A Experiência Literária

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Letras
Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários

Luis Fernando Gonçalves Balby

GEORGES BATAILLE: A EXPERIÊNCIA LITERÁRIA

Belo Horizonte
2020
Luis Fernando Gonçalves Balby

GEORGES BATAILLE: A EXPERIÊNCIA LITERÁRIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


graduação em Letras: Estudos Literários da
Universidade Federal de Minas Gerais como
requisito parcial para a obtenção do título de
Doutor em Estudos Literários.

Linha de Pesquisa: Literatura e Psicanálise

Orientadora: Profa. Dra. Lucia Castello Branco

Coorientadora: Profa. Dra. Janaina de Paula

Belo Horizonte
2020
Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Priscila Oliveira da Mata CRB/6-2706

Balby, Luis Fernando Gonçalves.


B328.Yb-g Georges Bataillle [manuscrito] : a experiência literária / Luis
Fernando Gonçalves Balby. – 2020.
220 f., enc.: il., fots. (color)

Orientadora: Lucia Castello Branco.

Coorientadora: Janaina de Paula.

Área de concentração: Teoria da Literatura e Literatura Comparada.

Linha de Pesquisa: Literatura e Psicanálise.

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais,

Faculdade de Letras.

Bibliografia: f. 206-209.
Apêndices: f. 210-213.

1. Bataille, Georges, 1897- 1962. – Crítica e interpretação – Teses.


2. Literatura francesa – História e crítica – Teses. 3. Psicanálise e
literatura – Teses. 4. Escrita na literatura – Teses. I. Castello Branco,
Lucia, 1955-. II. Paula, Janaina Rocha de. III. Universidade Federal de
Minas Gerais. Faculdade de Letras. IV. Título.
CDD: 843.8
Agradecimentos

- Agradeço, primeiramente, a todas as brasileiras e brasileiros que, com o suor de seu trabalho,
permitem que a universidade pública e a pesquisa se mantenham em nosso país e que, a despeito
de todas as dificuldades, nos concedem o privilégio da formação e do estudo.

- Agradeço, de maneira geral, à Universidade Federal de Minas Gerais e ao Programa de


Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários pela excelência de ensino e estrutura que me
foram oferecidos e, de maneira específica, a cada um dos colaboradores do Pós-Lit e da UFMG.

- Agradeço à CAPES pela bolsa que me foi concedida durante três anos, assegurando-me os
meios para que pudesse me aperfeiçoar como professor e pesquisador.

- Agradeço, com especial calor e afeto, Lucia Castello Branco e Janaina de Paula,
respectivamente orientadora e coorientadora desta tese, pelas instruções, pelas observações,
pelos preciosos acréscimos, correções, questionamentos e sugestões sem os quais nem este
trabalho nem seu autor poderiam ter encontrado um caminho. Eu as agradeço por terem sido
firmes sem deixarem de ser doces, pela paciência e liberdade a mim confiadas.

- Agradeço a minha mãe, Aymés Beatriz Buys Gonçalves pelo amor que foi e que é a estrutura
de tudo.

- Agradeço a meu pai, Pedro Muniz Balby, a Nárdia de Castro Coelho Balby e a meu irmão
Pedro Henrique Buys Balby pelo apoio, carinho e confiança.

- Agradeço, emocionado, aos amigos Maria da Penha de Castro Coelho e Wellerson de


Castro Coelho que me acolheram em sua casa e em seu coração.
“O que pareceria político e imaginava-se ser político, se
desmascarará um dia como movimento religioso.”

(Bataille parafraseando Kierkegaard)


Resumo

Esta tese tem por objeto a experiência literária de Georges Bataille e procura esclarecer a forma
e os conteúdos que o escritor afirmava serem essenciais à literatura e à poesia. O texto é uma
análise orientada pelas ferramentas de crítica oferecidas pela psicanálise e elaborada sobretudo
a partir da textualidade do próprio Bataille, bem como através da textualidade de Sade e de
Nietzsche, além de outros escritores com os quais ele estabeleceu comunicação. A arquitetura
da tese foi pensada para espelhar a figura que ilustra as capas da revista Acéphale (que teve em
Bataille o principal colaborador) e também a perspectiva do antropomorfismo dilacerado
sustentada pelo escritor. Destacamos, dessa figura e dessa perspectiva, alguns dos significantes
que consideramos os mais relevantes para a escrita dos capítulos da tese: o dedão do pé, o olho,
a ausência de cabeça e a fenda – significantes analisados não a partir de sua conformação
consigo mesmos, mas levando em consideração, em cada caso, aquilo que o escritor apresentou
como sendo, relativo a esses significantes, da ordem do informe. A experiência literária é então
escrita por Bataille como uma dimensão para além da simples apresentação e construção de
significados, isso é, como uma dimensão que escapa aos saberes instituídos e que se coloca em
um campo que não é o do discurso nem o do sistema. O método operado pela escrita de Bataille
é o de abrir os significantes tal como, para ele, o corpo humano se apresenta como signo da
abertura e do inacabamento. Assim, tal como o corpo humano tem como marca sua inscrição
na dimensão do não-saber, a experiência literária de Bataille consiste no tratamento poético que
ele confere aos significantes desse corpo e que sua escrita apresenta como pontos de fuga: como
uma linguagem que transgride o racional e o útil e que caminha em direção ao informe do
sagrado e do êxtase.

Palavras-chave: Georges Bataille; experiência literária; Sade; Nietzsche; Acéphale;


antropomorfismo dilacerado; informe; não-saber; êxtase; sagrado.
Abstract:

This thesis focuses on the literary experience of Georges Bataille and seeks to clarify the form
and the contents that the writer claimed to be essential to literature and poetry. The text is an
analysis guided by the tools of criticism offered by psychoanalysis and elaborated mainly from
the textuality of Bataille himself, as well as through the textuality of Sade and Nietzsche, in
addition to other writers with whom he established communication. The architecture of the
thesis was designed to mirror the figure that illustrates the covers of the magazine Acéphale
(who had Bataille as the main contributor) and also the perspective of the lacerated
anthropomorphism supported by the writer. We highlight, from that figure and from that
perspective, some of the signifiers that we consider the most relevant for the writing of the
thesis' chapters: the big toe, the eye, the absence of the head and the cleft - signifiers analyzed
not from their conformation with themselves, but taking into account, in each case, what the
writer presented as being relative to the dimension of the formless. The literary experience is
then written by Bataille as a dimension beyond the simple presentation and construction of
meanings, that is, as a dimension that escapes the established knowledge and that is placed in a
field that is not that of discourse or that of the system. The method operated by Bataille's writing
is to open the signifiers just as, for him, the human body presents itself as a sign of opening and
becoming. Thus, just as the human body is marked by its inscription in the dimension of not-
knowing, Bataille's literary experience consists of the poetic treatment that he gives to the
signifiers of that body and that his writing presents as vanishing points: as a language that
transgresses the rational and the useful and that moves towards the forms of the sacred and the
ecstasy.

Keywords: Georges Bataille; literary experience; Sade; Nietzsche; Acéphale; lacerated


anthropomorphism; formless; not-knowing; ecstasy; sacred.
Sumário

INTRODUÇÃO AO ANTROPOMORFISMO DILACERADO DE GEORGES BATAILLE 1

CAPÍTULO 1: O DEDÃO DO PÉ ............................................................................................... 14

1.1 Introdução ............................................................................................................................ 14

1.2 O dedão do pé ...................................................................................................................... 20

1.3 Heterologia........................................................................................................................... 26

1.4 Escritura..................................................................................................................................... 30

CAPÍTULO 2: HISTÓRIA DO OLHO ....................................................................................... 35

2.1 Introdução .................................................................................................................................. 35

2.2 Lord Auch, o Deus na latrina; os olhos furados de Édipo ......................................................... 40

2.3 Em busca do Objeto perdido ..................................................................................................... 50

2.4 O Ânus Solar: objeto impossível ............................................................................................... 57

2.5 História do Olho: história do sacrifício de um objeto................................................................ 63

2.6 O Olho Pineal ............................................................................................................................ 74

CAPÍTULO 3: ACÉPHALE......................................................................................................... 84

3.1 Introdução: Uma Cabeça Aberta para o Azul ....................................................................... 84

3.2 Pulsão de Morte: Literatura e a Experiência da Loucura........................................................... 92

3.3 Sade e a Loucura de Escrever .................................................................................................. 105

3.4 A experiência-limite de Nietzsche ........................................................................................... 129

3.5 Comunidade: comunicação pela ferida.................................................................................... 147

CAPÍTULO 4: A FENDA ........................................................................................................... 165

4.1 Introdução: O Mal-estar na Literatura ............................................................................... 165

4.2 Madame Edwarda: objeto de “despossessão”.......................................................................... 177

4.3 A Fenda ................................................................................................................................... 189

CONCLUSÃO: O RISO ............................................................................................................. 202

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................... 206

APÊNDICE: ................................................................................................................................. 210


1

INTRODUÇÃO AO ANTROPOMORFISMO DILACERADO DE GEORGES


BATAILLE

Para os homens acadêmicos ficarem contentes


seria necessário que o universo tomasse forma.
(Bataille)

Quando iniciamos esta pesquisa, nosso propósito era o de trazer à luz os conceitos de
‘transgressão’ e de ‘erotismo’ criados por Georges Bataille e demonstrar como a literatura, de
maneira geral, operava tal qual os limites propostos por esses conceitos. O intuito de nosso
trabalho seria, assim, aprofundar, tanto quanto possível – mas de um ponto de vista mais
filosófico do que textual – tais conceitos e demonstrar, por meio de exemplos, sua aplicação.
Quanto a isso, a provocação acima de Bataille não poderia ter sido mais certeira: pois
não é, verdadeiramente, a obsessão de todo filósofo fazer com que nada além do que todo o
universo caiba dentro de um conceito, de uma palavra? Aliás, não seria isso também uma
obsessão de natureza monoteísta, religiosa? O excerto acima, retirado do verbete ‘Informe’, da
revista Documents1, foi lido, assim, como uma provocação do escritor à escrita desta tese.
Mas não é só na qualidade de texto acadêmico que nos vemos aqui na obrigação de
pensar a forma, movidos pelo interesse científico de conformar a literatura transgressiva de
Georges Bataille – projeto que, é verdade, nos deixaria contentes. Ocorre que, na medida em
que nos aprofundamos na pesquisa da escrita de Bataille, verificamos a que ponto a estrutura
de seu texto e o conteúdo de seu pensamento são indissociáveis, e que a forma aparece, no
horizonte batailliano, não como um detalhe menor, mas como uma questão central – ainda que
oculta – para sua textualidade.
É nesse sentido que, se ignorássemos uma discussão acerca da forma, estaríamos não só
dando as costas para essa dimensão fundamental dos textos de Bataille, como também,
possivelmente, para sua dimensão mais interessante, aquela que mais deixa frutos e ferramentas
para uma reflexão crítica da literatura em sentido mais amplo. Em síntese, poderíamos expor
esse ponto com a seguinte pergunta: um texto será “transgressivo” ou erótico quando seus temas
o indicarem como tal, ou haveria uma operação na forma (uma operação transgressiva) que
levaria esse texto a colocar em cena a dimensão do erotismo?

1
BATAILLE, G. A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh. Trad. Carlos Valente. Lisboa: Hiena
Editora, 1994.
2

Na medida em que avançamos em nossa pesquisa, ficou claro que a discussão filosófica
em torno do conceito ‘transgressão’ é, sem dúvida, interessante, mas a questão da forma, ou
melhor, da transgressão das formas, é, de fato, a questão que atravessou desde os primeiros até
os últimos escritos de Bataille.
A leitura do belo texto que Didi-Huberman2 dedicou à discussão do pensamento da
forma nos artigos que Bataille escreveu para a revista Documents foi crucial e reveladora a esse
respeito: quase como um artista plástico, Bataille pensava a realidade e a abordava não por
palavras, mas por meio de imagens. Neste ponto já estamos, em certo sentido, nos domínios de
uma História do Olho. Esse esclarecimento também é importante para percebermos o porquê
de os textos bataillianos, mesmo os de natureza mais conceitual, estarem muito mais próximos
do campo das artes e da literatura do que propriamente da filosofia.
Foi, aliás, no terreno das artes e da psicanálise que seu pensamento floresceu.
Alimentado, por um lado, pelos textos de Freud e de Marcel Mauss – que mesclavam saberes
da psicologia com os da pesquisa antropológica –, bem como por sua breve, porém significativa
experiência de ter sido submetido ao tratamento psicanalítico, e, por outro, pela efervescência
do modernismo nas artes plásticas na França, que Bataille escreveu, na qualidade de redator-
chefe, os artigos da revista Documents, entre 1929 e 1930. Nas capas em que se estampava a
proposta (por si só moderna) de uma transdisciplinaridade da ‘arqueologia’, das ‘belas-artes’,
da ‘etnografia’ com as ‘variedades’, os artigos se endereçavam, de maneira combativa, como
uma crítica, aos sistemas filosóficos de todos os tempos e ao então incipiente movimento
surrealista.
Bataille provavelmente teria concluído que a apropriação feita pelos surrealistas dos
textos de Freud era pobre porque se atinha à superfície de seus conteúdos que, supostamente,
revelavam metáforas na A Interpretação dos Sonhos (1900) e os arquétipos no caso de Totem e
Tabu (1913). O horizonte que a leitura, sobretudo desse último texto, despertou em Bataille foi,
por certo, bem mais amplo e produtivo, porque, sem se limitar aos conteúdos desses textos, ele
vislumbrava as possibilidades abertas, justamente, pelos aspectos formais da “textualidade”
freudiana: a apropriação e a aproximação, muitas vezes descompromissada, de diferentes
campos do saber (psicologia, antropologia, etnologia e mesmo da literatura), a presença de um
‘eu’ no texto que, a todo momento declara a maneira pela qual manipula esses saberes e, acima

2
DIDI-HUBERMAN, Georges. Semelhança Informe ou o Gaio Saber Visual segundo Georges Bataille. Trad.
Caio Meira, Fernando Scheibe, Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
3

de tudo, a terminante recusa freudiana a toda forma de conhecimento que beirasse o idealismo
ou a metafísica3.
Nos artigos de Documents, Bataille utilizava a mesma faca para atacar esses dois
inimigos que, em comum, se alimentavam do que Didi-Huberman chama de “substancialismo”,
ou seja, do pressuposto teórico e da busca por uma “forma pura”4, conceitual e abstrata, no caso
da filosofia, e metafórica, no caso dos surrealistas. Contra eles, identificados pela referência a
um grande sistema idealista de pensamento, Bataille dirige, dentre outros, o verbete ‘Informe’,
na ousada proposta de um dicionário crítico, cujos termos, de acordo com suas próprias
palavras:

INFORME

Um dicionário começaria na altura em que deixasse de dar o sentido das


palavras para se ocupar das suas tarefas. Deste modo, informe não é só um
adjetivo com determinado sentido mas um termo que serve para desclassificar
e em geral exige que todas as coisas tenham a sua forma. O que ele designa
em nenhum sentido possui direitos, e em todo o lado é esmagado como uma
aranha ou um verme. Na verdade, para os homens acadêmicos ficarem
contentes seria necessário que o universo tomasse forma. A filosofia, toda ela,
não tem outro objetivo: trata-se de dar uma sobrecasaca ao que existe, uma
sobrecasaca matemática. Pelo contrário, afirmar que o universo não se parece
com nada, e mais não é do que informe, equivale a dizer que o universo é
qualquer coisa como uma aranha ou um escarro.5

Há aqui uma inversão cujo alcance nos parece fundamental para compreender a
textualidade desse escritor para quem as palavras em si mesmas, estranhamente, nada
significam. Para Bataille, as palavras só significam na medida em que remetem a um fora, isso
é, à forma a que se referem. Nessa perspectiva, seria vão o esforço analítico da disciplina
filosófica por se tratar de um esforço fatalmente abstrato: palavras que remetem a palavras, uma
palavra que sintetiza todas as palavras, a ideia pura. No caso das artes, o esforço metafórico do
surrealismo por encontrar a metáfora ideal ou a mais adequada – aquela que restauraria o

3
A esse respeito são significativas as notas de rodapé de Bataille no artigo ‘A mutilação sacrificial e a orelha
cortada de Van Gogh’ de Documents, e outra referência no verbete ‘Materialismo’ do Dicionário Crítico na mesma
revista: “O materialismo será olhado como um idealismo caquético, na medida em que não será imediatamente
baseado sobre os fatos psicológicos ou sociais, mas sobre abstrações como os fenômenos físicos artificialmente
isolados. Desse modo é em Freud, dentre outros – e não em físicos desde há muito falecidos e cujas concepções
estão hoje fora de causa – que devemos buscar uma representação da matéria”, (BATAILLE. op. cit., p.82 e p.103-
104)
4
DIDI-HUBERMAN. op. cit., p.50-51
5
BATAILLE. op. cit., p.98-99
4

sentido fazendo interromper a cadeia significante – estaria, a seu ver, também fadada ao
impasse.
É, assim, por contrapartida à escrita filosófica e à arte surrealista que o jogo que Bataille
coloca em cena com seus textos é metonímico e, tanto quanto possível, não metafórico. Seus
poemas e novelas exigem por parte do leitor que se abra mão da interpretação, no sentido
convencional em que interpretação é entendida como esforço nos termos de esclarecer o que
essa ou aquela imagem representam, o que querem dizer. Todo o esforço de leitura passa a ser
então o de buscar a quais significantes tais e tais imagens se associam. O movimento de sua
literatura se constitui, assim, por uma cadeia de significantes centrífuga, isso é para um círculo
vicioso que, aos giros e no limite, está sempre apontando para o lado de fora, isso é, para a
alteridade.
De igual modo, nos textos em que o escritor procura desenvolver algum conceito – a
exemplo do que se verifica em O erotismo (1957) – o método mais sistemático dessa escrita
revela-se operacional e jamais sintético, no sentido que os conceitos, se Bataille os elabora, só
se sustentam como passagem de um elemento a outro, como uma espécie de fenda.
A esse respeito, a noção de ‘informe’, por exemplo, não aponta para a ‘ausência de
forma’, como poderia concluir o filósofo niilista, tampouco trata-se de metáfora para o vazio.
O informe diz respeito, no pensamento batailliano, à forma que, longe de ser vazia, deve ser
compreendida sobretudo a partir das forças centrífugas que remetem à impossibilidade de sua
definição, de sua delimitação.
Ou seja, o ‘informe’ remete à beleza das formas que existe somente na medida em que
esgarça os limites da racionalidade. É por essa via transgressiva que o universo, aos olhos de
Bataille, não poderá se assemelhar a Deus, como a mais perfeita abstração do vazio, para alguns,
ou a metáfora bem definida do pai totêmico, para outros; o universo deverá ser, em seu
horizonte, tão material e vivo quanto uma aranha e tão estranho, abjeto e residual ao olho
humano quanto o é um escarro.
Analisando especialmente a inusitada iconografia da revista Documents, Didi-
Huberman faz esta anotação a respeito do trabalho de transgressão das formas proposto por
Bataille:

Transgredir as formas não quer dizer, portanto, desligar-se das formas, nem
permanecer estranho ao seu terreno. Reivindicar o informe não quer dizer
reivindicar não-formas, mas antes engajar-se em um trabalho das formas
equivalente ao que seria um trabalho de parto ou de agonia: uma abertura, uma
laceração, um processo dilacerante que condena algo à morte e que, nessa
5

mesma negatividade, inventa algo absolutamente novo, dá algo à luz, ainda


que à luz de uma crueldade em ação nas formas e nas relações entre formas -
uma crueldade nas semelhanças. Dizer que as formas “trabalham” em sua
própria transgressão é dizer que [...] formas investem contra outras formas,
que formas devoram outras formas. Formas contra formas e, vamos
rapidamente constatá-lo, matérias contra formas, matérias que tocam e,
algumas vezes, comem formas.6

Assim, para Bataille – escritor que pensa no horizonte não da palavra, mas da imagem
– sua textualidade consiste em explorar as formas em suas zonas de deformidade. Seja no caso
do dedão do pé, do olho, da ausência de cabeça ou da fenda – os significantes que dão os títulos
para os capítulos desta tese – explorar o elemento de deformação quer dizer descobrir o ponto
em que cada uma dessas formas não poderá mais ser idêntica a si mesma. Tal procedimento o
escritor mais tarde viria a referir-se a ele como uma espécie de método, a ‘heterologia’.
Os paralelos dessa heterologia com aquilo que Freud, em texto de 1919, propôs a
respeito do unheimlich são muitos. No ponto, por exemplo, em que Freud considerou que seria
necessário, para o interesse da teoria psicanalítica, avançar em direção a uma compreensão
acerca desse ‘inquietante’, ou seja, pela possibilidade de que um mesmo objeto pudesse ser, a
um só tempo, estranho e familiar, abriam-se as portas para a concepção de uma estética que se
manifestasse abertamente como antiplatônica. Mas, nesse mesmo texto, Freud observa que “[...]
nada encontramos nos minuciosos tratados de estética, que se ocupam antes das belas, sublimes,
atraentes — ou seja, positivas — sensibilidades, de suas condições e dos objetos que as
provocam, do que daquelas contrárias, repulsivas, dolorosas.”7
Da parte de Bataille, desde a novela História do Olho8, passando pelos artigos da
Documents em que se debruça sobre os significantes da ‘flor’, do ‘dedão do pé’, da ‘boca’ do
‘sol’ etc., até seus últimos escritos em que retorna ao estudo da misteriosa figura do poço da
caverna de Lascaux, uma concepção estética do ‘inquietante’ viria a se estabelecer como sua
marca, como seu estilo. Tal qual registra no verbete do ‘informe’ de seu dicionário crítico, ele
aplicará a violência transgressiva a essas formas a que se dedica, ele as “desclassificará”,
arrancando-as da zona do senso comum e do idealismo brando, afastando-as, tanto quanto
possível, daquele ponto em que se tornam dogmas ou tabus, zonas cinzentas e, entretanto,
confortáveis para o pensamento.

6
DIDI-HUBERMAN. op. cit., p.28-29
7
FREUD, S. O inquietante (1919). In: Obras Completas (Cia. das Letras) - Vol. 14 (1917-1920). Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 ., p.248
8
Que, aliás, guarda estranhas proximidades com o conto ‘O Homem da Areia’ de E.T.A Hoffmann, analisado com
certa minúcia por Freud em Das Unheimliche
6

Ao recusar o fechamento das formas sobre si mesmas, expondo-as em seu elemento de


inquietação, o escritor quer não apenas retirar o véu que encobre o tabu, liberando o
pensamento, mas sobretudo reestabelecer o movimento incessante da linguagem – isso é,
reestabelecer a possibilidade dessas formas se comunicarem. Em seu ponto limite de
transgressão, por exemplo, ao estabelecer a passagem do pensamento ao êxtase, Bataille nos dá
meios, inclusive, para que o significante morte deixe de ser um ponto final e se abra novamente
à comunicação, conforme o estudo que realizamos no terceiro capítulo desta tese.
Nesse movimento – se não fosse, em certo sentido, um exagero considerar que há uma
“ética” batailliana – estaríamos diante de algo como um “é possível pensar sobre isso, é possível
falar sobre isso, é possível criar a partir disso”. Seria impossível, por outro lado, deixar de notar
os paralelos dessas formulações com os de uma ética da psicanálise.
Sem dúvida, uma parte importante da escrita de Bataille será voltada a essa operação ou
a essa estética paradoxal do unheimlich que, segundo a definição trazida pelo dicionário de
Freud, consiste em fazer aparecer “tudo o que deveria permanecer secreto, oculto” do que se
considera já por demais familiar ou conhecido9. Ainda dentro dessa lógica, o outro trabalho de
Bataille será o de criar, para cada forma familiar, o seu duplo.
Eis o que poderíamos chamar de seu trabalho de “ficção”. Ao homem vitruviano de da
Vinci, por exemplo, Bataille oferece, como contraponto, com o desenho de André Masson, a
estranha figura que ilustrou as capas da revista Acéphale10. Um outro exemplo de ‘duplo’: a
perversão batailliana apresentada pelo conceito de ‘erotismo’ coloca-se como contraponto à
visada neurótica de que sexualidade humana teria, com fim último, a reprodução. De igual
modo, em seu conceito de ‘sagrado’ vislumbra-se o mais perfeito antípoda à moralidade e ao
dogma religioso etc.
Isso não quer dizer que a escrita de Bataille – que sua transgressão – opere por
contraposições, que busque se sustentar por meio de antíteses. Trata-se tão somente de afirmar
que ele soube explorar, dentro de cada um – em cada corpo, objeto ou conceito – a dimensão
do múltiplo, tendo encontrado para cada forma o seu aspecto informe, propondo, para cada
doxa, o paradoxo.
É nesse sentido que, como vimos no trecho acima, Didi-Huberman aproxima a
experiência batailliana de um agônico trabalho de parto: as formas são violentamente abertas,
e esgarçadas, elas contaminam outros significantes que, a sua vez, também estarão submetidos

9
Ibidem, p.268
10
Ver APÊNDICE 1
7

ao mesmo processo. Por isso, pode-se dizer que a escrita, para Bataille, é uma espécie de
trabalho de laceração, pelo qual ele se apropria e recorta as formas sem o rigor acadêmico,
encontrando para elas o ponto em que deixam de ser idênticas a si mesmas.
Escrita e ato sexual se aproximam então como movimentos transgressivos de igual
natureza. As formas estáveis se tornam instáveis e a orgulhosa verticalidade do homem
civilizado tomba à horizontalidade humana e animal. O fechamento de cada forma sobre si
mesma é transposto à violação dos corpos em seu ponto de ferida, e os olhos que habitualmente
procuram objetos são, por fim, transgredidos em olhos que se reviram em êxtase. Bataille
ressignifica a função dos olhos assim como a poesia ressignifica a função da palavra.
No pressuposto de tais gestos está a noção de que as formas só se comunicam
verdadeiramente quando violadas, quando transgredidas. É por esse meio que, pela escrita
batailliana, significantes tão díspares quanto ‘sexualidade’ e ‘religião’ voltam a se comunicar
com toda força e com toda carga poética – sendo conjugadas em um termo tão paradoxal quanto
erotismo religioso – cuja potência é a de liberar novas possibilidades que, até então,
permaneciam ocultas sob os véus do tabu e do senso comum.
A esse tipo de experiência com a linguagem e suas formas, Bataille daria o nome de
‘sacrifício’, ao qual se vincularia diretamente a experiência do sagrado. O sagrado, a sua vez,
é entendido não como o valor de um objeto em si, mas, precisamente, como o valor de abertura,
de comunicação de determinado objeto, na medida em que tal objeto é violentado e perde sua
estabilidade, sua identidade, tornando-se perigoso por seu risco de contágio, ou seja, na medida
em que cada objeto (ou significante) passa a ser uma passagem de sentido.
Como se vê, esse procedimento realizado pelo escritor é, a um só tempo, estético e ético,
ao qual, para nos referenciarmos nos termos trabalhados por ele, deveríamos melhor concluir
como se tratando de uma erótica: de uma erótica das formas em trânsito que, como os corpos
no ato sexual, se comunicam violentamente entre si.
É curioso que, sendo o princípio dessa escrita o contágio, o movimento, ela se deixe
levar – certamente conduzida pelo modelo da literatura de Sade – pelo que pode parecer se
tratar de uma espécie de fetiche do significante. Assim, não é exagero concluir que não são
poucos os desavisados que chegam à História do Olho na expectativa de encontrar ali o que
poderíamos chamar de uma literatura pornográfica. E nem mesmo chega a ser surpreendente
que tal efeito de fetiche persista ao longo das primeiras páginas da novela. Mas aos poucos esse
efeito cessa, abalado por uma forte sensação de estranhamento. É que Bataille, ao contrário do
8

que possa parecer, não masturba as formas: ele as recorta sim, mas somente para levá-las a seu
ponto de contágio, de comunicação. Sua escrita, como esclarece Didi-Huberman

[...] se oferece como um “documento” direto do que cortar, quero dizer, um


documento de carnificina, isto é, de despedaçamento dos corpos em seus
diferentes “pedaços”, órgãos ou “peças de abate”. Fazer imagens é realmente
talhar nos corpos, e não apenas representar os corpos. É fazer da semelhança
produzida - trabalhada - um “exercício de crueldade”, como Bataille
caracterizará, mais tarde, a atividade artística em geral. Já em Documents, ele
terá se comprazido em notar muitas outras coincidências do mesmo tipo, por
exemplo, a coincidência entre “a origem do museu moderno” e o
“desenvolvimento da guilhotina”.11

Nesse jogo de insólitas aproximações de significantes (de crueldades), destacamos o


paralelo estabelecido por Bataille também na revista Documents quando escreve o verbete
‘Arquitetura’, que, segundo o escritor “[...] é a expressão do verdadeiro ser das sociedades, tal
como a fisionomia humana é a expressão do ser dos indivíduos. No entanto, com fisionomias
de personagens oficiais (prelados, magistrados, almirantes) é que esta comparação deve
sobretudo se fazer”.12 Ainda, em uma passagem do texto O culpado, escrito anos mais tarde,
Bataille afirmaria ser sua perspectiva a de um “antropomorfismo dilacerado”, anotando na
sequência que “Na extremidade de seu desenvolvimento, o pensamento aspira à sua execução
capital”13.
Se o pensamento, para encontrar o ponto extremo de desenvolvimento, sai em busca de
uma guilhotina isso se dá, poderíamos argumentar, porque, de antemão, o pensamento se
reconhece “culpado” em sua transgressão. Ele sabe, em termos bastante kafkianos, que se deseja
avançar não pode sucumbir, por um lado, ao peso e à autoridade das figuras oficiais que
delimitam seu alcance, por outro lado, a lucidez desse pensamento o impede de ignorar o valor
intransponível da arquitetura institucional. De forma que, no horizonte de Bataille – e ele anota
no verbete ‘Metamorfose’ – o homem não é e nem pode ser livre, tampouco pode experimentar,
senão de maneira provisória, a liberdade:

[...]. Apesar das aparências, o hábito não consegue impedir um homem de


saber que mente como um cão quando fala de dignidade humana no meio dos
animais. Porque em presença de seres ilegais e profundamente livres (os
únicos verdadeiramente outlaws), a mais equívoca das invejas ainda leva a
melhor sobre uma estúpida sensação de superioridade prática. [...]. Há, pois,

11
DIDI-HUBERMAN. op. cit., p.78
12
BATAILLE. op. cit., p.89
13
BATAILLE. O culpado: seguido de A aleluia. Suma Ateológica, vol. II. Trad. Fernando Scheibe. 1ed. Belo
Horizonte, 2017, p..47
9

em cada homem um animal fechado numa prisão como um condenado, e


também há uma porta; se abrirmos essa porta, o animal corre para fora como
o condenado que encontra a saída da prisão; e então, de um modo provisório,
o homem cai morto e o animal comporta-se como um animal sem preocupação
nenhuma de provocar a admiração poética do morto. É neste sentido que se
olha para um homem como uma prisão de aparência burocrática.14

Se toda escrita, em alguma medida, é exercício de construção de uma arquitetura oficial


– que se coloca sob a sombra ou do tabu ou da autoridade da tradição – podemos, todavia,
orientar-nos ao longo desta tese por esse princípio de “execução capital” que Bataille, nesse
mesmo verbete, também chama de a “obsessão da metamorfose”: o desejo por colocar de pé
uma arquitetura que seja a de uma forma em trânsito. A arquitetura desta tese deve então, em
algum nível, se inspirar no ‘rosto não-oficial’ dos significantes que a formam, e que, sem
encontrar seu ponto de parada em uma significação última, se abrem ao movimento de contágio,
de comunicação.
Pois, se por um lado não se pode de todo dar as costas às exigências acadêmicas que
devem conformar este texto, por outro, ignorar a natureza transgressora dos objetos que o
compõe seria o mesmo que trair o texto em sua natureza, fechando os olhos para a exuberante
fenda aberta pela escrita de Georges Bataille.

***

“Em toda realidade acessível, em cada ser, é preciso buscar o lugar sacrificial, a ferida.
Um ser só é tocado no ponto onde sucumbe [...]”.15 Esse excerto foi retirado do texto O culpado
(1944), escrito por Bataille durante a guerra, mais precisamente no contexto da ocupação
nazista sobre a França. Momento em que, como se sabe, as teses humanistas encontravam seu
mais absoluto ponto de ruína (ponto de onde, aliás, não se poderia esperar que pudessem
ressuscitar para a contemporaneidade). Não obstante, era notável o gosto particular do III Reich
nas artes plásticas pelo humanismo herdado da estética clássica e o desprezo que nutria pela
arte moderna, composta de fragmentos, pedaços de corpos, sentidos paradoxais e em clara
referência à pintura primitiva.
A despeito da monstruosidade da política fascista daquele contexto, empenhada em
dilacerar corpos e em asfixiar a pluralidade, aqueles foram anos em que Bataille engajou-se
ainda mais em suas proposições anti-humanistas e reafirmando a estética da laceração – o

14
Idem, 1994, p.105
15
Idem, 2017, p.47
10

“antropomorfismo dilacerado” – de seus anos de redator da revista Documents. A esse respeito,


talvez pudéssemos concluir, tal qual o expõe Eliane Robert Moraes, em seu livro de sugestivo
título O corpo impossível (2002), que “tudo acontece como se, no mundo moderno, o
dilaceramento do homem tivesse se tornado a única saída a permitir reencontrá-lo por inteiro,
não mais na sua ilusória completude antropomórfica, mas em seu permanente inacabamento”.16
Naqueles anos o corpo humano se reapresentava como tragédia, exposto à nudez de sua
dolorosa finitude. Bataille teve então ocasião de formular e, na prática de sua escrita,
experimentar o conceito que elaborava de comunicação: a singularidade revelada no ponto em
que o corpo perde sua sustentação. Na concepção do escritor, o que é da ordem do singular só
pode ser comunicado através das feridas do corpo: em seus poros, fendas e extremidades, locais
em que o corpo revela seu aspecto informe e insubordinável à autoridade uniforme – em seus
“pontos de fuga”, conforme a denominação de Eliane Robert Moraes.
O corpo informe é soberano porque não pode se pode subordiná-lo nem mesmo por
força da coerção externa ou da vontade própria. O corpo informe é o corpo que escapa aos
domínios do recalque, da racionalidade e da ideologia porque o que ele coloca em cena é a
expressão que fala e que escreve a partir de seus pontos de fuga.
É nesse sentido que Didi-Huberman define tão bem o “antropomorfismo dilacerado” de
Bataille. O corpo humano é sem dúvida a centralidade dessa escrita e é tomado como signo,
interpretado a partir dos pontos de fuga um a um recortados na literatura batailliana. Esse corpo
é então transposto, elevado, pela palavra, a ser signo daquilo que de fato ele é: uma verdade
incômoda, insubordinável e profundamente alegre ao mesmo tempo. O corpo é signo do
inacabamento humano, do inacabamento que nos conduz à nossa maravilhosa e assustadora
disponibilidade em direção ao desconhecido.

Essa doença, que assume mil formas e nos esgota com suas mil armadilhas ou
fissuras, pode no entanto ser dita numa só palavra, escolhida por Bataille como
título de um dos seus textos mais bonitos, mais extremos, mais inteiros: e é a
palavra culpado, justamente, palavra por excelência do inacabamento.17

Didi-Huberman nos lembra então da significativa ambiguidade que a palavra coupable,


que dá título ao texto, possui no idioma francês: além de seu significado convencional, coupable
também poderia ser traduzido como “o cortável”, que ele desdobra ainda em “o interminável”
ou “o inacabável”. De fato, esse texto de Bataille pode ser lido como uma verdadeira apologia

16
MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. São Paulo: Editora Iluminuras, 2002, p.224-225
17
DIDI-HUBERMAN. op. cit., p.360
11

ou como uma ética do inacabamento sobre a qual se sustenta a condição humana, pensamento
que, como sempre, ele leva às últimas consequências. Ainda segundo Didi-Huberman, Le
coupable

[...] ilumina, acredito, toda a atividade figural e teórica de Documents. Quando


Bataille corta o homem de seu pé, quando o isola de seu grito e arranca dele
um olho - “iguaria canibal”, não pretende outra coisa, seja na escrita, seja na
visualidade dos primeiros planos, senão restituir à “Figura humana”, no
próprio tempo em que a decompõe, sua condição essencial, de ser
essencialmente culpada-cortável.18

Poderíamos tentar argumentar que, ainda que sutil, há uma significativa distinção que
impede a confusão entre essas noções de “cortabilidade” e de ‘inacabamento’ com a de
‘fragmento’. Esta última, tendo se tornado cara à estética pós-moderna, tem como pressuposto,
ao que parece, a independência de cada unidade, de cada fragmento, em termos de sentido, em
relação ao todo. De modo que, se cada unidade pode operar independente das demais, então,
do mesmo modo, é possível, por mais antagônicas que sejam entre si, recortá-las e colá-las lado
a lado. Na noção pós-moderna de fragmento, todos os sentidos se somam e não existe a
possibilidade da contradição. Mas o mais importante seria destacar que, não somente a soma de
todos os fragmentos compõe um todo, como também que cada fragmento, por si só, expressa o
sentido desse todo.
A lógica formal do ‘inacabamento’, por sua vez, tal como é notada por Eliane Robert
Moraes, no texto O corpo impossível, é de outra ordem, confundindo-se, justamente, com as
noções de ‘impossível’ e de ‘informe’ que, como vimos, são os fundamentos da estética
batailliana. No ‘inacabamento’, se nos detemos com atenção sobre cada uma das partes
cortadas, como o faz Didi-Huberman em relação à iconografia de Documents, verificamos que
tais partes não encontram sustentação sequer em si mesmas e jamais chegam a constituir um
todo.
Em cada uma dessas partes há uma pluralidade de sentidos em franca oposição uns em
relação aos outros, numa lógica que é mais do movimento do que da unidade, mais da
perturbação do que da acomodação.19 No caso das partes do corpo recortadas por Bataille –
mais especificamente aos significantes do corpo de que nos valemos para compor os capítulos
desta tese (o dedão do pé, o olho, a ausência de cabeça, a fenda) – elas não só exprimem a

18
Ibidem, p.360
19
Das imagens que compõem a iconografia da Documents e analisadas por Didi-Huberman, consideramos a ‘boca’
a que melhor expressa essa afirmação.
12

impossibilidade do todo como também, em cada caso, apontam para a disponibilidade humana
– ou, seria melhor dizer, para o êxtase – em direção ao inacabamento.
Qualquer semelhança que essas formas possam ter com o saber é porque o método de
Bataille – em outro ponto em que muito se aproxima de Freud – somente se aproxima dos
saberes instituídos e dos sentidos já consagrados para poder apontar para o que está fora desses
sentidos, para o limite. Nesse caso, o inacabamento que essas formas sustentam aponta
justamente para a experiência do não-saber. “No extremo do possível”, escreve Bataille em A
experiência interior (1943) – e podemos incluir aqui o extremo do possível de cada forma – “é
verdade, está o não-sentido... mas somente daquilo que tinha um sentido até ali, pois a súplica
– que nasce da ausência de sentido – fixa em definitivo um sentido, um sentido último: é
fulguração, mesmo ‘apoteose’ do não-sentido”.20
A figura humana que aparece nas ilustrações da capa da revista Acéphale transpõe essa
lógica do inacabamento e do corte para o que seria a imagem do corpo humano “como um
todo”. Na perspectiva de Bataille: um corpo se comunica através de suas feridas e cada ferida
funciona como o signo que reafirma a impossibilidade do corpo de encontrar seu termo, sua
possibilidade definitiva, seu sentido último. Daí se concluí que para Bataille o sentido humano,
definido no limite pelo alcance das experiências do não-saber, está em aberto e remete a muito
do que poderíamos considerar como sendo da ordem do impossível. Ele escreve: “apreendo, ao
soçobrar, que a única verdade do homem, finalmente entrevista, é a de ser uma súplica sem
resposta.” 21
A figura de Acéphale transgride em igual medida o antropomorfismo e o humanismo, e
é também a forma na qual se inscreve a absoluta abertura para a criação como marca do corpo
humano. Nessa figura, se inscrevem tanto o inacabamento como signo de uma disponibilidade
infinita para a criação, quanto o impossível de que essa figura antropomórfica possa espelhar-
se como a imagem e semelhança do que quer que seja. Em outras palavras, ela é informe. Eliane
Robert Moraes assim sintetiza a noção do corpo impossível escrita pela figura de Acéphale:

Longe de ser a imagem emblemática de uma suposta desintegração definitiva


do ser humano, o acéfalo criado por Bataille e Masson representa uma
consciência aguda das ilusões de um humanismo que havia perdido por
completo seu sentido, esboçando uma das críticas mais veementes da
modernidade. Assim também, longe de exaltar a fragmentação do sujeito
moderno, o monstro da Acéphale vem confirmar, no seu corpo mutilado e

20
BATAILLE A experiência interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953: Suma
Ateológica, vol. I. Trad. Fernando Scheibe. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, 2ª, III.
21
Ibidem. 1ª, III.
13

vivo, a “possibilidade eterna e indefinida” da coisa humana, ainda que ela se


anuncie num tempo de maré alta do assassinato, em meio às mais concretas
ameaças da morte. [...]. Assim, lançando a figura humana aos seus pontos de
fuga, onde se esboça um horizonte indefinível, o acéfalo mantém a indefinição
que constitui a sua própria figura. Ao ostentar precisamente aquilo que lhe
falta, tal qual um teatro vazio, o corpo sem cabeça resta como um corpo
impossível.22

É nosso desejo que a arquitetura desta tese seja pensada como uma espécie de duplo, ou
de espelho invertido do acéfalo batailliano. Nossa proposta é que cada significante recortado
deste corpo ficcional em cada capítulo, em observância à forma acadêmica, funcione como
fragmento. Mas, por honestidade em relação a nosso objeto de estudo, que cada capítulo tenha
também ou possa ser uma espécie de deformação, que carregue os elementos de perturbação de
sua própria estrutura. E que sejam, em suma, quando analisados em si ou quando costurados
uns aos outros, instigantes do ponto de vista da criação literária e do riso a que corresponde o
êxtase do inacabamento.
Se, ao final desta tese, tivermos sido capazes de dar uma interpretação, isso é, uma forma
coerente à grande obra de Georges Bataille, então teremos cumprido com nossa exigência
acadêmica. Mas se, avançando para além desse limite, estes escritos ensejarem novas aberturas
em direção ao indefinido da criação, então, contentes, poderemos dizer que, mais do que a
interpretação, existe, de fato, a possibilidade de uma erótica do texto. É a esse informe que
corresponde nosso desejo.

***

22
MORAES, Eliane Robert. op. cit., p.227
14

CAPÍTULO 1: O DEDÃO DO PÉ

1.1 Introdução
Alguma coisa de mais elevado que toda reconciliação!
(Zaratustra)

Nas páginas da revista Documents – dedicada, entre outros, às belas-artes –, a ignóbil


imagem de um dedão do pé saindo do escuro parece querer atravessar a página e perturbar a
consciência de seus leitores.23 Sem dúvida, essa poderia ser alçada como a imagem por
excelência de uma estética anti-idealista. Impossível não notar, por isso, seja pela disposição da
imagem, seja na escolha textual por abordar esse significante, a intenção de Georges Bataille
em provocar atritos com o então emergente movimento surrealista que, a seus olhos, estava
inteiramente baseado em uma concepção idealista da realidade e que se traduzia nas artes24.
A crítica de Bataille enxergava no surrealismo uma concepção estética inspirada apenas
na superfície dos textos freudianos. Para o escritor, essa ausência de profundidade parecia
sugerir aos entusiastas do movimento a suposta existência de uma metáfora ideal – aquela que
melhor representasse os sonhos e formações inconscientes humanas – e a premissa de que uma
forma pudesse ser, em si, portadora de um significado universal a ser interpretado.
Foi, assim, contra ‘a ideia’, o sonho e a metáfora que Bataille escolheu o dedão do pé
para realizar sua crítica ao surrealismo. A escolha não era somente em função do aspecto de
baixeza desse significante (que é claramente o avesso do que possa haver de elevado ou de
sublime na natureza do sonho, ou seja, trata-se de um objeto sobre o qual não se pode sonhar),
mas sobretudo pela materialidade explícita e por esse significante dar sustentação a sua tese
relativa ao informe.
No caso do informe – cuja definição, segundo o dicionário crítico de Bataille,
apresentamos na introdução desta tese – trata-se, radicalmente, de uma expressão não abstrata
da matéria. Isso implica, segundo a defesa proposta pelo escritor, que o informe deveria ser
pensado não como algo contido na forma (uma essência: metafórica, misteriosa, inconsciente),
pois aqui não se trata de uma propriedade da matéria, mas de seu ponto mais exterior – o seu

23
A insólita iconografia dessa revista é estudada em detalhes por Didi Huberman em A Semelhança Informe ou o
Gaio Saber Visual segundo Georges Bataille (1995).
24
Ver APÊNDICE 2
15

ponto de deformação a operar nos limites da forma, e que revela o aspecto paradoxal, a natureza
não-identitária da mesma.
É assim que o recorte dado ao dedão do pé para dar sustentação a uma estética do
informe propunha um olhar que é metonímico – e não metafórico – ao que equivocadamente
chamaríamos de a natureza humana. Com efeito, conforme procuraremos demonstrar ao longo
desta tese, considerações a respeito da natureza humana são refutadas pela escrita de Bataille,
no sentido que essa escrita escapa em tom veemente e explícito – que por vezes parece beirar,
com fineza, o sarcasmo – ao que quer que aponte para um dentro e em favor de uma radical
afirmação do que está fora.
Os sentidos exteriores que Bataille dá à exploração imagética do dedão do pé, dessa
pequena parte que equivale ao todo, como veremos, é o pensamento – que já despontava mesmo
nessas suas primeiras publicações – de que o que poderia haver de inconsciente e de tipicamente
humano estava endereçado a uma relação de absoluta alteridade (uma relação erótica) com o
que escapa não porque esteja escondido na interioridade humana, mas precisamente por ser uma
relação com o que se lhe apresenta do lado de fora25.
É, pois, na relação com essas forças centrífugas que a forma humana perde a compostura
de sua identidade. E mesmo nessa parte tão pequena e desprezada, que é o dedão do pé, isso
poderia ser demonstrado: que a existência do ponto de deformação na forma tornava explícita
a convivência simultânea do sentido com o não-sentido, dos domínios do saber com os do não-
saber. “O hediondo e cadavérico aspecto do dedão do pé, que ao mesmo tempo dá nas vistas e
é orgulhoso, corresponde a esta mesma zombaria e confere uma expressão muito aguda à
desordem do corpo humano, de uma violenta discórdia entre os órgãos”, Bataille escreve nas
páginas de Documents.26 A linguagem, a escrita, não poderia estar situada senão num ponto
intermediário dessa discórdia.
Assim, por um viés de zombaria e de desordem antiplatônicas que a estética do informe
batailliana – ou a estética do antropomorfismo dilacerado – considerou a fragilidade do método
surrealista que assumia a possibilidade de ‘a ideia’ ser pensada como algo desligado de sua
própria forma. Conforme veremos nas citações a seguir, é possível concluir que, para Bataille
é no excesso – e não no em si –, isso é, naquilo que excede a forma, àquilo a que se associa uma
deformação – que se deveria buscar o, por assim dizer, sentido do nonsense.

25
Vale notar que tal crítica que Bataille endereçou à estética surrealista por meio da publicação da revista
Documents, entre 1929 e 1930, já apontava o golpe a ser desferido contra o centro de gravidade do edifício
existencialista a ser erguido por volta de 1945, como a expressão renovada (e, portanto, decadente) de uma estética
humanista.
26
BATAILLE, 1994, p.49
16

No verbete ‘Materialismo’, que consta no dicionário crítico da mesma revista


Documents, Bataille apresenta os termos dessa concepção estética que ele procurou colocar de
pé. Tratava-se, como dissemos, da crítica

[...]. [...] à obsessão por uma forma ideal da matéria de uma forma que se
aproximaria, mais do que qualquer outra, do que a matéria deveria ser. Com
efeito, a matéria morta, a ideia pura e Deus respondem de igual modo, ou seja,
de uma forma perfeita, tão trivial como o aluno dócil na aula, a uma pergunta
que só filósofos idealistas podem fazer, ao problema da essência das coisas,
como exatidão, da ideia pela qual as coisas se fariam inteligíveis. [...].27

Ao exercício artístico inspirado na ideia pura, abstraída da forma, ele escreve uma vigorosa e
não menos sarcástica defesa de um método inteiramente baseado no valor da experiência, isso
é, da expressão da forma através do corpo, do efeito de perturbação ou de deformação
provocado nesse corpo por aquela forma – conforme este verbete do dicionário em que procura
definir o que é o ‘Espaço’:

Claro está que o espaço bem melhor faria cumprindo o seu dever e fabricando
em casas de professores a ideia filosófica. Como é evidente, não passaria pela
cabeça de ninguém meter na prisão os professores para lhes ensinar o que é o
espaço (no dia, por exemplo, em que as paredes se desmoronassem à frente
das grades do seu calabouço).28

Esses exemplos estão aí para ilustrar que a escrita de Bataille encontra especial prazer
em convocar a evidência bruta da matéria: não da matéria morta – portadora de um significado
estável –, mas da matéria viva, aquela passível de ser violada, explorada em sua forma e em sua
deformação; da matéria cujos significados não podem preexistir à experiência, cujos sentidos
são conhecidos somente na medida em que perturbam a consciência daquele que os experimenta
e, por consequência, na medida em que o intimam a dar seu testemunho (literário – e não
filosófico) da experiência a partir dessa relação com a alteridade, a partir de seu não-saber.
Do ponto de vista acadêmico, o que se extrai da leitura desses verbetes da revista
Documents é sobretudo que o materialismo batailliano parece seguir determinado percurso. Em
primeiro lugar, jamais se afasta de um significante que lhe seja absolutamente concreto,
tangível, caso em que o dedão do pé parece ser o mais emblemático. Ainda sobre esse aspecto,
mesmo quando avança em direção ao impossível, nos momentos em que sua escrita alcança a
abstração, sua linguagem estará tão afastada do horizonte metafísico quanto se manterá próxima

27
Ibidem, p.103
28
Ibidem, p.97
17

aos sentidos da sensualidade do corpo: “há uma ideia formada quanto ao que se eleva, e a vida
humana é erroneamente olhada como uma elevação"29.
Em seguida, por exemplar afinidade da forma com esse objeto ao qual ele se dedica – o
corpo humano no ponto de sua erótica –, o materialismo de Bataille resultará, mesmo naqueles
casos em que seus textos se tornam mais conceituais, numa forma de pensamento em trânsito.
“De fato, a vida humana comporta a raiva de vermos que se trata de um movimento de vaivém”,
escreve Bataille no artigo ‘O Dedão do Pé’, “desde o esterco até o ideal e desde o ideal até o
esterco, raiva que é fácil fazer incidir num órgão tão baixo como o pé”30. Nas entrelinhas dessa
escrita está o que – não sem algumas ressalvas – poderíamos chamar de um método, ao qual
Bataille associa uma forma de movimento bastante específica e significativa – aquela do sangue
no corpo humano: “o sangue corre no interior do corpo numa quantidade que, de cima para
baixo e de baixo para cima, é a mesma”31.
Quanto ao caso exemplar dado pelo significante ‘dedão do pé’, nessa pequena parte
humana recortada por essa escrita, o sentido (literário) circula por entre o ‘alto’ e o ‘baixo’, por
entre a sedução e o desprezo, conforme a discussão que apresentaremos a seguir. Por essa
discussão, procuraremos deixar claro que tal sentido aparece também quando o corpo é tomado
na multiplicidade de suas partes, quando o pé se contrapõe à cabeça e a figura humana aparece
– no fulgor de um antropomorfismo dilacerado – como um paradoxo, em algum lugar que é, a
um só tempo, baixeza e elevação, “esterco” e “ideal”.
Sem dúvida, tendo tomado Nietzsche como uma de suas referências mais estruturantes,
a crítica que Bataille dirigia ao idealismo em geral e ao surrealismo especificamente era apenas
a ponta da faca cujo ímpeto desconstrutivo e violento estava por inteiro apontado em direção a
um contexto ideológico bem mais amplo32. Nesses termos, foi decerto importante para Bataille
encontrar nos textos de Nietzsche os fundamentos do ataque que ele mesmo dirigiria aos
surrealistas. Em A Gaia Ciência, por exemplo, Nietzsche esclarecia “Por que não somos
idealistas?”: “Não vedes o que neles se passa? O espetáculo da palidez sempre a crescer, a
desensualização interpretada como ideal? [...] o idealismo filosófico nunca passou até aqui de

29
Ibidem, p.97
30
Ibidem, p.97
31
Ibidem, p.97
32
Nos moldes do emblemático caso de rompimento de Nietzsche com o wagnerianismo, tratava-se de uma crítica
estética, mas que identificava na expressão artística de Wagner a dimensão de um estado de decadência muito
maior (que extrapolava o “mero campo das artes”), a ser denunciado e martelado: o nacionalismo alemão. De igual
modo podemos inferir que a crítica estética de Bataille deva ser extrapolada para as preocupações políticas que já
o inquietavam: o fascismo vindouro, a afirmação imparável de um ideal.
18

uma espécie de doença quando não foi, como sucedeu a Platão [...].”33 Também veremos como
foi a partir do contato que teve com os textos de Freud que Bataille pôde compreender em que
sentido o idealismo deveria, de fato, ser encarado como uma “doença”, a ponto de ser
denunciado com tanta veemência.

***

No dicionário crítico de Bataille, o verbete dedicado ao ‘Informe’ registra que o objetivo


de toda a filosofia é dar uma sobrecasaca matemática ao que existe. 34 Isso porque o método
racional, científico-filosófico, consiste na busca de relações de identidade a partir das
diferenças.
O pressuposto da crítica que o escritor formulava à filosofia, e que aparece também no
estilo de sua escrita, consiste na afirmação de que o método racional é doente porque opera a
partir do que poderíamos chamar de um recalque. Isso no sentido de que esse método apreende
cada objeto somente em sua parcialidade, mas silencia ou recalca, por outro lado, a parte
incômoda ou obscura desse objeto – a ‘parte maldita’, como mais tarde a chamaria Bataille –,
aquela que não cabe nas relações de identidade.
À poesia – à linguagem literária e às artes em geral – caberia, por outro lado, a
exploração dessa parte maldita – no ponto em que se começa a inferir a relação íntima que, para
o escritor, a literatura mantém com o mal.
Leitor de Freud, Bataille apreendeu dessas leituras que o recalque é o preço que se paga
pela racionalidade. Não obstante, como o monstro debaixo da cama, a dimensão desse “resto”
desprezado persiste como resíduo nada desprezível – e que retorna. Chamado por Freud de
inconsciente, trata-se da fonte do generalizado sentimento de mal-estar, e isso a despeito de
quaisquer progressos, da lucidez – não obstante sempre parcial – que possa resultar do método
científico.

33
(NIETZSCHE. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2005, p.219-220). Em Nietzsche, como sabemos, as
fronteiras entre o filosófico e o criativo (o literário) são assumidamente difíceis de estabelecer. A criação por ele
de uma nova forma – a do fragmento – é concomitante a essa nova atitude, que poderíamos, também, chamar de
‘materialista’, diante do saber. Nela refuta-se veementemente tanto a representação como princípio, quanto a
interpretação exegética como método. O fragmento nietzschiano, a um só tempo, constitui a forma de determinado
tema ou pensamento, mas essa própria forma é rasgada, é informe, e o sentido escapa por esse rasgo. Em seus
escritos avançados, a forma nietzschiana do fragmento dificilmente se fecha em um significado e quase sempre é
uma passagem de sentido.
34
BATAILLE. 1994, p.98
19

Diferentemente de seus pares, os artistas surrealistas, Bataille não extraiu da leitura dos
textos de Freud a noção de que o inconsciente deveria ser abordado como se tivesse uma
estrutura apreensível ou uma substancialidade harmônica, ainda que oculta, como se fosse
portador de uma verdade metafórica a que se tem acesso por vias indiretas. Ao contrário, para
ele o inconsciente encontra-se na expressão da experiência imediata junto a cada forma, nos
pontos em que a forma resta, se deforma, ou seja, como uma espécie de propriedade colada na
experiência possível que se tem de cada corpo, de cada objeto.
O inconsciente desde então é dado como uma erótica, no sentido que se manifesta
somente a partir de uma relação. Abandonam-se as referências de um sujeito que domina um
objeto em favor da noção de um corpo que entra em relação com uma forma em seu ponto de
deformação, no ponto em que cada um dos lados da relação deixa de ser idêntico a si mesmo e
passam a se “contaminar” mutuamente. É o ponto também em que a angústia se manifesta como
consequência desse não-saber mútuo e que faz o corpo falar, transpondo o não-saber em
linguagem, em poesia, em arte.
A antipoética de Bataille pode ser lida, assim, como um convite aos poetas abandonarem
o “mundo das ideias” platônico e retornarem ao mundo das formas, retomando a problemática
de determinados valores contemporâneos. O que se afirma por essas vias apresentadas por
Bataille é que o problema da violência do consumo em nossos dias, por exemplo, pode ser
transposto ao plano de nossas atitudes estéticas.
Podemos considerar, por exemplo, a cultura contemporânea, em padrões abertamente
pornográficos, fez do ímpeto de isolar o aspecto sublime de determinadas formas um valor,
reduzindo essas formas à condição de objetos na medida em que seu usufruto está ligado ao
consumo desse valor. A voracidade nas relações de consumo e descarte de objetos – que pode
ser lida como um desdobramento do ‘princípio do prazer’ analisado por Freud – depende de
que cada objeto estético (ou afetivo), por uma operação de destruição do desejo, esteja
esvaziado de seu elemento de angústia, ou seja, de seu elemento de sedução. Por aí seria
possível concluir que o sentimento generalizado de superficialidade nas relações subjetivas e
sociais talvez não seja mais do que um efeito colateral do uso de nossas faculdades racionais.
Seria o caso, então, de sustentarmos que há uma dimensão ética no erotismo. Se a
pornografia é hoje o estado da arte, não exatamente do conteúdo do que é consumido, mas
sobretudo da forma como se consome (onde estão incluídas também as relações de afeto na
contemporaneidade), então, de igual modo, a erótica de Bataille traduziria uma forma outra de
relação do sujeito com seus objetos de afeito, de consumo, de estudo etc.
20

Assim, por mais que possa parecer contraditório, há no ‘antropomorfismo dilacerado’


de Bataille uma vontade, ou uma ética pautada na integridade. Diríamos a seu respeito o mesmo
que ele considerou a respeito de Nietzsche:

O pensamento de Nietzsche é inteiramente tensionado em direção à


integridade do homem. É por rejeitar a fragmentação – a honesta atividade
limitada, provida de um sentido – que ele leva a tão perigosos desfalecimentos.
Deus cessando de distribuir a cada homem sua tarefa, um homem deve
assumir a tarefa de Deus: o qual, não podendo de modo algum se limitar, perde
até mesmo a sombra de um “sentido”... Nietzsche não podia isolar problemas.
[...] Essa experiência, como a moral liberada de qualquer fim a servir, é por
isso mesmo uma experiência moral: escalando os cimos do mal e do riso –
feita das desconcertantes liberdades do não-sentido e de uma glória vazia.35

Neste capítulo, procuraremos nos aprofundar um pouco mais no método de Bataille e


demonstrar que, a exemplo de Freud, seu pensamento nos dá meios para explorar o inesgotável
continente do desconhecido, aquele que permanece à sombra do pensamento racional e dos
saberes conscientes.
Procuraremos colocar também em evidência que, a exemplo de Sade, a escrita de
Bataille considera no ponto extremo a questão da beleza como um paradoxo: aquilo que mais
nos encanta em igual medida nos angustia, sendo as lágrimas o mais perfeito significante desse
paradoxo36. À diferença de uma atitude estética convencional, cujo esforço é o de recortar e
isolar o que quer que determinado objeto possa realizar de sublime, a escrita de Bataille será
abordada como questão que traduz a impossibilidade de o sublime existir sem comunicação
com aquilo que lhe é mais baixo e vulgar. Nessa direção, analisaremos a erótica tanto do texto
quanto do objeto escolhido por Bataille para o ensaio literário ‘O Dedão do Pé’ que escreveu
para a revista Documents, em que a ambiguidade do desejo (sedução e repulsa) parece ser mais
gritante.

1.2 O dedão do pé

Eis o resumo desse ensaio literário, segundo seu autor:

O sentido deste artigo repousa numa insistência que é pôr direta e


explicitamente em causa aquilo que seduz sem levar em conta a cozinha

35
BATAILLE. Sobre Nietzsche, p.281.
36
A esse respeito ver As lágrimas de Eros (Bataille, 1961).
21

poética que só é, em definitivo, um desvio (a maior parte dos seres humanos


é por natureza débil e só pode abandonar-se aos seus instintos na penumbra
poética). Um regresso à realidade não implica nenhuma nova aceitação, mas
quer isto dizer que somos seduzidos baixamente, sem transposição e até ao
grito, arregalando os olhos: arregalando-os assim, perante um dedo grande do
pé.37

O recorte metonímico que Bataille propõe ao dedão do pé é porque nesse significante


se inscreve o paradoxo integral do desejo (dos sentidos da repulsa e da sedução afirmados ou
conjugados ao mesmo tempo). Isso é, o desejo – quando considerado honestamente e sem
desvios idealistas (a partir de um regresso à realidade, como ele escreve) – será essencialmente
escandaloso, grosseiramente material, sem admitir transposições de qualquer natureza.
Sublimar ou considerar tal objeto somente do ponto de vista de sua difícil dignidade ou elevação
significaria ignorar a noção de que, mesmo em uma parte tão pequena e desprezível do corpo
humano quanto essa, o sentido se inscreverá sempre de maneira móvel, erótica, paradoxal.
Se seguimos a análise do objeto tomado em sua dimensão do ‘informe’, então é preciso
considerá-lo em sua totalidade. Há, a princípio, um recorte anatômico e físico para esse objeto:
o dedão do pé é o índice do contato do corpo humano diretamente com a poeira e sujeira do
chão e com as coisas que apodrecem na terra. Ainda, do ponto de vista da harmonia anatômica,
a conformação desajustada dessa parte do corpo em relação às demais é agravada, como escreve
Bataille no ensaio, pela deformidade física de seus calos e joanetes. Não será por acaso então
que o dedão tem na idiotia um de seus primeiros significados. Trata-se de um significante cujos
primeiros significados estão aí a inspirar o devido desprezo de nossa espécie.
Ainda do ponto de vista anatômico, o dedão do pé está em flagrante contraste com o
outro extremo do corpo, a cabeça – lugar nobre, alto e arejado do mundo das ideias –, coisa que
só pode alimentar ainda mais o valor desprezível daquela parte rebaixada do corpo humano.
Mas é aqui que se começa a intuir a mobilidade do sentido: sem dúvida é preciso considerar
também que a elevação humana somente se encontra garantida numa postura ereta porque
sustentada por seu extremo inferior, aquele que está em contato imediato com a sujeira da terra:

A função do pé humano também é conferir uma base firme a esta ereção que
tanto orgulha o homem [...]. Porém, seja qual for o papel desempenhado pelo
pé na ereção, o homem, que tem a cabeça leve, ou seja, levantada em direção
ao céu e às coisas do céu, a pretexto de ter esse pé na lama olha-o como um
escarro.38

37
BATAILLE. 1994, p.50
38
Ibidem, p.45
22

O que quer dizer que seria absurdo considerar em si mesmo o valor de dignidade da
cabeça, tendo em vista que esse valor só pode estar assegurado pelo trabalho sujo realizado
pelos pés. Isso não significa, por outro lado, que seja possível elevar o dedão à dignidade da
cabeça em termos de uma equivalência de valor, pois seu valor de baixeza é apenas amenizado
pela função que realiza em relação ao outro extremo. Esse pequeno exercício de relação dos
sentidos da cabeça com o dedão ainda assim nada nos diz a respeito da capacidade perturbadora
de sedução desse último, já que, em todo caso, a cabeça – lugar aonde habita Deus e significante
da distinção de nossa espécie – permanece sendo valorada como o ponto aonde começa o corpo
humano.
Mas, ao dilacerar da figura humana o dedão do pé, Bataille transgride esse sentido
anatômico. Ele analisa essa parte em si mesma, destacada de todo o resto e independentemente
da cabeça. A transgressão operada, como veremos, não implica anular esse primeiro sentido
anatômico, mas localizar para ele a sua outra parte, o seu limite ou o seu ponto de deformação.
É como uma espécie de suplementação de sentido que, se não chega a ser antagônica a esse
primeiro sentido que atribuímos ao objeto, lhe é, em todo caso, paradoxal:

A parte mais humana do corpo do homem é o dedão do pé, no sentido em que


não há neste corpo outro elemento tão diferenciado do elemento que lhe
corresponde no macaco antropoide (chimpanzé, gorila, orangotango ou
gibão). Deve-se isto ao fato de o macaco ser arborícola enquanto o homem se
desloca no chão sem se agarrar a ramos, ele próprio transformado em árvore,
quer dizer, elevando-se direito no ar como uma árvore, e tanto mais belo
quanto mais correta for a ereção. 39

O eixo de sustentação do materialismo de Bataille, portanto, é este que aparece no trecho


acima: o de que o mundo das formas é o mundo das ideias. Em cada forma está inscrita, a partir
da leitura de seus muitos sentidos, a sua ideia. A forma chata de toda a sola do pé e o
alinhamento harmônico do dedão aos demais dedos são traços diferenciais primários de nossa
espécie. Olhando-os, recortado esse significante, ainda que todo o resto do corpo seja ignorado,
sabe-se, inconscientemente, que quem possui tais marcas só pode ser um ser de postura ereta.
Essa é a natureza do desejo provocador que esse significante exerce no imaginário
humano e que reflete, aliás, o paradoxo de todos os objetos de desejo: o de que “somos
seduzidos baixamente”, como escreve Bataille. Trata-se, sem dúvida, de um elemento de
sedução primário. Mas há nesse elemento um saber inconsciente e primário, um saber que os
olhos dificilmente poderiam recusar.

39
Ibidem, p.45
23

Pois nesse segundo movimento, em que somos levados a pensar o pé como um


significante em si, independente das relações que estabelece com a cabeça, percebemos que o
próprio significante traz as marcas do paradoxo: o alto e o baixo ao mesmo tempo, a repulsa e
a sedução sustentadas por um único significante e que, por esse motivo, é escolhido por Bataille
como expressão do que poderíamos chamar de “a forma informe do desejo”.
O dedão do pé é colocado em causa como aquilo que seduz e eis o que aparece. Seu
primeiro sentido é fundamentalmente neurótico: visto de cima para baixo, isto é, da
sobreposição do tempo presente para o tempo passado, o dedão do pé é uma visão que repugna
com violência porque remete à infância primitiva da humanidade, isto é, à proximidade –
desconfortável demais para os nossos olhos de hoje – com a imundície da terra: com a
animalidade que, há muito custo e com muito empenho, desejaríamos que permanecesse
recalcada.
O segundo sentido é dialético. Quando comparado à cabeça, a partir da orientação de
nossa postura, o dedão permanece sendo o signo de uma oposição extremada a tudo o que é
elevado no humano. No entanto, essa mesma postura não poderia estar assegurada senão pela
função valiosa que o pé exerce nessa hierarquia. Aceita-se o pé por seu valor utilitário, como
um compromisso de conciliação do presente com o passado, de uma animalidade que se permite
que desponte aqui e ali, desde que, em benefício da dignidade da cabeça, mantenha a civilização
em pé.
O terceiro sentido é erótico: nele o dedão é visto de baixo para cima, passa a ser, como
escreve Bataille, “a parte mais humana do corpo” e a cabeça, deixando de ter qualquer função
erótica, pode ser decepada sem prejuízo para essa figura humana. A própria forma do dedão é
reveladora do paradoxo desse corpo informe, inscrito em dois tempos simultaneamente, em que
a elevação estará garantida somente se e quanto mais baixo se for. É este o ponto da angústia
e da sedução.

***

É evidente que um ensaio que tem por objeto o dedão do pé não poderia tomar-se
seriamente de pretensões filosóficas e científicas. Como escritor, também é evidente que não
interessava a Bataille, por meio desse ensaio, alcançar uma verdade acerca do referido objeto,
24

tanto quanto seu desejo era simplesmente o de explorá-lo em suas inusitadas possibilidades de
sentido. Esses sentidos são, assim, revelados por uma forma exploratória de discurso que não
nega suas afinidades com o mito e a ficção.
Como no caso do ‘mito de Édipo’, o Oedipus, expressão que em grego significa “o de
pés inchados”, o antropomorfismo dilacerado de Bataille retoma para o corpo humano a
condição mítica do enigma que se apresenta para si mesmo. Trata-se, com efeito, de um enigma
muito próximo àquele proposto a Édipo pela Esfinge: “Existe um ser que tem dois pés e quatro
pés para o qual só há um nome. E três pés. É o único a mudar sua natureza entre tudo o que
nasce que anda na terra ou no ar ou no mar. Seu corpo é mais frágil quanto mais pés ele tem.”40
O enigma parece ser ainda mais impenetrável quando se percebe que, nessa tradução
direta do grego, estão suprimidos os jogos do “ser que, de manhã, tem quatro patas, de tarde
tem duas e de noite tem três”. Pois na versão do enigma da Esfinge apresentada mais acima, os
tempos existem e se inscrevem simultaneamente no mesmo ser cuja natureza é destacada, não
como constituindo uma essência, mas como algo que está em trânsito. Além disso, a referência
completamente estranha e atravessada que aparece em “E três pés” aponta para uma forma (ou
seria melhor dizer, para um informe) que procura se manter de pé entre dois tempos
desconhecidos: o do super-homem nietzschiano e aquele perdido da infância primitiva do ser
humano:

O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda


sobre um abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o
perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande, no
homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma
transição e um ocaso.41

No trecho destacado mais acima, Bataille apresentava o humano como o animal que
deixara de subir em árvores para, ele próprio, se transformar em árvore, e apontava no pé, “a
parte mais humana do corpo do homem”, o índice dessa condição de uma forma ou de um corpo
paradoxal. Nesse ponto ele parece retomar outra das bonitas figuras propostas por Nietzsche:
“[...] passa-se com o homem o mesmo que com a árvore. Quanto mais quer crescer para o alto
e para a claridade, tanto mais suas raízes tendem para a terra, para baixo, para a treva, para a
profundeza – para o mal”. 42

40
É essa a tradução literal e direta do grego do enigma da Esfinge que Antonio Quinet oferece em seu livro Édipo
ao Pé da Letra – fragmentos de tragédia e psicanálise (2015). Analisaremos de maneira mais detida as relações
do mito de Édipo com a escrita de Bataille no próximo capítulo.
41
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p.31
42
Ibidem, p.59
25

Nietzsche acredita que a exclusão da “parte maldita” somente impede a árvore de


alcançar o cume de suas possibilidades. Há neste pensamento uma provocação antifilosófica
por excelência (antianalítica) – ou, se fosse o caso de dizê-lo, tratar-se-ia de uma filosofia na
alcova –, que, por um lado, coloca em evidência a fragilidade da metafísica e o recalque
implicados pelo pensamento racional (“o homem será tanto mais humano quanto mais afastar-
se de sua animalidade”) e, por outro, inscreve de maneira afirmativa e paradoxal as bases do
erotismo.
À árvore fragilizada e que eventualmente cai quando amputada de suas raízes, equivale
o corpo humano, adoecido em suas possibilidades quando dá as costas à dimensão do
inconsciente. Por outro lado, o “pensar com os pés” batailliano consiste em terminante recusa
ao pensamento que se limite ao recalque. A escrita de Bataille, assim como a de Nietzsche,
dispensa toda cabeça que se nega à proximidade com a treva, com a profundeza, com o mal e
propõe que o movimento do informe humano – da forma humana que não é parada, mas trânsito
porque inacabada – só pode se dar se for nos dois sentidos simultaneamente: quanto mais
profunda, tanto mais elevada – proposição também ilustrada por este fragmento de A Gaia
Ciência:

Nós, os incompreensíveis — [...]. Crescemos como a árvore cresce – algo


difícil de compreender, como toda e qualquer vida! – não cresceremos apenas
em um só lugar, mas por todos os lados, não em um sentido, mas em todos ao
mesmo tempo, em cima, em baixo, dentro, fora, a nossa força cresce ao mesmo
tempo no tronco, nos ramos e nas raízes, já não temos liberdade de fazer nada
separadamente, de ser nada separadamente...43

É por isso que podemos dizer que a estética de Bataille é uma erótica: porque não apenas
parte das formas como também as solicita em sua transição, no ponto em que perdem a
sustentação, a identidade que mantinham consigo mesmas – isto é, no ponto de sua
metamorfose. O que há de realmente propositivo no ‘antropomorfismo dilacerado’ de Bataille
é que ele – ao situar o corpo humano no cume do grito de Zaratustra: “alguma coisa de mais
elevado que toda reconciliação!” – aposta mais no valor do deslocamento perpétuo dos sentidos
desse corpo do que em sua estanque interpretação.

43
Idem. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2005, p.219
26

1.3 Heterologia

O texto ‘Definição de Heterologia’ (1930) foi originalmente planejado por Bataille para
ser uma das partes de um ensaio em que o escritor daria continuidade ao projeto iniciado com
a revista Documents. Permaneceu, todavia, inacabado e ainda não publicado44. A partir desse
texto, sob forte influência da descoberta do inconsciente pela psicanálise, Bataille teve a
expectativa de lançar luz com a sua “ciência da heterogeneidade” sobre os domínios
frequentemente recalcados pela conceituação idealista do método científico tradicional. Eis as
definições mais importantes que constam nesse texto:

Heterologia é a ciência do heterogêneo, o que quer dizer, a ciência da parte


excluída (ou ao menos do modo de exclusão que cria essa parte). Está baseada
no fato de que os elementos da vida humana podem ser divididos em duas
classes, cada qual, em relação à outra, é caracterizada pela absoluta
heterogeneidade. A categoria heterogênea inclui não apenas os elementos
sagrados, sejam eles sociais ou associais, mas também os elementos que
despertam a vida erótica e, de uma maneira geral, todos os objetos que causam
repulsa. Em adição à sua heterogeneidade em relação aos domínios da
atividade prática e da racionalidade, essa categoria é caracterizada pela forte
polarização de seus elementos, ou seja, via de regra, é possível discernir nela
um fluxo duplo de atração e repulsão, cujo resultado é expresso pela separação
dos elementos altos, puros e nobres do que é chão e vil. [...]. O objeto da
heterologia é igualmente a definição e o estudo de suas partes práticas e
homogêneas. Isso porque ela precisa estabelecer as leis que caracterizam a
relação entre o desenvolvimento polarizado dos fatos heterogêneos e o
desenvolvimento contínuo das formas das partes práticas [...]. Isso também se
deve ao fato de que as partes homogêneas em si apresentam um conjunto
fracamente polarizado, e porque a análise de suas formas compostas revela a
existência de constituintes heterogêneos em um estado neutralizado.

Assim, nesse pequeno texto, Bataille aponta as diretrizes para a criação de uma ciência
paradoxal, cujo intento seria o de promover a abertura dos sentidos que são irredutíveis ao
pensamento racional analítico. Por meio da heterologia, o escritor almejou propor um método
que, em desafio ao idealismo homogeneizante e abstrato, pudesse alcançar o conhecimento mais
íntegro possível de seus objetos.
É claro que ao atribuir à heterologia esse caráter de ciência paradoxal, o escritor já
reconhecia de antemão que tal conhecimento mais íntegro possível dos objetos do desejo estava

44
Esse texto é um dos que se encontra depositado no Departamento de Manuscritos da Biblioteca Nacional da
França (Box 13C, 85-101) e pode também ser acessado pelo link
https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0263276418790349
27

fadado à impossibilidade, ao informe, no ponto em que esses próprios textos da revista


Documents já tangenciavam as afinidades do discurso antropológico com a linguagem poética.
Nessa definição constam ainda os eixos fundamentais do desenvolvimento posterior da
escrita de Bataille, a saber, as noções de despesa improdutiva e a investigação das relações entre
o sagrado e o profano (aqui em referência ao fluxo duplo, fortemente polarizado, de atração e
repulsão) em cada objeto erótico – em cada objeto do desejo –, para além do olhar utilitário da
ciência moderna, que só seria capaz de alcançar tais objetos em sua dimensão profana.
A exemplo do recorte dado pelo próprio Bataille no artigo ‘O Dedão do Pé’, podemos
ilustrar o procedimento heterológico do escritor ao observar que o objeto é abordado tanto em
sua dimensão profana (o pé em oposição à cabeça, o pé útil, que serve para sustentar a ereção
do corpo) quanto em sua dimensão sagrada (o pé erótico, que repugna e seduz, que traz em si
as marcas diferenciais de nossa espécie).
Em relação à dimensão do profano, um aspecto importante dessa definição é o de que a
heterologia deve englobar também o estudo das partes “práticas e homogêneas” do objeto,
explorando a relação de sentido “fracamente polarizada” que se estabelece entre diferentes
partes (do pé em relação à cabeça, por exemplo). Essa relação de sentido “fracamente
polarizada” é o que Bataille chama de “desenvolvimento contínuo”, característica da dimensão
profana, utilitária de determinado objeto.
Do ponto de vista da análise do objeto em sua dimensão sagrada, revela-se não a
continuidade, mas a existência de estados heterogêneos, descontínuos entre si. Afinal, entre o
aspecto desprezível do dedão do pé e o de sua sedução, há uma fenda, uma descontinuidade
absoluta que não pode ser suprida, uma descontinuidade para a qual as únicas respostas são a
angústia e a escrita poética, literária – que, de resto, não servem e, se servem certamente não o
fazem para suprir o que quer que seja.
Na dimensão sagrada, o dedão do pé é, a um só tempo, nobre e ignóbil. A fenda entre
um e outro desses aspectos não pode ser interpretada do ponto de vista lógico e analítico (trata-
se, afinal, de um paradoxo), e nem pode esse significante ser reduzido a uma significação
menor. Mas, se procuramos as afinidades entre a escrita e a atividade erótica, é precisamente
por serem irredutíveis e fortemente polarizados que tais objetos do desejo engendram um
poderoso processo de significação, isso é, de produção de significados.
Quanto a isso, Roland Barthes foi particularmente sensível ao tipo de saber que esses
dois textos – ‘O Dedão do Pé’ e ‘Definição de Heterologia’ – traziam para a crítica literária,
posteriormente desdobrados em dois de seus escritos: ‘As saídas do texto’ (1972) e ‘O prazer
28

do texto’ (1973). Como veremos, uma certa concepção de textualidade que emerge dos escritos
de Bataille parece ter encontrado correspondência com aquilo que Barthes daria o nome de
escritura e que, mais tarde, ele aproximaria da noção de textos de gozo.
No primeiro desses textos, Barthes observa que

Bataille levanta a questão do começo num ponto onde nunca havia sido
levantada: onde começa o corpo humano? [...]. Isso coloca a questão do
sentido do corpo (não esqueçamos que – ambiguidade preciosa – sentido quer
dizer ao mesmo tempo significação e vetorização). 45

De fato, na textualidade de Bataille, o sentido é tomado como uma questão: o “percurso” do


sentido dentro de determinada forma ou estrutura textual. Trata-se de importante aporte à crítica
literária explorar a noção de sentido não apenas como significação, mas também desse ponto
de vista da vetorização.
Na prática da textualidade batailliana, é nítido como a vetorização – ou seja, as relações
de deslocamento entre o alto e o baixo – determinará a significação e o valor que um objeto
possa ter. Na prática, também, ao trabalhar o sentido nessas duas dimensões de significação e
de vetorização, demonstra-se que é a vetorização que produz a significação.
Assim, por exemplo, se em determinada estrutura textual há um único sentido, a forma,
evidentemente, será homogênea e linear. Se há dois, e esses sentidos estão em oposição, então
o resultado dessa oposição será um objeto homogêneo também, porém dialético, acadêmico,
filosófico. No entanto, se esses sentidos que se contradizem passam a ser forçados por uma
fenda – por um elemento impossível interposto entre um e outro polo –, então eles entram numa
espécie de circularidade infinita, e o objeto que daí resulta deverá ser descrito como erótico,
poético, paradoxal.
Podemos considerar A metamorfose de Kafka como exemplo de uma estrutura paradoxal
desse tipo. Entre o desejo do protagonista e as expectativas antagônicas de sua família, aparece
a figura de um inseto, que é o “termo excêntrico, inaudito”, o termo irredutível e, ao mesmo
tempo, absolutamente outro em relação a ambas as partes. É possível dizer que jamais haverá
um desfecho para essa pequena fábula kafkiana, a despeito do ponto final que lhe foi dado por
seu autor.
Nesse caso, a intrusão de um termo enigmático e completamente fora de lugar dentro da
estrutura narrativa (a fenda) faz com que o sentido passe a circular entre as polaridades opostas,

45
BARTHES. As saídas do texto. In: O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.303
29

sem, no entanto, se deter em uma delas, sem também que uma dessas polaridades seja destruída
ou incorporada em favor da outra. Assim, mesmo morto ao final da narrativa, o inseto kafkiano
sobrevive à leitura46. O inseto é, precisamente, o termo cuja interpretação é impossível, diante
do qual não parece haver outro gesto cabível senão – aquele apontado por Barthes – de um certo
erguer de cabeça à sua leitura.
É por essas vias que, em ‘As saídas do texto’, Barthes questiona: “como fazer com que
o corpo fale?”47, “Pode-se fazer passar para o texto os códigos do saber (desse saber que diz
respeito ao corpo); pode-se levar em conta a doxa, a opinião das pessoas sobre o corpo”. E
Barthes acrescenta: “Há um terceiro meio a que Bataille recorre sistematicamente [...]” para
concluir na passagem seguinte que: “o sentido surge graças à intrusão de um valor: nobre e o
ignóbil (o alto e o baixo, a mão e o pé)”.48
Em ‘O Prazer do Texto’, Barthes desdobra essas considerações, ponderando que, na
construção do que ele chama de textos ou formas paradoxais (das formas que operam fora da
doxa, fora da região da harmonia e da linearidade do sentido), “há acordo estrutural entre as
formas contestantes e as formas contestadas”. Cita ainda o “materialismo inesperado” de
Bataille como expressão e sustentação dessa “subversão sutil” de uma textualidade que,
operando em oposição idealismo, “não se interessa diretamente pela destruição, [mas pela]
procura de um outro termo: um terceiro termo, que não seja, entretanto, um termo de síntese,
mas um termo excêntrico, inaudito”.49
O texto poético e paradoxal, portanto, é uma espécie de duplo ou de espelhamento dos
objetos do desejo, nos quais, pelo acordo estrutural entre polaridades opostas, a tensão
permanece de pé. O processo de produção de significados, chamado por Barthes de
‘significância’, ocorre por causa dessa estrutura em que o sentido circula livre e
ininterruptamente. A significância, na definição de Leyla Perrone-Moisés, é a “significação
circulante”, que “não tem ponto de partida nem ponto de chegada: ela circula disseminando
sentidos”.50 Em estruturas assim, o processo de produção de significados é vivo e, como
dissemos, tende ao infinito.
Essa lógica estrutural é a que Barthes desdobra dos textos de Bataille, a partir da relação
dos textos ‘Definição de Heterologia’ e ‘O Dedão do Pé’:

46
Não por acaso A Metamorfose, como de resto boa parte dos textos de Kafka, resulta na produção de incontáveis
artigos acadêmicos que tentam dar conta de seu mistério.
47
Ibidem, p.308
48
Ibidem, p.304
49
BARTHES. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.71
50
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. 3ªed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.41
30

A heterologia de Bataille consiste no seguinte: há contradição, paradigma


simples, canônico, entre os dois primeiros termos – nobre e ignóbil [...]; mas
o terceiro termo não é regular: baixo não é o termo neutro (nem nobre nem
ignóbil), tampouco o termo misto (nobre e ignóbil). É um termo independente,
pleno, excêntrico, irredutível: o termo da sedução fora da lei (estrutural). Por
dois títulos o baixo é efetivamente valor: por um lado, é aquilo que está fora
da autoridade; por outro, está preso ao paradigma alto/baixo, quer dizer, à
simulação de um sentido, de uma forma, e destarte frustra o em-si da matéria
[...].51

Ao incluir o termo ‘baixo’, Bataille estará nos domínios do ‘informe’ de seu objeto, naquele
ponto de deformação em que o dedão do pé, ao frustrar o “em-si da matéria” – isso é, no ponto
em que não pode ser interpretado – deixa de ser idêntico a si mesmo e passa a apontar para um
fora. Em seu aspecto de baixeza, ocorrerá a comunicação das qualidades profana e sagrada
desse objeto que, sem poder se ater a um desses extremos, será alçado à qualidade de objeto
erótico.
É por essas vias que, em O prazer do texto, Barthes indaga se “o texto tem uma forma
humana”, se “é uma figura, um anagrama do corpo?”. E responde: “sim, mas de nosso corpo
erótico”. Acrescenta ainda, como se estivesse se referindo aos pés, que “o prazer do texto é esse
momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas
ideias que eu”.52
Todos esses elementos deixam transparecer em que medida essas estruturas móveis de
sentido – atributo da linguagem poética a que podemos chamar também de ‘textos de gozo’ –
operam de maneira contrária ao fetiche e ao estereótipo. Na lógica de Bataille – do corpo tratado
como texto – e na lógica de Barthes – do texto elevado à dignidade do corpo erótico –,
manifesta-se um certo “princípio de instabilidade absoluta, que não respeita nada”53 e que, na
prática, faz vacilar as bases do texto pensado como representação ou como manifestação de
sentidos estanques.

1.4 Escritura

No prefácio de uma das edições da revista Documents, Michel Surya – consagrado


biógrafo do escritor – faz uma importante observação a respeito do método de Bataille:

51
BARTHES. 2004, p.309-310
52
BARTHES. 1987, p.25
53
Ibidem, p.58
31

Com uma espécie de curiosa intuição, [Bataille] também se revelou neste


campo [da etnologia] como o precursor de toda uma escola de etnólogos que
procuraram definir o ethos, quer dizer, a hierarquia dos valores sociais que
dão, a cada civilização, o seu valor próprio. [...]. A maneira de Georges
Bataille (talvez “maneira” seja melhor do que “método”), posta logo a
funcionar neste primeiro artigo importante, será dentro em pouco a dos seus
seguidores; um conhecimento apressadamente adquirido, graças a alguns
textos de referência, a algumas conversas, e um adendo, pelo menos um
adendo de caráter mais intuitivo que dedutivo, mais perspicaz do que lógico,
garantidamente pessoal (nascido de um jogo com a experiência feita em si
próprio), a maior parte das vezes um adendo singularmente desviado e, no
entanto, esclarecedor. [...].54

Em ‘As saídas do texto’, Barthes, por sua vez, observa que

O texto de Bataille ensina como devemos conduzir-nos com relação ao saber...


[...]. O saber é esmigalhado, pluralizado, como se o um saber fosse
continuamente levado a dividir-se em dois: a síntese fica trucada, eludida; o
saber fica presente, não destruído, mas deslocado; o seu novo lugar é –
segundo a palavra de Nietzsche – o de uma ficção [...]. O saber seria, em suma,
uma ficção interpretativa.55

Como se sabe, Bataille rejeitou veementemente a alcunha de filósofo. Seu método ou sua
“maneira”, como mostra Surya, além de pecar pela falta de rigor, procurava fazer desse desvio
uma virtude.
O escritor contrariava em seus escritos a orientação metafísica ao remeter todos os seus
conceitos à materialidade imediata do próprio corpo. Também desrespeitou os “direitos de
propriedade” ao se apropriar de textos e saberes outros, muitas vezes sem referenciá-los, e
dando a eles, inclusive, o recorte que considerava o mais adequado por um critério de sedução
a partir da escrita56. Acima de tudo, Bataille repudiou a imagem fria do intelectual como a do

54
BATAILLE, 1994, p.15
55
BARTHES, 2004, p.305-306
56
Nietzsche talvez dissesse de Bataille (e de si próprio) o que escreveu a respeito de Tales de Mileto: [ele] salta
com toda leveza: a esperança e o pressentimento lhe dão asas aos pés. [...]. O que leva, então, seu pensar a ter tanta
agilidade? Acaso diferencia-se do pensar calculante e comedido apenas por atravessar grandes distâncias com
maior agilidade? Não, pois o seu pé é erguido por um poder estranho e ilógico: a fantasia. Alçado por ela, ele salta
adiante, de possibilidade em possibilidade, que por ora toma por certezas: de vez em quando apanha realmente
alguma certeza durante o voo. Como um pressentimento genial, a fantasia indica ao pensar filosófico que é possível
adivinhar de longe que em certo ponto há certezas comprováveis. A força da fantasia é, porém, especialmente
poderosa na compreensão e na elucidação quase instantânea de semelhanças: a reflexão trará mais tarde suas trenas
e medidas e buscará substituir as semelhanças por igualdades, as contiguidades observadas por causalidades. Mas,
mesmo que isso não fosse jamais possível, [...] o filosofar incomprovável tem ainda algum valor; mesmo que todos
os apoios venham abaixo, [...] restará ainda alguma coisa após o desmantelamento do construto científico; e
32

distinto especialista, possuidor de um saber57. Seu texto, ao contrário, como aponta Surya,
distingue-se pela presença simultânea de muitos saberes, de muitos domínios, nenhum dos
quais, é preciso dizer, recebe o tratamento profundo, digno de uma ciência.
Aos saltos de Bataille, Barthes atribuiria a ação não de um filósofo, mas a de um joker,
alguém cuja “fala é duvidosa desde a origem”, mas também de um escritor, já que, por seu
estilo, ele se vê “envolvido na guerra das ficções (dos falares)” que acaba por constituir uma
linguagem, a sua própria linguagem, que “está sempre fora de lugar (atópica). 58 Bem ao gosto
da noção de “sabor com saber” da escritura barthesiana, o texto de Bataille suscita como questão
o fato de ser, em grande medida, inclassificável59.
Ainda acerca do estatuto ficcional que Barthes atribui ao método batailliano, é notável
que isso se refira não ao conteúdo do texto, mas sim de uma determinada maneira de abordar e
pensar a questão da textualidade. É notável também que, em O prazer do texto, o comentário
de Barthes acerca da literatura do marquês de Sade possa se ajustar tão bem a um pensamento
acerca da textualidade de Bataille: “o prazer da leitura vem evidentemente de certas rupturas
(ou de certas colisões): códigos antipáticos (o nobre e o trivial, por exemplo) entram em contato;
[...] mensagens pornográficas vêm moldar-se em frases tão puras que poderiam ser tomadas por
exemplos de gramática.”60
Em ‘O Dedão do Pé’, uma reflexão de caráter estético se desdobra em um plano em que
há diversas linguagens, diversos códigos e saberes (saber antropológico, histórico,
psicanalítico) sendo colocados em atrito. No melhor exemplo do procedimento literário, no
entanto, as referências a esses códigos são apagadas: elas desaparecem por debaixo da harmonia
da própria linguagem de Bataille. Lendo esse pequeno texto intui-se que há uma variedade de

exatamente nesse resto reside uma força impulsiva, assim como a esperança de um futuro frutífero. (NIETZSCHE.
A filosofia na era trágica dos gregos. Porto Alegre: L&PM, 2012., p.42-43)

57
É nesse ponto, e com notável ambiguidade, aliás, que Bataille mais se aproxima de Freud. Reproduz, por um
lado, os procedimentos da textualidade freudiana de convivência simultânea de muitos saberes “apressadamente
adquiridos”. Por outro, o próprio Bataille se apropria dos conteúdos e do saber de Freud sem, no entanto, prestar-
lhe o devido tributo, em relação às referências acadêmicas. Com efeito, ainda que a preocupação e o rigor
manifestados por Freud em seus textos para que a psicanálise não se descolasse da alcunha de um saber científico,
na prática de seus textos ele se aproximou muito disso que Barthes viria a chamar de ‘escritura’, ou de uma
textualidade situada em algum lugar entre a linguagem acadêmica e a literária. Ademais, é preciso considerar que,
mesmo sem ter tido consciência disso, o tratamento que Freud deu ao corpo é, essencialmente, o de uma ficção.
Isso em nada desmerece ou invalida o alcance de seu método e de suas conclusões, mas, em certo sentido, faz
reverberar a grande virada proposta por Lacan para a psicanálise: a de que o inconsciente – sem ser situável e sem
possuir a substancialidade de uma estrutura orgânica – é “estruturado como uma linguagem”.
58
BARTHES. 1987, p. 47-48
59
No capítulo seguinte, abordaremos a problemática apontada por Barthes quanto à questão de classificação da
novela História do Olho, de Bataille. Barthes prefere considerá-la um poema em prosa.
60
BARTHES. op. cit., p.11
33

códigos e saberes fervilhando por debaixo da superfície de uma linguagem elegante, sucinta e
aparentemente calma.
Ainda em ‘As saídas do texto’, Barthes reforça essa noção de que os paralelos do
procedimento batailliano com o da escrita ficcional são muitos. Seja pelo “atrito de códigos de
origens diversas, de estilos diversos”, seja por estar constantemente destituindo aquele que
escreve do imaginário de ser um especialista, seja ainda pela afirmação de uma espécie de
caminho de “desviamento do saber”, a “caça ao fato etnológico”61 (que é como Barthes resume
o procedimento escritural de Bataille) se aproxima, segundo ele, do esforço que realiza um
escritor na preparação de seu romance.
É sobretudo pela exploração do saber etnológico em vistas a um saber outro que Barthes
identifica também, no texto de Bataille, a convivência simultânea de tempos distintos:
“Determinada forma do presente é depreciada, determinada forma do passado exaltada; nem
esse presente, nem esse passado serão, para dizer a verdade, históricos; ambos se leem segundo
o movimento ambíguo [...] de uma saudade progressista.”62 É essa inflexão temporal que,
segundo a leitura de Barthes, faz com que o texto de Bataille esteja investido de um
problemática do valor e de um movimento de crítica.
Por um lado, a escolha do significante ‘pé’ não teria sido casual: ela teria o intuito de
colocar em evidência o problema de achatamento de valores como crítica que o escritor dirigia
à sociedade de seu tempo. Por outro lado, por meio da etnologia, ele realiza um procedimento
de retorno ao passado, aos valores primitivos, para trazer à tona as bases sobre as quais esse
achatamento se deu. Mas essa crítica, na condição de uma “saudade progressista” – a exemplo
do olhar que Nietzsche dirigiu ao mundo trágico grego – não seria gratuita, nem saudosista ou
reacionária: ela estaria destinada à proposição de uma ética fundada em novos valores, ou, em
termos de nietzschianos, à proposição de valores do futuro.
Por fim, de volta ao Prazer do texto, a noção de uma erótica do texto é considerada
também em sua dimensão política:

Duas margens são traçadas: uma margem sensata, conforme, plagiária (trata-
se de copiar a língua em seu estado canônico, tal como foi fixada pela escola,
pelo uso correto, pela leitura, pela cultura), e uma outra margem, móvel, vazia
(apta a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar
de seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem. Estas duas margens, o
compromisso que elas encenam, são necessárias. Nem a cultura nem a sua

61
Ibidem, p.302-303
62
Idem, 2004, p.301
34

destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra que se torna erótica. O
prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível [...].63

Barthes antecipa nesse ponto um dos principais temas que aprofundaria em sua Aula
(1977), qual seja, a propriedade que os textos de natureza literária têm de se manterem fora do
alcance de qualquer ideologia. Segundo ele, essa “capacidade” da escritura não se daria por
uma identificação do texto literário com uma ideologia dominada, em contraposição a uma
ideologia dominante, nem por um exercício voluntarioso do escritor de se colocar à parte do
universo da cultura e da contracultura. 64 O desenvolvimento que Barthes faz a esse respeito é
muito importante porque ele demonstra que ‘estar fora da ideologia’, ou melhor, constituir-se
enquanto discurso anti-ideológico é consequência da forma e não do conteúdo dos textos.
A linguagem, nesses casos, que não se dirige e nem prega a destruição de nenhuma das
duas margens, desdobra-se somente no movimento de uma em direção à outra. No caso de
Bataille, ele recupera linguagens e códigos canônicos – saberes elevados e, em geral fechados
em si mesmos – e os traz ao ponto mais rebaixado pelos saberes da cultura. A questão
barthesiana do “saber com sabor” reaparece nos textos de Bataille com toda força em termos
dessa alternância, em ritmo amoroso, da ciência com o valor, que se desliga do terreno da
verdade para propor o fecundo campo da poesia, da significância, que, segundo Barthes, é “o
sentido na medida em que é produzido sensualmente”. 65
A linguagem de Bataille se mantém, assim, na tensão entre o civilizado e o primitivo,
sendo impossível, no entanto, lhe situar um pensamento que não seja absolutamente crítico em
relação ao homem contemporâneo ou, a qualquer momento, acreditar que, em seu texto, se trata
de apologia ao retorno a determinado estado de animalidade. O fato humano, por seu flagrante
inacabamento, está, aos olhos de Bataille, situado na fenda impossível entre a civilização e a
animalidade. De forma que o olho – a “guloseima canibal” escrita por Bataille – revela a fenda
como a condição mais essencial da coisa humana: condenada, desde a gênese, ao trânsito e ao
paradoxo.
Tais entrelaçamentos nos permitem ver claramente, seguindo a orientação de Barthes,
por quais caminhos podemos abordar um texto como anagrama do corpo humano e, em sentido
inverso, podemos também recortar um corpo erótico para tecermos, a partir dele, o nosso
próprio processo de significação. Prossigamos, então, pela difamada História do Olho.

63
Idem, 1987, p.11-12
64
Segundo Barthes, aliás, o termo ‘ideologia dominada’ é vazio de sentido, já que, por definição (Marx) qualquer
ideologia só pode ser ideologia dominante.
65
Ibidem, p.79
35

CAPÍTULO 2: HISTÓRIA DO OLHO

Se o homem não fechasse soberanamente os olhos, ele


acabaria por não ver mais o que vale a pena ser olhado.
(BATAILLE)

Esse pensamento, do qual tudo até o presente nos


desviou, mas como para nos conduzir ao seu retorno, de
que possibilidade ele nos vem, de que impossibilidade ele
sustenta para nós sua insistência? (FOUCAULT)

Curvo é o caminho da eternidade. (ZARATUSTRA)

2.1 Introdução

É verdade que, quando contemplado em sua anatomia externa, o olho humano, da íris à
pupila, guarda estranha semelhança com um objeto celestial. Reciprocamente, esse objeto –
cujo nome é nebulosa planetária – remete ao olho humano não apenas em sua forma delimitada
por diferentes matizes e intensidades nas cores espectrais, mas também por seu sentido oculto,
ligado à morte66. Mesmo na fria linguagem científica pode haver vislumbres poéticos quando
se afirma, por exemplo, que uma nebulosa planetária é o último suspiro de uma estrela gigante,
um grito agônico de rara beleza no espaço, uma última dança antes do colapso.
Afirma-se também que – a depender das dimensões dessa estrela – a morte do astro não
será ainda seu ato final, podendo vir a dar à luz a um buraco negro, objeto enigmático e ainda
mais mórbido que a nebulosa que lhe deu origem. Nesses casos, como também acontece na
profunda obscuridade da pupila, nem mesmo algo tão instantâneo quanto a luz é capaz de passar
sem desvios, evento que provoca distorções tão absurdas no tempo e no espaço que, é preciso
reconhecer, o olho humano jamais será capaz de dar testemunho – ao menos nenhum
testemunho digno da linguagem científica – do que se passa do outro lado.
No campo do impossível, diz-se que, ao adentrarem num buraco negro, as leis da física,
que de resto é a linguagem que descreve a relação de tudo o que é conhecido pelo olho humano,
se tornam completamente outras, violentamente insólitas, ao ponto que, dissolvido pelo peso
esmagador dessa singularidade, o conhecimento não teria outra escolha senão entregar-se ao
êxtase de seu não-saber.

66
Ver APÊNDICE 3
36

Michel Foucault, confrontado pela linguagem dos textos de Bataille, compreendeu que
ali operava um mecanismo dessas proporções; que, nesse caso, a literatura funcionava como
registro de uma linguagem sendo distorcida, porque fora jogada dentro – ou, como um dejeto,
expelida para fora da dobra – de um imenso buraco negro deixado pela morte de Deus. Foucault
escreve em seu ‘Prefácio à Transgressão’:

Assim, essa linguagem de rochedos, essa linguagem incontornável para a qual


ruptura, escarpa, perfil rasgado são essenciais é uma linguagem circular que
remete a si própria e se fecha sobre um questionamento de seus limites – como
se ela não fosse nada mais do que um pequeno globo noturno de onde jorra
uma estranha luz, designando o vazio de onde ela vem e enviando-lhe
fatalmente tudo o que ela clareia e toca. Talvez essa configuração estranha
seja o que ela clareia e toca. Talvez essa configuração estranha seja o que dá
ao Olho o prestígio obstinado que Bataille lhe conferiu. [...]. É que o olho,
pequeno globo branco fechado sobre sua noite, desenha o círculo de um limite
que só a irrupção do olhar transpõe. E sua obscuridade interior, seu núcleo
sombrio se derramam sobre o mundo em uma fonte que vê, isto é, que clareia;
mas se pode também dizer que ele recolhe toda a luz do mundo sobre a
pequena mancha negra da pupila e que, ali, ele a transforma na noite clara de
uma imagem. Ele é espelho e lâmpada [...]. Seu globo tem a expansão de um
germe maravilhoso – como a de um ovo que estourasse sobre si mesmo em
direção desse centro de noite e de extrema luz que ele é e que acaba de deixar
de ser. Ele é a figura do ser que não é senão a transgressão do seu próprio
limite.67

No que outrora já foi um vasto campo das experiências humanas possíveis, é sobretudo
nos terrenos da sexualidade e das artes que a transgressão ainda sobrevive como possibilidade
viável para a experiência criativa, isso é, para o tipo de experiência que ignora os
constrangimentos morais e que reconhece as regras do jogo, mas somente para transgredi-las.
Se, desde Freud, tornou-se ao menos mais fácil admitir o caráter essencialmente perverso da
sexualidade humana68, foi – como observa Foucault em seu ‘Prefácio’ – com Sade que a aliança
da linguagem com a sexualidade levantou o véu de seus fundamentos.

FOUCAULT. Prefácio à Transgressão. In. Ditos e Escritos vol. III, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006,
p.28-46
68
“Portanto, quando alguém se torna grosseira e manifestamente pervertido, seria mais correto dizer que
permaneceu como tal, pois exemplifica um estágio de inibição do desenvolvimento. Todos os psiconeuróticos são
pessoas de inclinações perversas fortemente acentuadas, mas recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu
desenvolvimento. [...]. As psiconeuroses são, por assim dizer, o negativo das perversões. Nos neuróticos, a
constituição sexual, na qual está contida a expressão da hereditariedade, atua em combinação com as influências
acidentais de sua vida que possam perturbar o desenvolvimento da sexualidade normal. O curso d’água que
encontra um obstáculo em seu leito reflui para leitos antigos que antes pareciam destinados a permanecer secos.
As forças impulsoras da formação dos sintomas histéricos não provêm apenas da sexualidade normal recalcada,
mas também das moções perversas inconscientes. (FREUD. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In. Obras
Completas e outros trabalhos, Vol. 6 (1901-1905). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.30)
37

“O que uma linguagem pode dizer a partir da sexualidade [...] é que ela é sem Deus: a
palavra que demos à sexualidade é contemporânea no tempo e na estrutura daquela pela qual
anunciamos a nós mesmos que Deus está morto.”69 Uma linguagem sem Deus é uma linguagem
sem referenciais, sem eixo, sem sustentação. A própria existência dessa linguagem passa a
depender então de seu movimento gravitacional: ela gira, não ao redor de um centro, mas em
torno do vácuo deixado pela morte de Deus.
A matemática repulsiva que Sade registra em Os 120 dias de Sodoma demonstra ainda
o caráter ilimitado desse movimento circular: ele é repetitivo, monótono, mas – em cada volta
que executa em torno do vazio – traz um novo elemento estranho às voltas anteriores. Segue,
assim, pela mesma lógica nietzschiana do eterno retorno da diferença, num movimento que,
virtualmente, constitui o registro e a forma do infinito.
De suas leituras de Sade, é perfeitamente possível que Bataille tenha apreendido essa
“moral da história sadiana”, que entende – conforme a observação de Foucault – que a
sexualidade e a linguagem, precisamente por serem campos abertos à transgressão, trazem
como exigência fundamental a forma circular, ou seja, a forma de uma repetição que dança ao
redor da morte, ao mesmo tempo em que é infinita, em termos de sua potência de significância.
O que a dança de Eros com a morte deixa ver é o fundo impossível da experiência, isto
é, o ponto em que a experiência possível deixa de ter um sentido (dir-se-á, por outras palavras,
que o sentido perde a linearidade, tornando-se circular) e passa a ser – ela mesma – o sentido a
ser afirmado; ponto em que, como escreve Bataille, a “experiência retirará a autoridade de si
mesma” e passará a estar ao lado da loucura (da perda da razão) e das experiências místicas. É
nesse ponto de circularidade que, para Bataille, a experiência será considerada soberana.
Em A experiência interior, ele escreve: “Do eterno retorno, imagino que Nietzsche teve
a experiência de uma forma verdadeiramente mística, em confusão com representações
discursivas, [...] num raro equilíbrio entre inteligência e a vida irracional”.70 Escreve ainda: “Se,
nessa febre, ele apreender alguma coisa, qualquer que seja, não poderá dizer: ‘eu vi isto, o que
vi é assim’; não poderá dizer: ‘vi Deus, o absoluto, ou o fundo dos mundos’; poderá dizer
apenas: ‘o que vi escapa ao entendimento’.71
Nas palavras de Foucault, “Bataille conhecia muito bem as possibilidades do
pensamento que essa morte [de Deus] podia abrir, e também a impossibilidade em que ela

69
FOUCAULT. op. cit., p.2
70
BATAILLE, G. A experiência interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953: Suma
Ateológica, vol. I. Tradução Fernando Scheibe. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, 1ª parte, III.
71
Ibidem, 1ª parte, I.
38

investia o pensamento”72. O próprio escritor traduziu assim a exigência que a morte de Deus
estabelecia em relação à necessidade de uma estrutura circular para a linguagem: “Se eu
dissesse decididamente: ‘vi Deus’, aquilo que vejo mudaria. Em vez do desconhecido
inconcebível [...] haveria um objeto morto e a coisa do teólogo – a que o desconhecido estaria
submetido [...].”; “[...] considero a apreensão de Deus [...] uma parada no movimento que nos
leva à apreensão mais obscura do desconhecido [...].”73
A análise de Foucault a respeito da literatura batailliana enxerga, assim, um novo
horizonte de potencialidades que se estabelece a partir do entrelaçamento intrínseco da
linguagem com o terreno do erotismo e que, aos giros, leva a consciência a se esfacelar contra
os seus próprios limites – em direção ao não-saber, em direção ao desconhecido.
Nesse novo horizonte, estabelece-se também a relação da linguagem com o
inconsciente. Isso não quer dizer que a literatura de Bataille nos dê uma imagem formada dos
domínios do inconsciente, mas que ela comunica o êxtase da experiência do não-saber a partir
de uma estrutura de linguagem que é circular, a partir dessa estrutura em que os sentidos giram
em torno do nada deixado pela morte de Deus.
É isso o que Foucault chama de “a linguagem da transgressão”. Ele anota que:

Não liberamos a sexualidade, mas a levamos, exatamente, ao limite, limite de


nossa consciência, já que ela dita finalmente a única leitura possível, para
nossa consciência, de nossa inconsciência: limite da lei, já que ela aparece
como a único conteúdo absolutamente universal do interdito; limite de nossa
linguagem: ela traça a linha de espuma do que é possível atingir exatamente
sobre a areia do silêncio. Não é, portanto, através dela que nos comunicamos
com o mundo ordenado e felizmente profano; ela é antes fissura: não em torno
de nós para nos isolar ou nos designar, mas para marcar o limite em nós e nos
delinear a nós mesmos como limite.74

Caso nos empenhássemos – a exemplo do dicionário crítico presente na revista


Documents – em apresentar uma definição para o significante ‘olho’ (que, como se sabe, é um
significante precioso para a escrita de Bataille), poderíamos, com exatidão, nos valer dessas
palavras de Foucault: o ‘olho’ é, pois, o que “marca o limite em nós e nos delineia a nós mesmos
como limite”.
Mais uma vez será preciso retomar o antropomorfismo dilacerado, aquilo que, em certo
sentido, havíamos considerado como sendo o método de Bataille e as observações que fizemos

72
FOUCAULT. op. cit., p.4
73
BATAILLE. op. cit., 1ª parte, I.
74
FOUCAULT. op. cit., p.1-2
39

a respeito desse método. A eleição do objeto ou da forma ‘olho’ não é metafórica, mas
metonímica: é mais uma parte, mais um significante recortado por Bataille que equivale ao
“todo” da condição humana, na medida em que esse “todo” retoma, paradoxalmente, sua
condição de inacabamento.
O argumento que desenvolveremos ao longo deste capítulo é este: o de que o olho é,
para Bataille, o significante do inacabamento humano: aquilo que em nós aponta o limite e, ao
mesmo tempo, para a transgressão do limite. É nesse sentido que esse significante aparece, para
o escritor, como uma espécie de convite à experiência: como um convite à transgressão da
condição humana, ao um mergulho extático na noite do não-saber.
Do ponto de vista daquilo que “marca em nós o limite”, olho humano inscreve-se como
significante de uma longa temporalidade referente à história, à civilização humana. Mas a
gênese do ser humano não se confunde com a longevidade da civilização: houve uma pré-
história, houve, portanto, uma outra humanidade. Sabemos, por meio da filogenia freudiana,
que as marcas dessa ancestralidade primitiva permanecem vivas no inconsciente do humano
atual – bem como as marcas do significante mestre que antecedeu olho nessa função. Como
veremos, para Bataille esse significante primitivo aparece na temporalidade mítica,
cosmológica de seu texto O Ânus Solar.
Já do ponto de vista do significante que “delineia a nós mesmos como limite” – a ser
transposto, o sentido da transgressão do olho, da imperiosa necessidade – que canta na parte
obscura do coração humano – de destruir o objeto da civilização, as referências a esse
movimento haviam aparecido antes, na estranha anunciação profética do Zaratustra de
Nietzsche e que, mais tarde, Bataille incorporaria em sua escrita.

O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda


sobre um abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o
perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande, no
homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma
transição e um ocaso.75

É verdade que o sentido nietzschiano do ‘super-homem’ permanece em grande medida


misterioso. O seu sentido mais evidente, em todo caso, é esse de superação. Nietzsche sempre
se referiu a esse movimento de superação pelas noções do “riso” e do “grande meio-dia”, ou
ainda como o ocaso que revelaria aquilo que “há de grande no homem”. Por tais termos jogados

75
NIETZSCHE, 1998, p.31
40

contra uma estética niilista, fica claro que tal movimento de superação de nenhuma forma
implica em um gozo mórbido de destruição gratuita.
Até naqueles casos mais exemplares trazidos pela literatura de Sade e mesmo de Bataille
– em que é inegável a presença desse gozo mórbido – será, portanto, preciso considerar que, se
a eventual superação de tudo aquilo que é humano, de toda forma de humanismo, se abrir à
possibilidade de derramar lágrimas, isso se dará porque essa destruição, longe de ser um fim
em si mesma, anuncia também um nascimento.
O movimento em direção a essa misteriosa temporalidade de um devir será apresentado
na obra de Bataille pelo significante do ‘olho pineal’, cuja abertura requer o sacrifício do olho
humano, demasiado humano – o sacrifício da civilização e do sentido normal da visão, que o
escritor somente pôde vislumbrar por meio da experiência interior, assim por ele traduzida:

Quando solicito docemente, bem no coração da angústia, uma estranha


absurdez, um olho se abre no topo, no meio do meu crânio. Esse olho que,
para contemplá-lo, em sua nudez, cara a cara, abre-se para o sol em toda sua
glória não é obra de minha razão: é um grito que me escapa. Pois, no momento
em que a fulguração me cega, sou o estilhaço de uma vida quebrada, e essa
vida – angústia e vertigem –, abrindo-se para um vazio infinito, dilacera-se e
se esgota de uma só vez nesse vazio. 76

2.2 Lord Auch, o Deus na latrina; os olhos furados de Édipo

As reminiscências do mito de Édipo na História do Olho de Bataille são inequívocas,


embora, em grande medida, misteriosas. A autoria da novela esteve sob a máscara de um
pseudônimo até a data em que, por fim, a morte do autor veio a retirá-la. Eliane Robert Moraes,
no artigo ‘Um olho sem rosto’, anota que:

Precisamente por realizar tal ampliação que o pseudônimo da História do olho


pode ser considerado uma máscara, sobretudo se levarmos em conta o
significado que o autor atribui a esse artifício. Para Bataille, as máscaras
representam “uma obscura encarnação do caos”: são formas “inorgânicas” que
se impõem aos rostos, não para ocultá-los, mas para acrescentar-lhes um
sentido profundo. Na qualidade de artifícios que se sobrepõem à face humana,
com o objetivo de torná-la inumana, essas representações “fazem de cada
forma noturna um espelho ameaçador do enigma insolúvel que o ser mortal
vislumbra diante de si mesmo”77

76
BATAILLE. op. cit., terceira parte.
77
ROBERT MORAES, Eliane. Um olho sem rosto. In.: BATAILLE. História do Olho. Trad. Eliane Robert
Moraes. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
41

É verdade que, mesmo revisitada inúmeras vezes, a leitura de História do Olho resiste
como a perfeita imagem de um enigma que, por ser tão significativo e, ao mesmo tempo,
densamente obscuro, é capaz de provocar em seus leitores o efeito análogo ao do arrebatamento
experimentado tantas vezes pelas personagens da novela. Não só o autor, mas a própria estrutura
do texto está investida por essa “face inorgânica”, por esse sentido profundo, inumano e caótico
que, como a máscara, resiste ao esforço de interpretação.
Ao leitor, a experiência com esse texto oferece-se como um empreendimento de risco,
que necessariamente retira a leitura da zona de conforto de alguém que queira tomar um livro
como um objeto em relação ao qual se possa tomar distância. Pois são páginas que se abrem à
aventura de exploração da fronteira limite tão estranha e, ao mesmo tempo, tão humana do
erotismo com a morte. Por meio de jogos avessos à lei e cujo risco em querer se aprofundar –
do leitor que tenha que olhar esse enigma por mais tempo – encontra paralelos na imagem que
ilustra o ato final da novela: a castração do olho humano, um olho que acaba sendo, literalmente,
devorado por uma fenda.
Para estabelecer as devidas relações entre o mito de Édipo e a História do Olho, partimos
do livro de Antonio Quinet Édipo ao pé da letra – fragmentos de tragédia e psicanálise, estudo
impressionante pela profundidade com que se debruça sobre os detalhes desse mito escrito por
Sófocles, em toda sua riqueza de significações ocultas. Desde o princípio, a tese de Quinet se
estabelece: Édipo é aquele que não quer saber. Talvez por isso Freud tenha acertadamente
tomado o personagem – ainda que, como demonstra Quinet, pelas razões equívocas – como
arquétipo da condição neurótica.
Édipo é aquele que não quer saber de seu inconsciente, o inconsciente que aparece
inscrito nas marcas de seu corpo e em seu próprio nome. A despeito da imagem do herói que
consulta oráculos e desvenda enigmas, Édipo é aquele que se satisfaz com meias respostas,
desde que essas verdades parciais lhe sirvam para seguir em frente e evitar a confrontação com
o maior de seus enigmas – o seu próprio desejo, o desejo por descobrir quem ele era.
Dentre as traduções possíveis para o nome Édipo, uma delas é ‘o de pés inchados’. Isso
significa, segundo Quinet, que

Édipo carrega um saber em seu pé. Óidipous pode ser traduzido ainda por Eu-
sei-do-pé. Encontramos em seu nome a condensação de oida (eu sei) e pou
(que, assim como seu correlato hopou, significa “onde”). A terceira tradução
possível de seu nome é: Eu-sei-onde. A partir, portanto, das ressonâncias da
lalíngua grega, Édipo significa: pé inchado, eu sei do pé e eu sei onde. O nome
42

de Óidipous traz a marca de exclusão de sua origem, ou seja, do desejo


mortífero do Outro (representado por seus pais). Desde a origem Óidipous é o
dejeto do Outro.78

Aqui é clara a ideia de que o pé de Édipo não travou, não controlou sua
desmedida de se apoderar do reino e da mãe. É ele, portanto, o tirano que vive
na abundância e na ganância profanando o sagrado. Édipo não quis saber do
pé e daí seu pé, com a marca da sua história, não foi o entrave, não lhe serviu
de freio. Se ele tivesse querido saber do seu pé, não teria ido em direção à
própria desgraça, pois era ele que tinha o pé travado ao nascer — travado por
ferros pelo próprio pai.79

Em sentido diferente ao proposto por Freud, Quinet argumenta que Édipo não poderia
ser julgado por suas intenções parricidas e incestuosas pelo fato de que o herói não teve
consciência de tais crimes enquanto os praticava. O verdadeiro crime de Édipo, então, é a
ignorância, é o desejo inconsciente que teve pela manutenção do recalque a qualquer preço, o
desejo por manter os olhos fechados a respeito de suas origens. Isso se revela da maneira mais
trágica possível no ato final através do gesto arrebatador pelo qual o herói decide sacrificar os
próprios olhos como forma de autopunição, logo que a verdade lhe vem à tona.
Por ser humano, Édipo não pode suportar a luz da verdade. A verdade o dilacera,
simbolicamente lhe queimando os olhos, como o sol do meio dia a que se olha diretamente. A
suspensão do recalque nesses termos é como um excesso de luz que revela de maneira súbita e
violenta os conteúdos daquilo em relação a que um grande esforço foi também empregado para
que o sujeito pudesse não saber.
Conforme a argumentação de Quinet, o conteúdo verdadeiramente insuportável dessa
revelação para Édipo não era tanto a consciência de seus próprios crimes (parricídio e incesto)
quanto a consciência dos crimes praticados por seus pais e que ele escolhera até então não ver.
Édipo oferece-se, portanto, como modelo para a neurose no sentido do neurótico ser aquele
empenha enorme esforço para manter recalcados os crimes praticados por seus pais. O neurótico
é, nesse sentido, aquele que deseja não ver.
Ainda em relação ao mito de Édipo, Quinet reconstrói a genealogia de tais crimes
paternos:

O primeiro tempo de totem e tabu que corresponde ao momento de gozo do


pai está ausente da peça de Sófocles Édipo rei. Mas está presente na mitologia,
e os espectadores gregos da tragédia o conheciam bem: era a maldição dos
Labdácidas, cujo responsável era Laio, filho de Labdaco e pai de Édipo. Laio,

78
QUINET, Antonio. Édipo ao Pé da Letra – fragmentos de tragédia e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar
Editora, 2015, IV.
79
Ibidem, III.
43

após a morte do tutor que havia substituído seu falecido pai, refugia-se na terra
de Pélops, onde se apaixona pelo jovem Crísipo, filho de Pélops. Ele rapta
Crísipo e goza, assim, do filho daquele que o acolheu, desrespeitando as leis
da hospitalidade. Será então amaldiçoado por Pélops. Se o que herdamos do
pai é seu pecado, a herança de Édipo, seus crimes e a maldição de sua
descendência estão relacionados com o gozo de Laio, o pai, que retorna na
maldição de Édipo em seu duplo crime e na peste de Tebas. No complexo de
Édipo podemos também encontrar, descrito por Freud, o gozo do pai, diante
do qual a criança está indefesa.80

A maldição lançada por Pélops é precisamente a que viria a se cumprir e aquela que
Laio soube pelas palavras do oráculo: a de que seria assassinado pelo próprio filho. Temendo a
realização desse destino nefasto, o rei de Tebas, em cumplicidade criminosa com a rainha, mãe
de Édipo, ordena que um de seus súditos se desfaça do recém-nascido, abandonando-o para o
encontro com a morte.
Cúmplices no filicídio, Laio e Jocasta decidem ainda por atravessar os pés do bebê com
uma trava para garantirem a satisfação do crime. Mas essa marca nos pés é precisamente aquela
que, depois de adulto, o herói jamais ousará interrogar, não obstante seu próprio nome advenha
da cicatriz herdada do ato criminoso de seus pais. “Édipo agiu ou foi agido por todo esse saber
do qual não sabe? Ou sabe?”, pergunta Quinet. “Esse saber não sabido corresponde ao saber do
Inconsciente, do qual o sujeito se defende. À defesa do saber inconsciente Freud deu o nome
de recalque.”81
A interpretação oferecida por Quinet avança ainda em relação à passagem em que Édipo
é confrontado pelo enigma da Esfinge. A resposta dada pelo herói somente estaria correta em
um sentido bastante parcial. Não haveria, pois, outro meio de saber – a menos que interrogasse
o seu nome ou que lhe diziam as marcas em seus pés – que era Édipo, e não genericamente “o
homem”, a resposta para o enigma de alguém que é a um só tempo criança (como seus filhos-
irmãos), adulto (que desposa uma mulher) e velho (como o pai, posto que se deitara com a mãe),
pelo fato de ter gerado filhos no ventre em que ele mesmo fora concebido.
Toda a desgraça de Édipo, que por fim o conduziria ao exílio de uma experiência
interior, porque cerrada em si mesma, decorre do fato de ele, antes, ter elevado seu recalque à
condição do enigma. A resposta que ele recusa a esse enigma finalmente o devora, ou melhor,
lhe devora os olhos. Afinal, era a insistência em manter os olhos fechados para a sua condição
neurótica que lhe dava garantias de ser, genericamente, um homem qualquer, mais um ignorante
perdido na multidão. E foi ao custo dos olhos que o herói teve de sacrificar que ele se descobriria

80
Ibidem, I.
81
Ibidem, III.
44

não um qualquer, mas aquele que, a partir de então, violentamente tomava para si a consciência
de seu não-saber.

***

Em um dos prefácios de História do Olho, há a seguinte observação escrita por Bataille:


“Como meu pai me concebeu cego (completamente cego), eu não posso arrancar meus olhos
como Édipo. Como Édipo, decifrei o enigma”. Mas a essa observação ele faz um acréscimo
significativo e não menos misterioso: “ninguém o decifrou mais profundamente que eu.”82
Conforme vimos, de acordo com a interpretação oferecida por Quinet, o não-querer-
saber da hybris paterna e materna, isto é, da desmedida dos crimes praticados pelas figuras dos
pais, é o complexo que fornece o modelo para toda condição neurótica. O neurótico olha para
seus pais e os enxerga, mas não como um homem e uma mulher que são, e sim como o seu pai
e a sua mãe. Essa mentira original é mesmo capaz de sustentar por toda uma vida a fantasia
infantil de que “por mais que eles cometam erros, jamais os cometerão em relação a mim,
porque ele é, antes de tudo, o meu pai e ela é, acima de tudo, a minha mãe”. Na tragédia de
Édipo, essa fantasia apresenta-se pela figura humana que vive à sombra de seu recalque.
Nesse sentido, é possível ler o ato extremo do herói em algum ponto fronteiriço entre a
condenação e a libertação da condição neurótica, a condição humana na civilização. Cego, visto
que o suicídio de Jocasta encerrava um ciclo, Édipo passava a enxergar a verdade – verdade
que se apresentava tragicamente travestida com elementos da perversão. Ninguém poderá dizer,
afinal, que o sacrifício não terá sido para ele uma experiência de êxtase: a experiência de
ascensão ao não-saber, e que por uma via torta e trágica contornava os olhos vendados da
castração.
Conforme a indicação dada pelo próprio Bataille em seu prefácio, a experiência do
sacrifício do olho na novela em questão possui paralelos extremamente significativos com o
mito de Édipo. Trata-se de uma narrativa, como se sabe, inteiramente consagrada à père-

82
BATAILLE. Prefácio à História do Olho. In.: História do Olho. Trad. Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac
Naify, 2003.
45

version83, às práticas que se contrapõem de maneira extrema às leis e aos tabus que fornecem
os elementos estruturantes da neurose.
Por volta do período em que se deu a redação de História do Olho, Bataille vinha se
submetendo ao tratamento psicanalítico do dr. Adrien Borel. Contudo, à exceção de algumas
menções ao método pouco ortodoxo de Borel e à conclusão de que o tratamento lhe teria
permitido transitar de um estado doentio para outro relativamente viável, não se sabe muito
mais a respeito dessas sessões84.
Se levamos em conta o caráter consideravelmente mais biográfico que, segundo Michel
Leiris, dava o tom da primeira edição da História do Olho85 (caráter este que fora suprimido
nas edições posteriores, restando apenas como um apêndice em ‘Reminiscências’) e de outros
escritos, dessa mesma época, não publicados por Bataille, é possível concluir que a alta dada
por Borel ao paciente, após um ano – período relativamente curto para um tratamento
psicanalítico – estivesse relacionada ao processo em curso de transposição dos fantasmas
pessoais do escritor para o registro da escrita, conforme aponta Eliane Robert Moraes:

A redação de História do olho — empreendida em meados de 1927 —


representou para Bataille uma espécie de cura. [...] A eficácia maior do
tratamento de Borel foi, sem dúvida, a de deixar a vida repercutir — e
transbordar — na literatura, deslocando as obsessões de Bataille para a escrita,
derivando suas fantasias para o texto. A criação de História do olho marcou o
fim de um silêncio e o nascimento de um escritor.86

Por meio de um desses relatos em especial, pudemos ter a dimensão do significado das
palavras de Bataille quando ele escreve em um dos prefácios de História do Olho: “A desgraça
me oprimia, a ironia interior replicava que ‘tanto horror faz de você um predestinado” 87. Se a
escrita para Bataille significava “o fim de um silêncio” é que talvez, por esse meio, seus olhos
tenham encontrado a possibilidade de se abrir para o que, até então, ele teria preferido não saber.
Se há um buraco negro, um rastro de destruição deixado por uma estrela vermelha em sua
história pessoal, através da escrita – no relato de um sonho – os olhos de Bataille se abrem para
a hybris paterna, para a verdade do crime praticado por um pai contra o próprio filho:

83
A esse respeito, ver LACAN, J. Seminário 23, o Sinthoma. Trad. Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar,
2005, p.21.
84
Ver SURYA, Michel. Georges Bataille – la mort à l’oeuvre. Gallimard, 1992, obra de referência na pesquisa
biográfica de Bataille.
85
Ver LEIRIS, M. Nos tempos de Lord Auch. In.: BATAILLE, op. cit.,2003, texto que constitui um dos apêndices
dessa edição.
86
ROBERT MORAES, E. Um olho sem rosto. In.: BATAILLE, op. cit., 2003.
87
BATAILLE. Prefácio à História do Olho. In.: BATAILLE. op. cit., 2003.
46

A associação foi então estabelecida. Ratos horríveis e todos os terrores da


infância. Ao porão se desce com uma vela. Terror de aranhas. E de repente me
lembro de ter descido ao porão com meu pai, uma vela em minha mão. Sonho
do urso com um castiçal. Terrores de aranhas da infância, etc. ligados à
memória de ter minhas calças puxadas para baixo, nos joelhos do meu pai.
Uma espécie de ambivalência entre o mais horrível e o mais magnífico. Eu o
vejo espalhar suas mãos obscenas sobre mim com um sorriso amargo e cego.
Essa memória parece ser a mais terrível de todas. Um dia, voltando de férias,
encontro-o novamente mostrando-me o mesmo carinho. Ao acordar, associo
o horror dos ratos à memória de meu pai, corrigindo-me com um golpe na
forma de um sapo ensanguentado no qual um abutre (meu pai) afunda seu
bico. Minhas nádegas estão nuas e há sangue em minha barriga. Uma
lembrança muito ofuscante como o sol visto através das pálpebras de olhos
fechados, em vermelho. Meu pai, imagino que, visto que ele é cego, ele
também vê o sol num ofuscante vermelho. Paralelamente a essa memória meu
pai sentado. Isso tem o efeito de me lembrar que meu pai sendo jovem teria
querido fazer algo atroz comigo por prazer. Tenho por volta de três anos,
minhas pernas nuas nos joelhos do meu pai e meu pênis sangrando como o
sol. Isto é por brincar com um aro. Meu pai me dá uma bofetada e eu vejo o
sol.88

Esse texto é um dos primeiros registros conhecidos de Bataille, mas trata-se de um texto
que ele jamais publicou, não obstante algumas de suas qualidades notavelmente literárias. No
texto, escrito à semelhança de um relato, imagens de sonhos se misturam com as que o narrador
chama de lembranças. Em uma outra parte, que antecede a do trecho acima, o narrador apresenta
uma cena em que faz referência a uma fase mais madura dessa infância, provavelmente já a
adolescência.
Tal texto parece então ser composto por duas temporalidades: a de um jovem que,
durante muitos anos, fora atormentado por pesadelos ligados a imagens de ratos, aranhas, ursos
com castiçais, sapos e abutres e a terrível imagem de um sol vermelho, e uma segunda
temporalidade, a de uma primeira infância, quando a cena de violência sexual acontece. A
transição da primeira parte do texto para a segunda (“A associação foi então estabelecida...”)
ocorre quando o jovem narrador se depara com a cena de operários da cidade a dependurando
ratos vivos pelo rabo.

88
Idem. Œuvres complètes, tome 2 - Ecrits posthumes 1922-1940, Gallimard (1970), p.9. Tradução nossa. Ao
consultar as obras de dois dos biógrafos de Bataille, Michel Surya e Stuart Kendall, somos informados de que, a
despeito do tom diarístico deste trecho, não é possível afirmar categoricamente que tal cena de abuso sexual tenha
de fato acontecido. O argumento de ambos os biógrafos é o de que esse seria o único registro de tal suposto
acontecimento e, além disso, tal registro aparece nas notas de Bataille sob o título ‘Sonho’. Os dois biógrafos
apontam ainda a tendência bastante explícita da literatura do escritor de misturar, muitas vezes ao ponto da
indiferenciação, ficção com fatos da realidade biográfica.
47

Já em relação à narrativa de História do Olho, Michel Leiris89, escritor e amigo de


Bataille, afirma que a primeira publicação da novela, em 1928, tratava-se de um texto
consideravelmente diferente da versão que hoje nos é conhecida e que fora publicada em 1941.
A diferença fundamental entre essas edições, segundo Leiris, é que Bataille teria suprimido
diversos elementos de caráter mais biográfico da narrativa em que pesava, sobretudo, a questão
do complexo de Édipo.
A despeito de ter feito a edição do texto para que resultasse nessa versão mais enxuta e
literária, Bataille manteve, durante toda a vida, a decisão de publicá-lo por meio de pseudônimo.
É possível interpretar essa informação pelo viés do cuidado, em certo sentido excessivo, que o
escritor teve de não querer ver sua literatura associada a fatos que pudessem ser lidos à luz de
uma história íntima e pessoal.
Algumas dessas cicatrizes, contudo, persistem sobretudo no apêndice ‘Reminiscências’
de História do Olho:

Nasci de um pai sifilítico. Ficou cego (já o era ao me conceber) e, quando eu


tinha uns dois ou três anos, a mesma doença o tornou paralítico. Em menino,
adorava aquele pai. Ora, a paralisia e a cegueira tinham, entre outras, estas
consequências: ele não podia, como nós, urinar no banheiro; urinava em sua
poltrona, tinha um recipiente para esse fim. Mijava na minha frente, debaixo
de um cobertor que ele, sendo cego, não conseguia arrumar. O mais
constrangedor, aliás, era o modo como me olhava. Não vendo nada, sua
pupila, na noite, perdia-se no alto, sob a pálpebra: esse movimento acontecia
geralmente no momento de urinar. Ele tinha uns olhos grandes, muito abertos
num rosto magro, em forma de bico de águia. Normalmente, quando urinava,
seus olhos ficavam quase brancos; ganhavam então uma expressão fugidia;
tinham por único objeto um mundo que só ele podia ver e cuja visão procurava
um riso ausente. Assim, é a imagem desses olhos brancos que eu associo à dos
ovos; quando, no decorrer da narrativa, falo do olho ou dos ovos, a urina
geralmente aparece. Percebendo todas essas relações, creio ter descoberto um
novo elo que liga o essencial da narrativa (considerada no seu conjunto) ao
acontecimento mais grave da minha infância. Durante a puberdade, a afeição
por meu pai se transformou numa repulsa inconsciente. Passei a sofrer menos
com os gritos intermináveis que lhe arrancavam a sífilis (que os médicos
consideram uma das doenças mais cruéis). O estado de imundície fétida a qual
o reduziam suas enfermidades (ele chegava a cagar nas calças) já não me era
tão penoso. Qualquer que fosse a questão, eu adotava uma atitude ou opinião
contrária à sua. Uma noite, minha mãe e eu fomos acordados por um discurso
que o doente produzia aos urros, no seu quarto: tinha enlouquecido de repente.
O médico, chamado por mim, veio imediatamente. [...]. Tendo o médico se
retirado com minha mãe para o quarto ao lado, o demente berrou com uma
voz retumbante: — DOUTOR, AVISE QUANDO ACABAR DE FODER A
MINHA MULHER! Ele ria. Essa frase, arruinando os efeitos de uma
educação severa, provocou-me, numa terrível hilaridade, a constante

89
LEIRIS, M. Nos tempos de Lord Auch. In.: BATAILLE, op. cit., 2003.
48

obrigação, acatada de forma inconsciente, de encontrar seus equivalentes em


minha vida e em meus pensamentos. Isso talvez esclareça a “história do
olho”.90

Parece-nos significativa essa passagem da transição do estado de amabilidade da criança


para com a figura paterna para o de “repulsa inconsciente” na adolescência. Também é
significativo o poder irruptivo de verdade que a frase gritada pelo pai no contexto de sua
demência produziu sobre a mente do jovem. Conforme as palavras de Bataille, a frase teria sido
capaz de arruinar os efeitos de toda uma vida produzidos por uma educação severa.
Se a frase é assim tão decisiva talvez seja porque, gritada por um pai demente, ela se
torna o reconhecimento do fracasso próprio dessa figura. A frase estabelece a equivalência do
crime com a doença, confirma a destituição do totem paterno, ao mesmo tempo em que funciona
como uma espécie de peça acusatória que apresenta as chances de um crime passível de ser
cometido também pela mãe. Mais do que isso, ela arruína de forma trágica e cômica a hierarquia
a qual se associam todas as fantasias infantis. O grito do pai, ao mesmo tempo que é uma espécie
de confissão de culpa, rebaixa violentamente a mãe e torna o médico, até então uma figura
potencialmente civilizada, também um cúmplice do crime.
Assim o pai, de figura digna do amor do filho, assume a imagem deplorável de um deus
cego e excessivo que “se cagava” e “se mijava revirando os olhos”. O pseudônimo Lord Auch,
que assina a História do Olho, reverbera exatamente essa condição pós-neurótica: “O nome de
Lord Auch faz referência ao hábito de um dos meus amigos: quando irritado, em vez de dizer
“aux chiottes!” [à latrina], ele abreviava dizendo “aux ch”. Em inglês, Lord significa Deus (nas
Escrituras): Lord Auch é Deus se aliviando.”91
Não se sabe se “o acontecimento mais grave da minha infância”, citado no trecho acima,
faz referência àquele narrado no texto ‘Sonho’, ou a esse outro que ele anunciaria na sequência,
da loucura definitivamente tomando conta do pai. Seja um ou outro caso, o que importa destacar
é que a narrativa da História do Olho cria a definitiva père-version do crime e dos excessos
cometidos pelo pai.
Trata-se de uma paródia da vida (“uma terrível hilaridade”), tal como a perversão
parodia a neurose do deus demente, decadente e enfermo, que passa a ser o deus que cria a
partir de seus dejetos; paródia da transmutação do crime em erotismo, e do erotismo novamente
em crime. É, por fim, paródia por meio da qual Bataille pôde comunicar apenas o mais essencial

90
BATAILLE. op. cit., 2003, Reminiscências, grifo nosso.
91
Ibidem, Prefácio à História do Olho
49

da experiência que ele escreve em seu relato: “uma espécie de ambivalência entre o mais
horrível e o mais magnífico”.
Na outra ponta dessa juventude trágica, seria preciso ainda abrir os olhos e parodiar os
crimes da mãe, Marie-Antoinette, a quem Bataille, no apêndice das ‘Reminiscências’, aproxima
da personagem Marcela de História do Olho: “Não podia identificar Marcela a minha mãe.
Marcela é a desconhecida de catorze anos, sentada um dia, num bar, à minha frente. Porém,
algumas semanas após o acesso de loucura de meu pai, minha mãe acabou perdendo igualmente
a razão [...]”92.
Em 1914, Reims, cidade em que habitava a família, é bombardeada por tropas alemãs,
acontecimento que leva Bataille e sua mãe a fugirem da cidade em direção a uma pequena vila
em que viviam os avós maternos. O pai, Joseph-Aristide, por ocasião da doença, é deixado para
trás aos cuidados de uma empregada da família.
Desde então, a mãe de Bataille passa a recusar veementemente os pedidos do filho para
que voltassem a Reims e resgatassem o pai, que morre pouco tempo depois, abandonado à
solidão e à loucura. Não tardou para que esse acontecimento viesse a roubar também a sanidade
de Marie-Antoinette. Bataille relata que, a partir de então, ela passou a oscilar entre estados
profundamente melancólicos, que repercutiram em duas tentativas de suicídio, e outros a tal
ponto violentos que fizeram crer ao filho que ele poderia ser assassinado pela própria mãe
enquanto dormia.

Em 1920, mudei de novo, deixando de acreditar em qualquer outra coisa que


não fosse a minha sorte. Minha devoção nada mais é que uma tentativa de
fuga: queria escapar do destino a qualquer preço, eu abandonei meu pai. Hoje,
sei que sou definitivamente “cego”, sou um homem “abandonado” sobre o
globo como meu pai [...].93

A associação entre os estados da cegueira e do abandono não é evidente. Parece que, ao


propô-la, Bataille está afirmando a sua tomada de consciência, no sentido de um olho que se
abre totalmente para a luz do sol. Tratava-se de uma espécie de conhecimento da morte que
ele, assim como seu pai e sua mãe, teria experimentado em vida: o da absoluta solidão, o clamor
sem resposta, a verdade dilacerante do abandono.
“[...] Aprendo, ao soçobrar, que a única verdade do homem, finalmente entrevista, é a
de ser uma súplica sem resposta”, ele escreve em A experiência interior94. Estar cego no mundo,

92
Ibidem, Reminiscências
93
Idem, op. cit., Prefácio à História do Olho
94
Idem, 2016, primeira parte, III.
50

afinal, é estar entregue ao jogo de uma escuridão que se pode tatear e pela qual se pode
engatinhar, mas um jogo que não se pode vencer. Esse jogo o teria dilacerado de tal modo que,
no êxtase da destruição de seu eu neurótico, ele deve ter intuído aquilo que chamou de sua
“predestinação”: sentir a verdade do abandono – que é a verdade da morte – num nível
radicalmente mais real do que aquele que as pessoas normalmente ousam experimentar.
Ao mesmo tempo, Bataille deve ter intuído que essa verdade não poderia ser só sua, que
ela deveria traduzir, em um sentido muito mais amplo, o real da condição humana. O escritor,
por fim, teria concluído, não sem hilaridade, que se a humanidade e todos os frutos da criação
fossem, de fato, a obra de um deus, então essa obra necessariamente seria o equivalente a um
dejeto – matéria expelida, aos risos, para fora do gigantesco buraco negro de Deus sentado à
latrina.
Com Lord Auch, a paródia do pai e do trono estava dada. Através dessa escrita, Bataille
pôde abrir os olhos para os crimes paternos, na mesma medida em que, como Édipo, assumiu-
se na condição de culpado e estabeleceu para si, como pena, o abandono, o autoexílio de uma
experiência interior. Era a experiência que ofuscaria por completo seu eu neurótico, ao tempo
da gênese de sua père-version. Do ponto de vista biográfico, a História do Olho, se a
resumíssemos, seria, portanto, a história do ser dejeto que se eleva à dignidade da linguagem.

2.3 Em busca do Objeto perdido

Ainda na revista Documents, em seu dicionário crítico, no registro ao verbete ‘Olho’,


Bataille torna muito clara a aproximação desse significante em sua escrita com as noções de
consciência e de civilização. E, assim como Freud no texto “O Mal-estar na Civilização”, o
escritor traduz a experiência da cultura como sendo equivalente ao horror:

Sabemos que o homem civilizado se caracteriza pela acuidade de horrores


muitas vezes pouco explicáveis. [...] Com efeito, a respeito do olho parece
impossível pronunciar outra palavra que não seja sedução [...]. Porém, a
sedução extrema está provavelmente no limite do horror. [...]. O olho chega a
ocupar uma posição extremamente elevada no horror por ser, entre outros, o
olho da consciência. 95

95
Idem, 1994, p.107.
51

A acuidade visual, característica distintiva do olhar humano – e que permite, dentre


outras capacidades, aquela da consciência em discernir a realidade objetiva, em submeter a
natureza, e por extensão, as relações humanas à condição de objeto e, em suma, formatar a
experiência humana nos limites da história, da civilização – é também a capacidade que, para
o escritor, responde ao fato de que a cultura deva ser traduzida como a experiência do horror.
Nesse verbete, por um procedimento metonímico, a escrita de Bataille nos leva a
estabelecer a relação imediata do significante ‘olho humano’ com os significantes ‘consciência’
e ‘civilização’. “O olho da consciência”, em outras palavras, quer dizer que a experiência da
civilização nos é dada de maneira imediata e sem intermediação, assim que o nosso olhar nos
prende, por um estranho vínculo de sedução, aos objetos e horrores que compõem a realidade.
Pela radicalidade de tal entendimento, somos também levados à questão que, se nos
arriscamos em propor, teria dado a Bataille a tônica de História do Olho: é possível,
sacrificando o olho da consciência, transgredir a realidade? E, se sim, para onde somos levados
ao transgredi-la? Essas questões, que podem ser colocadas de diversas formas, tiveram
certamente, no caso do escritor, o sentido apontado por uma vertiginosa experiência de angústia
ou, para nos valermos da terminologia freudiana, podemos pensar em uma mão que escreve
movida pela pulsão de morte.
Sem dúvida, o paradoxo do horror com a sedução é o que abisma a escrita de Bataille.
No sentido exposto pelo verbete ‘O Dedão do Pé’, a questão batailliana – de “por que somos
seduzidos pelo horror, isso é, baixamente?” – pode ser expressa, por outras palavras, em “por
que deve a história se constituir como um movimento de sedução irrefreável?”. Mais de uma
década antes da atrocidade dos eventos que marcaram a segunda guerra mundial, a consciência
do escritor – desperta da dicotomia civilização X barbárie, já havia estabelecido a equivalência
entre os dois termos, atormentando-o, assim, com essa nova questão.
Pois, se era evidente a marcha da civilização em direção à barbárie, por que não teria
sido possível ao ser humano colocar um basta a esse movimento insano ou simplesmente recuar
diante da tragédia anunciada? Ao que parece, essa súplica sem reposta do escritor lhe retornava
à consciência sob a forma da imagem, sob a forma do significante olho, que lhe devolvia a
questão sob a forma circular ou enigmática do mesmo paradoxo: “porque somos seduzidos pelo
horror”.
O que faz com que a escrita de Bataille seja para nós tão atraente é que ela não recua
diante do enigma. Quando confrontado pela máscara inumana desse paradoxo, Bataille não
apela para que o “rosto inorgânico” da nossa condição – para retomar a expressão de Eliane
52

Robert Moraes – seja substituído por um rosto humanizado, moralista, com o qual seria
certamente mais fácil lidar96. Ao contrário: o escritor responde à falta de humanidade que
constitui o nosso desejo redobrando a aposta no elemento inumano, redobrando a aposta nesse
elemento pós-humano ou super-humano, de acordo com a expressão de Nietzsche. Sua escrita
responde assim ao enigma travestindo-se ela própria com uma nova máscara.
A literatura de Bataille opera em sentido oposto ao recalque moralista, mas também em
oposição ao esforço existencialista por normalizar o que há de propriamente estranho no fato
humano. Assim, se a consciência se constitui pela irrefreável sedução em direção ao horror, o
que o escritor propõe não é nem recuo nem ponto final em relação a essas conclusões, e sim
que possamos dar um passo adiante nessa mesma direção. No verbete ‘olho’, ele escreve:
“porém a sedução extrema está no limite do horror”, como quem diz: “prossigamos, pois, em
direção à sedução extrema e vejamos para qual sentido esse novo limite pode nos conduzir”.

***

O que poderia significar então “abrir o olho da consciência”, senão, precisamente, abrir-
se, sem reservas, à experiência do horror? Não é esse o movimento operado pela escrita de
Bataille em História do Olho? No limite da sedução do fato humano – isto é, no movimento de
superação de tudo o que é demasiado humano –, o sentido da visão é o que deve ser ofertado
em sacrifício.
Retomando o vocabulário antropológico de Marcel Mauss do qual Bataille se apropria,
a noção de consumação é muito clara neste ponto: não se pode transitar de um estado a outro
sem que se deixe algo para trás (“o preço a se pagar”, de acordo com a expressão popular).
Assim, se a experiência humana possível (da consciência e da civilização) se inscreve no
mesmo campo que o da acuidade visual, de acordo com o raciocínio acima o ser humano
primitivo teria sido, então, mutilado em seu corpo como preço a ser pago pela ascese à
civilização.
Uma das valiosas contribuições da psicanálise freudiana é o pensamento segundo o qual
o inconsciente está inscrito como registro de um tempo anterior ao reinado da cultura, como

96
Essa parece ter sido a opção dos chamados filósofos existencialistas, sob a batuta de Sartre.
53

manifestação da experiência humana que antecedeu a história, o tabu e o recalque97. Bataille


extrapola as conclusões de Freud ao aproximá-las do conceito de “super-humanidade” de
Nietzsche e concluir que ao inconsciente deve corresponder não apenas ao passado humano,
mas também o devir, isso é, o tempo impossível e posterior à história.
A escrita de Bataille faz reverberar, então, o enigma e a solução de Édipo para a Esfinge
como indissociáveis. O escritor assume a figura humana em sua condição trágica, isso é, como
criatura inscrita em três tempos simultaneamente. O homem contemporâneo é o homem
neurótico, abandonado por Deus a meio do caminho e entre dois tempos. O homem
contemporâneo, tomado pelo exemplo de Édipo, é o homem recalcado em sua terminante recusa
em enxergar o que ele fora no passado da espécie (o crime de seus pais) e, seduzido somente
pelo horror objetivo do que seus olhos conseguem alcançar, recusa-se a vislumbrar a
possibilidade do êxtase do devir (o êxtase)
Não obstante, as armas que a humanidade lança mão para defender os ganhos da
civilização98 persiste no homem, como sintoma da civilização, o seu profundo e generalizado
mal-estar, traduzido no sentimento da “miséria real”, como o chamou Freud.
O psicanalista Marco Antônio Coutinho Jorge faz uma importante consideração a
respeito dessa contradição, no sentido que “ganhar a civilização” implica também em uma
importante perda:

Perder o nada é um empobrecimento. Caminhando do imaginário para o real,


a análise leva o sujeito do lugar de não ver nada àquele de ver nada. O gesto
de Édipo, ao furar os próprios olhos — e é importante observar que é contra o
sentido da visão que sua ira se volta de modo privilegiado e instantâneo, e
contra nenhum outro —, após vir a saber (ou, melhor dizendo, vir a não mais
poder querer não saber) de seu ato parricida e de sua relação incestuosa, é o
daquele que passa do não ver nada a ver nada.99

Perder o nada é o estatuto incontornável da civilização, que tem por significante o olho,
isso é, a sedução irresistível que o olhar lança e que nos vincula automaticamente ao horror da
realidade objetiva, a essa experiência de miséria real. Por outro lado, “ver o nada” seria o termo
que define a ascensão ao êxtase.

97
Do ponto de vista da psicanálise freudiana, a história ao que parece poderia ser resumida como sendo a história
do recalque e de todas as consequências daí decorrentes.
98
Podemos enumerar tais armas: os assassinatos, a moralização da sexualidade, os dogmas religiosos, a definição
de cidadania a partir da posse de objetos, a mentira e todos os artifícios da linguagem que sustentam o harmônico
rosto humano na consciência de seu ‘eu’ e de seu Deus.
99
COUTINHO JORGE, Marco Antonio. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan, vol.1: as bases
conceituais. 6ª ed. Rio de Janeiro: ed. Zahar. 2011 , vol.I, Cap.III
54

O texto citado acima escrito por Marco Antônio Coutinho Jorge traça uma genealogia
valiosa que o conceito de recalque percorre na obra de Freud, a culminar no desenvolvimento
da teoria das pulsões, ao ponto de corte dado por Lacan com a noção de ‘objeto a’ ou ‘objeto
causa do desejo’, até o desdobramento dessa teoria no conceito de sublimação.
Transcreveremos algumas passagens desse texto, no intuito de tornar mais evidente em
que sentido o advento da civilização só poderia ter se dado por meio da operação de um
poderoso recalque ou, nas palavras de Bataille, por meio do sacrifício de um objeto que, desde
então, encontra-se perdido. O psicanalista começa por retomar, a partir dos primeiros escritos
de Freud, a noção segundo a qual a passagem do homem de sua condição primitiva para seu
estatuto civilizado se deu às expensas do sentido do olfato, sentido que é o mais proeminente
nos ouros animais.
Freud expressa então a ideia de que “algo orgânico desempenha um papel no recalque”
e “observa também quão grande importância atribui à posição ereta [do ser humano] e à
substituição do olfato pela visão como fatores que estariam na base do processo normal de
recalque”.

Trata-se, para Freud, com efeito, de ressaltar que determinadas zonas sexuais
que vigoram ativamente nos animais, como o ânus, a boca e a garganta, vêm
a perder tal função no ser humano normal por intermédio do recalque.

[...] Desse modo, a tendência a extrair prazer do odor, comum na infância,


tendo se extinguido posteriormente, pode passar a desempenhar um relevante
papel na origem da neurose.

Mais essencialmente ainda, Freud se vê impelido a levantar a “questão geral”,


segundo seus próprios termos, de situar a origem da neurose enquanto
dependente, em grande parte, da atrofia do sentido do olfato decorrente da
adoção a postura ereta pelo ser humano ao longo da evolução da espécie. O
consequente “recalque orgânico” do prazer no cheiro explicaria, assim, por
que, “com o progresso da civilização, é exatamente a vida sexual que tem de
cair vítima do recalque. Isso porque há muito conhecemos a íntima conexão,
na organização animal, entre a pulsão sexual e a função do órgão olfativo”.

Mais além disso, uma verdadeira genealogia da neurose enquanto inerente à


espécie humana passa a poder ser explicitada, pois não é de modo algum
desprezível que Freud encerre seu denso ensaio clínico com estas observações:
advento da postura bípede do homem → atrofia do sentido do olfato →
recalque orgânico do prazer do cheiro → recalque da sexualidade em geral

O olfato dá, assim, lugar à visão enquanto elemento primordial de atração


sexual. Se por um lado o olfato desempenhava seu papel num funcionamento
instintivo cujo automatismo visava o desencadeamento da cópula com fins
reprodutivos, a visão, passando para o primeiro plano das trocas entre os
55

indivíduos, torna a atividade sexual não mais regida por ciclos periódicos e,
sim, espraiada por toda a existência dos sujeitos.

[...]. Esta passagem, na verdade, é o que funda o humano, ou, melhor dizendo,
a possibilidade do humano advir. Do decréscimo da importância da função do
olfato ao incremento da função da visão, o que se produz, com efeito, é a
passagem do funcionamento instintivo ao funcionamento pulsional,
característica mais marcante da sexualidade humana.

Freud finaliza essa nota sublinhando que o erotismo anal “sucumbe em


primeiro lugar ao ‘recalque orgânico’ que preparou o caminho para a
civilização”. Tanto na evolução da espécie, com a adoção da postura ereta,
quanto na educação das crianças, com o repúdio aos excrementos e a higiene,
o erotismo anal é o mais fortemente atingido pelo recalque.100

No primeiro capítulo desta tese, aludimos ao advento da postura ereta como um eixo de
criação de paradoxos no e do corpo humano, dos pés à cabeça. Nesse eixo em que o mais
rebaixado e desprezível funciona, ao mesmo tempo e de maneira arrebatadora, como elemento
de sedução, a precariedade da condição humana se coloca com toda evidência.
Por outro lado, essa mesma precariedade pode ser traduzida nas artes como exuberância.
Isso porque o que ela traz em termos de exigência é a disponibilidade para o paradoxo, isso é,
a disponibilidade – tomada a sério pela escrita de Bataille – em ler o corpo humano a partir de
seu sentido erótico. Trata-se do sentido perverso, não-edípico ou ainda, em último caso, o
sentido pós-neurótico, de uma neurose transgredida.
No caso de História do Olho por mais que Bataille insista na repetição dos significantes
“ânus” e o “olho”, esses não são incorporados à narrativa senão na condição de polos do corpo
humano, dentre os quais – e dentro dos quais – o sentido da sedução circula. Se na novela fosse
o caso de dizer que o sentido se detém em um desses polos – como o leitor desavisado poderia
supor que acontece – então a narrativa seria neurótica porque fetichista e decadente porque
pornográfica. Mas, conforme a análise que faremos a seguir, na narrativa batailliana não é disso
que se trata.
Por fim, retomando a análise filogenética de Freud apresentada por Marco Antônio
Coutinho Jorge no trecho acima, destaca-se que o mal-estar é uma condição generalizada por
conta do trauma decorrente do processo de evolução singular da sexualidade humana em
relação à sexualidade e ao modo de vida relativamente simples dos outros animais.
A distância que separa a vida humana cotidiana da experiência de sua vida sexual é
tamanha que é preciso dizer que, na prática, quase não há comunicação entre uma e outra

100
Ibidem, Cap. I
56

dimensão da existência – e quando há, essa comunicação normalmente se dá pela incorporação


da lógica mundana à dimensão sexual: fetiches e relações pornográficas de prazer, uso e
descarte traduzem, afinal, os princípios utilitários que ordenam a realidade.
Essa separação clara das duas esferas – a profana e a erótica (sagrada) – no caso humano
seria de grande importância para os desdobramentos posteriores do pensamento de Bataille.
Nas teses que o escritor apresenta em O erotismo (1957) é preciso considerar seriamente a
existência desses dois planos distintos da experiência humana.
O mundo profano é o mundo da realidade objetiva, o mundo ordenado, ereto e
hierarquizado (à imagem e semelhança da postura humana), o mundo em que mesmo as
relações humanas são levadas adiante por um poderoso processo de ‘coisificação’. A esfera do
erotismo, por outro lado, diz respeito ao retorno à horizontalidade, à conexão imediata e olfativa
do existente com o existente, à presença indistinta no sagrado.
Para Bataille, a entrada ser humano na civilização implicou, a princípio, que a esfera do
sagrado estivesse relegada à temporalidade de um recreio em relação ao mundo do trabalho, o
mundo profano. A passagem de uma a outra dimensão não seria possível, então, senão de forma
transitória, e sempre por meio de gestos transgressivos (os gestos de sacrifício). Mas parte da
experiência do horror a que nos condena a civilização por meio de sua sedução inerente é que
o tempo sagrado do recreio deixe – na temporalidade gradativa a que comumente se chama
“progresso” – de existir.
À luz do que Freud escreve a respeito do recalque – que “a urina, as fezes e toda a
superfície do corpo, inclusive o sangue, têm um efeito sexualmente excitante”, não seria
exagero dizer que a literatura de Sade deveria ser tomada como uma espécie de livro de Gênesis
às avessas: do que era o ser humano nos tempos em que ainda não havia Deus. Se a conclusão
da análise filogenética de Freud é que a vida humana civilizada (profana) é essencialmente
neurótica (o homem recalca o animal que já fora), os jogos do marquês escancaram o fato de
que, no outro lado – na dimensão da experiência humana impossível, porque perdida –, a
perversão é que constitui a regra e que, nesse caso, é a besta que deverá devorar o homem.
No caso da História do Olho os jogos do narrador com a personagem Simone – a
despeito da carga perversa que eles tenham – parecem não ser exatamente da mesma natureza
que o jogo proposto por Sade. Na narrativa batailliana, a tensão se mantém entre os polos: o
jogo se dá, a todo momento, entre um ânus e um olho, ou, como poderíamos considerar, entre
o passado e o presente da humanidade, sem que nenhum dos dois extremos, ao final, se
sobreponham ao outro.
57

No caso de Sade, o gozo ocorre por causa da destruição de um polo em favor do outro
– o algoz reduz a vítima a uma condição de animalidade, ao tempo em que ele mesmo se torna
animal. No caso da literatura de Bataille, por outro lado, o gozo resulta justamente da
sustentação, levada ao nível do êxtase, do paradoxo: há impossibilidade absoluta de suplência
nesse abismo que separa os dois tempos da humanidade. O gozo batailliano reside, portanto, na
afirmação do olho humano como instância insólita (que é seduzido a partir do horror) e
paradoxal.
É preciso reavaliar, portanto, aquilo que Bataille escreveu no prefácio de História do
Olho – a respeito de ter sido ele quem mais profundamente desvendou o enigma de Édipo – por
esses termos: de tomar conhecimento dos crimes e dos excessos cometidos nossos pais e então
refutar violentamente a neurose. Afinal, um dos sentidos mais explícitos da narrativa é esse, o
de olhar tanto e tão profundamente para o recalque que, diante de sua impossibilidade, o sujeito
termina por gozar, ao mesmo tempo em que revira os olhos e se torna cego.

2.4 O Ânus Solar: objeto impossível

Todos estão cientes de que a vida é


paródica e que carece de uma
interpretação. [...]. O coito é a paródia do
crime. (BATAILLE) 101

É preciso ver em que sentido A História do Olho desenvolve-se como paródia de outro
mito freudiano, dessa vez o mito de Totem e tabu; paródia também no sentido de que a morte
do pai real de Bataille faz erigir o pai “totêmico” da novela, que é, a um só tempo narrador e o
pseudônimo que assina a narrativa. Lord Auch, é também a paródia de Deus que, sentado no
trono escatológico, faz o mundo girar, porque sustenta, em cada passagem da novela, a conexão
íntima do crime com o coito.
Se História do Olho propõe, assim, essa père-version do pai totêmico – pelo qual os
tabus são dilacerados e as tábuas da moralidade e da organização social quebradas – O Ânus
Solar, funciona como um prelúdio que deve ser lido como a paródia do banquete totêmico.
Formas que comem formas, formas que destroem outras formas e incorporam, elas mesmas, na
cópula, parte daquilo que destruíram.

101
BATAILLE. O Ânus Solar, Londres: Canongate Books, 2010, p.18
58

Ao contrário do que procede do mito freudiano de Totem e tabu, na cosmologia de


Bataille, no entanto, o banquete não renega o crime por meio do qual se deu. A destruição é
afirmada e reafirmada porque entrelaçada à criação, na dança do eterno movimento gerativo,
cuja natureza é dada pela força das colisões.
Em O Ânus Solar (1927)102, Bataille desenvolve uma verdadeira cosmologia das formas
e dos seres, deslizando pelo movimento circular (movimento do cosmos), para demonstrar a
inter-relação entre tudo o que existe. Na conexão que estabelece com História do Olho, o texto
de Ânus Solar também vai sendo costurado a partir da forma circular e anuncia, do ponto de
vista da impessoalidade da matéria, a intercambialidade de todos os objetos construídos e que
se constroem por meio dessa circularidade.103
De início, anuncia-se:

Está claro que o mundo é puramente paródico, em outras palavras, que cada
coisa vista é a paródia de outra, ou é a mesma coisa numa forma enganosa.
[...].Desde que as sentenças começaram a circular nos cérebros devotados à
reflexão, um esforço pela identificação total vem sendo feito, porque com a
ajuda da cópula cada sentença liga uma coisa à outra; todas as coisas ficariam
visivelmente conectadas se se pudesse descobrir numa só olhada e em sua
totalidade os traçados do fio de Ariadne que levam o pensamento ao seu
próprio labirinto.104

Assim a cosmologia é dada nesse texto que, com toda sua carga de estranheza e
originalidade, pretende fornecer, de supetão, nada menos que um retrato do universo. “Os
sistemas planetários que giram no espaço como discos rápidos, e cujos centros também se
movem, descrevendo um círculo infinitamente maior, apenas se afastam continuamente de sua
própria posição para retornar a ela, completando sua rotação.”105
O universo, por sua vez, é parodiado na cena final, que apresenta o olho humano em
confronto com o ânus: o buraco negro que faz colidir, num mesmo espaço, duas temporalidades
que deveriam estar afastadas de acordo com os princípios invioláveis da linearidade do tempo.
O tempo da animalidade rastejante e horizontal, na cena final em que o objeto impossível do
ânus solar é apresentado, colide com o tempo da civilidade imposta pela postura e pela
hierarquia do corpo ereto.

102
Trata-se do primeiro texto que Bataille escreveu em seu próprio nome. Tendo sido escrito em 1927, o texto só
viria a ser publicado quatro anos mais tarde, pela editora Galérie Simon, e, assim como a História do Olho, com
ilustrações de André Masson.
103
Desenvolve-se, portanto, desde O Ânus Solar, aquilo que Barthes, no artigo ‘A metáfora do olho’, viria a
considerar como sendo ‘a metáfora soberana’, tema que aprofundaremos mais no próximo tópico.
104
Ibidem, p.17
105
Ibidem, p.23
59

Trata-se do objeto que indica a vocação humana igualmente impossível – a de ser, como
as plantas, uma espécie erguida e direcionada às estrelas. Oscilando entre a horizontalidade e a
verticalidade, a trágica figura humana é dada então como uma espécie de jorro da natureza,
impelida, por sua própria condição, ao movimento: “O movimento é uma figura de amor,
incapaz de parar em um ser particular e rapidamente passando de um para outro.”106

Um homem se levanta tão bruscamente quanto um espectro em um caixão e,


da mesma maneira, ele cai. Ele se levanta algumas horas depois e depois cai
de novo, e a mesma coisa acontece todos os dias; este grande coito com a
atmosfera celeste é regulado pela rotação terrestre em torno do sol. Assim,
embora a vida terrestre se mova ao ritmo dessa rotação, a imagem desse
movimento não é o que está girando a terra, mas o eixo masculino penetrando
a fêmea e quase inteiramente emergindo, a fim de reentrar.

O amor e a vida parecem estar separados apenas porque tudo na terra é partido
por vibrações de várias amplitudes e durações. No entanto, não há vibrações
que não sejam conjugadas com um movimento circular contínuo. Da mesma
forma, uma locomotiva rolando na superfície da Terra é a imagem da
metamorfose contínua.107

A imagem cósmica do coito, ao invés de instaurar a separação entre orgânico e


inorgânico, aproxima-as ao ponto de que a única distinção entre um e outro estado – entre a
descontinuidade da vida e a continuidade da morte – está à distância de um gesto de sacrifício
ou de transgressão. Assim o coito pode ser traduzido como movimento de colisão de dois corpos
celestes e estáveis: quando um planeta que se choca com outro, situado na rota de seu
movimento circular, os dois planetas deixam de existir, mas a destruição de ambos cria novos
corpos no espaço: vida, morte e vida interligadas por um movimento circular de colisões e que
se desdobra na metamorfose dos corpos.

A vida animal vem inteiramente do movimento dos mares e, dentro dos


corpos, a vida continua a vir da água salgada. O mar, então, desempenhou o
papel do órgão feminino que se liquefaz sob a excitação do pênis. O mar
continuamente ejacula. Elementos sólidos, contidos e fermentados em água,
animados pelo movimento erótico, decolam na forma de peixes voadores.108

O texto de O Ânus Solar é inteiramente dedicado, como se vê, à proposição de uma


estrutura circular e paródica do cosmos, em que cada elemento ou se reflete, ou inverte, ou
contagia a identidade de outro elemento. Assim, se por um lado a luz do sol desce para a terra,

106
Ibidem, p.24
107
Ibidem, p.25-26
108
Ibidem, p.29-30
60

por outro, as flores se erguem ao encontro do sol: o movimento segue nos dois sentidos
circularmente e é incessante.
É como se, por essa estrutura, a poética de Bataille estivesse propondo a ideia segundo
a qual não existem identidades, uma vez que o cosmos opera por meio da lógica do movimento
e do contágio. Não existe o Sol e não existem as flores – tudo o que existe, aos olhos do escritor,
é o movimento erótico de um em direção ao outro.
Como imagem degenerada das grandezas cósmicas, os elementos terrestres (as plantas,
os animais e os seres humanos) e suas forças (os mares, as nuvens, os vulcões), ainda que
incapazes de se elevar completamente, lutam contra as limitações impostas a suas formas e
manifestam seu caráter transgressivo através de explosões e de ejaculações que os fazem ir além
de si mesmos – elevando-se para além do limite de suas formas definidas e em direção ao
impossível.
Aqui é preciso considerar que, do ponto de vista da linguagem, O Ânus Solar, pelo
mesmo mecanismo tornado mais explícito em História do Olho, funciona como uma espécie
de dicionário – mas um dicionário da ausência de significado, em que cada um dos significantes,
por ser absolutamente vazio em termos de significado, mas muito poderoso em termos de
significância109, extrapola a si mesmo e contagia os próximos significantes dessa cadeia de
signos instáveis.
O significante que, por sua vez, recebeu a carga ejetada do significante anterior se torna,
ele próprio, instável, e passa a desencadear novo processo de contágio, e outra vez mais: a
linguagem é apresentada então como movimento, como parodia do infinito, do eterno retorno.

Humanos ou não, os elementos envolvidos se imbricam, em função menos de


um simbolismo geral do que de associações pessoais, apresentadas
simplesmente como tais pelo narrador (no caso, intervenção direta do autor) e
segundo uma curiosa dialética da natureza, que reduziria o universo a um ciclo
de termos, cada um dos quais não seria mais que a reverberação de um outro
ou sua transposição para um outro registro, universo transformado em
dicionário no qual se esvai o sentido das palavras, pois todas se definem umas
pelas outras.110

A anotação acima, do texto de Michel Leiris, embora extraída dos comentários que esse
autor fez a partir de História do Olho, expressam com notável exatidão esse movimento de

109
Vale lembrar que, na definição de Leyla Perrone-Moisés, por ‘significância’ entende-se a “significação
circulante”, que “não tem ponto de partida nem ponto de chegada: ela circula disseminando sentidos”. (PERRONE-
MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. 3ªed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.41)
110
LEIRIS, M. Nos tempos de Lord Auch. In.: BATAILLE. op. cit., 2003.
61

linguagem – de uma espécie de dicionário de significantes – que Bataille, desde os tempos da


revista Documents, já desenhara. O mesmo vale para algumas das considerações críticas tecidas
por Roland Barthes para História do Olho, que aparecem no texto ‘A metáfora do olho’:

Eis então duas séries metafóricas ou, se quisermos, conforme a definição da


metáfora, duas cadeias de significantes, pois jamais, em cada uma delas, um
termo é outra coisa senão o significante do termo vizinho. Todos esses
significantes “escalonados” remetem a um significado estável e tão mais
secreto por se achar sepultado sob uma arquitetura de máscaras? Essa é uma
questão de psicologia profunda que seria fora de propósito abordar aqui. Note-
se apenas isto: se a cadeia tem um início, se a metáfora comporta um termo
gerador (e, por conseguinte, privilegiado), a partir do qual o paradigma se
constrói de vizinho a vizinho, deve-se ao menos reconhecer que [...] o
imaginário que se desenvolve aqui não tem um fantasma sexual como
“segredo”; se fosse esse o caso, seria preciso explicar por que o tema erótico
nunca é diretamente fálico (trata-se de um “falicismo redondo”); [...]. Aqui
não há outro recurso senão contemplar uma metáfora perfeitamente esférica:
cada um de seus termos é sempre significante de um outro termo (nenhum
termo é um simples significado), sem que jamais se possa deter a cadeia. [...].
As consequências críticas são importantes: [...] tudo se dá na superfície e sem
hierarquia, a metáfora se espraia por inteiro; circular e explícita, ela não
remete a nenhum segredo, trata-se aqui de uma significação sem significado
(ou na qual tudo é significado); e não será nem a menor das suas belezas nem
a menor das suas novidades que esse texto componha, por meio da técnica que
se procura descrever aqui, uma literatura a céu aberto.111

Diante dessa análise podemos dizer que tanto O Ânus Solar quanto História do Olho,
funcionam a partir da estrutura dessa grande metáfora perfeitamente esférica que engendra um
processo incessante de significação sem significado – uma arquitetura de máscara, como
Barthes notavelmente observa.
A leitura do crítico pontua ainda que mesmo havendo a possibilidade de um significado
estável por trás dessa máscara metafórica, tal metáfora não se dirige à revelação de um segredo,
de um fantasma sexual, e sim aponta para algo maior.
A “metáfora soberana” – que aparece de maneira clara a partir da confrontação dos
textos O Ânus Solar e História do Olho – torna explícito o que está em questão no caso da
figura humana em relação à natureza. O caso humano seria, para Bataille, uma singularidade,
um parto anômalo da natureza. Trata-se de uma figura destinada ao impossível, uma figura em
cujo corpo se inscreve o impossível.
Ainda, em relação ao “dicionário da ausência de significados” proposto por Bataille,
Barthes escreve:

111
BARTHES. A metáfora do olho. In.: BATAILLE. op. cit, 2003.
62

[...] a lei que estipula que o ser da literatura não pode jamais ser outra coisa
senão sua técnica, a insistência e a liberdade desse canto [que] são os produtos
de uma arte exata, que soube simultaneamente medir o campo associativo e
liberar as contiguidades de termos.112

Mas o surgimento da figura humana impõe uma quebra na contiguidade desse canto soprado
pela natureza. Nas palavras de Bataille,

A ereção e o sol escandalizam, da mesma forma que o cadáver e a escuridão


das adegas. A vegetação está uniformemente direcionada para o sol; os seres
humanos, por outro lado, embora sejam árvores falóides, em oposição a outros
animais, necessariamente desviam seu olhar. Nas mais diversas reações, os
olhos humanos não toleram o sol, o coito, os cadáveres, nem a obscuridade.113

Como uma espécie de “regra” do canto cósmico, o movimento na Terra deve se dar em
apenas um dos dois eixos: ou na vertical (a luz que desce do sol, e o movimento de tudo o que
sobe em direção a ele), ou na horizontal (o movimento das marés e também o dos animais, que
caminham muito próximos à terra e direcionam sua atenção para os objetos do mundo ao seu
redor, e não para as coisas acima deles). Mas o texto se encerra diante de um impasse da
natureza que, em certo sentido, faz interromper a lógica desse movimento circular que se
manifesta, em cada elemento, apenas em um dos dois eixos.
Quando o cosmos se desdobra na figura humana, ele passa a ser, simultaneamente, os
dois eixos (coisa que, até então, era privilégio dos astros). Tal como os outros animais, os seres
humanos se deslocam no eixo horizontal, em que aparece também o movimento da cópula; mas
somente os seres humanos, entre todos os animais, verticalizam seu olhar para o alto, em direção
à origem, e contemplam as estrelas.
Eis que, no ato final do banquete totêmico batailliano – em que Deus é despedaçado
nessas muitas formas e forças – aparece essa figura (humana) do impossível. Um ânus solar é,
naturalmente, inconcebível: a forma que reúne a parte mais baixa do corpo com o que há de
mais elevado nos céus é também a forma que apresenta o lado noturno da carne humana. A
condição humana fica sendo, então, a de uma paródia da natureza.

112
Ibidem.
113
BATAILLE. op. cit., 2010, p.30
63

2.5 História do Olho: história do sacrifício de um objeto

Não basta reconhecer – isso só coloca em jogo a


mente –, é preciso também que o reconhecimento
tenha lugar no coração (movimentos íntimos meio
cegos...). Não é mais a filosofia e sim o sacrifício
(a comunicação). (BATAILLE)114

Deitei-me então na grama, o crânio apoiado numa pedra lisa e os olhos abertos
sobre a Via Láctea, estranho rombo de esperma astral e de urina celeste
cravado na caixa craniana das constelações; aquela fenda aberta no topo do
céu, aparentemente formada por vapores de amoníaco brilhando na imensidão
– no espaço vazio onde se dilaceram como um grito de galo em pleno silêncio
–, refletia no infinito as imagens simétricas de um ovo, de um olho furado ou
do meu crânio deslumbrado, aderindo à pedra. Repugnante, o absurdo grito
do galo coincidia como a minha vida [...]. [...]. Para os outros, o universo
parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os
olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma
angústia ao ouvir o grito do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral,
apreciam os “prazeres da carne”, na condição de que sejam insossos. Mas,
desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama
“os prazeres da carne”, justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que
era tido por “sujo”. Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com a
devassidão habitual, porque ela só contamina a devassidão e, afinal de contas,
deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. A devassidão que eu
conheço não suja apenas o meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que
imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado...115

O trecho acima, retirado de História do Olho, é exemplar em seu caráter mítico e para
as considerações que teceremos a respeito da obra. O cosmos é apresentado, metonimicamente,
por um de seus objetos astrais, a Via Láctea, através da qual – não obstante a evidente elevação
– reverbera o caráter excrementício do esperma e da urina, confirmando a natureza de uma obra
que só poderia ter sido produzida por um Deus à latrina.
Mas é preciso igualmente considerar: estes são excrementos de potência fertilizadora
(além do esperma, o amoníaco da urina), dejetos que, jorrados no vazio, viriam a fecundar
também o nosso globo. A gratuidade angustiante, ou o caráter criminoso dessa origem mítica,
reverberam legitimamente nos sentimentos de absurdo e de abandono (“como a minha vida”)
do narrador.
A passagem acima também serve para confirmar que a "metáfora soberana” de Bataille,
como sustenta Barthes, não tem exatamente o intuito de revelar algum fantasma fálico ou jogo

114
Idem, op. cit. 2016. Segunda parte, IV
115
Idem, op. cit., 2003.
64

sexual (“eu não gostava daquilo a que se chama ‘os prazeres da carne’...”) e que, mesmo
transgredindo de maneira explícita e violenta a condição neurótica (dos que se contentam com
prazeres insossos, os que “têm os olhos castrados”), a escrita de Bataille não tem a perversão
como fim (a sujeira pela sujeira, a sujeira que, como ele aponta, é capaz de degradar até mesmo
a devassidão).
Há um jogo maior em questão, cuja “essência [é] elevada e perfeitamente pura”, ainda
que os meios para esse fim sejam os mais sujos possíveis. No “ovo”, no “olho furado” e no
“crânio deslumbrado” (que podem ser lidos simbolizando, respectivamente, a gênese, o
processo civilizatório e o devir humano) aparece novamente, para aqueles que não temem a
obscenidade, a imagem simultânea dos três tempos da história.
A passagem por fim se encerra, reafirmando o caráter circular (cosmológico) dessa
narrativa, que encontra na forma do olho a sua exata correspondência. A fecundação cósmica é
também ela um processo circular, uma via de mão dupla: do “esperma astral” que suja e fecunda
o corpo e o pensamento do narrador, às ações do narrador que, reciprocamente, sujarão e
fecundarão o “universo estrelado” – completa-se um ciclo.
Anos mais tarde, em A experiência interior, Bataille escreveria (e, conforme
procuramos demonstrar acima, temos razões para acreditar que nesta passagem ele se referia às
obras O Ânus Solar e História do Olho):

Quando expressei o princípio do deslizamento – como uma lei que preside à


comunicação – acreditei ter atingido o fundo (fiquei surpreso, ao dar esse
texto para as pessoas lerem, que ninguém tenha visto nele, como eu, a
assinatura do criminoso, a tardia, e no entanto decisiva explicação do crime...
É preciso dizer, não aconteceu nada disso). Imagino hoje não ter me
enganado. Finalmente estava dando conta da comédia – que a tragédia é – e
reciprocamente. Afirmava ao mesmo tempo: que a existência é comunicação
– que toda e qualquer representação da vida, do ser e, em geral, de “alguma
coisa” deve ser revista a partir daí. Os crimes – e, por conseguinte, os
enigmas – de que dava conta estavam claramente definidos. Eram o riso e o
sacrifício (no que se seguia, que achei melhor não conservar, abordei o
sacrifício, a comédia que quer que um só morra no lugar de todos os outros,
e estava me preparando para demonstrar que a via da comunicação (laço
profundo dos povos) está na angústia (a angústia, o sacrifício unem os povos
de todos os tempos)). O recurso aos dados científicos (a moda talvez – o atual,
o perecível – em matéria de saber) me parece de importância secundária,
estando dado o fundamento, a experiência extática de que eu partia.116

116
Idem, op. cit, 2016, Terceira parte.
65

Leitor de Nietzsche, Bataille soube ver o ridículo encenado pela comédia cristã de que
o sacrifício de um dos filhos na cruz redimiria todos os crimes passados e instauraria a
possibilidade do perdão para os crimes futuros. Na imaginação batailliana, cujo fundamento
está na experiência do êxtase, o crime é a condição perpétua da civilização, na medida em que
o excesso presumido na transgressão transborda, desliza, contagia tudo o que virá, encetando
novas transgressões – princípio que ele chama de “deslizamento” e é tão bem ilustrado pelo que
se passa nas narrativas de O Ânus Solar e História do Olho.
“Jesuve” é uma figura que aparece em O Âñus Solar e é também o título de um dos
primeiros textos de Bataille. Em francês Je (eu) e Vesuvius (nome de um vulcão) é a paródia do
nome de Cristo e também uma figura do excesso, da transgressão. Erupções vulcânicas
desencadeiam reações em cadeia sobre todo o ambiente: um crime (um homem sacrificado na
cruz) que transborda em uma corrente interminável de crimes futuros.
Nesse ponto, a pére-version do escritor vai um pouco além também do mito freudiano
de Totem e tabu, que descreve o crime dos filhos como redenção aos crimes e excessos paternos;
do parricídio que estaria então justificado pela criação de uma nova era, baseada na ordem e na
moral. Percebe-se, portanto, como a noção de comunicação sustentada por Bataille diz respeito
aos processos de contágio, ao excesso que contamina por contiguidade, análogo às propriedades
do tabu descritas por Freud nesse mesmo texto:

Já chamei a atenção para a mesma capacidade característica de contágio e


transferência em minha descrição do tabu. Sabemos também que qualquer um
que viole um tabu pela entrada em contato com algo que seja tabu se torna
tabu ele próprio e que, então, ninguém poderá entrar em contato com ele.117

Nesse sentido, a História do Olho deve ser lida como uma espécie de reação em cadeia
em que, a começar pela autoria de Lord Auch, a cada vez que um tabu é quebrado dar-se-á a
abertura para a consumação de novos crimes, num processo de eterno retorno que é emulado
pela linguagem da própria narrativa: circular e infinito. Cada novo crime será a paródia do crime
anterior, o coito será a paródia do crime etc.
Na análise de Barthes sobre a História do Olho, ele parte precisamente desse elemento
estrutural do texto para verificar que há, de fato, um significativo efeito semântico criado pelo
jogo de características perversas proposto por Bataille:

117
FREUD. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos. In. Obras
Completas, Vol. 11 (1912-14). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.24
66

A História do olho é, na verdade, a história de um objeto. Como um objeto


pode ter uma história? Certamente, ele pode passar de mão em mão [...], ou
ainda passar de imagem em imagem; sua história é então a de uma migração,
o ciclo dos avatares (no sentido próprio) que ele percorre a partir de seu ser
original, seguindo a índole de uma certa imaginação que o deforma sem
contudo abandoná-lo: é o caso do livro de Bataille. [...]. [...] ao descrever a
migração do Olho rumo a outros objetos (e, por conseguinte, rumo a outros
usos que não o de “ver”) [...].

Essa arte não tem nada de gratuito, uma vez parece confundir-se com o próprio
erotismo, ao menos o de Bataille. Decerto, pode-se imaginar para o erotismo
outras definições além da linguística (e o próprio Bataille já o mostrou). Mas,
se chamarmos de metonímia essa translação de sentido operada de uma cadeia
à outra, em níveis diferentes da metáfora [...], sem dúvida reconheceremos que
o erotismo de Bataille é essencialmente metonímico. Como aqui a técnica
poética consiste em desfazer as contiguidades costumeiras de objetos e
substituí-las por novos encontros, por sua vez limitados pela persistência de
um tema único no interior de cada metáfora, produz-se uma espécie de
contágio generalizado das qualidades e dos atos: por sua dependência
metafórica, o olho, o Sol e o ovo participam estreitamente do genital; e, por
sua liberdade metonímica, eles trocam infinitamente seu sentido e suas
acepções, de modo que quebrar ovos em uma banheira, engolir ou descascar
ovos (crus), cortar um olho, enucleá-lo ou desfrutá-lo eroticamente, associar
o prato de leite e o sexo, o raio de luz e o jato de urina, morder a glândula do
touro como se fosse um ovo ou alojá-la no próprio corpo, todas essas
associações são ao mesmo tempo idênticas e diversas; pois a metáfora, que as
varia, manifesta entre elas uma diferença regrada, que a metonímia, ao
permutá-las, logo se põe a abolir: o mundo torna-se turvo, as propriedades já
não são bem divididas; escoar, soluçar, urinar, ejacular formam um sentido
estremecido, e toda a História do olho significa à maneira de uma vibração
que produz sempre o mesmo som (mas qual som?).

Assim, à transgressão dos valores, princípio declarado do erotismo,


corresponde — se é que esta não funda aquela — uma transgressão técnica
das formas da linguagem, pois a metonímia não é outra coisa senão um
sintagma forçado, a violação de um limite do espaço significante; [...] de modo
que, na História do olho, o que o jogo da metáfora e da metonímia permite
definitivamente transgredir é o sexo — o que, entenda-se bem, não significa
sublimá-lo, muito ao contrário.118

A tese de Barthes para o texto então é a de que há uma espécie de grande motor, uma
força metafórica, que enceta o contágio ou a permuta metonímica de um significante a outro, e
que embora esses significantes deslizem de um para outro, variam pouco em relação à forma,
preservando em cada metamorfose a força e o sentido da metáfora original que os encetou.
Cada um dos objetos-significantes da narrativa (o prato, o ânus, o ovo, o sol, o testículo,
o olho) vibra assim de acordo com o tom (criminoso) dado no acorde inicial, pelo qual são
transgredidos ao serem retirados dos domínios de sua função utilitária. Barthes também conclui

118
BARTHES. A metáfora do olho. In.: BATAILLE. op. cit., 2003
67

que a música que resulta dessa operação não é exatamente de natureza sexual, mas uma que
aponta para um sentido transgressor à própria sexualidade e em direção a um outro movimento.
Em relação a esse deslizamento dos significantes uns em direção aos outros, merece
também ser destacado que a relação de contiguidade, de contaminação de um significante para
o outro só se dá quando o primeiro deles é devidamente destruído, sacrificado. A passagem
abaixo, retirada de artigo escrito por Michel Leiris para História do Olho, é aquela na qual essa
lógica do sacrifício de um objeto – que, por esse meio, contamina os demais – parece operar de
maneira mais explícita:

[...]. [...] um padre sevilhano, incluído à força em uma orgia sacrílega, para ser
morto em seguida, e cujo olho arrancado será introduzido pela heroína no
próprio antro de sua feminilidade, cena que coroa o relato como uma apoteose
em que se conjugam três maneiras de excesso: delírio sexual, frenesi blasfemo
e furor homicida.

Nesse festival do desregramento e do insulto aos ídolos, em que o atentado ao


olho — órgão eminentemente solar — culmina com o atentado maior, no qual
é um outro “olho da polícia” (uma vez que olho de um homem da Igreja) que
sofre, como o segundo testículo do touro, um tratamento tal que o sexo da
mulher faz figura de boca canibal, não deixam de surgir observações
profundas, mas apenas como lampejos ou como bruscos rasgões no seio de
um céu baixo e enevoado que mascarava o infinito.119

Na novela, essa passagem a que Leiris faz referência – do olho sendo devorado pela
fenda, pelo sexo feminino (“guloseima canibal” é a definição dada por Bataille ao verbete ‘olho’
no ‘dicionário crítico’ da revista Documents) – é precedida por outras cenas de sacrifício
equivalente: destruição do (olho do) toureiro (como uma espécie de exigência sacrificial feita
pelo sol) e do próprio touro (e de seus testículos) e, anteriormente, a destruição de Marcela; ou,
ainda, a destruição dos ovos quebrados nos corpos e lançados à latrina.
E devemos ainda referir, no caso de um dos primeiros objetos dessa série – o prato de
leite para o gato –, a uma destruição simbólica que imprime um novo uso a um objeto cujo uso
estava profanamente consagrado, já que o prato, segundo Simone, “foi feito para a gente sentar”
–, assim como de resto é simbólica a destruição de cada um dos objetos encadeados pela forma
olho, por essa metáfora original.
Transgredir, portanto, implica em sacrifício e o banquete totêmico a que somos aqui
convidados é primitivo e contemporâneo ao mesmo tempo, já que se trata de sacrifício
simbólico ou, dito por outras palavras, de retirar as formas de suas relações profanas, utilitárias

119
LEIRIS, M. Nos tempos de Lord Auch. In.: BATAILLE. op. Cit., 2003
68

– ao destruir ou violentar não as formas (como teria sido do gosto de Sade), mas, precisamente,
as relações que as comunicam a outras formas.

***

Seria mesmo natural que um desavisado chegasse à leitura de História do Olho


esperando encontrar aí uma ode do escritor a essa forma-original, ou ainda um canto
apologético às manifestações mais consagradas da sexualidade perversa – voyeurismo e
sadismo – relacionadas à faculdade visual. Mas essas expectativas não resistem à leitura das
primeiras páginas do texto.
Como observa Barthes, trata-se muito mais da história de um objeto do que a história
de sua função, já que é essa função que é colocada à prova e submetida ao sacrifício. A história
do objeto ‘olho’, na verdade, é contada por Lord Auch, no horizonte da destruição contínua das
relações desse objeto, do sacrifício do olho por quaisquer funções em que ele venha a
reaparecer.
É preciso considerar agora que a eleição desse objeto, dentre todos os possíveis, como
uma oferenda sacrificial não é aleatória. Ela parte do valor metafórico do olho como
significante, por excelência, da condição humana – valor apontado por Barthes e elucidado pela
teoria psicanalítica. Marco Antônio Coutinho Jorge esclarece que

As transformações impostas à espécie humana na decorrência da aquisição da


postura ereta foram tantas e tão profundas, no que diz respeito à sexualidade,
que um elemento absolutamente novo se instaurou de modo preponderante: o
olhar passou a ter uma primazia radical na função das trocas sexuais. [...] ou,
dito de outro modo, a pulsão é, em sua essencialidade, pulsão escópica.

Em um dos quadros de sua obra plena de maravilhosos insights, intitulado A


travessia difícil, de 1963, que retoma e depura outra tela de 1926 com o
mesmo título, René Magritte ilustra, com a simplicidade de seu surrealismo
que se poderia chamar de “minimalista”, essa prevalência do olhar para a
espécie humana. Nela, vê-se a figura de um homem, vestido de paletó e
gravata, postado diante de uma mureta à beira-mar, durante uma tempestade.
Ao largo, ocorre um naufrágio. Atrás da mureta, como que fazendo sombra à
figura do homem, um dos elementos onipresentes na iconografia magrittiana,
um biboquet que parece traçar de modo estilizado uma figura humana. Um
elemento domina a cena: a cabeça do homem transformou-se num grande
globo ocular, todos os sentidos foram reduzidos a um único sentido, a visão.
A vestimenta impecável da figura não deixa sequer um só pedaço do corpo à
69

mostra: assim, descobrimos que não foi apenas a cabeça que se tornou um
grande olho, mas todo o corpo. 120

Uma interpretação possível para a iconografia de Magritte121, portanto, é essa que


apresenta o homem civilizado como sendo o homem que se transformou, gradativamente e em
intensidade cada vez maior, em um enorme globo ocular. Essa lógica pode ser transposta tanto
para um pensamento a respeito da sexualidade quanto ser expandida para uma reflexão acerca
das relações utilitárias que conformam o ethos da civilização.
Não se pode desconsiderar o fato de que vivemos tempos em que o virtual começa a se
sobrepor ao real em termos de importância; marcha aparentemente irrefreável da história e que
afeta todos os níveis das relações humanas: sexuais, econômicas, sociais, nas quais se incluem
as relações de trabalho, de lazer etc. Magritte parece ter compreendido um dado a ser
confirmado já no início de nosso século: que para nós a imagem importa muito mais do que seu
significado. A marcha da civilização, portanto, ao que tudo indica, é a marcha da imagem (ou
a história do olho), e uma sociedade será considerada tanto mais civilizada quanto mais
imagética e quanto menos textual ou narrativa forem as suas relações.
O mundo civilizado se desdobra em relações que, essencialmente, reduzem tudo o que
passa pelo olhar do sujeito à condição de objeto. Sejam elas coisas de fato, objetos, ou outras
pessoas, o desfecho inevitável do olhar civilizado parece ser a objetificação, a coisificação que
traduz o mundo através do ethos do utilitarismo.
A esse respeito, é muito ilustrativa a análise de Bataille em Teoria da religião (1973),
ao sustentar que, desde o primeiro objeto fabricado pelo gênero humano, as marcas dessa
condenação já estavam dadas: “é na medida em que os instrumentos são elaborados com vistas
a seu fim que a consciência os coloca como objetos”, como “interrupções” artificialmente
implantadas no mundo que, antes da presença da ação humana poderia ser definido em termos
de uma “continuidade indistinta”. “O instrumento elaborado é a forma nascente do não-eu.”122.
Nesse mesmo texto Bataille explica que a linguagem, nesses inícios, é também
essencialmente uma ferramenta, ferramenta que virtualiza a tragédia do olhar humano: “a
linguagem define de um plano a outro a categoria do sujeito-objeto, do sujeito objetivamente
visto, na medida em que ele pode ser clara e distintamente conhecido de fora”123.

120
COUTINHO JORGE, Marco Antonio. op. cit., Vol. I. Cap. I, ‘Do olfato à visão: do instinto à pulsão’.
121
Ver APÊNDICE 4
122
BATAILLE. Teoria da Religião. São Paulo: Editora Ática, 1993, p.15
123
Ibidem, p.17
70

Sem nos alongarmos muito nessa discussão, e retomando as consequências que essas
pontuações têm para a História do Olho, chega-se à conclusão de que a novela se constitui
como a narrativa do sacrifício não exatamente de um objeto, mas de toda a direção para onde
esse objeto aponta: trata-se da destruição do homem (engolido de volta para dentro do sexo
feminino) e de sua civilização.
Se a leitura da narrativa batailliana provoca um sentimento de estranhamento à luz
dessas considerações, isso se dá porque a destruição do homem encenada nessa travessia difícil
não encontra na morbidez nem um valor, nem um de seus sentidos possíveis (como
frequentemente acontece à leitura dos textos de Sade).
A destruição proposta pela escrita de Bataille é experimentada pelo narrador e pelas
demais personagens da novela como uma experiência de liberdade irrestrita (compreende-se
agora tratar de liberdade em relação à civilização), mesmo que o êxtase de tal experiência esteja
indissociavelmente ligado à travessia pelo horror.
Sobre esse ponto, Bataille esclarece em A parte maldita que:

O sentido dessa profunda liberdade é dado na destruição, cuja essência é


consumir sem lucro o que podia permanecer no encadeamento das obras úteis.
O sacrifício destrói aquilo que ele consagra. Não parece destruir como o fogo:
só é cortado o vínculo que encadeava a oferenda ao mundo da atividade
lucrativa, mas essa separação tem o sentido de uma consumação definitiva; a
oferenda consagrada não pode ser restituída à ordem real. Esse princípio abre
o caminho para o desencadeamento, libera a violência, reservando-lhe o
domínio onde ela reina sem restrição.124

É o sentido de uma estranha liberdade que se apresenta pela via do sacrifício, tal como o
concebe o escritor, por meio da fórmula paradoxal “o sacrifício consagra aquilo que ele destrói”.
Assim, por não ser equivalente à destruição pelo fogo, a destruição encetada por essa
operação de sacrifício se dá no plano simbólico e se refere à destruição do sentido profano e
utilitário que os objetos tiranicamente impõem em suas relações. O que se consome no gesto de
transgressão é a trama do utilitarismo que entrelaça as relações e, ao mesmo tempo, sacrifica-
se descontinuidade entre os objetos em favor do que Bataille chama de ‘comunicação’.
Por meio do gesto transgressor do sacrifício, da dissolução dos laços que nos ligam
objetivamente e que conformam a realidade, a humanidade se aproxima da temporalidade
festiva e transgressora dos deuses. Sem exagero, pode-se concluir, nesses termos, que a potência
do gesto de sacrifício – por ser capaz de encetar uma violenta reação em cadeia, um processo

124
Idem. A parte maldita. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p.72.
71

de liberação do sentido – é o de suspender a realidade, o tempo histórico e a civilização, abrindo-


nos ou nos conduzindo a um outro “domínio onde [a violência] reina sem restrição” – chamado
pelo escritor de domínio do sagrado.
É exatamente essa “lógica do deslizamento” que conforma História do Olho: a lógica
do crime ou do pecado original, da quebra do primeiro tabu, a partir do qual sucessivos outros
tabus deverão ser quebrados. Em oposição à atitude neurótica que recalca o crime ou à postura
moralista que lhe renega qualquer valor, o que a escrita de Bataille faz é nos convidar a levarmos
adiante o movimento da transgressão em direção ao devir.

***

Não é demais frisar que o erotismo ao qual se associam esses crimes nada tem a ver com
a pornografia. E que Bataille, a despeito do valor que atribui à transgressão (que é outra palavra
dada ao crime), em nenhuma hipótese faz apologia aos crimes praticados pela civilização e em
decorrência do processo histórico do homem125. Conforme analisaremos mais detidamente nos
dois próximos capítulos, a escrita de Bataille se aproxima da transgressão a partir do
significante fenda, isso é, da passagem da realidade descontínua, objetiva, a uma outra
dimensão constituída por outros valores – a dimensão do sagrado.
Também em A parte maldita, o escritor define o sentido dessa operação: “O sacrifício
não é outra coisa, no sentido etimológico da palavra, que não a produção de coisas sagradas
[...] as coisas sagradas são constituídas por uma operação de perda [...]”.126 Bataille esclarece
ainda que “o termo poesia, que se aplica às formas menos degradadas, menos intelectualizadas
da expressão de um estado de perda, pode ser considerado como sinônimo de dispêndio:
significa, com efeito, do modo mais preciso, criação por meio da perda.”127
Acreditamos que seria possível ler esse sentido da perda como uma espécie de “preço a
se pagar” pela assunção de um objeto à condição sagrada: assim, a descoberta do “olho sagrado”
humano (que abordaremos na parte final deste capítulo) exige, em contrapartida, que se deixe

125
Em certo sentido, inclusive, seria possível pensar a transgressão batailliana como uma espécie de cura às
doenças da civilização, como um tempo de recreio dado, um respiradouro aberto em meio ao sufocante peso do
mundo profano. Segundo Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, era esse um dos sentidos que tinham as orgias
dionisíacas no mundo grego.
126
Ibidem, p.22
127
Ibidem, p.23
72

para trás o “olho profano”, o significante que traduz a condição da civilização. A fenda aberta
entre um e outro estados desse significante, entre o olho profano e o olho sagrado, é a poesia: a
destruição de um valor no nível simbólico e, simultaneamente, a assunção de um novo valor.
Dessa relação da poesia com o sacrifício, Bataille escreverá em A experiência interior:

Da poesia, direi agora que ela é, acredito, o sacrifício em que as palavras são
vítimas. As palavras, nós as utilizamos, fazemos delas os instrumentos de atos
úteis. Nada teríamos de humano se a linguagem em nós tivesse de ser
inteiramente servil. Tampouco podemos prescindir das relações eficazes que
as palavras introduzem entre os homens e as coisas. Mas nós as arrancamos
dessas relações num delírio.128

E novamente em A parte maldita: “O sacrifício restituiu ao mundo sagrado o que o uso servil
degradou, tornou profano”.129 No artigo ‘Digressão sobre a poesia de Marcel Proust’130, chega-
se à afirmação de que a fórmula poética seria a tradução de um “holocausto de palavras” e que
“a poesia não é mais que uma devastação reparadora”.
Pode-se concluir a partir da lógica concatenada em História do Olho – de destruição dos
significados servis a que os significantes se associam – que esse procedimento de hecatombe
poética retira determinadas palavras de seu sentido utilitário e racional. Ao retirá-las dos
domínios do saber, opera-se aí uma fenda a partir da qual significantes tais como ‘prato’, ‘leite’,
‘ovo’, ‘urina’, ‘ânus’, ‘sol’, ‘testículos’, ‘via láctea’ e ‘olho’ passam a estabelecer uma relação
com o não-saber.
Para nos atermos somente ao último e mais importante desses exemplos, reconhece-se
facilmente que, ao longo de toda a narrativa, o ‘olho’ é retirado da função ‘ver’, ainda que
permaneça em grande medida obscuro para qual função outra esse significante se abre. Mas
podemos saltar para uma das conclusões que Bataille apresenta em A experiência interior em
relação a essa função outra: “o não-saber comunica o êxtase”.131
É por isso que em determinadas passagens desse mesmo texto Bataille reage de maneira
tão enérgica ao que ele considera como sendo uma espécie de fragilidade da posição de
determinados poetas. O que essa reação veemente mira, na verdade, é abalar o entendimento de
que o jogo poético deva se constituir como um fim superior, fechado em si mesmo ou – ainda

128
Idem. op. cit., 2016, Quarta Parte, “Digressão sobre a poesia de Marcel Proust”.
129
Idem. op. cit., 2013, p.70
130
O artigo consta como um dos apêndices de A experiência interior, edição da editora Autêntica.
131
Idem. op. cit., 2016, Segunda parte, IV
73

pior – que a poesia se preste ao fim serviçal e se sujeite aos desígnios objetivos e objetificantes
da cultura e da civilização.
Para Bataille, cercada nesse domínio de intelectualismo e de erudição, a atividade
poética seria estéril se deixasse de realizar suas possibilidades de transgressão da cultura, se
deixasse de comunicar as possibilidades não-utilitárias e não-racionais da experiência humana
– possibilidades essas para as quais, cada vez mais, fecham-se os olhos do homem civilizado.

Para ir até o extremo do homem, é necessário, num certo ponto, não mais se
submeter e sim forçar a sorte. O contrário disso, a indolência poética, a atitude
passiva, a repulsa por uma reação viril, que decide: é a degradação literária (o
belo pessimismo). [...] Oponho à poesia a experiência do possível. [No caso
da poesia] Trata-se menos de contemplação que de dilaceramento.132

Se fosse o caso de conferir uma utilidade à atividade poética, seria o caso então de dizer
que, para Bataille, a utilidade da poesia é paradoxal: o que a poesia faz é demonstrar ser possível
os caminhos para o impossível. A poesia seria essa fenda entre o possível e o impossível, um
paradoxal caminho de se perder. Do ponto de vista ético, conforme esclareceremos no próximo
capítulo, o que a poesia realiza é tornar legítimo o desejo por objetos impróprios. Ela remete à
existência de uma dimensão outra – a dimensão do sagrado – invisível aos olhos do homem
civilizado de René Magritte e cujo valor, progressivamente – isso é, ao ritmo do que chamamos
de progresso civilizatório – deixa de ser (re)conhecido pela cultura.
Nietzsche foi o primeiro a levantar a questão da urgência de se encontrar um substituto
à altura de Deus por ocasião da morte desse totem. O que o poeta e profeta Zaratustra diz não
é outra coisa senão alertar para o risco da cultura se tornar niilista, uma vez que a morte de Deus
poderia facilmente ser confundida com a morte (a completa perda de direitos e o esquecimento)
da esfera do sagrado.
Para Bataille, a poesia destina-se, portanto, a comunicar esse saber outro em relação à
experiência do possível. Mas se o escritor não chega a tematizar ‘o sagrado’ em sua literatura é
porque, para ele, esse significante é nada quando comparado ao que é da ordem de sua
experiência. Em A experiência interior, por exemplo, ele faz a seguinte observação:

Para prevenir confusões fáceis, esclareço. Não se pode saber nada do homem
que não tenha tomado forma de frase, e o entusiasmo pela poesia, por outro
lado, faz de intraduzíveis séries de palavras o ápice. O extremo está alhures.
Só é inteiramente atingido se comunicado (o homem é vários, a solidão é o
vazio, a nulidade, a mentira). Que uma expressão qualquer o testemunhe: o

132
Ibidem, Segunda parte, II
74

extremo é distinto dela. Nunca é literatura. Se a poesia o expressa, é distinto


dela: a ponto de não ser poético, pois, se a poesia o tem por objeto, ela não o
atinge. Quando o extremo está ali, os meios que servem para atingi-lo já não
estão mais.133

A literatura de Bataille alcança o extremo por uma operação formal, isso é, a partir da
maneira pela qual seus textos são estruturados. No caso de História do Olho, o exercício é o da
violenta destruição da relação estabelecida entre determinados significantes a ponto de tornar
explícita a relação intrínseca entre os domínios do não-saber (domínio da impossibilidade do
significado, e em que o sentido é sempre móvel e circular) e a experiência do êxtase.
Aprofundaremos mais essa relação entre poesia e comunicação do êxtase nos próximos
capítulos. Por ora, nos deteremos ainda no significante ‘olho’, ou melhor, nas possibilidades
que se abrem a partir do sacrifício das relações de objeto desse significante. Pois, na lógica
batailliana, se o sacrifício do ‘olho profano’ faz emergir o ‘olho sagrado’, e se essa destruição
implica o objeto em uma função diferente de sua função útil, a conclusão a que o escritor chega
é a de que deve haver no corpo humano um ‘olho sagrado’ cuja função é outra que não a de
objetificar a realidade.

2.6 O Olho Pineal

O olho fecal do sol também se arrancou dessas


entranhas vulcânicas, e o sofrimento do homem
que arranca seus próprios olhos com seus dedos
não é mais absurdo que essa maternidade anal do
sol. (BATAILLE) 134

Com notável violência, aparece novamente, na passagem acima, a figura do ânus solar.
Este pequeno trecho, extraído do primeiro dossiê do ‘olho pineal’, é a síntese arrebatadora do
significado profundo que emerge, quando se dá a colisão destes dois textos de Bataille: O Ânus
Solar e História do Olho.

133
Ibidem, segunda parte, IV.
134
Deste ponto em diante, todas as referências que seguem neste capítulo foram retiradas da obra BATAILLE.
Œuvres complètes, tome 2 - Ecrits posthumes 1922-1940, Gallimard (1970), e dizem respeito aos quatro
“dossiês do olho pineal” que nela constam. Indicaremos o dossiê numericamente, no caso da presente referência,
trata-se de do dossiê I, que indicaremos por (I)
75

Estabelece-se a paródia das paródias, por assim dizer, de curiosa comicidade: a de que
o excrementício humano encontra, no mais elevado dos céus, a sua correspondência: o sol, a
estrela vulcânica a dejetar no espaço suas partículas.
A metáfora aqui proposta por Bataille é exuberante em sua capacidade de gerar
significados. Ela toma o astro rei como uma estrela em decomposição (“um cadáver no fundo
da cova”) para falar do ser humano em seu ponto absoluto de perda (o ânus, significante do
retorno à animalidade perdida) e retoma o sacrifício dos olhos (significante da transgressão da
civilização edípica, neurótica) para falar do ser humano em estado de queda livre, lançado em
direção ao vazio sem limites.
No espaço celestial, a pluridimensionalidade implica a alternância, ou as muitas
possibilidades de referencial. Assim, dependendo do referencial adotado, o chão sobre o qual
se pisa passa a ser um teto. E o céu passa a ser um abismo, ao qual o homem não ascende,
exceto (se for este o caso) se ele entrar em erupção. O “Jesuve” batailliano, a figura do homem
vulcânico, conjuga em si noções tão díspares quanto a da perda (de si) através do
transbordamento, ou a do colapso ejaculatório – encarnando o paradoxo de uma estrutura que
só pode ascender na medida em que impõe a destruição sobre si mesma.
“Em particular, se ele [o homem] se quebra num instante, assim como um raio que rasga
de alto a baixo um céu puro e não visível, isso ocorre precisamente porque ele se rendeu à mais
radiante e celestial de suas aspirações.”135, ele escreve.
A noção trabalhada por Bataille a respeito do olho pineal diz respeito a essa “mais
radiante e celestial” das aspirações humanas, e é um desdobramento das conclusões a que ele
chega sobre o paradoxo inscrito no corpo humano. O paradoxo aparece porque entre a
horizontalidade plena da vida animal e a verticalidade até então exclusiva das plantas e fungos,
a estranha exceção da postura ereta humana impõe dificuldades sem precedentes à natureza.
Para Bataille, o sentido da ereção aponta para uma espécie de destino solar de nossa
espécie, ao mesmo tempo em que somos atravessados incessantemente e nos perdemos, de
maneira incômoda, no eixo horizontal de nossas necessidades animais.

É fácil discernir duas direções no homem: uma de baixo para cima (incluindo
o retorno de cima para baixo) cujas etapas são marcadas pelas regras da
moralidade e pelos vícios que disso resultam, pelos termos extremos da
cegueira solar e da queda ruidosa; o outro de uma extremidade à outra, análogo
ao dos animais, isto é, paralelo ao solo terrestre, determinando movimentos
que jamais serão nem mais trágicos nem mais ridículos que os das bestas e
que, grosseiramente falando, não têm outro objetivo que a utilidade. Deve ser

135
BATAILLE, G. Œuvres complètes, tome 2 - Ecrits posthumes 1922-1940, Gallimard (1970), (IV)
76

enfatizado, é claro, que a primeira direção é tão material quanto a segunda;


que não pode reivindicar qualquer dignidade particular [...].136

De qualquer forma, uma distinção fundamental pode ser feita entre a direção
horizontal da visão binocular normal e a direção vertical da visão pineal. A
primeira direção parece, à primeira vista, ser a única lógica ou, mais
exatamente, a única útil. A razão (e talvez até a natureza até certo ponto)
protesta contra a existência de um olho que não tem a função de estabelecer
um contato entre um ser e os objetos necessários para sua preservação. Mas
este protesto é quase desprovido de significação, porque, em geral, a razão se
desenvolveu e a natureza foi projetada de acordo com o sistema de impulsos
e ações condicionados por uma visão horizontalmente dirigida. Por outro lado,
é possível determinar um sistema de impulsos e toda uma atividade mental
cujo único objeto são as regiões diametralmente opostas, que não podem ser
vistas, uma vez que se estendem às profundezas.137

Assim, se no corpo humano os olhos determinam relações de objeto inscritas num plano
da horizontalidade, então deve haver também nesse corpo alguma estrutura que, ao sacrifício
daqueles, abra-se para uma outra forma de relação de objeto, determinada, por sua vez, pelo
zênite. “Não há nenhuma razão para que não se incorporem as indicações físicas imediatas que
representam a vertigem do olho pineal como o resultado de uma projeção rigorosa dos impulsos
humanos através do espaço numa direção mais ou menos perto do sol [...]”138.
Nos “dossiês do olho pineal”, Bataille acrescenta: “Se essas considerações dão lugar,
como é provável, a uma impressão de excesso e de gratuidade, é [...] que o espírito humano se
recusa, na maioria dos casos, a registrar as circunstâncias de seus movimentos mais
violentos.”139

Cada homem tem no topo do crânio uma glândula conhecida como o olho
pineal, que na verdade exibe os caracteres de um olho embrionário. Ora,
considerações sobre a possível existência de um olho de eixo vertical (isto é,
sobre o caráter aleatório de corpos que poderiam ter sido diferentes daquilo
que são) tornam sensível o que há de decisivo nos vários cursos possíveis e
que, por estarmos tão geralmente acostumados, chegamos a negá-los na
condição de cursos normais ou naturais. Assim, a oposição do olho pineal à
visão real aparece como a única maneira de detectar a situação precária - por
assim dizer, aprisionada - do homem no meio dos elementos universais.140

Ainda que considerada do ponto de vista científico estrito, isto é, no excesso de rigor
que sufoca a imaginação, as considerações de Bataille não sofrem de falta de fundamentação.

136
Ibidem.
137
Ibidem, (III)
138
Ibidem, (IV)
139
Ibidem.
140
Ibidem, (II)
77

Sua conclusão parte de algumas observações pertinentes. A primeira delas é a de que o advento
da postura ereta (verdadeiramente, a muito custo, uma conquista evolutiva) está relacionado às
peculiaridades profundas da estrutura sexual humana, aos hábitos singulares e aos significantes
sexuais que são da nossa espécie e de nenhuma outra, de forma que, do ponto de vista das
estruturas mentais, torna-se provável a existência de um órgão que, por analogia, carregue as
marcas da ereção.
A segunda observação é a de que: “de fato, este edifício [humano] é considerado como
se tivesse sido totalmente constituído no momento da ereção rápida de um soldado em atenção
(para se referir ao modo militar de existência como um modo geométrico de existência)”141.
Esta observação irônica de Bataille, ao contrariar o senso comum, reflete a noção de uma
evolução gradual e penosa, apoiada (ou puxada, como parece ser a defesa que o escritor faz)
por uma estrutura que serviu para acomodar, no plano psíquico, aquela evolução que se
manifestava no plano do corpo: a ereção.
O escritor observa ainda que o desenvolvimento do pensamento simbólico-religioso (o
advento da linguagem) está em relação estreita, embora enigmática, com o advento do corpo
ereto. Por fim, desdobra-se a partir da relação das referências ao “olho embrionário”, à “situação
precária” do homem em meio aos elementos universais da natureza e ao “caráter aleatório dos
corpos que poderiam ter sido diferentes daquilo que são” que a natureza, por uma espécie de
aborto, teria interrompido as possibilidades e aspirações verticais da espécie humana.
Bataille, partindo da evidência de um olho malogrado cravado no crânio, parece chegar
à conclusão de que, no caso humano, trata-se de um processo evolutivo que jamais chegou a
seu termo; em outras palavras, que humanidade seria uma espécie abandonada (por Deus) no
meio do caminho.
Uma bonita expressão poética da tragédia humana foi pintada por Michelangelo na
Capela Sistina. Como se sabe, há mais de uma interpretação corrente para sua mais conhecida
obra, ‘A criação de Adão’. Por uma delas, afirma-se que a concha na qual se encontra Deus é a
perfeita representação anatômica de um corte lateral do cérebro humano. Se avançamos um
pouco em relação a essa interpretação e nos detemos na articulação dos braços da figura divina
como uma espécie de circuito de transmissão que conecta o que está dentro com o que está fora,
percebemos que a mão esquerda de Deus envolve e toca, em estranha posição, a localização
anatômica da glândula pineal142.

141
Ibidem (III)
142
Ver APÊNDICE 5
78

Prosseguindo pelo circuito imaginário, a graça alcança o braço direito da figura divina
e atravessaria o crânio, caso houvesse um, precisamente na região em que o discurso comum
dá testemunho da abertura do “terceiro olho”. A tragédia, no entanto, se inscreve no diminuto
vazio que separa o homem de Deus: os dedos que quase se tocam determinam a condição
tragicômica do homem como divindade malograda.
De uma eventual objeção de que seria o cérebro, e não o olho pineal, a estrutura
plenamente derivada da evolução do corpo humano, Bataille defende seu ponto de vista com o
argumento de que a racionalidade do córtex responde, em grande medida, ao utilitarismo, à
horizontalidade do campo visual animal, princípios tão comuns ao homem quanto o são ao
símio (embora, no caso desse último, trata-se de um utilitarismo de consequências bem menos
dramáticas):

Em suma, ninguém, no fundo, duvida que essa incapacidade de fixar a atenção


em algo que não seja em objetos muito próximos e muito limitantes é o próprio
princípio da pobreza abjeta das vidas particulares. Mas, para melhor definir o
caráter castrado do olhar escravizado do homem, é permissível recorrer a um
fato aparentemente insignificante, a saber, a presença da glândula pineal no
topo das cabeças humanas.143

Diferente das operações ao mesmo tempo racionalizantes e abstratas (que, sendo


inclusive de ordem superior, nos computadores de nosso tempo, já não são privilégio do
homem), essa estrutura embrionária cravada no interior da cabeça seria a responsável, portanto,
por um tipo de experiência de natureza completamente diversa. “O olho no topo do crânio, se
abrindo ao sol incandescente para contemplá-lo numa sinistra solidão, não é um produto do
intelecto, mas é, ao contrário, uma existência imediata”144. E, a respeito da operação realizada
pelo olho pineal, “ele se abre e cega a si mesmo como uma conflagração, ou como uma febre
que come o ser, ou, mais exatamente, a cabeça.”145
Bataille sustenta ainda que essa visão virtual, que tem na glândula pineal o seu órgão,
pode ser definida como fechada para os “objetos muito próximos e muito limitantes”, mas abre-
se para a visão de um objeto difuso: a abóbada celeste.
Retoma também – para reforçar que, mais do que o objeto, o que importa é a noção do
movimento e do sentido desse olhar – a imagem da cabeça como sendo uma espécie de vulcão

143
Ibidem, (IV)
144
Ibidem, (I)
145
Ibidem, (I)
79

num processo em que se autoconsome em erupção, e que lança jatos que partem de um lugar e
alcançam outro.
O olho pineal assume, assim, “o papel do fogo em uma casa; a cabeça, ao invés de
trancafiar a vida como o dinheiro é trancado num cofre, gasta com desmedida, para, ao final
dessa metamorfose erótica, a cabeça ter se transformado no poder elétrico dos pontos.”146
Consideramos essa passagem interessante, ao mesmo tempo que misteriosa, porque, pelas
imagens da ejaculação vulcânica ou da cabeça metamorfoseada em fogo e em pontos elétricos,
somos, em certo sentido, levados a refletir a respeito do olho pineal como uma espécie de
estrutura de comunicação.

***

Assim irrompe o circuito da glândula pineal: explode em direção a um fora, transborda


para além dos limites humanos, transgredindo-os. Esse circuito – um presente (quase) dado à
humanidade pela natureza por seu corajoso ímpeto da espécie em erigir “descendo da árvore
para tornar-se, ela própria, árvore”147 – Bataille o lê como uma espécie de mito que, se houvesse
se realizado enquanto circuito fechado, teria finalmente estabelecido a comunicação humana
com o impossível que é dado pela experiência do sagrado.
O fato de se tratar de um “olho malogrado” não implica que a experiência do sagrado
não possa se realizar, mas somente que, nos raros casos em que ela acontece, sua manifestação
deva ocorrer afastada dos domínios úteis da consciência e da memória e sempre marcada pelo
sentido da efemeridade.

Dessa forma, o olho pineal, destacando-se a si mesmo do sistema horizontal


da visão ocular normal, aparece numa espécie de halo de lágrimas, como o
olho de uma árvore ou, talvez, como uma árvore humana. [...]. Nessa
transfiguração da natureza, durante a qual a própria visão, atraída pela náusea,
é rasgada e despedaçada pelas rajadas do sol dentro das quais ela olha, a ereção
deixa de ser uma perturbação na superfície da terra e, vomitando um sangue
sem sabor, transforma a si mesma em uma vertiginosa queda no espaço
celestial, acompanhada por um terrível grito.148

146
Ibidem.
147
Conforme ele escreve no verbete ‘O Dedão do Pé’
148
Ibidem.
80

É sobre este ponto dos textos iniciais que Bataille começa a elaborar a estranha noção de
‘comunicação’, a que ele viria a dar maior fundamentação nos textos que compõem a Suma
Ateológica (1943). O termo ‘comunicação’ se destaca no léxico batailliano porque aponta para
uma capacidade da linguagem situada além de sua lógica utilitária, isso é, de ser apenas o meio
através do qual informações são transmitidas e objetos são nomeados.
Como exemplo do que ele entende por comunicação e por esse estranho efeito da
linguagem, podemos considerar essa imagem proposta pelo escritor da erupção vulcânica do
sol, ou a vertiginosa queda, como sentidos de uma única via e, do ponto de vista da comunicação
humana, como um clamor lançado aos céus, como ele escreve em A experiência interior, porém
sem resposta. Não obstante seja terrível, a disponibilidade humana para esse grito, para essa
linguagem que interroga os céus149 tem mais valor do que a resposta que não retorna.
O que essa capacidade ejaculatória, o que esse grito e o que a existência da linguagem
poética dão testemunho – materializados no mito do olho pineal – é da radical disponibilidade
humana em se confrontar com a alteridade, apresentada pela figura informe do abismo celestial.
Por esses termos, o ‘olho pineal’ seria o significante dessa nobreza escrita pela postura vertical,
que aproxima o fato humano do ethos dos organismos que se elevam em direção à luz do sol.

É possível, sem dúvida, ver neste olho craniano apenas mais um sonho cômico
e irritante como qualquer outro, mas essa possibilidade de erro não importa
aqui, no sentido de que não é uma questão que se decida no plano biológico.
Seria claramente inútil demonstrar o caráter ocular do crânio humano, e parece
muito mais apropriado dar razão ao fato de que uma fantasia (no caso em que
a referida glândula nada tenha a ver com um olho) sugeriu, bizarramente, uma
visão imediata do céu. É possível afirmar sobre este assunto que nenhum
sonho poderia responder tão perfeitamente à definição aceita segundo a qual
é o objeto do desejo que assombra obscuramente o espírito.150

Assim, conforme escreve Bataille, a materialidade do desejo, transposta para a


existência de uma estrutura biológica no corpo humano, só é relevante porque aponta para o
desejo por um estranho objeto, que persiste. As reminiscências desse sonho “cômico e irritante”
e que “assombra obscuramente o espírito” insistem não obstante o inegável sucesso – em termos
de recalque – que a experiência histórica da civilização serve para dar testemunho.

149
Nas páginas da Suma, Bataille anota que a única verdade dada ao homem é a de ser uma súplica sem resposta
(eli sama sabactani)
150
Ibidem, (IV)
81

***

Sem dúvida, a persistência desse desejo que Bataille, nos “dossiês do olho pineal”,
chega a chamar de “uma obsessão”, nos fornece uma imagem que entrelaça corpo e poesia,
num ponto em que a mão da ciência não os pode alcançar. No limite, entre a linguagem da
ciência – que, por ser objetiva, desarticula o olho humano de suas possibilidades ligadas ao
sonho e ao desejo por objetos impróprios – e a linguagem poética, mítica, haverá sempre um
vazio, um quase toque.
Para Bataille, a linguagem científica e filosófica refere-se ao domínio das operações
subordinadas, ao domínio da “fraseologia niveladora que chega [ao homem] por meio do
intelecto”, ou ainda a “um itinerário bem definido que liga um signo prático a outro”151. A essas
formas que aprisionam o homem à miséria de uma existência particular, fechada em si mesma,
o escritor opõe o domínio literário do mito, forma que, segundo ele, se assemelha (no sentido
oposto à forma intelectual de um cofre) “a uma incandescência doentia, a um orgasmo
durável”152.
Bataille pontua que, “de início, o mito é identificado não apenas com a vida, mas com a
perda da vida – com a degradação e morte”, escreve também, com ironia, que “o fato de a razão
negar qualquer conteúdo válido às séries mitológicas é a condição que faz com que elas tenham
seu valor mais significativo”.153

Não importa o quão ofuscante é a forma mítica, na medida em que não é uma
simples representação, mas a consumação exaustiva do ser, é possível, em sua
primeira aparência indistinta, passar de um conteúdo de um contêiner, a uma
forma circunstancial que, ainda que provavelmente inaceitável do ponto de
vista da ciência, não parece diferir das construções habituais do intelecto.154

O escritor atribuí também ao olho pineal o caráter dessa forma mítica e transitória, ligada
às “construções habituais do intelecto”. Particularmente, associa-o aos mitos de Ícaro e de
Prometeu, ambos mitos solares, marcados pela ascensão e queda dos heróis. “A ascensão
insana do corpo de Ícaro em direção ao foco solar (não é, de fato, um voo simples) é muito
característica, nesse sentido em que ela exprime de maneira excepcionalmente sedutora a

151
Ibidem, (I)
152
Ibidem, (I)
153
Ibidem, (I)
154
Ibidem.
82

aspiração mais gritante do organismo humano”155. E, em relação ao mito de Prometeu, em que


o fogo do céu também desempenha o papel de objeto,

[...] o fogo do céu nada mais é do que o deslumbramento celestial no qual a


ereção da carne humana enxerga seu fim. Mas também é sabido que, mais
claramente que qualquer outra – a de Ícaro, por exemplo – a lenda de Prometeu
diz respeito ao complexo de castração (os psicanalistas até reconhecem que
alguém poderia ter dado o nome de Prometeu a este complexo, tão oportuno
quanto o nome de Édipo dado pelo pai). Se é dito que o complexo de castração
revive a atrofia de uma aventura humana essencial, isto é, uma aventura cujo
caráter tragicômico, incontestavelmente ridículo, caracteriza e define a
condição humana, a afirmação obviamente soará como precipitada, mas chega
o momento em que as hesitações dos espíritos científicos parecem não apenas
inadequadas, mas também vis. É preferível introduzir, pelo contrário, uma
precipitação ainda mais característica: seria possível determinar, ao longo de
todo complexo de castração, um ponto solar, um clarão luminoso quase
ofuscante a que não se é possível escapar [...].156

É possível que o olho pineal parodie o caráter anal (isso é, noturno) que Bataille
estranhamente atribuiu ao sol, expresso nas linhas finais de O Ânus Solar: “o ânus intacto ao
qual nada suficientemente ofuscante possa ser comparado, exceto o sol (ainda que o ânus seja
a noite)”. Tal paralelo, por certo, se torna mais evidente se tivermos formada a imagem dos
aspectos vulcânicos do sol e o fato de que a estrela (que morre aos poucos em suas ejaculações)
está destinada a se tornar um buraco negro.
O sacrifício de Édipo, a castração auto infligida, parodia, assim, o sacrifício solar,
exceto, talvez, pela inversão dos termos: é a destruição dos olhos, afinal (do sistema a um só
tempo limitante e de recalque da civilização, que liga o homem a seus objetos), que determina
a abertura, no crânio, da fenda pela qual se dá a experiência vertiginosa da luz: a experiência
narrada nos mitos de Ícaro e de Prometeu.
Retomando a intepretação da obra de Michelangelo a que fizemos referência mais
acima, podemos pensá-la por dois sentidos. O primeiro deles é o da castração: a força poética
dessa pintura de beleza incomum estaria dada pela expressão de nossa quase divindade, de
nossa divindade malograda: o que teria sido do homem se lhe tivesse sido possível alcançar o
toque da mão divina? Mas é também possível ler essa interpretação como uma espécie de mito
de gênese, em termos das possiblidades que ainda estão de pé em desatrofiar essa “aventura
humana essencial”. O que pode ser da humanidade, afinal, que se desdobrando em um
movimento igualmente trágico, seja capaz de, pelo toque, alcançar seu destino solar impossível?

155
Ibidem, (IV)
156
Ibidem (IV)
83

Tomada em seu aspecto de mito, a História do Olho de Bataille consiste numa paródia
que tem por objeto toda a história humana à qual ele se contrapõe e propõe a sua père-version.
Se a história da humanidade é a história de seus recalques e de seus odientos crimes, o que a
História do Olho propõe é a inversão do complexo de castração e a transgressão dos crimes
paternos. É a história que reclama os direitos desse “sonho cômico e irritante” “que assombra
obscuramente o espírito”, o sonho pela experiência imediata, pela experiência do sagrado,
interpretada “como um desejo irresistível da própria pessoa se tornar o sol (um sol cego ou um
sol que cega, isso não importa)” 157.

***

157
Ibidem, Le Jésuve.
84

CAPÍTULO 3: ACÉPHALE

3.1 Introdução: Uma Cabeça Aberta para o Azul

[...]. Havia agora uma fenda na minha cabeça,


tudo o que pensava me fugia. Queria dizer uma
coisa e, no mesmo instante, não tinha nada a
dizer... (Bataille, O Azul do Céu)

[...]. – Mesmo que tivesse havido guerra, a guerra


espelharia o que estava acontecendo na minha
cabeça.
- Mas como a guerra poderia espelhar o que quer
que fosse da sua cabeça? Uma guerra teria feito
você ficar feliz?
- Por que não?
- Então você acha que uma guerra poderia nos
levar à revolução?
- Estou falando da guerra, não sobre ao que ela nos
levaria. (Ibidem)

O céu sobre mim, céu puro, céu profundo! Ó


abismo de luz! Olhando-te, estremeço de divinos
desejos. Atirar-me até a tua altura – é esta a minha
profundidade! Refugiar-me na tua pureza – é esta
a minha inocência! A sua beleza encobre o deus:
do mesmo modo escondes tu as tuas estrelas. Não
falas: assim anuncias-me a tua sabedoria. [...].
Que assim belo a mim viesses, envolto na tua
beleza, que assim mudo me fales, revelado na tua
sabedoria. – (Zaratustra)

Escrita em 1935 por Georges Bataille, a novela O Azul do Céu tem como uma de suas
marcas estilísticas principais a colisão de um tempo referencial e histórico com um tempo febril,
alucinatório.
No primeiro desses tempos, que toma como pano de fundo a guerra civil espanhola a
pretexto de comentar a ascensão do fascismo na Europa, o texto se desdobra pelas aventuras
amorosas do narrador com três mulheres: uma ativista política, uma cuidadora (no sentido
maternal do termo) e a terceira – de sugestivo nome Dirty – cujo comportamento é descrito
como sendo promíscuo e desregrado.
Essa obra não seria de maior interesse se estivesse restrita a tais lugares-comuns
literários. Mas a marca inovadora que Bataille traz para a escrita a partir dessa novela é a
85

presença simultânea de um tempo alucinatório, que perturba a linearidade do tempo histórico


da narrativa.
A começar, portanto, pela ausência de linearidade, pelos deslocamentos abruptos para
frente e para trás, a narrativa adota em alguns momentos uma perspectiva ampla e dispersa
demais, ao passo que, em outros, se torna bastante condensada, quase como se estivesse sob o
foco de uma obsessão. As histórias contadas pelo narrador e protagonista Henri Troppman a
outros personagens são por vezes repetidas na íntegra, outras vezes adulteradas grosseiramente.
Ao que nos parece, o jogo a que nos propõe Bataille é o de acompanhar como essa
estrutura dos dois tempos – o factual e o alucinatório – se costura por entre as constantes perdas
de consciência do narrador, para, em seguida, ser retomada no ponto de uma atenção focada em
detalhes mínimos. A título de ilustração, em algumas passagens os sonhos são contados como
se estivessem carregados de pressentimentos e significados, mas, numa virada abrupta da
perspectiva do mesmo narrador, passam a ser desprezados como se fossem fortuitos e
desprovidos de qualquer possibilidade de significação.
O Azul do Céu se apresenta, assim, como uma imagem possível da vertigem – em seus
constantes avanços e recuos, que distorcem a percepção do espaço e do tempo a partir da
perspectiva da não linearidade. O texto funciona como um registro histórico e literário da
experiência da angústia levada ao limite da embriaguez, sobretudo se consideramos o contexto
em que se passa a história, que coincide com o contexto em que Bataille o escreveu.
A ascensão do fascismo na Europa foi marcante em seu caráter de violenta ruptura com
valores de inspiração iluminista do humanismo e do liberalismo; tal ruptura deixou no ar,
violentamente, um sentimento de suspensão do tempo histórico, traduzido no sentimento da
catástrofe iminente, como uma nuvem carregada que se forma de maneira súbita no céu azul.
Conforme a exposição já feita nos dois capítulos anteriores desta tese, embora os valores
defendidos e sustentados pela literatura de Bataille estivessem em oposição direta aos preceitos
iluministas e humanistas da cultura, isso jamais o aproximou de tendências fascistas. “O
fascismo subordina servilmente todo valor à luta e ao trabalho”158, ele escreve nas páginas da
revista Acéphale.
A exemplo da confrontação que antes dele fora proposta também pelas textualidades de
Sade e de Nietzsche, a violência e a transgressão elaboradas nos escritos de Bataille se dirigiam
não a uma civilização ou a uma cultura específica, mas a todo o processo histórico e civilizatório

158
BATAILLE. Acéphale. Trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie Editora, 2014, Vol. V
86

que implicou o ser humano na condição de “ter os olhos castrados”, conforme a definição que
apresentamos no capítulo anterior.
No caso de Bataille, como se sabe, a noção de um sistema que engloba a totalidade das
relações humanas entre si e as relações com os objetos deriva diretamente das leituras que o
escritor fez da obra de Hegel. A esse respeito, a fim de evitar uma confusão fácil, é importante
observar que a relação de transgressão que Bataille estabelece com essa obra já é
suficientemente explícita para afastar a consideração de que, no texto batailliano, tratar-se-ia de
simples expressão do que hoje chamamos “contracultura”. A proposta de Bataille, como
veremos, de um para além da cultura é de fato mais radical, equiparável ao pensamento
nietzschiano nos termos dos conceitos de ‘super-homem’ e ‘eterno retorno’.
A esse respeito, o livro Georges Bataille, filósofo, de Franco Rella e Susanna Mati,
propõe analisar a apreensão que Bataille teve sobretudo da filosofia hegeliana. É ponto pacífico
entre os filósofos que o sistema que Hegel desenvolve de maneira obstinada em A
Fenomenologia do Espírito na prática esgota as possibilidades de apreender, em formas cada
vez mais complexas, o conhecimento enquanto fenômeno desdobrável da relação sujeito-
objeto.
A relação sujeito-objeto é, portanto, o fundamento do pensamento e da cultura, e é a
partir dela que se inicia o tempo da história. A respeito dessa interpretação, Franco Rella pontua
que

Bataille está diante do imenso sistema hegeliano, que parece dar conta de todo
o real, ao menos de tudo aquilo que é pensável. Mas este é o excesso desse
sistema, a sua angustiante bulimia, que descarta e tritura literalmente tudo
aquilo que não pode ser engolido. No início desse sistema – o seu fundamento
– está o saber absoluto, que se estende e se manifesta no mundo e no tempo.
Bataille está convencido disso, como, aliás, está convencido de que é de
qualquer forma necessário pensar realmente ‘aquilo que excede a
possibilidade de pensar’, embora esse excesso ‘não possa ser filosoficamente
fundamentado, já que o excesso excede o fundamento’. O problema que
Bataille se colocou é, portanto, aquele de pensar o impensável, e para fazer
isso se pode e se deve colocar em campo uma filosofia futura, como Susanna
Mati intitula o seu ensaio. Uma filosofia, acrescento, que Bataille começou
então a pensar e que é ainda hoje uma tarefa do pensamento.159

É por isso que, mesmo no texto literário de O Azul do Céu, a presença de um tempo
alucinatório em contraponto ao tempo histórico torna explícita a existência desse “excesso” em
relação ao absoluto, ou, nas palavras de Rella, deixa claro o empenho de Bataille por “pensar o

159
RELLA, Franco. MATI. Susanna. Georges Bataille, filósofo. Editora UFSC. Florianópolis, 2010, p.28
87

impensável”, por encontrar, pela linguagem, uma forma de comunicar aquilo que excede os
fundamentos do pensamento. Em relação ao real, há um resto, uma reminiscência de angústia,
de terror, de loucura que, como um sonho, insistem em falar daquilo que “assombra
obscuramente o espírito”.

[no caso de Bataille] Estamos diante, evidentemente, de uma tentativa de


destituir Hegel. [...] Trata-se de colocar “na mesma base (ou no final) da
reflexão hegeliana uma equivalência da loucura. [...]. Bataille, que tinha
declarado o desejo de ser ‘o dente doente’ de Hegel, agora se propõe ser aquela
loucura que está implícita no sistema hegeliano e que Hegel sempre negou.
No começo e no final do percurso do pensamento não se encontra o saber
absoluto do espírito absoluto, mas ‘a impenetrável simplicidade de aquilo que
é’, e é esta que abre ‘o fundo dos mundos’, o ilimitado que não tem mais
sentido para o logos e que pode ser colhido apenas no ‘não-saber da
experiência’.160

O exercício literário proposto por Bataille em O Azul do Céu coloca em cena, através
da noção de um tempo alucinatório que corre paralelo ao tempo histórico, esse “excesso que
excede o fundamento”. É nesse sentido que a literatura que se apresenta não em referência a
um contexto político, mas como a linguagem do “não-saber da experiência” termina por estar
situada fora da história. “A literatura (a ficção) substituiu o que era anteriormente a vida
espiritual, a poesia (a desordem das palavras), os estados de transe reais. A arte constitui um
dominiozinho livre fora da ação, pagando sua liberdade com a renúncia ao mundo real”161.
Talvez seja por essa capacidade do texto literário – de, simultaneamente, funcionar
como uma espécie de espelho de determinados contextos políticos e poder se manter fora do
tempo histórico – que Bataille observa que “o domínio das artes abarca em certo sentido a
totalidade: mas esta lhe escapa de qualquer jeito”162.

***

O que dá a tônica de O Azul do Céu é o sentimento da totalidade histórica que escapa a


todo momento, e que se esfacela numa miríade de fragmentos nos quais se perdem

160
Ibidem, p.43-44
161
BATAILLE. Sobre Nietzsche: vontade de chance: seguido de Memorandum: A risada de Nietzsche;
Discussão sobre o pecado; Zaratustra e o encantamento do jogo: Suma Ateológica, volume III. Tradução
Fernando Scheibe. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p.32
162
Ibidem, p.32
88

vertiginosamente personagens e leitores dessa narrativa feita de cacos. A experiência


fragmentária do protagonista Troppman está cravada entre a violência anunciada do lado de
fora (o absurdo mundo político, o tempo histórico do fascismo, que ele despreza) e a violência
sentida do lado de dentro (sua vida espiritual, sua febre e seu transe que ele invoca como sendo
necessidades absolutamente legítimas).
A despeito das alternâncias entre esses dois polos e dos deslocamentos no tempo da
narrativa, um elemento constante vai se tornando claro e se desdobrando conforme avançamos
em sua leitura. Assim como já o havia experimentado em História do Olho – e embora o faça
de maneira mais sutil neste caso –, Bataille também parece ter organizado O Azul do Céu a
partir da presença de um significante mestre: a cabeça, ou melhor, o significante acefálico da
ausência de cabeça, que marca a experiência vertiginosa do movimento de perder a cabeça, ou
seja, o movimento de entrada na loucura.
A ausência desse significante se manifesta sob a forma da doença constantemente
anunciada ora como espécie de temor melancólico, ora como trunfo: é a loucura. Conforme as
descrições de Troppmann e Dirty: “A embriaguez nos havia lançado à deriva, em busca de uma
sinistra resposta para a mais sinistra obsessão.”163, “Vi que não aguentava mais. Estava a ponto
de cair. [...]. Seu olhar mau, acossado, teria me feito perder a cabeça. [...]. Com certeza ia
delirar.”164 “Estou doente, eu, entenda, e tenho uma coisa na cabeça, eu.”165 Etc.
Também neste diálogo entre o protagonista e sua cuidadora, a “sinistra obsessão”, tão
temida quanto procurada, se deixa ver no signo da loucura, alimentada no seio da razão como
uma espécie de conspiração interna, secreta e, no entanto, manifesta sobretudo como sintoma
de uma ordem que, mesmo pelo emudecimento das palavras, pressente e abraça a própria ruína:
“- O que há? - Vou ficar louco. - Mas por quê? - Sofro. - Que posso fazer? - Nada. - Não pode
me dizer o que tem? - Não creio.”166
O paralelo se estabelece entre a dissolução da ordem política conhecida (pela ascensão
do fascismo) e o movimento simultâneo da ruína interna do ‘eu’. E a estrutura narrativa de O
Azul do Céu termina por expor a céu aberto a natureza muda da loucura, como um processo que
gradualmente excede o logos, isso é, que aos poucos vai se estabelecendo para além do mundo
do saber e da linguagem.

163
Idem, op. cit., 1986, p.16
164
Ibidem, p.17-18
165
Ibidem, p.21
166
Ibidem, p.34
89

É por isso que, no horizonte de Bataille, a loucura é apresentada em uma íntima relação
com a possibilidade do êxtase:

Eu sei. Morrerei em condições desonrosas. Meu gozo hoje é ser um objeto de


horror, de aversão, para o único ser ao qual estou ligado. O que quero: o que
pode acontecer de pior a um homem que risse disso. A cabeça vazia onde “eu”
sou tornou-se tão medrosa, tão ávida, que só a morte poderia satisfazê-la.

[...]. A partir de um ignóbil sofrimento, de novo a insolência que, apesar de


tudo, persiste de maneira dissimulada, cresce, primeiro lentamente, depois, de
repente, num clarão, me cega e me exalta numa felicidade sustentada contra
toda razão. A felicidade no momento me embriaga, me inebria. Eu a grito, eu
a canto com toda a força. Em meu coração idiota, a idiotice canta a plenos
pulmões. EU TRIUNFO!167

Para tentarmos compreender em que sentido, para Bataille, a experiência da morte pode
ser entendida como essa experiência de satisfação extrema168 e a loucura como uma experiência
de triunfo (a ponto de serem apontadas, na passagem acima, como se fossem saídas), será
preciso lembrar a maneira pala qual o escritor traduziu o pensamento de Hegel na epígrafe de
Madame Edwarda: “A morte é o que há de mais terrível, e manter o trabalho da morte é o que
exige maior força”.
Acerca dessa elaboração, Franco Rella sintetiza com muita precisão que “Bataille opõe
ao sistema [hegeliano] a experiência, ao saber o não-saber, que não é a sua negação, mas o
saber do limite, o saber que procede, sem se deter no espaço limiar entre o possível e o
impossível”.169

A experiência do limite é “o êxtase inominável”, em que se percebe que “a


morte não é somente desaparecimento”, mas um “movimento intolerável”
impresso na própria vida. O pensamento dessa experiência se produz e se

167
Ibidem, p.27 e p.28, grifo nosso.
168
Para as reflexões que faremos neste capítulo, uma importante referência será o texto de Freud “Além do
Princípio do Prazer” (1920 [2010]), em que o psicanalista parte da noção econômica de que “o aparelho psíquico
se empenha em conservar a quantidade de excitação nele existente o mais baixa possível, ou ao menos constante”,
ao que atribui o nome de “princípio do prazer”. (p.122) Mas, nessa mesma passagem, Freud aponta a inadequação
desse princípio para generalizar o modo de funcionamento da psique: “devemos assinalar que, a rigor, não é correto
dizer que o princípio do prazer domina o curso dos processos psíquicos” (ibidem). Nesse ponto de virada do
pensamento freudiano, reconhece-se a existência de uma pulsão direcionada à “anormalidade”, a pulsão que, ao
invés de procurar estabelecer a inércia e o reequilíbrio do aparelho psíquico, atua, ao contrário, no sentido de
desequilibrá-lo – e de provocá-lo a um estado de movimento constante. Freud deu a esse caráter anômalo da pulsão
o sugestivo nome de “pulsão de morte”, ligada ao ímpeto pela repetição de experiências que, ao menos
inicialmente, são desprazerosas. Nesse mesmo ensaio, Freud nomeia também o ‘princípio de realidade’ como uma
modulação do princípio do prazer que implica o aparelho psíquico não necessariamente na busca do prazer (que
pode ser adiado indefinidamente), mas simplesmente num constante desvio a quaisquer experiências que possam
ser percebidas como desprazerosas.
169
RELLA, Franco. MATI. Susanna, op. cit., p.28-29
90

compõe somente no excesso, e fora do excesso não existe verdade. Não existe
verdade, portanto, fora da necessidade de ver aquilo que é impossível ver, de
pensar aquilo que é impossível pensar.170

O não-sentido é o sentido além do sentido. Como nomear o que a filosofia


nunca soube nomear [...] que, uma vez dito ou escrito, seria “louco ou
assustador”? [...]. A produção da morte, a produção do negativo, a elaboração
do negativo, portanto, a elaboração da morte. Mas a nossa morte? 171

Segundo Rella, portanto, a escrita de Bataille teria legado um limite que a filosofia
dificilmente poderia transpor, mas que, precisamente por isso, na constatação de que não existe
verdade “fora da necessidade de ver aquilo que é impossível ver”, é que se verifica a
importância de avançarmos junto a esse limite, mesmo que ele seja demasiado “louco ou
assustador”. Neste capítulo procuraremos mostrar que elaboração da morte (“um movimento
intolerável impresso na própria vida”) – que a manutenção do trabalho da morte – é o limite
para onde aponta a escrita de Bataille.

***

No capítulo anterior, procuramos demonstrar que, em História do Olho, o gesto de


sacrifício do ‘olho’ mirava – pela destruição do objeto que dá sustentação à civilização edípica
– a destruição do homem moderno, ancorado na neurose e no recalque. A morte é então
apresentada como gesto de sacrifício pelo qual se invoca a possibilidade de destruição das
relações que estabelecem a sustentação desse ‘eu’, desse homem, dessa cultura.
Apontamos ainda que, ao elaborar textualmente a noção de um ‘olho pineal’, Bataille
atribui à morte do ‘eu’ a imagem que não é a de um fim, mas a de uma abertura em direção a
outro tempo. Há de se esclarecer então, a partir desse ponto, a natureza dessa experiência, falar
das consequências dramáticas desse gesto, bem como das implicações para aqueles que,
perdendo a cabeça e adentrando nos domínios do tempo alucinatório de O Azul do Céu,
sobrevivem a esse movimento decisivo e solitário.
A primeira dessas consequências está descrita acima: na experiência do triunfo, do
transe, da abertura do ‘olho pineal’, da ‘fenda no topo da cabeça’, para o azul do céu. Mas não

170
Ibidem, p.34
171
Ibidem, p.42
91

é suficiente descrever o movimento, é preciso considerar o conteúdo que nele se manifesta e o


que nele é colocado em questão. Seria ingênuo supor que uma experiência da magnitude do
êxtase pudesse ser encerrada em si mesma – ou melhor, que, no retorno do tempo alucinatório
para o tempo histórico, essa experiência de transe não trouxesse uma série de implicações para
a realidade neurótica.
É preciso considerar, portanto, as consequências do retorno, as consequências de quando
o sujeito volta do tempo alucinatório que ele experimenta em um transe místico, para o tempo
histórico, em que ele, por força das circunstâncias, é obrigado a viver. É preciso considerar, por
fim, as consequências que isso teve para o pensamento que Bataille desenvolveu a respeito da
linguagem poética.
No capítulo anterior, analisamos também a père-version batailliana, a partir da ótica da
transgressão da imagem de Deus para a proposição da imagem de um deus à latrina no livro
História do Olho. Se avançamos um passo além, veremos, neste capítulo, como toda a
concepção da comunidade Acéphale, fundada por Bataille, estava assentada não mais numa
paródia dessa figura, a um só tempo paterna e celestial, mas – a partir do que podemos
considerar uma relação tão profunda quanto carnal com os textos de Nietzsche – na máxima de
que “Deus está morto! Nós o matamos”. Ou seja, trata-se de uma comunidade fundada sobre a
inconsolável ausência de centro deixada por essa morte.
Escrita como crime, no entanto, a ‘morte de Deus’, nesses termos, jamais poderia ser
assumida na perspectiva tranquilizadora de um humanismo ateísta. Enganam-se os leitores que
encontram em Nietzsche a máscara afirmadora de um cinismo ascético e que ignoram – como
demonstra Pierre Klossowski em texto que analisaremos mais adiante – a íntima relação da
‘morte de Deus’ com a loucura, que consumiu como um fogo implacável os anos finais da vida
do filósofo alemão.
Pois no mesmo aforismo de A Gaia Ciência em que Nietzsche sentencia a ‘morte de
Deus’, ele deixa também uma interrogação inquietante a seus assassinos: “A grandeza desse
ato não é demasiado grande para nós? Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses
para parecermos dignos dele?”172
Já em Assim falou Zaratustra, o filósofo parece fornecer uma pista para o significado
dessa nova divindade, um significado que também dificilmente pode ser lido como

172
Nietzsche. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2005, p.116
92

tranquilizador: “Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma
estrela dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós.”173
A própria experiência de Nietzsche, como dissemos, viria tragicamente a confirmar a
natureza violenta – expressa com toda força pela noção de ‘caos’ – desse tempo que se coloca
do lado de fora do tempo histórico, da cultura e da civilização assentadas sobre a noção de
Deus: Nietzsche, o primeiro de seus assassinos confessos, por fim perderia a cabeça – se
tornaria louco.
A comunidade de textos que viria a compor a revista Acéphale (1936-1939) não tinha
outro intuito senão o de explorar as literaturas de Sade e de Nietzsche no que elas ofereciam de
limite à própria literatura e comungar das experiências desses escritores. Os membros do que
viria a ser a comunidade Acéphale, uma sociedade secreta, perceberam a inclinação das
literaturas de Sade e de Nietzsche em estabelecer comunicação com uma forma inaudita e
radical de alteridade.
O primeiro passo, portanto, nesse movimento de saída da civilização – que encontrava
então no fascismo a sua expressão mais acabada (o “estado da arte” da civilização neurótica) –
era, como escreve Bataille no volume II da revista, cortar-lhe a cabeça e levar o pensamento de
Nietzsche a respeito da “morte de Deus” a um novo patamar de radicalidade.

A busca de Deus, da ausência de movimento, da tranquilidade, é o medo que


fez soçobrar toda tentativa de comunidade universal. O coração do homem
não é inquieto somente até o momento em que repousa em Deus: a
universalidade de Deus permanece ainda para ele uma fonte de inquietude e
apaziguamento que só se produz porque Deus se deixa fechar no isolamento e
na permanência profundamente imóvel da existência militar de um grupo. Pois
a existência universal é ilimitada e por isso sem repouso: ela não refecha a
vida sobre si mesma mas a abre e a relança na inquietude do infinito. A
existência universal, eternamente inacabada, acéfala, um mundo semelhante a
uma ferida que sangra, criando e destruindo os seres particulares finitos: é
nesse sentido que a universalidade verdadeira é a morte de Deus.174

3.2 Pulsão de Morte: Literatura e a Experiência da Loucura

173
Idem, op. cit., 1998, p.34
174
BATAILLE. op. cit., 2014, Vol. II, p.23
93

[...] é preciso dizer, no entanto, que um


primeiro movimento em direção ao homem
inteiro é a equivalência da loucura
(BATAILLE)175

Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud se refere à vida, no sentido orgânico do termo,


literalmente como um estado reafirmado pela condição da inércia. Tal proposição da vida como
a expressão de um estado inercial, por certo, contraria o senso comum, que costuma atribuir tal
qualidade ao mundo inorgânico. Mas Freud insiste na peculiaridade desse pensamento, e,
levando-o às últimas consequências, chega ao ponto de alertar seu leitor de que “se o que daí
resultar parecer ‘profundo’ ou causar impressão de mística, sabemos que não podem fazer a
censura de que buscamos esse efeito”.176
Em outro momento, talvez impressionado pelo novo e assustador continente a que lhe
conduzia essa premissa, ele escreve: “nos sentiríamos aliviados se toda essa nossa estrutura de
pensamentos demonstrasse estar errada.”177
Avançando ainda por esse caminho, Freud define a natureza das pulsões nesse mesmo
texto e chega a uma conclusão essencial a respeito do pensamento para o qual ele começava a
se abrir:

No momento somos tentados a levar às suas últimas consequências a hipótese


de que todas as pulsões querem restabelecer algo anterior. [...] Seria contrário
à natureza conservadora das pulsões que o objetivo da vida fosse um estado
nunca antes alcançado. Terá de ser, isto sim, um velho estado inicial, que o
vivente abandonou certa vez e ao qual ele se esforça por voltar, através de
todos os rodeios de seu desenvolvimento. Se é lícito aceitarmos, como
experiência que não tem exceção, que todo ser vivo morre por razões internas,
retorna ao estado inorgânico, então só podemos dizer que o objetivo de toda
vida é a morte, e, retrospectivamente, que o inorgânico existia antes que o
vivente.178

É curioso notar como essa passagem dialoga de maneira exemplar com um trecho que
Philippe Sollers destaca da novela de Sade, Juliette, no livro Escrita e a Experiência do Limite:

Lembre-se sempre, disse o Papa, de que não há destruição real, que a própria
morte não é nada disso, que, física e filosoficamente vista, é apenas uma
modificação adicional da matéria na qual o princípio ativo ou, se você preferir,

175
Idem. op. cit., 2017, p.30
176
FREUD, op. cit., 2010, p.148
177
Ibidem, p.154
178
Ibidem, p.148-149
94

o princípio do movimento, age sem interrupção, embora de maneira menos


aparente. Assim, o nascimento de um homem não é mais o começo de sua
existência do que sua morte é a cessação; e a mãe que o dá não mais lhe dá
vida, como o assassino que o mata, lhe dá a morte; o primeiro produz alguma
matéria organizada de uma certa maneira; o segundo fornece a ocasião para o
renascimento de outra matéria; e ambos criam. Nada nasce essencialmente,
nada perece essencialmente, tudo não passa de ação e reação da matéria; tudo
é como as ondas do oceano que sobem e descem, como as marés do mar,
vazando e fluindo sem parar, sem que haja perda ou ganho de uma queda no
volume das águas; tudo isso é um fluxo perpétuo que sempre foi e sempre
será, e de onde nos tornamos, embora não o conheçamos, os agentes principais
em razão de nossos vícios e virtudes.179

Sollers acrescenta ainda que tal verdade terrível desnudada pelo Papa a Juliette é
“precisamente o que nossa cultura gostaria de abolir e esquecer”. Trata-se de “um pensamento
insuportável para o nosso pensamento, que aparece assim como uma profanação absoluta”, esse
em que “a cultura redescobre sua arbitrariedade, sua gagueira originária”, o nível em que a
cultura se “lembra do caos do qual toda ordem emergiu”, “a profanação de todo o sistema que
se enraíza na desordem inicial”.180
Devemos então considerar que a “impressão mística” a que Freud faz referência mais
acima diz respeito ao retorno a uma temporalidade anterior e, simultaneamente, posterior àquela
do tempo histórico, como a expressão do contínuo morte-vida-morte ou inorgânico-orgânico-
inorgânico.
Freud, assim como Hegel, considerou que o acesso a essa temporalidade anterior e
posterior à cultura e ao saber era impossível ou ao menos intransponível ao campo da
linguagem. Por outro lado, ambos os pensadores sustentaram a genuína pertinência da mística
como a expressão daquilo que se situa nesse “para além” da cultura.
A relação simbólica intercambiável entre os termos ‘Deus’ e ‘cultura’ aparece no texto
de Freud “O Mal-estar na Civilização”, graças ao qual podemos pensar, por contraposição, o
que seria esse “além” ou, ainda, quais seriam as consequências de se colocar do “lado de fora”
da cultura.

179
SOLLERS, Philippe. Writing and the Experience of Limits (1968). Trans. David Hayman. New York:
Columbia University Press, 1983, p.58-59
180
Ibidem, p.60
95

Nesse texto, Freud apresenta a definição de ‘cultura’ a partir de sua função: “A principal
tarefa da cultura, sua autêntica razão de ser, é nos defender contra a natureza.”181, “A cultura
[...] não cessa de realizar sua tarefa de proteger o homem contra a natureza.”182
Nas mesmas passagens, Freud também apresenta a imagem do que ele considera como
sendo “a natureza”, mas, com um detalhe significativo, ele o faz pelo viés de uma radical
despersofinicação. Ou seja, ao contrário da noção romântica de uma natureza dócil,
domesticada e domesticável, Freud a compreende em sua dimensão terrível, infinitamente
superior aos poderes e pretensões do homem – a natureza em sua dimensão cósmica, por assim
dizer, na qual a vida ocupa apenas uma estreita faixa de um vasto campo em que a existência
inorgânica e a morte são a regra.
Em uma dessas passagens, ele observa que

[...] ninguém comete o engano de achar que a natureza já está dominada, e


poucos têm a audácia de esperar que algum dia ela se sujeite inteiramente ao
ser humano. Existem os elementos, que parecem zombar de toda tentativa de
coação humana. [...]. [...] o doloroso enigma da morte, para a qual até agora
não se achou e provavelmente não se achará remédio. Com essas forças a
natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel, implacável, sempre nos
recordando nossa fraqueza e desvalia, que pensávamos haver superado
mediante o trabalho da civilização.183

E, diante da imagem terrível que ele apresenta da natureza, Freud apresenta esta conclusão tão
óbvia quanto necessária: “Mas como seria ingrato, como seria tolo pretender abolir a cultura!
O que então restaria seria o estado da natureza, e este é bem mais difícil de suportar.”184
Da definição de “cultura” por contraposição direta à noção de “natureza”, deduz-se que
todas as coisas do mundo (sujeitos, objetos, relações instituições e linguagem) são fatos da
cultura, que não há rigorosamente nada em nosso mundo que pertença ainda ao mundo natural.
E isso a tal ponto que, pela definição de Freud, a noção de contracultura não se
sustentaria, uma vez que qualquer experiência humana da ordem do possível faz parte da
cultura, mesmo quando seu intuito for agir em oposição a ela.
Em outras palavras, pode-se inferir desdobrando essas conclusões que não há um fora
da cultura. Ou melhor, o “fora”, se o há, apresenta-se segundo a noção de natureza, traduzida,

181
FREUD. O Mal-estar na Civilização, In. Obras Completas, Vol. 18 (1930-1936). São Paulo: Companhia das
Letras, 2010
182
Ibidem, p. 142
183
Ibidem, p.141, grifo nosso
184
Ibidem, p.141
96

pela terminologia batailliana nos termos do ‘não-saber’ e do ‘informe’185. Dada a sua


importância, reproduzimos, mais uma vez, a citação em que Bataille apresenta sua definição
para o termo:

O que [o informe] designa em nenhum sentido possui direitos, e em todo o


lado é esmagado como uma aranha ou um verme. Na verdade, para os homens
acadêmicos ficarem contentes seria necessário que o universo tomasse forma.
A filosofia, toda ela, não tem outro objetivo: trata-se de dar uma sobrecasaca
ao que existe, uma sobrecasaca matemática. Pelo contrário, afirmar que o
universo não se parece com nada, e mais não é do que informe, equivale a
dizer que o universo é qualquer coisa como uma aranha ou um escarro.186

Desdobrada a noção de ‘natureza’ a partir da perspectiva do “informe”, torna-se mais


evidente a maneira pela qual a apresentação que comumente se faz da natureza – como se se
tratasse, de fato, de uma dimensão passível de ser controlada e domesticada – deriva de um
aspecto infantil da psique humana. Não obstante, como destacado no trecho acima, esse aspecto
infantil prevalece mesmo nos sistemas filosóficos sofisticados e no cerne do pensamento
religioso, conforme esclarece Freud:

[...]. De modo semelhante, o ser humano transforma as forças naturais não


simplesmente em indivíduos, com os quais pode lidar como faz com seus
iguais — isso não faria jus à impressão avassaladora que elas lhe causam —,
mas lhes dá um caráter paterno, transforma-as em deuses, e nisso segue um
modelo não apenas infantil, mas também filogenético, como procurei
mostrar.187

É curioso observar que, sobre esse mesmo modelo infantil, estão assentadas tanto a
neurose quanto os próprios fundamentos que dão sustentação à racionalidade – segundo a
percepção limitada de que o homem tem o poder de exercer controle absoluto sobre si (recalque)
e sobre o ambiente em que está inserido, ao reduzir esse ambiente à condição de objeto.
Essa ilusão de controle permanece sendo uma ilusão operacional. E a despeito dela, o
real da condição humana, segundo Freud, é “o desamparo e, com isso, o anseio pelo pai, e os
deuses”188, ou, como assinala o protagonista da novela batailliana no trecho citado mais acima,

185
Uma discussão mais aprofundada a respeito dessa noção de ‘Informe’ foi feita no capítulo de Introdução desta
tese.
186
BATAILLE. op. cit., 1994, p.98-99
187
FREUD, op. cit., p.143
188
Ibidem, p.143
97

“a embriaguez [que] nos havia lançado à deriva”, na experiência aparentemente tranquilizadora,


mas no fundo bastante angustiante de contemplar o azul do céu.
A experiência civilizada está a tal ponto atrelada ao recalque em relação à experiência
vertiginosa da natureza que “as próprias normas culturais são tidas como de origem divina, são
elevadas acima da sociedade humana, estendidas para a natureza e o universo.”189. Isso se dá
como se a natureza fosse ela própria portadora de uma moralidade, ou como se o mundo cultural
humano, como um espelho (“à imagem e semelhança”), existisse por simples derivação das
“leis” e “princípios” do mundo natural. É esse o recalque que fornece as condições para o
modelo filogenético de Deus apontado por Freud no trecho acima.
Na medida em que, para Freud, a cultura é o recalque da natureza, e que Deus assume o
valor negativo da natureza recalcada – fixada enquanto tal na psique humana – então, desde a
modernidade, já estarão dadas as condições para que o homem se livre, se não da ideia, ao
menos da figura de Deus.
A modernidade técnica do final do século XIX e começo do século XX deu ao homem
a segurança do controle que, de maneira progressiva, iria exercer sobre o seu entendimento da
natureza, ao passo que as leis e instituições do Estado cumpririam as demais exigências do
recalque em relação à hegemonia da moral e do uso da razão na vida civilizada.
É por isso que, em certo sentido, pode-se dizer que, no tempo de Freud e de Nietzsche,
Deus já estava morto, ou seja, que já era então perfeitamente possível conceber a ideia de uma
civilização que, abrindo mão de muitas exigências dogmáticas da religião, pudesse se colocar
– ao abraçar positivamente a cultura – à altura do recalque dirigido à natureza, à altura desse
recalque rigidamente vertical que coloca e mantém a civilização de pé.
Como vimos, a partir da perspectiva nietzscheana mais radical, no entanto, Deus jamais
poderia estar morto sem a contrapartida de que seus assassinos se colocassem à altura do crime.
Pois se, por um lado, é concebível a ideia de uma humanidade que – por já haver introjetado o
recalque (livrando-se, portanto, da necessidade de um elemento externo que o faça) – pouco a
pouco se afasta daquela ideia de Deus ligada aos dogmas religiosos, por outro lado, a ausência
absoluta de Deus implica uma exigência, de fato, muito mais profunda – a exigência de retorno
à natureza.
É possível concluir que, por cumprimento a essa exigência – dos efeitos que ela exerce
sobre o recalque – os pressupostos mais básicos da racionalidade (a exemplo da relação de

189
Ibidem, p.144
98

objeto, da relação causa e efeito, e mesmo a linearidade do tempo) estariam ameaçados no caso
dessa ausência absoluta da cabeça divina.
A racionalidade se encontraria exposta então àquilo que Freud chamou de “os terrores
da natureza”190 e, sobre tal solo de sobremaneira instável, dificilmente seria concebível a
possiblidade da civilização manter-se de pé. Nietzsche, por sua vez, contrapôs ao homem
racional o homem do “estado elevado de alma”, mas afirmou que este “foi até aqui apenas um
sonho, uma esplêndida possibilidade: a História não fornece dele exemplo que não se possa
refutar”.191
É nesse sentido que se esclarece: a proposição nietzschiana da “morte de Deus” não é
concebível como resultado de um esforço consciente, reflexivo, voluntarioso; em definitivo, o
simbolismo desse gesto e suas consequências não se consumam como resultado possível de um
esclarecimento ateísta.
A experiência insustentável e impossível de viver a morte de Deus, conforme o final
trágico da vida de Nietzsche o demonstrou, só se daria por um movimento violento e súbito da
perda simbólica de si através da perda real da própria cabeça, isso é, da própria lucidez.
Mas pode o corpo sobreviver à ausência da cabeça? E, se sim, em que condições?
Nietzsche ofereceu, cortando da própria carne, um começo de resposta, em todo caso uma
resposta bastante paradoxal: “Do ponto de vista da eternidade – A: ‘Tu afasta-te cada vez mais
dos vivos: não tardará muito e eles te riscarão das suas listas!’ – B: ‘É o único meio de participar
no privilégio dos mortos.’ – A: ‘Qual privilégio?’ – B: ‘Nunca mais morrer.’”192

***

Em “O Mal-estar na Cultura”, Freud chega a propor a questão de se “o ser humano é


incapaz de prescindir do consolo da ilusão religiosa”, já que, não sofrendo da neurose, “o ser
humano se verá então numa situação difícil, terá de admitir seu completo desamparo, sua

190
Ibidem, p.143
191
NIETZSCHE, op. cit., 2005, p.148. Não deixa de ser irônico, neste caso, que a própria experiência de Nietzsche
o levaria a ser, ele mesmo, a vítima desse sacrifício: um exemplo de homem de “estado elevado de alma” que a
história não poderia refutar.
192
Ibidem, p.140
99

irrelevância na engrenagem do universo, já não será o coração da Criação o objeto da carinhosa


atenção de uma Providência bondosa”193.
Freud, no entanto, parece considerar o elemento verdadeiramente desafiador da questão
segundo um ponto de vista intelectual e iluminista: “Mas não é inevitável que o infantilismo
seja superado? O ser humano não pode permanecer eternamente criança, tem de finalmente sair
ao encontro da ‘vida hostil’. Podemos chamar a isso ‘educação para a realidade”. 194 E, mesmo
considerando que “provavelmente o ser humano não resista a essa dura prova”195, é necessário
“chamar a atenção para a necessidade de dar esse passo”.196
Nietzsche, por sua vez, considera que a experiência de tal passo só possa ser concebida
num horizonte futuro:

[...] ela [a História] poderá dar ainda nascimento a esse homem... quando um
rol de condições propícias tiverem sido criadas e estabelecidas, o que nem o
mais feliz dos acasos pôde reunir nos nossos dias. Talvez esse estado que nos
faz tremer excepcionalmente, será então o estado corrente dessas almas
futuras: uma contínua sucessão de movimentos e sentimentos de alto e baixo,
uma contínua ascensão acompanhada pela impressão de um repouso em
nuvens.197

É esse o ponto que Bataille defende como sendo o da “aspiração extrema, incondicional,
do homem, expressa pela primeira vez por Nietzsche independentemente de uma finalidade
moral e do serviço a um Deus”, e que “Nietzsche não pode defini-la precisamente, mas ela o
anima, ele a assume de ponta a ponta.”198
Retomando a noção do êxtase, de “uma sucessão de movimentos” dos “sentimentos de
alto a baixo”, de ascensão e repouso apresentada por Nietzsche como o tipo de experiência que
caracteriza o estar do “lado de fora” da cultura, há diversas passagens em O Azul do Céu que
dão expressão a esse tipo de movimento, dando a ver que esse êxtase é também o de um lugar
terrível destinado àqueles que, na condição de cúmplices do assassinato de Deus, acabam por
finalmente perder a cabeça.
Na narrativa, o fluxo terrível, desencadeado pela morte de Deus, é provocado pela
ascensão do fascismo, que provoca nas personagens, gradual e vertiginosamente, a derrocada
do sentimento de pertencimento à cultura e à civilização. “Eu sentia que tal existência só podia

193
FREUD, op. cit., p.166
194
Ibidem, p.166
195
Ibidem, p.166
196
Ibidem, p.166
197
NIETZSCHE, op. cit., p.148, grifo nosso.
198
BATAILLE, op. cit., 2017, p.22-23
100

ter sentido para homens e para um mundo destinado à desgraça. Um dia, uma luz se fez na
minha cabeça [...]. Esse ajuste inesperado tinha o mesmo lado ridículo do resto da minha
vida...”199, “Antes de ficar completamente doente, minha vida era de ponta a ponta uma
alucinação doentia. Estava desperto, mas todas as coisas passavam depressa demais diante dos
meus olhos, como em um sonho mau.”200,

No dia seguinte, essa escapada para uma realidade demente tinha saído da
minha memória. Acordei perturbado. [...]. Recaí numa espécie de sono
horrível: todas as coisas começaram a se despregar, coisas obscuras,
horrendas, informes, que absolutamente teria sido preciso fixar; não havia
nenhum meio. Minha existência se fazia em pedaços como uma matéria
apodrecida...201

E ainda: “Minha própria memória vacilava: a realidade estava em pedaços. Nada restava além
da febre, em mim a febre consumia a vida.202
O tema da morte de Deus, ilustrado na novela batailliana pela iminente ruína da
civilização, leva as personagens de O Azul do Céu a conhecerem a loucura. É curioso que a
loucura seja apresentada ao longo da narrativa como a expressão de uma doença (involuntária,
portanto) e, de maneira simultânea, na opção deliberada pelo estado de embriaguez, mas no
horizonte de uma decadência que, gradualmente, caminha para se tornar um estado de
iluminação, de êxtase, guiada por uma espécie de pulsão de morte.
O colapso da consciência, a impossibilidade de parar o pensamento por meio da
reflexão, é sentida como a febre de uma realidade em pedaços, em que “as coisas passavam
depressa demais”, como o estado em que “todas as coisas começaram a se despregar” da
realidade, aparecendo com toda clareza em sua natureza informe, “como uma matéria
apodrecida”.
Na experiência que leva o homem a perder a cabeça, no momento em que cai o recalque,
o ‘eu’– essa instância que leva o pensamento a dobrar-se sobre si – também deixa de existir, e
o corpo passa a ser a manifestação espontânea e caótica de suas pulsões irrefreáveis. Nesse
momento, o homem está abandonado, já completamente distante da possibilidade de ser uma
marionete moral das mãos de Deus, passa a ser um joguete, uma incorporação desgovernada

199
Idem, op. cit., 1986, p.54
200
Ibidem, p.68, grifo nosso.
201
Ibidem, p.76, grifo nosso.
202
Ibidem, p.81
101

das pulsões da natureza. Na morte do ‘eu’ encenada por esse movimento, o inconsciente surge
a céu aberto como expressão terrível da própria natureza.
Não se pode romancear sobre este ponto: o êxtase experimentado no cume – momento
da morte do ‘eu’ – é uma experiência vertiginosa, a experiência de uma assustadora liberdade,
de uma espécie de liberação extrema sentida como êxtase.
Nietzsche anuncia o caráter nauseante da loucura através das palavras do sábio
Zaratustra: “Ah, pensamento abismal, que és o meu pensamento! Quando acharei a força de
ouvir-te cavar, sem mais tremer? Até à garganta me sobem as pancadas do meu coração quando
te ouço cavar! Também o teu silêncio ameaça sufocar-me, ó abismal silencioso!”203, “Ainda, a
meu ver, não sofreis bastante! Pois sofreis de vós mesmos, não sofreis do que é o homem.
Mentiríeis, se dissésseis o contrário! Nenhum de vós sofre daquilo que eu sofri.”204
Zaratustra o anuncia também na afirmação de uma realidade que se coloca acima da
realidade ordinária que alcançam os olhos, acima da objetividade e do utilitarismo que
configuram esta realidade: “Acima de todas as coisas está o céu acaso, o céu inocência, o céu
casualidade, o céu arrojo”. ‘Por casualidade’ – esta é a mais velha nobreza do mundo; e foi ela
que devolvi às coisas, redimindo-as da sua escravidão à finalidade.”205

***

Em relação à indagação de Freud, destacada mais acima, de se o ser humano seria capaz
de prescindir da ilusão religiosa – ou, colocada em termos de Nietzsche, se o homem é dotado
da potência suficiente para, a um só tempo, sobreviver à morte de Deus e imputar a si mesmo
a condição de culpado por esse crime hediondo –, Bataille parece ter encontrado uma resposta
que dispensa as salvaguardas da atividade intelectual e do humanismo ateu. Para Bataille, a
escrita é o suporte necessário para a radicalidade da experiência em questão.
O autor de Sobre Nietzsche anota que “O que me obriga a escrever, imagino, é o medo
de ficar louco”206. Há ainda, em O Azul do Céu, outra passagem que estabelece a relação entre
a experiência da loucura e essa espécie de pulsão quase vital em direção à escrita, que em certo
sentido sustenta a própria transposição da qualidade doentia da loucura para a sua expressão

203
NIETZSCHE. op. cit., 1998, p.170
204
Ibidem, p.290
205
Ibidem, p.173
206
BATAILLE, op. cit., 2017, p.21-22
102

como a de um estado de graça, de iluminação, de comunidade e comunicação: “No meu estado,


acreditava ouvir uma resposta irônica a uma interrogação que se precipitava na minha cabeça,
caminhando para a catástrofe. [...]. Hoje, escrevendo, uma alegria aguda levou-me de volta o
sangue à cabeça, tão louca que também eu gostaria de cantar.”207
É certo que, quando considerada a atividade da escrita em relação à experiência com o
informe – mesmo no caso da poesia, que é a sua expressão mais livre –, ela ainda poderia ser
entendida como uma espécie de pulsão reacionária que buscasse “conformar o informe”. Se
isso fosse verdade, então a poesia se veria na função de interpretar o informe em expressões
morais e em expressões assimiláveis que, na prática, arruínam o valor de risco da experiência,
restituindo um valor seguro e de uso à poesia e que a encerram novamente sobre si, isso é, como
um valor em si mesma.
Mas não é essa a perspectiva de Bataille. Para ele, afirmada enquanto suporte, a escrita
possui um valor que não é o do entendimento que pacifica a contradição e a angústia. O sentido
de fenda – de ferida no ponto da acefalia – atribuído à atividade poética se dá como a capacidade
não pacificada da literatura em provocar novos movimentos de contágio, de comunicação. De
tal forma que, como num círculo vicioso, sendo encetada pela experiência de um movimento
fulgurante, isso é, pela experiência, a escrita será ela própria ocasião de novos movimentos em
direção a esse movimento original.
É por isso que, tomando seu próprio corpo como referência, mas também as experiências
trazidas à luz pela escrita de Sade e de Nietzsche, Bataille concebe a literatura como atividade
acefálica e perigosa: originada de escritores que perderam a cabeça, seu destino será provocar
novas decapitações – “que fique claro de uma vez por todas: não se entendeu uma palavra da
obra de Nietzsche antes de se ter vivido essa dissolução fulgurante na totalidade”208, ele escreve.
Ao se colocar como leitor da experiência desses escritores, Bataille identificará, em
Sobre Nietzsche, a manifestação da loucura como a manifestação do desejo não recalcado, o
desejo por “um movimento violento que quer a autonomia, a liberdade do ser”, a que Nietzsche
pôde dar vazão “abandonando Deus e abandonando o bem”209.
Para Bataille, a escrita de Nietzsche é não apenas o que resultou da experiência com o
abismo que teve o filósofo, mas que, como expressão desse movimento, ela é capaz de conduzir
seus leitores a uma experiência análoga; trata-se, portanto, de uma escrita que age como “o mais
violento dos solventes”.

207
Idem, op. cit., 1986, p.84-85
208
Idem, op. cit., 2017, p.31
209
Ibidem, p.23
103

A esse respeito, ele observa que “quem tentasse, como fiz, ir ao limite do possível que
[essa escrita] evoca se tornaria, a sua vez, esse campo das contradições infinitas”210, pois “ao
suprimir a obrigação, o bem, ao denunciar o vazio e a mentira da moral, Nietzsche arruína o
valor eficaz da linguagem. [...] tentar segui-lo, como ele exigia, é abandonar-se à mesma
provação, ao mesmo desvario que ele”.211
O valor eficaz da linguagem consiste em, partindo do sujeito, nomear os objetos
assimiláveis à intelecção. No outro extremo, considerada como “o mais violento dos solventes”
e colocada em cena por esse corpo acefálico, a linguagem pode ser pensada no sentido radical
que Bataille conferiu à palavra ‘comunicação’. Isso significa pensar a linguagem poética no
ponto convulsivo, isso é, no ponto em que sujeito e objeto estarão indissociados e sendo ela
capaz de provocar novas convulsões.
Não será por meio da linguagem poética, portanto, que o ‘eu’ que a lê reconhecerá a
subjetividade de um outro ‘eu’ que a emitiu e, por consequência, levantará como bandeira os
direitos de sua própria subjetividade.212 Ao contrário, nesse cume em que se percebe o perigo
da poesia e suas afinidades com o Mal, escrita e pulsão de morte se confundem: o ‘eu’ leitor
reconhece que o outro é, na verdade, o Outro somente em razão de seu encontro com o informe,
do encontro do escritor com essa forma radical de alteridade. E então completa-se o círculo
vicioso que define a literatura como sendo o Mal, isso é, como a expressão do desejo por uma
forma de comunicação que implica a dissolução das subjetividades colocadas em jogo pelos
atos da escrita e da leitura.
Nesses casos, seria mesmo possível dizer que a literatura, ao recuperar a imagem do
êxtase – sem, no entanto, confundir-se com a experiência do êxtase – poderia conduzir a um
processo semelhante ao de uma “encarnação” da experiência do Outro213. A esse respeito, as
conclusões de Bataille apontam para o seguinte sentido:

Semelhante encarnado conheceria assim uma liberdade tão grande que


linguagem alguma bastaria para reproduzir seu movimento (e não mais que
outras a dialética). Só o pensamento humano assim encarnado se tornaria uma
festa cuja embriaguez e licença não seriam menos desencadeadas que o
sentimento do trágico e a angústia. Isso leva a reconhecer – sem que reste

210
Ibidem, p.24
211
Ibidem, p.22-23
212
Tal seria, podemos dizer, o horizonte humanista e existencial da literatura.
213
Não é outro o motivo que fez com que Bataille, após ter assimilado a encarnação da experiência de Nietzsche,
outorgasse para si a autoridade em relação a essa experiência, sustentando que ninguém pôde e nem desejou, exceto
ele mesmo, seguir tão a fundo os passos do filósofo.
104

escapatória alguma – que o “homem encarnado” deveria também devir


louco.214

Ao mesmo tempo que “só a loucura pode realizar o homem”215, ela, a loucura, consiste
em um domínio da vida humana do qual Deus e a cultura estarão definitivamente excluídos:
“Com que violência a Terra giraria dentro dessa cabeça! A que ponto ela seria crucificada! [...]
como Deus não ficaria doente ao descobrir diante de si sua razoável impotência de conhecer a
loucura?”216
Mas ao tomar como exemplo o cárcere de Sade e o sacrifício de Nietzsche, Bataille
reconhece os perigos a que ele próprio estaria submetido por força da exigência trazida pela
literatura desses dois escritores:

E daquele que não falava seguindo as regras da linguagem, os homens


razoáveis que devemos ser asseguram que está louco. Temos nós mesmos
medo de devir loucos e observamos as regras com muita inquietude.217

Pois é difícil perceber até que grau de tempestade ou de desencadeamento


chagariam as visões desse encarnado, que deveria ver Deus mas no mesmo
instante matá-lo, depois devir Deus ele próprio, mas somente para se precipitar
imediatamente num nada: ele se veria então um homem tão desprovido de
sentido quanto o primeiro transeunte que aparecesse, mas privado de qualquer
possiblidade de repouso.218

A complexidade do movimento descrito acima – e que Bataille interpretou como sendo


as experiências que aparecem nas literaturas de Sade e de Nietzsche – é grande e implica em se
lançar de volta e voluntariamente – movido talvez pela lucidez do desejo paradoxal da pulsão
de morte – à dança incessante da natureza. Mas quem teria coragem de fazê-lo se não
reconhecesse, atrás de si, uma comunidade de outros que também o tentaram? Aliás, como seria
possível saber ser legítimo o desejo do informe senão através da literatura?
Não seria a literatura, portanto, uma “comunidade do êxtase, a “comunidade dos que
não têm comunidade”? E, por qual outro meio alguém se sentiria inclinado a participar da
experiência do êxtase, senão por uma comunidade de textos que, elevados à dignidade da
loucura, sustentam a literatura como a possiblidade de “tudo dizer”?

214
Idem, op. cit., 2014, Vol. V, p.7
215
Ibidem, p.9
216
Ibidem, p.7
217
Ibidem, p.5
218
Ibidem, p.6-7
105

3.3 Sade e a Loucura de Escrever


Pois, Sofia, apenas tive abertos os olhos, passei a detestar
estes sofismas, jurei pisoteá-los e prometi de a eles não mais
retornar. Imita-me se queres ser razoável. (SADE, Justine)

Em certo sentido, não seria exagero considerar o livro A literatura e o Mal (1957) como
uma espécie de resposta ou de imagem invertida ao texto freudiano “O Mal-estar na
Civilização”. Podemos resumir a tese do livro de Bataille: o Mal, recalcado ou foracluído da
cultura deve encontrar na literatura o suporte por meio do qual poderá ser comunicado enquanto
parte legítima e possível da experiência humana.
“A literatura é o essencial ou não é nada”219 – é uma das célebres frases desse livro de
ensaios. No horizonte de Bataille, o Mal é a essência da literatura e, se desligada desse domínio,
a literatura passa a ser nada, tornando-se somente a expressão de algo que outras formas
discursivas realizam tão bem ou até melhor que a própria literatura, isso é, representar e
homenagear a cultura em suas formas consagradas.
No domínio do que se poderia considerar a singularidade da literatura, se ela pode, por
exemplo, configurar uma comunidade do êxtase, tal comunidade, em todo caso, jamais chega a
se sustentar por uma lei, por uma moral ou código de conduta que lhe assegure a perenidade,
visto que tal comunidade existirá somente na medida em que compartilhe o valor que atribui a
esse tipo de experiência. Ou, para usar outra célebre expressão de Bataille retomada por
Blanchot220, no caso da literatura, trata-se da “comunidade dos que não têm comunidade”.
Para Bataille, a defesa de que a literatura deva ser lida como algo além do que mais um
pilar da civilização começa pelo argumento de que o atravessamento que pode constituir uma
comunidade discursiva se dá em função do apelo por um valor que é, essencialmente,
transgressivo à cultura. Esse valor é o êxtase. O êxtase é informe, é a parte maldita – excesso e
resto que não cabe às formas civilizadas – e encontra na linguagem poética uma das
possibilidades através da qual pode ser comunicado. ‘Mal’ é o nome dado àquilo que é
recalcado pela cultura por ser potencialmente capaz de desestabilizar, por contágio, as formas
civilizadas –

O mais importante nesse movimento é que semelhante ensinamento não se


dirige [...] a uma coletividade organizada [...], Ele se dirige ao indivíduo,

219
Idem, A literatura e o mal. Trad. Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM, 1989, p.9
220
Ver BLANCHOT, Maurice. A comunidade inconfessável (1983). Trad. Eclair Antônio Almeida Filho.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2013, p.39
106

isolado e perdido, ao qual não oferece nada senão o instante: ele é somente
literatura. É literatura, livre e inorgânica, que é seu caminho. [...] Somente a
literatura poderia desnudar o jogo da transgressão da lei – sem o que a lei não
teria fim – independentemente de uma ordem a criar. A literatura não pode
assumir a tarefa de organizar a necessidade coletiva. [...] A literatura é mesmo,
como a transgressão da lei moral, um perigo. Sendo inorgânica, ela é
irresponsável. Nada se apoia nela. Ela pode dizer tudo.221

Tomando sobretudo o exemplo de Sade, Bataille aproxima a figura do escritor daquela


do criminoso, do elemento que a ser trancafiado e posto à parte da sociedade. Não por acaso, o
título de um dos volumes da Suma Ateológica é O culpado, título que, do francês, pode ser
traduzido por O cortável: para ambos os casos, o título alude àqueles que, aos olhos da
civilização, poderiam ser eliminados sem que isso fosse contabilizado como prejuízo.
“A literatura não é inocente, e, culpada, ela enfim deveria se confessar como tal [...], a
literatura deveria se advogar culpada”222, pois, para o escritor, o ponto de partida do texto
literário será o reconhecimento de que ali se estará lidando com objetos que – para além das
considerações estilísticas – a cultura não só não terá interesse em ler, como também – a exemplo
do que foi feito com a literatura e com a própria figura de Sade – se empenhará por recalcar em
alguma prisão.
Nossa questão passa a ser então a de propor nomes a esses objetos que, na maior parte
dos casos, se deixam ocultar por detrás de considerações mais superficiais acerca do fenômeno
literário.
“Escrevo para não ficar louco” -- é a confissão de culpa de Bataille em Sobre Nietzsche,
confissão semelhante à que Blanchot exprime em sua análise a respeito da experiência limite
de Sade: “Escrever é a loucura própria de Sade [...] veio a tornar-se o que é – uma força
subterrânea e sempre clandestina [...]”.223 Observa ainda que

A verdade aí se busca pelo movimento de escrever. [...] Escrever é a loucura


própria de Sade [...] aquilo que, pondo-o à parte, liberava-o dos preconceitos
da sociedade [...] ele deixa de estabelecer uma diferença entre ele próprio e a
solidão de sua prisão [...] ganhou origem e impulso a necessidade irreprimível
da escrita, uma força assustadora de fala que não mais se aplacou. É preciso
dizer tudo. A primeira das liberdades é a liberdade de dizer tudo. [...]224

221
BATAILLE. op. cit., 1989, p.22
222
Ibidem, p.10
223
BLANCHOT. A conversa infinita vol 2: A experiência limite. São Paulo: Ed. Escuta, 2007, p. 209
224
Ibidem, p.208
107

Essa confluência da comunidade de Bataille e Blanchot aponta para o fato de que a


literatura é uma experiência limite, ou seja, que escrever significa escrever a loucura: traduzir
aquilo que a cultura não oferece meios de alcançar. De igual modo, “dizer tudo”, aqui, refere-
se à capacidade de dizer qualquer coisa – de encontrar os meios de sustentação para quaisquer
pensamentos – sobretudo para os pensamentos que não se referem a alguma coisa em específico
ou a formas delimitáveis, isso é, para os pensamentos que têm o informe por objeto e – que,
sem o suporte da escrita, malograriam ou fariam malograr aquele que os carrega.
São essas as alusões de Blanchot à “necessidade irreprimível da escrita” (poderíamos
dizer, a necessidade vital da escrita) e da “verdade que se busca pelo movimento de escrever”
– no sentido de que não haveria outro meio de encontrar a verdade senão por esse que permite
que quaisquer coisas (mesmo as mais estranhas e contagiosas – aquelas sobre as quais a cultura
exerce seus poderosos mecanismos de interdito) possam encontrar um suporte e serem
comunicadas.
Nesses termos, ao propor que a literatura seja analisada a partir de seus sentidos
inorgânico, culpado e essencial, Bataille tem em mente que o exercício da leitura possa se
realizar em radical oposição aos sentidos impostos pela tradição, de forma que possa ser
compreendida não como mera reprodução da cultura, mas a partir do que se lhe apresenta em
seu “lado de fora”, constitutiva de uma “parte maldita” à civilização. Aos olhos de Bataille,
esse seria essencialmente o domínio da literatura – a comunicação do Mal, isso é, a
comunicação dos objetos que transgridem o interdito e que podem levar o sujeito a se
reencontrar com o êxtase da natureza. A literatura é uma das vozes que expressam a
possibilidade de uma experiência-limite.

***

Em Literatura e a Experiência Limite, Philippe Sollers propõe uma abordagem por meio
da qual parece que se atinge o que há de verdadeiramente essencial na obra de Sade. O método
de Sollers expõe os pontos em que a cultura interdita o texto sadiano para que possamos ver
mais claramente em relação a quais pontos esse mesmo texto transgride a cultura.
Segundo Sollers, o recalque se manifesta nesse caso pela insistência da cultura em
referenciar a obra de Sade a partir de categorias psicológicas, fisiológicas e sociológicas, ao
108

mesmo tempo que lhe recusa o status de texto literário. “A pergunta feita pelo nome
aparentemente inacessível de Sade pode, sem dúvida, ser assim resumida: “por que o texto
sadiano não existe enquanto texto para nossa sociedade e cultura?”225.

Por que Sade deveria ser proibido e aceito, proibido como ficção (como
redação) e aceito como realidade? [...]. Talvez possamos arriscar uma
resposta: porque ainda não decidimos ler Sade, porque a leitura que
poderíamos dar a Sade não existe nesta sociedade e nesta cultura; porque o
próprio Sade representa uma denúncia radical do tipo de leitura que ainda
realizamos e projetamos indiscriminadamente.226

Mais adiante, nesse mesmo texto, Sollers contrapõe a literatura “no sentido neurótico”,
limitada pelo impulso de representar, à literatura fundada por Sade, na qual “escrever [é] apenas
para destruir incessantemente as regras e crenças que ocultam a escrita do desejo [...]”.227
Outra obra que tomamos como referência na análise do texto de Sade é a de Pierre
Klossowski. Sade: meu próximo. Nela há uma indicação de Klossowski quanto ao que
poderíamos considerar como sendo essa “escrita do desejo”. Trata-se de um processo em que
se “inscreve a presença da não-linguagem na linguagem”, “uma foraclusão da linguagem pela
linguagem”228.

A foraclusão significa que algo permanece fora; aquilo que fica de fora é, mais
uma vez, o ato a ser feito. Quanto menos é perpetrado, mais ele bate na porta
-- a porta do vazio literário. Os golpes batidos na porta são das palavras de
Sade, que reverberam dentro da literatura229.

A conclusão de Klossowski é que “o que dá ao texto de Sade sua originalidade perturbadora é


o fato de que, através dele, esse exterior passa a ser comentado como algo produzido dentro do
pensamento.”230
Segundo os dois autores, há, na escrita de Sade, um elemento exterior à linguagem que,
não obstante, se dá a ver por causa dessa linguagem. Mesmo distante da perspectiva de traduzir
esse elemento ou de representá-lo, a literatura sadiana evoca-o, a todo momento, na condição
da experiência do êxtase. Esse seria, portanto, o seu objeto impróprio.

225
SOLLERS, Philippe. Writing and the Experience of Limits (1968). Trans. David Hayman. New York:
Columbia University Press, 1983, p.45, grifo nosso.
226
Ibidem, p.46
227
Ibidem, p.61
228
KLOSSOWSKI, Pierre. Sade, Mon Prochain. Trans. by Alphonso Lingis. Northwestern University Press.
Evanston, Illinois, 1991, p.42
229
Ibidem, p.42
230
Ibidem, p.43
109

Em A literatura e o Mal, Bataille cita Klossowski pela relação que ele estabeleceu entre
o “tédio”, inerente à leitura dos textos de Sade, e certos ritos religiosos, porque, em ambos os
casos, trata-se de uma experiência de devoção: “O método completo que ordena os escritos de
Sade é o do ‘religioso, que põe sua alma diante do mistério divino’”231. Acrescenta que “é
preciso lê-los como eles foram escritos, com a preocupação de sondar um mistério que não é
nem menos profundo, nem talvez menos ‘divino’ que o da teologia”.232
Em Sade: meu próximo, Klossowski faz ainda esta valiosa observação que parece
estabelecer a relação entre a literatura e o não-saber, entre a linguagem e o que se encontra
foracluído da linguagem e da cultura. A respeito do “método religioso” e ritualístico de Sade,
Klossowski lança a indagação a respeito de “como a natureza sensual se realiza em ato aberrante
através da escrita, e qual é a relação entre essa realização e a perpetração do ato independente
de sua descrição?”233. Sua resposta é que

O objetivo da reiteração é despertar um êxtase. Esse êxtase não pode ser


transmitido pela linguagem; o que linguagem descreve são os caminhos para
isso, as disposições que preparam para isso. Mas o que não aparece claramente
na forma convencional de escrita de Sade é que o êxtase e a reiteração são a
mesma coisa.234

O movimento de repetição que aparece tão minuciosamente ilustrado pela obra de Sade
é, obviamente, o movimento da destruição. Pessoas são alçadas à condição de objetos, os
objetos se tornam vítimas, em um movimento de consumação incessante que tem a finalidade
religiosa de desvelar a relação entre o sacrifício e o êxtase.
Mas, segundo Bataille, ao contrário do que à primeira vista a indicação sadiana sugere,
esse movimento de destruição não é de fato endereçado a objetos ou a terceiros, “mas ao próprio
autor e sua obra”, que, por meio dela, tem a pulsão “de desaparecer, isso é, de se anular sem
deixar traço humano: porque já não existia nada mais à sua medida”.235
É com Sade que a afinidade da literatura com o Mal aparece da maneira mais evidente,
a ponto de essa afinidade poder ser identificada por Bataille como a própria essência da
literatura. Em Sade, forma e conteúdo estarão conjugados em direção a esse sentido de
destruição do ‘eu’, sentido afirmado na máxima radicalidade.

231
BATAILLE, op. cit., 1989, p.104
232
Ibidem, p.104
233
KLOSSOWSKI, op. cit., 1969, p.39
234
Ibidem, p.39
235
BATAILLE, op. cit., 1989, p.96-97
110

A forma é a de uma incansável repetição e, quanto aos temas abordados pelo escritor,
pode-se dizer que em toda sua obra são apresentados apenas dois: a destruição do homem
(destruição de si mesmo, da instância do ‘eu’) e uma filosofia da natureza. “Com Sade”, anota
Blanchot, “temos o primeiro exemplo (mas terá havido um segundo?) da maneira como
escrever, a liberdade de escrever pode coincidir com o movimento da liberdade real”236.
A esse respeito, acrescenta Klossowski que “a mente sádica reproduz em sua reflexão o
movimento perpétuo de uma natureza que cria, mas levanta obstáculos para si mesma com essas
criações e, por um momento, encontra sua liberdade apenas ao destruir suas próprias obras.”237
Isso é, por meio da destruição de si – de sua humanidade – através da escrita, Sade entendia
estar se engajando no único sentido possível disso que Blanchot chamou de uma liberdade real,
isso é, a liberdade da morte, da destruição necessária do homem pela natureza.
A questão deixada por essa estranha aproximação com o tema da morte, portanto,
retoma aquela outra, proposta por Freud em “O Futuro de uma Ilusão”: ao decidir abandonar
o infantilismo inerente de sua psique, o ser humano deseja de fato confrontar-se com a verdade
de sua condição? Ao avançarmos em relação a essa questão, perguntamo-nos se, uma vez
compreendida essa verdade, o homem a suportaria e se procuraria criar os meios necessários
para suportá-la (demos a isso o nome de literatura). Por fim, a questão mais difícil seria a
respeito do que fazer de posse de semelhante verdade. A resposta de Sade, nesse caso, parece
inequívoca e retoma a epígrafe de Bataille a Madame Edwarda: é preciso dar continuidade ao
trabalho da morte.
Sade despreza tanto a posição dos religiosos – contra os quais acusa a hipocrisia e a
covardia de desejarem se proteger a todo custo das conclusões violentas que dizem respeito ao
domínio do sagrado, e que se escondem por trás da fragilidade dogmática –, quanto a posição
fatalista, passiva, da vítima – a quem, diante da inevitabilidade da morte, resguarda-se na
postura estéril de um ateísmo cínico.
Por mais paradoxal que possa ser, a literatura de Sade apresenta uma ética, ou, como
afirma Bataille, trata-se não da ausência de moral, mas, de fato, de uma “hipermoral”238. O que
se coloca em jogo nos termos dessa ética, dessa “hipermoral”, é a não-fuga: um olhar que não
se desvia mesmo diante da possibilidade de sua destruição (que não se fecha mesmo diante do
excesso de luz) – o sentido ativo de trazer insistentemente à consciência aquilo que, de outra
forma, permaneceria interditado.

236
BLANCHOT, op. cit., 2007, p.210
237
KLOSSOWSKI, op. cit., 1969, p.97-98, grifo nosso
238
BATAILLE, op. cit., 1989, p.9-10
111

***

Se retomamos a noção de uma “liberdade real” que, nas palavras de Blanchot, a


liberdade de escrever evoca, somos então remetidos ao conceito de real por ele evocado.
Colocado de outra forma, podemos perguntar qual seria essa verdade que só a morte é capaz de
significar de maneira incontestável. Pierre Klossowski resume o “ensinamento” de Sade numa
única e estranha sentença – trata-se da verdade, trazida tragicamente pela morte, de que “apenas
o movimento é real: as criaturas são apenas mudanças de fases”. 239
Aos olhos de Sade, a questão da subjetividade perde todo o valor. Porque não é o sujeito
que, confrontado pela morte, poderá dizer o que é, afinal, essa experiência. Tal sujeito
fatalmente cairia numa ficção, fosse ela de natureza religiosa ou ateística. Na inversão sadiana
é o real da morte que olha para o sujeito para concluir que não a morte, mas o sujeito que se
constitui como uma ficção – a ser destruída.
Klossowski apresenta a definição de subjetividade nos seguintes termos a partir das
conclusões de Sade:

Um pathos da alma acorrentada, que sacode suas correntes e vê no universo


que habita apenas uma criação igualmente acorrentada, uma criação feita à
imagem de uma Natureza criativa que é incapaz de se realizar de uma vez por
todas. Um pathos de aprisionamento e impotência, da impaciência de ser uma
criatura. Pois é de fato o ser que é experimentado aqui como a última prisão,
a parede mais externa; e a duração na extensão insuportável e no vazio do
tempo é uma experiência de estar acorrentado à condição de ser alguém.240

A imagem da subjetividade como uma prisão é de um valor expressivo singular, sobretudo


quando considerada a condição do cárcere a que esteve submetido Sade durante muitos anos.241
No texto que integra o primeiro volume da revista Acéphale, Klossowski ratifica ainda
essa imagem sob o sugestivo título “O Monstro” que, se a princípio parece referir-se a Sade, ao
final revela-se como o qualificativo da paradoxal condição humana: ter um corpo animal e uma

239
KLOSSOWSKI, op. cit., 1969, p.90
240
Ibidem, p.99
241
Submissão que só chegaria ao fim por ocasião dos inesperados e violentos desdobramentos da revolução de
uma revolução.
112

mente apta à transcendência circunscreve a situação do prisioneiro que, de sua jaula, – não
obstante – é capaz de discernir e de desejar tudo aquilo se apresenta do lado de fora.

Aqui também a Natureza é vivida como uma presença provocadora da espera,


uma presença que se furtaria à espera agressiva: a consciência sadista se vê
em face de sua própria eternidade, que ela renegou e não pode mais reconhecer
sob os traços da astuciosa Natureza; por um lado, mantida nas funções
orgânicas do indivíduo, ela faz a experiência dos limites de sua agressividade;
por outro, nos movimentos da imaginação, ela tem a sensação do infinito. Mas
em vez de reencontrar aí sua condição eterna e de se sentir parte da unidade
universal, ela percebe aí, como num espelho, apenas o infinito reflexo das
diversas e múltiplas possibilidades perdidas de seu indivíduo. O ultraje a
infligir à Natureza seria o de cessar de ser indivíduo, para totalizar imediata e
simultaneamente tudo o que a Natureza contém: seria conseguir chegar a uma
pseudoeternidade, a uma existência temporal, aquela da polimorfia
perversa.242

Da neurose à perversão, portanto, opera sem exagero aquilo que Nietzsche chamou de
transvaloração dos valores. Do ponto de vista da perversão, a subjetividade e o individualismo
(que nada mais é que a transposição cultural da subjetividade) não podem ser concebidos senão
na condição de uma doença.
Nesse mesmo sentido, do ponto de vista da neurose e da cultura, conforme definido por
Freud em “O Futuro de uma Ilusão”, a morte é exatamente aquilo contra o que o sujeito deve,
a todo custo, erguer suas armas. Aos olhos da polimorfia sadiana tornada explícita por
Klossowski, no entanto, a morte não carrega o sinal negativo de um fim (extinção), pois trata-
se tão somente do começo de uma radical forma de experiência.
“Além da muralha”, escreve Klossowski em Sade: meu próximo, “há a liberdade do
não-ser, a liberdade de Deus, que é acusado de encarcerar suas criaturas na prisão do ser.”243
Talvez a razão do recalque que nossa cultura experimenta em relação a esse “sentido positivo”
da morte seja porque, a nossos olhos, é inconcebível uma forma de existência que não esteja
indissociavelmente ligada à subjetividade e ao uso da razão – essas sim destinadas a desaparecer
na experiência da morte, posto serem ambas apenas decorrência do fato de possuirmos um
corpo animado.
Nesse terreno do “desapego”, as culturas orientais parecem navegar com muito mais
facilidade, muito embora – à exceção talvez da mitologia hindu – elas não ofereçam uma
imagem da morte remotamente parecida com aquela que Sade apresenta. Talvez devido à

242
KLOSSOWSKI. Acéphale. Trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie Editora, 2014 vol.1
243
KLOSSOWSKI, op. cit., 1969, p.99
113

familiaridade dessas culturas com a prática da meditação, a noção da “liberdade do não-ser”,


ou – dito de outra forma – a noção do ser como uma espécie de “unidade mínima” do existente
é muito mais facilmente aceita e compreendida, às expensas das formas discursivas racionais
que não parecem dar conta dessa noção.
Da perspectiva da racionalidade ocidental, ao que parece, há apenas duas possibilidades:
ou o ser, na experiência da morte, projeta-se para o além, preservando seus traços de identidade,
razão e subjetividade (uma fantasia infantil, alimentada em grande medida pelos dogmas
religiosos); ou, da perspectiva mais sóbria, não obstante estéril do ateísmo, o ser se aniquila por
completo ao se deparar com as cortinas negras da morte. É possível ver como ambas as
perspectivas são limitantes e excludentes entre si.
Do ponto de vista zen oriental, no entanto, (ponto de vista constantemente reafirmado
por Bataille em A experiência interior) a morte marca o começo de uma estranha experiência,
que é completamente paradoxal em relação aos postulados da razão.
No horizonte dessa experiência paradoxal – cujos postulados podem ser derivados
também das conclusões a que chegou Sade – a morte desvela o ser, ou, dito de outra forma, que
o que a experiência da morte revela não é a verdade do ser, mas a verdade de ser. A diferença
entre esses dois termos de fato é tão sutil que não chega a surpreender a quantidade gritante de
erros e de gestos monstruosos perpetrados ao longo da história em função da confusão de um
pelo outro.
Se levamos adiante essas conclusões, por meio delas torna-se possível desatar o nó
contra o qual se deparou Freud, em “Além do Princípio do Prazer”. Para o psicanalista, a
hipótese de que as pulsões pudessem conduzir o aparelho psíquico a um estado de desequilíbrio,
marcado pelo excesso de estímulos, parecia apontar para uma fronteira do paradoxal. No limite,
essas pulsões conduziriam à destruição do próprio aparelho, o que certamente estava em
contradição com a tendência mais elementar que ele havia identificado para as pulsões, de
estarem sempre orientadas no sentido de restaurar o equilíbrio e a autopreservação do sistema.
Em Sade: meu próximo, Klossowski coloca a perspectiva sadiana em atrito com a de
Freud, nos seguintes termos:

Comparemos por um momento o princípio da vida e da morte que determinará


a nova posição de Sade sobre o problema da destruição com a noção de pulsão
de morte em Freud, que, ao opor essa pulsão a Eros, pulsão vital - pela vida
orgânica, estabelece sua teoria ontológica sobre essas duas noções. Embora
Freud vislumbre a vida apenas no estado orgânico, Sade – que, apesar das
aparências, é mais metafísico – não admite uma diferença entre a vida no
estado orgânico e no inorgânico e não leva em conta considerações sobre a
114

espécie, isto é, no final, sobre o meio social; existe em sua concepção um


princípio: “Em todos os seres vivos, o princípio da vida não é outro senão o
da morte; recebemos um ao mesmo tempo que recebemos o outro; nós
nutrimos ambos dentro de nós, lado a lado. No instante a que chamamos
morte, tudo parece se dissolver; somos levados a pensar assim pela excessiva
mudança que parece ser provocada nesta porção da matéria que não parece
mais animada. Mas essa morte é apenas imaginária, existe figurativamente,
mas não de outra maneira. A matéria, privada da outra parte da matéria que
comunicou movimento a ela, não é por isso destruída; simplesmente abandona
sua forma; decai - e, em decadência, prova que não é inerte; enriquece o solo,
fertiliza-o e serve na regeneração dos outros reinos, assim como dos seus
próprios. Não há, em última análise, nenhuma diferença essencial entre essa
primeira vida que recebemos e a segunda, que é a que chamamos de morte.244

Todo o estranhamento em relação à literatura de Sade – que, conforme conclui Sollers,


parece condenada a permanecer do lado de fora da cultura – deriva, portanto, do confronto com
esse postulado segundo o qual a existência se encontra de alguma forma preservada, mesmo no
estado inorgânico. Ou talvez fosse melhor dizer, respeitando o pensamento de Sade, que a
existência se encontra preservada sob uma outra forma, mesmo no estado inorgânico.
Como se sabe, tal postulado não encontra qualquer respaldo na literatura científica e é,
aos olhos da biologia, inteiramente absurdo. O acesso a esse pensamento limite, não foge,
contudo, ao escopo da empiria, ainda que qualquer tentativa de sustentar uma experiência dessa
magnitude deva se dar, necessariamente, fora dos limites do discurso racional.
Bataille viria a dar vazão a esse estranho pensamento em um dos textos da revista
Acéphale, cujo nome já apontava para este ponto de que, mesmo sem a cabeça e estando
desligado por completo do uso da razão – sendo, portanto, decepado da submissão a Deus e à
cultura – um corpo poderia permanecer de pé.
E, precisamente nesse estado, tal corpo se mostraria em sua forma mais exuberante e
disponível a uma experiência extática profunda o bastante para ser alçada ao valor de verdade.
“A matéria inorgânica é o seio materno. Ser liberado da vida é voltar a ser verdadeiro; é se
tornar perfeito. Aquele que compreendesse isso consideraria como uma festa retornar à poeira
insensível”245, escreve Bataille retomando, portanto, as conclusões de Sade. Ele acrescenta que

Aplicar a percepção igualmente ao mundo inorgânico; uma percepção


absolutamente precisa – lá reina a ‘verdade’! A incerteza e a ilusão começam
com o mundo orgânico. Perda em toda especialização: a natureza sintética é a
natureza superior. Ora, toda vida orgânica é já uma especialização. O mundo
inorgânico que se encontra atrás dela representa a maior síntese de forças; por

244
Ibidem, p.89-90
245
BATAILLE. Acéphale. Trad. Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie Editora, 2014, p.20-21
115

essa razão, ele é digno do maior respeito. Lá o erro, a limitação perspectiva


absolutamente não existem.246

A proposta de reencontro com essa verdade paradoxal seria retomada por Bataille em A
experiência interior. Nesse texto, o escritor oferece ao paradoxo de Freud – de pulsões que
partem em busca de experiências que podem ser percebidas pelo aparelho psíquico como
“desprazerosas” – a seguinte resposta: “Na medida em que opões um obstáculo a forças
transbordantes, estás fadado à dor, reduzido à inquietude. Podes perceber o sentido da angústia
em ti: de que maneira o obstáculo que és deve se negar a si mesmo e se querer destruído, pelo
fato de ser parte das forças que o quebram”247.
O corpo animal, que por força da razão tende a se apresentar como organizado e
individual (neurótico), é, na concepção batailliana, um obstáculo: “Eu não sou e tu não és, nos
vastos fluxos das coisas, mais do que um ponto de parada favorável à rebentação”248. E
acrescenta que “essa ordem [individual] não passa da ocasião de um erro risível, mais uma
existência definhada marcando um ponto morto, um absurdo apertinho, esquecido, por pouco
tempo, em meio ao bacanal celeste”249.
É nesse sentido que a experiência da morte estaria destinada a desvelar a verdade (o
real), que encontra no êxtase a sua manifestação física. A verdade (o “movimento de liberdade
real”, como escreve Blanchot) é a saída do ser da máscara do “eu”, de seu isolamento, e sua
consequente reintegração junto às forças que compõe a “bacanal celeste”. Trata-se, portanto,
da experiência de romper “as frágeis paredes de teu isolamento, onde se compunham as
múltiplas paradas” em que “os obstáculos da consciência só terão servido para refletir por um
instante o brilho desses universos no seio dos quais nunca cessaste de estar perdido”.250
Nesse texto, Bataille define ainda a existência individual como sendo a “um curto
momento de parada” em relação ao qual “o complexo, o suave, o violento movimento dos
mundos fará para si de tua morte uma espuma esguichante. As glórias, a maravilha de tua vida
se devem a essa rebentação da onda que se formava em ti no imenso barulho de catarata do
céu”251.
A dificuldade imposta por essa escrita – talvez pela força a que a palavra “morte” está
associada – deve-se ainda à seguinte estranheza: para que seja compreendida em seu valor de

246
Ibidem
247
Idem, op. cit., 2016, Terceira Parte: Antecedentes do suplício (ou a comédia)
248
Ibidem.
249
Ibidem
250
Ibidem
251
Ibidem
116

“verdade”, a experiência pressupõe, logicamente, que alguma forma mínima de percepção do


ser subsista à “travessia”; além disso é preciso considerar a necessidade do retorno (à
consciência, à linguagem) que a própria ideia da “morte”, por suposição, encerraria por
completo. No entanto, é preciso considerar que, se não houvesse a possibilidade do retorno, a
experiência não poderia ser comunicada e, nesse sentido, jamais existiria enquanto tal.

Mas do isolamento em que envelheces no seio de universos votados a tua


perda, tens a possibilidade de extrair essa consciência vertiginosa do que tem
lugar, consciência, vertigem, às quais só chegas enlaçado por essa angústia.
Não poderias te tornar o espelho de uma realidade dilacerante se não tivesses
de te quebrar...252

À imagem da consciência proposta como um espelho que deve se quebrar,


acrescentaríamos, na sequência, a exigência do espelho que deve ser, de certa forma,
reconstruído ao final da experiência, e assim sucessivamente.
É nesse sentido que a experiência interior que Bataille propõe no livro não é outra que
a do reencontro, por meio da prática da meditação, com essa unidade mínima do ser a que ele,
estranhamente, confere o nome de “soberania” (talvez pela impossibilidade, a despeito da
vontade do sujeito, de cedê-la, comercializá-la, negociá-la, subordiná-la etc.).
A soberania é apresentada como uma possibilidade que desponta para o ser em recusa
às “operações subordinadas”, isso é, trata-se do ser despido do mundo da atividade, do trabalho,
do projeto, de Deus, do mundo dos objetos, da escravidão: do ser que se apresenta do lado de
fora da cultura, do corpo, em suma, que se mantém orgulhosamente de pé a despeito de sua
decapitação.
“O escravo-sujeito do cristianismo atribuía (reportava) a soberania ao deus-objeto, cujo
propósito exigia, de fato, que se apoderassem dele como de um objeto de posse”253. Mais
adiante, Bataille anota que “não podemos, de modo algum, fabricar um momento soberano, a
partir de um estado servil: a soberania não pode ser adquirida, não pode sequer ser definida
como um bem. Tudo o que posso, na operação soberana, é tomar consciência dela.”254
A contradição do sujeito e, ainda mais, do indivíduo, em relação à “possibilidade
soberana”, é evidente. Ser um indivíduo, afinal, é o estado de estar subordinado ao mundo da
atividade, ao mundo animal da razão e dos objetos imediatos. E mesmo “no ápice da
inteligência há um impasse onde parece decididamente se alienar a soberania imediata do ser:

252
Ibidem
253
Ibidem, “Método de Meditação”.
254
Ibidem
117

uma região de suprema tolice, de sono”255, o que quer dizer que a operação soberana não poderia
ser objeto nem mesmo da mais refinada cultura.
A soberania é avessa ao tempo da civilização: “a autêntica soberania é a recusa, a
revolta, não exercício do poder”256, uma “sabedoria ao mesmo tempo maior e menor. Só a
soberania atinge uma sabedoria total. Ela obriga ao silêncio e, contudo, não é senão riso.”257
Bataille define ainda esse conceito pelas seguintes palavras: “O aparente rigor afirmado pra lá
e pra cá é apenas o efeito de um profundo relaxamento, do abandono a um essencial que, de
qualquer maneira, a SOBERANIA DO SER é.”258

***

A suprema inversão (transvaloração) de Sade aparece, então, numa escrita que sustenta
a morte como possibilidade para uma dimensão Outra da existência. Para Sade, trata-se
verdadeiramente de uma dimensão em que se desvela o caráter infinito da existência, ao tempo
em que o ser é incorporado de maneira informe, indistinta, contínua a essa dimensão.
Em Juliette, o marquês escreve que:

O nascimento do homem não constitui, portanto, o começo de sua existência,


assim como a morte não significa o fim; e a mãe que engravida não confere
mais vida do que um criminoso que oferece a morte: a primeira produz uma
espécie de matéria orgânica, em determinado sentido, ao passo que o segundo
dá oportunidade ao renascimento de uma matéria diferente, qualquer deles
efetuando um ato de criação.259

Assim que um corpo parece ter perdido o movimento por sua passagem do
estado de vida para o que é indevidamente chamado de morte, ele tende, a
partir desse momento, à dissolução; apesar disso, a dissolução é um estado
muito grande de movimento. Não há, portanto, nenhum momento em que o
corpo do animal esteja em repouso; nunca morre; mas porque não existe mais
para nós, acreditamos que não existe mais. Corpos são transmutados ...
metamorfoseados, mas nunca são inertes. A inércia é absolutamente
impossível seja a matéria organizada ou não. Pese essas verdades com cuidado
e você verá aonde elas levam e que reviravolta elas dão à moralidade
humana.260

255
Ibidem
256
Ibidem
257
Ibidem, “Notas da edição francesa. 2. Da angústia à glória”.
258
Ibidem, “Método de Meditação”.
259
SADE. Juliette. Trad: Austryn Wainhouse. Nova Iorque: Groove Press, 1968a, Parte IV
260
Ibidem
118

A contraposição sadiana da natureza à cultura se dá, portanto, nos mesmos termos que
mais acima destacamos da escrita de Freud: a natureza é entendida como aquilo que excede
violentamente a cultura. Se relacionamos esse importante e transgressivo passo dado por Sade
em relação não só à moralidade humana, mas à cultura como um todo com o conceito de
soberania de Bataille, diríamos, a respeito dessa dimensão, que na morte, logicamente, o
indivíduo não poderia subsistir, mas que nela o ser persiste em sua forma mínima, irredutível,
soberana, onde experimenta, nas palavras de Klossowski, “a liberdade de Deus”.
Sem dúvida a proposta de A experiência interior de Bataille vale em grande medida pela
realização de que – muito embora a eventualidade da morte seja algo que escapa por completo
a qualquer um – essa experiência soberana estaria plenamente ao alcance do desejo261, sendo,
portanto, passível de retorno à linguagem e à consciência. A experiência, retomando a figura
proposta por Bataille, depende de que o espelho da consciência se quebre, mas que, num
segundo momento, ele se recomponha, ainda que – o que é mais provável – sob uma outra
forma.
Falar da operação soberana é apenas falar da experiência do ser na morte, e não da morte
em si. Na experiência da morte, a transposição da muralha da individualidade significava, para
Sade, o reencontro do ser com a natureza, que, como vimos acima, ele define como sendo
constituída de “metamorfoses infinitas” e pelo “perpétuo movimento”:

Quanto à destruição do seu semelhante, fica certa, Sofia, que é puramente


quimérica, pois o poder de destruir não foi dado ao homem mas somente o de
variar as formas, sem poder aniquilá-las. Portanto, fica sabendo que toda
forma é igual aos olhos da natureza, nada se perde no cadinho imenso onde se
executam suas variações, e toda porção de matéria que ali é jogada
incessantemente se renova sob o outro aspecto, e se sobre ela desencadeamos
uma ação esta não a ofende diretamente, não a ultraja e, mesmo que nossas
destruições retomem seu poder de vez em quando, ela mantém sua energia,
nada podendo atenuá-la.262

[...] o que chamamos de “fim da vida animal não é um fim real, mas simples
transmutação, que tem por base o perpétuo movimento, essência verdadeira
da matéria, que todos os filósofos modernos consideram como uma de suas
primeiras leis. A morte, segundo esses princípios irrefutáveis, representa tão

261
Ou da vontade de chance, que é a atualização oferecida por Bataille ao conceito de vontade de potência
nietzschiano. No capítulo seguinte, analisaremos a importância da literatura e da poesia como formas pelas quais
esse “não-saber” da morte se dá a ver, passando a se apresentar como uma espécie de objeto (erótico) ao alcance
do desejo.
262
Idem, Justine ou Os Infortúnios da Virtude. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1968b, p.55-56
119

somente uma transformação, uma passagem imperceptível de uma existência


a outra...263

Diferentemente de Bataille que, como analisaremos em mais profundidade no próximo


capítulo, compreendeu a passagem da transgressão (o movimento da natureza) para o interdito
(o estado imposto pela cultura) como um processo cíclico que representa a própria natureza
humana (definida, então, nessa alternância, como uma natureza erótica), Sade levou suas
conclusões a respeito do “sistema da natureza” às últimas consequências.
Sade quis imaginar na transgressão a possibilidade de um estado puro e imparável, como
a única forma da humanidade viver em consonância com a verdade, no fluxo desse movimento
incessante que faz variar as formas. O valor que poderíamos extrair da transgressão proposta
pela literatura sadiana muitas vezes se perde precisamente por isto: por se ater, por
recomendação do próprio escritor, a seu caráter criminoso. O fato de Sade atribuir um valor de
purificação ao crime é algo por demais obsceno à nossa consciência, é uma proposição – em
todos os sentidos – insustentável.
A história da civilização, é evidente, já fora escrita com demasiado sangue. E o sangue
derramado ao longo de milênios – salvo as poucas exceções que a escrita de Bataille procura
resgatar colocando em cena os rituais religiosos de sacrifício – não carrega nenhum valor
poético. Derramar mais sangue é algo não apenas escandaloso, mas que remete à consequência
mais nefasta do fato de sermos uma civilização.
É comum que se siga, à leitura de Sade o gesto escandalizado de uma humanidade que
passa a refutar a transgressão enquanto tal por associá-la ao ímpeto declarado pelo próprio
escritor de destruir quaisquer formas de interdito.
É que, como observa Eliane Robert Moraes, em Sade: a felicidade libertina, no caso
dessa literatura, “a natureza torna-se inspiração: deixa de ser meta para transformar-se em ponto
de partida. Não se trata simplesmente de repetir sua perversidade. Não se trata apenas de imitar
o modelo destrutivo que ela lhe oferece, mas [...] “cumpre tornar-se criminoso”264.
Isso porque, conforme pontua Klossowski, “para Sade, a substituição de Deus pela
natureza no estado de movimento perpétuo não significa a chegada de uma era mais feliz para
a humanidade, mas apenas o começo da tragédia e sua aceitação consciente e deliberada”265.
Ou, nas palavras do próprio marquês,

263
Idem, op. cit., 1968a, Parte IV
264
MORAES, Eliane Robert. Sade: a felicidade libertina. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994, p.106
265
KLOSSOWSKI, op. cit., 1991, p.81
120

Eu detesto a natureza; e eu a detesto porque a conheço bem. […]. Eu mal tinha


deixado meu berço quando ela me atraiu para os horrores que são sua delícia!
Isso vai além da corrupção…. É uma inclinação, uma propensão. Sua mão
bárbara só pode nutrir o mal; o mal é seu entretenimento. Eu deveria amar essa
mãe? Não; mas vou imitá-la, o tempo todo detestando-a. Vou copiá-la, como
ela quer, mas a amaldiçoarei incessantemente.266

Será preciso, portanto, considerar a transgressão ou a imitação do movimento da


natureza que Sade, com sua literatura, procurava emular, segundo ao menos duas perspectivas.
Na primeira delas, trata-se da transgressão do escritor que, conforme as conclusões de Blanchot
a respeito da literatura sadiana, se lança a escrever incessantemente: trata-se da “loucura de
escrever” e da capacidade da literatura de “dizer tudo”, duas propriedades da literatura que
retomariam, desde Sade, nas palavras de Blanchot, o movimento de “liberdade real” da
natureza.
Essa perspectiva, segundo Klossowski, é a que revela “o significado oculto do ateísmo
de Sade, que o diferencia tão claramente de seus contemporâneos. Admitir a matéria no estado
de movimento perpétuo como o único agente universal é equivalente a consentir em viver como
um indivíduo em um estado de movimento perpétuo.”267
A outra perspectiva é a da transgressão inscrita na própria ficção, na qual o crime, a
destruição dos personagens uns pelos outros, a disposição ao assassinato, serviriam de
ilustração – a mais explícita possível – do trabalho de destruição e da ética da natureza, segundo
o entendimento que Sade teve dessa ética.
No entanto, na toada dessa radicalização que desprezava por completo o valor do
interdito em relação à transgressão, como dissemos acima, a literatura de Sade perde muitas
vezes o caráter trágico para se conformar como uma espécie de drama.
É como se, ao glorificar o movimento da destruição pela destruição – de representar essa
compreensão complexa que teve da natureza – Sade se distanciasse demasiadamente do
horizonte humano, mesmo daquele horizonte mais radical em que a destruição se prestaria a
novos trabalhos de criação, novamente de destruição etc. É como se, nesse ponto, Sade
terminasse por trair seu “sistema natureza” e, consequentemente, a si mesmo, criando um efeito
de gratuidade à violência – que, conforme pontua Klossowski, pode ser considerado indesejado
– dentro de sua obra:

266
Ibidem, p.82
267
Ibidem, p.81
121

Uma vez tendo alcançado essa posição, no limiar do desconhecido, o


pensamento de Sade, olhando para trás, recua, escandalizado por suas próprias
conclusões inevitáveis. Então vemos esse pensamento se apoderar de si e
aceitar suas descobertas. Assim, os discursos ateístas e materialistas de alguns
dos personagens de suas obras nos impressionam como tantos momentos dos
esforços de seu próprio pensamento para fugir das categorias morais; é isso
que dá a esses discursos seu tom peculiarmente dramático.268

Por fim, Klossowski levanta a questão ao ponto que Nietzsche pôde – tragicamente –
escrevê-la: “essa matéria perpetuamente em movimento que treme de prazer e obtém
gratificação apenas em dissolução e destruição, é realmente cega e sem vontade? Não há
intenção neste agente universal?”269 Ao indagar o abismo com essa questão Nietzsche obteve a
desejada resposta – ou melhor, ele a experimentou em seu corpo – que, no entanto, lhe exigiu
algo em retorno: o sacrifício de sua própria cabeça.
Assim, ao deslocar a maré sadiana de assassinatos para o campo de uma experiência
interior que incorporava também a experiência de Nietzsche, Bataille recolocava a discussão
em termos de seu real valor, que é o valor trágico e simbólico de dirigir a transgressão não em
relação ao mundo, mas em relação à própria consciência, isto é: trata-se do esforço (trágico,
porque impossível) de destruição da instância do ‘eu’.
Como o demonstraram os horrores perpetrados pelo fascismo, a experiência cega de
destruição do outro teria tão somente o valor de uma experiência inconsciente tornada tanto
pior, verdadeiramente monstruosa, quanto mais procurasse ser incorporada pelas fronteiras de
uma racionalidade destrutiva.
A racionalidade pela qual os discursos dos personagens de Sade se travestem para
justificar as atrocidades cometidas contra seus semelhantes não por acaso se deixa confundir
com aquela dos campos de concentração, muito embora o próprio Sade tenha se manifestado
veementemente contra a violência organizada e levada adiante pela revolução francesa.
É por esse motivo que a escrita de Bataille sustenta que a experiência interior só poderia
ser proposta e concebida quando afastada tanto quando possível dos domínios da razão270, muito
embora essa experiência devesse eventualmente se apresentar ou retornar aos domínios da
consciência. É por esse motivo também que o escritor confere à poesia o valor de uma instância
privilegiada para sua manifestação, nos eixos em que define que a única aproximação possível
do Mal com a civilização deva se dar através da literatura.

268
Ibidem, p.81-82
269
Ibidem, p.81-82
270
A clareza que, mais tarde, ele teve em relação a essa necessidade foi o que o levou também a colocar um fim
definitivo à sociedade Acéphale.
122

Por isso as interpretações dadas por Bataille e Klossowski à obra de Sade se fazem tão
importantes: porque preservam o valor fundamental de sua experiência – isso é, o valor a que
ela de fato se propõe, que é a de ser uma experiência interior transposta, por fim, aos domínios
da linguagem.
Eis uma das afirmações paradoxais de Bataille em A experiência interior, em apelo ao
retorno da loucura à lucidez da linguagem: “Digo-o com uma firmeza que não estremece, não
quero nada sem a consciência. Sei que a inconsciência é sempre a garantia da servidão, e que a
escolha do inconsciente, já que a consciência é o efeito da servidão, exige para começar mais
consciência!”271. É por esse motivo que o escritor inscreve a literatura de Sade nos domínios
de uma “hipermoral”.

***

Bataille pensa a cultura como o ordenamento para o conjunto de relações sujeito-objeto


e que, no limite, submete os próprios sujeitos à condição de objetos, não mais diferenciando
uma categoria da outra. No comentário que tece a respeito do texto de Sade em A literatura e o
Mal, o escritor percebe que a fúria sadiana começa por se endereçar à noção de individualidade
– “o curso de uma vida humana nos prende a opiniões fáceis: nós nos representamos como
entidades bem definidas. Nada nos parece melhor assegurado que este eu que baseia o
pensamento”272 – para, em seguida, sustentar a tese de que cultura e individualidade são partes
de um mesmo processo: “assimilando-se às coisas manejadas, o indivíduo pode ainda se
subordinar a uma ordem finita, que o submete ao interior de uma imensidade nas leis das
ciências (que põem o sinal de igual entre o mundo e as coisas finitas)”273.
Acrescenta, por fim, que “o indivíduo não é igual a seu objeto senão ao se submeter
numa ordem que o esmaga (que o nega, que nega o que difere nele da coisa finita e
subordinada)”274.
Se, nesse movimento de recalque implicado pelo processo civilizatório, a natureza passa
a ser absolutamente “exterior a nossos seres finitos”, o ponto máximo de alteridade ou, ainda,

271
BATAILLE. op. cit., 2016, Notas da edição francesa das obras completas. 2. Da angústia à glória
272
Idem, op. cit., 1989, p.111
273
Ibidem, p.111
274
Ibidem, p.111
123

o “lado de fora” da cultura –, então pode-se concluir que a natureza está, enquanto experiência,
no horizonte de um “infinito impenetrável”275 e, enquanto conhecimento, situada nas dimensões
do informe e do não-saber.
Para Sade, a dinâmica da transgressão da cultura deveria ser necessariamente praticada
contra o outro, posto que endereçada ao Outro, à natureza, conforme observa Bataille nesta
análise ao texto sadiano:

Há apenas um meio em seu poder de escapar a estes diversos limites: a


destruição de um ser semelhante a nós (nesta destruição, o limite de nosso
semelhante é negado; não podemos efetivamente destruir um objeto inerte, ele
muda, mas não desaparece, só um ser semelhante a nós desaparece na morte).
A violência sofrida por nosso semelhante se oculta à ordem das coisas finitas,
eventualmente úteis: ela o entrega à imensidade. Isso já era verdadeiro no
sacrifício.276

Bataille soube perceber que, por mais paradoxal que possa parecer, a lógica do assassinato
sadiana tem um sentido bastante delimitado.
A destruição do objeto corpo “repõe” esse objeto à categoria das coisas não inertes,
posto que a destruição de um corpo desencadeia, através da assinatura da morte, um processo
irreversível. O verbo repor, no entanto, nem minimamente é capaz de expressar a violência e as
forças que estão em questão aqui: essa passagem de um objeto de uma categoria a outra, de
uma dimensão a outra (da dimensão profana à sagrada), é atravessada por lágrimas que são o
significante de uma experiência de êxtase. Por meio desse sacrifício, vítima e algoz, de maneira
solidária, rompem os laços que os prendem à ordem das coisas finitas (cultura) e se entregam à
imensidade (à natureza).
A conclusão de Klossowski em Sade: meu próximo serve de complemento a esse ponto:
“poderíamos também ver em toda essa vontade de Sade a separação da solidariedade com o
homem, impondo a si mesmo o imperativo categórico de um tribunal cósmico que exige a
aniquilação de tudo o que é humano”.277 A destruição do corpo, em Sade, portanto – por meio
desse imperativo antikantiano ao extremo –, mira a destruição do fato humano, isso é, da
cultura. Ao recorrer ao suporte da literatura para dar sustentação a esse pensamento-limite, o
que Sade descreve é o movimento de destruição do corpo profano em favor da ascensão do

275
Ibidem, p.111
276
Ibidem, p.111
277
KLOSSOWSKI, op. cit., 1991, p.87
124

corpo sagrado (ou do “corpo impossível”, para retomarmos a bela expressão de Eliane Robert
Moraes).
Definida em termos de uma revolução, ou seja, em termos daquilo em relação ao que o
chão da cultura vacila porque não encontra sustentação, Bataille defende que o grande trunfo
da literatura de Sade foi ter demonstrado que o infinito é penetrável – que o impossível e o não-
saber constituem, assim, uma dimensão que é finalmente acessível ao pensamento.
Outro ponto levantado em relação ao que o escritor chama de a “hipermoral” sadiana é
e que, mesmo que na raiz essa experiência seja considerado aos olhos (castrados) da civilização
como a fonte do desejo por um objeto impróprio (a perversão)278, a experiência em relação a
esse objeto não só é inteiramente legítima e praticável como talvez seja o que encerre aquilo
que em nós é propriamente humano: o erotismo, o êxtase diante da consciência da morte, a
reconquista de uma dimensão perdida para o saber ao longo do processo civilizatório, que é a
dimensão do sagrado.
Em relação a essa literatura e – mais do que isso – em relação à experiência de Sade,
Bataille escreve em A literatura e o Mal: “é emocionante para nós que uma fabulação mítica se
ligue ao que finalmente desvela o âmago dos mitos. Foi preciso uma revolução – no ruído das
portas da Bastilha derrubadas – para nos libertar, ao acesso da desordem, o segredo de Sade”.279
A natureza desse segredo, Bataille observa, não só está no âmago dos mitos como
também constitui o mais antigo sonho ou, nas palavras do escritor, a verdadeira “obsessão” da
filosofia: “a unidade do sujeito e do objeto”, “o ultrapassamento dos limites dos seres, do objeto
do desejo e do sujeito que deseja.”280
É evidente que, ao querer dar sustentação literária a isso que Klossowski denomina de
“um fatalismo transcendental”, Sade sabia que “resolutamente se afastava de sua condição
humana”, que “se retirava da competência do tribunal moral dos homens”, para “procurar
integrar-se a uma cosmogonia mítica”.281
A experiência sadiana, no entanto, pelo mesmo movimento que abre essa porta, cai num
impasse. A disposição ao “devir criminoso” como forma de emular o movimento da natureza
logo se mostra um ato de desespero e, pior, um ato impotente. Isso porque, se a atitude em
relação a Deus é passível de transgressão, de vingança – se é, no limite, possível “matar Deus”
–, a atitude em relação à natureza não o é.

278
Tal definição aparece em KLOSSOWSKI, op. cit., 1991, p.23
279
BATAILLE, op. cit., 1989, p.113
280
Ibidem, p.113
281
KLOSSOWSKI, op. cit., 1991, p.84
125

A natureza, pela própria noção de um movimento perpétuo, impõe um limite de até onde
uma transgressão pode chegar. “A noção de movimento perpétuo absorve toda ideia de
aniquilação, que agora se torna nada mais que uma modificação das formas da matéria; o
homem não pode mais responder com indignação ao que considera o ultraje da natureza. Ele se
descobre incapaz de vingança”282.
É sobre este ponto que o pensamento de Sade recua, e “nos oferece apenas uma atitude
de revolta puramente humana, sem outra esperança senão a de poder permanecer em revolta”.283

Em outras palavras, Sade desejava transgredir o ato ultrajante por um


permanente estado de movimento perpétuo - aquele movimento que Nietzsche
mais tarde chamou de “a inocência do devir”. Mas Sade vislumbrou, por si,
essa transgressão da transgressão só por um momento; a hipérbole de seu
pensamento o traz de volta ao âmago de sua sensibilidade irredutível ligada à
sua representação de um ato escandaloso - que exclui a própria noção de
inocência.284

Bataille toma como ponto de partida, portanto, as conclusões derradeiras de Sade, mas
para transgredi-las. Essa retomada se dá a partir do movimento transgressivo iniciado pela
literatura de Nietzsche, ao qual Bataille dará sequência na perspectiva da inocência (do devir)
sustentada pela escrita do filósofo, mas que havia sido completamente subjugada, no caso de
Sade.
Podemos dizer que uma parte importante do trabalho de Nietzsche e de Bataille foi o de
trazer à luz a perversão – nos termos de uma estrutura psíquica que concorre com a estrutura
neurótica do homem civilizado – e o gesto transgressivo, porém não mais encarados a partir da
perspectiva do crime, da violência endereçada ao outro, mas sim como uma estrutura e um gesto
direcionados à cultura e às suas manifestações no campo da linguagem (no caso de Nietzsche)
e a si mesmo e à própria consciência neurótica do ‘eu’ (no caso de Bataille).
Se a experiência de Sade foi assimilada pela cultura como sendo a de uma revolta
delinquente ou, quando muito de uma excentricidade psíquica e sexual, a leitura que Bataille e
Klossowski fizeram do escritor, por outro lado, soube extrair da experiência sadiana seu real
valor, que é o de eliminar o tabu da dicotomia entre o espírito e as paixões, ou, dito de outra
forma, o valor de tornar conscientes – legitimamente conscientes – conteúdos que a cultura
recalcara ao plano inconsciente, conforme essa importante passagem de A literatura e o Mal:

282
Ibidem, p.83
283
Ibidem, p.89
284
Ibidem, p.34
126

Outros antes dele tinham tido os mesmos descaminhos, mas entre o


arrebatamento das paixões e a consciência subsistia a oposição fundamental.
Jamais o espírito humano deixou de às vezes responder à existência que leva
ao sadismo. Mas isso se passava furtivamente, na noite que resulta da
incompatibilidade entre a violência, que é cega, e a lucidez da consciência. O
frenesi distanciava a consciência. Por seu lado, a consciência, em sua
condenação angustiada, negava e ignorava o sentido do frenesi. Sade, na
solidão da prisão, foi o primeiro a dar a expressão arrazoada a estes
movimentos incontroláveis sobre a negação dos quais a consciência ergueu o
edifício social – e a imagem do homem.285

A manifestação da experiência por meio da linguagem constitui um ganho notável que


posiciona a literatura de Sade em meio àquela dos místicos. Sem o suporte da linguagem
literária, a experiência estaria condenada – como de resto sempre esteve aos olhos da cultura –
à pena capital, à decapitação. Foi sobretudo porque Sade escreveu que se tornou possível
recuperar o que havia de genuinamente humano em sua experiência, compreendida fora do
recalque inicial que ela provoca em razão de sua atroz violência.
Sade talvez tenha sido o primeiro a observar – dentro do que, em seus escritos, aparece
como uma veemente acusação contra a hipocrisia – que a própria ideia do homem e de todas as
suas instituições estava assentada nisso que Bataille chama de negação, portanto, sobre uma
mentira original sobre a qual “se ergueu o edifício social”. O contraponto à hipocrisia se
escreve: negar a negação é negar o homem neurótico e afirmar a perversão como sendo a outra
possibilidade humana.
Com isso, foi por meio da linguagem literária que a perversão se permitiu ver não mais
como um simples desvio da normalidade, mas verdadeiramente como uma estrutura que coloca
em xeque e que acusa a ideia de normalidade como sendo, ela própria, constituída por um
desvio. Foi por meio da literatura de Sade que a perversão saiu do calabouço a que esteve
condenada em razão do progresso civilizatório, para alcançar finalmente a consciência e
reivindicar seu direito à legitimidade.
A esse respeito, Bataille escreve em A literatura e o Mal:

Nós não podemos nos surpreender que uma verdade tão estranha, e tão difícil,
seja antes de tudo revelada sob uma forma resplandecente. A possibilidade da
consciência é seu valor fundamental, mas ela não podia deixar de se referir ao
âmago de que é o signo. Como o esplendor poético teria faltado a esta verdade

285
BATAILLE, op. cit., 1989, p.113
127

nascente? Esta verdade, sem o esplendor poético, não teria humanamente seu
alcance.286

Se essa transgressão parece tão estranha é porque ela está assentada numa dupla
violência. Ela depende, em primeiro lugar, que se reconheça em que medida a cultura é violenta,
em que medida a cultura aliena o ser humano da experiência do êxtase e em favor da construção
do edifício social. Em seguida, a transgressão sadiana exige que se invista conscientemente
contra o sentido desse recalque neurótico sustentado pela civilização, que se faça calar ou
destruir o discurso ideológico promovido pelas instituições da cultura.
Em relação a esses movimentos transgressivos da perversão, Klossowski observa que

O pervertido está abaixo e além do nível dos "indivíduos", nível esse que
constitui um conjunto de funções subordinadas às normas da espécie. Ele
apresenta uma subordinação arbitrária das funções da vida habitual a uma
única função insubordinada, um desejo por um objeto impróprio. [...]. Nas
condições de vida da espécie humana, o pervertido é aquele que só pode se
afirmar destruindo essas condições em si mesmo. Sua existência consagra a
morte da espécie nele como indivíduo; seu ser é verificado como uma
suspensão da própria vida. A perversão corresponderia, portanto, a uma
propriedade do ser, uma propriedade fundada na expropriação das funções
vitais. Uma expropriação do próprio corpo e dos outros seria o significado
dessa propriedade do ser.287

Nesse mesmo texto em que brilhantemente se escreve uma definição para perversão (“o
desejo por um objeto impróprio”), Klossowski formula também sua definição de transgressão:
“a transgressão é então algo além da pura explosão de uma energia acumulada graças a um
obstáculo. É uma recuperação incessante do possível em si - na medida em que o estado de
coisas existente eliminou a possibilidade de outra forma de existência.”288
Mas, na sequência, Klossowski faz uma observação que, ao que parece, se contrapõe à
noção de que, com Sade, a perversão teria sido alçada à categoria de uma estrutura psíquica –:
“o possível no que não existe nunca pode ser outra coisa senão possível, pois se o ato fosse
recuperar esse possível como uma nova forma de existência, ele teria que transgredir por sua
vez. O possível como tal teria sido eliminado e teria que ser recuperado novamente”289, e
complementa: “a transgressão não deve e nunca pode encontrar um estado em que possa ser
resolvida [...]. Uma transgressão deve gerar outra transgressão”.290

286
Ibidem, p.113
287
KLOSSOWSKI, op. cit., 1991, p.23, grifo nosso
288
Ibidem, p.21, grifo nosso.
289
Ibidem, p.21
290
Ibidem, p.21
128

No cume, portanto, podemos concluir que a perversão se afirma na qualidade de um


estado descrito em analogia àquele do eterno retorno, como os movimentos que aparecem na
novela batailliana O Ânus Solar, no sentido de uma transgressão que enceta novas
transgressões, sem nunca poder ser resolvida ou encontrar para si um termo de parada.
Ao passo que a neurose em grande medida pode ser compreendida pelo desejo pelas
formas estáveis, pela razão que valoriza a identidade e que exclui o informe, a alteridade e, por
fim, pelo desejo de propriedade sobre as formas estáveis (os objetos inertes oferecidos pela
cultura) e que conformam o ‘eu’, na perversão o objeto impróprio a que se deseja é tão somente
o movimento.
Se o cume da existência neurótica é o orgasmo, o perverso, ao contrário “sabe que o
orgasmo é apenas um tributo pago às normas da espécie e é, portanto, uma falsificação do êxtase
do pensamento” 291. Isso quer dizer que o gozo na experiência perversa é este: o da experiência
interior, o gozo do êxtase do pensamento, de quando o pensamento transgride a cultura e volta
a ser assimilado pela natureza, reencontrando, no movimento perpétuo dessa, “a recuperação
incessante do possível em si”:

Vemos, na resolução de Sade de copiar os “atos obscenos” da Natureza, uma


tentativa sendo esboçada na reconciliação com a ordem universal, ou melhor,
com a desordem universal. Ainda que a indignação apavorada seja provocada,
a curiosidade, a necessidade de saber agora se manifesta. A mente tende mais
e mais a considerar-se parte integrante da Natureza, do domínio de suas
investigações. Descobre nos fenômenos naturais não mais apenas leis cegas e
necessárias, mas suas próprias intenções. Ou seja, descobre uma coincidência
entre suas intenções e os fenômenos naturais. Fenômenos naturais irão
aparecer como tantas outras sugestões do que a mente sente que tem a missão
de trazer à realidade.292

Ou, nas palavras do próprio Sade:

Se o conhecimento acaba por se tornar um crime, o que se chama crime deve


conter a chave do conhecimento. É somente estendendo cada vez mais a esfera
do crime que a mente, chegando a esses crimes extraordinários, recuperará o
conhecimento perdido, conhecimento infinitamente maior do que aquele que
possuímos.293

291
Ibidem, p.32
292
Ibidem, p.83-84, grifo nosso
293
Ibidem, p.84
129

3.4 A experiência-limite de Nietzsche

Ouça-me um momento, ó Zaratustra – um discípulo lhe disse um


dia – algo está girando na minha cabeça: ou melhor, estou
prestes a acreditar que minha cabeça está girando em torno de
algo e que, portanto, descreve um círculo. (NIETZSCHE)

Assim como em Sade, nos escritos de Nietzsche, o tema da afinidade entre o artista e o
criminoso também é bastante frequente. O filósofo sabia que sua “filosofia a marteladas”,
levada adiante como um combate feroz aos valores que dão sustentação à cultura, só poderia
ser escancarada como crime.
É, de toda forma, curioso notar que um pensamento-limite venha necessariamente a
encontrar o destino da marginalidade silenciada (como no caso de Nietzsche) ou da prisão (o
caso de Sade), como se a própria cultura fosse um simulacro dos mecanismos de recalque que
operam na consciência. O mecanismo é de rebaixar os conteúdos mais elevados, destacando
seu aspecto de foraclusão, de ilegalidade, até que por fim se estabeleça a equivalência de valor
entre o mais elevado e o mais rebaixado.
Diante da moral costurada por esses valores, o escritor e o artista deveriam, para
Nietzsche, ostentar orgulhosamente o estatuto de sua marginalidade criminosa, porque é esse
orgulho – esse riso que brota pelo reconhecimento de sua afinidade com tudo aquilo que, aos
olhos da cultura constitui o Mal – que afasta o artista do risco de se ver confundido, por
exemplo, com as ilusões proféticas de um pastor, ou de alguém que prega para as massas e que
delas depende para validar seu discurso. 294
O artista, reconhecendo que não pode ser um guia para as massas, sabendo que não
possui qualquer poder de mudar a realidade e mesmo sacrificando dentro de si quaisquer
pretensões egóicas em relação à cultura (esse sacrifício coloca-se de antemão como exigência
da experiência interior), contenta-se então em encontrar os meios de saqueá-la, em comunicar
as fendas por onde a civilização vacila, e orgulhosamente encontrar os meios de provocar
feridas nos demais. Para isso ele dispõe somente de seu corpo e de sua arte.
Nesse ponto, as marteladas de Nietzsche e a pena agressiva de Sade caminham para o
mesmo sentido. Ambos associaram a figura do criador à do sujeito perverso. Nietzsche, assim

294
Zaratustra – o “profeta” de Nietzsche – é, como se sabe, um solitário. Distante das massas e mesmo refutando-
as, Zaratustra finalmente consegue mobilizar não mais que uma pequena comunidade.
130

como Sade, compreendeu que se arriscava na proposição da “transvaloração de todos os


valores”, por meio de “atos obscenos” que a cultura (que, para Nietzsche, confunde-se com a
própria noção de consciência, ou seja, é tudo aquilo que serve aos fins de reprodução da espécie)
não poderia suportar.
A proposta dionisíaca, em termos bastante sádicos, é a de que somente pelo uso de forças
agressivas, inconscientes e dirigidas contra os valores em curso se poderia alcançar o
conhecimento trágico – o “conhecimento perdido” – para o qual a cultura, em sua genealogia
judaico-cristã, veementemente nega o acesso.
Do contato que teve com essas leituras, Bataille concluiu que esse “conhecimento
perdido” se referia à dimensão do sagrado. Retornando a Nietzsche, nesta passagem singular
de Ecce Homo, tal experiência com o sagrado é apresentada com o valor de uma certeza
palpável, em termos da “visão completa da mais poderosa realidade”, tão poderosa que o
conhecimento dessa realidade seria capaz de levar alguém ao abismo da loucura:

Sem dúvida, é a certeza que faz com que alguém fique louco. - Mas é preciso
ser profundo, um abismo, um filósofo para se sentir assim. Temos medo da
verdade... Mas a força necessária para a visão completa da mais poderosa
realidade não é apenas compatível com a mais poderosa força para a ação,
para a ação monstruosa, para o crime - ela até a pressupõe.295

Diante dos olhos castrados da cultura, essa certeza a que Nietzsche se refere deve,
necessariamente, assumir o aspecto de uma ação monstruosa, de um delírio. Isso a princípio
nos leva a indagar que tipo de certeza poderia, então, estar aqui em questão.
Durante muito tempo – e sobretudo entre estudiosos acadêmicos da obra de Nietzsche
– o eterno retorno foi lido como tendo o valor de um conceito. Quanto a essa leitura, se
Nietzsche a tivesse a elaborado como tal, podemos dizer que um conceito jamais terá o valor
de uma certeza, tanto menos quando se considera uma certeza capaz de fazer alguém delirar.
É inegável, assim, que o que Nietzsche teve em relação ao eterno retorno não foi uma
elaboração acadêmica, mas uma experiência – verdadeiramente uma experiência mística.
Expressões como “verdade”, “profundidade”, “poderosa realidade” fornecem apenas a tônica
de tal experiência que, no entanto, nem os escritos de Nietzsche nem os de Bataille parecem ter
dado conta de elucidar.

295
NIETZSCHE. Ecce Homo – Como Alguém se Torna o que é. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p.63
131

Em relação a esse tópico, nas palavras de Klossowski, “se a certeza produz delírio, é
porque a monstruosidade imaginada é apenas o lado anverso de um ato criminoso”296 – ato
irreversível, pelo qual sujeito e objeto estarão confundidos numa mesma febre. Não seria, então,
essa confusão que faz também da literatura o “anverso de um ato criminoso”? E não seria essa
a essencialidade buscada por Bataille, quando sustentou a afinidade da literatura com o Mal?
Anos antes da redação de A literatura e o Mal, tal afinidade já aparecia suficientemente
ilustrada pela emblemática figura que estampa as capas das diferentes edições da revista
Acéphale. Trata-se, como se sabe, de uma figura que carrega em uma das mãos um coração que
não é o seu próprio; na outra mão aparece uma adaga, que denuncia o ato criminoso. O ventre
é o dédalo, expressão do eterno retorno; a ausência de cabeça é indicativa da perda da razão, do
êxtase de uma figura que sobrevém em delírio.
No último volume dessa revista, Bataille escreveu o jogo que Nietzsche, apesar do
grande esforço que veio a resultar na perda de sua lucidez, não pôde elaborar. Bataille conferiu
ao jogo o valor de uma prática, a “vontade de chance” ou “A prática da alegria diante da morte”:

Abandono-me à paz até o aniquilamento. Os sons da luta se dissolvem na


morte como os rios no mar, como o brilho das estrelas na noite. [...]. Entro na
paz como num desconhecido obscuro. Caio nesse desconhecido obscuro. Eu
mesmo me torno esse desconhecido obscuro. EU SOU a alegria diante da
morte. A alegria diante da morte me carrega. A alegria diante da morte me
precipita. A alegria diante da morte me aniquila. Permaneço nesse
aniquilamento e, a partir daí, vejo a natureza como um jogo de forças que se
exprime numa agonia multiplicada e incessante. Eu me perco assim
lentamente num espaço ininteligível e sem fundo. Atinjo o fundo dos mundos.
Sou roído pela morte. Sou roído pela febre. Sou absorvido no espaço sombrio.
Sou aniquilado na alegria diante da morte. EU SOU a alegria diante da morte.
A profundeza do céu, o espaço perdido é alegria diante da morte: tudo é
profundamente fendido. [...]. Tudo o que existe se destruindo, consumindo-se
e morrendo, cada instante só se produzindo no aniquilamento daquele que o
precede e ele próprio só existindo ferido de morte. Eu mesmo me destruindo
e me consumindo sem parar em mim mesmo numa grande festa [...]. [...] uma
pura violência, uma interioridade, uma pura queda interior num abismo
ilimitado [...].297

Nessa revista inteiramente dedicada a Nietzsche, trata-se do jogo sádico apresentado ou


transposto para os termos de uma experiência interior. A existência se sustenta mesmo em um
estado de aniquilamento, pelo qual a natureza se dá a conhecer como “um jogo de forças que
se exprime numa agonia multiplicada e incessante”, até que se atinja “o fundo dos mundos”,

296
KLOSSOWSKI, op. cit., 1991. p.204
297
BATAILLE, op. cit., 2014, vol. V, p.16-22
132

até que o objeto (a alegria diante da morte) esteja em completa fusão ao sujeito da experiência
(“EU SOU a alegria diante da morte”).
A experiência interior parece desdobrar assim um dos fragmentos paradoxais deixado
por Heráclito e analisado por Blanchot. “A Morte é tudo o que vemos acordados, e tudo o que
vemos dormindo é o Sono”, escreve o pré-socrático. Blanchot explica que, nesse fragmento,
trata-se de “descobrir que Vida e Morte estão necessariamente ligadas, enquanto os homens
adormecidos continuam a viver-e-morrer uma falsa aparência de vida mantida”, que “Vida e
Morte se trocam, trocando reciprocamente de função [...]: viver a morte, morrer a vida [...]”. 298
A noção de vida e morte, como dimensões contínuas que se que se atravessam uma à
outra já aparecia num dos fragmentos mais emblemáticos de A gaia ciência, de Nietzsche:

Defendamo-nos de dizer que existam leis na natureza. Existem somente


necessidades: nela não há ninguém que ordene, ninguém que obedeça,
ninguém que infrinja. [...] Defendamo-nos de dizer que a morte é o contrário
da vida. Aquilo que está vivo trata-se apenas de uma variedade do que está
morto, e uma variedade rara. [...] a matéria é um engano semelhante ao Deus
dos eleatas.299

Se retomamos a discussão levantada por Blanchot, “morrer a vida” seria a condição


generalizada da humanidade neurótica, a condição imposta pelo mundo do trabalho e dos
objetos – o mundo da ação, da razão utilitária – a que Bataille oferece, em contraponto, a
possibilidade de uma experiência interior.
O homem, na grande maioria do tempo, se vê subordinado a essa condição imposta pela
materialidade de suas necessidades animais. Dando um passo à frente da animalidade, e já
investido pela lógica da cultura, o homem passa a operar previsivelmente dentro dos limites
daquilo que Freud denominou de princípio de realidade: ele adia o prazer, em nome de uma
existência que lhe assegure o mínimo possível de sofrimento, traduzido em desequilíbrio
psíquico.
Mas, seja do ponto de vista da animalidade que maximiza o prazer, seja do ponto de
vista da civilidade que se contenta na substituição do prazer pela mera fuga ao sofrimento, trata-

298
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. II, p.13
299
NIETZSCHE. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2005, p.106. O Deus dos eleatas, o Deus de
Xenófanes é, a propósito, exatamente o mesmo Deus sugerido por Aristóteles por meio da figura do primeiro
motor; é este também o Deus que as cinco vias da Suma Teológica de Tomás de Aquino demonstram; é neste Deus
que os filósofos teístas do século XVIII acreditam; é essa mesma concepção, enfim, inteiramente compatível com
os alicerces da cultura ocidental contemporânea. Não deixa de ser curioso, portanto, que a sentença nietzscheana
– escrita em termos bastante sádicos – a apontar que “a matéria é um engano” o faça equiparando esse erro à
própria noção de Deus. É digno de nota também que o esforço de Bataille na escrita de sua Suma Ateológica seja,
em grande medida, no sentido de oferecer a possibilidade de um reparo a esses dois erros fundamentais.
133

se sempre de uma marcha, ora sonolenta, ora agitada, em direção à morte. O mal-estar dessa
marcha reside no fato de ela condenar o homem – o ser de olhos castrados – a uma existência
alienada, em que ele deve subordinar-se a Deus, pela fé em que essa prefiguração, que lhe é
completamente exterior, guarde as chaves de acesso ao sentido e ao sagrado.
No outro extremo, a experiência de “viver a morte” ou da “prática da alegria diante da
morte”, é inteiramente outra, visto que o que ela admite de maneira alguma se confunde com
uma abstração teológica, com uma conceptualização fria em relação às possibilidades do
sagrado. Na “prática da alegria diante da morte”, uma vivência no sagrado está dada como uma
possibilidade, e essa própria experiência será o sentido. Ao contrário do que se dá na
experiência neurótica, aqui o sentido não estará, portanto, direcionado à posse ou ao desfrute
de um objeto exterior.
Nas passagens a seguir, desdobradas a partir da conversa infinita que estabeleceu com
Blanchot, Bataille atribuirá a essa experiência um valor em si mesmo, ou melhor, conferirá à
experiência interior a suprema autoridade de ser aquilo que Nietzsche viria a definir como sendo
o valor dos valores:

Chamo experiência uma viagem ao extremo do possível do homem. Cada qual


pode não fazer essa viagem, mas, se a faz, isso supõe que foram negadas as
autoridades, os valores existentes, que limitam o possível. Pelo fato de ser a
negação de outros valores, de outras autoridades, a experiência que tem a
existência positiva torna-se ela própria, positivamente, o valor e a autoridade.

Recebi a resposta de outra pessoa: ela exige uma solidez que naquele momento
eu tinha perdido. Fiz a pergunta a alguns amigos, deixando transparecer parte
de minha perturbação: um deles [Blanchot] enunciou simplesmente este
princípio, que a própria experiência é a autoridade (mas a autoridade se expia).

Essa resposta [...] tive a noção de seu alcance no dia em que elaborei o projeto
de uma introdução. Vi então que ela punha fim a todo debate da existência
religiosa, que ela tinha mesmo o alcance galileano de uma inversão no
exercício do pensamento, que ela substituía tanto a tradição das igrejas quanto
a filosofia.300

Se, para Bataille, a noção de uma experiência interior subverte tanto a tradição religiosa
quanto a filosófica é porque aqui ele assume o jogo, nos termos freudianos, a partir da
proposição de uma pulsão de morte. A pulsão de morte seria a noção de uma vontade
direcionada a um objeto impróprio, ao desejo por um objeto terminantemente negado e

300
BATAILLE, op. cit., 2016, Primeira Parte, II – A experiência, única autoridade, único valor
134

recalcado pela cultura, visto que tudo o que a cultura pode oferecer é a relação e o acesso a
objetos inertes e exteriores.
A posição perversa – que tem por objeto, no horizonte batailliano, o desejo pela
experiência interior – é, ao contrário da busca por Deus, uma posição insustentável, visto que,
como definiu Blanchot, trata-se de uma “autoridade, mas uma autoridade que se expia”. De
forma que devemos concluir que a busca pelo sagrado impõe ao menos duas grandes
dificuldades. A primeira delas é que o sagrado – entendido como a possibilidade de uma
experiência-limite de transgressão e saída da cultura, de reencontro com o dilacerante
movimento da natureza – está fora do alcance da linguagem.
Além disso, tal experiência, justamente por se apresentar como o contraponto às formas
de existência alienada, como contraponto ao “homem mutilado” – como o define Bataille –,
justamente porque essa experiência tem como um de seus pressupostos a abertura violenta do
olho para objetos que não podem ser vistos, exige uma espécie de integralidade ao homem sem
a qual ela dificilmente seria suportável.
Essa exigência pela integralidade de certa forma retoma a referência de Bataille à noção
de uma “hipermoral”, logo nas primeiras páginas de A literatura e o Mal, e não é diferente de
um estranho princípio retomado por Blanchot, em seu texto sobre Heráclito: “Tu és apenas um
mortal, por isto teu espírito deve nutrir dois pensamentos ao mesmo tempo”301.
Explica-se tal exigência: desligada da ideia de um retorno à cultura, a experiência da
transgressão se torna vã e o homem se perde, fazendo do Mal – a exemplo dos personagens de
Sade – um fim em si mesmo. Mas pode um homem sustentar ao mesmo tempo isso que
Heráclito chamou de “dois pensamentos”, isso é, o da cultura e o de sua transgressão? “A
grandeza desse ato não é demasiado grande para nós?”, questiona Nietzsche, no fragmento de
A gaia ciência em que “o insensato” anuncia a morte de Deus.
Aliás, já não se previa que, por esse movimento de saída da cultura, de entrada na
natureza e, finalmente, de retorno à cultura – o homem estaria fadado à perda de sua lucidez,
estaria fadado, como na própria experiência de Nietzsche, a um devir-louco imposto pela forma
paradoxal do eterno retorno?

***

301
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. II, p.21
135

Lendo Nietzsche e analisando a forma pela qual o filósofo expressou o pensamento do


eterno retorno, tem-se a impressão de que o que ali se anuncia é pouco mais do que uma
radicalidade, uma forma ousada de pensar a filosofia, ou seja, que tal pensamento seria, se muito
(posto que, analisado superficialmente, parece tratar-se de uma noção mal formulada), um
conceito sofisticado em termos de abrangência. Ei-la, contada como uma revelação:

Contarei agora a história de Zaratustra. A concepção fundamental da obra, o


pensamento do eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode
em absoluto alcançar, é de agosto de 1881: foi lançado em uma página com o
subescrito: “seis mil pés acima do homem e do tempo”. Naquele dia eu
caminhava pelos bosques perto do lago de Silvaplana; detive-me junto a um
imponente bloco de pedra em forma de pirâmide, pouco distante de Surlei.
Então veio-me esse pensamento.302

É curioso, no entanto, que a maior parte dos estudiosos e biógrafos de Nietzsche tenham
se contentado em dar a esse esboço de pensamento a mesma atenção que a formulação receberia
nos escritos do próprio filósofo, isto é, que o tenham abordado quase sempre de maneira vaga,
ainda que anunciado em palavras grandiloquentes e que dificilmente podem ser penetradas. Eis
então o valor inestimável e original que os escritos de Pierre Klossowski nos dão para
abordarmos a difícil temática do eterno retorno.
Nietzsche e o Círculo Vicioso (1969) tem o mérito não só de conceber o eterno retorno
em termos de uma experiência mística (portanto, com consequências bem diversas para sua
compreensão em relação à afirmação de que, nesse caso, se trataria de um mero conceito
filosófico), mas tem também o efeito colateral de evidenciar que, mesmo que Nietzsche não
tivesse encontrado para essa noção a formulação adequada (e nos perguntamos se haverá para
ela, de fato, uma formulação adequada), o valor que o filósofo extraiu dessa experiência foi de
tal ordem que transformaria por completo sua relação com a linguagem, a partir de agosto de
1881.
São os escritos posteriores a essa data que conferiram a Nietzsche a alcunha de “filósofo
do futuro”, menos no sentido visionário do termo do que pela manifestação formal de uma
linguagem que se tornava progressivamente mais sofisticada a partir de então. Graças aos
escritos de Klossowski, sabemos hoje que o valor e o alcance que a experiência do eterno
retorno teve para Nietzsche não podem ser mensurados em termos de uma definição, mas pela

302
NIETZSCHE, op. cit., 2005, p.82
136

notável forma pela qual se manifestou, por assim dizer, nas entrelinhas obscenas de sua
linguagem.
Sabemos também que o famigerado episódio de 1889 em que Nietzsche testemunhou o
açoitamento de um cavalo não poderia, subitamente, tê-lo levado ao conhecimento da loucura,
mas que o colapso que culminou em um estado de profunda afasia resultou de uma longa
gestação desencadeada desde a revelação de Sils Maria.
Qual o conteúdo dessa revelação e com que intensidade Nietzsche a experimentou é
algo que somente podemos conjecturar, como também podemos conjecturar em quais
fragmentos seu conteúdo se manifesta para além das transformações que imprimiu nas formas
novas de expressão que o filósofo encontrava para seu pensamento:

O caráter do Universo é o de um caos eterno, não pelo fato da ausência de uma


necessidade, mas pela ausência de uma ordem, de encadeamento de forma, de
beleza, de sabedoria e de toda a estética humana. Julgados pela nossa razão,
os lances de dados infelizes são muito longe a regra geral, as exceções não
formatam o objetivo secreto, e o mecanismo repete eternamente um estribilho
ao qual nunca se poderá dar o nome de “melodia”... e a expressão “lances de
dados infelizes” representa em si mesma um antropomorfismo que implica
uma censura. [...]. Quando souberdes que não há fins, sabereis igualmente que
não há acaso: pois é unicamente sob o olhar de um mundo de fins que a palavra
“acaso” toma um sentido. [...]. Mas quando deixaremos os nossos cuidados e
as nossas precauções? Quando deixaremos de ser obscurecidos por todas estas
sombras de Deus? Quando teremos “desdivinizado” totalmente a natureza?
Quando será permitido começarmos a nos “naturalizar”, nós homens, com
uma pura natureza, uma natureza redescoberta e liberta? 303

Como Nietzsche pôde saber que “o caráter do Universo é o de um caos eterno” pela “ausência
de encadeamento de forma” senão por efeito de uma visão que teve, para ele, o valor de uma
certeza? E como não relacionar esse valor com o destino trágico que ele anteviu para si mesmo,
expresso por essas palavras: “sem dúvida, é a certeza que faz com que alguém fique louco”304?
Franco Rella, no texto “A ferida Metafísica”, sugere o ponto de convergência entre a
experiência interior de Bataille e a revelação de Nietzsche, em relação ao ímpeto de “realizar a
louca e muito desesperada tentativa de falar além do logos”305. Ele observa o que há de
verdadeiramente inovador na forma nietzschiana de filosofar: “Nietzsche é sem dúvida o
pensador que marca a abertura de uma nova época para a filosofia, em que essa se encarrega de

303
Idem, A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2005b, p.106
304
Idem, op. cit., 2005a, p.82, p.63
305
RELLA, Franco. MATI. Susanna. Georges Bataille, filósofo. Editora UFSC. Florianópolis, 2010, p.60-61
137

pensar as últimas coisas, mas não mais dentro de um horizonte de sentido fornecido pela
tradição”306.
Rella indica também as dificuldades desse processo nos termos da crítica a que foi
submetida a obra de Bataille, quando de sua publicação. A experiência interior fora recebida
com certo sarcasmo pelo círculo intelectual francês da época, acusada de se arrogar como a
expressão de “uma nova mística”: “O genial Kojève não tem dúvidas de que essa fuga da
linguagem seria somente silêncio místico, no máximo relegado a um ridículo parágrafo do
sistema; e mesmo a tentativa de Bataille tem início exatamente nessa espécie de loucura ‘anti-
hegeliana”.307
O mesmo tom de acusação lançado sobre Bataille em relação ao “silêncio místico” (ao
valor, portanto, pouco intelectual) de sua experiência, recaiu sobre Nietzsche contra quem se
começou a formular – desde que o pensamento do eterno retorno fora proposto pela primeira
vez – a suspeita da loucura, conforme analisa Klossowski, a partir das correspondências
trocadas pelo filósofo com seus amigos.
A pergunta deixada por ambos os casos é, então, por que esse movimento de saída (a
transgressão) e de retorno (à cultura, ao interdito) – que Bataille apresentou como constitutivo
da integridade humana, como a única possiblidade para o homem não-mutilado – deve revestir-
se sob a forma de um delírio? Ou ainda, por que a fala que resulta da experiência do “além do
logos” deve assemelhar-se a um balbucio, a uma fala que não diz e que remete ao esquecimento
da experiência, justamente por parte daquele que a teve? Em outras palavras, “por que nenhuma
comunicação parece poder responder ou corresponder à exigência do retorno? ”308
Esse último é o questionamento que Blanchot faz em um dos textos de ‘A experiência-
limite’: “A pergunta se coloca constantemente a Nietzsche: por que uma tal revelação, a do
desvio, é tal que desvia de toda identidade, e, por essa exceção, torna a revelação derrisória ou
o revelador insensato, porque divino?”309. Bataille oferece uma resposta a essas indagações no
prefácio de Sobre Nietzsche:

Aquilo que vai na direção dessa consciência de uma totalidade, na direção


dessa total amizade do homem por si mesmo, é muito justamente considerado
como falto, no fundo, de seriedade. [...] é preciso dizer, no entanto, que um
primeiro movimento em direção ao homem inteiro é a equivalência da loucura.
Abandono o bem e abandono a razão (o sentido), abro sob meus pés o abismo

306
Ibidem, p.82
307
Ibidem, p.60. A crítica que Sartre à publicação de A experiência interior se dá praticamente nos mesmos termos.
308
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. II: ‘A experiência-limite’, p.290
309
Ibidem
138

de que me separavam a atividade e os juízos que ela encadeia. A consciência


da totalidade é inicialmente em mim, no mínimo, desespero e crise. Se
abandono as perspectivas da ação, minha perfeita nudez se revela a mim.
Estou no mundo sem recurso, se apoio, desabo.310

Essa abordagem aparece também no último volume da revista Acéphale, no qual Bataille
chega a afirmar que, caso Nietzsche não tivesse sido louco, então ele próprio deveria sê-lo. “A
loucura não pode ser jogada fora da integralidade humana [...]”311, ele escreve deixando
também em aberto a leitura de que essa loucura não se confunde com a simples perda da razão,
visto que ela está implicada num movimento em direção ao “além do logos”, em um movimento
em direção àquilo que em A literatura e o Mal ele denominou de uma “hipermoral”: “Nietzsche
ficando louco – em nosso lugar – tornava assim essa integralidade possível; e os loucos que
perderam a razão antes dele não tinham podido fazê-lo com tanto brilho.”312
Na passagem mais acima, a noção do retorno – sendo análoga à experiência da nudez,
de se ver exposto e sem recursos – parece dar conta do drama encetado pela experiência interior,
ao menos em termos da insuficiência de uma linguagem capaz de lhe dar sustentação. Ao que
se segue à experiência, no retorno à cultura, como escreveu Bataille, toda tentativa de buscar
apoio na linguagem resulta em desabamento. Isso porque, a partir do movimento, a própria
noção de linguagem entra em questão, como se, nessas fronteiras do saber e do não-saber, a
linguagem fosse a expressão, em si mesma, de um limite para o pensamento.
São três os movimentos que trazem dificuldades para a relação entre a experiência
interior e a linguagem, aproximando, por fim, o “êxito” dessa experiência a um devir-louco.
Em primeiro lugar, o transe em si – que resulta da confusão e finalmente na indiferenciação
entre sujeito e objeto – coloca em xeque o princípio básico de toda linguagem que nomeia,
corroendo as bases de qualquer formulação racional, de qualquer discurso científico. Isso
porque, para falar de um objeto, o sujeito deve guardar certa distância em relação a esse objeto;
ao passo que, no movimento da transgressão, é o próprio sujeito que se torna objeto da
experiência.
A segunda dificuldade decorre propriamente do conteúdo revelado pela experiência: a
natureza, ou, dito de outra forma, a experiência de dissolução dos princípios da identidade e da
não-contradição, conforme a densa observação de Klossowski, que pode ser melhor
compreendida pela passagem que a segue, de Blanchot:

310
BATAILLE, op. cit., 2017, p.30-31
311
Idem, op. cit., 2014, vol. V, p.8
312
Ibidem
139

O que o Retorno Eterno implica como doutrina não é mais nem menos que a
insignificância de uma vez por todas do princípio de identidade ou da não-
contradição, que está na base do entendimento. Se todas as coisas acontecem
de uma vez por todas, então, sem intensidade, elas recaem na insignificância
do significado. Mas porque a intensidade é a alma do Retorno Eterno, todas
as coisas adquirem significado apenas através da intensidade do círculo.313

Seu papel é mais estranho. É como se, a cada vez que o extremo se diz, ela
chamasse o pensamento para fora (não para além), indicando-lhe, por sua
fissura, que o pensamento já saiu de si próprio, que está fora de si, em relação
– sem relação – com um exterior de que está excluído na medida em que
acredita poder incluí-lo e, a cada vez, necessariamente, faz dele na verdade a
inclusão em que se fecha.314

Essas passagens apontam para um paradoxo. A entrada no círculo implica deixar para
trás os parâmetros de sentido legados pela cultura. Assim, se para a cultura o sentido decorre
do princípio da não contradição, dentro do “círculo vicioso”, esse princípio de identidade é
esfacelado por completo “pela ausência de uma ordem, de encadeamento de forma, de beleza,
de sabedoria e de toda a estética humana”315, conforme escreveu Nietzsche.
O que o círculo impõe é, por um lado, ausência de sentido; mas, por outro, é também a
produção incessante de significados, já que a produção de significados é uma decorrência direta
da intensidade da experiência – que, uma vez que tenha ocorrido, precisa ser comunicada.
Ocorre que, uma vez fora do círculo, ao tentar recuperar a intensidade daquilo que
experimentou, a linguagem fracassa, talvez porque a cultura (à qual a linguagem está
umbilicalmente ligada) seja justamente a dimensão em que toda forma de intensidade real
termina por ser castrada.
A linguagem se confronta, então, com a fissura que a isola da experiência, na fronteira
entre o saber e o não-saber, na fronteira que separa o ‘eu’ e a alteridade, determinada por essa
absoluta ausência de relação316.
Por fim, a terceira dificuldade é a que propriamente tem a ver com a loucura de
Nietzsche, que a princípio decorreu das conclusões a que chegou o filósofo ao tentar elaborar
sua experiência. Tendo estado “do lado de fora” da linguagem, Nietzsche pôde compreender a

313
KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche and the Vicious Circle. Trad.: Daniel W. Smith. Chicago: University of
Chicago Press, 1969, p.216-217
314
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. II, p.122-123
315
NIETZSCHE, op. cit., 2005b, p.106
316
Cumpre desde já lançar a indagação acerca do papel que cabe à linguagem poética diante dessa fissura, diante
dessa fenda. Esse será o tema sobre o qual nos aprofundaremos no próximo capítulo da tese.
140

linguagem não mais como a expressão “dos princípios imutáveis do logos”, mas sim como a
manifestação de pulsões do corpo destinadas a dominar ou a subordinar aquele que fala317.
O uso da razão, a prática do discurso racional, seria, desse ponto de vista, não a essência
definidora do fenômeno humano, mas tão somente uma de suas possibilidades – uma
possibilidade que implica recalque ou dominação das pulsões que não podem se manifestar pela
via da cultura. Assim como a noção freudiana de recalque, a noção de uma linguagem orientada
pelos princípios do senhor e do escravo, de dominação e de subordinação das pulsões, não
determina a exclusão das pulsões que foram dominadas, não determina que tais pulsões deixam
de existir, mas somente que elas passam a se manifestar inconscientemente, como formas de
vida ou como possibilidades humanas que, aos poucos, vão sendo esquecidas.
Nietzsche daria ainda um passo além em sua compreensão da linguagem, encarando-a
progressiva e perigosamente como um terreno cada vez menos sólido: “Dada essa pluralidade
de perspectivas, não se segue apenas que tudo é uma interpretação, mas que o sujeito que
interpreta é ele próprio uma interpretação”.318
Isso significa que, uma vez constatada a pluralidade de formas de vida descartadas pela
cultura em nome daquilo que Freud chamou de “princípio de realidade”, o sujeito passa a
colocar em questão o próprio estatuto de sua “normalidade”, uma vez que normalidade, nesse
caso, seria apenas o sentimento de adequação a um parâmetro cultural e de linguagem que,
como enxergou Nietzsche, é inteiramente arbitrário. “Como ele afirmava constantemente, o
caso fortuito e, portanto, o caso arbitrário, é a única realidade – ou a total ausência de uma
realidade conhecível”.319

O "professor Nietzsche" destruiu não apenas sua própria identidade, mas a das
autoridades do discurso. Como consequência, ele suprimiu a presença dessas
autoridades em seu próprio discurso e, junto com a presença delas, suprimiu
o próprio princípio da realidade. Suas declarações foram dirigidas a um
exterior que ele havia reduzido ao silêncio de suas próprias emoções.320

Foi esse o passo mais perigoso dado por Nietzsche. Pois, no momento em que ele
experimentava a perda do centro, sua cabeça passava a girar não mais em torno de um eixo,
mas descrevendo o movimento do círculo centrífugo a partir de então. “Seu pensamento girava

317
“São nossas necessidades que interpretam o mundo: todo impulso, como uma necessidade de dominar, tem sua
própria perspectiva que constantemente impõe a outros impulsos”. (KLOSSOWSKI, op. cit., 1969, p.218)
318
Ibidem, p.218
319
Ibidem, p.236
320
Ibidem. Prefácio, p.xix
141

em torno do delírio como sendo seu eixo”, “na atração irresistível que o Caos (ou, mais
precisamente, o 'abismo') exercia sobre ele [...]”321.
Finalmente, o movimento decisivo seria dado na atribuição de Nietzsche a esse estado
giratório e intenso como constituindo “o valor dos valores”, como uma espécie de “hipermoral”
superior ao instinto de rebanho que agregava as massas em torno de uma única possiblidade de
sentido, a possibilidade neurótica.
Ao dar esse passo, Nietzsche afirmaria sua nova condição como sendo superior à de
seus contemporâneos. Esse sentimento de superioridade seria o valor em direção ao qual seu
pensamento deveria avançar, portanto, cada vez mais, investido por um princípio ético que
impunha a si mesmo a partir de então e desdobrados nos conceitos de vontade de potência e de
super-homem.

A inteligibilidade de tudo o que só pode ser pensado (já que não podemos
formar nenhum pensamento que não seja restrito pelas regras da linguagem
institucional) deriva da moralidade gregária da veracidade - e, nesse sentido,
o próprio princípio da veracidade implica gregário. "'Você deve ser
conhecedor, se expressar por sinais claros e constantes, caso contrário você é
perigoso; e se você é mau, sua capacidade de dissimular é a pior coisa para o
rebanho. Nós desprezamos o segredo e o irreconhecível. Consequentemente,
você deve se considerar conhecível, você não pode se esconder de si mesmo,
pode não acreditar que muda. " Assim: a exigência de veracidade pressupõe o
conhecimento e a estabilidade da pessoa.322

Depois da experiência mística que teve em Sils Maria, em seu retorno à cultura, a
conclusão limite de Nietzsche passou a caminhar em direção ao abismo. Essa conclusão era a
de que, se para ser validado, o conhecimento traz consigo uma exigência moral – a exigência
de que se conheça quem fala, estando assegurado que se trata de um sujeito estável – então, de
fato, não existe conhecimento verdadeiro, pois todo conhecimento estaria antes implicado num
processo gregário (“humano, demasiado humano”) de reconhecimento.
A neurose impõe ao homem o imperativo de refutar categoricamente toda verdade
diante da qual ele não se possa reconhecer. A neurose é, em grande medida, a ilusão que o
homem tem do saber. Diante dessa assertiva, o próprio conhecimento se revela uma instância
moral. A “hipermoral” nietzschiana, a moral do senhor em contraponto, aponta para o abandono
a todo eixo referencial (a morte de Deus) e para a entrada no círculo vicioso e insano da
significância.

321
Ibidem. Prefácio, p.xv-xvi
322
Ibidem, p.218
142

Ao chegar a essa conclusão, Nietzsche deve ter pensado que, aos olhos do “rebanho”,
Deus jamais poderia estar morto, posto que, em nenhum devir seria possível vislumbrar o
homem apto a reconhecer a grande ilusão que constitui o conhecimento. A cultura encontraria
meios de se manter à sombra da moralidade e da imposição de um eixo teológico, da imposição
de um sentido único para o pensamento e para a linguagem. O não-saber, a dança e o riso do
filósofo seriam refutados não apenas por seus amigos mais próximos, mas também – como
sempre o haviam sido – pelo movimento da própria civilização.
A comunicação que tão desesperadamente Nietzsche procurou estabelecer com seus
pares acerca do valor inestimável que atribuía a sua experiência era, ele reconheceu, da ordem
do impossível: simplesmente não havia linguagem que o pudesse alcançar. Nietzsche então
naufragou. A vã esperança que por muitos anos ele nutriu em ser o “filósofo do futuro” não era
sólida o bastante para que ele pudesse continuar navegando. Ele enlouqueceu porque
compreendeu que estava nu e sozinho diante do não-saber infinito e que fazia sua cabeça girar.
O eterno retorno, “sob a forma de um murmúrio indefinido, é o silêncio que por sua vez
arruína, fazendo-se ser ouvido como a fala que, do mais profundo passado, ao mais distante
futuro, já falou sempre como fala sempre ainda por vir.”323
Por essa fala que vinha do mais remoto passado em direção a um futuro desconhecido,
sem se referenciar ou estabelecer relação com o tempo presente, Nietzsche teve consciência que
não havia ninguém com quem ele pudesse se comunicar. Ele colocou a possiblidade dessa
comunicação em uma garrafa e a lançou no mar do tempo. E mesmo diante do dilacerante
reconhecimento de sua solidão, o que mais impressiona é que Nietzsche tenha desejado avançar.

O Eterno retorno é para Nietzsche um pensamento louco. É o pensamento da


loucura, e ele o teme a ponto de assustar-se por ter que carregá-lo; a ponto
também de – para não ser o único a suportá-lo – libertar-se dele buscando
exprimi-lo: perigoso, se, revelando-o, não consegue comunicá-lo – então, ele
é louco; mais perigoso se o torna público, pois é o universo que deve
reconhecer-se nessa loucura – mas, loucura do universo, o que quer dizer isso
senão, de início, que essa loucura não poderia ser universal: ao contrário,
subtrair a toda possibilidade geral, mesmo que aconteça a Nietzsche de
escrever que um tal pensamento será pouco a pouco pensado por todos. Uma
alegoria: o pensamento do Eterno retorno, loucura do Universo da qual
Nietzsche – assumindo-a como uma loucura que lhe seria própria, quer dizer,
decidindo loucamente explicar-lhe a razão – aceitaria salvar o universo.324

323
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. II, p.124
324
Ibidem, p.289
143

Ou, nas palavras de Klossowski, “Nietzsche colapsou na incoerência se unindo ao além


dos limites”325 — o que de certa forma era um resultado esperado pelo filósofo, já que “a
experimentação sempre envolve um inventor, um objeto experimental, falhas, sucessos, vítimas
e uma disposição ao sacrifício”326.

***

Conforme sugeriu Bataille em passagem já citada, se Nietzsche não tivesse se tornado


louco, então ele mesmo deveria tê-lo feito. Bataille soube situar o valor exemplar do sacrifício
de Nietzsche. Do caso extremo desse sacrifício – não seria exagero pensar que, em nome do
conhecimento e para abrir os caminhos de sua “filosofia do futuro”, Nietzsche teria se jogado
voluntariamente na fogueira do “círculo vicioso” – restou um ensinamento, que transgredia a
filosofia do absoluto de Hegel pela proposição de uma forma concomitante de pensamento,
paralela à racionalidade.
Trata-se da proposição batailliana acerca da existência legítima de uma dimensão do
não-saber que, embora esteja fora do escopo do que possa ser conhecido, está ainda assim ao
alcance das coisas que podem ser experimentadas e comunicadas.
“O filósofo”, escreve Klossowski, “é apenas um tipo de ocasião e de chance através do
qual uma pulsão é finalmente capaz de falar. Existem muito mais linguagens do que
imaginamos [...]. Existem formas de ver que fazem um homem sentir [...]”.327 Esse é o ponto
em que as conclusões de Nietzsche e de Freud mais se aproximam, na proposição de que a cada
linguagem corresponde um modo específico pelo qual determinadas pulsões encontram vazão,
enquanto outras serão recalcadas.
Assim, o discurso racional é apenas o resultado de um desses jogos pulsionais possíveis,
de onde se deduz que outras dinâmicas pulsionais teriam como resultado linguagens
estruturadas segundo parâmetros outros que não os da separação do sujeito e do objeto. Um
discurso orientado pela pulsão de morte, por exemplo, se manifestaria – no limite – por meio
uma textualidade poética em que sujeito e objeto se encontram e um ponto de indissociação.

325
KLOSSOWSKI, op. cit., 1969, p.xix-xx
326
Ibidem, p.9
327
Ibidem, p.2
144

Para Bataille, o não-saber não se manifesta em termos de conteúdos específicos, mas de


intensidades específicas da linguagem. Esse pensamento deriva do “círculo vicioso” de
Nietzsche, do lugar abismal a que o filósofo chegou ao ter rechaçado por completo a noção de
um sentido a orientar o conhecimento e do conhecimento como sendo constituído por esse
mesmo sentido328. Para Nietzsche não havia verdade nessa proposição, pois para ele a verdade
só poderia ser pensada em termos de intensidade, isso é, em termos daquilo que tem força o
bastante para produzir significados.
Ao refletir a respeito dos ensinamentos que o “círculo vicioso” traz para a linguagem,
Klossowski anota que “somos apenas uma sucessão de estados descontínuos em relação ao
código dos signos cotidianos, e sobre o qual a fixidez da linguagem cotidiana nos engana”.329
Isso quer dizer que, se nossa comunicação é orientada a partir desse código fixo, então só
poderemos conceber a realidade como uma descontinuidade entre sujeitos e objetos, dentro da
qual operam funções e identidades.
Se tudo o que temos for essa linguagem, então, questiona Klossowski, “como
poderíamos saber o que é que somos quando ficamos em silêncio?”330. A linguagem cotidiana,
o discurso racional, se são capazes de descrever com relativa eficácia a realidade, são quase que
impotentes, por outro lado, ao abordar a vida íntima, a dimensão do existente. A linguagem
racional está presa ao paradigma do sentido. Mas esse paradigma se revela falho na medida em
que, na perspectiva da existência íntima, tudo o que há são intensidades e significados.
No limite, do ponto de vista da intimidade, a realidade encontra-se esfacelada. Do ponto
de vista da vida íntima, não existe objetividade, porque as coisas não têm uma realidade própria,
porque elas só existem se são intensas o bastante, se são capazes de gerar significados.
Nietzsche e Bataille não teriam enxergado nisso um problema se as duas dimensões – a da
realidade e a do existente, a do profano e a do sagrado – pudessem ter encontrado, ao longo da
história um meio de conviverem. Mas, no processo civilizatório, não é isso o que acontece. A
dimensão do sagrado é pouco a pouco engolida pela realidade profana; é contra esse movimento
que Nietzsche alardeia quando se refere ao risco de ver uma sociedade tomada pelo ideal
ascético.
A título de explicação, duas pulsões concorrem para alcançar o estatuto da linguagem
e da consciência. Uma delas diz respeito a uma experiência extática, a outra responde por uma

328
Em outras palavras, Nietzsche destituiu em absoluto a figura de Deus a orientar o homem e, de igual modo, a
figura do homem que carregava Deus em seu coração.
329
Ibidem, p.41
330
Ibidem, p.41
145

experiência cotidiana; uma delas se manifestará, ganhará o caminho da expressão, ao passo que
a outra será simplesmente silenciada. Há chances muito maiores de que o direito à expressão
seja dado à segunda dessas pulsões, porque para ela já existe uma linguagem fixa, comum,
cotidiana, definida.
No silêncio da experiência interior, Klossowski escreve, “os fantasmas surgem como
sinais ‘ininteligíveis’ ”331 Em contrapartida, portanto, encontrar uma expressão para esse não-
saber requer atenção e dispêndio de energia maiores, requer verdadeiramente que se crie uma
linguagem.

A todo momento, o caos ainda segue seu trabalho em nossa mente: conceitos,
imagens, sentimentos estão lá justapostos fortuitamente, jogados juntos
desordenadamente. Dessa forma, relações que abismam a mente são criadas:
a mente se lembra de algo semelhante, sente um sabor, retém e elabora de
acordo com sua arte e seu conhecimento. Aqui está o último pequeno
fragmento do mundo em que algo novo é produzido, pelo menos no que diz
respeito ao olho humano. Em suma, aqui novamente trata-se de uma nova
combinação química, que ainda não tem paralelo no devir do mundo.332

É em relação a esse aspecto caótico, mas significativo (dada sua intensidade), dos
processos inconscientes que Bataille reivindica a legitimidade e a soberania do não-saber como
uma dimensão humana fundamental. E isso a despeito do fato de que essas manifestações
delirantes da existência íntima concorram com os processos racionais da mente neurótica, que
encontram suporte na linguagem cotidiana e “gregária”, como a rotulou Nietzsche.
“É verdade, falo como homem desarrazoado”, escreve Blanchot em seu texto a respeito
da “exigência de retorno”, “mas acontece que a desrazão é aqui menos o defeito de um
pensamento do que o excesso de falta que convoca – e deseja – a exigência de uma razão outra
ou do Outro como razão”333.
Em relação a essas formas de pensar desviantes, que se manifestam de maneira
fantasmagórica no silêncio inconsciente, Klossowski conclui que: “um pensamento apenas
surge quando cai, progride apenas regredindo numa espiral inconcebível, que, descrita como
'inútil', é tão repugnante para nós que até desconfiamos de admitir que gerações sucessivas
seguem o mesmo movimento […]”334.

331
Ibidem, p.134
332
Ibidem, prefácio, p.xvi-xvii. É curioso que, em relação aos fragmentos e pedaços de verdade soltos e justapostos
na mente, Nietzsche tenha adquirido maestria justamente na arte de se expressar por fragmentos e aforismos. Disso
é razoável deduzir que ele retirava desses seus processos internos a forma de sua linguagem e expressão.
333
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. II, p.293
334
KLOSSOWSKI, op. cit., 1969, Prefácio, p.xvii
146

Por essa definição surpreendente de Klossowski, somente seria dado o nome de


“pensamento” àquelas formas desprezadas pela objetividade racional, às imagens
desconectadas, ao informe que procura, desesperadamente, na linguagem o seu suporte.
De acordo com as proposições de Nietzsche, para ser acessado, o informe requer a
profundidade de um olhar abismal, ou seja, a profundidade de um olhar que se abra para dentro.
Pois, se para os objetos do mundo real, os dois olhos animais fornecem já os meios adequados
de adaptação e assimilação da experiência baseada no espaço imediato, ordenado e objetivo da
cultura, para a visão da experiência interior, por outro lado, seria necessário que esses dois olhos
se fechassem (que se oferecessem em sacrifício) e que a interioridade se abrisse para um mundo
que não necessariamente existe para o conforto dos olhos humanos:

“O mundo é mais profundo do que pensa do dia.” Com isso, Nietzsche não se
contenta em invocar a noite infernal. Sua suspeita é maior, ele interroga mais
profundamente. Por que, diz ele, essa relação entre o dia, o pensamento e o
mundo? Por que aquilo que dizemos do mundo nós o dizemos com a confiança
do pensamento lúcido e, desse modo, acreditamos ter o poder de pensar o
mundo? Por que a luz e o ver nos forneceriam todos os modos de aproximação
de que desejaríamos que o pensamento – para pensar o mundo – fosse
provido? Por que a intuição – a visão intelectual – nos é proposta como o
grande dom que faltaria aos homens? Por que ver as essências, as Ideias, ver
Deus? Mas o mundo é mais profundo. E talvez se responda que, quando se
fala de luz e do ser, fala-se por metáfora. Mas por que, entre todas as metáforas
possíveis, a metáfora óptica? Por que essa luz que, enquanto metáfora, tornou-
se a fonte e o recurso de todo conhecimento e assim subordinou todo
conhecimento ao exercício de uma (primeira) metáfora? Por que esse
imperialismo da luz?335

O que os escritos de Nietzsche nos oferecem é – mais do que um conhecimento – o


desejo em grande medida insano de trazer à linguagem os objetos que permanecem afastados
do dia. Não seria o caso de dizer que esse é um desejo essencialmente poético? Afastados da
luz, do bem e da moral, os textos literários de Bataille caminham nesse mesmo sentido, eles
tocam os objetos da noite e o fazem respeitando a atmosfera noturna que esses objetos exigem.
Se a linguagem poética se oferece como uma espécie de fundamento para esse mundo
Outro, “de coisas belas e estranhas, problemáticas e assustadoras”, então compreendemos por
qual linha se comunicam os escritores que Bataille elencou em seu A literatura e o Mal;
compreendemos o “essencial” a que ele se referia como constitutivo da experiência literária. O
“essencial” apresenta-se, em primeiro lugar, pelo desejo legítimo e soberano de cada um desses
escritores teve de se desviar disso que Blanchot chamou de “imperialismo da luz”.

335
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. II, p.128
147

A experiência literária desses escritores está associada à busca por objetos noturnos,
por objetos impróprios, objetos que não são dados pela realidade da cultura. É por isso que não
existe uma comunidade de escritores: não pode haver, com efeito, partilha de valores nem
consenso em relação ao que é buscado. Por outro lado, apesar de estar em referência a uma
experiência interior e à singularidade de cada linguagem em seu modo de se aproximar desses
objetos noturnos, cada texto literário é também uma passagem, uma forma de comunicação. E
como poderíamos sequer saber que é legítima e possível essa busca por objetos impróprios
senão pelo que nos é mostrado pela literatura, senão pelo que nos é comunicado por essa
comunidade dos que não têm comunidade?

3.5 Comunidade: comunicação pela ferida

A linha de comunicação que aproxima os escritores que aparecem em A literatura e o


Mal não é tão evidente. Bataille não o diz, mas talvez ele intuísse que, em cada caso, o objeto
buscado, de onde menos se poderia esperar, era o objeto místico, a busca pelo transe, pelo
êxtase. Não são santos, afinal, os escritores analisados na obra. O que esses escritores levam de
comum é, por certo, a referência a essa experiência a que Bataille se referiu nos termos de uma
essencialidade.
Também em comum, podemos acrescentar, cada um dos escritores e da escritora
analisados constitui um caso em que claramente se manifesta a exigência pela poesia, motivada
não apenas por uma desmesurada vontade de comunicação, mas em grande medida pela
necessidade que tiveram de encontrar um suporte para essas manifestações de ordem mística.
“O transe místico [...] consome inexoravelmente tudo aquilo que dá aos seres, às coisas,
uma aparência de estabilidade, tudo o que tranquiliza, ajuda a suportar. O desejo eleva pouco a
pouco a um [estado] tão perfeito que [...] se compara ao brilho solar”336, escreve Bataille em
suas reflexões a respeito da experiência de Nietzsche. O desejo da poesia, desejo de
comunicação, pode então ser comparado à luz irradiada por uma estrela: se uma estrela queima
por dentro, ela simplesmente não pode conter sua disseminação pelo espaço; ela não pode
recalcar a expressão de sua própria luz.
Em linhas gerais, Sobre Nietzsche é um livro que se dedica à exaustão, não apenas a
compreender e a traduzir a experiência que abismou o filósofo em Sils Maria, como também é

336
BATAILLE, op. cit., 2017, p.69
148

um manifesto do desejo de Bataille por estabelecer comunidade com Nietzsche, nos termos de
sua própria experiência interior. O ponto de ruína de um é o ponto de partida do outro, que, por
sua vez, caminha para sua própria incandescência ao abismo, para seu próprio sacrifício solar.
As imagens que surgem dessa pequena comunidade da experiência são intensas e irradiam
porque não são menos vertiginosas que a vertigem que as provocou. Na comunidade dos dois,
que se ocorre através da fenda da comunicação poética, o que se estabelece é a comunicação do
não-saber.
A comunidade de Nietzsche com Bataille parte da experiência que teve o filósofo e que
resultou, como dissemos acima, na necessidade de colocar o conhecimento em questão. Uma
vez que Nietzsche concluiu que o conhecimento humano era constituído por uma instância
moral, o sentido para ele passou a delirar; não se poderia mais falar em um sentido linear da
humanidade, quanto menos de progresso da civilização. Tudo o que havia era um sentido
circular, tudo o que restava era a potência, a intensidade, geradora de significados.
A comunidade de Bataille com Nietzsche carrega um saber. Bataille soube ler que a luz
de Nietzsche irradiava a partir e por causa desse abismo com o qual o filósofo se confrontou.
Tratava-se, assim, da experiência que comunicava o não-saber e, posteriormente, transformado
em linguagem, do não-saber que comunicava a possibilidade da experiência. Bataille extraiu
disso um valor, ele transformou o conhecimento em ponto de interrogação, atribuiu valor ao
não-saber:

[...] Aquele que tem sede de verdade [...] cabe-lhe esgotar a cada vez o
desenvolvimento infinito do possível. [...]. [...] O desejo de saber talvez só
tenha um sentido: servir de motivo ao desejo de interrogar. [...] Mas, para além
das condições do fazer, o conhecimento aparece finalmente como um engodo,
diante da interrogação que o solicita. É no fracasso que é a interrogação que
rimos. Os arrebatamentos do êxtase e as ardências de Eros são questões – sem
respostas – a que submetemos a natureza e nossa natureza. [...] Não quero
zombar de ninguém. Quero apenas zombar do mundo, ou seja, da
inapreensível natureza de que sou o resultado.337

No caso transgressivo da escrita de Bataille, zombar do mundo assume também a


conotação de zombar dos limites que a cultura impõe ao conhecimento, isso é, da castração em
que está implicado o processo civilizatório. Mas, para além disso, o riso resulta de um estado
de consciência que se experimenta ao longo do transe. Trata-se de um paradoxo, portanto: a
consciência da inconsciência, o saber do não-saber, que faz rir.

337
Ibidem, p.77
149

O transe é a evidência na carne de estar diante de um conhecimento-limite, que excede


as divisões impostas pelos saberes instituídos, que carece de referências simbólicas sobre as
quais poderia se apoiar, e que só existe na medida em que os objetos inertes são sacrificados,
isso é, na medida em que os olhos se fecham para a cultura.
Em função dessa fenda que separa a experiência do campo do simbólico, podemos
inferir que o não-saber estaria fadado ao esquecimento. Por outro lado, há algo que retorna da
experiência, há um resto, a despeito de seu caráter inapreensível. No retorno da experiência à
cultura apaga-se a neurose e o que não se escreve, a partir de então, é o movimento e a loucura.
Mas a algo da experiência que permanece. Ela começa por escrever suas marcas já no
próprio corpo. Há o riso que se abre quando a consciência alcança seus pontos fronteiriços, e
há também outras cicatrizes: a orelha cortada de Van Gogh – o desespero da disparidade e da
perda dos laços sociais, a ruína de toda hierarquia a partir do momento que a experiência conduz
à dissolução das autoridades do discurso: “quando o desejo de apreender a verdade me domina,
de chegar à luz, sinto-me tomado de desespero. Ato contínuo, sei-me perdido (perdido para
sempre) neste mundo onde tenho a impotência de uma criança pequena (mas não há adultos a
quem recorrer)” 338.
O acesso a um saber-limite tem, portanto, ao menos duas consequências imediatas: a
anamnese e uma acachapante solidão. A expressão “não há adultos a quem recorrer” não é
gratuita; ela indica uma quebra tão violenta de hierarquia que pode ser comparada à tônica
nietzschiana da “morte de Deus”, da quebra da verticalidade do conhecimento. Trata-se também
da constatação, reafirmada por Bataille, do sentimento de “estar perdido para sempre”, de que
não há, no “retorno ao mundo” da cultura, autoridade a quem se possa reportar ou legitimar a
experiência, tampouco linguagem que lhe possa servir de adequada sustentação.
O sentimento de estar sozinho no mundo de posse de uma verdade sobre a qual muito
pouco podia falar certamente foi decisivo para a ruína de Nietzsche. A quebra abrupta de toda
hierarquia terá então, como outro de seus efeitos colaterais, o despertar pelo desejo de uma
horizontalidade fundada na experiência do êxtase, o desejo pelo reencontro possível numa
espécie de comunidade da solidão. “Só Nietzsche se tornou solidário a mim – dizendo nós”339,
Bataille escreve, “Minha vida, em companhia de Nietzsche, é uma comunidade, meu livro é
essa comunidade”340.

338
Ibidem, p.76
339
Ibidem, p.39
340
Ibidem, p.46
150

É por isso que, ao lado da obra de Klossowski, o livro que Bataille dedicou a Nietzsche
é fundamental na compreensão adequada a respeito daquilo que o filósofo colocara em jogo em
suas tentativas desesperadas de elaborar a experiência do eterno retorno e de comunicá-la a
qualquer custo, seja a seus amigos mais próximos, seja através de seus escritos filosóficos.
Foram empreendimentos, como já foi dito, nos quais Nietzsche fracassou, mas
tragicamente. “Tragicamente? Talvez ... – A impotência de Nietzsche é inapelável. [...]. A
tragédia de Nietzsche é a tragédia da noite, que nasce de um excesso de dia”.341
E, igualmente porque Bataille soube traduzir o esforço de Nietzsche como um malogro,
soube também ler que, na autoproclamada alcunha de “filósofo do futuro”, havia ali uma carga
bem menor de prepotente orgulho do que, verdadeiramente, a consciência do desespero de
quem se sabe só. Isso quer dizer que, para além das dificuldades impostas pela experiência em
si, há ainda o elemento amargo que resta do retorno do mundo da natureza insubmissa ao mundo
da cultura:

Para quem chega desavisado, a ideia de retorno é ineficaz. Não proporciona


por si mesma um sentimento de horror. [...]. Ela tampouco pode provocar o
êxtase. É que, antes de ter acesso aos estados místicos, temos de nos abrir de
algum modo ao abismo do Nada. O que nos incitam a fazer com nosso
movimento os mestres de oração de toda crença. Nós devemos realizar um
esforço, ao passo que em Nietzsche [...] a repercussão infinita do retorno teve
um sentido: o de aceitação infinita do horror dado e, mais do que aceitação
infinita, de aceitação que nenhum esforço precede.342

Os mestres da oração, se ensinam a necessária abertura “ao abismo do Nada”, só podem


então ser os próprios escritores. Todo os demais “mestres” têm no dogma ou no excesso de
silêncio seu único ensinamento. Bataille também dá a esse Nada a sua definição: “o indivíduo
se perde no tempo, é queda num movimento em que ele se dissolve é ‘comunicação’, não
necessariamente de um a outro. [...]. É essencialmente a morte do indivíduo [...] ou uma série
de interferências – entre a morte e o ser.”343
A “comunicação” é, portanto, a passagem (não necessariamente entre dois seres) do
saber para o não-saber, passagem experimentada a partir de uma radical colocação em jogo do
indivíduo, que mira a destruição da ficção do ‘eu’ e que propõe o conhecimento de um estado
intermediário entre a morte e o ser. No léxico batailliano, portanto, ‘comunicação’ tem a ver

341
Ibidem, p.142
342
Ibidem, p.180-181
343
Ibidem, p.175-176
151

com a produção de significados engendrada pela confrontação do indivíduo com seu abismo
com a partir da vontade de se colocar em jogo, ou do sacrifício auto imposto à própria cabeça.
Bataille, como já dissemos, transpõe a noção nietzschiana de ‘vontade de potência’ para
os termos de uma ‘vontade de jogo’ ou ‘vontade de chance’, para a qual há dois resultados
possíveis: “a chance se define em relação ao desejo, ele próprio [o indivíduo] se desespera ou
jorra.”344 Transpondo essa imagem para a comunidade de escritores identificada por Bataille
em A literatura e o Mal, podemos dizer que, ali, esse jorro – que é a escrita – não teve outra
motivação que não fosse a do desespero que advém desse passo incerto em direção à alteridade
e ao desconhecido, da vontade de chance.

***

O diálogo textual de Maurice Blanchot com Jean-Luc Nancy em torno da questão de


uma ‘comunidade do êxtase’ está inteiramente fundado na noção batailliana de ‘comunicação’
pensada como um jorro, como a dimensão excessiva ou informe do sujeito que transborda.
Blanchot, em A Comunidade Inconfessável, escreve que a comunidade proposta por
Bataille não nasce da carência motivada por “uma necessidade de completude”, mas da vontade
de chance:

A consciência da insuficiência vem de sua própria colocação em questão, a


qual tem necessidade do outro ou de um outro para ser efetuada. Sozinho, o
ser se fecha, adormece e se tranquiliza. [...] O ser busca, não ser reconhecido,
mas ser contestado: ele vai, para existir, em direção ao outro que o contesta e
por vezes o nega [...] (está aí a origem de sua consciência) da impossibilidade
de ser ele mesmo, de insistir [...] como indivíduo separado [...].345

Passagem em relação a qual reverberam estas palavras de Nancy:

“No” “NADA”, ou em nada – na soberania – o ser “fora de si”; ele é numa


exterioridade impossível de se alcançar, ou talvez se deveria dizer que ele é a
partir dessa exterioridade, que é um fora que não pode se relacionar, mas com
o qual mantém uma relação essencial e incomensurável. Essa relação ordena
por sua vez o ser singular. É por isso que “a experiência interior” da qual fala
Bataille não tem nada de “interior”, nem de “subjetiva”, mas é indissociável

344
Ibidem, p.149
345
BLANCHOT, op. cit., 2013, p.17
152

da experiência dessa relação com o fora incomensurável. A essa relação,


somente a comunidade provê seu espaço ou seu ritmo.346

Nessa passagem em que retoma o Nada apresentado no trecho mais acima de Bataille, outra
vez essa palavra aparece associada à noção de uma radical alteridade. O Nada não se confunde
com o vazio, e se tal significante é utilizado para apresentar essa dimensão outra é tão somente
porque não parece haver outra palavra que possa defini-la em seu aspecto informe.
‘A vontade de chance’ pode ser definida, portanto, como o desejo inato a todo ser de
abrir-se à alteridade. É por isso, fundamentalmente, uma pulsão sexual (pulsão de vida). Mas
na medida em que o desejo pelo outro apenas modula o desejo pelo Outro, é também pulsão de
morte. Tanto que Blanchot pontua que seria um erro pensar a noção de ser como a possibilidade
de um fechamento sobre si. Nancy, nesse mesmo sentido, chega a afirmar que o ser só é o ser
na medida em que está fora de si, ou seja, que o ser é a experiência de estar fora de si e lançado
em direção à alteridade.
Essa experiência, como também brilhantemente observa Nancy, por mais que Bataille a
tenha definido nos termos de uma “experiência interior”, deve ser lida como absolutamente
exterior. Isso quer dizer que, no mergulho em sua interioridade mais profunda, o que o ser
encontra não é a sua subjetividade (o si mesmo, o reconhecível), mas a alteridade (o Outro).
Há, portanto, dentro de cada um uma fenda por meio da qual o ser alcança o fora e por meio da
qual a alteridade se comunica com o ser. A comunidade que se desenha por essa relação a
princípio não é com os outros, mas com o Outro que constitui cada ser singular.

E a questão da comunidade torna-se agora inseparável, para nós, de uma


questão do êxtase: ou seja, como começamos a compreendê-lo, de uma
questão de ser considerada como algo diferente da absolutez da totalidade dos
entes. A comunidade ou o ser-extático do ser ele mesmo? Essa seria a
questão.347

Bataille, como se sabe, não apenas assumiu a possibilidade real de que fossem
constituídas “comunidades do êxtase”, como deu forma a uma tal comunidade da qual ele
próprio participava como membro e mentor. A comunidade secreta Acéphale, sobre a qual
pouco se sabe, começou a ser desenhada em 1936 por meio de um programa e seu legado
principal permanece sendo os preciosos textos que foram escritos por Bataille em comunidade

346
NANCY, op. cit., 2016, p.47-48
347
Ibidem, p.33
153

com outros membros (dentre os quais se inclui Pierre Klossowski), e que foram publicados nas
cinco edições da revista homônima.
Anos mais tarde, Bataille reconheceria seu ímpeto de conformar essa comunidade (a
comunidade “física”, não a comunidade dos textos) como sendo um “erro monstruoso”,
sobretudo pela contradição de que a experiência do êxtase pudesse ser concebida como parte
de um “projeto”, ainda mais um projeto de natureza coletiva. Ao final, o valor da “conspiração
secreta” pode ser atestado ainda hoje pela qualidade dos textos que Acéphale publicou.
No contexto embrionário de uma guerra devastadora que colocaria em atrito ao menos
três grandes sistemas político-econômicos, Bataille e seus companheiros de comunidade se
recusaram veementemente a reconhecer na política a dimensão que tocava de fato a questão
humana, a ponto de incluírem como epígrafe do primeiro volume publicado pela revista a
seguinte citação de Kierkegaard: “o que pareceria político e imaginava-se ser político se
desmascarará um dia como movimento religioso”.
Em termos de linguagem, o primeiro volume da revista se aproxima mais de um texto-
manifesto do que de um texto literário ou filosófico. A linguagem oscila da denúncia
generalizada às condições impostas à humanidade pela civilização (note-se quanto a isso que
aos membros de Acéphale era indiferente que se tratasse de capitalismo, fascismo ou
comunismo) à proposição de que a possiblidade humana consistia na tomada de consciência de
seus processos inconscientes, ponto a partir do qual poder-se-ia imprimir uma espécie de
religião paradoxal: a religião da morte de Deus.
É interessante também que, já no primeiro volume (anterior à redação da Suma
Ateológica, na qual se incluem os escritos de Sobre Nietzsche), a experiência do êxtase já é
apresentada, ainda que de maneira sutil, como a da possiblidade de encontro com uma forma
radical de alteridade:

A vida humana está exausta de servir de cabeça e de razão ao universo. [...].


O homem, entretanto [...] é livre para se assemelhar a tudo aquilo que não é
ele no universo. Pode descartar o pensamento de que é ele ou Deus que impede
o resto das coisas de ser absurdo. O homem escapou de sua cabeça como o
condenado da prisão.348

E, em relação às partes que assumem um tom de manifesto, Bataille se lança na


proposição de uma espécie de retorno ao mundo primitivo extinto, anterior à civilização, como
paradoxalmente constituindo a fonte de valores para o futuro:

348
BATAILLE, op. cit., 2014, vol. I
154

Nos mundos desaparecidos foi possível se perder no êxtase, o que é impossível


no mundo da vulgaridade instruída. As vantagens da civilização são
compensadas pela maneira como os homens as aproveitam para se tornarem
os mais degradantes de todos os seres que já existiram. [...]. É tempo de
abandonar o mundo dos civilizados e sua luz. É tarde demais para querer ser
razoável e instruído – o que levou a uma vida sem atrativo. Secretamente, ou
não, é necessário devir totalmente outros ou cessar de ser. O mundo ao qual
pertencemos não propõe nada para se amar afora cada insuficiência individual:
sua existência se limita à sua comodidade. [...] Se comparado aos mundos
desaparecidos, é hediondo e aparece como o mais falho de todos. É preciso
devir suficientemente firme e inabalável para que a existência do mundo da
civilização apareça enfim incerta. [...]. É preciso refutar o tédio e viver
somente do que fascina. [...]. É preciso avançar sem olhar para trás e sem
levar em conta aqueles que não têm força de esquecer a realidade imediata.
A vida tem sempre lugar num tumulto sem coesão aparente, mas só encontra
sua grandeza e sua realidade no êxtase e no amor extático. Aquele que se
recusa a reconhecer o êxtase é um ser incompleto cujo pensamento está
reduzido à análise.349

Do que se pode interpretar, os textos de Acéphale parecem investidos pela ideia de que
seria possível levar a cabo um projeto generalizado de crítica à cultura e à civilização (em
qualquer de suas formas), desde que orientado por uma comunidade devidamente coesa em
relação não só aos fundamentos radicais dessa crítica, mas sobretudo pela proposição do êxtase
como um novo (não obstante primitivo) valor, conforme se vê nestas passagens publicadas no
quinto e último volume da revista:

Se alguém se propõe a ir até o fundo do destino humano, é impossível


permanecer só, é preciso formar uma verdadeira Igreja, é preciso reivindicar
um “poder espiritual” e constituir uma força capaz de desenvolvimento e de
influência. Nas circunstâncias presentes, semelhante Igreja deveria aceitar e
mesmo desejar o combate em que ela afirmaria sua existência. Mas ela deveria
reportá-lo essencialmente a seus interesses próprios, ou seja, às condições de
uma “consumação” das possibilidades humanas.350

Os valores dessa Igreja deveriam ser da mesma ordem que as avaliações


tradicionais que situam a Tragédia no ápice: independentemente dos
resultados políticos, é impossível ver uma descida do universo humano aos
infernos como desprovida de sentido. Mas, do que é infernal, só deveria ser
possível falar discretamente, sem depressão e sem bravata.351

349
Ibidem
350
Ibidem, vol, V, p.11
351
Ibidem, p.12
155

***

Em um dos fragmentos de A gaia ciência, de título “O pensamento da morte”, Nietzsche


tece o seguinte comentário: “como é estranho que esta única certeza [a morte] e esta única
comunhão não possam quase nada sobre os homens, e que não haja aí nada mais distante do
seu espírito que a ideia de sentir essa fraternidade da morte!” 352 Nietzsche, nesse caso, parece
ter desprezado o papel mais elementar das religiões, que é justamente este: a partir de um
discurso em torno da morte, fundar uma comunidade. Via de regra, nas religiões de matriz
monoteísta, essas comunidades devem ser hierarquizadas e castradas, no sentido da aceitação
passiva de um discurso que precede a experiência e, na maior parte dos casos, na veemente
rejeição à própria ideia de experiência, que é então substituída pelos dogmas e pela autoridade
da tradição.
É certo que, na proposição de uma Igreja acefálica, fundada em valores trágicos, havia
não somente uma provocação, mas uma vontade violenta de transgredir todas essas formas de
existência que, seja individualmente ou em coletividades individualizadas, “se limitam à sua
comodidade”. No primeiro volume publicado da revista, são fornecidas ainda outras imagens
do que se poderia considerar como sendo a exigência ou os valores dessa comunidade acefálica,
mais uma vez em termos bastante combativos:

Seria preciso que a morte se tornasse uma morte afetuosa e apaixonada,


gritando seu ódio por um mundo que faz pesar até sobre a morte sua pata de
empregado. Eu já não podia mais duvidar de que a sorte e o tumulto infinito
da vida humana estivessem abertos àqueles que não pudessem mais existir
com os olhos furados, e sim como videntes arrebatados por um sonho
transtornador que não lhes pode pertencer.353

E, no quarto volume da revista, há uma passagem que parece ecoar o fragmento de A gaia
ciência que destacamos mais acima, a respeito do “pensamento da morte”:

O princípio dessa inversão se exprime em termos simples. À UNIDADE


CESÁREA QUE UM CHEFE FUNDA SE OPÕE A COMUNIDADE SEM
CHEFE LIGADA PELA IMAGEM OBSEDANTE DE UMA TRAGÉDIA.
A vida exige homens unidos, e os homens só se unem através de um chefe ou
de uma tragédia. Buscar a comunidade humana SEM CABEÇA é buscar a
tragédia: a própria execução do chefe é tragédia; permanece exigência de

352
NIETZSCHE, op. cit., 2005b, p.144
353
BATAILLE, op. cit., 2014, vol. I
156

tragédia. Uma verdade que mudará o aspecto das coisas humanas começa
aqui: O ELEMENTO EMOCIONAL QUE DÁ UM VALOR OBSEDANTE
À EXISTÊNCIA COMUM É A MORTE.354

Poucos anos mais tarde, provavelmente por reconhecer o quanto de irrealidade havia no
desejo de conformar uma comunidade que tinha seu valor fundamental na transgressão e no
êxtase (na experiência interior) a sua exigência, Bataille passa a refutar por completo a hipótese
de que essa Igreja acéfala pudesse encontrar sustentação em si mesma.
Mas, mesmo desfeito o programa de Acéphale, o escritor jamais abandonou a
perspectiva e o reconhecimento de que o pensamento acerca da comunidade deveria permanecer
de pé. Decretado o fim de sua comunidade de fato, Bataille apenas passou a rejeitar a ideia de
que qualquer pequena coletividade pudesse sobreviver e se estruturar a partir do êxtase que, por
definição, é um objeto impróprio.
É significativo, em todo caso, que, conforme o trecho acima, ele tenha defendido que
essa comunidade deveria estar fundada na ideia da tragédia, que é um gênero literário. Quanto
a isso, sua concepção de comunidade não parece ter sofrido alteração ao longo dos anos, já que
podemos dizer que os escritores elencados por Bataille em A literatura e o Mal constituem
verdadeiramente uma pequena comunidade de textos acefálica.
Independentemente se se trata de uma comunidade de fato ou de uma comunidade de
textos, Bataille justifica a importância desse pensamento, isso é, a sua exigência pelos seguintes
termos:

Viver um possível até o limite exige uma troca entre várias pessoas,
assumindo-o como um fato que lhes é exterior e que não depende mais de
nenhuma delas isoladamente. Do possível que propôs, Nietzsche não duvidou
que sua existência exigisse uma comunidade. O desejo de uma comunidade o
agitava incessantemente. Ele escreveu: “O cara a cara com um grande
pensamento é intolerável. Procuro e chamo homens a quem possa comunicar
esse pensamento sem que eles morram por isso”. Ele procurou sem nunca
encontrar uma “alma profunda o bastante”. Teve de se resignar, dizer a si
próprio: “Depois de um tamanho apelo, jorrado das profundezas da alma, não
escutar o som de resposta alguma é uma experiência aterradora que pode fazer
perecer o homem mais tenaz: isso me liberou de todos os laços com os homens
vivos”. Seu sofrimento assim se expressa em numerosas notas...355

***

354
Ibidem, vol. IV, p.23
355
Ibidem, p.45
157

Temos ocasião de pensar no processo que culminou na loucura de Nietzsche por uma
inversão dos termos. Não seria o caso de dizer que foi a angústia de se abrir à comunicação que
teria conduzido Nietzsche, ainda que involuntariamente, à experiência mística do eterno
retorno, ao invés de assumirmos que foi essa experiência que encetou nele o desespero por se
comunicar?
Afinal, Nietzsche não era já, mesmo antes desse acontecimento divisor de águas, um
escritor? Em A experiência interior, Bataille escreve que “quem não ‘morre’ por ser apenas
um homem, nunca será mais do que um homem. A angústia, evidentemente, não se ensina”.356
A angústia é, portanto, o primeiro sintoma da vontade de ser “mais do que um homem”, da
vontade de comunicação com o outro, que é o princípio de toda comunidade.
A angústia – que antecede e que, no limite, pode conduzir a esse tipo de experiência –
merece, portanto, ser interpretada. Intercalando duas passagens desse texto de Bataille, chega-
se a algumas conclusões: “[...] direi em princípio que o desejo, entenda-se, o desejo soberano,
que rói e alimenta a angústia é o que leva o ser a procurar o além de si mesmo”357. “[...] Só
comunico fora de mim, abandonando-me ou lançando-me para fora. Mas, fora de mim, não sou
mais. Tenho esta certeza: abandonar o ser em mim, buscá-lo fora, é correr o risco de se estragar
– ou de se aniquilar [...].”358

O além de meu ser é em primeiro lugar o Nada. É minha ausência que


pressinto no dilaceramento, no sentimento penoso de uma falta. A presença
de outrem se revela através desse sentimento. Mas ela só é plenamente
revelada se o outro, por seu lado, inclina-se ele próprio sobre a borda de seu
Nada – ou nele cai (se morre). A “comunicação” só tem lugar entre dois seres
postos em jogo – dilacerados, suspensos, um e o outro inclinados sobre seu
Nada.359

Bataille aponta então que o endereçamento do ‘eu’ ao ‘outro’, que tem na angústia o seu
sintoma, é significante de uma falta. Essa falta é o princípio da comunicação e é também o
desejo por constituir uma comunidade. Mas esse movimento aponta para uma possibilidade
ainda mais decisiva.

356
BATAILLE, op. cit., 2016, Segunda Parte – O Suplício
357
BATAILLE, op. cit., 2017, p.60
358
Ibidem, p.62
359
Ibidem, p.60
158

Em diversas passagens de A experiência interior estabelece-se a relação entre angústia


e a possibilidade da comunicação. Trata-se da súplica – isso é, de um clamor sem resposta:
“sem súplica, não há resposta concebível: nenhuma resposta jamais precederá a pergunta: e o
que significa a pergunta sem angústia, sem suplício? No momento de ficar louco, a resposta
surge: como escutaríamos sem isso?”360 Isso quer dizer que, para o escritor, o desejo por lançar-
se fora de si nasce de um sentimento de angústia inerente ao ser. A comunicação real, portanto,
somente seria dada quando esse desejo é levado a um passo adiante, transformado em súplica.
A comunidade, nesse caso, se estabelece entre duas súplicas, entre dois seres que se
colocam em jogo. A conclusão de Bataille é que se o ‘eu’ está endereçado ao ‘outro’, então a
angústia aponta para a natureza do ser em se constituir não pela completude, mas pela falta.
Isso quer dizer que dois seres somente se comunicam através de suas feridas. Se uma
comunidade chega a se estruturar por esse princípio levado adiante (talvez fosse preciso dizer
“costurar” ao invés de “estruturar”) – então se pode dizer que o que sustenta essa comunidade
é o Nada.
A busca pela alteridade encarnada no outro é que, nos abre, em suma, às formas mais
radicais de súplica, ou de comunicação endereçada ao Outro. Bataille, todavia, reconhece que
a valorização da angústia e o desejo por levá-la adiante, em movimento em sentido contrário ao
que seria exigido pelo recalque, é algo da ordem do ‘inumano’.
A pergunta que fazemos então é: se esse sentimento é tão avesso aos preceitos da
civilização, interiorizados pelas vias da neurose, como teria sido possível dar esse passo em
direção ao inumano se outros, antes dele, não o houvessem experimentado, se não o houvessem
comunicado, se não houvesse uma espécie de comunidade de textos e de literatura que
comunica essa estranha possibilidade?
“Sentimento de cumplicidade: no desespero, na loucura, no amor, na súplica. Alegria
inumana, desenfreada, da comunicação, pois, não há um ponto do espaço vazio que não seja
desespero, loucura, amor – e ainda: riso, vertigem, náusea, perda de si até a morte”. 361 Para
Jean-Luc Nancy, esse conceito de comunicação proposto por Bataille inaugura uma questão
realmente nova que, até o momento (e, em grande medida, ainda hoje), escapa ao debate
filosófico.
Segundo o filósofo, o tratamento que “a questão do ser” havia recebido até então
apontava para a possibilidade de um atomismo elevado à potência do absoluto. É como se o ser

360
Idem, op. cit., 2016, Segunda Parte – O Suplício
361
Ibidem.
159

pudesse ser definido, precisamente, como uma forma que existe porque se expõe, que existe na
medida em que é uma ferida, uma fenda, uma forma de existência, enfim, sujeita à violação
pela alteridade, ao contágio pelo que vem de fora.
A angústia seria então o significante não só da disponibilidade, mas da exigência do ser
em se comunicar. Isso porque, se prevalece no sujeito o desejo por recalcar a súplica, por
silenciar a angústia – isso é, o desejo por se atomizar na forma ‘indivíduo’ – isso equivaleria,
nos termos propostos por Bataille, a encerrar em si a possibilidade de ser. Para Nancy, essa
questão chega ao ponto de extrapolar o debate filosófico para se desdobrar em consequências
políticas:

O individualismo é um atomismo inconsequente que esquece que a questão


do átomo é aquela de um mundo. Por essa razão, a questão da comunidade é
a grande questão ausente da metafísica do sujeito, ou seja – do indivíduo ou
Estado total –, da metafísica do para-se absoluto: o que em geral também quer
dizer da metafísica do absoluto, o ser como ab-soluto, perfeitamente separado,
distinto e enclausurado, sem relação. Esse ab-soluto pode se apresentar sob
todas as formas da Ideia, da História, do Indivíduo, do Estado, da Ciência, da
Obra de arte etc. Sua lógica será sempre a mesma, porquanto seja sem
relação.362

Ao estabelecer a crítica às noções de “indivíduo”, “sujeito” e “Estado”, Nancy procura


encontrar, a partir dos textos de Bataille, uma definição de ‘ser’ exatamente nos termos do
predicado que a filosofia terminantemente recusou, isso é, a partir não da noção de absoluto,
mas de falta, de incompletude.
Nancy define então a potência de ser como o sentido que aponta para o fora, para o
limite no qual se rompe a imposição cultural do absoluto, do absolutamente só que é um
‘indivíduo’. E, se nesse movimento o ser escancara ainda mais a fenda que o constituí, ele
termina por se abrir à alteridade. Nesse ponto, as conclusões transgridem as fronteiras do debate
filosófico mais consagrado, já que o limite do ser não seria mais dado pela possibilidade do
conhecimento absoluto, mas sim pela possibilidade da comunicação:

O rasgo escondido na questão é o rasgo que a própria questão provoca entre a


totalidade das coisas que são – consideradas como absolutas, ou seja,
separadas de qualquer outra “coisa” – e o ser (que não é uma “coisa”) [...].
Através desse rasgo, é o ser “ele mesmo” que vem a se definir como relação,
como não absolutez e, se quisermos, é em todo caso o que eu tento dizer –
como comunidade.363

362
NANCY, op. cit., 2017, p.30
363
Ibidem, p.32
160

Em Sobre Nietzsche, Bataille voltará ainda outras vezes a esse pensamento que define a
comunidade como uma exigência precisamente porque o ser para ele só poderia ser definido a
partir de seu rasgo, de sua ferida: “as coisas ocorreram como se as criaturas só pudessem
comunicar-se através de uma ferida que dilacerasse sua integridade”364, “o que demonstra que
a comunicação dos seres é assegurada pelo mal”365, já que “[a comunicação] não se faz sem
ferir ou conspurcar os seres”366.

O horror fúnebre a acompanha, o asco é seu sinal. E o mal aparece, sob esse
aspecto – como uma fonte da vida! É arruinando em mim mesmo, em outrem,
a integridade do ser que me abro à comunhão, que chego ao ápice moral. [...]
O que é desejado na comunicação é por essência a superação do ser.367

Assim, se o ápice moral se apresenta sob o signo do mal, segundo o escritor, isso é
porque esse ápice aponta para a possibilidade de transgredir aquilo que a cultura define como
sendo o seu maior bem – o indivíduo. “O ser humano sem o mal estaria enclausurado em si
mesmo, fechado em sua esfera independente. Mas a ausência de comunicação – a solidão vazia
– seria sem dúvida alguma um mal ainda maior.”368. Sobre esse ponto, Bataille acrescenta ainda
que “se tiver cortado os laços à sua volta, a solidão de um homem é um erro.”369

***

Neste ponto, indagamo-nos a respeito da pertinência da seguinte questão: a literatura


constituí uma comunidade do êxtase? E, se refletimos a esse respeito, a resposta oscila a todo
momento entre o sim e o não, exigindo de nós uma maior sutileza no olhar. O que constitui,
afinal, o movimento da literatura? Ela se conforma necessariamente em suas obras que, de resto,
se tornarão objetos da cultura? Antes ainda: a literatura realiza de fato um movimento? Entre
seus “atributos” estaria essa capacidade de violar a integridade dos seres, essa potência de
apontar para o fora, essa potência da transgressão?

364
BATAILLE. op. cit., 2017 p.58
365
Ibidem, p.59
366
Ibidem, p.59
367
Ibidem, p.64-65
368
Ibidem, p.59
369
Ibidem, p.44
161

O primeiro valor que Bataille confere à literatura é o que se relaciona com o sentido
ordinário da comunicação, isto é, o valor de retorno à cultura, ou a interdição da poesia – que,
originalmente, estava investida pela angústia e direcionada à transgressão – sua transformação
em objeto de linguagem.
Por outro lado, como vimos, Bataille também entende que a literatura se constitui de
uma essencialidade, que é sua afinidade com o mal, isso é, a afinidade com a violação dos seres.
O essencial da literatura, seria, portanto, a potência da comunicação poética – de comunicação
entendida no sentido batailliano, como contágio, como capacidade de colocar a si mesmo em
jogo e, pelo mesmo lance, colocar também o outro em jogo.
A comunicação poética nasce da necessidade angustiada de comunicação com o outro,
mas o que ela encontra é a alteridade no Nada. Quem lê recebe essa carga, participa desse
mesmo movimento, como um princípio de comunidade que enceta novas aberturas, novas
possiblidades de comunicação.

Se um dia tivesse a ocasião de escrever com sangue minhas últimas palavras,


escreveria isto: “Tudo que vivi, disse, escrevi – tudo que amei –, eu o
imaginava comunicado. Sem isso, não poderia tê-lo vivido. Vivendo solitário,
falar num deserto de leitores isolados! aceitar a literatura – o roçar superficial!
Eu, o que pude fazer – e nada mais – foi me jogar, e [...] afirmo: “se te pareceu
que eu não estava em jogo sem reserva no meu livro, joga-o fora.370

Nessa passagem, destacam-se os dois sentidos que Bataille dá ao termo ‘literatura’: é “o


roçar superficial”, a fala endereçada a “um deserto de leitores isolados”, que pode não se colocar
e nem ser capaz de colocar alguém em jogo. Em contrapartida, apresenta também o gesto que
pode dar início à contaminação poética: “se jogar”.
A esse respeito, ele escreve ainda que “uma vida não é mais do que um elo numa
corrente. Quero que outros continuem a experiência que antes de mim outros começaram, que
se devotem como eu, como outros antes de mim, ao meu desafio: ir até o limite do possível.”371
“A vida nunca está situada num ponto particular: ela passa rapidamente de um ponto a outro
(ou de múltiplos pontos a outros pontos) como uma corrente ou como uma espécie de fluxo
elétrico”.372
Se a comunicação poética equivale de fato a essa metáfora do movimento elétrico numa
corrente, então é preciso ver que essa comunicação não se dá de maneira linear, mas aos saltos.

370
Ibidem, p.44
371
Ibidem, p.44
372
Ibidem, p.63
162

E, saltando no tempo e no espaço, o que ela o que ela deixa com seu rastro não são propriamente
obras, mas fragmentos, ou seja, “o regime de uma violência feita à significação da palavra”,
violência também imprimida “à subjetividade” e aos mecanismos de “transmissão de uma
mensagem e de um sentido”373, nas palavras de Nancy.
O filósofo conclui afirmando que “é por isso que a comunidade não pode se enquadrar
no domínio da obra. Não a produzimos, fazemos a experiência (ou sua experiência nos faz)
como experiência de finitude”.374 “A comunidade tem necessariamente lugar no que Blanchot
nomeou inoperância. Aquém ou além da obra, o que se retira da obra, o que não tem mais a ver,
nem com a produção, nem com o acabamento, mas que encontra a interrupção, a fragmentação,
o suspenso”.375 Ao que Blanchot complementa, atribuindo um valor paradoxal à atividade
poética (à “escritura”) na tessitura da comunidade: “a comunidade, como diz Jean-Luc Nancy,
só se mantém como o não-lugar –, secreta por não ter nenhum segredo, obrando apenas no
desdobramento que atravessa pela escritura em [...] que faz ressoar o silêncio final.”376

“Aquele para quem escrevo” é aquele que ninguém pode conhecer, ele é o
desconhecido, e a relação com o desconhecido, mesmo que seja pela escritura,
me expõe à morte ou à finitude [...]. O que se pode então dizer da amizade?
[...] se a amizade faz apelo à ou convoca a comunidade por meio da escritura,
ela só pode se excetuar dela mesma [...]. relações com o desconhecido,
instaura aquilo que Georges Bataille (pelo menos uma vez) chamará de “A
comunidade negativa: a comunidade dos que não têm comunidade’ ”.377

No caso de Bataille, poder-se-ia fazer ainda uma observação complementar. No elo da


corrente (elétrica), constituída não somente pelo que se escreve, mas pelos espaços que trazem
a marca obscura e obscena do não-saber, esses espaços são preenchidos pelo tempo, ou melhor,
eles só se comunicam através do tempo.
Bataille escreveu sobre Nietzsche, escreveu sobre aquilo que fez Nietzsche conhecer a
morte e a loucura, e, a esse elo que o precedia na corrente, ele se referiu como uma escrita sobre
o abismo, que o lançava também na experiência de um devir incerto. Olhando para esse futuro
desconhecido, para aqueles “para quem ele escrevia”, tudo o mais que Bataille pôde dizer é que
ele também se colocava em jogo, deixando como uma espécie de provocação erótica que, a
partir de seu sacrifício com a atividade da escrita, o jogo continuasse por outras mãos.

373
NANCY, op. cit., 2016, p.48
374
Ibidem, p.63
375
Ibidem, p.63
376
BLANCHOT, op. cit., 2013, p.33-34
377
Ibidem, p.39
163

Não deixa de ser interessante observar que, pela comunicação estabelecida entre
Bataille, Blanchot e Nancy em torno do tema da ‘comunidade’, eles próprios parecem ter
conformado uma espécie de comunidade textual, cujo alcance pode ser traduzido como uma
forma de crítica literária destinada a refletir para além dos limites do possível da literatura. Essa
pequena comunidade textual pensou a literatura para além de sua conformação enquanto objeto
de linguagem, da cultura.
“Bataille”, escreve Nancy, “soube melhor que ninguém – ele foi o único a abrir caminho
para um tal conhecimento – a forma de um êxtase é aquela de uma comunidade.378 Tendo
desfeito o programa da comunidade Acéphale, Bataille soube, assim como Nietzsche, que
estava sozinho (“que não havia adultos a quem recorrer”).
Dessa experiência, o escritor concluiu também que “a comunidade não estava destinada
a curá-lo dessa solidão ou a protegê-lo dela, mas que ela era a maneira pela qual ele se expunha
a essa solidão”379. Ele então se expôs à solidão de Nietzsche, da mesma forma que, para
Nietzsche, antes dele, foi necessário se expor à solidão escrita de Zaratustra (“um livro para
todos e para ninguém”).
E, nesse horizonte do fragmento – dos elos espaçados de uma corrente elétrica –, em
que o inacabamento e o desconhecido funcionam como uma espécie de estrutura dentro da qual
o tempo reverbera, parece-nos perfeitamente legítimo o pensamento e a proposição da literatura
como fenômeno, como uma comunidade do êxtase.
Dessa comunidade textual e acefálica que estabeleceu com Nietzsche, Bataille
finalmente escreve: “nada há de humano que não exija a comunidade daqueles que o querem.
Aquilo que vai longe exige esforços conjugados, que ao menos deem continuidade um ao outro,
sem se deter no possível de um só”380.
Em Acéphale reverberava, assim, esse pensamento vindo de uma longa corrente
pretérita e destinado a um futuro ainda a ser inventado, conforme essas palavras escritas a uma
comunidade dos que foram e, ao mesmo tempo, endereçada à comunidade por vir:

Essa verdade “dionisíaca” não pode ser objeto de uma propaganda. E como,
por seu próprio movimento, faz apelo à potência, ela empresta um sentido à
ideia de uma organização que gravite em torno de profundos mistérios. Aqui,
mistério não tem nada em comum com um esoterismo vago: trata-se de
verdades que dilaceram, que absorvem aqueles a que aparecem, ao passo que
a massa humana não as busca e é até mesmo animada por um movimento que

378
NANCY, op. cit., 2016, p.49, grifo nosso
379
BLANCHOT, op. cit., 2013, p.41
380
BATAILLE, op. cit., 2017, p.44
164

a afasta delas. O movimento de desagregação dessa massa só pode ser


compensado com uma dissimulada lentidão por aquilo que gravitará de novo
em torno de figuras de morte. É somente nessa direção aberta, onde tudo
desconcerta até o limite da embriaguez, que as afirmações paradoxais cessam
de ser para aquele que as admite uma derrisão e um julgamento implacável.381

***

A figura que ilustra as capas da revista Acéphale, como se sabe, é carregada de


simbolismos. A ausência de cabeça tem como metáfora mais evidente o tema da queda ou da
“morte de Deus”. Mas é por essa queda que se expõe a sua maior ferida e, nesse sentido, sua
inexistência enquanto ‘eu’, enquanto ser individual, e, por isso mesmo, sua disponibilidade
escancarada e infinita para a comunicação.
O acéfalo “encontrou, para além dele mesmo, não Deus, que é a proibição do crime,
mas o ser que é aquele que ignora a proibição”382, ou seja, ele inscreve a possibilidade da
transgressão de todos os valores, de toda a cultura – e, consequentemente, a possibilidade da
comunicação com o não-saber. A disposição dessa figura em abrir fendas também em outros é
demonstrada pelo fato de “ter uma arma de ferro em sua mão esquerda e chamas semelhantes
a um sagrado coração [que não é o seu] em sua mão direita”383.
O acéfalo “reúne numa mesma erupção o Nascimento e a Morte. Não é um homem.
Também não é um Deus. Ele não é eu: seu ventre é o dédalo em que se desgarrou a si mesmo,
me desgarra com ele, e no qual me reencontro sendo ele, ou seja, monstro”.384

***

381
Idem, op. cit., 2014, vol. III e IV, p.23
382
Idem, op. cit., 2014, vol. II, p.22
383
Ibidem
384
Ibidem
165

CAPÍTULO 4: A FENDA

4.1 Introdução: O Mal-estar na Literatura

o ato sexual é no tempo o que o tigre é


no espaço (BATAILLE)385

poesia cemitério da obesidade [...] adeus


mentira sonolenta (Idem)386

‘Morte’ é o significante que melhor caracteriza a obra de Bataille. Essa afirmação pode
parecer estranha, sobretudo se consideramos que, a despeito disso, sua obra não aponta para os
sentidos tradicionais aos quais esse significante se associa, tais como a melancolia ou um apelo
à morbidez. Esses significados, conforme procuramos esclarecer no capítulo anterior, são
transgredidos pelo escritor.
Em sacrifício aos significados pálidos e degradantes que a cultura nos oferece em
relação à morte, o que a escrita de Bataille retoma a partir desse significante é a violência, mas
a violência em um recorte bastante específico: em seu sentido luxuoso, no excesso
transbordante da dimensão do não-saber.
Bataille toma esse significante no sentido de uma abertura do ser ao estado de pura
transgressão, ou seja: o paradoxo é o de pensarmos a morte não como o estado oposto à vida,
mas a morte como a contiguidade imediata, o fim definitivo dos interditos do mundo civilizado
– o excesso irremediável em relação a esse mundo.
É que, se a linguagem da cultura (do mundo profano, como a denomina Bataille) é
utilitária, ou – no melhor dos casos – se é literatura, então tudo o que ela pode fazer é referenciar,
tentar dizer o que é a vida, tratando a vida como coisa. Mas, se a morte for a expressão de forças
que não separam, mas que misturam o puro e o impuro, o alto e o baixo, o sujeito e o objeto,
então seu nome deverá ser erotismo, se ela for uma atividade, e poesia, se se tratar de linguagem.
Bataille escreve no poema de título “A Meditação”: “Desde já, a morte nos cerca com
um silêncio interminável como uma ilha rodeada de água. Mas este é justamente o indizível”.
E escreve, em outro poema: “Que importam as palavras que não perfuram este silêncio? Que

385
Idem, A parte maldita. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013b p.39
386
Idem, Poemas. Org. e trad. Alexandre Rodrigues da Costa, Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2015c p.153
166

importa falar de um ‘momento de túmulo’, quando palavra não é nada, já que ela não atinge o
para além das palavras?”.387
Há, portanto, nesse ponto, referência a duas formas da palavra em abordar o silêncio:
uma que se limita ao possível do nada; a outra, já no campo do impossível, que deseja perfurá-
lo. No primeiro caso, a palavra funciona como representação; no segundo, ela é um vetor que
conduz à experiência. Isso quer dizer que o indizível pode ser somente uma palavra que impõe
um limite, que funciona como interdito, mas que, no sentido erótico da provocação, essa mesma
palavra é um convite à sua própria transgressão, ou seja, ela é um convite à experiência.

Com bosta na cabeça/ grito eu odeio o céu/ quem sou eu para cuspir nas
nuvens/ é amargura de ser imenso/ meus olhos são de porcos gordos/ meu
coração é de tinta negra/ meu sexo é um sol morto// as estrelas caídas em um
fosso sem fundo/ eu choro e minha língua flui/ pouco importa que a
imensidade seja redonda/ e role em um cesto de farelos/ eu amo a morte e eu
a convido/ para ir ao açougue do Santo Pai388

O “açougue do Santo Pai”, talvez expresse a condição do homem na cultura (“com bosta
na cabeça”) de eternamente ter que retornar ao sentido e a Deus, dada a impossibilidade de levar
a cabo a transgressão indefinidamente. A necessidade de reacomodar-se junto à realidade
profana (agora com “olhos de porcos gordos”) é em grande medida avessa à exuberância e ao
excesso (“meu sexo é um sol morto”) e encontra na literatura, muitas vezes, a sua expressão
mais sublime. É nesse ponto que a literatura se configura, para Bataille, como o domínio de
uma forma específica do mal-estar: do excesso que deseja retornar ao campo do sentido e da
castração.
Em O Erotismo, Bataille escreve: “não que seja a meus olhos surpreendente que o
espírito se desvie de si mesmo e, por assim dizer, virando as costas para si mesmo, torne-se, em
sua obstinação, a caricatura de sua verdade”389. Isso nos permite pensar a literatura como essa
reacomodação do sentido, como uma espécie de caricatura ou de paródia das possibilidades
abertas pela poesia. E é a morte que o poeta convida para esse passeio, é a morte novamente
que – como expressão do luxo – pode atuar sobre as figuras mutiladas – que não se sabe se são
humanos ou se são peças – expostas no “açougue do Santo Pai”.
Grosso modo, mesmo que a palavra “poesia” seja utilizada por Bataille para se referir
tanto à adesão à cultura, quanto aos raros casos em que a arte se abre a sua transgressão,

387
Ibidem, p.247
388
Ibidem, p.69
389
Idem, O Erotismo. São Paulo: Autêntica Editora, 2013a p.293
167

poderíamos propor uma distinção entre os termos “literatura” e “poesia”, de forma que tal
diferenciação possa refletir a distinção entre aquilo que é simplesmente reafirmado (no primeiro
caso), ou radicalmente colocado em questão (no segundo), a depender do fato de ser dramático
ou trágico o movimento da mão que escreve.
Essa diferenciação pode parecer superficial, mas ela é importante para que se possa
compreender a que ponto Bataille repudiou o valor da representação literária, a que ponto (tendo
muitas vezes dado a essa representação o nome de “poesia”) ele a refutou, tendo chegado
mesmo a desejar substituí-la pelo ódio pela poesia.
No limite, trata-se da diferença entre o saber (o sentido) e o não-saber. Mas essa
distinção não necessariamente se refere a dois tipos diferentes de objetos, já que, como acontece
no caso do objeto literário, esse pode estar investido por ambas as qualidades, ou, para usar a
terminologia de Bataille, pode manifestar tanto seu aspecto de coisa quanto seu aspecto de luxo,
simultaneamente exibindo as qualidades do profano e do sagrado.
A literatura pode ser encarada como fenômeno que resulta do movimento do círculo
vicioso traduzido por Klossowski: é o eterno retorno da cultura, na medida em que a cultura
reabsorve a experiência, fornecendo-lhe um signo e, consequentemente, um significado e um
valor.
No horizonte do eterno retorno da cultura através da forma literária, isso é, da
sobrevalorização da representação às expensas da experiência, situamos esta importante
questão trazida por Franco Rella:

O homem vive toda a sua existência distanciando-se da natureza, gerando um


mundo ilusório, construído para arte: este é o mundo dramático em que
vivemos, onde a tragédia representa a forma mais acabada e mais alta, criando
aquela atmosfera fictícia. E, assim, poderá um dia o homem, ou o ultra
homem, sair da ilusão essencial, artística, do Eu – da sua projeção de ilusões
vitais (que representam a sua própria cultura)?390

A literatura, podemos dizer, seria o equivalente ou o duplo disso que Rella chama de “a
ilusão artística do Eu”, nos domínios do sentido, da autoria, das formas institucionalizadas e
canônicas, da identidade da obra consigo mesma, de seu valor de uso para a língua, para a
cultura etc.
Por outro lado, esse mesmo questionamento nos abre a uma outra possibilidade
radicalmente crítica. No limite, aponta-se que o ato de transgredir esse mundo feito de

390
RELLA, Franco. MATI. Susanna. Georges Bataille, filósofo. Editora UFSC. Florianópolis, 2010, p.91-92
168

mediações e representações (o mundo ilusório, o mundo em que o homem se distancia da


natureza, da experiência da morte, portanto) implica conseguir enxergar – retomando a
profundidade da experiência de Nietzsche – que até mesmo a instância do ‘eu’ é arte, no sentido
de ser uma ilusão, no sentido que a noção de identidade é, ela própria, uma metáfora.
Nesses extremos, a literatura assume um caráter completamente distinto da
representação e passa a tangenciar a loucura. No ponto em que a poesia, em seu retorno à
cultura, abandona o horizonte da representação e se assume como fenda, isso é, como passagem
de um estado a outro, retomamos as palavras de Blanchot:

O homem desaparece. É uma afirmação. Mas essa afirmação imediatamente


se desdobra em questão. O homem desaparece? E aquilo que nele desaparece,
a desaparição que ele leva e que o leva, libertará o saber, libertará a linguagem
das formas, das estruturas ou das finalidades que definem o espaço de nossa
cultura?391

Pois, se tal lucidez é impossível, o que a doutrina do Círculo vicioso tende a


demonstrar é que a crença no Retorno, a adesão ao não sentido da vida, em si
mesma implica em uma lucidez impraticável. Não podemos renunciar à
linguagem [...].392

[...]. E o homem, no momento em que se realiza essa transformação e que a


história gira? Será que se transforma? Estará caminhando para além de si
próprio? Estará pronto para tornar-se aquilo que é, o homem lúcido que não
pode apoiar-se sobre nada e que se tornará mestre de tudo?393

Insistindo ainda nessa distinção entre literatura e poesia, se a primeira é o “retorno à


ilusão artística do Eu”, o “passeio no açougue do Santo Pai”, a expressão do ser humano
enquanto “caricatura de sua verdade”, por contraponto, o que Bataille defende como sendo
poesia pode ser traduzido perfeitamente pelos termos de Blanchot: aquilo que “libertará o saber,
libertará a linguagem das formas, das estruturas” e das “finalidades que definem o espaço de
nossa cultura”.
Também em relação à conclusão trágica, no sentido de para onde deve rumar esse
movimento de liberdade (de transgressão), Bataille e Blanchot se aproximam: trata-se de uma
lucidez impraticável, insustentável, impossível – um movimento que, ao fim, deverá
necessariamente retornar às formas institucionalizadas da linguagem e do sentido.
Na aproximação possível entre poesia e o erotismo, podemos dizer que ambos se
referem ao estado de permanente tensão e de comunicação entre aquilo que a cultura constrói

391
BLANCHOT, op. cit., 2007, vol. 2, p.122
392
Ibidem, p.53
393
Ibidem, p.108
169

(o significante, o interdito) e sua destruição (a transgressão, o não-saber como transbordamento


do significante, como a passagem ou comunicação entre dois estados).
No limite, essa distinção entre literatura e poesia termina por se mostrar um engodo. No
campo do simbólico, o puro devir poético, isso é, a expressão de uma intensidade que se
manifesta sem freios (tal como o desejo de Sade) é inconcebível; por outro lado, e por mais que
a cultura se esforce por esse resultado, a literatura jamais será capaz de recalcar a parte maldita
do signo, pois dentro da literatura – tomada nos termos de uma escrita da transgressão – se
expressará sempre, ainda que como resto, algum nível de sua afinidade com os domínios do
não-saber.
Mas essa distinção é útil na medida em que ela esclarece que poesia e literatura são dois
momentos de um mesmo movimento ou, como dissemos acima, duas qualidades distintas de
um mesmo objeto. Quanto à poesia, se ela é a intensidade inapreensível da experiência, então
parece acertado considerá-la como sendo a parte maldita do objeto, isso é, “o luxo, que coloca
para a matéria viva e para o homem seus problemas fundamentais”394.
É nesse sentido, do caráter inapreensível e informe do luxo, que Bataille definirá a
poesia como algo da ordem do impossível:

O termo poesia, que se aplica às formas menos degradadas, menos


intelectualizadas da expressão de um estado de perda, pode ser considerado
como sinônimo de dispêndio: significa, com efeito, do modo mais preciso,
criação por meio da perda. Seu sentido, portanto, é vizinho do de sacrifício395.

Na prática, é muito difícil para nós conceber que algo possa ser criado na medida de sua perda,
que o não-saber possa ser um “ganho”, ou um valor oriundo da destruição do significado.
Não por acaso, Bataille daria a um de seus livros este título: O Impossível. E esse título
foi dado justamente ao conjunto de textos que, num primeiro momento, ele havia intitulado
Ódio pela Poesia. É que, revoltando-se contra todo movimento de retorno ao mundo profano
da cultura, o ponto que lhe interessava era menos o da literatura que o de seu fracasso.
Como ele mesmo o diz, seu interesse pela literatura encontra-se no ponto em que ela é
capaz de realizar a mesma operação que, em outros tempos, se dava por meio dos rituais de
sacrifício. Ora, se se pode dizer que a literatura é o poético tornado coisa, e que a poesia, por
contraponto, expressa a parte luxuosa dessa coisa – o equivalente ao que é a morte em relação

394
BATAILLE, op. cit., 2013b, p.39
395
Ibidem, p.23
170

à vida –, então o que a escrita da transgressão realiza não é diferente daquilo que coloca em
cena por meio do sacrifício: trata-se de restituir a parte luxuosa da coisa.

O sacrifício restituiu ao mundo sagrado o que o uso servil degradou, tornou


profano. O uso servil fez uma coisa (um objeto) daquilo que, profundamente,
é da mesma natureza que o sujeito, daquilo que se encontra em relação de
participação íntima com o sujeito. Não é necessário que o sacrifício destrua
de fato o animal ou a planta de que o homem deveria fazer uma coisa para seu
uso. É preciso pelo menos detruí-los enquanto coisas, enquanto se tornaram
coisas. A destruição é o melhor meio de negar uma relação utilitária entre o
homem e o animal ou a planta. Ela, porém, raramente vai até o holocausto.
[...] O que o rito tem a virtude de reencontrar é o fato do sacrificante participar
intimamente da vítima [...].396

***

Há, portanto, que se considerar a questão do ‘Mal-estar na Literatura’ nos termos de um


retorno apaziguado da poesia à cultura que – ao se conformar e ver seu movimento confundido
com o de uma estrutura de linguagem – estará esvaziada do valor, do ímpeto de transgressão
que lhe deu origem em relação à linguagem cotidiana, utilitária. É preciso também considerar
a atitude meramente estética, nesse caso, como a aproximação indevida ao objeto da poesia,
pois, no eixo em que a literatura funciona como uma espécie de espelho torto para o Mal, não
é a beleza da forma que conferirá à poesia seu valor, mas o movimento de sacrifício que se volta
contra o valor utilitário da linguagem e em favor do excesso que a transborda. Assim como no
gesto do sacrifício, Bataille concebe o movimento da mão escreve como uma espécie de
consciência perversa do jogo trágico que se joga com e contra a natureza.
“Cada um pode, se assim quiser, dar sua benção a uma natureza amparadora, curvar-se
diante de Deus...”, ele escreve em “A vontade do Impossível”, na passagem em que se associa
o desejo poético por uma natureza idealizada com o eterno retorno de Deus, do mesmo Deus
que a princípio fora negado pelo ateu e assassinado pelo poeta.
O ateísmo, a simples negação de Deus, estará sempre fadado a retornar à cultura. Isso
porque, cego pelo excesso de civilização, o ateu – nutrido pelo que Nietzsche chamou de “o
ideal ascético” – refuta qualquer legitimidade à esfera do sagrado. Nesse ponto de negação
civilizada, a experiência com o sagrado fica relegada à condição de delírio. Por outro lado,

396
Ibidem, p.70-71
171

mesmo que para o poeta seja “natural demais delirar” 397


, como observa Bataille, a atitude
literária não está por isso menos sujeita ao impasse.
Muitas vezes o desejo da poesia está investido por uma vaidade que serve apenas para
obscurecer o jogo mais essencial que pode ser jogado pela linguagem: “o delírio poético não
consegue desafiar a natureza inteiramente: ele a justifica, aceita embelezá-la”398. Para Bataille,
no entanto, essa mentira é sustentável somente na medida em que uma fantasia possa ser
utilizada para tamponar um buraco real.

É mais fácil indicar que, para os raros seres humanos que dispõem desse
elemento, o dispêndio poético deixa de ser simbólico em suas consequências:
assim, em certa medida, a função de representação empenha a própria vida
daquele que a assume. Ela o consagra às mais decepcionantes formas de
atividade, à infelicidade, ao desespero, à busca de sombras inconsistentes que
nada podem oferecer além da vertigem ou do furor. Frequentemente só pode
dispor das palavras para sua própria perda, é obrigado a escolher entre um
destino que transforma um homem em rejeitado, tão profundamente separado
da sociedade quanto os dejetos da vida aparente, e uma renúncia cujo preço é
uma atividade medíocre, subordinada a necessidades prosaicas e
superficiais.399

Pois, se o desejo da poesia simplesmente se configura como desejo de substituir a


idolatria às coisas pela idolatria à linguagem, isto é, se se trata simplesmente de retornar à
cultura através de valores que se julga superiores, então, para Bataille, essa posição poética
seria ainda mais degradante que a do homem “normal” na sociedade. Nesse caso, a poesia seria
uma espécie de posição intermediária que “faz a penumbra, introduz o equívoco, se afasta ao
mesmo tempo da noite e do dia – da colocação em questão e da colocação em ação do
mundo”400.
É a posição do homem da cultura, que procura fugir do sofrimento e da miséria
associados ao mundo profano na mesma medida em que se esquiva do terror referente à
experiência com o sagrado, sem realizar ou de fato tentar alcançar, enfim, nenhuma dessas duas
possiblidades.
Na sustentação dada por Bataille, por outro lado, de que “a literatura é o essencial ou
não é nada”, trata-se do reconhecimento de que “o movimento da poesia parte do conhecido e

397
Idem. A vontade do Impossível. Trad.: Fernando Scheibe. Crítica Cultural – Critic. Palhoça, SC, v.9, n.2,
p.335-338, jul/dez.2014
398
Ibidem, I
399
Idem. op. cit., 2013b, p.23
400
Idem, op. cit., 2014, II
172

conduz ao desconhecido e toca a loucura, se chega a se completar”401. Para Bataille, é sobre


esse ponto de “saída”, de encontro com o desconhecido, que começa a se manifestar a covardia
poética: “o refluxo começa quando a loucura está próxima”402, ele escreve. Em sentido contrário
a esse, “o movimento em direção à poesia quer muitas vezes permanecer somente nos limites
do possível”403.
“No entanto”, ele observa, “aceitar a poesia a transforma em seu contrário, em
mediadora de uma aceitação. Afrouxo a mola que me tensiona contra a natureza, justifico o
mundo dado”404.
Em outras palavras, devemos concluir que a poética de Bataille consiste em uma dupla
violência. Ela rechaça os limites impostos pelo mundo dado (o mundo profano ao qual se
associa a consciência do homem neurótico), mas rechaça igualmente o pensamento que aceita
a linguagem como limite. Sua poética – como já dissemos – estipula assim a equivalência do
“ódio pela poesia” com o desejo pelo impossível. “É vulgar tomarmos como fim o que não
passa claramente de um meio”405 – ele sentencia em As Lágrimas de Eros –, chamando a
atenção para a vulgaridade da percepção que toma a poesia como um fim em si mesma.
Apesar dessa radicalidade, Bataille não ignora que a prudência e a “atenção calma”
sejam atitudes poéticas válidas diante do risco de a experiência interior resvalar para o estado
da completa loucura: “não é evidente? A ameaça constantemente mantida de que a natureza nos
triture, nos reduza ao dado – anule assim o jogo que ela joga mais longe que ela mesma – solicita
em nós a atenção e a astúcia”406.
Pois, ele escreve, “se persevero na colocação em questão do dado, percebendo a miséria
de quem com ele se contenta, não posso suportar por muito tempo a ficção: dela exijo a
realidade, fico louco”407. Por outro lado, “se minto, permaneço no plano da poesia”408. Astúcia
e atenção definem, portanto, a atitude poética como uma vontade de jogo (vontade de chance,
ele a nomeará em Sobre Nietzsche) de permanecer em um constante estado de tensionamento
entre duas posições extremadas. Entre as figuras do louco e do poeta –, uma mola tensionada
mantém o jogo jogado com e contra a natureza.

401
Ibidem, III
402
Ibidem
403
Ibidem
404
Ibidem, II
405
Idem, op. cit., 2015a, p.14
406
Idem, op. cit., 2014, II
407
Ibidem, III
408
Ibidem
173

Se, nesse horizonte, a atitude poética é definida como um empreendimento fracassado,


é porque, aos olhos de Bataille, ela, de maneira consciente, se desloca de sua forma para se
manter atenta ao único valor que, independentemente de um juízo estético, se mantém atual.
Estamos falando do valor da comunicação, no sentido de a poesia ser um vetor que comunica
a possibilidade da experiência interior –, mas um vetor que se afirma enquanto tal e que, para
o escritor, não se confunde, não representa e nem substitui o valor da própria experiência.
É por isso que Bataille insiste nas afirmações de que “comparada a seu fracasso, a poesia
rasteja”409 e que “a poesia é, o que quer que se faça, uma negação de si mesma”410, porque o
contrário disso seria a realização na forma, o momento de parada que consagraria a beleza da
linguagem como um valor superior ao valor da experiência.
Assim, fica estabelecida a noção de um limite impossível, em que o fracasso do
empreendimento é assumido de antemão, em que a poesia assume para si o paradoxo de criar
por meio da perda. E deslocada até esse novo limite, sem poder se realizar em si mesma, “a
força derrubadora da poesia se situará fora dos belos momentos que ela atinge”411. Pois,
conforme escreve Bataille, “a poesia que não se eleva até a impotência da poesia é ainda o vazio
da poesia (a bela poesia)412.
A atitude de astúcia no jogo pode então ser estabelecida pelo poeta: “aproximo-me da
poesia com a intenção de a trair”413, “[...] faço a experiência da noite”414.

***

Quer o desejo conduza alguém a tais extremos ou não – isso é, independentemente da


disposição em se “fazer a experiência da noite” – a necessidade pela poesia se mantém como
um dado da cultura, e isso às expensas da violência política reacionária e das novas formas de
puritanismo religioso que lhe são dirigidas em sentido contrário.
A necessidade pela poesia se mostra capaz de sobreviver inclusive ao rolo compressor
do consumo massificado, do qual poucas coisas com valor realmente autêntico têm encontrado

409
Ibidem, II
410
Ibidem, III
411
Ibidem, II
412
Ibidem
413
Ibidem
414
Ibidem, III
174

forças para se manter. É como se no coração da cultura brotasse a vontade de transgressão, a


necessidade de ser desafiada pelos seus: “queremos, resolutamente o que coloca nossa vida em
perigo, mas não temos sempre a força de querê-lo [...] e por vezes o desejo é impotente”415.
Se faltam força ou meios para que o desejo possa alcançar tais extremos, o impasse do
desejo termina por se resolver pelas vias da leitura: “vivemos por procuração o que não temos
a energia de viver nós mesmos. Trata-se, suportando-o sem demasiada angústia, de gozar do
sentimento de perda ou de estar em perigo que a aventura de um outro nos dá”416.
Por outro lado, se há forças para ir até isso que Bataille chama de as margens do
impossível, então é aí que a necessidade pela poesia se mostra mais urgente. É nesse ponto que
a necessidade de aproximar tanto quanto possível a literatura do Mal aparece mais nitidamente,
pois o que a experiência da noite revela é a urgência de se resgatar uma faceta essencial da
experiência humana que, não obstante a esse estatuto, permanece recalcada por completo na
linguagem ordinária:

[O] homem normal [...] acredita que a violência é eliminável [...]. Esses
extremos são recobertos pelos termos civilização e barbárie – ou selvageria.
Mas o uso dessas palavras, ligado à ideia de que há bárbaros de um lado e
civilizados do outro, é enganador. Com efeito, os civilizados falam, os
bárbaros se calam, e aquele que fala é sempre civilizado. Ou, mais exatamente,
a violência é silenciosa, já que a linguagem é, por definição, a expressão do
homem civilizado. Essa parcialidade da linguagem tem muitas consequências:
não apenas civilizado, a maior parte do tempo, quis dizer ‘nós’, e bárbaro ‘os
outros’, mas civilização e linguagem se constituíram como se a violência fosse
exterior, estranha não apenas à civilização, mas ao próprio homem (o homem
sendo a mesma coisa que a linguagem).417

A esse respeito, Bataille acrescenta ainda que “a linguagem comum se recusa à


expressão da violência, à qual não concede mais que uma existência indevida e culpada”418 e
que, não obstante, “o silêncio não suprime aquilo de que a linguagem não pode ser a
afirmação”419. No eixo de transgressão das formas instituídas, a poesia tem, portanto, a
capacidade de recuperar e de comunicar a essencialidade da dimensão da violência contra a
qual impõe-se, por norma, o recalque e, consequentemente, o silêncio da linguagem.
Se, do ponto de vista da civilização, a violência é assumida como essa dimensão
“indevida” da experiência, então, em seu retorno pela via poética, é também pelo elemento de

415
Idem, O Erotismo. São Paulo: Autêntica Editora, 2013, p.110
416
Ibidem
417
Idem, p.214
418
Ibidem
419
Ibidem
175

estranheza que a violência voltará a se manifestar na linguagem. O que o “estranho”, o


“bárbaro”, nesse caso, reportam – para além do conteúdo daquilo que a cultura não pôde
assimilar – é a força potencialmente capaz de transgredir o recalque e de ir ao encontro da
experiência.
“Se quisermos tirar a linguagem do impasse em que essa dificuldade a faz entrar, é,
portanto, necessário dizer que [...] a humanidade inteira mente assim por omissão e que a
própria linguagem está fundada nessa mentira”420. Em outra passagem, Bataille anotará que,
despida de todo elemento da violência, a linguagem se configurará numa forma canônica
específica e, por assim dizer, deserotizada: “essa linguagem, acredito, é a da filosofia, [que] faz
com que a experiência vivida exuberante – e da morte – seja substituída por um domínio
neutro”421.
Nesse sentido, a linguagem poética pode ser pensada, nos antípodas da expressão
filosófica, como uma forma que recupera o elemento de corrupção das formas, degradando-as
ao ponto de desvelar para cada conceito ou forma supostamente unitária a multiplicidade
inassimilável – à equivalência, em termos de imagem, do inseto kafkiano da não-identidade.
“Mas a filosofia, ao desenvolver-se [...] se opõe à transgressão [...]. Dar à filosofia a
transgressão por fundamento [...] é substituir a linguagem por uma contemplação silenciosa”422.
Retornamos assim ao ponto considerado essencial por Bataille, em relação à atitude poética: a
capacidade de “perfurar o silêncio”.

***

Essas são considerações que nos fazem pensar se acaso não seria mais adequado falar
de uma “antipoética” de Bataille em lugar de uma poética, dado o valor a princípio
essencialmente negativo que ele confere à linguagem em relação à experiência. Afinal, se está
no próprio fundamento da linguagem o recalque à violência e se, no limite, transgredir a
linguagem equivale à substituí-la “por uma contemplação silenciosa”, então não faria melhor a
poesia se ela simplesmente decretasse sua própria morte, se ela deixasse de existir?

420
Ibidem
421
Ibidem, p.290
422
Ibidem, p.301
176

A resposta à indagação acima nos parece que deverá ser estranha: sim, a poesia deveria
decretar a própria morte, cortar de si a própria cabeça. No entanto, no horizonte de Bataille,
iluminado por uma figura tão insólita quanto a de um ânus solar, morrer não significa deixar de
existir. Pelo contrário: é a ferida exposta que estabelece a verdadeira comunicação. Por isso,
propomos a este capítulo – que tem a antipoética batailliana por objeto – que tenha a fenda por
seu significante: a imagem por excelência da ferida exposta que revela, ao mesmo tempo, o
conteúdo violento da intimidade inapreensível de uma experiência interior e a comunicação
com a alteridade.
A fenda figura esse equilíbrio difícil diante do qual a angústia se expressa como único
resultado. Trata-se do equilíbrio entre o que se manifesta violentamente do lado de fora (objetos
impróprios, o informe, o movimento perpétuo) e o conteúdo de uma experiência de
interioridade para a qual não existe linguagem adequada. A passagem da intimidade para a
alteridade se apresenta então como súplica, como clamor sem resposta.
Como o significante, a fenda é o informe dessa passagem, ferida na qual interior e
exterior aparecem entrelaçados. Diante da fenda, a violência se manifesta nesses dois sentidos
simultaneamente. “O tumulto é fundamental – é o sentido desse livro. Mas é tempo de chegar
à clareza da consciência”423, Bataille escreve na introdução de A literatura e o Mal. A
necessidade por um significante que dê conta do paradoxo é a necessidade por dar forma a essas
duas facetas aparentemente contraditórias – o tumulto e a clareza de consciência –, desdobradas
no informe que é a poesia.
O esforço de Bataille – muito próximo ao de Freud – é, portanto, o de jamais negar o
valor daquilo que se encontra recalcado. E, também análogo a Freud, reconhecer que o interdito
– ainda que seja um recurso necessário à estruturação da consciência – é um obstáculo,
precisamente, à saúde, às possiblidades dessa consciência. “Ligada à consciência, medimos a
inevitável decadência... No entanto, não é menos verdadeiro este princípio: não podemos fazer
diferença entre o humano e a consciência... O que não é consciente não é humano”, ele observa
em As Lágrimas de Eros424.
E, nesse mesmo sentido, ele tece observações importantes a respeito do valor da
linguagem, em O Erotismo. São observações que muito esclarecem o pensamento que embasa
uma poética em que a linguagem não desapareceu de modo algum. “O ápice seria acessível se
o discurso não tivesse revelado os acessos a ele? Mas a linguagem que o descreveu não tem

423
Idem, op. cit., 1989, p.9
424
Idem, op. cit., 2015a, p.117-118
177

mais o sentido no instante decisivo, quando a própria transgressão substitui a exposição


discursiva da transgressão”.425 “Que seríamos nós sem a linguagem? Ela fez de nós o que
somos. Só ela revela, no limite, o momento soberano em que não temos mais curso. [...] A
linguagem não é dada independentemente do jogo do interdito e da transgressão”.426
Bataille pensa, portanto, a literatura e, mais especificamente, a sua poesia como a
expressão do jogo do interdito (o recalque em relação à violência, que define a linguagem) com
a transgressão (a experiência daquilo que está situado além da linguagem), como o momento
do ápice em que o interdito revela à transgressão o conteúdo daquilo que deve ser transgredido
e, inversamente, a transgressão corrompe a forma estável do significante e de seus significados.
É nesse momento e por esse movimento que a poesia – em sua essencialidade – de fato
se aproxima do valor da experiência: “o ápice do ser só se revela em sua totalidade no
movimento da transgressão, em que o pensamento fundado, pelo trabalho, no desenvolvimento
da consciência, supera por fim o trabalho, sabendo que não pode se subordinar a ele”427. “Nesse
momento de profundo silêncio – nesse momento de morte – se revela a unidade do ser”428,
conjugam-se interdito e transgressão.

4.2 Madame Edwarda: objeto de “despossessão”

Em sua essência, a literatura – conforme a escreveu e pensou Bataille – leva o jogo da


transgressão com o interdito ao ponto máximo de tensão. É natural que esse jogo seja traduzido
como um jogo erótico, sobretudo porque é nos domínios da sensualidade e da morte que a
consciência se depara de maneira mais veemente com o limite daquilo que ela pode conceber,
ao passo que, inversamente, são esses os domínios que transtornam a consciência.
A existência de tal limite à consciência não significa que nesses domínios imponha-se
uma limitação também ao desejo. Pelo contrário: diante das dificuldades impostas pelo não-
saber que o desejo é provocado com ainda mais força a transgredir os muros da interdição. Nos
domínios do não-saber se apresenta nitidamente o paradoxo da condição humana, o de desejar
com mais força o objeto em relação ao qual só muito dificilmente se pode falar.

425
Idem., op. cit., 2013, p.301
426
Ibidem, p.302
427
Ibidem
428
Ibidem, p.301
178

Talvez seja o fato de funcionar como um registro tão explicito dessa lógica – de que o
desejo começa onde termina a linguagem – o motivo que levou Blanchot a considerar Madame
Edwarda como sendo “a mais bela narrativa de nosso tempo”, “cujo poder de verdade é
incomparável”429. É que Bataille recupera, por meio dessa narrativa, essa essencialidade que,
para ele, é constitutiva do jogo literário.
Muitas das considerações que tece na redação de O Nascimento da Arte (1955), ele já
as havia apresentado poeticamente em Madame Edwarda (1945). Este relato, por exemplo –
testemunho da misteriosa figura humana que aparece pintada no poço da caverna de Lascaux430
–, funciona perfeitamente bem para a compreensão do jogo que Bataille havia escrito
anteriormente em sua narrativa:

Nesta reentrância pouco acessível se desvenda – ainda que obscuramente –


este drama há tantos milênios esquecido: ressurge mas não sai mais da
obscuridade. Desvenda-se e, não obstante, encobre-se. No mesmo instante em
que se desvenda, encobre-se... Uma concordância paradoxal se manifesta,
porém, nesta profundidade fechada, concordância com peso tanto maior por
se confessar na escuridão inacessível. Esta concordância, essencial e
paradoxal, é da morte com o erotismo. Uma verdade que nunca deixou, sem
dúvida, de se manifestar. E que ao manifestar-se não deixa, no entanto, de
estar escondida. É esta a índole, quer da morte, quer do erotismo.431

Sendo o significante da narrativa precisamente a fenda de Edwarda, somos remetidos a


todo tempo ao movimento erótico, nessa literatura, de uma “profundidade fechada”, de uma
“escuridão inacessível” que se encobre “no mesmo instante em que se desvenda”. Assim, se
invertemos a temporalidade desses dois escritos e propormos a personagem de Edwarda como
uma espécie de paródia da pintura do homem-pássaro de Lascaux, percebemos que a narrativa
tem o sentido muito claro de sustentar a tese de que o objeto do erotismo é a morte, e que o que
a poesia daquelas paredes comunica é a confusão do tema religioso com o tema sexual, que está
na origem mesma do fato humano.
Esse seria, aos olhos de Bataille, o saber essencial sustentado pela atividade literária,
conforme ele escreve no prefácio de Madame Edwarda: “não sabemos nada e estamos no fundo
da noite. Mas, pelo menos, podemos ver o que nos engana, aquilo que nos afasta do
conhecimento da nossa angústia [...] que a alegria é a mesma coisa que a dor, a mesma coisa

429
BLANCHOT, op. cit., 2007, p.183
430
Ver APÊNDICE 6
431
BATAILLE, op. cit., 2015b, p.50
179

que a morte”432. Um pouco mais adiante, ele apresenta esse mesmo saber sob outros termos:
“só alcançamos o êxtase na perspectiva – mesmo que longínqua – da morte, daquilo que nos
destrói”433. Esse é, aliás, o destino das duas personagens principais da narrativa: tanto o narrador
quanto Edwarda serão apresentados à morte quando confrontados pelos objetos que os
transtornam.
Em relação ao narrador-personagem da novela, é seguro defini-lo como um alguém
inclinado ao comportamento transgressivo, quando diante da interdição: “A solidão e a
obscuridade completaram minha embriaguez. A noite estava nua nas ruas desertas e eu quis
desnudar-me com ela [...]” 434
; “Atravessei; minha angústia dizia-me para parar, mas
prossegui”435. “O único, entre todos os homens, a ultrapassar o nada deste arco!”436.
Mais complexa, a relação que o narrador estabelece com Edwarda parece ser de natureza
objetal. No entanto, trata-se de um estranho objeto. A cada movimento dirigido a Edwarda, ela
responde como um objeto que não apenas afirma a posse impossível (a impossibilidade do
fetiche, de parada no movimento), mas, estranhamente provoca nele o que poderíamos chamar
de um efeito de despossessão.
Assim segue a cena em que o narrador-personagem beija Edwarda pela primeira vez:

Eu me vi suspenso num voo de anjos que não tinham nem corpo, nem cabeça,
num revoar de asas, mas era simples: senti-me infeliz e abandonado, tal como
nos sentimos na presença de DEUS. Era algo pior e mais louco do que a
embriaguez. E, no começo, entristeci com a ideia de que essa grandeza que
caía sobre mim estava me roubando os prazeres que pretendia desfrutar com
Edwarda437.

Não seria exagero, portanto, considerar que, aos olhos do narrador, Edwarda é uma
espécie de objeto impróprio, um objeto-limite que estabelece a passagem do mundo profano
para o mundo sagrado. Também não seria exagero concluir que Bataille quis que esse objeto
tivesse a força do que ele entendia como sendo a natureza da experiência poética, e a literatura
como um objeto diante do qual, espera-se, a existência individual do sujeito pudesse ser

432
Idem. Madame Edwarda, O Morto, História do Olho. Trad. Glória Correia Ramos. São Paulo: Editora e
Livraria Escrita, 1981, p.10
433
Ibidem, p.11
434
Ibidem, p.81
435
Ibidem, p.87
436
Ibidem
437
Ibidem, p.82
180

colocada em questão em proveito da descoberta do “voo de anjos” “sem corpo nem cabeça”,
que constitui a experiência interior.
A qualidade de provocar esse efeito de comunicação, de “despossessão” do sujeito, está
evidentemente ligada aos pontos de fissura desse mesmo objeto, aos pontos de ferida ou de
fenda nos quais a própria identidade é colocada em questão, já que é nesses pontos em que o
objeto deixa de ser idêntico a si mesmo que a angústia – ou, nos casos limite, o horror – leva à
perda de si daquele que lê ou daquele que assiste ao espetáculo:

Assim, os “trapos” de Edwarda olhavam para mim, peludos e rosados, cheios


de vida como um polvo repugnante. Balbuciei docemente: - Por que está
fazendo isso? – Veja, disse ela, eu sou DEUS... – Eu sou louco .... – Não, você
tem de olhar, olhe! Sua voz rouca ficou macia, tornou-se quase infantil para
me dizer com languidez, com o sorriso infinito do abandono: “Como eu
gozei!” 438

É muito claro que o narrador é passivo na história, ou melhor, ele é reativo, ela apenas
reage à experiência de perda de identidade de sua amante. Nesse sentido podemos dizer que, na
posição reativa-passiva, a experiência do narrador é apenas literária, ou seja, um reflexo indireto
do objeto sobre o qual ele pretende ter posse, mas que, para sua infelicidade, revela-se de posse
impossível. O narrador da história é uma espécie de leitor que tem em Edwarda o seu livro, o
seu objeto literário.
Em um dos poemas que escreveu, Bataille apresenta uma relação muito próxima a essa
do narrador com Edwarda: “Eu tenho frio no coração eu tremo/ do fundo da dor eu te chamo/
com um grito inumano/ como se eu parisse// tu me estrangulas como a morte/ eu sei disso
miseravelmente/ eu só te encontro agonizando/ tu és bela como a morte// todas as palavras me
estrangulam”.439
A experiência de Edwarda, em contrapartida, é de outra ordem: ela é poesia. Pode-se
dizer que essa experiência também tem um objeto impróprio (visto que a experiência só é
concebível por ela se dar em relação a alguma coisa), mas é preciso notar que esse objeto, na
verdade, é ausência absoluta de objeto. A rigor não é possível nomeá-lo de “vazio”, porque, se
assim for, deve-se considerar como sendo o vazio deixado pela destruição de todos os objetos,
isso é, pela operação da morte.

438
Ibidem
439
Idem. Poemas. Org. e trad. Alexandre Rodrigues da Costa, Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2015c, p.161
181

Conforme um dos poemas escritos por Bataille e que poderia ser transposto para a
relação de Edwarda com seu objeto impróprio: “Minha irmã risonha tu és a morte/ coração
desfalecido tu és a morte/ nos meus braços tu és a morte// nós bebemos tu és a morte/ como o
vento tu és a morte/ como o raio a morte// a morte ri a morte é a alegria”440.
A experiência de Edwarda com o objeto que a consome é descrita nestas passagens da
novela: “[ela] estava suspensa numa espécie de ausência, muito além dos risos possíveis. Já não
conseguia vê-la: uma escuridão mortal caía das abóbadas. Sem ter pensado nisso um instante
sequer, eu ‘sabia’ que estava começando um tempo de agonia.”441. “[...] Seu sofrimento não era
passível de ser comunicado e eu deixei-me absorver por essa ausência de saída”442.
“Desesperado, mostrei-lhe o céu vazio sobre nós. Ela olhou: durante um instante permaneceu
imóvel, sob a máscara, com os olhos perdidos nos campos de estrelas”443. “[...] – nessa noite do
coração que não era nem menos deserta nem menos hostil que o céu vazio”444. “Eu aceitava,
desejava sofrer, ir mais longe, avançar até a essência do ‘vazio’, mesmo correndo o risco de ser
abatido. Eu conhecia, queria conhecer o seu segredo e, na minha avidez, não duvidei um único
instante de que a morte a possuía. [...]”445.
Edwarda não contempla passivamente a noite: ela a encarna. Ela se torna a própria fenda
que constitui a passagem de uma experiência interior para a alteridade da morte. Do mesmo
modo, ela aparece preenchida pela ausência que constitui o vazio do céu. Possuída pela morte,
a experiência de Edwarda se define, portanto, como a mais radical perda de si. E o que a
personagem experimenta – a indistinção entre o fora e o dentro, o esfacelamento da relação
sujeito-objeto – não é diferente do que aquilo que Bataille entende como sendo a poesia: a
criação por meio da perda, a que, por convenção, chamamos de loucura.
A vontade de Edwarda se sustenta, portanto, na própria impossibilidade de se ‘ter’ uma
vontade, já que nesse ponto ela é menos uma pessoa do que uma fenda pela qual ela se expõe
em seu ponto máximo de nudez, uma ferida escancarada contra a qual o “sujeito Edwarda” está
indefeso e na qual tudo que acontece é a comunicação incessante. “A noite estrelada é a mesa
de jogo sobre a qual o ser se joga”, escreve Bataille em A vontade do impossível446, “lançado

440
Ibidem, p.85
441
Ibidem, p.87
442
Ibidem, p.89
443
Ibidem, p.88
444
Ibidem, p.89
445
Ibidem
446
Idem, op. cit., 2014, I
182

através desse campo de efêmeros possíveis, caio lá de cima, desamparado, como um inseto de
costas. [...] Jogando-me, a natureza me relança para além dela mesma...”
Sem dúvida, podemos dizer que, por caminhos torpes, a experiência de Edwarda
equivale à a experiência das místicas, a ponto que, em determinada passagem, ela afirma “ser
Deus”. A perda da relação de objeto quer dizer, em primeiro lugar, a perda de referência no
mundo real, o deixar-se penetrar por tudo, a indistinção entre o dentro e o fora, a loucura. “O
que é sempre reencontrado nesse movimento de ruptura e de morte é a embriaguez do ser. O
ser isolado se perde em outra coisa que não ele. Pouco importa a representação dada da ‘outra
coisa’. É sempre uma realidade que ultrapassa os limites comuns”447, escreve Bataille em A
literatura e o Mal.
Mas, em segundo lugar, a experiência mística denota a própria perda da referência do
“em si”, traduzido por um estado de arrebatamento em que nem mesmo a própria subjetividade
pode ser objetificada. “[...] a paixão mística obriga o homem, em troca de uma vida divina, a
morrer para si mesmo. [...] A mística [...] não pode estar ligada à conservação da vida, ela exige
seu desabrochar. [...] Pois já foi dito que devíamos morrer a fim de viver...”448 Quanto a essa
experiência, pode-se dizer que ela é tão profundamente ilimitada que antes de tudo não é uma
coisa; é nada. ‘Deus é nada’”449.
Nesse ponto, é possível concluir que o desabrochar se confunde, então, com o próprio
ato de criação. Edwarda afirma ser Deus, ao que o narrador acede. O problema da palavra ‘nada’
que Bataille utiliza para definir Deus é que ela pode se conformar a uma confusão fácil. ‘Nada’
não quer dizer ‘vazio’, mas sim o estado mais oposto possível do que se entende como ‘coisa’:
é o luxo, portanto.
Se Edwarda é Deus é porque não apenas deixou de ver o mundo enquanto ‘coisa’, mas
sobretudo porque, tendo tomado a morte como seu objeto de desejo, ela abandonava a
representação que fazia de si mesma enquanto ‘coisa’. Assim, se desligando do mundo e da
cultura, num primeiro momento Edwarda é assassina de Deus. Num segundo, ela se faz Deus e
se torna poesia.

***

447
Idem, op. cit., 1989 p.23
448
Idem, op. cit., 2013, p.256
449
Idem, op. cit., 1989, p.23
183

Quanto ao envolvimento amoroso do narrador com Edwarda, perguntamo-nos se esse


deveria ser considerado um roteiro para as histórias de amor ou se seria o caso – talvez o
exemplo mais exacerbado – do que poderíamos considerar como sendo o não-amor. Essa
pergunta pode parecer trivial, mas, na medida em que a personagem principal da narrativa se
apresenta como uma espécie de significante para a poesia tal qual Bataille a concebeu, tentar
respondê-la equivale ao esforço de tentar dizer se, para o escritor, a poesia sustenta algum valor
ou se se trata apenas da transposição de nossas necessidades e afetos para o campo da linguagem
em ato de elevação (de sublimação).
Em um de seus poemas, Bataille escreve

o não-amor é a verdade/ e tudo mente na ausência de amor/ nada existe que


não minta// comparado ao não-amor/ o amor é covarde/ e não ama// o amor é
paródia do não-amor/ a verdade paródia da mentira/ o universo um alegre
suicídio// no não-amor/ a imensidade cai em si mesma/ não sabendo o que
fazer450

O paradoxo que se apresenta pela confrontação dos dois primeiros versos desse poema é
revelador das dificuldades da nossa condição. Pois a necessidade do reconforto e do
acolhimento, tão essencial à parte animal do humano, no fundo não é diferente da necessidade
que temos da língua materna. Sem essa estrutura básica que define a transmissão do cuidado, a
partilha do comum, é evidente – não poderia haver o fato humano.
Mas em algum momento a vontade de transtornar o acolhimento surge com um apelo
quase irresistível, confundindo-se com a própria busca pela verdade. É como se o “saber-se
desamparado” equivalesse a saber algo profundamente verdadeiro. Isso não chega a ser
surpreendente, já que a condição de desamparo equivale a despir-se da cultura e estar exposto
aos perigos da natureza. Tal sentimento de nudez ecoa, conforme analisamos no capítulo
anterior, a experiência da morte. A poesia que recusa o serviço à língua materna volta, em certo
sentido, a esse lugar em que criação e destruição se conformam como um único elemento.
Em uma das passagens de A Comunidade Inconfessável, Blanchot questiona “de onde
poderia sobrevir o sentimento de amar?”. E, como de praxe, a resposta que ele dá a essa
pergunta não poderia ser mais paradoxal:

“De tudo... da aproximação da morte...”. Assim retorna a duplicidade da


palavra morte, dessa doença da morte que designaria ora o amor impedido,

450
Idem, op. cit., 2015a, p.33
184

ora o puro movimento de amar, um e outro chamando o abismo, a noite negra


que o vazio vertiginoso “das pernas afastadas” descobre (como não imaginar
aqui Madame Edwarda?).451

Conclusão que em sua admirável densidade diz talvez, não o fracasso do amor
num caso singular, mas o cumprimento de todo amor verdadeiro que seria de
só se realizar sobre o modo da perda, se realizar sobre o único modo da perda,
quer dizer, de se realizar perdendo não aquilo que vos pertenceu, mas aquilo
que jamais se teve [...].452

Portanto, o cumprimento disso que Blanchot denomina de “todo amor verdadeiro”


poderíamos chamar de a experiência do não-amor, como o sentimento reverso à posse que
determina a ligação com “aquilo que jamais se teve”. Se a morte determina, no caso do amor,
a experiência de luto em relação ao objeto para sempre perdido, no caso do não-amor, o que se
determina é a experiência – bastante distinta da melancolia – de uma radical abertura, que é o
sentimento da infinita disponibilidade.
Em A Literatura e o Mal, Bataille atribui a essa revelação o valor de um conhecimento
angustiado: “este conhecimento que não liga o amor somente à clareza, mas à violência e à
morte — porque a morte aparentemente é a verdade do amor. Assim como o amor é a verdade
da morte”453. No mesmo sentido, ele estabelece à “verdade do amor” a equivalência com o
sentimento erótico, o sentimento, conforme lembrado por Blanchot, que contamina o narrador
quando confrontado pelo ‘nada’ ou pelo ‘abismo’ exposto pelas “pernas afastadas” de Edwarda.
A esse respeito, Bataille escreve ainda que “o que o ato de amor e o sacrifício revelam
é a carne. [...]. A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência. [...] a carne é a
expressão de um retorno dessa liberdade ameaçadora”454 – desse luxo convulsivo das flores,
acrescentaríamos.
Nesse sentido, no paralelo estabelecido entre Edwarda e o signo poético, nos
perguntamos se a poesia, como a experiência erótica, como a experiência do não-amor, não
estaria muito mais relacionada a essa “verdade da carne” – a esse “conhecimento angustiado”
que não necessariamente nos conecta a alguma objeto, mas que simplesmente afirma nossa
disponibilidade a essa conexão (o caráter puramente pulsional de uma comunidade
inconfessável) – do que a uma necessidade espiritual em direção às repostas, ao reconforto, à
busca pela completude.

451
BLANCHOT. op. cit., 2013, p.58
452
Ibidem, p.59
453
BATAILLE, op. cit., 1989, p.12
454
Idem, op. cit., 2013, p.116
185

Segundo Bataille, nessa sustentação a que ele se propõe pensar a verdade erótica da
carne como uma forma de conhecimento, “o objeto dessa busca psicológica [...] não é tão
estranho à morte”455. Lembremo-nos que, em As Lágrimas de Eros, ele afirma que “a pureza
do amor é reencontrada em sua verdade íntima, que, eu já o disse, é a morte”456.
Em O Erotismo, a aproximação entre o não-amor, ou a atividade erótica, e o
conhecimento da morte aparece justificada em diversas passagens: “o movimento do amor,
levado ao extremo, é um movimento de morte”457. “O erotismo se deve ao conhecimento da
morte que [...] associa no espírito do homem a ruptura da descontinuidade”458.

Toda a operação do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no
ponto em que o coração desfalece. A passagem do estado normal ao de desejo
erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem
descontínua. Esse termo, dissolução, corresponde à expressão familiar vida
dissoluta, ligada à atividade erótica [...] destruição da estrutura do ser
fechado459.

Dois indivíduos, “sob o império da violência, associados pelos reflexos ordenados da


conexão sexual, partilham um estado de crise em que um e outro estão fora de si. Os dois seres
estão ao mesmo tempo abertos à continuidade”460. E novamente, em As Lágrimas de Eros,
Bataille voltará ao tema da “despossessão”, dessa propriedade ou desse efeito de contaminação
também do poético de ser a passagem do não-saber por entre dois significantes e de diluir,
enfim, as fronteiras da subjetividade em relação a seus objetos:

O fundamento da efusão sexual é a negação do isolamento do eu, que só


conhece o desfalecimento ao se exceder, ao se ultrapassar no abraço em que a
solidão do ser se perde. Quer se trate do erotismo puro (do amor-paixão) ou
de sensualidade de corpos, a intensidade é maior na medida em que a
destruição, a morte do ser transparecem.461

Nesses limites, mais do que a afirmação de determinado valor, a concepção que Bataille
tem de poesia aproxima-a de um objeto, mas um objeto feito à imagem não do espírito, mas da

455
Ibidem, p.33
456
Idem, op. cit., 2015a, p.21
457
Idem, op. cit., 2013, p.65
458
Ibidem, p.128
459
Ibidem, p.41
460
Ibidem, p.128
461
Idem, op. cit.,2015, p.12-13
186

carne: “como a verdade de uma flecha: é sabido que ela penetra no coração, porém junto com
a morte”462.
Fora dos limites da linguagem comum, e mesmo da linguagem filosófica, uma das
particularidades da experiência poética é precisamente essa capacidade de dobrar-se sobre a
noite e encarnar a morte, tal como aquilo que o narrador nos diz a respeito de Edwarda: “[...]
inteiramente negra, simples, angustiante como um buraco: compreendi que não estava rindo e
até, mais exatamente, que, sob as vestes que a escondiam, estava agora ausente. A sua presença
tinha a simplicidade ininteligível de uma pedra”463.
E, na qualidade de um objeto sagrado, de um objeto que se oferece ao sacrifício, a poesia
exerce a capacidade daquilo que Bataille denomina de comunicação, mas que poderíamos
chamar, sem prejuízo, de um efeito de contaminação: “as contorções de Edwarda expulsaram-
me para fora de mim mesmo, jogando-me impiedosamente num além sombrio, tal como se
entrega um condenado ao carrasco”464.
Mas eis que a experiência poética faz o seu retorno da noite para o dia, e se torna
novamente um objeto do espírito e da cultura. Ao se assumir na condição de objeto de
linguagem, ela se torna novamente assimilável, passível de ser lida fora da experiência da
angústia que a originou, como algo da ordem do sublime – ela se torna então literatura: “Soube
então – a minha embriaguez já se dissipara – que Ela não tinha mentido, Ela [Edwarda] era
DEUS”465.

***

Seria precipitado concluir que é vão o movimento da poesia que parte da morte de Deus
e culmina no eterno retorno dessa figura divina. Mesmo que ao término desse movimento, a
poesia, já sob a forma literária, esteja condenada a reestabelecer o interdito que nos separa da
natureza, ao ver-se confundida com o aspecto sublime da atividade humana, tal círculo só
poderia ser visto como vicioso de determinado ponto de vista.

462
Idem, op. cit., 1981, p.91
463
Ibidem, p.87
464
Ibidem, p.91
465
Ibidem, p.87
187

Pois é preciso considerar que a própria linguagem se deslocou nesse movimento e que,
ao fazê-lo, alargou os limites do que até então se entendia como o possível, já que, nesse retorno
da poesia à cultura, ela carrega consigo ao menos uma parte da pulsão do impossível que a
engendrou. É preciso considerar também a capacidade de comunicação ou de contaminação do
objeto poético-literário, isto é, que mesmo sob a mais convencional forma-livro ou sob a forma-
poema, trata-se de um objeto análogo aos que, em outros tempos, eram oferecidos ao sacrifício
e banhavam em êxtase aqueles diante dos quais seu espetáculo se apresentava.
“O interdito, o tabu, só em certo sentido se opõe ao divino”, escreve Bataille em O
Erotismo, “mas o divino é o aspecto fascinante do interdito: é o interdito transfigurado”466.
Com efeito, a questão do eterno retorno de Deus é uma que aparece com certo destaque tanto
no prefácio quanto de maneira mais ou menos explícita da narrativa de Madame Edwarda. Mas
Bataille não a apresenta melancolicamente. Nem se trata para ele de uma problemática que o
teria feito enlouquecer, tal como aconteceu a Nietzsche, ao ter se dado conta dessa dimensão
irresolvível do jogo humano com o sagrado.
Trata-se tão somente da conclusão de que a experiência com o sagrado sofre uma
colossal perda ou esvaziamento quando retorna à forma humana da linguagem. Bataille
compreendeu que a relação eternamente cíclica do interdito com a transgressão estava na
própria gênese do erotismo (que ele concebeu como sendo um jogo, a vontade de chance), e
compreendeu que essa revelação – ao refutar a loucura como destino e ao afirmar o valor
fundamental da consciência – só poderia condenar aquele que a conhecia ao riso, às lágrimas
ou – no melhor dos casos – novamente ao desejo erótico pela poesia.

É justamente desse lado que se ordena a relação última – e mais significativa


– da sexualidade e da mística. [...] desejo de morrer para si mesmo [...] uma
perpétua mudança de cenário, em que cada elemento se transforma em seu
contrário [...] a relação entre si de todas as possibilidades opostas.467

Em outra passagem desse mesmo texto, ele afirma que “a vida divina exige que morra
aquele que quer encontrá-la. Mas ninguém pensa numa morte que seria passivamente ausência
de vida”468. O contrário da passividade, nesse caso, seria precisamente o movimento, que parte
da mais radical pulsão endereçada ao impossível, aos limites do que a cultura nos permite
acessar como sendo da ordem do concebível.

466
Idem, op. cit., 2013a, p.92
467
Ibidem, p.257
468
Ibidem, p.261
188

A poesia, nesses termos, não se confunde com a afirmação de nenhum valor instituído,
nem com a sustentação das coisas que existem, já que ela é a pura atividade, o puro movimento
sem parada de destruição (da relação sujeito-objeto) e de sustentação (ainda que efêmera) das
possibilidades do sagrado. Nesse movimento, ela “nos terrifica na medida em que não deixa
nenhum lugar para o ser limitado, que julga o mundo por meio de cálculos que remete a si
mesmo”469.
Na qualidade desse movimento, a poesia não é nem o interdito, nem a transgressão: mas
a passagem de um estado a outro a que Bataille atribui o valor divino de uma experiência
mística, conforme esta significativa passagem que aparece no prefácio de Madame Edwarda:

No término desta reflexão patética, que num grito se anula a si mesma, na


medida em que se afunda em sua própria intolerância, reencontramos Deus. É
o sentido, é a enormidade deste livro insensato: esta narrativa põe em jogo
Deus, na plenitude de seus atributos; e esse Deus, todavia, é uma mulher da
vida, em tudo semelhante às outras. Porém o que o misticismo não pôde dizer
(no momento de dizê-lo, desfalecia), o erotismo afirma-o: Deus não é nada se
não for um ultrapassar de Deus em todos os sentidos; no sentido do ser vulgar,
no sentido do horror e da impureza e, finalmente, no sentido de nada... [...]
Qualquer um que suspeite disso, por menor que seja a suspeita, cala-se
imediatamente. Ou, procurando uma saída, e sabendo que está se afundando,
procura nele aquilo que, podendo aniquilá-lo, o torna semelhante a nada.470

E, novamente, na afirmação da experiência do “verdadeiro amor”, ou do não-amor como aquela


em que alguém se endereça não à posse, mas à “perda ilimitada”, ele escreve também nesse
prefácio que

[...] na escala da perda ilimitada, reencontraremos o triunfo do ser – que nunca


deixou de aderir ao movimento que o quer perecível. O ser convida-se a si
próprio para a terrível dança, [...] o ser aberto à morte, ao suplício e à alegria
sem reservas, o ser aberto e moribundo, doloroso e feliz, já aparece em sua
luminosidade velada: essa luz é divina. [...]. E o grito, que esse ser de boca
torcida deforma talvez, mas profere, é uma imensa aleluia perdida, num
silêncio sem fim.471.

A exata compreensão do que Bataille entendeu como sendo o movimento constitutivo


da poesia iria requerer que, na passagem acima, substituíssemos cada ocorrência da palavra
‘ser’ pela palavra ‘poesia’. — Na escala da perda ilimitada, reencontraremos o triunfo da poesia
– que nunca deixou de aderir ao movimento que a quer perecível. A poesia convida-se a si

469
Ibidem
470
Idem, op. cit., 1981, p.12
471
Ibidem, p.13-14
189

própria para a terrível dança, [...] aberta à morte, ao suplício e à alegria sem reservas, a poesia
aberta e moribunda, dolorosa e feliz, já aparece em sua luminosidade velada: essa luz é divina.
[...]. E o grito, que essa poesia de boca torcida deforma talvez, mas profere, é uma imensa
aleluia perdida, num silêncio sem fim —.

4.3 A Fenda

Em O Nascimento da Arte, Bataille se volta para a pré-história para rediscutir a questão


do diferencial do sapiens em relação às outras espécies humanas que nos foram anteriores e
contemporâneas. Para isso ele retoma o saber antropológico para esclarecer que esse diferencial
não tem a ver com a capacidade peculiar de fabricar objetos ou com o sentimento que leva os
indivíduos a sepultar os mortos. Outras espécies humanas, extintas pelo caminho, já possuíam
essas habilidades que inauguravam o mundo do trabalho e da cultura.
Esse texto dá então especial destaque ao erro que procura associar o fato humano ao
trabalho para lançar mão de uma hipótese original. Como pesquisador, Bataille se debruça
pessoalmente sobre as pinturas da caverna de Lascaux, que, devido à qualidade da arte que ali
se apresenta, já foi chamada de “capela Sistina da era primitiva”. Diante da presença estranha
e misteriosa dos desenhos milenares nas paredes, ele observa que a análise dessas obras é tão
importante porque:

[...] determinar o sentido de Lascaux, quero dizer da época em que Lascaux é


o começo, significa apercebermo-nos da passagem do mundo do trabalho ao
mundo do recreio é, ao mesmo tempo, a passagem do homo faber ao homo
sapiens, fisicamente desde o esboço ao ser consumado.472

A passagem do mundo do trabalho ao mundo do recreio expresso nas pinturas de


Lascaux, segundo Bataille, evidencia que o ser humano, enquanto tal, nasce ao mesmo tempo
que a arte. De fato, o aparecimento homo sapiens data de um período bastante anterior ao dessas
pinturas, no entanto, há uma coincidência temporal da arte pré-histórica com o apogeu da
chamada revolução cognitiva, que resultou no triunfo do sapiens não apenas sobre as demais
espécies humanas, mas sobre toda a terra.
Bataille defende a tese de que, naquele período, a humanidade primitiva teria
experimentado uma espécie de Éden, que o nascimento da arte espelha, portanto, o processo de

472
Idem, op. cit., 2015b, p.38
190

tomada de consciência de nossa espécie em relação ao sentimento de excesso. A arte, segundo


o escritor, guarda desde então a estreita relação com a noção do infinito, com a noção do
universo que começava e que se abria, aos olhos do sapiens, como coisa inteiramente a seu
dispor.
As pinturas de Lascaux emocionam porque são a manifestação da primeira espécie
animal que não apenas gozava de capacidades simbólicas, mas que pôde dar vazão a essa
capacidade através de formas exuberantes. Por outro lado, essas figuras também provocam o
sentimento do unheimliche freudiano, a atualidade de uma presença ligada ao forte sentimento
daquilo que ainda é. Isso porque o que esses primeiros símbolos expressam é o abrir dos olhos
humano, o nascimento da consciência que, estranha e familiarmente, estava prenhe do excesso
do não-saber.
Em sua origem, a linguagem estava indissociavelmente ligada à manifestação do
excesso, sendo o oposto do que se poderia conceber como uma linguagem utilitária, para fins
de sobrevivência. Tampouco essa relação com a abundância permite que haja confusão entre a
arte primeira e a linguagem que atua com fins de recalque e interdição, como foi possivelmente
o caso de a linguagem rudimentar das outras espécies humanas extintas e que não produziram
obras artísticas – ao menos nada remotamente próximo às sofisticadas pinturas de Lascaux.
Nossa primeira linguagem foi, portanto, poesia. A hipótese forte de Bataille mostra,
além disso, que a poesia é anterior à história, anterior à cultura, portanto.
O fato de a linguagem humana ser poética em sua origem é, ao que tudo indica, o traço
diferencial de nossa espécie. O rasgo no tecido dos significantes e a escrita do não-saber devem
ter se configurado como o elemento que garantiu a sobrevivência do sapiens através da
disponibilidade que lhe assegurava em jogar com o sonho e com o desconhecido.
O que também aparece por essas conclusões é a relação da primeira linguagem com a
dimensão do sagrado, e não com a objetividade descritiva associada ao mundo profano do
trabalho, como é de costume se acreditar. A poesia, a sexualidade e a morte – que em comum
guardam o laço junto ao sentimento de excesso – não encontram precedentes no reino animal,
e, pelos registros de Lascaux, é provável que tenham sido experimentadas nesses inícios da
humanidade como formas de uma profusão trágica.

Mas a morte só pôde – e deve, sem dúvida, tê-lo feito – trazer com ela um
elemento negativo; esta espécie de fenda imensa que não parou de abrir-nos a
outras possibilidades, além da atuação eficaz: na aparência, estas
possibilidades permaneceram inexploradas até surgir este homem com
“pescoço de cisne” que foi o aurignaciano. Ao que parece, a humanidade
191

anterior limitava-se a traduzir em interdito o sentimento que a morte lhe


inspirava473.

Segundo Bataille, a humanidade do aurignaciano não teve da morte o sentimento de


interdição que tão dramaticamente silenciou as demais espécies humanas. Ao contrário, o que
a morte desvelava, aos olhos desses primeiros homens anteriores às noções de tabu e de
interdito, era o estranho processo cujo signo é a fenda: a deformação do corpo, traduzida, no
limite, como a passagem de um estado a outro e que comunica a possibilidade do êxtase.
É esse o mistério que, segundo Bataille, entrelaça a singular figura do homem-pássaro
que aparece numa reentrância praticamente inacessível da caverna de Lascaux. Nessa figura do
poço da caverna o que se apresenta é o êxtase sexual de uma figura xamânica. Esse êxtase, ao
que tudo indica, é provocado pela fenda mortal, pela ferida aberta em um bisonte que agoniza.
Para Bataille, essa figura seria a expressão do sentido profundo da noção de sacrifício, bem
como o de sua relação com o êxtase.
A interpretação que o escritor deu à cena pode ser assim resumida – uma fenda: e o
significante rasgado abre-se à convulsão da morte provocando, naquele que o lê, convulsões de
natureza sexual. O que estabelece a comunicação entre o animal ferido e o animal que goza –
isso é, entre a morte e a sexualidade – é a fenda que projeta ambos em direção ao excesso do
não-saber.
Se dirigimos nosso olhar a um período ainda mais remoto que Lascaux, encontramos a
figura igualmente misteriosa da Vênus de Hohle Fels474. Essa pequena escultura acefálica,
considerada por muitos estudiosos como sendo uma das primeiras representações figurativas
da história das artes, ostenta seios exageradamente fartos e uma exuberante fenda, e assim
também coloca em cena o excesso e a vocação para o impossível que se apresentam como
fundamentos do caso humano.
Trata-se de uma figura marcada a tal pelo excesso que chega mesmo a se aproximar do
monstruoso. E seria difícil não concluir que essa figura não despertasse também o sentimento
de monstruoso transbordamento àqueles aos quais se apresentava. “Não existe”, escreve
Bataille, “distinção precisa entre o sexual e o sagrado”475. A Vênus tinha um caráter sagrado,
um aspecto bastante distinto dos outros objetos fabricados por outras espécies humanas, cujo
caráter era essencialmente final, isto é, útil.

473
Ibidem, p.43
474
Ver APÊNDICE 7
475
Ibidem, p.48
192

A existência dessas duas qualidades de objetos determinou desde cedo o paradoxo de


nossa condição humana: o paradoxo de termos que conviver simultaneamente com o mundo da
atividade e com o mundo do recreio, isso é, com o mundo profano e com o sagrado, sabendo
tratar-se de duas dimensões da existência que normalmente se encontram em contradição uma
em relação à outra.
No primeiro caso, trata-se de, pelo trabalho, organizar o mundo e as coisas, classificá-
las, estabelecer as distinções, as identidades, as relações dos objetos entre si e entre pessoas, de
criar, em suma, a linguagem das leis que fosse capaz de estipular interdições que servissem a
esses propósitos. “O interdito consiste nesta fascinada limitação imposta pelo homem ao
movimento dos seres e das coisas”476.
Na outra direção, “são sagrados os objetos que um tal sentimento aterrorizado
reserva”477. Os objetos sagrados – sendo esses os que atendem ao que há de verdadeiramente
peculiar em nossa espécie –, inscrevem-se não pelo propósito útil das leis, mas ao lado do
excesso luxuoso, do dispêndio inútil, pelas vias da transgressão. Isto é, são sagrados os objetos
que, rompendo a limitação necessária ao mundo da atividade, religam o humano à verdade
recalcada desde sempre como exigência da cultura: a verdade trazida pela morte, a verdade do
movimento dos seres e das coisas.
Vemos que, nesses inícios, sexualidade, poesia e religião constituíam um mesmo
domínio: o domínio da transgressão, do sagrado. É esta a radicalidade da poética de Bataille,
por meio da qual ele procura reestabelecer a ligação humana original:

Importa-nos aqui que a arte exprima, na sua essência e na prática, este


momento de transgressão religiosa que só ela exprime com bastante gravidade
e de que só ela é a única saída. É o estado de transgressão que comanda o
desejo, a exigência de um mundo mais profundo, mais rico e prodigioso, numa
palavra, a exigência de um mundo sagrado478.

***

Sem dúvida, a experiência do sagrado pode ser alcançada por outros meios que não têm
qualquer relação com a arte ou com a literatura. Mas se tal experiência é abordada estritamente

476
Ibidem, p.45
477
Ibidem, p.45
478
Ibidem, p.55
193

como prática, e não como objeto de linguagem, ela termina por deixar escapar boa parte dos
jogos e dos valores que a atravessam.
Se pensarmos, por exemplo, em alguém empenhado na prática de meditação, certamente
a essa pessoa não estará claro a que ponto sua prática está em contradição com o mundo profano.
E isso se agrava ainda mais quando consideramos a capacidade que tem a realidade em profanar
aquilo que originalmente dizia respeito ao sagrado. Nesse exemplo, é comum vermos como,
hoje em dia, a meditação já se traduz em termos de um ganho de bem-estar para o indivíduo
quando, de fato, o que está em jogo aí deveria ser a própria noção de individualidade. E quando
essa noção é colocada em questão, o que se apresenta aí de maneira alguma pode ser confundido
com o sentimento de bem-estar.
O sagrado, portanto, se não é tomado como objeto, perde-se da dimensão transgressiva
a qual ele se associa. O sagrado, quando não encontra para si um objeto, corre o risco de ser
confundido com uma simples ascensão ao sublime ou ao puro bem, e termina por dar as costas
a afirmação do valor do mal – de suspensão do tempo histórico, de êxtase e fusão do sujeito
com o objeto etc.
No texto “A vontade do Impossível”, Bataille faz a seguinte observação: “o desejo não
pôde de antemão saber que tinha por objeto sua própria negação. A noite em que soçobram
como vazios não somente as figuras do desejo, mas todo e qualquer objeto de saber é penosa.
Todo valor nela é anulado479”. Nesse caso, o “silêncio” ao qual se almeja nas experiências de
meditação não seria o resultado da ausência de objeto (de ter o vazio por objeto, isto é, a negação
do mundo profano), mas o que resulta dessa operação de destruição (de sacrifício) do sentido
profano do ser em favor de seu sentido luxuoso e inútil – operação ao fim da qual “todo valor
é anulado”.
Ao “silêncio”, portanto, segue-se, inevitavelmente, o sentimento de angústia, em função
da perda ou da destruição dos referenciais do mundo profano aos quais a consciência
normalmente se associa. Bataille em As lágrimas de Eros, escreve a respeito dessa experiência
interior:

O que eu de repente via, e me aprisionava na angústia – mas ao mesmo tempo


libertava dela – era a identidade destes perfeitos contrários que, ao êxtase
divino, contrapõem um horror extremo. Segundo me parece, é esta a inevitável
conclusão de uma história do erotismo. Mas devo acrescentar: [...] aceder a
esta verdade fundamental, com expressão no erotismo religioso: a identidade
entre o horror e o religioso480.

479
Idem, op. cit., 2014
480
Idem, op. cit., 2015, p.124
194

É por isso que Bataille insiste em transformar em texto o valor das religiões primitivas.
Porque, em primeiro lugar, elas só se manifestavam pelas vias da transgressão; em seguida,
porque elas encontravam na arte (na poesia pintada ou esculpida) a sua via de comunicação.
Em contrapartida, boa parte das religiões que sobreviveram até nossos dias não apenas estão
completamente esvaziadas do elemento de transgressão (fizeram do acesso ao sagrado mais
uma questão de representação do que de experiência) como se valem do dogma e da moral –
isto é, da linguagem do interdito – para comunicarem as suas possibilidades.
Eis, portanto, o engodo que faz com que a proposta de um erotismo religioso seja tão
relevante. De um lado a prática da meditação não outorga a si o estatuto da transgressão que ela
sem dúvida comporta e, desse modo, nem se contrapõe abertamente aos valores instituídos,
nem chega a dar sustentação a algum valor que não seja o da própria prática. Do outro lado, as
religiões instituídas entram no campo dos valores munidas de dogmas, de sentidos pré-
estabelecidos, e se contrapondo veementemente à possibilidade prática de qualquer experiência
que não seja a das liturgias, isso é, à prática cujo sentido prévio já é o de confirmar seus próprios
dogmas.
É preciso considerar também que, sendo o erotismo religioso a identidade de dois
sentimentos à primeira vista contraditórios entre si – a alegria, ou o prazer, e o horror –, a
entrada no sagrado não se pode dar em sua plenitude (isto é, colocando sobre a mesa
conscientemente os elementos que estão em jogo), senão a partir de objetos, ou melhor, do
sacrifício de seus objetos úteis, num movimento que lhes abre a uma inutilidade extática, até
então insuspeita, na dimensão do informe.
É por isso que a linguagem poética se faz tão necessária para o pensamento de um
erotismo religioso. Porque não se pode conscientemente aceder a esse valor por via das
linguagens instituídas pela cultura, pelo motivo que destacamos mais acima no trecho escrito
por Bataille: é impossível para o desejo saber de antemão que tem por objeto a sua própria
negação.
Os casos em que o que se deseja não é propriamente o objeto – mas a sua destruição ou,
ainda, o aspecto informe desse objeto – constituem um paradoxo. É por isso que a linguagem
ordinária não alcança esses casos. Mas a linguagem poética é capaz de discernir dentro da
própria experiência o momento em que a destruição não é apenas um prazer voltado para si
mesmo. A poesia é capaz de dar sustentação ao desejo por esse objeto impróprio porque através
195

dela o prazer é transgredido em êxtase, e o significado de satisfação da experiência é sacrificado


em favor do sentido de abertura, de passagem para a dimensão do sagrado.

A poesia se deve ao poder do desconhecido (o desconhecido, valor essencial).


Mas o desconhecido não é mais que um vazio branco se não for o objeto do
desejo. O poético é o meio termo: é o desconhecido mascarado com cores
brilhantes e com a aparência do ser. [...]. As figuras poéticas, devendo seu
brilho a uma destruição do real, permanecem à mercê do nada, devem roçá-
lo, tirar dele o aspecto suspeito e desejável delas: têm já do desconhecido a
estranheza, os olhos de cego.481

Analisando a outra parte que constitui o erotismo religioso, é possível dizer que, sem o
amparo simbólico, o que é erótico resvala facilmente para o pornográfico. O erótico, sem o
suporte da linguagem, não parece capaz de encontrar meios de escapar da vulgaridade, num
antro em que novamente a dimensão da transgressão se perde em proveito da utilidade.
Podemos mesmo definir pornografia em termos da exposição máxima do prazer ou a simples
exibição do horror.
No caso do erotismo, trata-se da conjugação paradoxal do prazer com o horror na
experiência de êxtase e que tem na beleza, ou no luxo, a sua exigência. Na pornografia o que
se manifesta é a impossibilidade da contemplação estética, e o que nela existe de natureza
erótica é ora submetido à vergonha, ora à utilidade do prazer (como um fim em si mesmo) da
descarga catártica que jamais chega a transgredir a cultura. Em relação à cultura, a pornografia
é apenas a sua válvula de escape.
Não deixa de ser curioso notar como a maior parte das religiões contemporâneas (sem
exceção as de caráter monoteísta) e a pornografia partem da mesma aspiração humana legítima
– nossa vocação para o fora, para o Outro e o êxtase que disso resulta – e que as primeiras –
sendo sagradas sem serem transgressivas – e a segunda – sendo transgressiva sem ser sagrada
– terminam por reafirmar a submissão do homem como animal castrado de si: mutilado em seu
corpo, alienado de sua realidade, envergonhado de sua condição.
É natural, assim, que em nosso mundo o que retorna é quase sempre o espírito neurótico
de Deus e quase nunca o espírito polimorfo de Lascaux.
São a essas dificuldades que Bataille faz referência neste poema: “horror/ de um mundo
transformado em círculo/ o objeto do desejo está mais longe// a glória do homem/ é tão grande

481
Idem, op. cit., 2014
196

que ela/ quer ser outra// eu sou/ o mundo está comigo/ empurrado fora do possível// eu sou
apenas o riso/ e a noite infantil/ onde cai a imensidade”482
O erotismo de Bataille investe contra os valores do pudor e do utilitarismo (associado
às finalidades reprodutivas) que a cultura sustenta em relação aos órgãos sexuais. Para ele a
afirmação erótica é uma afirmação paradoxal, pois, por meio dela, o que se propõe é que a
elevação em direção ao sagrado se dê no atravessamento dos elementos rebaixados pela cultura.
Justifica-se então que, para ele, a fenda urinária seja o significante da condição humana
– a um só tempo trágica e paradoxal – porque nesse significante se inscreve a possibilidade de
elevação por meio daquilo que sacrifica e escandaliza os valores do mundo civilizado, conforme
escreve em um de seus poemas: “A nudez, a fenda urinária, a proximidade da merda são para a
morte o que o nascer do sol é para o dia. A obscenidade da ‘pequena morte’ anuncia a cada hora
o horror da grandeza. Deus não me salve menos de minha nudez de merda do que a podridão
na terra.”483
E, no prefácio de Madame Edwarda:

Não estou de modo algum inclinado a crer que o essencial neste mundo seja a
volúpia. O homem não é redutível ao órgão do gozo. Porém esse órgão
inconfessável ensina-lhe o seu segredo. Visto que o gozo depende da
perspectiva deletéria aberta ao espírito, é provável que tentemos iludi-la e nos
esforcemos por aceder à alegria aproximando-nos o menos possível do horror.
As imagens que excitam o desejo ou provocam o espasmo final são
extraordinariamente duvidosas, ambíguas: se é o horror, se é a morte o seu
alvo, elas o atingem sempre de uma forma dissimulada. Mesmo na perspectiva
de Sade, a morte é desviada para o outro, e o outro é, antes de mais nada, uma
expressão deliciosa da vida. O domínio do erotismo está condenado, sem
escapatória, ao fingimento. O objeto a que provoca o movimento de Eros
simula ser algo que não é. De tal sorte que, em matéria de erotismo, são os
ascetas que têm razão. Eles dizem que a beleza é a armadilha do diabo: só a
beleza, com efeito, torna tolerável a necessidade de desordem, de violência e
de indignidade, que está na raiz do amor. [...]. A condenação ascética é, sem
dúvida, grosseira, ela é covarde, é cruel, mas vibra em uníssono com o tremor
sem o qual nos afastamos da verdade da noite. Não há razão alguma para que
seja atribuída ao amor sexual uma preeminência que só a vida inteira merece.
Porém, se não fizermos incidir um foco de luz no ponto exato onde a noite cai,
como poderemos saber que somos feitos da projeção do ser no horror?484

Resgatar o valor primitivo do erotismo religioso significa a proposição de uma estrutura


que suporte a aproximação do prazer com o horror, em seus pontos mais extremados. A

482
Idem, op. cit., 2015c, p.37
483
Idem, op. cit., 2015c, p.249
484
Idem, op. cit., 1981, p.13
197

consciência, se não é suficientemente esclarecida para tal, não o pode suportar. A cultura se
envergonha dessa proximidade e a rebaixa ao nível da linguagem pornográfica ou a dogmatiza
pelas vias do discurso religioso. E nada é mais contraditório à racionalidade do que o gesto
trágico, o gesto que sacrifica objetos e os endereça a sua própria perda.
A poesia, portanto, parece ser a única estrutura que suporta essa proximidade paradoxal.
Daí o espelhamento: a fenda urinária é tomada como o significante do poético, porque é este
significante que conjuga os extremos: nascimento e morte, prazer e excremento, o mais baixo
através do qual se chega ao êxtase e à elevação.

A natureza mistura vida à morte no genital [...]. [...] o luxo das flores [...] se
dá um semblante de finalidade [...] tem pouca utilidade [...]. Como se o
imenso transbordamento tivesse tido necessidade de um álibi. [...] domínio em
que a reflexão humana jamais avançou senão com uma insustentável
leviandade. [...] Ninguém se deteve no fato de que a ‘natureza’ procedia de
uma maneira insensata. [...] no final das contas, é a perda que importa.485

***

Dos elementos que fazem de nós animais verdadeiramente singulares, a arte e a


exuberância sexual aparecem, sem dúvida, como os traços mais distintos. Mas também o riso e
as lágrimas são significantes dessa singularidade. “O riso é a atitude de compromisso que o
homem adota diante de algo que o repugna, quando esse algo não lhe parece grave” 486. O
compromisso a que se refere Bataille, nessa passagem, é o de delimitar claramente “a oposição
entre o prazer e a dor”487, visto que conjugação prazer-dor, por ser considerada demasiado
estranha, leva o objeto que seja capaz de suportá-la a ser considerado um objeto impróprio.
“[...] Os tabus mais comuns incidem quer sobre a vida sexual, quer sobre a morte, de tal
sorte que uma e outra formam um domínio sagrado, de cunho religioso”488. Mas, ao passo que
“a dor e a morte são dignas de respeito, o prazer é irrisório, destinado ao desprezo”, a vida
sexual encontrando assim “a expressão do destino que quis o homem rindo de seus órgãos

485
Idem, op. cit., 2013a, p.258
486
Idem, op. cit., 1981, p.9
487
Ibidem, p.9
488
Ibidem
198

reprodutores”489. O que as lágrimas traduzem, por outro lado, é a atitude profundamente


respeitosa e servil diante da morte, que é, então, reafirmada na qualidade de tabu.
O riso e as lágrimas fazem parte, portanto, da mesma operação. Seja pela posição de
desprezo, no primeiro caso, ou de assumir uma distância intransponível, no segundo, o que
ambas revelam é a terminante recusa humana em participar do sagrado.
O homem que ri de seus órgãos e que, respeitosamente, derrama lágrimas diante do
destino inexorável que, não obstante, ele se recusa a experimentar, é o homem conformado ao
mundo da razão prática e utilitária, mas é, na mesma medida, o alienado que, voluntariamente
ou em razão da cegueira cultural, decidiu permanecer alijado de uma dimensão fundamental de
sua existência. É nesse sentido que nos arriscamos na afirmação de que o domínio do sagrado
constitui o maior dos tabus.
Trata-se da dimensão da existência sobre a qual mais violentamente incide o recalque
porque, como escreve Bataille no prefácio de Madame Edwarda, esse domínio, quando
“encarado gravemente, isso é, tragicamente, representa uma completa inversão de valores”490.
O que parece decisivo para esse pensamento é compreender que algo como a “completa
inversão dos valores”, justamente pelo nível de transgressão aí implicado, jamais poderia
prescindir de um signo, de uma estrutura de linguagem que lhe dê suporte. Apostar no caráter
irracional (animalesco), inconsciente ou meramente arbitrário das forças do erotismo seria o
mesmo que fazer uma aposta cega no valor destrutivo da morte como um valor em si.
Mas o erotismo se aproxima do sentido da destruição somente quando esse sentido
equivale à passagem do profano ao sagrado, da existência individual para a existência contínua.
Sem se confundir, portanto, com a afirmação do caos, o erotismo religioso depende do signo
poético para existir.
Inversamente, a poesia que encontra para si o seu significante (erótico) deixa de correr
o risco de se afastar de sua essência – o jogo com o ‘mal’ – que, segundo Bataille, é o único
elemento que a justifica enquanto forma de linguagem distinta de todas as outras: “a poesia
conduz ao mesmo ponto que cada forma do erotismo, à indistinção, à confusão dos objetos
distintos. Ela nos conduz à eternidade, nos conduz à morte e, pela morte, à continuidade: a
poesia é a eternidade. É o mar partido com o sol”491.

489
Ibidem
490
Ibidem
491
Idem, op. cit., 2013a, p.48
199

***

Parece oportuno concluir, neste ponto, que o que o poético sustenta é uma ética, e que
essa ética opera no momento em que torna evidente à consciência que o seu próprio limite não
pode ser determinado pela moral, nem pelas leis, nem pela linguagem racional que se liga ao
mundo das coisas. Para Bataille essas negativas não o levam à conclusão de que a poesia deva
se associar ao domínio dos sonhos, ou à nostalgia de um passado, ou a um exercício de
linguagem voltado para si mesmo. A ética que ele confere à poesia é simplesmente a de tornar
legítimo o desejo do impossível.

A infelicidade quer que do impossível, condenado a sê-lo, seja difícil falar.


[...]. É verdade que a poesia, querendo a identidade das coisas refletidas e da
consciência, que as refletiu, quer o impossível. Mas o único meio de não
querer ser reduzido ao reflexo das coisas não é, com efeito, querer o
impossível?492

O quanto a fronteira do possível com o impossível pode ser alargada pelo poético é
incerto, pois isso depende da capacidade de a poesia de assumir-se como fenda e colocar em
jogo o fracasso do saber, ao mesmo tempo em que encarna a maravilhosa disponibilidade ligada
aos domínios do sagrado, do não-saber. Não é, como se vê, através de seus conteúdos nem
através de suas formas que o poético se torna potencialmente capaz de transgredir a cultura. É
na fissura de um e outro, é sobretudo pelo fato de a poesia ser uma linguagem que suporta a
fissura e que a ela conduz.
O segundo sentido ético da poesia é o seu sentido de participação, a exigência que ela
faz pela experiência:

Nós com efeito podemos definir o poético [...] por uma relação de
participação do sujeito no objeto. A participação é atual [...] do mesmo modo,
na magia dos primitivos, não é o efeito que dá um sentido à operação, além
disso, para que ela funcione, é preciso que, antes de tudo, independentemente
do efeito, ela tenha o sentido vivo e surpreendente da participação [...].Na
operação poética, o sentido dos objetos de memória é determinado pela
ocupação atual do sujeito: [...] A fusão do objeto e do sujeito quer o
ultrapassamento de cada uma das partes ao contato da outra.493

492
Idem, op. cit., 1989, p.39
493
Idem, p.37-38
200

Por fim, o terceiro sentido ético da poesia é de tornar legítima a existência e o desejo
por objetos impróprios ou paradoxais. Este é o sentido que, propriamente, aproxima a poesia
de uma erótica. Podemos citar como exemplo de objeto impróprio as palavras que Bataille
dedica aos livros de Kafka -- “estas chamas imaginárias ajudam também a compreender melhor
estes livros: são livros para o fogo, objetos aos quais falta a verdade de estar no fogo, existem
mais para desaparecer; como se eles tivessem destruídos de antemão”494. Nesse ponto somos
remetidos à estranha possibilidade de desejar objetos feitos para desaparecer.
Essa noção da possibilidade de existência de objetos impróprios ou paradoxais também
aparece em outra passagem de A literatura e o Mal:

[...] A poesia, num primeiro movimento, destrói os objetos que ela apreende,
ela os entrega, por uma destruição, à inatingível fluidez da existência do poeta,
e é a este preço que ele espera reencontrar a identidade do mundo e do homem.
Mas ao mesmo tempo que opera uma desistência, ela tenta apreender esta
desistência [...] só pode fazer com que a desistência não tomasse o lugar das
coisas495.

Trata-se, portanto, do desejo da fenda, o desejo da própria poesia, que é, pois, o objeto
impróprio da perversão: “é o objeto que sempre se oculta, que ninguém captou, e que ninguém
captará, por esta razão definitiva: porque não podemos possuí-la como um objeto, porque
estamos reduzidos a buscá-la”496. O paradoxal desejo da fenda – da posse impossível da
intimidade – é o que aparece também neste trecho de A parte maldita:

Se a consciência de si é essencialmente a posse plena da intimidade, é preciso


voltar ao fato de que toda posse da intimidade culmina no logro. Um sacrifício
só pode afirmar uma coisa sagrada. A coisa sagrada exterioriza a intimidade:
faz com que seja visto de fora o que na verdade está dentro. Por isso a
consciência de si exige finalmente que, na ordem da intimidade, não ocorra
mais nada. Não se trata de modo algum de uma vontade de eliminar o que
subsiste: quem falaria em suprimir a obra de arte ou a poesia? Um ponto,
porém, deve ser posto a nu, de modo que a seca lucidez aí coincida com o
sentimento do sagrado. Isso supõe a redução do mundo sagrado ao elemento
mais puramente oposto à coisa, ou seja, a pura intimidade.497

E é na busca por esse elemento mais oposto à coisa e que exterioriza a intimidade que
Bataille escreve, por fim, a fenda em um de seus mais belos poemas. Ele a escreve,

494
Idem, op. cit., 1989, p.130
495
Ibidem, p.39
496
Ibidem, p.171-172
497
Idem, op. cit., 2013b, p.166
201

simultaneamente, como objeto de sacrifício e como objeto que sacrifica aquele que a lê: “[a
fenda] se abre como tua boca/ eu a amo como o céu/ eu a venero como um fogo// bebo em tua
ferida/ estendo tuas pernas nuas/ eu as abro como um livro/ onde leio o que me mata”498.

***

498
Idem, op. cit., 2015, p.147
202

CONCLUSÃO: O RISO

[...]. Ela estava diante de um texto “hermeticamente


fechado”, e ele se abria, de repente, espraiado,
diante de seus olhos. Para novamente se fechar, ao
fim do livro: [...] ali já não havia obra. Nem leitura.
Tratava-se, é claro, do ponto de enlouquecimento
[...]. E esse, ela sabia, ela sempre o soubera, talvez
antes mesmo de “saber ler”, era o ponto da poesia.
(Lucia Castello Branco)499

[...]. Com o corpo e o rosto em êxtase, largados num


arrulho inefável, ela sorriu em sua doçura, com um
sorriso quebrado: viu-me no fundo da minha aridez;
e, do fundo da minha tristeza, senti que a torrente de
sua alegria se libertava.
(Bataille)500

E estamos a esquecer-nos do alívio que deve ter


existido num riso nascente.
(Bataille)501

É preciso ressignificar a palavra ‘religião’: retirá-la do domínio da moral e do dogma,


trazê-la de volta ao domínio da poesia e da experiência com o não-saber de que se constitui o
sagrado. Diz-se “trazê-la de volta” pois foi nesses últimos domínios que primeiramente
expressou-se a voz do sagrado – antes que a história humana houvesse começado, na poesia
que se escrevia nas paredes de Lascaux.
É preciso ressignificar a palavra ‘religião’ e, no entanto, fazê-lo reverberando o grito de
Zaratustra, que anunciava a boa nova como uma espécie de père-version de Édipo: “Deus está
morto”, o Pai está morto e a vida se dobra novamente sobre si mesma como a possibilidade de
uma festa, exigindo dos seus abertura, o sentimento da infinita disponibilidade.
Para os fins da poesia, é preciso querer sacrificar em si o sentido objetivo da visão – que
transpõe o mundo em objetividade –, mas também é preciso adentrar o ponto de
enlouquecimento em que se perde a cabeça, em que se sacrifica, em igual medida, tudo aquilo

499
CASTELLO BRANCO, Lucia. Os Ínvios Caminhos: Escrever, Ler, Psicanalisar. Belo Horizonte: cas’a
edições, 2019
500
BATAILLE. Madame Edwarda, seguido de O Morto, História do Olho. Trad. Glória Correia Ramos. São
Paulo: Editora e Livraria Escrita, 1981
501
BATAILLE. O Nascimento da Arte. Trad.: Aníbal Fernandes. Lisboa: Ed. Sistema Solar, 2015b
203

que é da ordem do subjetivo. E assim ter aberta a fenda, a passagem que comunica o sagrado
ao profano e inversamente: religare.
O que poderia restar dessa operação é marca que se escreve no corpo, a marca efêmera
do riso que se abre diante da experiência, como escreve Bataille em um de seus poemas: “eu
sou apenas o riso/ e a noite infantil/ onde cai a imensidade”502.
O objeto do texto que escrevemos com esta tese não estava dado quando o começamos
e na verdade permaneceu em grande medida oculto até o momento em que escrevemos estas
palavras. Mas ele agora surge, como um acontecimento. Trava-se desde sempre da
possibilidade do riso diante da noite infantil onde cai a imensidade de nossa experiência.
Consideramos que a poesia que dá a forma à textualidade de Bataille de maneira geral
nos deu os fundamentos para esse propósito, pois ela estranhamente não se colocava nem ao
lado do sujeito, nem ao lado do objeto. O antropomorfismo dilacerado do escritor rechaçava a
um só tempo noções tão profundamente arraigadas na cultura e – de maneira mais evidente –
em nós mesmos: as noções de intimidade e de realidade.
Abandonadas por força dessa poesia, percebemos agora mais claramente as
possibilidades que antes se anunciavam, paradoxalmente, como impossibilidades: que a
experiência mais interior caminha ao encontro do que é mais exterior, das formas mais radicais
de alteridade – em relação às quais (ainda) nada sabemos. E em paralelo a esse desdobramento,
que a História não encerra todas as nossas chances. Que fora da História existe o campo efêmero
– e que por esse mesmo motivo deve ser estudado, isso é, defendido – da literatura.
O erotismo religioso da poesia de Bataille – fenda aberta onde nada se fixa – lançou-nos
assim, por meio de estranha atração, para fora de nós. Em outras palavras, essa poesia se
ofereceu a nós como passagem, como a possibilidade de experimentar o mundo outro do
sagrado. “Significa isto que a estranheza se converteu em imagem”, conforme escreve Silvina
Rodrigues Lopes em Anomalia poética.503
Essa imagem não a podemos representar. Tivemos, portanto, de escrevê-la, a princípio
em forma de tese, depois em forma de poesia. E rimos ao constatar novamente com Silvina
Rodrigues Lopes que, em arte, trata-se da atualização “da irredutibilidade do desejo que se
traduz na criação de objetos (incluindo formas efêmeras) em que a relação do finito ao infinito
se revela inesgotável”.504

502
BATAILLE. Poemas. Org. e trad. Alexandre Rodrigues da Costa, Vera Casa Nova. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2015c p.37
503
RODRIGUES LOPES, Silvina. A Anomalia Poética. Lisboa: Edições Vendaval, 2006, p.164
504
RODRIGUES LOPES, Silvina. Teoria da Des-Possessão. Lisboa: Europress, 2013, p.190
204

“Quanto à estranheza” – ela continua – “ela corresponde à radicalidade do incerto [...].


O pensamento em arte dá-se no acolhimento desse inadequável”505. “O inapresentável é o
impossível que nos toma permitindo-nos ir além do que podemos ir mostrando-nos que somos
para além do que podemos conhecer de nós, diferentes do todo que nos imaginamos ser.
Relação ao infinito que nos incompleta: des-possessão”.506
Assim pudemos acolher o estranho com o riso que é a poesia e, em simultâneo,
compreender que nosso próprio desejo pela poesia correspondia ao desejo sim por um objeto,
mas um objeto impróprio que não configura posse e nem pode ser possuído: objeto de
despossessão. O que há de peculiar no desejo por objetos impróprios é que eles, por sua própria
natureza, alimentam a falta que se tem deles quanto mais por eles se procura.
A imagem da nudez tantas vezes invocada por Bataille tem a ver com esse sentimento
da fenda (no topo do crânio, no meio das pernas) que se mantém então aberta ao não-saber,
sentimento a um só tempo da infinita disponibilidade do mundo e de que ser humano é ser,
afinal, a “súplica sem resposta”507.
“À nudez [...] corresponde uma leitura que busque o caminho de perder-se, o da
escrita.”508 E, para concluir, encontramos nessas palavras a bonita definição daquilo que
buscávamos: a escrita é o caminho de se perder. E o que poderia significar isso – “deixar-se
possuir pela imagem, desaparecer sob o brilho do delírio que faz a cada um esquecer a
singularidade da sua órbita, fazer proliferar as imagens, desvincular-se da irrealidade das coisas
imaginadas? Ou vincular-se a essa irrealidade e participar da força do irreal?”509
Mas, com Bataille, insistimos que a natureza do sagrado talvez não se deva deixar
confundir com aquela das coisas irreais, pois talvez nesse caso o que aí se coloca em cena é
“uma realidade mais profunda”. Trata-se, sem dúvida, de uma experiência original no sentido
de se colocar em referência às coisas que ainda não são e que, como tal, precisam ser nomeadas:
é a poesia.

Descrevi em A experiência interior a experiência (extática) do sentido do não-


sentido, invertendo-se em não-sentido do sentido, então de novo... sem saída
aceitável... Se examinamos os procedimentos zen, vemos que eles implicam
esse movimento. O satori é buscado na direção do não-sentido concreto, que

505
Ibidem, p.168
506
Ibidem, p.9-10
507
BATAILLE. A experiência interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953: Suma
Ateológica, vol. I. Trad. Fernando Scheibe. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, Preâmbulo, III
508
RODRIGUES LOPES, op.cit., p.12
509
Ibidem, p.79
205

substitui a realidade sensata, revelando uma realidade mais profunda. É o


procedimento do riso...510

“Os estados divinos conhecidos por Nietzsche teriam tido por objeto esse conteúdo
trágico (o tempo), e como movimento a reabsorção do elemento trágico transcendente na
imanência implicada pelo riso [...] como busca de um ‘bem’ superior.”511
E como poderíamos saber que é legítimo esse caminho de se perder – essa “direção do
não-sentido concreto”, essa busca por um bem superior, traduzido pelo desejo por um objeto
impróprio cuja potência é a de, a um só tempo, trazer a transcendência (da experiência) junto à
imanência (da escrita), nos levando assim ao riso que secreta lágrimas – senão pelo amor dado
pela própria poesia?

Dirigindo-se ao desconhecido, [...] seguir o fio de fulgor que se desprende do


movimento que realiza, transportando os corpos para o exterior, lugar onde a
imagem se revela sem o nó da dor. É esse movimento em direção ao exterior,
onde o instante é escrita, que traça (traço) o desenho de um corpo. Guardemos
o amor e o corpo como marcas da experiência de uma escrita impossível.512

***

510
BATAILLE. Sobre Nietzsche: vontade de chance: seguido de Memorandum: A risada de Nietzsche;
Discussão sobre o pecado; Zaratustra e o encantamento do jogo: Suma Ateológica, volume III. Tradução
Fernando Scheibe. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p.182
511
Ibidem, p.212
512
PAULA, Janaina de, CASTELLO BRANCO, Lucia, DE BAETA, Vania. Feminino de ninguém. Belo
Horizonte: cas’a edições, 2019.
206

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___________. Genealogia da moral. Sílvio Donizete Chagas. São Paulo: Companhia das
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PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. 3ªed. – São Paulo: Martins Fontes,
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RELLA, Franco. MATI. Susanna. Georges Bataille, filósofo. Trad. Davi Pessoa Carneiro.
Florianópolis: Editora UFSC, 2010

RODRIGUES LOPES, Silvina. A Anomalia Poética. Lisboa: Edições Vendaval, 2006

___________. Teoria da Des-Possessão. Lisboa: Europress, 2013

SADE. Os 120 de Sodoma ou a Escola da libertinagem. Trad. Alain François. São Paulo:
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________. Juliette. Trad: Austryn Wainhouse. Nova Iorque: Groove Press, 1968.

________. Justine ou Os Infortúnios da Virtude. Trad. D. Accioly. Rio de Janeiro: Editora


Saga, 1968

SOLLERS, Philippe. Writing and the Experience of Limits (1968). Trans. David Hayman.
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SURYA, Michel. Georges Bataille – la mort à l’oeuvre. Gallimard, 1992

QUINET, Antonio. Édipo ao Pé da Letra – fragmentos de tragédia e psicanálise. Rio de


Janeiro: Zahar Editora, 2015.
210

APÊNDICE:

APÊNDICE 1:

(O acéfalo que ilustra as capas da revista Acéphale, desenho de André Masson)

APÊNDICE 2:

(O Dedão do Pé, uma das figuras que ilustra o dicionário crítico do Vol. I da revista Documents)
211

APÊNDICE 3:

(A nebulosa planetária de Hélix. A uma distância de 700 anos-luz da Terra é chamada por
alguns de “o Olho de Deus”)

APÊNDICE 4:

(A travessia difícil, por René Magritte, 1963)


212

APÊNDICE 5:

(A criação de Adão, por Michelangelo, 1512. Abaixo a interpretação de que a concha de Deus
seria uma representação da visão lateral que se tem do cérebro humano)

APÊNDICE 6:

(A enigmática figura do homem-pássaro, situada no poço da caverna de Lascaux)


213

APÊNDICE 7:

(Vênus de Hohle Fels: uma das mais antigas representações figurativas da humanidade)

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