Palestra 1 Da Maria Campatelli Sobre o Batismo
Palestra 1 Da Maria Campatelli Sobre o Batismo
Palestra 1 Da Maria Campatelli Sobre o Batismo
APOSTILA 1
NÃO NASCEMOS CRISTÃOS,
MAS NOS TORNAMOS CRISTÃOS
Tertuliano dizia: “Não nascemos cristãos, mas nos tornamos”. (Apologeticum 18,4).
Então o fato que durante mais de mil anos nós “nascemos cristãos” onde o nosso
cristianismo era garantido por uma ordem social, talvez nos fez dar por certa esta
dimensão batismal da existência toda, e aos poucos nos esquecemos dela. O nosso
batismo torna-se, então, algo que diz respeito mais aos registros paroquiais do que a
nossa memória cristã. Daí que se formam a nossa visão do mundo, as nossas atitudes
fundamentais, a nossa maneira de pensar, as nossas escolhas, os nossos desejos.
Hoje, uma condição de cansaço, de incerteza, de confusão, que se observa a nível
eclesial, põem com urgência a necessidade de uma reconsideração da vida da Igreja, de
uma ligação orgânica entre as suas dimensões, de uma volta às suas raízes vitais. Então,
não pode existir outro ponto de partida nesta reconsideração do que partir de novo de
onde a Igreja e sua tradição, desde sempre, tem enxergado o começo de tudo: isto é o
dom da vida que nos oferece o Espírito, pondo-nos em comunhão com o corpo de Cristo
no sacramento do batismo.
Para os cristãos dos primeiros séculos, era um dado irrefutável, de uma certeza
incontestável, o fato de que o batismo representava uma entrada, ou um “nascimento”
para uma outra dimensão, para uma vida nova: o paraíso escatológico, o reino…, e todos
os diversos modos com os quais queremos chamar esta realidade. O batismo introduzia
nesta vida nova, criava um novo nível da realidade, transformado pela glória do mundo
futuro, já presente. E a vida dos batizados, depois do batismo, não era outra coisa a não
ser a tentativa de efetivar a entrada nesta outra dimensão na vida cotidiana. Eis porque
devemos partir de novo do batismo e de tudo aquilo que ele nos comunica.
Não se trata de pormenores nem de truques pastorais. Antes, precisa-se recuperar
toda uma visão. Tem o problema de reconstruir os itinerários de formação, não mais
entendidos como preparação aos sacramentos, mas como preparação à vida cristã, na
base daquilo que a liturgia dos sacramentos nos diz a respeito desta vida.
O que faz o batismo? Nos transporta para o reino, onde a nossa vida é escondida
com Cristo em Deus (Cl 3,3). E, quem é o monge? Uma pessoa que tem a vocação de
testemunhar desde já a nossa pertença total ao reino. Todos nós cristãos somos
estrangeiros e peregrinos (Hb 11,13), que caminhamos rumo à praça de ouro, descrita no
Apocalipse. Porém, a maior parte de nós, ao mesmo tempo, tem outras finalidades ao
longo da caminhada como por exemplo: cuidar do marido ou da esposa, criar os filhos,
organizar a sociedade humana… O monge simplesmente não tem estas coisas, e então,
com sua própria maneira de ser, lembra a todos para onde devemos caminhar.
Um sábio chinês, Chuang-tzu, diz que a janela é somente um buraco na parede,
mas é graças a este buraco que toda a sala recebe o ar e fica invadida pela luz. O monge
se torna este buraco, através do qual passa a luz do reino. Esvaziando o seu coração e
deixando somente a relação com Deus, o monge se torna uma janela para a Igreja e para
o mundo, através da qual passa o esplendor do tempo escatológico, deste reino futuro,
que, todavia, já está presente no meio de nós. E isso aclara todas as coisas de uma luz
que não existiria se o buraco fosse fechado. O monge é este buraco na parede, através do
qual o futuro é explicado não como raciocínio, mas através de uma epifania, uma
manifestação da vida.
A situação de hoje me parece que nos compromete a recuperar esta dimensão
batismal de todas as vocações, isto é, a dimensão eclesial, quer dizer junto com as outras
vocações.
Penso que a situação atual faz com que tudo isso seja mais compreensível. Se
Deus na sua bondade nos poupa das perseguições como a que teve o pai de Orígenes,
todavia em nossa sociedade não é tão natural ser cristãos. Em muitas coisas, precisa
andar na contramão de verdade. Para aderir à vida verdadeira, para protegê-la, precisa
morrer à afirmação de si, ao prestígio social, ao medo de parecer diferentes… a muitas
coisas. Por isso, vocês sabem mais do que eu que hoje os casais casados, como os
monges, são chamados a trilhar a ‘porta estreita’ do ascetismo, do jejum, da renúncia; se
os monges são mártires, assim também o são os cônjuges, como mostram as coroas
colocadas na cabeça durante o rito do matrimônio na Igreja bizantina. O amor verdadeiro
é sempre um amor ressuscitado, quer dizer, que antes tem passado pela morte.
As vocações na Igreja não existem nunca sozinhas. A vocação é sempre algo
pessoal, isto é, como a pessoa, emerge da comunhão. Uma pessoa isolada não é pessoa.
Seria um indivíduo. A pessoa é um ser relacional que deduz a sua identidade da
comunhão com os outros. Quem nasceu do Espírito de Cristo, não pode ser um
indivíduo, porque se torna automaticamente um ser relacional. Vocações, carismas,
ministérios na Igreja, não podem nunca ser tratados em termos individuais, mas sim
pessoais. Trata-se daquela unicidade do dom que emerge da comunhão e que se coloca a
serviço da comunhão. E os monges e os casados – estou falando do matrimônio em
sentido cristão, o sacramento como presença do amor de Cristo e da Igreja e que faz
Paulo exclamar: “este mistério é grande!” (Ef 5,32) – nos equilibramos e nos completamos
uns aos outros. Os casados alcançam a Deus por intermédio do marido ou da esposa; os
religiosos exprimem este amor para Deus diretamente e não através da presença física de
um outro ser humano. Mas, exatamente porque se trata de dois caminhos eclesiais, um
não pode ser entendido sem o outro. É mesmo como falava um teólogo russo,
Evdokimov: “a única maneira para entender o valor próprio do matrimônio é
compreender o significado do monarquismo e vice-versa”. Se não tiver quem aponte
diretamente a Deus, as coisas do mundo podem se tornar um obstáculo, um ídolo, e
sufocar-se dentro de um espaço e de um tempo fechados, e então ficar impossibilitadas
de se tornarem participantes da beleza sem tempo para a qual foram criadas. Como o sol
garante a toda a criação a possibilidade de vida, assim o buraco na parede, que é o
monge, garante a possibilidade que a vida floresça. Mas, sem incarnar este amor por
Deus nas pessoas e nas coisas, um amor assim pode ser também a mais vazia das
abstrações.
Se olharmos para os ritos batismais das Igrejas cristãs, eles salientam dois
aspectos, a saber; o do renascimento (Jo 3,5): lembremos o colóquio com Nicodemos,
que perguntava como se pode nascer uma segunda vez: “quem não nascer da água e do
Espírito, não pode entrar no reino de Deus”, e aquele da configuração à morte e
ressurreição de Cristo (Rm 6: “Não sabeis que todos os que foram batizados em Cristo
Jesus, é na sua morte que fomos batizados? Pelo batismo nós fomos sepultados com ele na
morte, para que como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim
também nós vivamos esta vida nova”).
Por isso a fonte (pia) batismal tem formas diferentes, que levam a duas formas
fundamentais: ■ O útero
■ A cruz
Estas duas expressões pressupõem duas coisas:
1 - que nós não possuímos a vida, não somos a fonte da vida, mas a recebemos de
Deus. Deus nos deu a vida na criação, porém esta vida, para ser vida, deve ficar em
contato com ele, que é a sua fonte: a vida é a relação com Deus, que nos coloca em
diálogo com ele, e com isso nos faz participar daquilo que ele é: o amor. A vida, de fato,
na Bíblia não é a agitação dos seres sobre a terra, que tem a existência sempre
ameaçada, mas implica uma finalidade a ser alcançada, aquele desenvolvimento pleno,
que corresponde ao projeto de Deus sobre o homem. A existência recebida na criação,
que podemos chamar de “vida” no sentido da existência natural, simboliza (isto é: é e não
é ao mesmo tempo) a vida que Deus quer oferecer ao homem, que é a relação, a
comunhão com Ele, a vida que é plenitude de relação e por isso, vida eterna, não morre
nunca.
Mas quando, segundo o relato de Gênesis, Adão quer viver a afirmação de si
através da rejeição de Deus, a rejeição do diálogo com Ele, cortando a sua ligação com
Deus, que é a vida, é claro que morre e percebe a sua vida ameaçada continuamente.
Imagem de Gregório de Nissa. O homem no paraíso, ereto, que falava face a face com
Deus, o diálogo que é comunicação da vida e do amor de Deus. Depois, após o pecado,
quando Adão corta o seu cordão umbilical com a vida, com Deus, se dobra sobre si
mesmo, não enxerga mais nada, mas somente a própria ferida (omphaloskopoi), que
lembra o mal da existência. Desde então, de Gen. 3, o homem tem medo, medo do outro,
que se torna uma ameaça para si, e medo de morrer, porque não tem a vida em si. Por
isso deve engolir tudo, - coisas, relações – para encher este abismo, que sente abrir-se
sob os próprios pês. O pecado penetrou tanto no homem ao ponto de poluir a sua
mentalidade, a sua cultura e o seu horizonte todo, de tal maneira que o homem não
consegue mais ver o que é mal. O pecado intervê no olho até falsificar a visão. Nós
homens nos esforçamos de individuar os pecados e nos concentramos uma vez sobre um
ato, outra vez sobre um outro. Mas não é nada fácil perceber que o pecado está mais
atrás e que falsifica a mesma visão. Se o pecado fosse só um problema moral, psicológico
ou social, a moral, a psicologia e a sociologia conseguiriam nos curar. Mas não é assim.
2 - Eis então a segunda coisa que o batismo pressupõe: desta situação ninguém se
sai sozinho. Precisa de um novo nascimento, de um nascimento “do alto”. É uma
verdadeira e própria regeneração, o banho no amor de Deus é tão radical que constitui
um novo começo. Não se trata do conserto de uma peça do mecanismo, quebrada pelo
pecado, mas de um novo começo, de uma nova criação. Não somos tão somente lavados,
mas sim divinizados. Na piscina batismal, o batizado é mergulhado em todo o mistério do
tríduo pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo, onde experimentamos não somente um
perdão gratuito do pecado, mas vivemos uma verdadeira ressurreição: descobrimos a nós
mesmos regenerados, possuidores de uma vida que não tem ocaso nunca. Deste modo
trata-se de uma vida recebida.
Podemos nos deixar com Nicodemos. Jo 3.