenciar-me
por dentro, e essa vivência não me larga, ou, mais exatamente, permaneço nela e não a
introduzi na imagem da minha própria representação. Justamente essa idéia de que estou
aqui por inteiro, e que, fora desse objeto assim delimitado, não existo, é que nunca é
convincente em mim mesmo: o coeficiente necessário a uma percepção e a uma
representação da minha própria expressividade externa é igual àquele vinculado à minha
consciência de não estar aqui por inteiro. Enquanto a representação que tenho do outro
corresponde à visão total que tenho efetivamente dele, a representação que tenho de mim é
uma construção da mente e não corresponde a nenhuma percepção efetiva. O essencial
daquilo que constitui a vivência real de mim mesmo permanece além da minha visão
exterior.
Essa diferença entre a percepção que tenho de mim e a percepção que tenho do outro é
compensada pelo conhecimento, ou, mais exatamente, o conhecimento ignora essa di-
ferença, do mesmo modo que ignora a singularidade do sujeito cognoscente. No mundo
unificado do conhecimento, não posso colocar-me enquanto eu-para-mim em oposição a
todos os homens do passado, do presente e do futuro con-

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cebidos como outros para mim. Muito pelo contrário, sei que sou delimitado, tanto como
todos os outros, e que o outro se vivencia por dentro, sem poder, por força de princípio,
encarnar-se para si mesmo em sua própria expressividade externa. Esse conhecimento é,
entretanto, inapto para fundamentar a realidade de uma visão e de uma percepção efetivas
que faria com que o mundo concreto se tornasse mundo de um único sujeito. A forma
concreta da vivência real do homem emana de uma correlação entre as categorias
representativas do eu e do outro; as formas do eu através das quais sou o único a vivenciar-
me se distinguem fundamentalmente das formas do outro através das quais vivencio a todos
os outros sem exceção. Vivencio o eu do outro de um modo totalmente diferente daquele
como vivencio meu próprio eu. Trata-se de uma distinção essencial não só para a estética,
mas também para a ética. Basta lembrar o princípio da disparidade dos valores entre eu e o
outro do ponto de vista da moral cristã: não se deve amar a si mesmo, mas deve-se amar ao
outro, não se deve ser indulgente consigo mesmo, mas deve-se ser indulgente com o outro;
de uma maneira geral, deve-se aliviar o outro de seus fardos e assumi-los para si mesmo.
Dá-se o mesmo com o altruísmo que confere à felicidade do outro um valor totalmente
diferente do conferido à felicidade pessoal. Teremos a ocasião de voltar ao solipsismo ético
no prosseguimento de nossa exposição.
Do ponto de vista da estética, o importante é que sou, para mim mesmo, o sujeito de
qualquer atividade, seja ela qual for — visão, audição, percepção, pensamento, sentimento,
etc. —, e procedo, por assim dizer, de mim mesmo em minha vivência que é orientada
para a frente de mim, para o mundo, para o objeto. Para o objeto com que estou
confrontado, sou o sujeito. Não se trata da correlação gnosiológica entre o sujeito e o
objeto, mas da correlação existente entre mim — que sou o único sujeito — e todo o resto
do mundo que, para mim, é não só objeto de conhecimento e de sentimento, mas também
objeto de vontade e de emoção. Para mim, o outro está inteiro no objeto, e seu eu não passa
de objeto para mim. Posso recordar-me de mim mesmo, posso perceber-me parcialmente
através de um sentimento externo, posso converter-me em meu próprio objeto de desejo e
de sentimento, ou seja, converter-me em meu próprio objeto. Mas, nesse ato de auto-
objetivação,
58

não coincidirei comigo: meu eu-para-mim estará no ato de objetivação e não no produto;
estará no ato da minha visão, da minha sensação, do meu pensamento, e não no objeto visto
ou sentido. Não me alojo por inteiro no objeto, supero qualquer objeto na qualidade de
sujeito ativo. O que nos interessa aqui não é o aspecto cognitivo dessa posição que forneceu
a base ao idealismo, mas a vivência concreta de uma subjetividade que o objeto é inapto
para esgotar — o que foi perfeitamente compreendido e assimilado pela estética romântica
(a ironia em Schlegel) — em oposição à objetividade pura do outro. O conhecimento
introduz uma correção segundo a qual eu, que sou o único a ser, não sou, para mim, um eu
absoluto ou um sujeito gnosiológico. O que faz que eu seja eu mesmo, que seja um homem
determinado — determinado no espaço, no tempo, no meu destino, etc. — em oposição a
todos os outros homens, é igualmente objeto e não sujeito do conhecimento (Rickert). Em
todo caso, o idealismo torna intuitivamente convincente a vivência de si mesmo e não a
vivência do outro, sendo esta mais convincente no espírito do realismo e do materialismo.
O solipsismo, que aloja o mundo inteiro dentro da minha consciência, pode ser
intuitivamente convincente, ou ao menos compreensível, mas seria intuitivamente de todo
incompreensível alojar o mundo inteiro e a mim mesmo na consciência do outro que, de
modo não menos evidente, é somente uma parte ínfima do mundo imenso. Não posso
vivenciar-me por inteiro no interior de um objeto visível e tangível, externamente
delimitado, e não posso coincidir completamente com esse objeto; mas quando se trata do
outro, é realmente assim que mo represento: tudo quanto conheço de seu interior, e que par-
cialmente vivencio, alojo-o na imagem externa que tenho dele, como num receptáculo que
conteria seu eu, sua vontade, seu conhecimento. Para mim, o outro está concentrado e
contido por inteiro em sua imagem externa, enquanto à minha própria consciência, percebo-
a como algo que engloba e abarca o mundo e não como algo alojado nele [il...] Quando se
trata de outrem, a imagem externa pode ser vivenciada como uma imagem exaustiva e
acabada, quando se trata de mim, essa imagem não será nem exaustiva nem acabada.
Para afastar qualquer mal-entendido, salientamos mais uma vez que não estamos
tratando aqui dos problemas de cog-

59

nição — da relação da alma com o corpo, da consciência com a matéria, do idealismo com
o realismo, etc. O que nos importa é a vivência concreta, seu poder de convicção puramente
estética. Poderíamos dizer que, do ponto de vista de uma vivência pessoal, o idealismo é
intuitivamente convincente e que, do ponto de vista de uma vivência que tenho do outro, o
materialismo é que seria intuitivamente convincente (sem levantar novamente a questão dos
fundamentos filosófico-cognitivos dessas correntes). Em termos de valores, o traçado das
fronteiras do corpo basta para proporcionar a configuração e o acabamento ao outro, ao
passo que esse mesmo traçado não basta para circunscrever-me, pois minha vivência
engloba qualquer fronteira, qualquer corporalidade, ampliando-me mais além de qualquer
delimitação, e minha consciência elimina o poder de convicção plástica da minha imagem.
Donde se segue que, na minha experiência, apenas o outro é vivenciado por mim como
algo aparentado, entrelaçado ao mundo e concordante com ele. O homem enquanto fenô-
meno natural é vivenciado de forma intuitivamente convincente apenas no outro. Para mim
mesmo, não sou inteiramente aparentado ao mundo exterior, e há sempre algo em mim que
posso opor a ele. E precisamente minha atividade interna, minha subjetividade, que se opõe
ao mundo exterior percebido como objeto, sem que eu possa situar-me nele; minha
atividade interna opera fora do mundo. Para minha vivência interior disponho sempre dessa
saída que é o ato [il...] tenho como que uma saída de emergência que me permite escapar ao
dado integral da natureza. O outro [il...] é intimamente ligado ao mundo, quanto a mim, sou
ligado à minha atividade interior, fora do mundo. Nos momentos em que me pertenço, tudo
o que é objetivo em mim — os fragmentos da minha expressividade externa, o que, em
mim, é já-aqui, atual, presente, o eu que contém meu pensamento sobre mim, meu
sentimento de mim- deixa de expressar-me para mim, começo a incluir-me integralmente
no próprio ato de pensamento que contém minha visão e meu sentimento. Não me alojo por
inteiro em nenhum contexto exterior capaz de conter-me. Encontro-me, por assim dizer, na
tangente relativamente a qualquer contexto dado. O espaço que me é dado tende para um
centro interior a-espacial; no outro, tudo tende a ocupar seu próprio dado espacial.

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Em vista dessa particularidade específica da minha vivência concreta do outro, coloca-


se o problema estético de proporcionar a razão de ser a uma finitude dada, circunscrita, sem
sair dos limites de um mundo exterior espácio-sensorial, igualmente dado; é apenas no
tocante ao outro que a apreensão cognitiva e o sentido de uma razão de ser ética são vividos
em sua insuficiência e em sua indiferença à singularidade concreta da imagem, na medida
em que a expressividade externa, substancial em minha vivência do outro e não-substancial
em mim mesmo, encontra-se aí contornada.
A atividade estética que me é própria — não a do artista-criador, mas a que me
compete na vida em que a estética e a não-estética se confundem — e que encobre
sincreticamente algo como uma imagem plástica criativa, expressa-se em toda uma série de
atos irreversíveis que só podem proceder de mim e estabelecem o outro em seus valores e
em seu acabamento externo — atos tais como o abraço, o beijo, etc. E através da vivência
de tais atos que aparece melhor a propriedade criadora e a irreversibilidade deles. Através
desses atos, atualizo o privilégio de minha posição fora do outro, e em virtude disso a
consistência que ele adquire em seus valores se torna uma realidade tangível. De fato, só ao
outro eu posso abraçar, beijar e só dele posso captar amorosamente todas as fronteiras: o fi-
nito frágil do outro, seu acabamento, sua existência-aqui-e-agora são internamente
perceptíveis para mim e parecem assumir a forma de meu abraço; nesse ato, a existência
exterior do outro ganha vida nova, adquire novo sentido, alcança novo plano de existência.
Só ao outro eu posso cobrir com minha atividade, só dele posso aflorar os lábios com meus
lábios, só dele posso abraçar o corpo inteiro e a alma alojada nele. Tudo isso, não me é
dado viver no tocante a mim mesmo, e, aliás, trata-se menos da impossibilidade física do
que da falsidade emotivo-volitiva da transferência de tais atos a si mesmo. Enquanto objeto
exterior a ser abraçado, beijado, a existência circunscrita do outro se torna, na ordem dos
valores, um material resistente e pesado, que tem peso interior [il...] um material para ser
trabalhado e moldado com o intuito de proporcionar a forma plástica a determinado ser, não
como espaço físico finito e circunscrito de forma igualmente física, mas como espaço de
acontecimentos vivo, estético, esteticamente finito e circunscrito.

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É claro que abstraímos aqui o elemento sexual que turva a pureza estética desses atos
irreversíveis que estimamos serem reações simbólico-estéticas ao todo constituído pelo ser
humano de quem, quando lhe abraçamos o corpo, abraçamos também a alma encerrada
nesse corpo e que se expressa por ele.

4. [A exterioridade do ato.]

Vamos examinar agora o comportamento do homem, o ato, tal como ele se desenrola
no mundo espacial. De que modo são vividos o ato e o espaço na consciência do sujeito?
De que modo é vivido o ato do outro? Em que plano da consciência se situa seu valor
estético? Tais são as questões que serão objeto de nossa análise.
Já apontamos anteriormente que os fragmentos da expressividade externa só são
incorporados ao eu através de uma vivência interior que corresponde a eles. De fato,
quando, por uma razão qualquer, minha própria realidade é questionada, quando já não sei
se estou sonhando ou não, a visão do meu corpo não basta para resolver essa dúvida,
precisarei fazer um movimento qualquer, beliscar-me; ou seja, para verificar minha
realidade devo traduzir minha corporalidade na linguagem das sensações internas. Se um
acidente vier a privar-me do uso de um membro, da perna por exemplo, esta me parecerá
alheia, embora, na imagem externa, visual, de meu corpo, ela sem dúvida alguma pertença
ao meu todo. Um fragmento do meu corpo, que me é dado de fora, deve ser vivido por mim
de dentro, sendo somente com essa condição que ele pode fazer parte de mim; e se a
tradução na linguagem das sensações internas não ocorrer, não estou longe de rejeitar o
dado fragmento como não pertencente ao meu corpo, e sua relação íntima comigo é
rompida. Essa vivência puramente interna do corpo e de seus membros é particularmente
importante na realização de um ato que sempre estabelece um vínculo entre mim e o objeto
exterior, amplia o alcance da minha ação física.
È fácil verificar em si mesmo que, no momento da realização de um ato, a
expressividade externa é o que menos fixa a atenção: pegar um objeto não implica a
imagem externamente acabada da mão, mas a sensação muscular, vivida internamente,
62

que corresponde à mão — o objeto não implica a imagem externamente acabada, mas a
vivência perceptível, a sensação muscular que corresponde à resistência do objeto, ao seu
peso, à sua consistência, etc. O visível apenas completa o que é vivido no interior e não
tem, muito provavelmente, senão uma importância secundária para a realização do ato. A
consciência é orientada pelo objetivo e por seus meios de realização. Os meios empregados
para atingir tal objetivo são vividos internamente. As vias utilizadas pela realização de um
ato são vias puramente internas e a continuidade dessa via também é puramente interna
(Bergson). Se eu faço qualquer movimento determinado da mão — pego um livro na
estante, por exemplo— não sou o movimento externo da minha mão, a via visível
que ela utiliza, a posição que adota durante seu movimento relacionado com os objetos que
estão no meu escritório, tudo isso entra na minha consciência em forma de fragmentos for-
tuitos, de pouca utilidade ao ato, e comando minha mão de dentro. Quando caminho na rua,
estou internamente orientado para frente, calculo e avalio internamente todos os meus mo-
vimentos. Acontece-me, claro, de ter necessidade de ver certas coisas com nitidez, até
mesmo coisas que fazem parte de mim mesmo, mas essa visão externa que acompanha a
realização do ato é sempre interessada: ela só capta o que é diretamente vinculado ao ato e,
por isso, destrói a plenitude do dado visível das coisas, O presente, o dado, o determinado
peculiar a um objeto visível que se situa em meu raio de ação é, quando da realização do
meu ato, desagregado e decomposto pelo que está por-vir, pelo que é futuro, pelo que ainda
está apenas por realizar-se, no tocante ao objeto dado, por meu ato: o objeto é registrado na
ótica de minha vivência interna futura; ora, é a ótica mais injusta para com o acabamento
externo próprio do objeto. Vamos desenvolver o exemplo dado há pouco: estou
caminhando na rua, vejo que alguém vem direto ao meu encontro, depressa pulo para o
lado para evitar o choque; na minha visão dessa pessoa, havia para mim, no primeiro plano,
a presunção de um possível choque, que eu vivi internamente—sendo essa própria
presunção feita na linguagem das sensações internas — e daí resultou, diretamente, o pulo
para o lado, comandado de dentro. O objeto, situado no raio de uma ação intensa, é
percebido quer como um possível obstáculo,

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uma pressão, como uma possível dor, quer como um possível apoio, para a mão, para o pé,
etc. — sendo tudo isso registrado na linguagem das sensações internas; é justamente isso
que decompõe o dado externo, acabado, do objeto. Assim, a realização de um ato externo
tem como base a sensação interna que dissolve ou então anexa a si tudo o que tem a sua
própria expressão externa e ela impede qualquer acabamento do objeto exterior em um
dado visível, tanto em mim como fora de mim.
A fixação na exterioridade própria pode até ser fatal à realização de um ato que ela
pode comprometer. Por ocasião de um salto difícil e arriscado, nada mais perigoso do que
seguir o movimento das pernas: é preciso concentrar-se no interior e prever os movimentos
de dentro. A primeira regra, no esporte, e olhar para frente e não olhar a si mesmo. No
momento de um ato difícil e perigoso, retraio-me inteiro até não ser mais do que pura
unidade interior, deixo de ver e de ouvir o que quer que seja exterior, reduzo-me a uma
pura auto-percepção.
A imagem externa do ato, em sua relação com as coisas do mundo exterior, nunca é
dada ao executante. Se tais elementos se insinuam na consciência do executante, é
infalivelmente para frear o ato, para deixá-lo em ponto morto.
O ato, procedente do interior da consciência atuante, nega qualquer autonomia aos
valores do que é dado, já-aqui, atual, acabado, e elimina o presente das coisas em nome do
seu próprio futuro presumido de dentro. O ato se insere no mundo de um futuro presumido
internamente . O objetivo do ato, situado no futuro, desagrega as coisas do mundo exterior,
o plano da realização futura desagrega o corpo das coisas na sua atualidade. Todo o
horizonte da consciência fica impregnado e dissolvido em sua estabilidade pela presunção
da realização futura.
Daí se segue que a verdade artística do ato expresso e percebido do exterior, o
entrelaçamento orgânico que o incorpora à textura externa da existência, a relação
harmoniosa que o integra a um fundo, enquanto conjunto das coisas do mundo, que tudo
isso é, por principio, transcendente à consciência do próprio executante e só se realiza numa
consciência situada fora dele e que não participa do ato marcado por seu próprio objetivo e
por seu próprio sentido. Só posso compreender e dar forma artística ao ato do outro; dentro
de mim, meu ato não se

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presta a uma forma e a um acabamento artístico. Tratamos aqui, claro, da concepção


puramente plástico-pictural do ato.
As caracterizações plástico-picturais do ato exterior — epítetos, metáforas,
comparações, etc. — jamais se realizam na consciência do executante e jamais coincidem
com a verdade interna do objetivo e do sentido do ato. Todas as caracterizações artísticas
transpõem o ato para outro plano, para outro contexto de valores, onde o sentido e o
objetivo do ato se tornam imanentes ao acontecimento da sua realização, ficam a cargo do
processo que pensa a expressividade externa do ato, que, em outras palavras, transpõe o ato
do horizonte inerente ao executante para o horizonte inerente ao contemplador exotópico.
Se as caracterizações plástico-picturais tivessem de estar presentes na consciência do
próprio executante, o ato imediatamente perderia a seriedade coerciva de seu objetivo, de
sua necessidade real, a novidade e a produtividade do que está por realizar-se, e degeneraria
em jogo e em gesto.
Quando analisamos a descrição de um ato, constatamos que a perfeição e a força de
convicção de sua imagem plástico-pictural se situam num contexto de sentido tornado
caduco, transcendente à consciência do executante no momento do ato, e nós mesmos,
leitores, não ficamos internamente envolvidos pelo objetivo e pelo sentido do ato — senão,
o mundo das coisas se introduziria na consciência do executante que vivemos internamente,
e sua expressividade externa se encontraria desagregada — nada esperamos do ato e não
temos nenhuma expectativa dele no futuro real que é substituído pelo futuro artístico,
sempre artisticamente predeterminado. A forma artística do ato é vivenciada fora do tempo
do acontecimento da minha vida, de um tempo marcado pela fatalidade. E no interior desse
tempo, não há ato que se me apresente sob seu aspecto artístico. Uma caracterização
plástico-pictural desativa o futuro real no qual se insere a fatalidade de meu destino, pois
ela só introduz um passado e um presente delimitados, a partir dos quais não há acesso ao
futuro vivo, incerto.
As modalidades de acabamento plástico-pictural de um ato são, por princípio,
transcendentes ao objetivo e ao sentido irremediavelmente marcados pela necessidade e
pela gravidade. O ato artístico opera seu acabamento sem levar em conta o ob-
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jetivo e o sentido, numa esfera em que estes deixam de ser as únicas forças motrizes de
minha atividade; ora, isso só é possível, e internamente fundamentado, no tocante ao ato do
outro, quando meu horizonte completa e acaba seu horizonte desagregado pelas
necessidades coercivas do objetivo que o ato persegue.

5. [O corpo interior.]

Examinamos o que caracteriza, no tocante ao outro, a vivência peculiar à


autoconsciência no que diz respeito a: 1) a exterioridade física, 2) as fronteiras externas —
a configuração espacial — do corpo, 3) a exterioridade do ato físico. Temos agora de fazer
uma síntese desses três constituintes, que isolamos abstratamente, para reuni-los no todo
único dos valores que é o corpo do homem, ou seja, temos de colocar o problema do corpo
pelo ângulo dos valores. Pela própria razão de se referir aos valores, está claro que o
problema não poderia ser colocado do ponto de vista das ciências naturais, da biologia ou
da psicologia que se interessam pela relação entre a psicologia e a fisiologia, tampouco
poderia ser relacionado com os problemas correspondentes da Filosofia natural. O pro-
blema só pode ser colocado nos planos ético, estético e, em parte, religioso [...]
O que tem extrema importância para a problemática de que tratamos é a posição única que
o corpo, enquanto valor, ocupa num mundo concreto, único, relativamente ao sujeito. Meu
corpo é, basicamente, um corpo interior, o corpo do outro é, basicamente, um corpo
exterior.
Meu corpo interior — por fazer parte da minha autoconsciência — oferece um
conjunto de sensações orgânicas internas, de necessidades e de desejos reunidos ao redor de
um centro interior: o que é exterior é registrado de forma fragmentária, não alcança
autonomia e pertence à minha unidade interna por intermédio de um equivalente interno.
Não posso reagir de modo imediato ao meu corpo exterior: o tom emotivo-volitivo daquilo
que se relaciona com meu corpo está sempre vinculado às possibilidades e aos seus estados
internos —dor, prazer, paixão, satisfação, etc. Posso amar meu próprio
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corpo, sentir por ele algo como ternura, mas isso apenas significa o desejo constante que
tenho dos estados e das emoções que se realizam através do meu corpo, e esse amor nada
tem em comum com o amor que tenho pela exterioridade individualizada do outro. O caso
de Narciso é interessante por ser a exceção que caracteriza e esclarece uma lei. Posso viver
o amor do outro por mim, posso querer ser amado, posso imaginar e presumir o amor do
outro por mim, mas não posso, de maneira imediata, amar a mim mesmo enquanto outro.
Do fato de eu importar-me comigo da mesma forma que me importo com o outro que amo,
não decorre que minha relação emotivo-volitiva comigo mesmo seja da mesma natureza de
minha relação com o outro, ou seja, que me amo enquanto outro: o tom emotivo-volitivo
que, em ambos os casos, leva a uma ação idêntica — importar-se com — é radicalmente
diferente. Não se pode amar ao próximo como a si mesmo, ou, mais exatamente, não se
conseguiria amar a si mesmo como se ama ao próximo, apenas se pode transferir o
conjunto dos atos que, normalmente, são realizados em benefício de si mesmo. O direito e a
moral jurídica não se estendem à minha reação emotivo-volitiva interna e exigem somente
que certo número de atos exteriores, realizados em meu próprio beneficio o sejam
igualmente em benefício de outrem. Não se trata de transferir para o outro a relação
axiológica interna mantida consigo mesmo, trata-se de elaborar uma relação emotivo-
volitiva absolutamente nova com o outro como tal — uma relação a que chamamos amor e
que é impossível viver a respeito de si mesmo. Há uma diferença qualitativa entre meus
sofrimentos, meus temores, minhas alegrias e os sofrimentos, os temores e as alegrias que
sinto pelo outro. Daí a distinção de princípio que aparece na classificação moral desses
sentimentos. O egoísta age como se seus atos emanassem do amor que tem por si mesmo,
ora, é claro que ele não vive nada que se assemelhe ao amor ou à ternura para consigo
mesmo pelo próprio fato de não conhecer esses sentimentos. O instinto de conservação
prende-se a um escopo emotivo-volitivo frio e duro que não comporta o menor elemento de
caridade-misericórdia ou de estética.
O valor da minha pessoa exterior, em seu todo (e, principalmente, meu corpo exterior,
o único ponto que nos interessa

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aqui) não passa de um valor de empréstimo que estruturo, mas não vivo de maneira
imediata.
Assim como posso tender, de maneira imediata, à minha preservação, ao meu bem-
estar, defender minha vida a qualquer preço, até mesmo aspirar ao poder e à submissão dos
outros, ao passo que não posso viver-me de maneira imediata, enquanto pessoa jurídica,
pelo próprio fato de que a pessoa jurídica nada mais significa senão a segurança de ser
reconhecido pelos outros, uma segurança que vivo como uma obrigação que lhes compete
(uma coisa é defender, por vias de fato, a própria vida contra a agressão — isso, os animais
também fazem —, outra é viver o direito à vida, à segurança e à obrigação que os outros
têm de respeitar esse direito) — do mesmo modo, a vivência interna do meu corpo se
distingue de um reconhecimento de seu valor externo pelos outros e de meu direito a ser
aceito e amado pelos outros através da minha exterioridade. Ora, é isso que me vem dos
outros como uma dádiva, como uma graça que não poderia ser fundamentada ou
compreendida internamente; é possível ter a segurança desse valor, mas é impossível
vivenciar intuitiva e evidentemente esse valor externo de meu corpo a que só posso
pretender. Dispersos em minha vida, todos os atos de atenção, de amor, que me vêm dos
outros e reconhecem meu valor, como que modelam para mim o valor plástico de meu
corpo exterior. Com efeito, assim que o homem começa a viver-se por dentro, encontra na
mesma hora os atos — os de seus próximos, os de sua mãe— que se dirigem a ele: tudo
quanto a determina em primeiro lugar, a ela e a seu corpo, a criança o recebe da boca da
mãe e dos próximos. E nos lábios e no tom amoroso deles que a criança ouve e começa a
reconhecer seu nome, ouve denominar seu corpo, suas emoções e seus estados internos; as
primeiras palavras, as mais autorizadas, que falam dela, as primeiras a determinarem sua
pessoa, e que vão ao encontro da sua própria consciência interna, ainda confusa, dando-lhe
forma e nome, aquelas que lhe servem para tomar consciência de si pela primeira vez e para
sentir-se enquanto coisa-aqui, são as palavras de um ser que a ama. As palavras amorosas e
os cuidados que ela recebe vão ao encontro da sua percepção interna e nomeiam, guiam,
satisfazem — ligam ao mundo exterior como a uma resposta, diríamos, que demonstra o
interes-

68

se que é concedido a mim e à minha necessidade — e, por isso, diríamos que dão uma
forma plástica ao infinito “caos movediço” da necessidade e da insatisfação no qual ainda
se dilui todo o exterior para a criança, no qual se dilui e se afoga também a futura díade de
sua pessoa confrontada com o mundo exterior. Essa díade, os atos amorosos e as palavras
da mãe contribuem para revelá-la com seu tom emotivo-volitivo que impregna o clima em
que se individualiza e se estrutura a personalidade da criança, um clima imbuído de amor
no qual ela encontrará seu primeiro movimento, sua primeira postura no mundo. A criança
começa a ver-se, pela primeira vez, pelos olhos da mãe, é no seu tom que ela começa
também a falar de si mesma, como que se acariciando na primeira palavra pela qual
expressa a si mesma; assim ela emprega, para falar da sua vida, das suas sensações internas,
os hipocorísticos que lhe vêm da mãe: tem sua “babá”, faz sua “naninha”, tem “dodói”, etc.,
e, dessa maneira, determina a si mesma e a seu próprio estado através da mãe, através do
amor que ela lhe traz na qualidade de destinatária de seus favores, de suas carícias, de seus
beijos. Sua forma parece trazer a marca do abraço materno. De dentro de si mesmo, sem
passar pelo outro que o ama, nunca o homem começaria a usar hipocorísticos, e estes, de
qualquer modo, não expressariam fielmente o tom emotivo-volitivo real de uma vivência
pessoal e de uma relação direta consigo mesmo: é acima de tudo de dentro de si mesmo que
nunca se tem “dodói”, mas se tem “dor”. Só posso empregar uma forma hipocorística com
referência ao outro, expressando com isso a relação — real ou desejada — desse outro
comigo.
[il...] sinto uma necessidade absoluta de amor que apenas o outro, a partir do lugar que
só ele pode ocupar fora de mim, é capaz de saciar, por dentro; esta necessidade, é verdade,
desmantela por dentro minha auto-suficiência, sem me proporcionar ainda uma forma que
me valide por fora. Sou, para comigo, profundamente frio, até em meu instinto de
conservação.
Esse amor da mãe e dos próximos que desde a infância proporciona, de fora, a forma ao
homem, proporciona, ao longo de toda a sua vida, consistência ao seu corpo interior, sem
lhe dar, é verdade, uma imagem intuitivo-evidente de sua exterioridade; mas o torna,
todavia, detentor de um valor poten-

69

cial desse corpo que não poderia ser atualizado senão pelo outro.
O corpo do outro é um corpo exterior e seu valor, que atualizo de modo intuitivo-
visual, me é dado de maneira totalmente imediata. O corpo exterior se unifica e adquire
forma mediante as categorias cognitivas, éticas e estéticas, mediante o conjunto de seus
componentes externos visíveis e tangíveis que nele representam valores plásticos e
picturais. Minhas relações emotivo-volitivas com o corpo exterior do outro são imediatas, e
é apenas numa relação com o outro que vivo de maneira imediata a beleza do corpo
humano, ou seja, esse corpo começa a viver para mim em um nível de valores totalmente
diferentes, inacessíveis à percepção interna e à visão fragmentária que tenho de mim
mesmo. Apenas o outro é encarnado para mim em termos de valores e de estética. A esse
respeito, o corpo não é algo que baste a si mesmo, tem necessidade do outro, de outro que o
reconheça e lhe proporcione sua forma. Apenas o corpo interior — a carne pesada — é
dado ao homem, o corpo exterior do outro é apenas pré-dado e deve ser objeto de uma
atividade criadora.
O enfoque sexual do corpo do outro é de um tipo particular e, como tal, é incapaz de
desenvolver uma energia plástico-pictural que proporcione uma forma, incapaz de criar um
corpo concebido como um todo exterior artístico, finito, autônomo. O corpo exterior do
outro se desagrega para ser apenas uma modalidade de meu corpo interior, só tendo valor
em função das possibilidades corporais internas que ele faz reluzir à minha frente —
concupiscência, prazer, satisfação —, das possibilidades internas que diluem a resistência
de seu acabamento externo. Num enfoque sexual, meu corpo e o do outro se fundem em
uma carne, mas essa carne una só pode ser interior. E verdade que essa fusão em uma única
carne é o limite ao qual tende minha relação sexual, em toda a sua pureza, mas, na
realidade, intervém um fator estético, referente à admiração do corpo exterior, e, por
conseguinte, uma energia criadora de formas; contudo, nesse caso, se essa energia cria
valores artísticos é para um uso interessado e não com vistas à sua plenitude e à sua
independência.
Pusemos em evidência o que distingue o corpo exterior do corpo interior — o corpo do
outro e o meu próprio corpo -

70

no contexto fechado de uma vida concreta que um homem é o único a viver, para quem a
relação “eu e o outro” é irreversível e dada de uma vez por todas.
Vamos agora examinar como se apresenta o problema dos valores ético-religiosos e
estéticos do corpo do homem na sua história, tentando ver com clareza graças à distinção
que estabelecemos.
Em todas as concepções éticas, religiosas e estéticas que atingiram certo
desenvolvimento e perfeição e têm importância histórica, o corpo é antes generalizado do
que diferenciado, e, quando o é, é infalivelmente em função da predominância do corpo
interior ou do corpo exterior, do ponto de vista subjetivo ou objetivo, conforme nos
baseamos em nossa própria vivência ou na vivência do outro; no primeiro caso, o fun-
damento é a categoria dos valores do eu, à qual se vinculará o outro, e, no segundo, a
categoria do outro, que englobará a mim também.
No primeiro caso, o processo que preside à elaboração de uma concepção do homem (o
homem como valor) pode expressar-se assim: o homem sou eu, tal como me vivo, e os
outros são como eu. No segundo caso, o homem são os outros. Ora a singularidade da
experiência pessoal é diminuída, sob a influência da experiência dos outros, ora a
singularidade da experiência do outro é diminuída sob a influência e em proveito da
experiência pessoal. Trata-se apenas, naturalmente, de uma predominância de um ou de
outro desses princípios na elaboração dos valores, pois ambos os princípios fazem parte
integrante do todo do homem.
É óbvio que nos casos em que a categoria do outro desempenha um papel determinante
para a elaboração da concepção do homem, o que predomina é a apreciação positiva. e
estética do corpo: o homem é um ser encarnado que tem um significado plástico-pictural;
quanto ao corpo interior, ele está a reboque do corpo exterior do qual apenas reflete os
valores e tira sua sacralidade. Assim é o homem na Antigüidade, na época de seu
desabrochar. Então, todo o corporal é sacralizado através das categorias do outro, é vivido
como algo valioso e com significado imediato; a determinação dos valores peculiares a si
próprio é submetida a uma determinação exterior através do outro e para o outro, o eu-
para-mim é dissolvido no eu-

71

para-o-outro. Quanto ao corpo interior, ele é percebido como um valor biológico (o valor
biológico do corpo sadio é vazio, carente de autonomia, e ele não gera nada produtivo na
criação, nada significante no domínio da cultura, pode apenas refletir outro valor, de
natureza diferente, particularmente um valor estético, ao passo que ele próprio se situa
´´aquém da cultura``) . A projeção gnosiológica e o puro idealismo estão ausentes
(Husserl). Zelinski. O elemento sexual não predomina, pois é contrário à plasticidade. É
somente com as bacantes que começa a afluir outra corrente, oriental em sua essência. No
dionisismo, predomina a idéia de viver o corpo, porém não de modo solitário. O elemento
sexual se fortalece. A configuração plástica começa a esfumar-se; o homem em seu
acabamento plástico - o outro - fica imerso na percepção interna do corpo que, mesmo não
sendo individualizada, é una. Contudo, o eu-para-mim ainda não se personaliza e ainda não
se opõe ao outro enquanto categoria essencialmente diferente da percepção do homem.
Ainda se está apenas preparando o terreno, mas os limites da configuração já não são
sagrados e começam a pesar (o mal da individuação), o interior perdeu a sua autoritária
forma exterior sem ter ainda, todavia, encontrado uma “forma” espiritual (“forma” num
sentido inexato, pois deixou de ser uma forma estética, o espírito é pré-dado a si mesmo). O
epicurismo ocupa uma posição intermediária particular; nele, o corpo se tornou organismo,
é um corpo interior - conjunto de necessidades e de satisfações - que ainda nem sempre se
separou, que ainda guarda o reflexo, já enfraquecido, é verdade, dos valores positivos da
alteridade; mas todas as modalidades plásticas e picturais já se extinguiram. Um leve
ascetismo assinala que, na concepção do homem percebido na categoria do eu-para-mim
como espírito, nasce a presunção de uma consistência do corpo interior solitário. Essa idéia
começa a despontar no estoicismo: o corpo exterior está morrendo e a luta é travada com o
corpo interior (em si mesmo, para si mesmo) ao qual se nega a ratio. Um estóico abraça-se
a uma estátua para se esfriar. Na base de uma concepção do homem, coloca-se sua vivência
pessoal (o outro sou eu), daí a rigidez (o rigorismo) e a frieza, a ausência de amor no
estóico. Finalmente, e para terminar, é o neoplatonismo que vai mais longe na negação do
corpo - concebido como corpo próprio.

72

O valor estético desaparece quase totalmente. A idéia do nascimento vivo (a idéia do alter)
é substituída pela autoprojeção do eu-para-mim numa cosmogonia em que engendro o
outro no interior de mim sem sair de meus limites, permanecendo assim ainda solitário. A
singularidade do outro não é afirmada. Impõe-se a teoria da emanação: penso-me, meu eu
pensado (produto de minha autoprojeção) se separa de meu eu
pensante; opera-se um desdobramento, cria-se uma nova pessoa que, por sua vez, se
desdobra graças à autoprojeção, e assim por diante; todos os acontecimentos se concentram
num único eu-para-mim sem que venha introduzir-se nele o novo valor do outro. Na díade
eu-para-mim e eu, tal como apareço ao outro, o segundo termo é percebido como uma
limitação nociva e um engodo, carente de qualquer realidade substancial. A relação pura
consigo mesmo - que, sendo carente de qualquer princípio estético, só poderia ser ética ou
religiosa - torna-se o único princípio fundador dos valores da vivência e da razão de ser do
homem e do mundo. Ora, numa relação consigo mesmo, reações tais como ternura,
indulgência, perdão, admiração não se poderiam tornar imperativas e a palavra “bondade”
resume-as a todas: numa relação consigo mesmo, não se poderia entender ou fundamentar a
bondade como princípio de uma relação com o dado; então é o domínio do puro pré-dado
que vence tudo o que já é dado, atual e percebido como nocivo, vence todas as reações que
constituem e sacralizam o dado. (A eterna superação de si mesmo no terreno da
autoprojeção.) A existência se sacraliza com o inevitável arrependimento do corpo. O
neoplatonismo apreendeu melhor a importância dos valores do homem e do mundo
fundamentado na experiência de si mesmo: qualquer coisa - o universo, deus, os outros -
não é mais que um si-para-si e representa a última instância, e a mais competente, de um
juízo sobre si mesmo, o outro não tem voz ativa; e que uma coisa possa ser também um si-
para-o-outro, trata-se de um caso fortuito, não substancial, que por princípio não gera um
novo juízo de valor. Daí resulta também a negação mais conseqüente do corpo: meu corpo
não pode ser um valor para mim mesmo. O reflexo de autoconservação, puramente
instintivo, é incapaz de gerar um valor por si próprio. Tender à minha conservação ainda
não significa atribuir-me um valor: isso é algo que se faz sem recorrer

73

a qualquer juízo de valor ou a qualquer razão de ser. O organismo se restringe a viver e,


dentro, não necessita de uma razão de ser. E fora somente que uma razão de ser pode ser-
lhe concedida como uma graça. Não posso ser o autor de meu próprio valor assim como
não posso pegar-me pelos cabelos e içar-me. A vida biológica do organismo se torna um
valor apenas mediante a simpatia e a compaixão que lhe demonstra o outro (a mãe), e em
virtude disso essa vida é transposta para um novo contexto de valores. Do ponto de vista
dos valores, minha fome difere profundamente da fome de outro ser humano: em mim
mesmo, o desejo é “vontade de”, no outro, esse desejo é sagrado para mim, etc. Quando a
relação com o outro como tal exclui a possibilidade e o fundamento de um juízo de valor
que recuso a mim mesmo, quando o outro não usufrui o privilégio de sua alteridade, o
corpo, concebido como depositário da vida corporal para o próprio sujeito, só pode ser
negado (quando o outro não suscita um novo ponto de vista).
Na ótica que adotamos, o cristianismo apresenta uma liga heterogênea cujos elementos
constitutivos são os seguintes:
uma sacralização profundamente original da corporalidade interna do homem - de suas
necessidades corporais - tal como esta é aceita no judaísmo com base em uma
experiência coletiva da corporalidade em que predomina a categoria do outro e uma
percepção de si mesmo nessa categoria, sendo a experiência ética do próprio corpo
quase inexistente (a unidade do organismo nacional). O elemento sexual (dionisíaco) da
união corporal interna também é fraco. Valor do bem-estar corporal. Em virtude das
condições particulares da vida religiosa, o campo plástico-pictural não conhecerá porém
um desenvolvimento notável (a não ser na poesia). “Tu não farás ídolos para ti”; 2) a
noção, essencialmente peculiar à Antigüidade, de deus se fazendo homem (Zelinski) e
do homem se fazendo deus (Harnack); 3) o idealismo gnóstico e a ascese; 4) Cristo do
Evangelho. Cristo apresenta-nos uma síntese, única por sua profundidade, do solipsismo
ético, do infinito rigor do homem para consigo mesmo, ou seja, de uma relação
perfeitamente pura consigo mesmo e da bondade ético-estética para com o outro. Foi
então que, pela primeira vez, apareceu em sua infinita profundidade o eu-para-mim, que
não é porém feito de frieza, mas de bondade para com o outro, que confere toda a
verdade

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ao outro enquanto tal, e revela e valida o outro em toda a plenitude e a singularidade de


seus valores. Para Cristo, todos os homens se dividem entre ele mesmo, o único a ser ele
mesmo, e todos os outros, entre ele, que perdoa, e os outros, perdoados; entre ele, o
salvador, e todos os outros, salvos; entre ele que assume para si o fardo do pecado e da
expiação, e todos os outros, libertos do fardo do pecado e expiados. Vêm daí que todas as
normas de Cristo são marcadas pela oposição entre eu e o outro: para si mesmo, é o
sacrifício absoluto, e para o outro, é o perdão. Ora, o eu-para-mim é também o outro para
Deus. Deus já não se define, em sua substância, como a voz da minha consciência, como a
pureza de minha relação comigo mesmo, como a pureza de minha negação arrependida de
tudo quanto é dado em mim, não mais se define como Aquele em cujas mãos não é bom
cair, Aquele de quem ver a face significa a morte (minha autocondenação imanente a mim
mesmo), é agora o pai que está no céu, que está acima de mim e pode me validar e me
perdoar quando no interior de mim mesmo sou, por princípio, impotente para me validar e
para me perdoar, se eu quiser ficar limpo para comigo. O que devo ser para o outro, Deus o
é para mim. O que o outro combate em si mesmo e rejeita enquanto dado nocivo será
aceito, encontrará perdão junto de mim e se tornará carne preciosa do outro.
Tais são os elementos constitutivos do cristianismo No ângulo do problema que nos
ocupa, constataremos que ele evolui em duas direções: 1) a corrente neoplatônica triunfa - o
outro é, acima de tudo, um si-para-si e a carne enquanto tal é o mal, tanto em mim como no
outro; 2) os dois princípios de valores - a relação consigo mesmo e a relação com o outro -
se manifestam em toda a particularidade que os caracteriza respectivamente. É claro que
nesse caso se trata de duas tendências abstratamente isoladas, que não existem em estado
puro, limitando-se a predominar em cada uma de suas manifestações concretas. É no
terreno da segunda tendência que se desenvolveu a idéia da transfiguraçà0 do corpo em
Deus, enquanto outro para ele. A Igreja é o corpo de Cristo, a noiva de Cristo.
(Comentários do Cântico dos Cânticos de Bernardo de Clairvaux.) E, finalmente, a idéia da
misericórdia que se difunde sobre nós de fora, como graça que nos valida e justifica

75

nosso dado marcado por princípio pelo pecado e que não poderíamos superar de dentro de
nós mesmos. É a isso que se prende também a idéia da confissão (do arrependimento
absoluto) e da absolvição. De dentro do meu arrependimento, e a negação de tudo quanto
sou eu mesmo; de fora (Deus é o outro), é a redenção e a graça. O homem só tem seu
arrependimento, o perdão só lhe pode vir do outro. Essa segunda tendência do cristianismo
encontrou sua expressão mais profunda em São Francisco, Giotto e Dante. No paraíso,
Dante confia a Bernardo a idéia de que nosso corpo não ressuscitará para nós mesmos, mas
para aqueles que nos amam, nos amaram e conhecem de nós o rosto único que era o nosso.
Na época do Renascimento, a reabilitação da carne tem um caráter confuso e
desordenado. A pureza e a profundidade da aceitação, tal como o encontrávamos em São
Francisco, Giotto e Dante, perdeu-se e a que encontrávamos na Antigüidade já não podia
ser restabelecida. O corpo procurava, sem o encontrar, um autor com autoridade e em cujo
nome o artista pudesse ter criado. Daí essa solidão do corpo do Renascimento. Mas a
corrente Francisco-Giotto-Dante se faz sentir nas mais importantes manifestações dessa
época, tendo porém perdido algo de sua pureza (Leonardo da Vinci, Rafael, Michelangelo).
Em compensação, a técnica de representação atinge imensa força em seu desenvolvimento,
ainda que privada de uma figura que a marcasse com sua autoridade e com sua integridade.
A visão ingênua da Antigüidade, na qual o corpo formava um só todo com a corporalidade
do mundo exterior do outro, pois que a sua autoconsciência, enquanto eu-para-mim, ainda
não se unificara e o homem ainda não desembocara numa relação pura consigo mesmo,
diferente por princípio da relação com o outro, essa visão já não podia ser restabelecida
após a experiência interior que a Idade Média conhecera (junto com os clássicos, era
impossível não praticar Santo Agostinho, Petrarca, Boccaccio). O elemento sexual, com seu
princípio desagregador, está fortemente presente, a morte epicurista também.
Individualidade do ego na concepção do homem do Renascimento. Apenas a alma pode
separar-se, não o corpo. Idéia da glória, que é uma apropriação parasitária do outro, carente
de autoridade. Durante os dois séculos que se seguiram, a exotopia ao corpo perdeu-se
definitivamente, antes de

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degenerar numa concepção que faz do organismo um conjunto de necessidades peculiares


ao homem natural no Século das Luzes. As concepções do homem evoluíam e se
enriqueciam, mas sob relações diferentes daquelas que nos ocupam. O positivismo reduziu
definitivamente a um denominador comum o eu e o outro. O pensamento político. A
reabilitação da sexualidade na época do romantismo. A idéia do direito do homem, do
homem-outro. Esta é, em linhas gerais, a história sumária e necessariamente incompleta do
corpo nas concepções do homem.
Uma concepção do homem como tal sempre é um tanto monística, e sempre tende a
superar o dualismo do eu e do outro, embora se prevaleça, é verdade, de uma ou outra
dessas categorias. A crítica de uma concepção tão generalizada do homem não entra na
tarefa que nos atribuímos; assim não levantaremos a questão de saber até que ponto é
legítimo ou não superar esse dualismo e até mesmo ignorar, no mais das vezes, a distinção
fundamental entre eu e o outro. Se quisermos compreender o mundo como acontecimento
único e aberto, e orientarmo-nos nele, será possível abstrairmos o lugar que somos os
únicos a ocupar nele, em oposição a todos os outros homens - passados, presentes e
futuros? Também nesse caso, vamos deixar a questão aberta. O essencial para nós aqui não
deixa a menor dúvida: viver o outro de modo real, concreto, valorizado, no interior do todo
fechado da minha própria vida, singular e única, no horizonte real da minha vida, se
assinala por essa bivalência, pois, eu e o outro, ambos evoluímos em níveis (planos)
distintos da visão e do juízo de valor (um juízo de valor concreto, real e não uma
construção da mente), e se quero operar uma transposição que nos coloque, eu e o outro,
num único e mesmo nível, devo, em meus valores, situar-me fora da minha própria vida e
perceber-me como outro entre os outros; a operação é fácil no abstrato, quando me coloco
num ponto em que compartilho uma norma comum com os outros (na moral, no direito),
uma lei estabelecida pelo conhecimento (fisiológica, psicológica, social); mas essa
operação abstrata está longe daquela que consiste em vivenciar-me enquanto outro em toda
a evidência concreta de valores, está longe de uma visão concreta de minha vida e de mim
mesmo- seu herói- que me colocaria na mesma categoria dos outros homens e das suas
vidas, no mesmo plano deles. Porém
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isso pressupõe uma posição de valores situada fora de mim e autorizada por mim. É graças
a uma percepção da minha vida na categoria do outro que meu corpo pode tornar-se
esteticamente significante e não no contexto da minha vida para mim mesmo, no contexto
da minha autoconsciência.
Na ausência dessa posição autorizada a partir da qual eu possa obter uma visão concreta,
valorizada - a percepção de mim como outro _, minha exterioridade - a minha existência
para o outro - tende a concentrar-se na minha autoconsciência; ocorre uma volta a mim
mesmo para um uso interessado da minha existência tal como ela aparece ao outro. Então
meu próprio reflexo no outro, o que sou para o outro, transforma-se em meu duplo, um
duplo que força a entrada na minha consciência, turva-lhe a limpidez, e me desvia de uma
relação direta comigo mesmo. O medo do duplo. O homem que, em seu desejo de
representar-se a sua imagem externa, habituou-se a sonhar-se de uma forma concreta, que
se apega doentiamente à impressão externa que ele provoca, sem jamais poder confiar nela,
e que se entrega ao seu amor-próprio - esse homem perde a ótica certa, puramente interna,
acerca do seu corpo; ele se torna acanhado, não sabe o que fazer com as mãos, fica
desconcertado porque o outro, indeterminado, se infiltra em seus gestos e introduz um
segundo princípio em sua relação de valor consigo mesmo, o contexto da sua
autoconsciência é confundido pelo contexto da consciência que o outro tem dele, o corpo
interior é confrontado com o corpo exterior que se separou dele e vive sob o olhar do outro.
Para compreender essa diferenciação dos valores do corpo na minha vivência pessoal e na
minha vivência do outro, é bom evocar uma imagem global da própria vida, tão completa e
concreta quanto possível, numa tonalidade emotivo-volitiva, sem intenção de transmiti-la
ao outro, de encarná-la para o outro. Essa vida, assim reconstituída na imaginação, será
animada pelas imagens finitas e indeléveis dos outros que nela figurarão com toda a sua
exterioridade visível, pelos rostos dos que me são próximos, da minha família e mesmo
daqueles com quem cruzei ocasionalmente na vida; mas, entre elas, não encontrarei minha
própria imagem exterior, entre todos esses rostos únicos faltará meu rosto; o que
corresponderá a meu eu, serão as recordações - a vivência reconstituída, puramente in-

78

terior de minhas alegrias, de meus sofrimentos, de meus arrependimentos, de meus desejos,


de meus arroubos que impregnam esse mundo visível dos outros, em outras palavras, terei
evocado minha ótica interna em determinadas circunstâncias da minha vida, e não minha
imagem externa. Todos os valores plásticos e picturais - cores, tonalidades, formas, linhas,
imagens, gestos, rostos, etc. - se distribuirão entre o mundo das coisas e dos seres, ao passo
que eu farei parte dele enquanto depositário invisível do que dá colorido emotivo-volitivo a
esse mundo e que emana da posição de valores que sou o único a ocupar.
Se, com minha atividade, crio o corpo exterior do outro em termos de valores, é graças
a essa ótica determinada precisamente pela alteridade do outro, uma ótica que é orientada
para a frente de mim mesmo e não é invertível para a minha direção. A vivência que o herói
tem de seu corpo - corpo interior a partir dele mesmo - envolve-se em seu corpo exterior
para o outro, para o autor, encontra sua consistência estética através da reação de valor
deste. Todos os componentes desse corpo exterior que envolve o corpo interior, enquanto
fenômeno estético, são dotados de uma dupla função, uma função expressiva e impressiva,
à qual corresponde a dupla orientação ativa do autor e do contemplador.

6. [O corpo exterior.]

Função expressiva e função impressiva. Uma das tendências mais vigorosas e mais
elaboradas da estética do século XIX, particularmente em sua segunda metade, e do início
do século XX é aquela que assimila a atividade estética a um ato de simpatia ou de empatia.
O que nos interessa aqui não são as diversas facetas dessa tendência, mas a sua idéia básica
em sua forma mais genérica. A idéia é a seguinte: o objeto estético - os produtos da arte, os
fenômenos da natureza e da vida - expressa certo estado interior cujo conhecimento estético
consiste em vivenciar esse estado interior. A diferença entre a empatia e a simpatia não é
essencial - por mais que tentemos inserir nosso próprio estado interior no objeto, ainda
assim continuaremos, no nível da sensação imediata, a senti-
79
lo alheio a nós, ao passo que o estado contemplativo nos fará vivenciar o objeto. A empatia
explica melhor a sensação vivida (fenomenologia da sensação), a simpatia tende a explicar
a gênese psicológica dessa sensação. A elaboração de uma estética deve ser independente
das teorias propriamente psicológicas (salvo quando se trata de uma descrição psicológica,
de uma fenomenologia); por isso não nos indagaremos como se opera a empatia, se é
possível uma vivência imediata da vida espiritual do outro (Lossky), se é indispensável
identificar-se exteriormente com o rosto contemplado (reprodução direta de uma mímica),
que papel é reservado às associações, à memória, se é possível a reprodução do sentimento
(Gomperz o nega, Witasek o afirma). Do ponto de vista fenomenológico, vivenciar a vida
interior de outro é incontestavelmente possível, seja qual for a técnica inconsciente dessa
operação.
Para a tendência que vamos examinar, a atividade estética consiste em vivenciar o estado
interior ou em contemplar o objeto: homem, coisa inanimada, ou ainda linhas e cores.
Enquanto a geometria (conhecimento) define a linha relativamente a uma outra linha, a um
ponto, a uma superfície que será vertical, oblíqua, paralela, etc., a atividade estética define a
linha relativamente a um estado interior (mais exatamente, ela não a define, a vivencia)
como linha dirigida para cima, para baixo, etc. A partir de uma formulação tão genérica dos
fundamentos de uma estética, essa corrente se vincula não só à estética da simpatia no
sentido próprio (já presente parcialmente em T. Vischer, Lotze, R. Vischer, Volkelt, Wundt
e Lipps), mas também à estética da imitação interna (Groos), do jogo e da ilusão (Groos e
Lange), à estética de Cohen, em parte à de Schopenhauer e de seus discípulos (a imersão no
objeto), e, finalmente, à estética de Bergson. Designaremos a estética dessa tendência pelo
termo arbitrariamente forjado de “estética expressiva”, opondo-a às tendências para as
quais o centro de gravidade se situa nos componentes externos e que chamaremos de
“estética impressiva” (Fiedler, Hildebrand, Hanslick, Riegl, etc., a estética do simbolismo,
etc.). Para a primeira dessas escolas, o objeto estético é expressivo enquanto tal, é a
representação externa de um estado interior: o que se expressa não é objetivamente
significante (não tem valor objetivo), o significante é a vida interior do objeto expressando-
se a si mesmo;

80

esta é a condição que permite vivenciar o objeto com empatia. Se o objeto estético
expressa, tal qual, uma idéia ou um conjunto circunstancial objetivo -- como acontece com
o simbolismo e com a estética do conteúdo (Hegel, Schelling), já não se trata de empatia e
lidamos com a outra escola. O objeto estético da estética expressiva é o homem e todo o
resto será animado e personalizado (mesmo a cor e a linha). Nesse sentido, pode-se dizer
que para a estética expressiva qualquer valor estético espacial é conceitualizado num corpo
que expressa uma alma (um estado interior), a estética é mímica e fisionômica. Perceber
esteticamente o corpo significa vivenciar os estados interiores do corpo e da alma a partir
de uma expressividade exterior. Podemos formulá-lo assim: o valor estético se realiza
quando o contemplador se aloja dentro do objeto contemplado, quando vivencia a vida do
objeto de seu interior e quando, no limite, contemplante e contemplado coincidem. O
objeto estético é o sujeito de sua própria vida interior e é no nível dessa vida interior do
objeto estético, entendido como sujeito, que se realiza o valor estético, no plano de uma
única consciência, no plano em que o sujeito se situa na categoria do eu. Esses pontos de
vista não são inteiramente conseqüentes: assim, para explicar o trágico e o cômico, é
insuficiente dizer que se vivencia o sofrimento do herói trágico ou a tolice do herói cômico.
Mas o princípio básico tende a que o valor estético se realize integralmente, de maneira
imanente a uma única consciência, não sendo admitida uma oposição entre eu e o outro. O
sentimento de compaixão (para com o herói trágico), o sentimento de sua própria
superioridade (diante do herói cômico), de sua própria insignificância ou de sua
superioridade moral (diante do sublime), todos esses sentimentos são banidos como extra-
estéticos, e, se o são, é justamente porque se relacionam com o outro como tal, supõem uma
oposição valorativa entre o eu (contemplante) e o outro (contemplado) e a estanqueidade
fundamental deles. A noção da representação e da ilusão é particularmente característica a
esse respeito. De fato, na representação vivo outra vida sem sair dos limites de minha
vivência e de minha consciência, sem lidar com o outro como tal. Dá-se o mesmo com a
ilusão: embora continuando a ser eu mesmo, vivo outra vida. Ora, o ato de contemplação
está ausente dessas vivências (contemplo meu parceiro de re-

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presentação com olhos de participante e não com olhos de espectador), e isso, esquece-se.
Nos casos desse tipo, meu sentimento possível para com o outro não intervém, enquanto, ao
mesmo tempo, vivo essa outra vida. A estética expressiva recorre habitualmente a essas
noções para descrever sua posição (quer eu sofra como o herói, quer eu seja, como
espectador, livre ante os sofrimentos do herói; o que predomina é a relação consigo, a
vivência na categoria do eu, e todos os valores relacionam-se com o eu) - uma posição que,
para a realização de um valor estético, implica uma vivência interior, uma vivência na
categoria de um eu, inventado ou real. (As categorias estruturais de um objeto estético - a
beleza, a grandeza, o trágico - tornam-se formas possíveis de uma vivência em si: auto-
suficiência da beleza, etc. - sem correlação com o outro como tal. Liberdade absoluta da
vivência de si mesmo, de sua vida, segundo Lipps.)
Crítica dos fundamentos da estética expressiva. A estética expressiva parece-nos falsa
em seu fundamento. O ato de simpatia ou de empatia é um ato extra-estético. Que a empatia
existe, não só na percepção estética, mas também na vida (na vida corrente, ética,
psicológica, etc.), nenhum partidário dessa tendência o nega, sem contudo fornecer os
índices que particularizam o ato de empatia estética (a empatia pura em Lipps, intensiva em
Cohen, sublime em Volkelt, a imitação simpática em Groos).
E, por sinal, é impossível especificar essa distinção se permanecermos no terreno da
empatia. As seguintes observações podem fundamentar as restrições inspiradas pelas
teorias da estética expressiva:
1) A estética expressiva é impotente para esclarecer o todo de uma obra. Tomemos A
ceia, por exemplo. Para compreender a figura central de Cristo e a de cada um dos
apóstolos, devo vivenciar cada uma das personagens baseando-me em sua expressividade
externa. Devo vivenciar o estado interior de cada apóstolo. Passando de um para outro,
posso efetivamente vivenciar e compreender cada figura isoladamente. Mas de que maneira
poderei viver o todo estético da obra? Esse todo não poderia ser igual à soma das vivências
que terei experimentado a partir de cada uma das personagens. Será que deveria sentir

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o movimento interior de conjunto do grupo? Sim, mas esse movimento interior não existe.
O que tenho à minha frente não é um movimento de massa que forme um só todo que possa
ser compreendido como um único e mesmo sujeito. Muito pelo contrário, a orientação
emotivo-volitiva de cada uma das personagens é profundamente individual, havendo, entre
elas, uma relação de tensão: estou diante de um acontecimento que forma um conjunto
complexo, em que cada personagem ocupa uma posição única, a qual é a única a ocupar no
todo do acontecimento. Por mais que eu vivencie cada uma delas, não compreenderei
melhor o todo do acontecimento que implica um ponto de vista exotópico a cada uma das
personagens em particular e ao conjunto que constituem. Em casos desse tipo, em geral
fazemos o autor intervir: vivenciar o autor é alcançar o todo da obra. Cada uma das
personagens expressa a si mesma, o todo da obra expressa o autor. Porém, com isso,
colocamos o autor ao lado de seus heróis (o que ocorre, às vezes, ainda que não seja a
modalidade normal e não se aplique ao nosso exemplo). Mas qual é a relação da vivência
do autor com a vivência de seus heróis, qual é sua posição emotivo-volitiva a respeito da
posição deles? Lançar mão do autor compromete os próprios fundamentos da teoria
expressiva. Vivenciar o autor, na própria medida em que este se expressou através de uma
obra, não é participar de sua vida interior (suas alegrias, seus sofrimentos, seus desejos,
suas aspirações) no sentido em que vivenciamos o herói, mas é participar do escopo que
orienta sua atividade com relação ao objeto expresso, ou seja, é co-criar; o que se trata de
explicar é precisamente a relação propriamente estética que consiste em viver a relação
criadora de um autor, e, é óbvio, essa relação não pode ser explicada em termos de empatia;
mas daí decorre que também a contemplação não pode ser explicada dessa forma. O erro
fundamental da estética expressiva é ter elaborado seu princípio básico a partir de
elementos estéticos ou de imagens consideradas isoladamente, no mais das vezes na
natureza, e não a partir do todo da obra. De uma maneira geral, toda a estética
contemporânea peca pela predileção pelos elementos. Um elemento ou uma imagem
natural, considerados isoladamente, não têm autor e suscitam uma contemplação estética de
caráter passivo e híbrido. Quando tenho à minha frente uma figura simples, uma

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cor ou uma reunião de duas cores, um rochedo real ou o refluxo do mar na praia, e tento
adaptar-lhes uma abordagem estética qualquer, devo antes de mais nada dar-lhes vida,
convertê-los em heróis em potencial, marcados por um destino, devo dotá-los de uma
orientação emotivo-volitiva, personificá-los; esse é o meio que permite instaurar uma
abordagem estética, condição principal de uma visão estética, mas a atividade propriamente
estética ainda não começou, na medida em que apenas estou vivendo a imagem a que dei
vida (minha atividade também pode enveredar-se noutra direção: posso sentir pavor perante
um mar que animei de modo temível, piedade perante uma rocha comprimida em suas
gargantas, etc.). Devo, ainda que seja apenas em minha imaginação, pintar um quadro ou
escrever um poema, construir um mito no qual o fenômeno dado será o herói de um
acontecimento acabado que o engloba, o que é impossível se permaneço no interior da
imagem dada, e implica que eu me situe fora do acontecimento. O quadro ou o poema que
criei constituirá, por si só, um todo artístico onde estarão presentes os elementos estéticos
necessários. Sua análise será produtiva. A imagem externa do rochedo representado não vai
somente exprimir-lhe a alma, os estados interiores possíveis - tenacidade, orgulho, firmeza,
independência, tristeza, solidão -, vai também conferir-lhe o acabamento, graças aos
valores possíveis da vivência peculiar a essa alma e que lhe são transcendentes; e essa alma
receberá sua graça estética, sua razão de ser - o que ela não pode receber do interior de si
mesma. Ao seu lado virão dispor-se coisas que contêm valor estético, artisticamente
significantes, mas carentes de uma posição interior autônoma, pois, no todo artístico, cada
um dos constituintes esteticamente significantes nem sempre possui vida interior e não é
acessível ao ato de empatia, ao qual se prestam apenas os heróis-participantes. O todo
estético não é algo para ser vivido, mas algo para ser criado (tanto pelo autor como pelo
contemplador; sendo nesse sentido que se pode dizer, com certo exagero, que o espectador
vive a atividade criadora do autor), apenas o herói deve viver, embora aí não se trate de
uma operação propriamente estética, já que esta reside apenas no ato de acabamento.
2) A estética expressiva é impotente para fornecer fundamento à forma. O mais
coerente feito a esse respeito consistia

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em reduzir a forma à limpidez de uma expressão (Lipps, Cohen, Volkelt): a forma tem por
função favorecer, com sua clareza, o ato de empatia, expressar, de forma tão completa e
transparente quanto possível, um mundo interior (o do herói? o do autor?). Tal é a
compreensão da forma peculiar à teoria expressiva; a forma não assegura acabamento a um
conteúdo - no sentido do todo vivido por ato de empatia ou de simpatia -, ela se limita a
expressá-lo, também pode aprofundá-lo, esclarecê-lo, mas não introduz nada que, em
princípio, seria uma contribuição nova, seria transcendente à vida interior expressa. A
forma expressa unicamente o interior de quem ela reveste, é pura auto-expressão. A forma
do herói apenas expressa a ele mesmo, a sua alma, e não a relação do autor com o herói; a
forma deve ser fundamentada pelo interior do herói que parece gerar por si só a sua forma
enquanto expressão adequada dele. Este é um raciocínio que não é aplicável ao artista. A
forma da Madona Sistina expressa a Madona, a mãe de Deus. Quando dizemos que ela
expressa Rafael e a sua compreensão da Madona, entendemos expressão num sentido
diferente, num sentido que é alheio à estética expressiva, pois, nesse caso, a expressão não
exprime de modo algum o homem-Rafael, sua vida interior, assim como uma formulação
bem-sucedida de um ponto teórico não poderia expressar minha vida interior. A estética
expressiva, de uma maneira que lhe é fatal, só vê em toda parte o herói e o autor -
percebido como herói ou percebido como tal em função de seu grau de coincidência com o
herói. A forma é mímica e fisionômica, só expressa o sujeito para um outro, ou seja, para o
ouvinte-contemplador; mas este é passivo, restringe-se a perceber e, se influi na forma, é só
porque um eu que se enuncia leva sempre em conta o ouvinte (quando enuncio a mim
mesmo - pela mímica ou pela fala - adapto minha linguagem às particularidades de meu
destinatário). A forma não é dada ao objeto como que por encanto, ela emana do objeto,
como expressão desse objeto, no limite, como autodeterminação desse objeto. A forma
deve levar-nos a viver o objeto interiormente, proporciona-nos apenas o meio de viver
idealmente a vivência própria do objeto. A forma do rochedo nada mais exprime senão sua
solidão interior, sua independência, sua postura emotivo-volitiva no mundo e resta-nos
somente vivê-la. Podemos formulá-lo da seguinte ma-

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neira: expressamos a nós mesmos, expressamos nossa própria vida interior através da
forma desse rochedo, fazendo viver nele o sentimento de nosso próprio eu; em qualquer
circunstância, a forma não é mais que auto-expressão da alma, expressão pura de um
interior.
É raro que a estética expressiva permaneça fiel a uma concepção rigorosamente
conseqüente da forma. Insuficiências flagrantes obrigam-na a introduzir outros
fundamentos da forma e, portanto, outros princípios formais que não se integram, e não
poderiam integrar-se, ao princípio básico; eles parecem acréscimos anexados
mecanicamente à teoria expressiva. Explicar a forma de um todo como expressão da
postura interior do herói - ora, o autor só se expressa através do herói ao qual se esforça em
dar uma forma de expressão adequada inserindo-lhe, no máximo, o elemento subjetivo de
sua própria compreensão do herói -i é como que uma empreitada impossível. O princípio
formal de Lipps (a escola de Pitágoras, Aristóteles), sobre a unidade na multiplicidade, não
passa de um apêndice anexado ao significado da expressividade. Essa função acessória da
forma adquire inevitavelmente um matiz hedônico na medida em que é separada do vínculo
necessário que a une à coisa expressa. Assim, para explicar a tragédia, leva-se em
consideração o prazer experimentado ao viver o sofrimento; essa explicação vem juntar-se
àquela que valoriza o sentimento de superioridade experimentado ao se viver o valor de seu
próprio eu (Lipps) proporcionado pela forma, o prazer puramente formal produzido pelo
processo de empatia enquanto tal, independentemente do conteúdo dessa vivência. O vício
intrínseco que macula a estética expressiva é situar num único e mesmo plano, numa única
e mesma consciência, os elementos do conteúdo (do conjunto das vivências interiores) e os
elementos da forma, é tentar deduzir a forma do conteúdo. O conteúdo, em sendo vida
interior, cria sozinho sua própria forma enquanto expressão de si. Podemos nos perguntar
se a vida interior, a postura interior de uma vida pode tornar-se autora de sua própria forma
estética externa, [...] pode gerar espontaneamente uma forma estética e uma expressão
artística. E, inversamente, podemos perguntar-nos se a forma artística leva unicamente a
essa postura interior e se é a sua única expressão. Nossa resposta é necessariamente
negativa. Um sujeito como tal, que

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expressa sua vida interior, pode encontrar uma expressão imediata para ela, e o faz, através
do ato; ele pode também enunciá-la, de dentro de si mesmo, através da introspecção-
confissão (sua própria autodeterminação), e, finalmente, pode transmitir sua orientação
cognitiva, sua visão do mundo, através das categorias do discurso cognitivo, teórico. O ato
e a introspecção-confissão são formas através das quais sua postura emotivo-volitiva pode
expressar-se no mundo, a partir do interior dele mesmo, sem que venham insinuar-se aí
valores que, em princípio, são transcendentes à postura de sua vida (é de dentro de si
mesmo que o herói procede ao ato, ao arrependimento, à cognição). De dentro, a vida não
pode gerar uma forma esteticamente significante sem ultrapassar os limites que lhe são
próprios, sem deixar de ser ela mesma.
Tomemos o caso de Édipo. Não há nada em sua vida, pelo próprio fato de ser ele que a
vive, que não lhe seja significante no interior do contexto de valores e do sentido dessa
vida; sua postura emotivo-volitiva sempre encontra um meio de i~ expressar-se no ato (o
ato-ação e o ato-palavra), de refletir-se na confissão e no arrependimento; dentro de si
mesmo, ele não é trágico, se tomarmos essa palavra em seu significado estritamente
estético: o sofrimento, tal como é vivido concretamente, de dentro, pelo sujeito que sofre,
não é trágico; a vida não poderia encontrar, dentro de si mesma, uma expressão e uma
forma que fossem as da tragédia. Se começarmos a coincidir interiormente com Édipo,
perderemos de imediato a categoria < estética do trágico. No interior do contexto dos
valores e do sentido em que Édipo vive a sua vida, não há nada que possa estruturar a
forma da tragédia. Dentro de si mesma, uma vida não é nem trágica, nem cômica, nem bela,
nem sublime para quem a vive pessoalmente e para quem a vive através do ato de empatia.
E somente com a condição de eu ficar fora dos limites em cujo interior a alma vive a vida,
de ocupar uma posição que me coloque fora dessa alma, de dar-lhe uma carne exterior
significante e de cercá-la dos valores que são transcendentes à sua própria orientação no
mundo das coisas (seu fundo, seu âmbito de vida como ambiente e não como campo de
ação, ou horizonte), que a vida dessa alma me aparecerá numa luz trágica, assumirá uma
expressão cômica, tornar-se-á bela e sublime. Se eu me contentar em viver Édipo
(admitindo que

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seja possível a empatia pura), em ver o que ele vê, em ouvir o que ele ouve, assistirei sem
demora à desintegração de sua expressividade externa, de seu corpo, e dos valores plástico-
picturais que serviram para revestir e acabar sua vida para mim: após me terem feito
vivenciar Edipo, esses valores ficam inaptos para penetrar dentro dele, pois no mundo de
Édipo, tal como ele próprio o vive, não há seu próprio corpo exterior, não há o valor
pictural-individual de seu rosto, não há a posição plasticamente significante que seu corpo
ocupa nesta ou naquela circunstância de sua vida. No mundo de Édipo, apenas as outras
personagens de sua vida são revestidas de carne externa, e esses comparsas, rostos e
objetos, não o cercam, não constituem seu ambiente esteticamente significante, mas entram
em seu horizonte, o horizonte do sujeito da ação. E é precisamente nesse mundo do próprio
Edipo que deve realizar-se seu valor estético, segundo a teoria expressiva [il...] pois sua
construção em nós mesmos é o objetivo final da atividade estética, para o que deve
concorrer a forma. Em outras palavras, a contemplação estética deve levar-me a reconstruir
o mundo da vida, do devaneio ou do sonho, tal como eu mesmo o vivo, e no qual eu, que
sou seu herói, não estou exteriormente expresso (ver acima). Mas esse mundo só se
estrutura a partir de categorias cognitivo-éticas, e a estrutura da tragédia, da comédia, etc.,
é-lhe profundamente alheia. Se me fundo com Edipo, se perco a posição que ocupo fora
dele, o que, segundo a estética expressiva, representa o limite a que tende a atividade
estética, perco imediatamente o “trágico”, e esta atividade deixará de ser, para mim/Edipo,
uma expressão e uma forma um tanto quanto adequadas da vida com a qual me identifico;
ela se encontrará expressa mediante as palavras e os atos que o próprio Édipo realiza, mas
essas palavras e esses atos, eu os viverei apenas por dentro, do ponto de vista do sentido
real que eles têm nos acontecimentos da minha vida e não mais do ponto de vista do seu
significado estético - enquanto componente do todo artístico de uma tragédia. Se eu me
fundo com Édipo, se perco o lugar que ocupo fora dele, deixo de enriquecer o
acontecimento de sua vida, pois abandono esse novo ponto de vista que lhe é inacessível a
partir do lugar que ele é o único a ocupar, deixo de enriquecer o acontecimento da sua vida
da qual já não serei o autor-contemplador; mas, por isso mesmo, é abo-

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lida a tragédia que resulta precisamente desse enriquecimento fundamental que o autor-
contemplador introduz no acontecimento da vida de Édipo. Porque o acontecimento-
tragédia no que a tragédia é gesto-ato artístico (e religioso) - não coincide com o
acontecimento-vida de Édipo, e seus participantes não são apenas Edipo, Jocasta e as outras
personagens, mas também o autor-contemplador. Na tragédia, em seu todo concebido como
acontecimento artístico, é o autor-contemplador que é ativo, enquanto os heróis são
passivos, salvos e redimidos pela redenção estética. Se o autor-contemplador perde a
posição firme e ativa que o situa fora da personagem, se começa a fundir-se com ela, o
acontecimento artístico é destruído, assim como o todo artístico enquanto tal, do qual ele é,
na qualidade de personagem criadora autônoma, um componente necessário; Edipo ficará
sozinho consigo mesmo, não se terá beneficiado da salvação e da redenção estética, a vida
não terá recebido o acabamento e a razão de ser em um plano de valores diferente daquele
em que ela se desenvolvia efetivamente para quem a vivia [...] A criação estética não tende
à repetição incessantemente recomeçada de uma vida real ou possível, que se desenrolaria
de novo em companhia dos mesmos participantes e nas mesmas categorias em que ela
tivesse sido vivida. Devemos precisar que nossas objeções não incidem sobre o realismo e
o naturalismo e que não pretendemos defender o idealismo, a transfiguração idealista da
realidade pela arte, como se poderia pensar. Não nos colocamos no plano do debate que
opõe o idealismo ao realismo. E muito fácil explicar a obra idealista que transfigura a vida
apoiando-se nas teorias da estética expressiva, porque podemos supor que tal transfiguração
se opera na mesma categoria do eu, ao mesmo tempo que a mais exata reprodução
naturalista da vida pode ser percebida na categoria dos valores do outro, como vida de um
outro. Tratamos do problema da relação entre o herói e o autor-espectador; a questão é
saber se a atividade estética do autor-espectador consiste em viver o herói e tende ao limite
de uma coincidência entre eles e se a forma pode ser compreendida de dentro do herói
enquanto expressão de sua vida que tende ao limite de uma auto-expressão de sua vida.
Vimos que, segundo a teoria expressiva, a estrutura do mundo à qual nos leva a obra de arte
(propriamente o objeto estético), entendida a partir da expres-

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sividade, é semelhante à estrutura do mundo da vida tal como a vivo realmente, onde o
protagonista - eu - não está expresso, mas, em igual medida, é também semelhante ao
mundo do devaneio mais desenfreado sobre si mesmo no qual o herói não está tampouco
expresso, e no qual não há, para ser exato, um ambiente mas somente um horizonte.
Veremos mais adiante que a teoria expressiva se justifica precisamente para o romantismo.
O erro radical da teoria expressiva, que leva à desintegração do todo estético, aparece
com toda clareza no exemplo do espetáculo teatral (da representação cênica). A teoria
expressiva deveria ter utilizado modalidades estéticas específicas ao acontecimento da peça
teatral (ou seja, o objeto propriamente estético) - no teatro, o espectador perde sua posição
fora e diante do acontecimento que representa a vida das personagens da peça, pois ele se
situa no interior de uma personagem cuja vida vive por dentro, vendo a cena e ouvindo as
demais personagens como as vê e as ouve a dada personagem de quem vive também cada
um dos atos. Não temos espectador, mas não temos tampouco autor enquanto participante
ativo do acontecimento, pois o espectador não se serve dele em seu ato de empatia que o
aloja por inteiro no interior do herói, no interior daquilo que vive conjuntamente com o
herói. Não temos tampouco diretor - este apenas preparou a forma expressiva dos atores,
facilitando assim o acesso do espectador ao interior dos atores com os quais ele próprio
coincide, de sorte que já não há lugar para ele. Quem permanece? Empiricamente, claro,
permanecem os espectadores sentados em seus lugares na platéia e nos camarotes,
permanecem os atores no palco e o diretor, emocionado e atento, nos bastidores, e também,
talvez, em algum lugar em seu camarote, o homem-autor. Essas não são, porém,
modalidades do acontecimento artístico constituído pela peça. O que fica do objeto
estético? Uma vida vivida por dentro? Sim, mas não há apenas uma, há tantas vidas quantas
são as personagens. E uma pena que a teoria expressiva não tenha uma resposta para a
questão de saber se o ato de empatia deve exercer-se unicamente acerca do protagonista ou
estender-se a todas as outras personagens na mesma proporção - não sendo esta última
exigência muito realizável. Seja como for, essas vivências múltiplas não poderiam
constituir o

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todo do acontecimento por falta de uma posição fundamenta da em seu princípio e não
aleatória. Ora, é isso que a teoria expressiva não admite. Não temos a peça de teatro,
tampouco temos o acontecimento artístico. Eis no que redundaria a teoria expressiva se
fosse aplicada até o fim. Na medida em que não há coincidência absoluta entre o espectador
e o herói, e entre o ator e a personagem representada, o que ocorre é que representamos ao
viver - como postulam certos teóricos da estética expressiva.
Está na hora de nos determos no problema da correlação real existente entre a representação
e a arte, sem levar em conta, claro, o ponto de vista genético. A estética expressiva, que em
seu limite tende a excluir o autor e o princípio de autonomia que marca sua relação com o
herói, para conceder-lhe uma função exclusivamente técnica relativa à expressividad4 dá
provas da maior conseqüência quando defende a teoria da representação, numa ou noutra
forma; e, se os teóricos mais marcantes dessa escola não o fazem (Volkelt, Lipps), é
justamente porque a custa desta inconseqüência eles salvam a coesão da teoria deles. O que
constitui precisamente a diferença entre a representação e a arte é, em princípio, a ausência
de espectador e de autor. Do ponto de vista de quem está representando, a representação
não pressupõe um espectador situado fora dela, a quem se dirigiria a realização do
acontecimento-vida representado pela interpretação; de uma maneira geral, na
representaçao, aqueles que representam não interpretam a si mesmos, limitam-se a
imaginar-se. O garoto que representa o chefe dos bandidos vive sua vida de bandido por
dentro: é pelos olhos do bandido que ele vê um segundo garoto passar correndo na frente de
um terceiro garoto que, por sua vez, é o viajante. Seu horizonte é o horizonte do bandido
representado. O mesmo ocorre também com seus companheiros de representação. A
relação mantida por cada um deles com o acontecimento da vida que decidiram representar
- o ataque à diligência - nada mais é senão o desejo de tomar parte do acontecimento, o
desejo de viver essa vida na qualidade de participante: um quererá ser o bandido, outro o
viajante, outro ainda o policial, etc. Essa relação com a vida que se manifesta no desejo de
vivê-la em pessoa não é uma relação estética com a vida; nesse sentido, a representação é
da mesma natureza que

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o devaneio ou a leitura ingênua de um romance que leva a pessoa a se identificar com o


protagonista para viver, na categoria do eu, sua realidade e sua vida interessante, ou seja, a
simplesmente sonhar, sob a direção de um autor, mas isso nada tem a ver com o
acontecimento artístico. A representação, é verdade, aproxima-se da arte, da ação dramática
precisamente, mas é só com o aparecimento de um novo participante, exterior, não
envolvido pela representação - o espectador, que começa a admirar a representação das
crianças do ponto de vista do todo do acontecimento da representação, que é portanto seu
contemplador dotado de uma atividade estética e é, parcialmente, seu criador (por tê-la
transposto a um novo plano, estético, e convertido num todo estético significante) - não
obstante, com isso o acontecimento inicial se transforma, enriquece-se de um elemento - do
espectador-autor - o que acarreta a modificação de todos os outros elementos, na medida
em que estes são integrados a um novo todo: as crianças que representavam são agora
heróis, em outras palavras, estamos diante de um acontecimento que já não é representação
e sim teatro embrionário, ou seja, um acontecimento artístico. O acontecimento voltará a
ser uma representação se o participante, renunciando à sua função estética, deixar-se
envolver por ela, pelo fato de haver ali uma vida interessante para ser vivida, e começar a
participar dela na qualidade de segundo viajante ou de bandido, embora seja necessário
bem menos para anular o acontecimento artístico - basta que o espectador, mesmo
permanecendo empiricamente em seu lugar, identifique-se com uma das personagens em
particular e que, formando um só todo com ela, trate de viver essa vida imaginária.
Assim, o que é imanente à representação é a própria representação e não a modalidade
estética que pode ser introduzida nela pela atividade contemplativa do espectador-con-
templador, mas a própria representação e os meninos que brincam nada têm a ver com isso,
pois esse valor propriamente estético é alheio ao jogo. Se eles se encontrassem na pele de
um “herói”, talvez tivessem sentido o que Devuchkine sentia, ele que fora profundamente
humilhado e ofendido por se reconhecer em pessoa na imagem cuja representação Gogol
fornecera em O capote, onde ele se vira subitamente herói de uma obra satírica. O que há,
afinal de contas, em comum entre a representação e a arte?

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Há apenas o aspecto negativo: em ambos os casos, temos uma vida representada e não
a vida real, ainda que ela, para - sermos exatos, somente seja representada na arte, ao passo
que na interpretação é imaginada, pois a representação só é instaurada pela contemplação
ativa e criativa do espectador. Que ela possa ser objeto de uma atividade estética não
constitui privilégio, pois a vida real também pode ser objeto de uma atividade estética. A
imitação interior (Groos) tende ao limite de uma vivência efetiva da vida e pode-se dizer
que é um sucedâneo da vida - é ainda e sempre a representação e, em larga medida, o
devaneio -, mas não é uma relação estética, ativa com a vida, uma relação que, por sua vez,
ame a vida diferentemente e, sobretudo, de uma maneira mais ativa; em virtude disso se
estabelece fora da vida que poderemos por conseguinte socorrer quando, dentro de si
mesma, ela for basicamente impotente. Trata-se ainda e sempre da representação. Para dar
certo crédito à teoria da representação na estética, adaptam-lhe, com toda boa-fé, a posição
do contemplador-autor com base nas associações fornecidas pelo teatro. Está na hora de nos
interrogarmos sobre a atividade criadora do ator. Este ocupa uma situação complexa na
relação existente entre o herói e o autor. Em que fase e até que ponto o ator pratica ato de
criação estética? Não é na fase em que ele vive o herói e se exprime pelo interior do herói,
pelo ato e a palavra correspondentes — sendo o ato e a palavra pensados e julgados a partir
dessa posição interior, não é na fase em que ele só vive por dentro este ou aquele ato, esta
ou aquela postura de seu corpo e em que, no contexto de sua vida - a vida do herói -, ele
pensa o ato e a postura sempre a partir de uma posição interior, ou seja, não é na fase em
que, tendo-se já encarnado, ele vive, na imaginação, a vida do herói como se fosse a sua
própria -uma vida cujo horizonte se compõe das outras personagens, do cenário, dos
objetos, etc. - e em que, em sua consciência, não há nada que seja transcendente à
consciência do herói cuja representação ele garante. O ator pratica ato de criação estética
quando, de fora, cria e dá forma à imagem do herói em quem, depois disso, vai encarnar-se,
quando cria esse herói como um todo que não é considerado isoladamente, mas que se
insere, como elemento, no todo da obra; em outras palavras, quando é autor, ou, mais
exatamente, co-autor ao mesmo tempo que dire-

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tor e espectador ativo (e podemos, com a exceção de certos aspectos técnicos, pôr um sinal
de igualdade entre estas funções: autor = diretor = espectador = ator) do herói que ele repre-
sentará e da peça em seu todo, porque o ator, como o autor e o diretor, cria o herói
isoladamente, em função do todo da peça, que não é, por sua vez, senão um elemento do
todo que o herói constitui. Por conseguinte, o todo da peça será percebido não de dentro do
herói - enquanto acontecimento de sua vida -, não enquanto horizonte de sua vida, mas do
ponto de vista exotópico do autor-contemplador dotado de sua própria atividade estética,
enquanto ambiente, sendo aí que se situa tudo quanto é transcendente ao herói. O ator cria a
imagem artística do herói na frente de um espelho, na frente de um diretor, com base na
experiência externa que tem de si mesmo. É a isso que se correlacionam: a maquilagem
(mesmo que o ator não se maquie, conta com a maquilagem que é um elemento significante
da imagem), as roupas, ou seja, a criação da imagem plástico-pictural, o gestual, a
configuração dos movimentos e das posturas do corpo no tocante aos outros objetos e à tela
de fundo, a articulação da voz que ele julgará do exterior, e, afinal, a criação de um caráter
(o caráter, enquanto componente artístico, é transcendente à consciência de quem é
caracterizado, como veremos mais adiante) - e tudo isso é feito em função do todo artístico
da peça (e não com o acontecimento da vida); aqui, o ator é um artista. Aqui, sua atividade
estética tende para a constituição do homem-herói e da sua vida. Mas na hora da
representação, quando ele encarnar a figura do herói, todas essas modalidades serão
transcendentes à sua consciência e à sua vivência de herói (se a encarnação for consumada
em toda a sua pureza): a forma externa que ele dará ao corpo, aos movimentos, às posturas,
etc., tudo isso se tornará significante unicamente para a consciência do contemplador, no
todo artístico da peça, e não na vida que a personagem vive. Por ocasião do trabalho que o
ator efetua, as modalidades abstratamente isoladas ficam, claro, entrelaçadas, e é nesse
sentido que a representação do ator é um acontecimento estético concreto, vivo; o ator é,
em todos os pontos, um artista: cada uma das modalidades de um todo artístico está repre-
sentada em seu trabalho, mas na hora da representação, o centro de gravidade se situa no
interior daquilo que o herói viven-

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cia pessoalmente, enquanto sujeito na vida; em outras palavras, esse centro de gravidade é
transferido ao material extra-estético previamente moldado pelos próprios cuidados desse
mesmo ator que desempenhou as funções de autor e de diretor; no momento da encarnação
(relativamente à atividade estética), ele é material passivo, é a vida do todo artístico que ele
próprio previamente construiu e que, agora, se realiza através do espectador; no tocante à
atividade estética do espectador, o ator, enquanto herói, tem uma atividade passiva. Em sua
interpretação, o ator representa uma vida que, simultaneamente, imagina para si. Se ele
apenas a imaginasse para si, se só representasse movido pelo interesse que ela suscita por si
só, e se ela não lhe tivesse dado uma forma, à custa da atividade que ele exerceu sobre ela
de fora, se ele representasse como representam as crianças, não seria um artista - na melhor
das hipóteses seria um instrumento passivo nas mãos de um artista (do diretor, do autor ou
do espectador ativo). Mas voltemos à estética expressiva (tratamos aqui apenas da
espacialidade, sendo por isso que insistimos no aspecto plástico-pictural do herói tal como
ele se manifesta na criação estética do ator, enquanto o essencial reside na introdução de
um caráter e de um ritmo interior que, como veremos mais adiante, são transcendentes à
vida vivida internamente pelo próprio herói e pelo ator que os cria de fora e não no instante
em que encarna o herói e coincide com ele. Às vezes o ator se identifica com um herói
lírico e vive-se esteticamente enquanto autor do herói - esta é uma modalidade
propriamente lírica da criação de ator). Do ponto de vista da estética expressiva, as
operações que, do nosso ponto de vista, são propriamente estéticas (o trabalho do ator-
diretor-espectador) resumem-se à criação de uma forma puramente expressiva que visa à
realização mais concreta e mais pura da empatia-simpatia; o valor propriamente estético se
realiza apenas mais tarde, no momento em que se supõe que o espectador se funde com o
ator. A atitude ingênua do homem bom que acautela o herói contra a cilada que é armada
para ele, que está pronto para voar em seu socorro quando é atacado, parece muito mais
próxima da situação estética real do espectador: o espectador ingênuo situa-se num ponto
fixo fora do herói, e em virtude disso ele tem uma única pressa, é aproveitar o privilégio da
posição que ocupa fora do herói para socorrê-lo

95

quando este, a partir do lugar que ocupa, é impotente. A atitude do bom homem para com o
herói é correta. Seu erro reside em não saber encontrar uma posição identicamente fixa fora
do todo do acontecimento representado, e apenas isso poderia transformar sua atividade de
espectador num sentido estético e não ético, ele interferiu na vida como participante e quis
ajudá-la de seu interior, no nível da vida em que se exerce a atividade ético-cognitiva,
passou para o outro lado da rampa e se colocou ao lado do herói, num único e mesmo plano
da vida concebida como acontecimento ético aberto e, com isso, destruiu o acontecimento
estético de que deixou de ser o espectador-autor. Ora, o acontecimento da vida, em seu
todo, não comporta solução; de dentro, a vida pode expressar-se pelo ato, pelo
arrependimento-confissão, pelo grito, mas a remissão e o perdão lhe vêm do autor. A
solução não é imanente à vida, é-lhe concedida como um dádiva que emana da atividade do
outro, do outro que vai ao encontro dela.
Certos teóricos da estética expressiva (a estética schopenhauriana de Hartmann), para
explicar o caráter específico da empatia e da simpatia, introduzem a noção de sentimentos
ideais, ou ilusórios, que nos são suscitados pela forma estética, e que eles distinguem dos
sentimentos efetivamente experimentados na vida real. Experimentar o prazer estético é um
sentimento real, vivenciar os sentimentos do herói é apenas um sentimento ideal. O
sentimento ideal é aquele que não desperta a vontade de agir. Semelhante definição não
resiste ao exame crítico. Não vivencio isoladamente este ou aquele sentimento do herói
(tais sentimentos, aliás, não existem), mas o todo interior do herói, nossos horizontes
coincidem, e por isso pratico por dentro, junto com o herói, todos os seus atos, percebidos
como necessários em sua vida com a qual me identifico: ao vivenciar seu sofrimento, por
dentro, vivencio também seu grito, ao vivenciar seu ódio, por dentro, vivencio também seu
ato de vingança, etc.; se me restrinjo a identificar-me com ele e a coincidir com ele, não
posso intervir em sua vida, pois essa intervenção supõe minha exotopia em relação a ele -
era o caso de nosso bom homem. Outros teóricos explicam as particularidades estéticas da
empatia da seguinte maneira: ao transencarnar-nos, ampliamos os valores do nosso eu,
participamos (por dentro) do que é significante no humano, etc. -

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ficamos no círculo de uma consciência, da empatia e da simpatia vivenciadas relativamente


a nós mesmos, e a categoria dos valores do outro nunca intervém. No âmbito de uma
aplicação estrita da teoria expressiva, a empatia ou a simpatia para com uma vida consiste
em vivenciá-la, em duplicá-la tal qual, sem enriquecê-la com valores novos que lhe seriam
transcendentes, em vivenciá-la nas categorias que são as do sujeito efetivo de uma vida. A
arte possibilita-me viver várias vidas em vez de uma só, e com isso enriquecer minha
experiência pessoal, possibilita-me participar internamente de outra vida, em nome mesmo
dessa outra vida, em nome do significado que ela comporta (de seu “significado humano”
segundo Lipps e Volkelt).
Procedemos ao exame crítico do princípio básico da estética expressiva, considerado
em estado puro e numa aplicação conseqüente. Mas essa pureza e conseqüência não
aparecem nos trabalhos efetivos dos teóricos da estética expressiva; como já assinalamos, é
apenas à custa de desvios do princípio básico e de inconseqüência que a teoria expressiva
consegue manter seu vínculo com a arte e preservar-se, apesar de tudo, como teoria
estética. Esses desvios do princípio básico, a estética expressiva volta a acrescentá-los a si
servindo-se de uma experiência estética efetiva que ela possui, claro, mas da qual dá uma
interpretação teórica falsa, e esses acréscimos efetivos nos dissimulam o que falseia o
princípio básico considerado em estado puro - dissimulando-o também aos próprios adeptos
da teoria. O maior desvio que notamos no tocante ao princípio básico na maioria dos
teóricos da estética expressiva e que nos leva a uma compreensão mais exata da atividade
estética é o fato de a empatia ser determinada como simpática - o que ora é expressamente
formulado (em Cohen, em Groos), ora é tacitamente implicado. A noção de empatia
simpática, desenvolvida até o fim, destruiria o princípio básico da teoria expressiva e nos
levaria à noção de amor estético e à exata posição de um autor com relação ao herói. O que
será, então, a empatia simpática? A empatia simpática “aparentada com o amor” (Cohen)
não é mais esse ato de empatia pura que faz penetrar no objeto, no herói. Quando
vivenciamos os sofrimentos de Édipo, em seu mundo interior, não encontramos nada apa-
rentado com o amor por si mesmo; seu amor-de-si ou egoísmo

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é algo totalmente diferente, e, claro, o que está em questão quando se fala de empatia
simpática não é a vivência desse amor-próprio e amor-de-si, e sim a criação de uma nova
relação emocional com o todo da sua vida interior. Essa simpatia aparentada com o amor
modifica radicalmente toda a estrutura emotivo-volitiva mediante a qual vivencio
internamente um herói, dá-lhe um colorido e uma tonalidade totalmente diferentes.
Entrelaçamo-la com o que vive o herói, e de que forma? Pode-se dizer que nosso ato de
empatia introduzirá esse amor também no objeto, como sucede com os outros estados inte-
riores: o sofrimento, a paz, a alegria, a tensão, etc. Dizemos que uma coisa ou uma pessoa é
agradável, simpática, ou seja, atribuímo-lhe pessoalmente, como propriedades interiores, as
qualidades que exprimem nosso relacionamento com ela. Efetivamente, o sentimento de
amor parece penetrar no objeto, modificar sua aparência para nós, mas mesmo assim essa
penetração difere totalmente da incorporação operada pelo ato de empatia, o qual faz passar
para o objeto outra vivência na qualidade de estado interior próprio desse objeto, introduz o
sentimento da alegria no homem com sorriso feliz, o sentimento da paz no mar calmo e
imóvel, etc. Enquanto estes últimos animam o objeto exterior, criando essa vida interior
que dá sentido à sua exterioridade, o amor penetra tanto a vida exterior quanto a vida
interior que foi incorporada ao objeto pelo ato de empatia e embeleza, transfigura para nós
o objeto em sua totalidade, converte-o num objeto vivo, constituído de alma e corpo. Pode-
se tentar dar uma interpretação da simpatia aparentada com o amor no âmbito da estética
expressiva e dizer que a simpatia é a condição da empatia: para que comecemos a vivenciar
alguém, é preciso que este nos seja simpático e não vivenciamos o objeto antipático, não o
penetramos, preferimos evitá-lo a vivenciá-lo. A expressividade, se se pretende efetiva-
mente expressiva, se quer introduzir-nos no mundo interior do expressante, deve ser
simpática. A simpatia pode, realmente, ser uma das condições da empatia, sem contudo ser
sua condição única e necessária; mas seu papel está longe de ser esgotado pelo ato da
empatia estética, ela acompanha e impregna todo o processo de contemplação estética do
objeto, transformando todo o material do contemplado e da vivência. A empatia simpática
faz viver a vida do herói de uma forma total-

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mente diferente daquela em que essa vida foi ou poderia ter sido vivida pelo próprio
sujeito; e essa forma não tende ao limite de uma coincidência total, de uma fusão com a
vida do herói, pois tal fusão significaria a perda do coeficiente de simpatia, de amor e,
conseqüentemente, a perda da forma que esses sentimentos criavam. A empatia simpática
não dá a essa vida uma forma a partir da categoria do eu, mas a partir da categoria do outro,
enquanto vida do outro, de outro eu, e é, em sua essência, a vida do outro vivida por fora,
quer se trate de sua vida exterior, quer de sua vida interior (no tocante à vivência de fora de
uma vida interior, ver o capítulo seguinte).
É justamente a empatia simpática - e apenas ela - que possui o poder de operar uma
combinação harmoniosa, num único e mesmo nível, entre o interior e o exterior. Do
próprio interior da vida vivenciada pelo ato de empatia, não há acesso ao valor estético do
que lhe é exterior (seu corpo); apenas o amor, por ser aproximação ativa do outro, pode
operar a combinação da vida interior (a orientação material do próprio sujeito na vida)
vivenciada de fora, com o corpo, em seu valor, vivido de fora, para fundi-los no homem
singular e único, como fenômeno estético; apenas ele pode operar a combinação do que
orienta um escopo com o que é sua orientação, do horizonte com o que está à volta. O
homem, concebido em sua integridade, é o produto de uma ótica estética criadora, e apenas
dela; a cognição é indiferente aos valores e não nos oferece o homem concreto e singular; o
sujeito ético, por princípio, não é único (o imperativo propriamente ético é vivido na
categoria do eu), o homem, em sua integridade, pressupõe um sujeito esteticamente ativo,
situado fora dele (abstraímos a vivência religiosa do homem). Desde o início, a empatia
simpática introduz numa vida vivida por ato de empatia os valores que lhe são
transcendentes, desde o início transfere essa vida para um novo contexto de valores e de
sentido, desde o início pode dar-lhe um ritmo temporal e uma forma espacial (Bilden,
Gestalten). Ao passo que a empatia pura carece de qualquer outro ponto de vista além
daqueles que só são possíveis do interior da vida; ora, dentre eles, não há um esteticamente
produtivo. Não é do interior da vida que se constrói e se fundamenta a forma estética como
expressão adequada que tenderia ao limite de sua pura auto-expressão (à formulação da
relação ima-

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nente que a consciência mantém consigo mesma), é de fora, pelos desvelos da simpatia e
do amor que lhe são dirigidos e que são esteticamente produtivos; nesse sentido, a forma
expressa efetivamente a vida do outro, mas o que nessa expressão corresponde à atividade
criadora, não é a expressão em si mesma, mas o outro, situado fora-de: o autor; a vida, por
sua vez, fica passiva na expressão estética que ela reveste. Numa acepção assim, o termo
“expressão” parece mal escolhido e seria preciso abandoná-lo, reservando-o a uma
compreensão puramente expressiva que ele explica melhor (em particular o alemão
Ausdruck); o que corresponde muito melhor à realidade do acontecimento estético é, na
terminologia da estética impressiva, o termo “representação”, válido na arte tanto para o
espaço como para o tempo - um termo que transfere o centro de gravidade do herói para o
sujeito da atividade estética, ou seja, para o autor.
A forma expressa a atividade do autor a respeito do herói - do outro; nesse sentido,
podemos dizer que ela é o resultado da interação entre o herói e o autor. Entretanto, nessa
interação o herói é passivo: ele não é o expressante, é o expresso; porém, como tal,
determina a forma, pois esta deve precisamente corresponder-lhe, e deve, precisamente de
fora, assegurar um acabamento à orientação material interna de sua vida; é por isso que a
forma deve ser-lhe adequada e não por ser uma possível auto-expressão dele. Mas essa
passividade do herói a respeito da forma não é dada de imediato, é apenas pré-dada, sendo
objeto de uma atividade que a realiza no interior da obra onde ela constitui o móbil do
combate travado pelo autor e pelo espectador - e estes nem sempre saem vencedores. Esse
empreendimento só é possível graças à posição exotópica do autor-contemplador a respeito
do herói, posição esta impregnada de tensão e de amor. A orientação interna da vida do
herói, a partir de dentro dele, comporta sua necessidade imanente, que pode nos levar a
viver as coerções do devir dessa vida carente de resolução estética, pode levar-nos a um
ponto tal que perdemos nossa posição firme fora do herói e nos expressamos a partir de
dentro dele e coincidimos com ele. Quando o autor se funde com seu herói, a forma não é,
de fato, senão pura expressão expressiva do herói, resultado da atividade do herói em cujo
exterior não soubemos situar-nos; ora, a atividade do próprio

100

herói não pode ser uma atividade estética; podemos encontrar nele (ouvir nele) sua
necessidade, seu arrependimento, sua prece, sua súplica, e, finalmente, sua reivindicação
dirigida a um possível autor, mas ela permanecerá impotente para gerar uma forma estética
acabada.
Essa necessidade interior, imanente à vida do herói, deve ser compreendida e vivida por
nós em toda a sua importância e significado, no que tem razão a teoria expressiva; mas
cumpre que seja na forma estética significante que essa vida revestir, que lhe é
transcendente e vale por seu princípio de acabamento e não pelas modalidades de sua
expressão. Precisamos enfrentar a necessidade imanente (não se trata, naturalmente, de
psicologia, mas de sentido) de uma consciência viva (ou consciência da própria vida),
exercendo nossa atividade de fora e proporcionar-lhe sua razão de ser e seu acabamento que
lhe virão como dádivas, e essas dádivas não devem situar-se no plano em que essa vida é
vivenciada internamente e se encontraria enriquecida de um material (de um conteúdo)
colhido na mesma categoria em que é vivenciada - apenas o devaneio procede assim, e o
ato na vida prática (de ajuda, por exemplo) — e sim no plano em que essa vida, se quiser
permanecer ela própria, é, por princípio, impotente. A atividade estética que se desenvolve
sempre nas fronteiras (a forma é uma fronteira) da vida vivida do interior, ali onde essa
vida está voltada para fora, ali onde ela termina (o fim do sentido, do espaço e do tempo) e
onde começa outra vida, aquela onde se estende, inacessível a ela mesma, a esfera de
atividade do outro. Minha vivência própria e minha consciência própria da vida, e, conse-
qüentemente, a auto-expressão que ela reveste (a expressividade da minha expressão)
enquanto algo unificado, possuem fronteiras estáveis que delimitam, acima de tudo, meu
corpo exterior: este, enquanto valor estético evidente-visível, suscetível de entrar em
combinação harmoniosa com a orientação material interna da minha vida, situa-se mais
além das fronteiras da minha vivência própria unificada; na vivência que tenho da minha
vida, o corpo exterior não pode ocupar o lugar que ele ocupa para mim através da empatia
simpática que me faz vivenciar a vida do outro, no todo da sua vida, tal como ele se
apresenta para mim; mesmo que a sua beleza exterior fosse um componente de suma
importância para a minha vida e para

101

mim mesmo, a verdade é que por principio isso não equivale a vivenciá-lo integralmente,
de modo intuitivo-visível, num único e mesmo plano de valores com minha vida interior,
como sua forma; não equivale a viver-me, de modo visível-evidente, integralmente
encarnado num corpo exterior, assim como vivo essa encarnação quando se trata do outro.
Estou por inteiro dentro da minha vida e, se eu de alguma maneira pudesse ver o exterior
da minha vida, esse exterior se integraria imediatamente à minha vivência interna, a
enriqueceria de um modo imanente, ou seja, deixaria de ser exterioridade que, de fora,
proporciona acabamento à minha vida, deixaria de ser a fronteira eventual de um finito
estético que me proporcionaria, de fora, meu próprio acabamento. Supondo-se que eu possa
situar-me fisicamente fora de mim - admitamos que eu receba a possibilidade física de dar-
me uma forma de fora -, ainda assim eu não terei nenhum princípio segundo o qual eu
poderia dar-me essa forma, modelar minha própria exterioridade, proporcionar-lhe o
acabamento estético, se eu não souber situar-me fora de minha vida, se não souber percebê-
la como vida do outro. Para tanto, preciso encontrar uma posição firme que seja
fundamentada no sentido externo e também no sentido interno e que esteja situada não só
fora de minha vida tal como ela se manifesta em seu enfoque do objeto e do sentido, em
seus desejos, em suas aspirações, em suas aquisições - coisas que precisarei perceber
noutra categoria. O que é indispensável para a criação de um todo artístico (inclusive no
caso de uma obra lírica), não é expressar sua vida e sim expressar-se sobre sua vida pela
boca do outro. [...]
Vemos, portanto, que a relação simpática ou amorosa com a vida, que vem acrescentar-
se à empatia, ou seja, a noção de empatia simpática, desenvolvida de modo conseqüente,
destrói o princípio básico da estética expressiva: o acontecimento artístico da obra se
apresenta sob outro aspecto, evolui noutra direção, e o ato de empatia vem a ser apenas um
de seus componentes, além do mais extra-estético; a atividade propriamente estética
intervém com o amor criador no conteúdo vivenciado por ato de empatia, um amor
preocupado em criar para essa vida, vivenciada por ato de empatia, uma forma estética que
lhe seja transcendente. A criação estética não poderia ser ex-

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plicada ou pensada como imanente a uma única e mesma consciência, o acontecimento


estético não pode ter um único participante que, simultaneamente, viveria a vida e
expressaria sua vivência pessoal através de uma forma artística significante; o sujeito da
vida e o sujeito da atividade estética, que lhe dá a sua forma, não podem por princípio
coincidir. Há acontecimentos que, por princípio, não podem desenvolver-se no plano de
uma única e mesma consciência e pressupõem duas consciências estanques; pois o
componente essencial do acontecimento é essa relação de uma consciência com outra
consciência, caracterizada justamente por sua alteridade - é isso que sucede com todo
acontecimento criativamente positivo, que veicula o novo, que é único e irreversível. A
teoria expressiva é apenas uma das inúmeras teorias filosóficas, éticas, filosófico-históricas,
metafísicas, religiosas que qualificamos de empobrecedoras na medida em que, para
explicarem um acontecimento produtivo, o empobrecem reduzindo principalmente o
número de seus participantes: para explicar o acontecimento, transpõem-no para o plano de
uma única consciência em cuja unidade todos os componentes do acontecimento serão
compreendidos e deduzidos; obtêm assim a transcrição puramente teórica de um
acontecimento já realizado, mas perdem as forças motrizes que presidiam à criação do
acontecimento na fase de sua realização (quando ainda era acontecimento aberto) e perdem
também seus participantes vivos que, por princípio, não se fundem. A idéia do
enriquecimento formal fica incompreendida - em oposição ao enriquecimento da matéria,
do conteúdo; ora, esta é a idéia fundamental, a idéia motriz na criação cultural que, em
nenhuma de suas áreas, tende para um enriquecimento do objeto por meio de um material
que lhe é imanente, mas o transpõe para outro plano de valores, gratifica-o com o dom da
forma, transforma-o, e esse enriquecimento formal é impossível se há fusão com o objeto
trabalhado. Em que se enriqueceria o acontecimento se eu fundir-me com o outro: se de
dois, passamos a um? Que vantagem teria eu em que o outro se funda comigo? Ele só verá
e só saberá o que eu mesmo vejo e sei, ele somente reproduzirá em si mesmo o que em
minha vida continua sem solução; é preferível que ele permaneça fora de mim, pois é a
partir da sua posição que pode ver e saber o que, a partir da minha posição, não posso nem
ver

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nem saber, sendo assim que ele poderá enriquecer o acontecimento da minha vida. Ao
somente fundir-me com a vida do outro, limito-me a acentuar o que continua sem solução
nessa vida, limito-me a duplicá-la numericamente. Do ponto de vista da produtividade
efetiva do acontecimento, quando somos dois, o que importa não é o fato de que, além de
mim, haja mais outro homem, semelhante a mim (dois homens), e sim que, para mim, ele
seja o outro; é nisso que sua simpatia por minha vida não é nossa fusão num único ser, não
é uma duplicação numérica da minha vida, e sim um enriquecimento do acontecimento da
minha vida, pois ele a vive de uma nova forma, numa nova categoria de valores - como
vida de outro que é percebida diferentemente e recebe uma razão de ser diferente da sua
própria. A produtividade do acontecimento não consiste na fusão de todos em um, mas na
exploração da exotopia que permite à pessoa situar-se num lugar que é a única a poder
ocupar fora dos outros.
Essas teorias empobrecedoras que fundamentam a criação cultural na rejeição do
principio exotópico, que situa fora do outro, e para as quais tudo se reduz a participar de
uma consciência, a ser solidário e até mesmo a fundir-se com ela, todas essas teorias - e,
sobretudo a teoria expressiva na estética - explicam-se pela natureza gnosiológica da
cultura filosófica dos séculos XIX e XX. A teoria do conhecimento tornou-se o modelo de
todas as teorias referentes aos domínios da cultura: tanto a ética quanto a teoria do
comportamento são substituídas pela teoria do conhecimento dos atos já concluídos, tanto a
estética quanto a teoria da atividade estética são substituídas pela teoria do conhecimento
de uma atividade já concluída — ou seja, o que é considerado objeto não é, em toda a sua
imediatez, o próprio fato da realização estética, mas sua eventual transposição teórica; por
isso , a unidade do acontecimento em realização é substituída pela unidade da consciência,
da compreensão do acontecimento; o sujeito - o participante - do acontecimento torna-se o
sujeito do conhecimento puramente teórico do acontecimento no qual ele não toma parte. A
consciência gnosiológica, a consciência científica, é uma consciência única e singular; tudo
com que essa consciência lidar será definido por ela própria, toda definição será do âmbito
da sua própria atividade: toda definição do objeto será

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definição da consciência. Nesse sentido, a consciência gnosiológica não poderia ter outra
consciência situada fora dela, não poderia estabelecer uma relação com outra consciência
que fosse autônoma e não se fundisse com ela. Toda unidade é sua própria unidade e não
pode admitir ao seu lado outra unidade, independente dela (a unidade da natureza, a
unidade da outra consciência), uma unidade soberana que lhe faria frente com seu próprio
destino e não seria definida por ela. Essa consciência cria e forma seu objeto somente
enquanto objeto e não enquanto sujeito. Para ela, o sujeito não passa de um objeto. O
sujeito não é compreendido, conhecido, senão na qualidade de objeto - apenas um valor
poderia convertê-lo num sujeito, no portador de uma vida regida por suas próprias leis e
que vive seu próprio destino. Enquanto a consciência estética é uma consciência amorosa
que postula o valor, ela é consciência de uma consciência, é a consciência que o eu-autor
tem da consciência do herói-outro; o acontecimento estético reside no encontro de duas
consciências que, por princípio, não se fundem:
a consciência do autor encara a consciência do herói não do ponto de vista de seus
componentes materiais e de sua importância objetiva, mas do ponto de vista da unidade
subjetiva constituída pela vida do herói, e é essa consciência do herói que encontra uma
localização concreta (sendo o grau de concretização variável, claro), uma encarnação e
recebe seu acabamento em virtude de um ato de amor. Quanto à consciência do próprio
autor, assim como a consciência gnosiológica, ela permanece inacabável [...]
Assim, a forma espacial não é, no sentido exato, a forma da obra como objeto, mas a
forma do herói e de seu mundo - a forma de um sujeito; nisto a estética expressiva tem
razão (pode-se dizer, com uma margem de inexatidão, que a forma de uma vida
representada no romance tem a forma do romance, mas o romance, considerando-se
também o princípio do isolamento - da invenção -, é justamente uma forma destinada a
dominar a vida), mas, contrariamente às opiniões da estética expressiva, a forma não é a
expressão pura de uma vida porque, ao expressá-la, ela expressa também a relação do autor
com o herói, que é, precisamente, o elemento propriamente estético da forma. A forma
estética não pode ser fundamentada de dentro do herói, a partir de seu enfoque do objeto e
do sem-

105

tido na vida, em outras palavras, a partir da significação pura e simples de sua vida; a forma
é fundamentada no interior do outro - do autor, isto é, a partir de uma reação geradora de
valores que são, por princípio, transcendentes ao herói e à sua vida, mas todavia ligados a
ele. Essa reação criadora é o amor estético. A relação mantida pela forma estética,
transcendente ao herói e à sua vida, considerada por dentro, reproduz a relação - única em
seu gênero - do amante com o amado (abstraindo-se, é óbvio, o aspecto sexual), a relação
do juízo de valor imotivado com o objeto (“tal como ele é, agrada-me e amo-o”, e é
somente depois disso que ocorre a idealização ativa, o dom de uma forma), a relação de
abonação validante com o abonado validado, a relação do dom com a necessidade, do
perdão gratuito com o crime, da graça com o pecador - todas essas relações (a lista poderia
ser aumentada) são análogas à relação estética do autor com o herói ou da forma com o
herói e sua vida. O elemento essencial, comum a todas essas relações, é, de um lado, o
dom, transcendente por princípio ao beneficiário do dom, e, do outro, a relação profunda
do dom com quem é seu beneficiário - o fato de que não seja ele mas seja para ele. Daí
decorre que o enriquecimento reveste um caráter formal, transfigurativo - o beneficiário do
dom é transposto para um novo plano de existência. O que é transposto para um novo
plano, não é o material (o objeto), mas o sujeito - herói; e é apenas no tocante a ele que
serão possíveis o dever estético, o amor estético e o dom do amor.
A forma deve utilizar essa particularidade, transcendente à consciência do herói (à
consciência que ele pode ter de sua própria vivência e ao juízo de valor concreto sobre si
mesmo), mas todavia ligada a ele, segundo a qual ele é determinado enquanto todo pelo
exterior, ou seja, está voltado para fora, sendo suas fronteiras as de seu todo. A forma é uma
fronteira que resulta de um tratamento estético [...] Trata-se tanto das fronteiras do corpo
como das fronteiras da alma e das fronteiras do espírito (da orientação do sentido). As
fronteiras são vividas de maneiras essencialmente diferentes: por dentro, pela au-
toconsciência e por fora pela vivência do outro. Cada um dos meus atos, tanto interior
como exterior, na orientação material da minha vida, procede de dentro de mim, jamais
encontro alguma fronteira significante em seus valores que me asse-

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gure um acabamento positivo, avanço e atravesso minhas fronteiras que posso internamente
perceber como obstáculo, mas não como acabamento; as fronteiras do outro, que vivo no
plano estético, asseguram-lhe o acabamento positivo, abarcam-no por inteiro, concentram
toda a sua atividade, fecham-se sobre esta. O escopo do herói em sua vida é inteiramente
investido em seu corpo concebido como fronteira estética significante, é encarnado. Esse
significado bivalente das fronteiras ficará mais claro no prosseguimento da nossa
exposição. Abrimos as fronteiras do herói quando o vivenciamos do interior e as fechamos
quando, do exterior, asseguramos seu acabamento estético. Se no primeiro movimento,
interno, somos passivos, no segundo movimento, externo, que nos leva ao encontro do he-
rói, somos ativos, edificamos algo absolutamente novo, excedente. É justamente esse
encontro de dois movimentos operando-se na superfície do homem que dá consistência aos
valores de suas fronteiras, acende a centelha do valor estético.
Segue-se daí que a existência estética - o homem em sua integridade - não é
fundamentada de dentro, a partir de uma eventual autoconsciência, sendo esta a razão por
que também a beleza, se abstraímos o autor-contemplador ativo, parece passiva, ingênua e
inorgânica; a beleza nada sabe de si mesma, não pode fundamentar a si mesma, atém-se a
ser, é o dom que abstrai o doador e sua atividade fundamentada internamente (pois o dom é
fundamentado do interior da atividade doadora) [...]
A teoria da estética impressiva, com a qual relacionamos todas as concepções estéticas
que situam o centro de gravidade na atividade do artista, produtora de formas, tais como
aparecem em Fiedler, Hildebrand, Hanslick, Riegl, Witasek e naqueles chamados de
formalistas (Kant ocupa uma posição ambivalente), perde a noção do herói como
constituinte autônomo, ainda que passivo, do acontecimento artístico, contrariamente ao
que se passa com a estética expressiva na qual é a noção de autor que se perde. É
precisamente o acontecimento, enquanto relação viva entre duas consciências, que também
não existe para a estética impressiva. Nela igualmente, a criação do artista é considerada
como um ato unilateral, confrontado unicamente com o objeto, com o material e não com
outro sujei-

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to. A forma se deduz das especificidades do material: visual, auditivo, etc. Tal abordagem
não permite fundamentar profundamente a forma e só redunda numa explicação hedônica
mais ou menos sutil. O amor estético perde o objeto, torna-se processo de amor sem
conteúdo, representação de amor. Os extremos se tocam: também a estética expressiva só
podia desembocar na representação, mas é uma representação diferente: deixa de ser a
representação de viver por amor de uma vida - como representam as crianças - é a
representação de abonar, sem conteúdo, uma vida possível, de produzir o fundamento e o
acabamento estético de uma vida somente possível. Para a teoria impressiva, o que existe é
o autor sem herói, cuja atividade, que só visa ao material, torna-se uma atividade puramente
técnica.
Assim, elucidado o significado dos aspectos expressivos e impressivos do corpo exterior
no acontecimento artístico da obra, fica claro que o corpo exterior é o centro dos valores da
forma espacial. Falta-nos agora desenvolver essa noção no que tange à criação verbal.

7. O todo espacial do herói. Teoria do “horizonte” e do “ambiente”.


Em que medida a criação verbal está relacionada com a forma espacial do herói e do seu
mundo? Que a criação verbal esteja relacionada com a exterioridade (o aspecto externo) do
herói e com o mundo espacial no qual se desenrola o acontecimento da sua vida, isto está
fora de dúvida; mas estará ela também relacionada com a sua forma espacial enquanto
forma artística? É isso que levanta dúvidas e, em geral, resolve-se o problema num sentido
negativo. Para resolvê-lo corretamente, cumpre levar em conta o significado bivalente da
forma estética. Esta, como já vimos, pode ser uma forma empírica, tanto externa como
interna, em outras palavras, ser forma do objeto estético, forma do mundo que se elabora a
partir da obra artística sem coincidir com esta, e também forma da própria obra artística,
isto é, forma material. Com base nessa distinção, é claro que não poderíamos afirmar a
similitude dos objetos estéticos pertencentes às diversas áreas da arte - pintura, poe-

108

sia, música, etc. - no que se refere somente à diferença dos meios de realização, de
construção do objeto estético, isto é, reduzindo a arte apenas às modalidades técnicas. A
forma material que faz com que uma obra seja pictórica, poética ou musical determina
também a estrutura correspondente do objeto estético ao qual ela dará certa uniformidade,
do qual acentuará certos aspectos. Nem por isso o objeto estético deixa de ser multiforme,
concreto, semelhante à realidade ético-cognitiva (o mundo vivido) que o objeto fundamenta
e acaba artisticamente; atingindo esse mundo do objeto artístico sua forma mais concreta e
mais completa na criação verbal (ao contrário da criação musical). A criação verbal não
cria uma forma espacial externa pois não lida com um material espacial como sucede com
as artes picturais, plásticas, gráficas; seu material - a palavra (a forma espacial da
disposição do texto - estrofes, capítulos, figuras complexas da poesia escolástica, etc. — é
quase insignificante) — não é um material espacial em sua substância (o som na música o é
ainda menos); mas o objeto estético não é, naturalmente, constituído somente de palavras,
ainda que a parte verbal seja importante nele, e esse objeto da visão estética possui uma
forma espacial interna artisticamente signjficante que é representada pelas palavras da obra
(essa forma, na pintura, é representada pelas cores, pelo desenho, pelas linhas, e daí não
decorre que o objeto estético seja constituído apenas de linhas e de cores; trata-se
precisamente de construir um objeto concreto a partir das linhas e das cores).
A forma espacial contida dentro do objeto estético, expressa por meio das palavras de
uma obra verbal, não levanta dúvidas. A segunda questão era saber como se realizava essa
forma espacial interna: deverá ela produzir-se de modo puramente visual, detalhado e
completo? Deverá ela oferecer um equivalente emotivo-volitivo que lhe realize a tonalidade
sensorial, o colorido emocional, numa representação que poderá ser descontínua, fugidia,
até mesmo ausente e compensada pela palavra? (O tom emotivo-volitivo apesar de ser
vinculado à palavra e como que fixado à sua imagem fônico-entonacional, não se refere,
claro, à palavra, mas ao objeto expresso pela palavra, mesmo que este não se realize, na
consciência, na forma de imagem visual; apenas o objeto possibilita pensar o tom emo-
cional, mesmo que este se desenvolva junto com a acústica da

109

palavra.) Um estudo detalhado desse problema ultrapassaria o âmbito de nossa análise e


pertence a uma estética geral da criação verbal. Algumas indicações sumárias serão
suficientes para o problema de que tratamos. A forma espacial interna nunca se realiza
completamente numa plenitude visual (o mesmo se passa com a forma temporal cuja
realização acústica nunca fica completa e plena) até no campo das artes plásticas. A forma
visual completa e plena só é própria da forma material externa da obra, cujas qualidades
parecem ser transferidas para a forma interna (a imagem visual da forma interna, mesmo
nas artes plásticas, é subjetiva). A forma visual interna é vivenciada, no plano emotivo-
volitivo, como se fosse perfeita e acabada, mas tais perfeição e acabamento nunca são
realizados de modo efetivo numa representação. É óbvio que o grau de realização da forma
interna varia conforme os modos da criação verbal e conforme as obras.
Esse grau atinge o ponto culminante na epopéia (a descrição do aspecto físico do herói
no romance deve necessariamente levar a uma reconstituição visual, ainda que a imagem
obtida a partir do material verbal não deixe de ser visualmente subjetiva, variando
conforme os leitores) e o ponto mais baixo no lirismo, particularmente no lirismo
romântico, onde um grau elevado de atualização visual, hábito inculcado pelo romance,
compromete a impressão estética; mas em todos esses casos teremos sempre um
equivalente emotivo-volitivo da exterioridade, um escopo emotivo-volitivo que aspira a
essa exterioridade, mesmo quando ela não se presta a uma representação visual; e essa
aspiração elabora sua exterioridade como valor artístico. É por isso que precisamos
reconhecer e compreender o princípio plástico-pictural da criação artística verbal.
O corpo exterior do homem, suas fronteiras exteriores e seu mundo são uma coisa dada
(no dado extra-estético da vida), necessária e inalienável do dado existencial; por isso esses
fatos exigem o direito de figurar na estética, exigem ser reproduzidos e fundamentados; é
para isso que são empregados todos os meios de que a arte dispõe: cores, linhas, volumes,
palavras, sons. Na medida em que o artista lida com a existência do homem e com seu
mundo, lida também com os seus dados espaciais, com suas fronteiras exteriores e, quando
fornece uma transposição estética dessa existência, precisa também trans-

110

por a exterioridade do homem em função do tipo de material de que dispõe (cores, sons,
etc.).
O poeta cria o aspecto físico, a forma espacial do herói e do seu mundo mediante o
material verbal: essa exterioridade - que internamente é carente de sentido e externamente é
votada a um conhecimento factual - é pensada e fundamentada no plano estético pelo poeta
que a torna artisticamente significante.
A imagem externa expressa pelas palavras, quer se preste a uma representação visual
(no caso do romance, por exemplo), quer seja vivenciada no modo emotivo-volitivo, tem
por função dar forma e remate, ou seja: ela não só é expressiva, mas também artisticamente
impressiva. As opiniões que expusemos encontram aqui sua aplicação plena: em se tratando
tanto do retrato verbal quanto do retrato pictural. Também aqui, apenas uma posição
exotópica pode garantir o valor estético à exterioridade e a forma espacial expressa a
relação do autor com o herói.
A obra de criação verbal considera cada um dos heróis de fora, e, na leitura, é de fora
que devemos seguir os heróis - e não de dentro. Ora, é justamente na criação verbal (e,
acima de tudo, na música), que uma interpretação puramente expressiva da exterioridade
parece mais sedutora e convincente, porque a exotopia do autor-espectador não é
confirmada no espaço como o é nas artes plásticas (a representação visual é substituída pelo
equivalente emotivo-volitivo fixado na palavra). Por outro lado, o material que a língua
fornece não é suficientemente neutro no que tange à esfera ético-cognitiva onde é utilizado
para a auto-expressão e para fins informativos; ou seja, quando é utilizado num emprego
expressivo, e transferimos esses usos expressivos da linguagem (expressar a si mesmo e in-
dicar o objeto) para a percepção que temos da obra artística de criação verbal. A isso vem
acrescentar-se, enfim, a passividade espacial e visual que acompanham nossa percepção: a
palavra serve para representar uma espécie de dado espacial já pronto, e não há nada aí que
se assemelhe à criação de uma forma espacial, evidentemente amorosa, operada de fora me-
diante linhas e cores pelo movimento da mão e do corpo inteiro, o movimento-gesto que
imita e triunfa. A articulação lingüística e a mímica, na medida em que têm, da mesma
manei-

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ra que a língua, seu lugar na vida, são fortemente marcadas por uma tendência à
expressividade (a articulação e o gestual expressam ou imitam); o tom que preside à criação
do autor-contemplador encontra-se facilmente absorvido pelo tom peculiar à vida do herói.
Portanto, convém salientar que o conteúdo (o que está entranhado num herói, sua vida por
dentro) e a forma não podem ser fundamentados nem explicados do ponto de vista de uma
única e mesma consciência, sendo somente nas fronteiras de duas consciências, nas
fronteiras do corpo, que se realizam o encontro e o dom da forma artística. Sem essa
relação com o outro, beneficiário do dom que lhe proporciona a razão de ser e o
acabamento (imanência de sua razão de ser estética), a forma que não for fundamentada
internamente pela atividade interior do autor-contemplador não deixará de degenerar em
algo hedônico, pura e simplesmente “belo” que me agrada imediatamente, da mesma
maneira que, também imediatamente, posso sentir frio ou calor: o autor constrói
tecnicamente o objeto de prazer que o contemplador se oferece passivamente. O tom
emotivo-volitivo do autor que cria e fundamenta a exterioridade enquanto valor artístico
não poderia ser diretamente coordenado ao escopo que marca, por dentro, a vida do herói
sem passar pela categoria do outro; é apenas através dessa categoria que se torna possível
fazer com que o aspecto físico seja uma forma que engloba e acaba o herói, uma forma na
qual se depositou o escopo de sua vida e de seu sentido, uma forma plena e viva, e criar o
homem em sua integridade como unidade de valores.
Como serão representadas, na obra de criação verbal, as coisas do mundo exterior
relativamente ao herói? Qual será o lugar que essas coisas ocuparão nesse mundo?
São possíveis dois modos combinatórios: 1) de dentro do herói, e teremos seu
horizonte; 2) de fora, e teremos seu ambiente. De dentro de mim, no contexto dos valores e
do sentido da minha vida, as coisas se situam diante de mim, vinculam-se à minha vida na
orientação que lhe é peculiar (ético-cognitiva e prática), e estão presentes ai na qualidade de
constituintes do acontecimento singular e único, aberto, da minha existência, do qual
participo e cuja solução me concerne em toda sua coerção. O mundo de que participo
realmente é, de dentro, o horizonte da minha consciência ativa e atuante. Só consigo (se

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ficar dentro de mim) orientar-me nesse mundo concebido como acontecimento, ordenar os
componentes materiais desse mundo, através das categorias cognitivas éticas e práticas (as
do bem, da verdade e das finalidades práticas) e é isso que condiciona para mim a face
externa de qualquer coisa, o que lhe dá sua tonalidade, seu valor, seu significado. De dentro
da minha consciência participante da existência, o mundo é o objeto do meu ato, do ato-
pensamento, do ato-sentimento, do ato-ação; seu centro de gravidade situa-se no futuro, no
desejo, no dever e não no dado auto-suficiente do objeto, em sua atualidade, em seu
presente, em seu ser-aqui já realizado. Minha relação com o objeto situado em meu
horizonte nunca é uma relação acabada, mas uma relação pré-dada, pois o acontecimento
existencial em seu todo é um acontecimento aberto; minha situação se modifica a todo
momento, eu não posso demorar ou ficar em repouso. O objeto, no espaço e no tempo,
situa-se à minha frente, sendo isso que instaura o princípio de meu horizonte. As coisas não
me rodeiam — eu, meu corpo exterior — em sua atualidade e nos valores de seu dado, mas
situam-se à minha frente e são integradas à postura ético-cognitiva da minha vida, no
acontecimento aberto e aleatório da existência, cuja unidade de sentido e cujo valor não são
dados, e sim pré-dados.
Ao analisar uma obra de arte, constatamos que a unidade e a estrutura do mundo das
coisas não são a unidade e a estrutura do horizonte da vida do herói e que o próprio
princípio de sua ordenação e de sua estrutura é transcendente à consciência real e possível
do próprio herói. A paisagem verbal, a descrição do ambiente de vida, isto é, a natureza, a
cidade, o cotidiano, etc., tudo isso não figura na obra como modalidades do acontecimento
aberto da existência, como elementos incluídos no horizonte do herói e perceptíveis à sua
consciência (em seu procedimento ético e cognitivo). As coisas reproduzidas na obra têm,
incontestavelmente, e devem ter uma relação consubstancial com o herói, senão ficam fora
da obra; em todo caso, essa relação, em seu princípio estético, só é dada de dentro da
consciência que o herói tem de sua vida. O corpo exterior, assim como a alma, constitui o
centro a partir do qual as coisas e os valores representados na obra se dispõem no espaço.
As coisas situam-se em relação ao exterior do herói, às
113
suas fronteiras exteriores ou interiores (as fronteiras do corpo e da alma).
Na obra de arte, o mundo das coisas é pensado e relacionado com o herói a quem serve
de ambiente. O que caracteriza o ambiente é, acima de tudo, a disposição formal, externa,
plástico-pictural: harmonia das cores, das linhas, simetria e outras combinações extra-
significantes, puramente estéticas. Na criação verbal, esse aspecto não alcança uma
perfeição externa visual (na representação), mas equivalentes emotivo-volitivos de uma
representação visual correspondem a esse todo plástico-pictural extra-significante (não
levamos em conta aqui as combinações que aliam as modalidades picturais, gráficas e
plásticas). O objeto, por ser combinação de cores e de linhas, goza de plena autonomia e
sua ação se exerce ao mesmo tempo sobre nós, sobre o herói e sobre o que o rodeia, sem se
situar defronte do herói em seu horizonte; ele é percebido em sua integridade e parece que
podemos dar a volta à roda dele. É claro que esse princípio que dá forma e ordenação
puramente plástico-pictórica ao mundo externo das coisas é transcendente à consciência do
herói, pois as cores, as linhas e os volumes, em seu tratamento estético, são as fronteiras
extremas da coisa, do corpo vivo, nos quais a coisa está voltada para fora de si mesma, não
existe nos seus valores senão no outro e para o outro, participa desse mundo onde, dentro
de si mesma, não existe [...]

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III
O Todo temporal do herói
( O problema do homem interior, da alma)

1.[ O herói e sua integridade na obra de arte.]

O homem, na arte, é um homem considerado em sua integridade. No capítulo


anterior, determinamos que seu corpo exterior era um componente esteticamente
significante e que o mundo das coisas constituía o ambiente do corpo exterior. Sabemos
agora que, de um lado, o homem exterior ( a parte externa do homem) em seu valor
plástico- pictural e, do outro , o mundo ao qual ele está ligado e com o qual entra em
combinação estética , são transcendentes à sua possível autoconsciência, ao seu eu-para-
mim, à sua consciência viva e capaz de vivenciar. Pensar e organizar assim esteticamente o
corpo exterior e o mundo é um dom concedido por outra consciência ( pelo autor-
contemplador ao seu herói), não é uma expressão do herói a partir de dentro de si mesmo,
mas uma relação criadora do autor-outro com o herói. Neste capítulo, propomo-nos
fundamentar uma visão análoga também no que concerne ao homem interior, ao todo
interior da alma do herói enquanto fenômeno estético. Também a alma, na medida em que é
um todo dado da vida interior do herói e é objeto de uma percepção artística, é
transcendente à orientação do sentido em sua vida, à sua autoconsciência. Veremos que a
alma, enquanto todo interior, um todo dado, atual, inserida no tempo, é estruturada através
das categorias estéticas; é o espírito tal como ele aparece , visto de fora no outro.

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