Debilidade Mental em Questão - Daniele Rosa Sanches
Debilidade Mental em Questão - Daniele Rosa Sanches
Debilidade Mental em Questão - Daniele Rosa Sanches
PUC-SP
SÃO PAULO
2008
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2008
Banca Examinadora
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Agradecimentos a:
Manoel Tosta Berlinck, pela orientação que jamais deixou de apontar à clínica;
Sandra Letícia Berta, pela dedicada e importante ajuda com a teoria lacaniana;
Sônia Petrocini e Vera Taques, pela inicial e fundamental aposta em minha escuta
clínica;
Aos meus amigos que sempre acompanharam e apoiaram a elaboração deste trabalho.
Para Sergio e meus pais.
Clínica Psicanalítica: a debilidade mental em questão.
Sumário
3.1) Psiquiatria................................................................................................................ 30
RESUMO
A debilidade mental é uma categoria clínica definida diferentemente por dois campos de
atuação: a medicina e a psicanálise. Para a medicina a debilidade mental refere-se ao
nível mais leve de retardo mental. Os retardos mentais, por sua vez, são classificados de
acordo com as medidas obtidas nos testes de QI. As diferentes medidas oferecem níveis
de retardo que variam do leve ao grave. O retardo leve (debilidade mental) corresponde
ao nível de QI situado entre 50 e 70. O retardo é entendido, pela medicina, como uma
patologia da inteligência. Já para a psicanálise, a debilidade mental é entendida como
uma posição psíquica adotada pelo sujeito do inconsciente. Na concepção psicanalítica a
debilidade mental não é uma patologia da inteligência, mas sim uma psicopatologia
expressa por um sujeito que não se apropria do que diz nem do que deseja. No campo
psicanalítico a debilidade mental refere-se a um sujeito completamente submetido à
demanda alheia. Este trabalho enfatizará a importância, para a Psicanálise, em fazer um
diagnóstico da debilidade mental por meio da escuta clínica.
Abstract
The mental debility is a clinical category which is distinctly defined by two actuations
fields: the medicine and the psychoanalysis. From the medical point of view the mental
debility concerns to the lowest mental retard level. Mentals retardations are classified in
according with results obtained in IQ tests. The differents measures classify the degrees
of retardation with variations from light to serious level. The light retardation (mental
debility) refers to IQ level between 50 and 70. From the medical point of view the
retardation is understood as a pathology of intelligence. On the other hand for
psychoanalysis, the mental debility is understood as a psychic position adopted by the
subject of the unconscious. On the psychoanalysis concept the mental debility is not a
pathology of the intelligence, but a psychopathology explicitated by the subject that
doesn’t appropriate what says neither what desires. On the psychoanalytic field, the
mental debility refers to a subject completely under someone else’s requires. This paper
emphasizes on the importance for the psychoanalysis to make a mental debility
diagnosis through the clinical listening.
Abstract
The mental debility is a clinical category which is distinctly defined by two actuations
fields: the medicine and the psychoanalysis. From the medical point of view the mental
debility concerns to the lowest mental retard level. Mentals retardations are classified in
according with results obtained in IQ tests. The differents measures classify the degrees
of retardation with variations from light to serious level. The light retardation (mental
debility) refers to IQ level between 50 and 70. From the medical point of view the
retardation is understood as a pathology of intelligence. On the other hand for
psychoanalysis, the mental debility is understood as a psychic position adopted by the
subject of the unconscious. On the psychoanalysis concept the mental debility is not a
pathology of the intelligence, but a psychopathology explicitated by the subject that
doesn’t appropriate what says neither what desires. On the psychoanalytic field, the
mental debility refers to a subject completely under someone else’s requires. This paper
emphasizes on the importance for the psychoanalysis to make a mental debility diagnosis
through the clinical listening.
Key words: mental debility, psychoanalysis, psychic position
1
NOTA INTRODUTÓRIA: o método clínico
não é uma invenção freudiana, mas o método do qual Freud se apropria para inaugurar a
psicanálise.
São Paulo, seu diretor, professor doutor Manoel T. Berlinck, insiste na afirmação de que
pesquisa nesta área deve se valer deste método. Ao pressupor o paciente como quem mais
está autorizado a falar sobre seu sofrimento psíquico, o método clínico torna-se, além de
tudo, uma ética. Por isso optei iniciar a dissertação com um caso clínico.
2
Capítulo 1
1.1 - Elizabeth
com 14 anos, chegou ao atendimento porque sua agressividade havia passado dos limites.
O último colega agredido em aula precisou ser levado ao hospital e a partir daí o colégio
que, com trejeitos desajustados, sempre sustentava um sorriso no rosto, ainda que não
estivesse sorrindo. Com 14 anos tinha corpo de criança. Nos dois anos em que esteve em
atendimento, ela sempre veio com os cabelos presos da mesma forma e carregava uma
bolsinha rosa, pendurada nos ombros cuja aparência murcha e leve dava a impressão de
estar vazia.
que a acompanhava, preferiu ficar na sala de espera e seria entrevistada em outro dia.
Nesse primeiro momento interroguei Elizabeth sobre o motivo de ela estar ali e a resposta
foi imediata:
1
O leitor encontrará nas falas de Elizabeth palavras conectadas por hífen, ou, ainda, palavras que
formariam um ditado popular, mas desconfiguradas, conectadas e grifadas. As expressões unidas por hífens
eram claras, porém pronunciadas como se fosse uma só palavra. Já as expressões grifadas são palavras ou
ditados populares que eram atravessados por uma distorção de pronúncia. O grifo sinaliza como era a
pronúncia de Elizabeth.
3
Elizabeth cursava a terceira série do ensino fundamental e, segundo o
O fato de ficar mais velha e ainda freqüentar uma sala de aulas com
crianças bem mais novas, não agradava ninguém no colégio, exceto, aparentemente, à
eu sou a mais velha, eu sou a única pré-adolescente da minha sala-de-aula, você sabia?
não era seu objeto de questionamento. Ao contrário, adorava cuidar de crianças, e ser “a
mais velha de sua sala” constituía sua definição preferida. Mas era justamente essa
diferença de idade que causava preocupação ao colégio. Sendo ela muito maior do que os
colegas, as conseqüências de sua agressividade eram, também, cada vez mais graves.
neles porque eles são uns mentirosos diamãocheia. E eu falo para eles, ninguém vem me
própria definição, perguntei o que era ser pré-adolescente, ao que ela me responde
sabiamente:
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Estava dada sua resposta. Sem desdobramentos, ser adolescente era ser
quase mocinha e quase criança. Toda vez que eu a questionava sobre o “ser pré-
seguinte resposta:
gesticulava muito. Apesar de ter uma fala possível de acompanhar em seu raciocínio, os
pontos estranhos eram vários, a começar pela aparência de nome próprio, conferida ao
“sala de aula” e agora, literalmente, ao próprio apelido. Em segundo lugar, esta cena do
apelido “boca mole” parecia conter uma discordância de compreensão entre algo
Numa das entrevistas com a mãe, Rose comenta que sua filha tem uma
“certa” dificuldade de pegar as coisas que estão “no ar”. Já havia levado Elizabeth a
5
- Eu vim aqui porque minha mãe ta triste, eu to dando muito trabalho na
escola”, Elizabeth foi ficando nervosa ao lembrar que a diretora do colégio, numa
conversa com sua mãe havia recusado sua matrícula. Querendo argumentar em defesa da
impostos trabalhando honestamente, então como é que alguém pode recusar uma
Há nessa fala uma mistura de sujeitos. Elizabeth tomou como sua uma fala
que parecia ser da sua mãe. A peculiaridade, aqui, não está no tamanho do engano, mas
sim no fato de ser em vão a tentativa de resgatar a dimensão de chiste em sua fala. A
- Eu faço tudo com a japonesa, conto tudo para ela, a gente vai para a
Esse relato teria mais sentido se a colega de terceira série fosse casada;
como não é, a “mãe da japonesa” e a “filha japonesa”, esta última a amiga de Elizabeth,
inconsciente. A fala obscura tinha uma cadeia de raciocínio, apesar das contradições
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inacessíveis. Contou da costumeira ida à escola com a japonesinha, uma vizinha, amiga
de todas as horas. Todos os dias ela saía da escola e ia para a casa da amiga japonesa.
Elizabeth falava muito de Rose (sua mãe) e de sua avó paterna, que morou um tempo em
sua casa, em seu quarto. Falava bastante sobre um terreiro de “ubanda” que sua avó e sua
mãe freqüentavam:
- É assim lá no terreiro minha avó fala com os santos e com os guias, todo
mundo tem guia bom e tem guia ruim. Só vai lá quem é média e eu sou média.
transcendentais que sua avó “recebia”. Com a história de que a avó e a mãe eram
“médias”, ela ocupou muitas sessões tentando explicar como era ser “média”, até que esta
função passou para ela própria, contando que tinha um espírito de prostituta que a
visitava:
espíritos. Essa prostituta sempre vem em mim. A última vez que ela veio ela estava
protegendo-a. Segundo lhe contaram os guias, eu fui “sua irmã mais velha, em outra
“icarnação”.
Dentro desse contexto, contou que sua amiga japonesa também era
“média”. Por algumas sessões Elizabeth se recusa a falar, pois a japonesa tinha o poder
de escutar atrás da porta. Em outras sessões, no entanto, apesar de dizer que não podia
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narrando o cotidiano em companhia da própria japonesa. Elizabeth não percebia a
contradição gritante em seu discurso: num momento não pode falar, no momento
da contradição contida em sua fala. Demarcar seu tropeço era igual ter sublinhado o nada.
Por exemplo, logo após ela ter dito que não podia falar na sessão, pois a japonesa era
“média” e podia escutar, Elizabeth começava a contar da sua ida à escola e que depois da
escola ela costumava ir à casa da japonesa escutar música “do KLB”. Eu lhe perguntava:
“e a japonesa?” Ela dizia: “ah, ela é danadaquisó, tem tudo do KLB”. Algumas vezes eu
insistia: “a japonesa não estava escutando atrás da porta?” mas Elizabeth respondia
apenas com um sorriso. O sorriso da sua expressão facial, quando eu lhe devolvia alguma
era um sorriso que sempre esteve ali remetido a nada. Ela nem se constrangia da
contradição que havia se metido nem tampouco tentava explicá-la, dando a impressão de
que sequer tinha entendido o engano que eu acabara de tentar fazê-la notar.
momentos em que deixou de falar sobre “os poderes de quem é média” e contou sobre
um colega “lindão” da escola, comuniquei-lhe que ela tinha muitas outras coisas para
falar além dos terreiros. Pronto. Desde esse instante, a expressão “muitas outras coisas”
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- Hoje eu tenho as muitas-outras-coisas para contar. Sabe, aqueeeelas2
muitas outras coisas? Então eu falei assim para o Renato: menino, você sabia que sou
pré-adolescente?”
Ela nada sabia falar sobre o que queria dizer com esta “advertência” feita
ao colega. De qualquer forma, aquelas “muitas outras coisas” tinham um repertório exato:
porquê do Taylor. Como resposta me deu o sorriso, que sempre esteve ali. Ela nada tinha
a dizer. Insisti de outra forma, tentando extrair o pensamento que a teria feito assinar
como Taylor, mas de fato surpreendentemente parecia ser apenas um nome escrito ao
lado do seu, sem sentido subjacente algum. Perguntei se ela sabia que Taylor era o
sobrenome de outra pessoa. Não, ela não sabia. Nessa isenção de saber sobre o motivo de
ter assinado “Taylor”, isenção essa num estágio tão verdadeiro que jamais um neurótico
alcançaria, eu, tomada por uma inquietação, fiz a última e estapafúrdia tentativa pedindo
- Meu sobrenome é Alves Perez. O Alves vem da minha mãe e o Perez vem
do meu pai.
fácil deixar o dispositivo analítico para encarnar mais uma pessoa disposta a lhe ensinar
as coisas certas, por exemplo, que não se assina um bilhete com nome de outra pessoa.
2
Dando ênfase caricatural à letra e.
9
Em meio a essas armadilhas - nas quais muitas eu entrei - de alguma
forma aparecia um sujeito a ser decifrado em sua condensação verbal com todos à sua
volta, mas que tinha a particularidade de ser Elizabeth, “a única pré-adolescente de sua
sala de aula”:
1.2 - O caso:
solicitou a Rose que levasse Elizabeth para tratamento psicológico. A opinião das
professoras era de que a famosa aluna tinha algum “probleminha” muito sério; alguma
“coisinha” muito grave, pois muito pouco do âmbito social ela conseguia compreender e
que era sempre alvo. O apelido “boca mole”, por exemplo, foi dado em função de
Elizabeth estar sempre de boca aberta; trata-se daquele permanente sorriso que eu havia
Diferente por ter 14 anos, numa sala onde a idade média era 10 anos,
Elizabeth recebia funções como: pegar o giz na sala ao lado, apagar o quadro, levar as
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Nas palavras da professora, assim teria sido a cena que levou o colega ao
Elizabeth já soltou a dela dizendo que era filha de negra com espanhol. Um colega olhou
para o outro e disse: Falei que a mãe de Elizabeth era negra! Eu estava de costas pegando
o giz no armário e escutei aquele estrondo. Ela tinha partido para cima dele. Derrubou,
mordeu, fez tudo. Foi um horror! Ela é muito maior que ele, deixou o menino um fiapo.
O pai:
De acordo com o que foi falado por Rose, o pai de Elizabeth era
aposentado e ficava vendo Tv o dia todo, no quarto. Não gostava de nada fora do lugar e
era isto que o caracterizava como “doente mental”. Rose contou que ele brigava muito
com Elizabeth, por ela deixar o material da escola espalhado. Elizabeth a respeito de uma
das discussões com o seu pai, contou que ele a havia chamado de égua:
- Porque égua é nome de cavalo. Um dia eu falei para ele, eu vou embora
você numispededisperá. Porque aqui na minha casa, ninguém me chama de égua não,
A mãe:
Rose estava preocupada com Elizabeth. Ela temia que nenhum colégio
11
Rose contou que sempre teve ao seu lado uma filha excelente, sem lhe dar
trabalho algum, uma filha que fazia tudo que ela pedia. Mas agora, “ela está dando muito
contabilidade, oferecia uma vida modesta a Elizabeth. Rose tinha grande proximidade
com o casal de japoneses vizinhos, cuja filha já foi citada por nossa paciente. A
programação de Rose nos fins de semana era visitar o terreiro junto com sua mãe e
Elizabeth. Contou que também convidava sua amiga, a vizinha japonesa, e que esta
virar um pouco sozinha. Acho que faz bem uma ter a companhia da outra. Quando elas
O encaminhamento:
analista demorou muito até conseguir fazer um diagnóstico clínico estrutural de sua
paciente. Primeiramente supôs uma psicose, mas acabou por diagnosticar uma histeria
gravíssima. Segundo seus dados, Rose falava nas sessões que Elizabeth era “filha do
Espírito Santo”. Sobre a própria Elizabeth, contou-me que apesar de ser uma adolescente
12
A clínica onde Rose foi atendida por este colega, e onde eu trabalhava,
comportava muitos profissionais, muitos pacientes, mas apenas uma sala de espera e uma
horário que ela vem para ser atendida pelo Dr. F, porque a filha dela é uma menina muito
infantilizada, não vai conseguir vir sozinha. Eu já vi ela aqui na sala de espera. Ela tem
14 anos, mas é uma criança. Ainda mais que o ponto de ônibus é ali embaixo, acho que
jamais havia feito uma intervenção opinativa como essa. Sua observação era no mínimo
curiosa.
Feita a ressalva, após conhecer Elizabeth, constatei que de fato ela era
infantilizada a tal ponto de transmitir-nos a sensação de ser incapaz de andar sozinha por
aí. No entanto, após a primeira sessão – em que mãe e filha compareceram juntas –
marquei as entrevistas de Elizabeth em dia e horários diferentes daqueles que Rose viria à
Elizabeth estava sendo escutada há meses, mas sua fala vinha coberta por
13
Ela trazia a si e aos outros misturados no monobloco de sua fala. Nesta
para uma psicose. Primeiramente os “delírios”. Era difícil supor que as experiências de
“média”, contadas por Elizabeth, fossem de fato um delírio, pois ela as narrava como
uma criança que brinca de boneca e finge que ali há um pai, uma mãe, uma comidinha,
fala sozinha, ri sozinha etc. Além do “tom” de brincadeira com que Elizabeth falava
sobre os “guias”, também as contradições presentes em seu discurso me faziam supor que
de fato ela não acreditava estar sendo seguida pela japonesa ou visitada pela prostituta.
completamente que a japonesa estava ali ou que a estava escutando, e logo começava a
contar suas “muitas outras coisas” sem lembrar que num momento antes havia dito que
nada podia falar. Com essas contradições tão gritantes, Elizabeth não parecia de fato
acreditar, embora se esforçasse, em todo aquele mundo que estava tentando criar. De
qualquer forma, a hipótese de ser mesmo um delírio não podia ser descartada, e era um
O segundo aspecto, este sim mais consistente para indicar uma psicose,
funcionamento psicótico em jogo, também pela agressividade que compunha a cena, mas
14
principalmente por ser Elizabeth a única a não compreender aquilo que, de outra forma,
todos apreenderam.
compreensão” o relato da cena que levou o colega ao hospital. Fruto de um mal entendido
ou não, ainda assim o incidente seria relevante pela realidade de uma criança
hospitalizada por apanhar de uma colega, que depois nada tinha a falar, a mostrar ou a
esconder a respeito. Sobre seu ataque Elizabeth nada sabia explicar, mas deu o seguinte
argumento:
mãe de negra e isto é mentira porque eu sou filha de negra com espanhol, sou morena
clara.
Outra vez ela não apreendeu a contradição exposta no que foi dito.
psicótico era a peculiar habilidade daquele sujeito, quase criança, de diluir-se no discurso
alheio.
Nada separava a fala de Elizabeth da fala dos outros. Eu, tu, ele, nós, vós,
eles. Estavam todos conjugados, ao mesmo tempo, como sujeitos da mesma oração e da
mesma ação. Nos dizeres do mundo, Elizabeth pegava carona sem pagar pedágio. Com
seu posicionamento discursivo. Tal como sinalizaria para uma psicose, o modo obscuro
15
de Elizabeth operar em sua fala poderia ser lido, igualmente, como um indicador para a
neurose.
outros, ao falar o sujeito não se situava completamente isento da implicação com aquilo
que dizia – como de fato é a dinâmica psicótica presente, mesmo quando o paciente não
está delirando.
ela não se eximia de ser a responsável, e inclusive a proprietária, de tudo aquilo que dizia,
mesmo que a fala não fosse sua de direito. Era uma apropriação da linguagem diferente
ouvir, mas jamais deixou de assumir uma fala como sua. Também não interrompia suas
dois mares, pela transferência, após um acting, Elizabeth mostrou-se mais próxima de
Quando ela estava disposta a falar de suas “muitas outras coisas”, contava
suas peripécias de pré-adolescente. Numa dessas situações, tal como tropeçava na fala,
entrou com a cara trancada, e pela primeira vez com o sorriso meio desfeito:
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– Eu vim contar as “muitas-outras-coisas”. Eu fumei lá na rua com as
meninas adolescentes, elas me obrigaram a fumar. Elas disseram que se eu quisesse não
precisava fumar. Eu fumei. Eu vim aqui para você tirar o cheiro do cigarro-das-
japonesa escutar música. Tentei marcar o engano: as adolescentes lhe disseram que ela
não precisava fumar, se fumou foi porque decidiu. Como sempre, sem acessar a
boca. Eu vim aqui para você tirar o cheiro de cigarro da minha boca!
Tarde demais, nem sua “irmã salvadora da outra “icarnação” poderia tirar
o cheiro da sua escolha. Percebendo que eu não tinha todo o poder que ela havia me
atribuído, diz:
- Minha mãe vai ficar triste, ela vai sentir o cheiro do cigarro-das
adolescentes.
que outrora iria protegê-la. Chateada ela foi embora entristecer a mãe.
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Diante do meu silêncio, e após algum tempo, ela para de rir. Cansada de
E continua:
verdade. Ela é minha amiga e quando eu saio com ela vira-uma- bagunça-só. Ela
também é pré-adolescente.
que tenha recebido o espírito da prostituta. Após isto parece-me que o “ser média” vinha
como mais uma tentativa de Elizabeth de fundir-se ao outro, de copiar o outro, de ser
média e receber espíritos tal qual sua mãe e sua avó. Elizabeth ainda contava que ia ao
terreiro com a avó e a mãe e que era “média”, mas os poderes de “média” aos poucos
- Quando eu fizer 15 anos vou ser adolescente, daí eu vou poder namorar e
transar. Porque as adolescentes namoram e transam. E eu só vou usar roupa preta, que é
a atribuição de saber e potência que Elizabeth creditava a mim, começou a ficar mais
clara a suposição de uma constituição neurótica em jogo. De qualquer forma, não era uma
simples neurose, aliás, em se tratando de uma neurose, esta era de fato muito incomum.
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Apesar da suposição de uma constituição neurótica para Elizabeth, o
funcionamento psíquico em questão era tão turvo e intrigante quanto antes. Ela não fazia
nenhuma pesquisa sobre si mesma, não construía nenhuma hipótese a seu respeito, nada
lhe fazia enigma. Queria ser adolescente e para isso bastava ter quinze anos e copiar a
roupa preta. Ela não questionava as modificações de seu corpo. Não interrogava o porquê
Elizabeth compunha o mosaico de seu ser, com os dizeres de tudo e de todos que
estivessem à sua volta. Por quê? Este era o fenômeno clínico em questão.
bonitas as moças na passarela. Mas, agora você sabia que eu vou ser
1.4 - A nuvem
A maneira literal como Elizabeth se aprisionava ao dizer dos outros fazia uma
nuvem sombreando suas próprias escolhas, seu próprio desejo. Isso era intrigante. Que
posição subjetiva era essa que fazia com que ela acolhesse como verdade tudo que
agressividade na escola, de ser “média”, advogada ou modelo, não importa, fazia caber
para si tudo com tamanha crença e literalidade que jamais questionava o que tudo isso
19
O que ocorreria em Elizabeth para ela se posicionar subjetivamente dessa forma?
caminho, outro recorte sobre a transferência, narrado abaixo, talvez venha elucidar o que
sessões precisariam ter seus dias alterados. Sendo assim, ficou combinado em sessão que
eu ligaria para Elizabeth oferecendo-lhe duas alternativas de horário. Quando liguei foi
Expus as tais duas opções de horários para que ela escolhesse e perguntei sua opinião. O
momento seguinte contou apenas com um barulho forte do telefone caindo ao chão.
ato. Diante da possibilidade de fazer valer seu desejo, ela lança ao chão sua oportunidade
de escolha. Sem qualquer anúncio que sinalizasse a mim o seu intuito de passar a palavra
à mãe, Elizabeth apenas desaparece do outro lado da linha. Ela não só agiu como se a
ligação fosse para Rose, mas surpreendentemente se fez tão exatamente substituível pela
Sem falar, nossa paciente disse com todas as letras: eu escolho o que vocês
outros decidirem.
Tratava-se de uma colagem tão crente que bastava sair uma e entrar a
outra no lugar. Nenhuma fala de Elizabeth seria tão fiel quanto foi esse ato, para nos
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traduzir sua posição de radical submissão psíquica à demanda externa. Essa posição é um
diálogos que não faziam outra coisa senão anunciar o tempo todo quão colada era
Debilidade Mental.
adolescente. Pronto! Elizabeth passava a representar seu ser com esse nome. Nome que
que lhe nomeavam. Por isso, o funcionamento débil estava em pauta, como um véu,
como uma nuvem, fazendo sombra nas manifestações neuróticas mais típicas e trazendo à
do Outro era tomado por Elizabeth como se ela fosse um vazio a ser preenchido.
suas fichas, apostando que as palavras são as representantes absolutas do desejo desse
Outro. Nesta crença inocente está fundada uma ética que propõe uma relação com a
21
Nessa ética, Elizabeth acolhia as mais diversas propostas de se representar
a ser. Aprendia tudo com tamanha literalidade que ninguém podia acusá-la de não
Quer que eu adore cuidar de crianças? Adorarei, sem delongas. Se dizes que ser pré-
adolescente é ser quase mocinha e ser quase criança, então, nada a isto acrescentarei.
televisão, sem alterar vírgulas, sem alterar a entonação. Jamais separava aquilo que um
dia, o mundo havia juntado, por exemplo, Elizabeth com Taylor. Sala com aula.
A dimensão metafórica das palavras não era acessível a ela. Seria apenas
uma debilidade de linguagem, caso o inconsciente não fosse estruturado como tal. Sua
existência estava penhorada ao Outro, como evidencia a cena do telefone aonde o sujeito
Elizabeth supôs que falar com ela ou com a mãe dava na mesma, eram uma só pessoa.
aparentemente tão vazio, quanto uma cópia preta e branca, de um desenho colorido. Nos
riscos pretos e marcantes entende-se exatamente o que está desenhado, mas o fundo é
vazio e pode ser preenchido com qualquer coisa, tal como Elizabeth se preenchia com
qualquer nome, com qualquer Ideal. Assim, também, eram os ditados populares
utilizados em larga escala, efetivos em seu contorno, mas vazios em seu conteúdo.
22
Dos ditados vazios à famosa bolsinha rosa pendurada em seu ombro, de
esses traçados poderia implicar a destruição de linhas suportes de uma existência, ainda
que imaginária. Aqui está evidente, mais uma vez, quão próximo é o campo da psicose e
da debilidade.
posicionava com essa radical e literal submissão ao Outro, até onde o atendimento teve
aparecer em Elizabeth. Ela não questionava essas manifestações, mas ao menos seu corpo
Alguma coisa deve ter sido minimamente desencaixada para que sintomas
algum êxito. Antes, seu ser era quase sem Eros. Talvez o bloco entre ela e o Outro tenha
aberto uma pequena fresta por onde a pulsão pudesse minimamente circular.
Além da mãe, existia ela. Ainda não completamente separada, mas já com alguma
23
A psicanalista que a atendeu em seguida, em algumas conversas
Elizabeth.
Quem sabe, talvez, essa dúvida tenha sido o efeito do próprio trabalho?
diagnóstico da Debilidade Mental feito pela escuta. A debilidade era a nuvem que
sujeito diagnosticado pela escuta como débil o fez a tal ponto alienado nessa radicalidade
de submissão?
Ora, mas esta não seria a boa fortuna reservada a todos nós?
débil – não conseguir disfarçar aquilo que o neurótico, em vão, tenta esconder: sua
alienação ao Outro.
24
Capítulo 2:
INTRODUÇÃO
Estudar a debilidade mental implica tomar uma posição para dela poder falar,
mas também implica reconhecer outras posições que falam desta manifestação clínica sob
várias vertentes.
posição porque reconhece a existência de outras posições” (p. 22). Esta posição prevê
argumentar não só a sua posição, mas também a dialogar com as outras posições.
estar presente, pois trata-se de um pathos psíquico abordado por vários campos de
sustentadas por diferentes autores que falam sobre este pathos psíquico chamado
debilidade mental.
25
Além de sofrimento, de pathos deriva-se também as
palavras “paixão” e “passividade”. Assim a Psicopatologia
Fundamental está interessada num sujeito trágico que é
constituído e coincide com pathos, o sofrimento, a paixão, a
passividade. (Berlinck, 2000, p. 18)
humano em sua íntima relação com seu próprio desejo e saber inconsciente.
Outro de um modo muito particular, servil e literal. Esta visão, além de ser consenso
desde Mannoni, que inaugurou uma escuta clínica dos pacientes débeis, até os autores
Este percurso será feito essencialmente com a teoria lacaniana, por ser esta a
maioria dos autores irá concordar que a debilidade mental é uma expressão psíquica
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particular e diferenciada dos outros processos já previstos por Freud, como um sintoma,
de duas autoras que concebem a debilidade não como manifestação psíquica particular
“Outras interlocuções”. Estas interlocuções serão trazidas para mostrar quão amplo é o
debate sobre o tema. Além da clínica da inibição também será feito um adendo a respeito
Nesta interlocução será discutida uma articulação da condição psíquica com a condição
fenômeno da debilidade mental tomado aqui como uma particular posição do sujeito do
inconsciente.
lugar, para falar do ponto de vista simbólico, tentei articular o conceito lacaniano de
relação ao objeto a da fantasia materna. Debate este iniciado por Mannoni (1964) e
proximidade clínica com a teoria, somando ao caso Elizabeth, ao longo de todo o trabalho
27
procurei apresentar outras “vinhetas clínicas” e antes disso, a debilidade mental será
Por fim, antes de entrarmos na discussão sobre o tema, gostaria de propor que
a debilidade mental fosse tomada aqui como um “problema clínico”. Por quê? Porque
Esta obscuridade que acompanha a clínica da debilidade mental faz com que
sujeitos hoje diagnosticados pelo QI como débeis sejam confinados à Educação Especial
sem qualquer espaço clínico que lhes dê escuta. Ao serem definidos como débeis deixam
sua condição de pacientes para responderem a uma condição de eternos alunos. Esta
psiquiatria. Desta segregação é preciso resgatar a condição clínica destes que hoje
desconhecida. Falada e debatida por poucos a condição débil gera certo estranhamento
Ambas suposições são mitos que foram construídos por mais de um século de teorização,
mas foram igualmente desconstruídos pela própria psiquiatria, ou seja, foram igualmente
28
Este desconhecimento e não reconhecimento da debilidade enquanto
manifestação psíquica causa um freqüente erro diagnóstico. Muitos pacientes débeis são
apreensão metafórica. Sendo a debilidade uma condição psíquica pouco lembrada ou até
problema clínico, de um pathos psíquico inserido num contexto complexo. Assim, antes
coordenada que orienta qualquer pesquisa em psicanálise: a clínica. Eis por que foi
29
Capítulo 3
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
3. 1- Psiquiatria
fundamentada por um caso clínico (o caso Elizabeth) é tal como foi definido pela
hipótese metapsicológica que Maud Mannoni irá supor para o fenômeno, e os autores
mental”.
construíram todos os estigmas que ainda hoje, acompanham como mitos o termo
conceituação específica, sendo por isso utilizado para designar um fenômeno clínico.
psíquicas que observa. Conforme o autor, em 1800, quando elabora seu “Tratado médico-
filosófico sobre a alienação mental”, Pinel nomeia o grande grupo das alienações de
4
Até o momento de encerramento do trabalho infelizmente não consegui ter acesso às fontes originais da
bibliografia psiquiátrica que se segue. Diante desta impossibilidade optei por apresentar as “origens” do
conceito por meio de outros autores que já estudaram mais detalhadamente este percurso psiquiátrico.
30
“Neuroses Cerebrais” e pressupõe que podem ter duas origens distintas: perturbação das
Como observa diferentes níveis de alienação mental, Pinel divide a categoria das
mais alto grau de alienação mental. O quadro abaixo resume a concepção de Pinel dentro
QUADRO 1:
Abolição Perturbação
Origens
da Função da função
1) Melancolia
Gravidade
2) Mania
3) Demência
4) Idiotismo
31
Pinel naturalmente viu tudo, mas não com o nosso olhar:
sua nosologia visou criar grandes classes fenomenais e
comportamentais convencido de que estava de que estas grandes
divisões abarcavam algo da essência do real. Pensamos hoje com
categorias muito diferentes: para nós são pequenos sinais que
importam e definem o fenômeno. (Bercherie, 1989, P. 37)
o conceito de idiotismo estabelecido por Pinel, como ponto de partida para a construção da
noção de debilidade. A importância crucial de Pinel é não apenas por ser o primeiro a fazer
referência às formas de alienação mental, dentre as quais o idiotismo é o modelo mais grave,
mas principalmente por colocá-lo, mesmo a forma mais grave, como reversível, caso tenha
sido adquirido. Neste contexto, Pinel postula duas hipóteses de origens para o idiotismo:
QUADRO 2:
IDIOTISMO
(Quadro clínico mais grave de
Alienação Mental)
Possíveis
Origens Adquirida Congênita
32
Da reversibilidade (parcial) à irreversibilidade, foi o próximo passo
encontrado ao se retornar à história dos idiotas, sendo este passo atribuído à Étienne
Esquirol (1838). Com Esquirol, o quadro clínico de “alienação mental”, antes observado
manifestação não mais delimita apenas um quadro clínico, mas sim constitui uma um
QUADRO 3
DE PINEL A ESQUIROL
congênita ou ocasionada por uma doença na infância que provocou uma lesão. Sendo um
33
Ele separou da idiotia (termo pelo qual substituiu o
idiotismo, que já tinha um sentido gramatical) congênita ou
adquirida desde tenra idade, de qualquer modo, definitiva, o
idiotismo adquirido de Pinel que transformou em demência
aguda. Descreveu diversos graus desta enfermidade evolutiva:
imbecilidade, idiotia propriamente dita e cretinismo, forma
especial. (Bercherie, 1989, p. 49).
QUADRO 4
IDIOTIA
Categoria (Doença cujo quadro clínico é o
Geral comprometimento da atividade
psíquica)
1) Imbecilidade
2) Idiotia
3) Cretinismo
34
disso, diferenciou claramente a idiotia da loucura: não é uma
doença é um estado em que as faculdades intelectuais nunca se
manifestaram ou não puderam desenvolver-se o bastante, assim
fixando por um bom século o estado da questão – exceto no plano
da educabilidade, que ele julgou nulo e que Seguin, Voisin e
Delasiauve mostrariam ser possível. (Bercherie, 1989, P. 49)
irreversibilidade, destino proferido pelo elemento orgânico que lhe daria origem. Mais
adiante veremos que os médicos citados por Bercherie terão papel importante na
Esquirol, começa a figurar o psiquiatra Valentim Magnan cuja visão clínica está fundada
Foi pelas mãos de Magnan que surgiu pela primeira vez o termo “debilidade
mental”. De acordo com a pesquisa de Santiago (2005) o débil foi descrito por Magnan
35
Segundo Bercherie (1989) a categoria geral das loucuras foi dividida por Magnan
psíquica, tem-se a categoria das “psicoses”. Calcada na hipótese da origem orgânica, têm-
QUADRO 5
Categoria LOUCURAS
Geral PROPRIAMENTE DITAS
Origens Orgânica
Psíquica
(hereditária)
1) Idiotia, imbecilidade e
debilidade mental
Gravidade
2) Anomalias cerebrais
3) Síndromes episódicas
4) Delírios
também sendo caracterizada por Kraepelin como uma sub-categoria inclusa numa
36
Psíquico”, assim descrita: “Suspensão do Desenvolvimento Psíquico: a. idiotia; b.
Kraepelin, este também dividiu os quadros clínicos segundo duas hipóteses etiológicas:
QUADRO 6
Categoria
Geral PSICOSES CRÔNICAS
Doença Doença
Mental Mental
Adquirida Congênita
Suspensão do
Psicoses desenvolvimento DEBILIDADE
psíquico
... ...
37
Depois de Kraepelin, os próximos teóricos a categorizarem a concepção de idiotia
mudança crucial, que marca um giro na concepção clínica, como o próprio Bercherie já
Com este resgate vimos que Esquirol construiu uma estrada de sentido único, que
presença de uma origem congênita (ou um déficit orgânico adquirido), seria alguém que
adiantado, ou seja, que Seguin e Voisin (1846) entram nessa estrada de Esquirol, pela
contramão. Conservaram a noção de déficit orgânico como origem para a debilidade, mas
o tratamento.
que só poderá vir a provocar uma “parada” no desenvolvimento global, caso o paciente
não tenha recebido uma Educação Especial; a autora ainda relembra que Seguin e Voisin
A pesquisa de Santiago (2005) nos conta que esse contexto fundou a pedagogia
Voisin (1846). Os idiotas foram transferidos dos asilos para as instituições de educação
especializada, mas com o alto custo para a manutenção dessas escolas, as crianças foram
38
realocadas para salas de educação especial, em escolas regulares. Ainda conforme a
autora, esse é o palco a partir do qual a pedagogia experimental entrará em cena no início
do século XX, tendo Binet e Simon como protagonistas e em meados do século surgirá
Tal como havia notado Bercherie (1989), Santiago relata que com o passar
Observa Santiago (2005) que nesse caótico contexto os médicos Alfred Binet e
Theodóre Simon foram convocados pelo governo francês para elaborar um teste que
diferenciasse aquelas crianças que eram de fato débeis, daquelas que tinham um mero
um dentro dos seus padrões, após a aplicação dos testes o cálculo é obtido pela divisão
39
Mais do que separar os que deveriam ir ou não para a Educação Especial, o teste
de QI, como infelizmente sabemos, teve e até hoje tem um uso absolutamente
indiscriminado: a escala ainda é único meio usado na admissão de alunos por muitas
escolas cuja proposta é a chamada “educação inclusiva”; o QI, por muito tempo foi
emprego. Estes são alguns dos exemplos de aplicação isolada e infértil dos testes de QI.
Ao criarem este teste, os médicos talvez não pudessem prever tamanho uso da sua
invenção.
QUADRO 7
(QI) 0 20 25 40 50 70 80 90
psiquiatria, deixa de ser uma categoria clínica para designar, desde então e até hoje, uma
40
Os níveis de classificação permaneceram os mesmos, mas, numa tentativa de
sido a saída encontrada pela medicina para conferir um status de cientificidade à anterior
nomeação desgastada pelo mau uso. Do grego oligos= pouco; phren= espírito,
feito avançar alguns destes quadros clínicos, antes entendidos como irreversíveis.
Mesmo com esses esforços a troca de nomenclatura nunca foi efetivada, mas sim os
QUADRO 8
Normal
QI (Coeficiente 0 25 50 70
de Inteligência)
41
Portanto, o conceito de debilidade mental válido hoje é exatamente o mesmo,
descrito em 1905. Embora naquela época, como afirmou Santiago (2005), o conceito se
permanece ainda hoje como um dos mitos mais fortes para o termo “debilidade mental”.
De 1900 para os “anos 2000”, o conceito psiquiátrico para o débil mental não
se reversível desde que tenha educação especial, de outro sua origem orgânica jamais fora
Com exames cada vez mais avançados que passaram a detectar os mais
longínquos resquícios orgânicos, a psiquiatria foi aos poucos retirando suas fichas da
aposta no déficit orgânico. A origem orgânica do grau mais leve de retardo mental (a
debilidade. Nesse contexto, a psiquiatria se viu numa enorme incógnita. Como vimos,
42
das de origem não orgânicas, no entanto, todo o conhecimento sobre o sempre enquadre
orgânico feito para a debilidade passou a ser fortemente contestado pelo próprio avanço
tecnológico da medicina.
psiquiatria, é possível fazer uma leitura que em geral extrai das entrelinhas dos diversos
manuais três possíveis saídas para responder ao dilema colocado: podemos observar que
uma primeira medida tomada foi elencar uma categoria, denominada “limítrofe”. Essa
nova categoria poderia enquadrar aqueles indivíduos sem déficit orgânico com QI pouco
abaixo da média normal, por terem sido privados de cultura, de estimulação, etc. Em
outras palavras, surge essa categoria “light”, como o argumento que pretende dar conta
Numa leitura que faço de alguns manuais é possível notar que há uma segunda
que paira sobre a categoria débil, aposta-se que mesmo o mais sofisticado instrumento de
detecção de anomalias orgânicas, não seja sofisticado o suficiente, para detectar o real
Há ainda uma terceira saída ao impasse, esta mais claramente colocada pelos
convicção pela maioria dos tratados de Psiquiatria Infantil. Segundo esta hipótese, além
psicológico que determine a debilidade mental. É com esta hipótese psicológica associada
43
debilidade mental. Também é com esta concepção que pacientes diagnosticados com
debilidade mental, pelos testes de QI, sofrem um “jogo de empurra”, entre a medicina e a
um lado alguns psiquiatras prevêem que fatores psíquicos podem contribuir para a origem
psicológico, mas de outro, algumas clínicas “psis” estão paradas na única aposta dos
séculos anteriores e encaminham o paciente de volta aos exames, pois sabem: trata-se de
uma deficiência orgânica. Neste jogo de empurra, o campo que mais acaba acolhendo
para a etiologia e com resultados de exames cada vez mais sofisticados que de fato não
44
Apesar de a maioria dos casos de retardo não ter uma etiologia orgânica,
qualquer outro tipo de lesão ou síndrome sozinhas não seriam suficientes para determinar
45
Assim, os casos com comprometimento orgânico representam a menor parcela
dentre os indivíduos com retardo e são mais freqüentemente “enquadrados” nos níveis de
retardo mental
grave
retardo mental
médio
Déficit Orgâncio
retardo identificado
mental leve Nenhum Déficit
(debilidade Orgânico
mental)
antiga terminologia “deficiência mental”. Também esta terminologia luta há anos para ser
houve uma tentativa de substituição deste último e como conseqüência desta tentativa o
46
que mais se usa atualmente para designar aqueles pacientes que possuem claro problema
debilidade mental, se apenas a minoria dos casos de retardo carrega consigo algum déficit
orgânico, então, para a psiquiatria quase 90% de todos os casos de retardo, tem por
definição de Retardo Mental” é aberto com o seguinte quadro para que o leitor compare o
47
Finalizando esta visita à bibliografia psiquiátrica desde os primórdios de sua
construção até a definição mais recente, esta busca teve o objetivo de resgatar a
A partir deste resgate vimos que a debilidade mental tornou-se para a psiquiatria
uma categoria muito obscura o que entretanto não impediu que a medicina se esforçasse
muito para retirar todos os estigmas que o termo adquiriu. Porém, ainda hoje, não só a
debilidade como também todos os níveis de retardo são categorias que saem muito
Veremos a seguir que a psicanálise, pela figura de Maud Mannoni, oferecerá uma
escuta clínica para sujeitos diagnosticados com retardo pelos testes de QI. No entanto, a
partir desta escuta, a psicanálise fará um uso diferenciado do termo “debilidade mental”
como uma posição subjetiva que pode ser encontrada em alguns sujeitos com os mais
termo debilidade mental um outro uso e sentido; no entanto, veremos que apesar desta
debilidade mental como expressão de uma forma específica de alienação ao Outro. Ora –
por mais diferenciada que seja a concepção entre os dois campos –, impossível negar que
esta definição psicanalítica se dá ao melhor estilo “Philip Pinel” para quem o fenômeno
48
3. 2 - Psicanálise: revisão teórica e discussão clínica.
numa tentativa exagerada de fazer valer o saber do outro como verdade absoluta, não
Paulo sempre teve em termos pedagógicos um atraso mediano. Como seus exames
denunciam o modo débil como se posicionava frente ao Outro: era sempre motivo de
risos dos colegas, mas uma situação inusitada marcou a dimensão do problema.
Ao ter sido convidado para uma festinha, Paulo anunciou que, na hora certa, ia
pedir uma garota em namoro. Os colegas, que já agiam de “má fé” acostumados às
trapalhadas ele fazia com a linguagem, perguntaram-lhe qual seria a “hora certa” e
49
Desde então, a festinha ganhou um novo motivo para existir. Os jovens
esperava no salão. Depois de sozinho por alguns minutos, o jovem começaria a “dar-se
conta” de alguma coisa errada. Irritado, e provavelmente triste, ligou para a mãe e foi
embora da festinha. Os colegas ficaram com peso na consciência por terem-no colocado
na ridícula situação. A mãe, chateada com a rejeição que o filho sofria nessas ocasiões,
faz o seguinte comentário: “Todo dia ele estava pedindo uma menina em namoro e as
mães começaram a reclamar comigo, daí eu falei para ele se acalmar, porque tinha a
hora certa para pedir uma menina em namoro. Olha só no que deu!”.
O débil, portanto, sustenta a qualquer custo a verdade que está nas palavras do
Outro, sejam palavras para dizer quem ele é, sejam palavras que ele supõe que irão inseri-
lo no código usado por todos. Seu esforço para não errar é tamanho que “passa do ponto”.
50
3.2. 1 - Maud Mannoni:
Começando seu livro com o depoimento acima, a autora anuncia a hipótese que
irá ganhar consistência ao longo da obra, e também sua posição frente ao fenômeno da
debilidade mental.
quais, como vimos, a maioria dos pacientes possui uma deficiência orgânica evidente e
comprometedora.
51
ficam marcadas pela provação e chegam a assumir um aspecto esquizóide à força de se
biológicos importantes, pois os aborda com cautela e nitidez clínica. Seu trabalho foi
Analisando estes dois tipos de quadro de retardo, o grande mérito da obra foi
justamente descobrir que tanto nas situações de retardo leve (débeis mentais), quanto nas
de retardo grave, a relação entre pais e filhos contém as mesmas características. Mas
52
Uma vez delimitado ao leitor o âmbito da debilidade mental, como foco
específico do trabalho, Mannoni (1964) lança a pergunta que deveria ser feita por todos:
“Porque razão há débeis estúpidos e débeis inteligentes, com QIs idênticos?”. (Mannoni,
1964, p. 20)
Esta simples pergunta seria suficiente para fazer valer uma pesquisa a respeito das
peculiaridades da posição psíquica do sujeito débil sendo ele portador ou não de uma
deficiência.
inexplicável e incompatível, tanto com o nível de QI, que indica um retardo leve (uma
hipóteses. Sua obra é, ainda hoje, a mais clínica bibliografia existente sobre o assunto.
analogia do débil com o sintoma, ela mesma ressalta suas dúvidas: “Ao estudar o sentido
que o retardamento pode ter para uma criança débil, descobrem-se situações que lembram
53
estranhamente as que observamos em famílias de psicóticos e perversos”. (Mannoni,
1964, p. 27)
sintoma, ou seja, procurando seu sentido inconsciente, a autora cada vez mais acredita
que este sentido não está na criança e sim na mãe. Com isto, ela aponta o caminho que,
sintoma, tal como a psicanálise está acostumada a conceber, desde Freud: “Qualquer
estudo da criança débil ficará incompleto enquanto o sentido da debilidade não for
fantasmática do bebê com a mãe. A debilidade mental, para Mannoni (1964), é o efeito
desta relação da fantasia materna que provoca “uma fusão”, ao nível corpóreo, do bebê
com a mãe.
da mãe com a criança débil ganham cada vez mais consistência. Verifica-se em Elizabeth
sua precariedade psíquica ao existir fundida ao desejo da mãe. Percebe-se, por exemplo, a
54
estudou a presença da debilidade mental nas três estruturas clínicas (neurose, psicose e
perversão), e expõe o seguinte caso de uma grave debilidade, num sujeito psicótico:
embora essa relação seja a observação mais constante e gritante nos casos de debilidade
55
mental, Mannoni (1964) alerta que não se poderia criar uma padronização da mãe do
Após fazer a si própria esta crítica, ela analisa seguidamente 19 casos de crianças
retardadas com claro comprometimento orgânico. Nestes relatos fica evidente como o
débil portador de alguma deficiência ocupa exatamente o mesmo lugar ocupado no desejo
56
comum e sobre o qual a psicanálise pode ter um certo efeito: em
todas essas famílias há um desgosto de viver, uma história
perturbante que é paralela ao retardamento ou que o agrava.
(Mannoni, 1964, p 125).
Mannoni (1964) anuncia com isto que há um traço comum subjetivo que sustenta a
debilidade. A autora detecta alguma característica subjetiva que, a despeito dos diferentes
níveis de QI, alguns pacientes são iguais quanto à sua postura subjetiva. Outros, apesar de
Conforme veremos durante este trabalho, a postura comum que Mannoni (1964)
encontrou em alguns pacientes com diferentes graus de retardo será chamada aqui de
Esta proposta de haver uma posição débil em uns e não em outros vem ao
diagnosticados pelo QI com retardo grave podem não ser psiquicamente débeis; por outro
lado, pacientes diagnosticados pelo QI apenas com retardo leve podem ser gravemente
57
Voltando à obra de Mannoni (1964), observamos que seu grande mérito foi
oferecer escuta a esses pacientes e não determinar precisamente qual o estatuto clínico
desta característica comum a alguns retardados graves e leves. Sendo assim, Mannoni
(1964) ora entende esse “traço comum” como um sintoma da criança cujo sentido deve
estar na mãe, ora o compara com as estruturas clínicas psicose e perversão. Ou seja,
Mannoni (1964) expressa uma confusão clínica sobre qual nível diagnóstico se
enquadraria a debilidade:
Com o caso Elizabeth a proposta foi trabalhar com dois níveis diagnósticos a
metapsicológica, por outro ela clinicamente não tem dúvidas a respeito da condição que
põe em jogo a debilidade: “(...) vimos, ao longo deste trabalho que o drama destas
crianças é justamente nunca terem sido tratadas como sujeitos de seus desejos”
fenômeno e a dignidade de escuta que reservou aos débeis – a mais valiosa contribuição
58
de sua obra. A grande tese que merece ser olhada com respeito, pois ainda hoje é a que
fala mais alto, refere-se à debilidade mental fundada por uma patogênica relação entre a
fantasia materna e a criança. A essa tese vale ressaltar a importância do “dizer parental”,
pois é deste dizer que o bebê tem notícias de como essa mãe dirige seu desejo ao pai.
Portanto, a rigor, não há apenas uma “relação dual”, pois o pai (representante do falo)
está implicado desde o início como um terceiro elemento nesta imaginária relação “dual”.
A hipótese do débil responder à fantasia da mãe encontrará eco no que Lacan chamou de
Mannoni.
Mannoni que, ciente da enrascada teórica na qual havia entrado, não encontra solução
imediata, mas alerta para o que pode parecer uma solução sedutora:
concepção e defendem que a debilidade mental tem uma conexão íntima com a inibição.
59
Finalizada a exposição da pioneira sobre o assunto, vamos agora às raras, porém
O seminário de 1964 não era, para Lacan, como os outros. Uma renovação
Lacan ofereceu nesse ano uma construção teórica que marcaria uma renovação
conceitual em sua teoria: a introdução das operações de alienação e separação para dizer
60
Justamente neste contexto de “renovação” teórica, mais precisamente quando
estava descrevendo as operações de “alienação e separação”, Lacan cita pela primeira vez
a criança débil.
Estava em pauta a constituição psíquica do sujeito. Após ter falado sobre o que
A crítica que ele faz da experiência é mais surpreendente ainda e banhada por
61
Destacamos aqui dois recortes desta citação:
porque o cachorro associou um signo a uma coisa, mas simplesmente porque o cachorro
– até então um ser não falante – não pôde questionar o desejo do experimentador.
Ao dizer que isto nos situa quanto ao que se deve conceber do efeito
psicossomático, somos levados a pensar que tanto o paciente débil quanto o paciente
encontra-se no que Lacan chamou de holófrase5 do par S1 e S2. Nessa passagem, vemos
que Lacan, elegantemente, acolhe e refaz a proposta de Mannoni de que o débil seria a
resposta a uma fusão (mãe + criança), mas não uma fusão ao nível corpóreo, como
anunciava Mannoni (1964) e sim uma fusão ao nível significante (S2 colado a S1)6.
desdobramentos teóricos nos anos seguintes ele fará outras referências a debilidade
mental.
breve explicação do momento teórico vigente, tal como feito com o Seminário 11.
Uma vez que nosso ponto de partida foi em 1964, a partir daí vamos pegar
carona com o autor Pierre Bruno, que no seu texto “À coté de la plaque: sur la debilité
5
No dicionário Aurélio encontra-se o termo “holofrase”. A não acentuação nos oferece uma maior
compreensão a respeito do que se refere o termo. Mas no dicionário Houaiss há também o termo acentuado,
(holófrase) como este é o mais usado nos textos psicanalíticos, optei pelo último.
6
Na discussão metapsicológica há uma parte destinada à Holófrase.
62
mentale (1986)”7 também faz um percurso comentado sobre todas as menções de Lacan a
respeito. Com esta “dobradinha” podemos não só ter uma leitura das referências
lacanianas, mas também da visão de Bruno quanto ao assunto. De início, Bruno (1986) é
em 1964” teve justamente o intuito de resgatar aquilo que muitos autores desconsideram.
Outro – tal como era a fala de Elizabeth – então, a referência lacaniana da holófrase, em
1964 não poderia ser tão desprezível assim. Ainda que a colagem seja um semblante – ser
somente o semblante, eis talvez o que difere a debilidade da psicose – não é possível
descartar, de pronto, a suposição de Lacan em 1964, apenas porque a teoria nos anos
7
A versão do texto de Pierre Bruno utilizada aqui é retirada de “Papéis do Simpósio”, numa tradução de
Maria Luiza Cançado. Esta foi a única versão do texto da qual consegui ter acesso.
63
forçoso afinal que nem tudo seja tão débil assim no débil mental.
E se ele fosse um bocadinho ardiloso, o débil mental? Vocês
compreenderão melhor o que eu quero dizer se souberem
reportar-se aos bons autores, ou seja, Maud Mannoni. Essa era
uma idéia que já havia ocorrido a alguns. O chamado
Dostoiésvski deu o nome O Idiota a um desses personagens que
se portam da maneira mais maravilhosa, seja qual for o campo
social que atravessem e a situação de embaraço em que possam se
meter.
Às vezes evoco Hegel, e isso não é razão para voltar a
refazê-lo. A astúcia da razão, diz ele. Aí está algo, devo dizer, de
que sempre desconfiei. Com muita freqüência vi a razão ser
tapeada, mas vê-la ter êxito numa de suas astúcias, isso eu nunca
vi na minha vida. Talvez Hegel o tenha visto. Ele vivia nos
pequenos círculos da Alemanha em que havia muitos débeis
mentais e, na verdade, talvez tenha sido ali que buscou suas
fontes. (Lacan, 1969, p. 172).
Ainda nessa aula Lacan se pergunta sobre qual razão o débil se confecciona uma
“autenticável” por ser esta a impressão clínica oferecida, pelo débil, até mesmo para a
Elizabeth, a todo momento que falava, tinha a certeza de ser aquilo que diziam
que era e isto dava à nossa pré-adolescente uma invejável e inabalável verdade sobre as
coisas.
para analisar o que a citação lacaniana queria dizer com a “astúcia” de Hegel. De forma
64
A astúcia da razão – diz Hegel – deixa agir em seu lugar
as paixões. Indicação quase decisiva que pôs de um lado César
enquanto ser de ação e de outro o débil como encarnando a razão,
ao se iludir em frustrar a astúcia na qual ele acredita. Nós
podemos dizer, com efeito, que o débil é o indivíduo que se
recusando a ser particular se faz servidor de uma verdade que ele
espera que o gratifique com a universalidade da qual, no final das
contas, ele paga com o preço de se interditar a todas as paixões
para se encontrar com uma mercadoria fantasma. (Bruno, 1986, p.
18)
Bruno (1986) resgata o exato movimento débil que torna o sujeito um objeto de
deboche do Outro. A astúcia da razão faz o sujeito não questionar a palavra do Outro, e o
débil propaga como sua uma verdade que não lhe pertence.
Tal como Paulo estava correto em acreditar que havia uma “hora certa” para se
pedir uma menina em namoro, Elizabeth tinha total e inequívoca razão em se declarar
uma “pré-adolescente”. É tudo verdade, mas uma verdade quem vem do Outro e é
indicar que ocupamos ocasionalmente a posição débil para falar de algumas verdades
Não só carregar a verdade consigo, mas anunciá-la a céu aberto talvez coloque
qualquer um na debilidade.
Ora, geralmente quem ganha a partida não é quem denuncia as próprias cartas,
mas sim quem “se faz de bobo” e esconde o jogo. Poderíamos pensar que este que “se
certo de que vai ganhar, nem questiona o jogo do Outro, pois aposta que têm em mãos as
65
melhores cartas. Este é o bobo do débil, porque é o bobo da “astúcia”, ou seja, tem a
certeza de algo absolutamente incerto. “É dizer que a astúcia da razão, ao vencer, se torna
ridícula, porque ela postula uma teleologia da consciência do Outro”. (Bruno, 1986, p.18)
teórico na elaboração lacaniana. Este avanço responde pela conceituação da teoria dos
histérico). Cada discurso mostra um modo específico pelo qual o sujeito tenta recuperar
A teoria dos discursos, elaborada por Lacan de 1968 a 1970, associa a dimensão
significante do sujeito com a dimensão pulsional, de tal forma que esta associação refere-
o sujeito falha nesse resgate e aí há sempre um gozo perdido. Por outro lado, ao tentar, o
sujeito obtém uma satisfação, produzindo um outro gozo, aquém do almejado, mas que,
desejo Outro
verdade perda
elementos são:
66
S1 (significante mestre): Representa o primeiro significante que identifica o
significantes cuja função é representar o sujeito para aquele significante inicial. Por isso,
quatro lugares descritos anteriormente. Segundo Lacan (1970), o sujeito pode tentar
Mestre Universitário
S1 S2 S2 a
$ a S1 $
Histérico Analítico
$ S1 a $
a S2 S2 S1
Cada discurso mostra o lugar específico que cada sujeito destina à sua apreensão
girar os discursos.
67
No já criado contexto da teoria dos discursos, Lacan, em 1972, afirmará que o
débil é o sujeito que não está solidamente instalado em um discurso, ele flutua entre dois:
Para Lacan, portanto, o débil não obtém seu resgate de gozo por nenhum dos
que, para o débil, o S2 (saber inconsciente) está anulado. Talvez, justamente por isso, o
débil não consegue posicionar-se em um discurso, pois não tem todos os elementos à sua
que o que interessa nessa citação é a debilidade ser situada como condição clínica da
ocultação da impotência.
Não sabemos exatamente qual raciocínio levou Bruno a extrair essa conclusão,
mas para seguirmos além, lembramos que também para Mannoni (1964) a impotência
Do ano de 1972 vamos para o ano de 1974, no seminário RSI, onde encontramos
Lacan comentando a debilidade mental. Interrogando a si e aos seus alunos sobre o que
68
O sentido é esse pelo qual responde alguma coisa
diferente do simbólico, que é - não há meio de dizê-lo de outra
maneira – o imaginário. (...) Eu diria que se o ser falante se
mostra devotado à Debilidade Mental é pela ação do imaginário.
Esta noção com efeito não tem outro ponto de partida senão a
referência ao corpo. E a menor das suposições que implica o
corpo é essa – isso que para o ser falante se representa não é
senão reflexo de seu organismo. (Lacan, aula de 10 de dezembro
de 1974, seminário RSI, inédito)
obra é cara ao sujeito, pois ao que tudo indica comprou-a com recursos obtidos da venda
do seu desejo.
Mais uma vez, de carona com Bruno (1986), tal “obra” seria viável porque, o
significante é por essência diferença pura, mas não pode prescindir de uma consistência
imaginária:
A consistência dada àquilo que não existe revela a debilidade mental em sua
forma mais pura. Paulo, ao proclamar uma hora, que seria a certa, materializa uma
69
Em 1977, ele se disse incluído na debilidade mental afirmando que o homem não
sabe fazer com o saber, mas, em 1980 ele nota uma vantagem sua em relação ao débil
dizendo que ele sabe o que faz, mas acrescenta o que isto comporta de inconsciente.
O débil é aquele que não sabe o que faz e, no entanto, faz com certeza, com a
astúcia de quem sabe. Poderíamos imaginar ... todos somos débeis quando cremos saber
A perspectiva, apresentada por Bruno (1986) com Lacan, aponta para o fato de
que a certeza garante um sentido único sobre um saber absolutamente incerto, debilitando
o sujeito que, munido da astúcia de quem sabe – sabe, por exemplo, exatamente o que é
Elizabeth.
concordamos com ela: a estupidez neurótica não se confunde com a debilidade mental.
neurótica não se confunde com a debilidade mental, talvez porque a estupidez neurótica
joga com a possibilidade de erro e a debilidade mental joga com a astúcia da razão,
70
3.2.3 - Autores contemporâneos
psicanalista francês Eric Laurent, é bastante visitado tendo uma visão da debilidade
o gozo.
Para Laurent (1989), o sujeito débil não tem que se haver com uma redistribuição
do gozo, pois trata-se de um sujeito fundido com sua própria imagem especular. Como
apreende o que é seu Eu pela captura da imagem que o Outro lhe oferece. Assim,
segundo o autor, o débil é o sujeito que não só compra completamente esta imagem como
acredita ser ela, por isso nele não haveria redistribuição de gozo.
Ora, também esta idéia de que o débil não consegue consolidar um resgate de um
gozo, está também presente na hipótese lacaniana de que o débil é um sujeito que não
consegue se instalar num discurso. Como vimos, para Lacan cada discurso é uma forma
de resgate de gozo. Assim, tanto Laurent quanto Lacan postulam que para o sujeito débil
Laurent (1989) mostra que entende que sua teoria está de acordo com a hipótese
debilidade e psicose:
71
ao contrário do sujeito psicótico fora do discurso.”(Laurent, 1989,
p. 131).
âmbito lacaniano.
como uma máscara para a estrutura clínica, evitando os efeitos desta estrutura.
Explorando sua idéia, talvez pudéssemos pensar que os efeitos de uma estrutura
O sujeito débil se priva dos danosos efeitos de estrutura, mas paga caro com o
próprio corpo, com o próprio ser. Se a debilidade, por um lado, garante a isenção dos
efeitos da estrutura (o sujeito neurótico estaria isento de um sintoma, por exemplo), por
uma posição subjetiva frente à castração materna. O débil, ao oferecer-se à mãe como um
sujeito sem desejo, vela assim à castração materna, oculta a falta no Outro, mantendo-o
“como Outro absoluto, senhor do saber todo” (Miranda, 2002, p. 15). Como podemos
lacaniana de 1972, ele entendeu que Lacan falava, na verdade, de uma forma a ocultar a
8
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
72
impotência. Esta concepção retoma a aposta de Mannoni (1964) de que o débil estaria no
própria estrutura clínica do débil e esta dinâmica permite à debilidade instalar-se tanto
num sujeito psicótico, neurótico ou perverso. Para construir sua hipótese essa autora
retoma Freud (1915) naquilo que o mestre de Viena localizou como pulsão de
conhecimento. A autora lembra com Freud que, em suas empenhadas buscas de saber
sobre “de onde vieram os bebês” e sobre “a diferença dos sexos”, as crianças não se
satisfazem com as explicações dos adultos e, em fantasia, criam suas próprias teorias
sexuais. “A pesquisa infantil chega a um final pelo recalque sexual e o impulso que
conduzia esta pesquisa terá três possíveis destinos” (Miranda, 2002, p. 20)
A autora, em seu resgate freudiano, relembra o ensinado por Freud (1915) que, no
impulsiona o sujeito para a pesquisa, então sua atividade intelectual estará igualmente
compulsiva.
73
Primeiro destino Debilidade neurótica, em que a curiosidade sexual permanece
inibida.
Segundo destino Neurose obsessiva cujo pensamento compulsivo leva à pesquisa
interminável.
Terceiro destino Sublimação cuja curiosidade Intelectual já é um substituto da
atividade sexual.
(Miranda, 2002, p.21)
Mannoni (1964), nas últimas observações do seu trabalho, alertando-nos de que seria um
principalmente do destino da inibição, foi o primeiro passo adotado por Miranda (2002)
74
na elaboração da sua hipótese, esclarecendo com isso por onde não se articularia o
funcionamento débil.
que, uma vez feita, terá determinado a específica dinâmica psíquica, através da qual o
as três formas simbólicas de negação do saber sobre o sexo, desde o advento do Édipo. A
partir daí ela formula sua proposta: “Pensamos a debilidade como a posição do sujeito
determinada por uma corporeidade imaginária, que teria a função de mascarar a estrutura,
seja ela qual for evitando seus efeitos”. (Miranda, pg 25, 2002).
formula, quando diante do sujeito débil, é uma dúvida absoluta sobre o diagnóstico
clínico estrutural. Não por coincidência, o caso clínico que iniciou esta dissertação salvou
mental. Por exemplo, ao entender a debilidade como uma “corporeidade imaginária” ela
75
Seja o débil portador de uma deficiência ou não, nota-se, a priori, que a
exemplo, uma incapacidade de andar sozinha poucos metros. Seus trejeitos infantilizados,
uma bolsinha vazia cuja função era parecer uma bolsa, tudo isto denota que o débil
imaginária” avança a discussão. Esta reedição do corpo em cena, vimos que também é a
hipótese de Laurent (1989) – o débil é o sujeito que está fundido com a própria imagem:
Veremos adiante, com o esquema R de Lacan (1956), uma possível imagem para
O recorte no trabalho de Miranda (2002) serve para nos apresentar o que se pôde
76
A debilidade mental é uma posição do sujeito frente à falta
aprendida por ele na relação especular com o Outro primordial, e
pode ocorrer nas três estruturas, uma vez que estas são
determinadas pelo significante. Na neurose, a posição imaginária
manteria a relação especular com a mãe, sustentando um “não
quero saber que eu e mamãe não somos um”. Na psicose e na
perversão, seria a “máscara última antes do desvelamento da
estrutura”, usando a expressão de Mannoni. (Miranda, 2002, p 39)
bom recurso para expressar a dimensão obscura que paira na escuta analítica do débil.
etc.9 Além disso, dizer da debilidade como uma posição psíquica é propor uma aposta na
Vorcaro (2005). Além da inserção clínica do termo holófrase na teoria lacaniana, a autora
resgata a noção de holófrase desde seu ponto de vista lingüístico e histórico, lembrando
que:
Ora, aglutinar tudo como uma só palavra, eis o que saltou de mais peculiar na fala
de Elizabeth. Sabemos que Lacan, ao fazer a hipótese da holófrase como base de uma
9
Veremos mais adiante que ao buscar um conceito metapsicológico para estas “imagens” o conceito de
semblante posto na obra lacaniana oferece uma opção para dar consistência a estas impressões clínicas.
77
como fala o sujeito, mas sim à maneira como deveriam se constituir as patologias da
série.
impressão de que ela apreendia o som que deveria ser dito e o repetia tal como um dia o
Resgatando a história, a autora nos conta que a noção de holófrase foi evocada
por muitas teorias sobre a origem da linguagem, e seria a noção que indicaria um estágio
Quando visitamos o primeiro seminário de Lacan (1953), vemos que ele parece
não concordar com a concepção de que a holófrase seria a ponte que ligou o animal ao
humano. Vorcaro (2005) explica essa resistência de Lacan em assumir a holófrase como a
continuidade do animal para o humano: “ (...) só se pode dar valor á holófrase num tecido
estrutura sintática (...) o que importa nelas é seu caráter não decomponível” (Vorcaro,
2005, p. 31).
posição muito peculiar: “A holófrase se ata a situações limites em que o sujeito está
78
Vimos, com Elizabeth, que o sujeito estava tão suspenso em sua relação
imaginária ao outro que ao ser chamada para responder do outro lado da linha ela
significante holofrásico. Ele constitui com esse significante um monolito”( ibid, p 32).
poderia usar para se definir (o S2) não está acessível a ele. Assim, na debilidade –
posição da holófrase que nos interessa – verificamos que o “monolito” que o sujeito faz
com o outro só é minimamente fissurado quando o sujeito se realiza num acting out.
Lá onde o saber inconsciente (S2) não pode operar, o acting comparece em seu
lugar, oferecendo ao sujeito brechas, fissuras na sua colagem imaginária ao outro. Vimos
Elizabeth, “sem escolher”, sair de sua rotina de ir para a casa da japonesa após o final da
aula e fumar “o cigarro das adolescentes”; depois diante da minha impotência quanto ao
cheiro de cigarro da sua boca, viu-se completamente sozinha em seu ato de ter ido fumar.
Pelo acting, Elizabeth minimamente se separa dos outros holofraseados em seu discurso e
como conseqüência também consegue deixar de aplicar os poderes de “média” para si,
Pierre Bruno (1986) também descreve um caso clínico de debilidade em que seu
Vorcaro (2005) uma outra idéia está implícita na noção de Lacan da holófrase:“Holófrase
79
É justamente esta ausência da dimensão metafórica que dá ao débil o caráter de
caricatura no qual está submerso. Vimos, com Paulo, como a ausência metafórica o leva a
ficar plantado esperando uma menina que não viria. Todos à sua volta sabiam, menos ele
porque apostava num único sentido para a palavra do Outro, hora certa é hora certa.
vários pontos de sua fala, inclusive na impossibilidade de apreender seus próprios chistes.
autores lacanianos que estudam o tema: “Há um bloco de significantes no débil e isso
impede que a metáfora se coloque. No seu discurso, o débil não consegue empregar uma
descritivo da holófrase e vai para suas implicações clínicas: “Como distinguir, na série de
Vemos que também ela tem a concepção de que o tema refere-se à posição
subjetiva. A autora afirma que só podemos verificar as distinções de cada caso da série
porque há diferentes modalidades nas quais o Outro incide e ganha estatuto para o ser.
Esta idéia de que a distinção dos casos da série é a distinção de posições subjetivas está
80
Do ponto de vista do debate metapsicológico, Vorcaro (2005) inclui o autismo na
psicose, a autora afirma que na psicose “ a criança fica colada ao mandato em que ela é o
que falta no Outro. Encarnado essa falta ela preenche o intervalo entre significantes” (p.
36). Ou, ainda, segundo Jerusalinsky (1993) ocorre que na psicose não há separação do
sujeito e do objeto a.
não encarna a falta do Outro, porque a ele nada faltaria: “Na debilidade, o objeto “a”
Esta afirmação não é consenso entre os autores, Eric Laurent, por exemplo, em
seu texto “Alienação e Separação II” (1997) afirma categoricamente que a criança débil é
retomá-lo mais adiante. Neste momento gostaria apenas de me posicionar, dizendo que
acredito haver dois níveis diagnósticos em jogo, um para o fenômeno e o outro para a
estrutura clínica.
impedir que aquela marca em seu corpo se torne um significante que represente o sujeito
é tomado como enigma pelo sujeito, mas sim como uma verdade do Outro que ele
81
Diz Vorcaro (2005) sobre estas diferentes posições do sujeito na série holofrásica:
Ainda para essa autora não há casos puros dessas categorias e “suas brechas, seus
Também os três autores acima oferecem uma nova leitura da relação que o débil
estabeleceria com o saber (S2) dizendo que talvez ocorra na debilidade uma anorexia do
saber, já que para o sujeito débil o saber está sempre no Outro, onipotente.
82
Sobre essa mostração desnuda do corpo “massa compacta” de sedução e gozo
aluno, absolutamente saudável ao nível biológico, surpreendia por seu nível de retardo
tudo era “sorvete”. Seu pescoço ficava pendido para um lado, a cada vez que falava sua
boca ficava aberta, algumas vezes precisando do auxílio de alguém que colocasse em uso
abraçavam, o beijavam e Otávio ficava lá, quase inerte, com seu corpo livre para o
debruçou-se sobre ele abraçando-o e beijando-o, dizendo: Você pode abraçar ele o quanto
quiser, né Otávio? Ao sempre responder nada, Otávio carregava a fama de ser “o mais
A cena, digna da mais obscura interrogação, dava-se pelo fato de Otávio quase
não conseguir se equilibrar em seu pesado corpo. Num desajeitado e tonto balanço – em
nada semelhante ao balanço automático do autista – este menino escorava-se nos colegas,
nas paredes ao seu lado ou dava um abraço nas monitoras obrigando-as a segurá-lo. O
outro, dando a impressão que a qualquer segundo poderia errar o cálculo e cair.
por apresentar tamanha pobreza psíquica e tamanho desequilíbrio corporal sem possuir
83
A suposição de uma debilidade, associada a uma psicose, se dá pela relação
diferentes.
movimento este que prevê uma invasão do imaginário sobre o simbólico do sujeito
Mas, para além do imaginário, qual seria a vertente simbólica que sustentaria tal
simbólico para o real, tentarei abordar a debilidade na sua condição de posição subjetiva
84
No entanto, antes de partir para as hipóteses deste trabalho que estarão de acordo
com o que até agora foi exposto, gostaria ainda de fazer um adendo a esta revisão
bibliográfica para incluir e discutir outras visões a respeito da debilidade mental: sua
Roberto é um menino de oito anos que tem Síndrome de Down. Seus pais o
trazem ao consultório, pois Roberto não queria ir ao futebol e também estava com muita
dificuldade para aprender a ler e a escrever, estando inclusive a escola preocupada com
essa situação. Os pais não dizem a Roberto os motivos de sua ida ao consultório, apenas
comunicam-lhe que “tem certas coisas sobre ele que papai e mamãe não sabiam lidar
muito bem, então acharam que seria interessante ele ir conversar com uma
psicanalista”.
Fiz muitas entrevistas com os pais antes de começar a atender Roberto. Quando
ele veio, deixei de ver os pais. Uma próxima entrevista de retorno com os pais seria
- Não sei, mas que legal que é sua sala. Eu acho que venho aqui para conversar e
brincar.
85
Roberto não toca no motivo apresentado pelos pais, mas em contrapartida traz
suas questões como o fato de alguns colegas não quererem brincar com ele, uma menina
bonita que não gosta de olhá-lo, imagina-se casado e com filhos, através de bonecos
investiga de onde teria saído um bebezinho de pano que estava ali, traz uma carta de seu
pai contando como era ele quando bebê etc. Enfim, investiga sua origem, fala sobre sua
sexualidade.
Após as sessões iniciais com Roberto, marquei novamente uma entrevista com os
pais. Digo a Roberto que verei seus pais e pergunto se tem alguma coisa que ele gostaria
Roberto se ele sabe o que o diretor queria comigo, ao que ele responde:
- Não sei, mas fala “pá” ele que eu já to aprendendo a ler e a escrever as
palavras.
Ora, se por um lado alguns acham que Roberto é um “retardatário” em relação aos
colegas, por outro, para a escuta clínica o que Roberto demonstra é o famoso “enquanto
Roberto, ao chegar, simula um “não sei de nada, não é comigo”, mas ao menor
sinal de que este não saber seria questionado, afinal os pais e o diretor tocariam nos
assuntos aos quais Roberto evitou, ele se antecipa e abre o jogo no melhor estilo “eu sei o
que vocês querem de mim”. Ou seja, posição nada débil, pois leu nas entrelinhas do
discurso do Outro e soube apreender e também negociar aquilo que o Outro quer dele.
Além disso, soube camuflar com a bobeira do neurótico este saber a seu favor,
86
contrariamente a Elizabeth, que nada além do dito conseguia captar. Também o modo
como Elizabeth trazia seu motivo para estar ali era totalmente inverso ao modo
como uma verdade absoluta sobre seu ser, absoluta e exposta a céu aberto. Roberto, ao
contrário, não comprou para si o motivo dos pais, aliás, escondeu que sabia o que os
Enfim, Roberto não se oferece ao Outro como se fosse um objeto sobre o qual
reina imponente o saber de um Outro. Neste sentido, ele, que tem Síndrome de Down,
nada tem de débil; já Elizabeth, uma menina completamente saudável do ponto de vista
Assim, ter uma síndrome, uma lesão, ou qualquer outra deficiência, pode até
pedagógico, pode até garantir que obtenha nota baixa no QI, mas em nada garante que
A debilidade mental, tal como vem sendo tratada até aqui, é uma posição
assumida pelo sujeito do inconsciente e não uma condição determinada por uma
deficiência. Assim, aquilo que se entende por “deficiência mental” não equivale a
como objetos a serem manipulados. Por que tal gravidade da posição débil, se a
87
deficiência que estes sujeitos carregam é, na maioria das vezes, não devastadora, apenas
parcial?
Nos casos em que o sujeito já chega para o Outro carregando uma deficiência, ele
é de pronto tomado como não responsável por seu desejo. Muitos destes casos tornam-se
psicoses associadas à debilidade; outros se tornam neuroses com uma grave debilidade.
esta que na maioria dos casos é apenas parcial, mas os pais a tomam como total. O
sujeito, por sua vez, acolhe este desígnio se “assujeitando” radicalmente ao Outro, e com
É muito difícil para um sujeito que nasce com uma deficiência, ser acolhido pelo
Outro como senhor de seus próprios desejos; é igualmente difícil ao próprio sujeito se
posicionar de forma a reivindicar a posse por seus desejos. Difícil sim, impossível não,
e Josué.
pedagogicamente atrasados, para as salas especiais e para serem submetidos aos testes de
QI.
88
É neste caótico contexto, onde qualquer atraso pedagógico era motivo para uma
suspeita de debilidade mental, que a psicanálise entra em cena. Com sua escuta apoiando-
se nos ensinamentos de Freud, a clínica psicanalítica entendeu que muitos alunos não
psiquicamente inibidos.
(2005) propõe uma articulação entre ambos por meio do processo histórico mencionado
acima, pelo que a autora chamou de “um giro conceitual”, que ligaria em termos teóricos
89
A proposta da autora é muito interessante por mostrar um inevitável encontro,
saber, tanto na inibição, quanto na debilidade. No entanto, quando diz que Lacan
conseguiu exprimir “esses casos” pela “fórmula inédita” de um sujeito que flutua entre
dois discursos, parece estar implícito que a autora inclui a inibição intelectual na mesma
ambas. Esta posição é totalmente nova se comparada à leitura dos outros autores quanto
ao fenômeno de debilidade.
Para compor seu argumento, Santiago (2005) apresenta casos clínicos de inibição
mesmos destinos pulsionais já analisados por Miranda (2002); no entanto, inclui neles o
fato de que, para Freud (1910), no seu estudo sobre Leonardo da Vinci, a debilidade
perspectivas diferentes.
Se, por um lado, Miranda (2002) entendeu que a debilidade mental não
decorre de nenhum dos destinos freudianos da pulsão, apontando aí uma insuficiência dos
conceitos de Freud para dizer do fenômeno débil, por outro, Santiago (2005) tenta fazer o
90
Numa leitura que faço do texto dessa autora, os elementos parecem indicar
que ela interpreta Hamlet à luz do que foi transmitido por Lacan, em 1964, sobre o débil.
Lembremos que, naquela ocasião, a hipótese lacaniana era a de que o sujeito fez-se débil,
pois foi reduzido a ser não mais do que o suporte do desejo da mãe, num termo obscuro.
pioneira do assunto, esta “particularidade” implicava uma fusão corporal. Esta “fusão”
seria o efeito de uma transmissão fálica não efetiva da mãe para a criança.
De posse desta articulação, válida até agora para o débil, observe a análise de
ao falo, que a autora interpreta a inibição do ato, de Hamlet. Como sabemos, é também
pela via do aprisionamento ao desejo da mãe, desejo este que não coloca o pai entre ela (a
mãe) e a criança, que Mannoni (1964) e os outros autores aqui estudados elaboram suas
hipóteses para a debilidade mental. A semelhança não deve ser mera coincidência posto
que, a autora, desde o início, deixa clara sua tentativa de articular a inibição à debilidade
mental.
91
Em seu último capítulo, o capítulo conclusivo, Santiago (2005) alterna as
faces do mesmo conceito. A autora retoma que talvez não houvesse na psiquiatria uma
categoria tão colada à ideologia do déficit, quanto o foi a categoria de debilidade mental e
“esse é o desafio com o qual a psicanálise se depara, desde muito cedo, no tratamento
reflete a tese da autora de que o que acontece na debilidade mental é da “mesma ordem”
do que acontece na inibição intelectual. Ao nível da dinâmica pulsional esta ordem talvez
esteja mais clara, pois ambos extraem um benefício pulsional do não saber. No entanto,
em minha leitura ainda ficam obscuros. Após o trabalho que fez, a conclusão da autora é
a seguinte:
92
trabalho uma proposta de mesma lógica tanto para a debilidade quanto para a inibição. Se
pensarmos numa mesma função, função de impedir o sujeito de valer-se de seu saber,
talvez se encontre um ponto de apoio para ambos os processos. O mesmo ponto pulsional
encontrado antes. Ou, ainda, outra hipótese no sentido de conciliar a debilidade com a
inibição seria forçarmos o conceito e pensarmos a inibição não tal como Freud a postula,
mas como uma inibição primária do aparelho psíquico. De qualquer forma, esta deve ser
diferenças significativas; a própria autora reconhece esta distinção ao marcar que apesar
das diferenças fenomênicas ela aposta na mesma lógica constitutiva entre ambas.
niños com fracasso escolar tem uma leitura um pouco mais radical sobre a conexão da
debilidade com a inibição intelectual. Para ela a debilidade mental não existe, pois na
verdade o processo que estaria em jogo seria sempre o de uma inibição intelectual
93
Vimos todo o esforço conceitual feito por Santiago (2005) para conectar
ambas metapsicologicamente. No entanto, para se apoiar em tal proposta essa autora usa
a concepção de debilidade mental tal como formulada pela escuta clínica. Ou seja, é uma
Cordié (1994) ao contrário, para dizer que a debilidade mental não existe,
refere-se ao uso do termo tal como definido pelo teste de QI donde a debilidade mental é
o diagnóstico dado àqueles que obtêm nota de QI entre 50 e 70. Ela critica o conceito,
etiqueta pejorativa.
peculiar, fazendo a sua concepção do débil e com isto acaba por criar uma categoria
clínica diferente daquela que o termo de fato representa para a medicina. Neste contexto é
Para Cordié (1994), entretanto, não é só o termo que está em jogo. Fazer a
clínica dos pacientes diagnosticados como débeis é fazer a clínica do fracasso escolar. Eis
inclusive o que dá nome ao seu livro. Neste raciocínio, a clínica do fracasso escolar
categoria que corresponde a nada mais que ter QI entre 50 e 70, então a inibição
intelectual para entender o fracasso escolar destas crianças faz sentido. E é neste contexto
De qualquer forma, Cordié (1994) já na metade de seu livro reconhece que por
94
primeiro a inibição intelectual como desordem neurótica; o segundo a inibição nas
estruturas psicóticas e o terceiro ela diz que uma inibição pode ser segundo plano, quando
carecer de aportes significantes” (p. 168, tradução livre). A respeito deste terceiro
capítulo diz a autora que a ausência deste aporte significante pode dever-se a pobrezas
culturais, mas também às pobrezas afetiva e “nestes casos, o lugar da criança está
marcado, desde seu nascimento, pelo signo da debilidade mental” (Cordié, 1994, p. 169).
Assim, numa leitura que faço da autora, ela desacredita da debilidade tal como é definida
pelos testes de QI, mas de acordo com este seu terceiro capítulo há uma posição psíquica
Conforme a aposta que faço aqui, desde o ponto de vista da escuta clínica um
paciente pode ser diagnosticado com retardo mental através dos testes de QI, mas não se
posiciona psiquicamente débil. Neste caso, seu fracasso escolar poderia estar ligado à
inibição intelectual. É neste contexto que diz Cordié (1994) que os retardados não
existem.
clínica, veremos que eles não só existem como nem sempre o fracasso escolar se impõe
para todos eles. Por quê? Creio que esta é uma das grandes incógnitas para o campo da
95
Impressões clínicas sobre Carlos e Josué:
Trabalhei dois anos num colégio que se pretendia inclusivo. Apesar da ideologia
de inclusão, havia dois tipos de turma: as turmas regulares (destinadas àqueles que
Nossa11 função na escola era trabalhar alguns conflitos infantis através de contos
de fadas para crianças do jardim até a primeira série. Nesse trabalho acompanhei por dois
dirigida ao grupo, alguns dos alunos levantavam a mão para respondê-la. Se a mesma
pergunta fosse dirigida a Carlos ele não a respondia, fazia um “não sei” com a cabeça.
Mas se a mesma pergunta fosse dirigida a Josué, ele copiava a resposta do colega,
inclusive na forma de levantar a mão, na entonação usada, sendo sua cópia fidedigna.
Tudo que Josué conseguia era copiar a resposta dada antes por um amigo; se a
olhos pedia para ser chamado, no entanto, quando escutava seu nome ele se inibia
envergonhava-se, dava um sorriso e suspendia o que antes queria falar. Muitas vezes ele
notoriamente sabia a resposta, algumas vezes chegava a apontar a resposta no livro com o
dedo, mas quando dizíamos: “pode falar”, ele abria o sorriso que o entregava quanto ao
Descobrimos que Carlos foi adotado, já com certa idade, juntamente com mais
onze crianças. Só de irmãos legítimos de Carlos havia três. Nestas condições, na sua casa
11
Este trabalho era desempenhado por mim e pela psicanalista Berta Hoffman Azevedo.
96
“era proibido dar problemas na escola” e quem não fizesse as “coisas certas” corria um
implícito risco de ser devolvido ao abrigo, conforme “sugeriu” sua mãe adotiva em
colega e ficar fixamente olhando para esse amigo. Colocava seus olhos muito próximos
dos colegas, como se quisesse absorver pelo olhar aquilo que deveria copiar, ou seja, o
outro. Ao invés de tentar conversar ele ia com o corpo para cima dos colegas e sem
ele, também não respondia. No entanto, não era uma recusa em responder, como havia
em Carlos, parecia haver uma real incompreensão da pergunta. Mas, como dito, bastava
um amigo respondê-la, para que ele imediatamente levantasse a mão e fizesse a cópia
Certo dia foi realizado um teatro para que eles dramatizassem a história que havia
acabado de ser contada. Junto com os outros colegas, Carlos e Josué escolheram cada um
o seu papel. No começo da peça ambos ficaram parados sem saber o que fazer. Quando a
professora instruiu Carlos sobre o que ele deveria fazer e falar, ele rapidinho
desempenhou seu papel, e falando muito baixinho quase não se fez ouvir. Saiu correndo
do centro do teatro. A professora, da mesma forma que havia instruído Carlos, orientou
97
Josué, falando: “diga: Oh! Todos estão dormindo!”. Josué vai até o centro do teatro e
fala:
- diga oh! Todos estão dormindo! E lá ele permanece até que a professora lhe
Josué e Carlos não são efetivamente “casos clínicos”, mas creio que do
acompanhamento que fiz durante dois anos posso extrair algumas impressões clínicas.
Josué era tal como Elizabeth: recortava falas inteiras do Outro, repetia inclusive a
entonação usada, nunca particularizava aquilo que conseguia extrair para si dos colegas.
Sua não apreensão das entrelinhas, do “explicitamente implícito” era tamanha que
assustava muito a professora. No entanto, mais assustada ainda ela ficava quando Josué
demonstrava que para aprender conteúdos pedagógicos ele não tinha problema algum.
Assim Josué, ao passar de ano, foi encaminhado para uma sala regular, pois ele
Carlos, entretanto, por não conseguir dar respostas aos exercícios, foi
encaminhado para uma sala de módulo. Nessa sala estavam crianças com graves quadros
crianças estavam num nível muito mais primitivo de comunicação. Elas se comunicavam
de cópia, quando um resolvia fazer algo, todos decidiam ir atrás, enfim. O que restaria a
responder, nesta sala, ele se apagava copiando os colegas, já que ali “ficar quietinho” ia
98
destacá-lo drasticamente dos outros. Colocado naquela sala, então, o certo a fazer era
Notamos que esta não era uma resposta literal de Carlos à demanda do Outro; era
uma resposta que pressupôs sua interpretação do desejo do Outro, daquilo que o Outro
inconsciente lhe dizia: “o melhor é não dar problemas”. Assim como Hamlet, talvez o
problema de Carlos fosse saber demais sobre uma verdade que desejara nunca ter
conhecido.
Freud (1926) diz sobre a inibição de Hans: “O inexplicável medo de `Little Hans`
por cavalos era o sintoma e sua incapacidade de sair à rua era uma inibição, uma restrição
ansiedade” (Freud, 1926, p. 104). Mais adiante, nesse texto Freud diz que a ansiedade de
Hans era gerada pelo medo da castração. Assim, na leitura que faço é preciso antes um
Talvez todo aquele “não sei” de Carlos também fosse uma tentativa de evitar
acessar aquilo que possivelmente ele já sabia, ou seja, a constante ameaça de ser
“devolvido” por aquela a quem ele mais amava: sua mãe adotiva.
Uma inibição parecia tomar Carlos, que se agravava a cada dia, assemelhando-se
por comportamento aos colegas, cujas condições simbólicas eram muito mais primitivas.
Assim, quem se deparasse com Carlos naquela posição certamente poderia lhe supor um
retardo grave, mas ao analisá-lo mais de perto, talvez logo encontrasse a inibição como o
99
Insisto que são apenas impressões clínicas, mas talvez casos como o de Carlos
fizeram Mannoni (1964) um dia supor que havia uma distinção entre verdadeira e falsa
debilidade. Carlos apresentava-se como um “falso débil”. Também casos parecidos com
o de Carlos oferecem a Cordié (1994) o suporte para afirmar que a debilidade mental não
existe, pois na verdade para ela os casos de retardo seriam de inibição intelectual.
retardo nada leve, por outro lado, o lado clínico, a inibição intelectual e a debilidade
mesmo com o mais alto grau de defasagem pedagógica, clinicamente parece-me que a
como a impossibilidade de acessar este saber inconsciente e não como uma manobra
Se o sujeito inibido foi e voltou, ou se ele foi até um ponto e decidiu não ir além,
Este debate entre inibição e debilidade aponta ser longo e interessante, no entanto,
inibição – seu foco está em outro lugar, em sustentar a debilidade como uma posição
100
Capítulo 4:
HIPÓTESES
anos depois, com algumas ressalvas aqui, outras lá, a proposta de Mannoni (1964) sobre a
fusão de corpos faz mais sentido do que se imaginava. Conforme já foi dito, a “fusão” se
daria, pois o Outro primordial (a mãe) não teria conseguido transmitir ao sujeito uma
referência fálica muito efetiva, ou seja, quem fez a função materna não teria conseguido
transmitir efetivamente ao bebê que entre eles há o “Pai”, daí a implicação numa “fusão
Se, em 1964 Lacan substituiu a fusão de corpos pela fusão significante (holófrase)
em 1974 a dimensão corporal foi novamente incluída por ele, inclusive dando ao reflexo
esquema R de Lacan (1956) talvez consiga demonstrar como o imaginário sustenta e faz
φ i
a
M
S
I
R
m
S
a’
A
I P
101
Temos a seguinte articulação:
O desejo da mãe (ponto M) é direcionado ao Pai (ponto P). O Pai (P) é colocado
como vértice de sustentação do triângulo que representa o Simbólico (S). O Pai (ponto P)
é transcrito do outro lado como falo (ponto φ). O Falo é o vértice de sustentação do
representada por i (imagem de moi). A imagem da criança (i), como vimos no Estádio do
esquema pelo desejo da mãe (M). O desejo da mãe (M), conforme sabemos aponta à
criança um Ideal (I) de EU. Do Ideal de Eu (I) ao eu (m) há uma distância, representante
ser.
sentido de se colar ao desejo do Outro. O sujeito direciona sua imagem (i) rumo ao
significante do desejo do Outro (M) para tentar ser tudo aquilo que o Outro desejar.
Estádio do Espelho, todo sujeito teve, um dia, o direito de pensar que, existia lá onde
estava sua imagem: “aquela imagem que vejo no espelho sou eu”. No entanto, sabem os
neuróticos, isto é um engano, posto que o eu (m) não corresponde àquela imagem
completa e Ideal (I) que vê. Vimos que é justamente deste engano que o débil não abre
102
φ i
a
M
S
I
R
m
S
a’
A
Esquema 2.
I P
chegar a seu termo, consegue parar justamente no ponto que almejou sendo, o resultado
uma realidade completamente esmagada pelo avanço do campo imaginário que, nessa
intromissão, faz sombra, recobre boa parte do campo simbólico do sujeito, que estava
φ a
iM
S
I
R
S
a’
m A
I P
Esquema 3.
103
Ora, não é difícil localizar em Elizabeth esta invasão imaginária que esmaga a
realidade e faz sombra no simbólico. Tudo o que escutamos em nossa pré-adolescente era
uma fala cuja realidade estava distorcida a tal ponto que nos fazia pensar numa ausência
da amarração simbólica que, no entanto, não estava ausente, mas sim encoberta por uma
“nuvem”.
configura-se como uma corda bamba sobre a qual escutamos o sujeito débil se equilibrar.
Lacan, no texto “Duas notas sobre a criança” (1969) parece indicar justamente este
movimento:
seguinte.
Também Miranda (2002) prevê o movimento débil como a junção entre moi e
Ideal de eu (mI) e junção de imagem especular e desejo do Outro (iM), que ficam
absolutamente evidentes em Elizabeth, sujeito para quem insultar a mãe ou insultar a ela
trabalhando honestamente, então como é que alguém pode recusar uma matrícula para
104
“_ Eu tenho agressividade na escola. Mas eu bati nele, porque ele xingou minha
mãe de negra e isto é mentira porque eu sou filha de negra com espanhol, sou morena
clara”. (Elizabeth).
Estas são falas que talvez revelem como imaginariamente estava Elizabeth colada
à mãe.
indicam que a realidade está completamente esmagada pelo imaginário e, não obstante,
próximo da posição que se impõe o perverso, ou seja, uma constante função de velar a
castração da mãe. Neste sentido, poderíamos nos perguntar o que faria sua diferença? Ao
que tudo indica o perverso vela a castração, mas não se oferecendo como puro objeto ao
Outro, como acontece na debilidade. Vimos até aqui que não se trata apenas de velar uma
castração. Mais do que isso, o débil oferece ao Outro todo o seu ser.
maleáveis pelo Outro, tão dóceis a qualquer intervenção externa, que a impressão
chão. Nos casos de neurose a confirmação de que a debilidade é o efeito desta submissão
radical do sujeito ao Outro aparece não só na fala caricatural, mas também no próprio
corpo do sujeito que sempre parece estar descoordenado de si mesmo. Vimos a impressão
105
A deformação do esquema R é uma ilustração que, talvez permita uma
colar-se ao Ideal e buscar, com sua imagem especular, fazer-se de suporte ao desejo do
Outro.
fazendo-se imaginariamente de suporte aos desígnios do Outro, por outro, deve ainda
haver uma articulação do simbólico com o real que permita esta posição do sujeito de
deixar-se invadir por esta busca imaginária. Neste sentido, será tomando a categoria de
semblante, movimento que parte do simbólico em direção ao real, que pretendo explorar
a debilidade como uma posição cujo enlace não se dá somente no imaginário, mas
Que posição foi tomada pelo sujeito para colocá-lo em tal radical submissão
completo, porém perdido. O objeto a seria o objeto que um dia completou o sujeito e o
106
Outro. No entanto, sabemos que esta experiência de satisfação é uma proposição mítica e
lógica que Freud aponta desde o início de sua obra em seu “Projeto para uma Psicologia
para o ser humano, ser falante. Não é, portanto que o objeto um dia tenha estado lá e
então tenha sido perdido, lá ele nunca esteve. Assim, desde para Lacan, o objeto a é um
conceito que permite articular outros conceitos na psicanálise: gozo, vazio, falta. Que
falta? Justamente a falta que diz da inexistência deste objeto fabuloso e paradoxal de
completude e vazio. Objeto a é, neste sentido, a circunscrição do vazio que habita o ser
É exatamente por ser afetado por este vazio que o sujeito é obrigado a por em
marcha seu desejo, numa tentativa de buscar algo que ao menos cubra parcialmente esta
vivência do vazio. É assim que o objeto a tem também a sua vertente de ser o objeto
noções: a primeira aponta para um gozo de completude perdido, completude tanto para o
sujeito quanto para o Outro; na segunda ele existe apenas como objeto suposto, nunca
existiu enquanto objeto substancial, e nesta concepção alude ao vazio; na terceira, por
este vazio que se engendra a falta, o sujeito é chamado a se mover por seu desejo, sendo
Voltando ao debate, vimos que Eric Laurent (1989), por exemplo, apesar de
na introdução do seu texto “O gozo do débil” localizar que a debilidade e a psicose não
são o mesmo, em “Alienação e Separação II (1997) ele claramente diz que em sua
concepção o sujeito débil é o objeto a da fantasia materna. Com esta concepção ele
107
oferece o alicerce metapsicológico para a hipótese de Mannoni (1964) que sempre supôs
encontrar o sentido da debilidade na mãe, pois para ela o débil estaria aprisionado à
fantasia materna.
Em outubro de 1969 Lacan entrega à Sra. Jenny Aubry duas notas manuscritas
“Duas notas sobre a criança”. O texto contém pequenas informações sobre a posição
verdade do par familiar, estes casos seriam os de neuroses comuns, diria Lacan (1969):
“O sintoma pode representar a verdade do par familiar. Esse é o caso mais complexo,
A estes Lacan (1969) opõe os casos em que o sintoma da criança diz respeito
à subjetividade da mãe:
108
Vemos que esta articulação Lacan abre espaço para a existência nas três
estruturas clínicas de posições subjetivas da criança que saturam a falta na mãe, que
Creio que é neste debate que Laurent (1997) propõe sua hipótese de que a
De qualquer forma, esta concepção retorna ao dilema que a clínica nos impõe:
se a criança é débil porque está reduzida a ser o objeto a da fantasia materna, então qual
seria sua diferença para o psicótico? Sabemos que clinicamente, apesar de nos
que o psicótico está fadado a ocupar este lugar de objeto a, para o Outro. Conforme
vimos nas opiniões de Vorcaro (2005) e Jerusalinsky (1993) na psicose não há distinção
Vimos também que Vorcaro (2005) oferece uma alternativa para diferenciar a
posição do débil da posição do psicótico, dizendo que o sujeito débil não é o objeto a,
entanto, se na debilidade até o objeto a está incluído no Outro, como então inscrevermos
um sujeito que por definição clínica não é essencialmente barrado ($) como o neurótico,
tem seu S1 e seu S2 colados, não disponíveis enquanto saber, e agora sem o objeto a?
Nesta suposição, parece que ao débil não restaria sequer a alternativa de “flutuar entre
109
dois discursos”, posto que nenhum dos quatro elementos ( $, S1, S2 e a) podem
representá-lo.
indago: Lacan havia reduzido a criança débil a ser o termo obscuro, ou a ser o suporte
deste termo? Ser apenas o suporte do objeto a talvez seja o que diferencie a criança débil
da criança psicótica.
que não lhe dá alternativas constituindo sua estrutura. Já o sujeito débil se toma para si o
lugar do objeto a é por uma escolha de posição. Neste caso, o sujeito não seria o objeto a,
mas sim o seu semblante. Esta é uma hipótese para nomear a posição psíquica que coloca
deste objeto. Pode haver ainda uma diferença sobre qual estatuto de objeto a se dá o
aqui para tentar circunscrever um pouco estas impressões clínicas de máscara, de xerox,
110
de contorno de um desenho cujo interior é vazio, de “nuvem”, enfim, todas estas imagens
hipótese para que esta submissão radical ao Outro se sustente também do ponto de vista
simbólico e real.
uma categoria cujo movimento se daria do registro simbólico para o registro real. Que
movimento seria este? Lacan (1973) diz que seria um movimento o qual sempre supõe
uma aparência de algo que é em si inapreensível de outro modo, de algo que não existe
como positividade. Mas o que, desde Freud, teria esta qualidade de existir apenas como
a.
consistência de vazio, convida o analista a também operar deste lugar, como se fosse ele
próprio o suporte desta aparência de vazio. Neste lugar, quando a ele o sujeito dirige uma
pergunta, esta, ao deparar-se com o vazio, causa o sujeito em sua elaboração significante,
111
No entanto, convidar o analista a fazer semblante de “a” abre uma contradição
à hipótese de que o débil seria para o Outro o semblante de “a”, semblante de vazio.
Talvez a opinião de Lacan (1973) sobre o convite que faz aos analistas nos
ajude a esclarecer:
Isto talvez queira dizer que um analista jamais irá se concretizar como
semblante de objeto a, ele pode e talvez deva se esforçar para ocasionalmente tentar
ocupar esta posição e dela manejar a condução do tratamento. Esforçar-se para ocupar
esta posição de semblante não é o mesmo que conseguir fundir-se a ela, não é o mesmo
livre).
possível para o débil, único sujeito que se oferece integralmente, “de corpo e alma”
conferir a ambas a qualidade de ser o objeto a para o Outro. O autor faz esta leitura da
seguinte citação lacaniana:“a mãe reduz a criança débil não ser mais que o suporte do seu
112
Fazendo uma leitura desta frase Laurent (1997) diz: “Este termo obscuro a que
a mãe reduz a criança é o objeto a” (p. 51). Mas, ao lermos com Laurent (1997) desta
forma a frase de Lacan, talvez fique em aberto um pequeno ponto: Lacan (1964) não diz
que a criança débil é reduzida a ser o termo obscuro, mas sim que ela está reduzida a ser
o suporte deste termo. Talvez mesmo suporte de vazio que nove anos depois ele diria aos
analistas: tentemos fazê-lo, mas não devemos crer que vamos conseguir sê-lo.
É neste sentido que o débil se ofereceria ao Outro: não como sendo o próprio
objeto a, mas apenas seu suporte, sendo o semblante deste objeto. Eis uma hipótese
lacaniana para a posição do analista, que no máximo se esforça para tentar ocupar a
Usar a categoria de semblante de objeto a foi uma tentativa e não tem só seu
motivo teórico, mas principalmente seu motivo clínico; afinal, com o caso Elizabeth,
pretendi mostrar que apesar de sua firme e consistente aparência de vazio, vazio de
desejo, vazio de saber, havia algo que a diferenciava do vazio puro encontrado nas
psicoses. Através de um acting Elizabeth mostrou que pode fazer operar seu desejo e
quem sabe vislumbrar a possibilidade de fazer uma pequena rachadura nesta submissão
ao Outro.
113
CONSIDERAÇÕES FINAIS
constatação clínica de que o débil acolhe radicalmente toda e qualquer demanda feita a
ele, adveio a hipótese metapsicológica de que o débil se ofereceria para o Outro como
semblante de objeto a. Assim, pela categoria de semblante propus uma possível diferença
materna.
uma escolha de posição subjetiva – do sujeito psicótico tomado como o próprio objeto a
Com isso, ao contrário de encerrar o debate, abre-se outro, talvez ainda mais
obscuro: se, devido às experiências clínicas insisti que a debilidade pode estar presente
em qualquer estrutura (neurose, psicose e perversão), por outro lado, com a proposta de
que a debilidade é uma posição do sujeito, posição de ser semblante de objeto a, como se
poderia um sujeito ser semblante daquilo que ele de fato realiza – a saber o objeto a? Este
genérica e todo um estudo particular deveria ser feito para aprofundar o problema.
114
Igualmente em aberto, o problema da debilidade nas perversões, não foi sequer abordado,
pela falta de material clínico sobre o qual o debate teórico poderia se apoiar.
Imaginei um debate teórico mais curto, no entanto, entendi como importante toda a
discutido12.
segundo plano a prática clínica. De nada adianta o debate teórico avançar, se do ponto de
clinicamente.
eram bem caricaturais e pelo fato de sua submissão ao Outro estar escancarada em cada
fala, em cada ato. Assim, nem todos os casos de debilidade trazem manifestações tão
expressivas. Tal como uma histeria pode ser mais ou menos evidente ou uma neurose
obsessiva não ser tão clara, a debilidade pode expressar-se também de forma mais sutil,
psíquica como possibilidade diagnóstica, uma possibilidade com a qual não estamos
muito acostumados a trabalhar. Ainda hoje, quando a debilidade mental é sugerida num
debate clínico, é comum uma reação de estranhamento e de rechaço desta categoria por
12
Inclusive por este mesmo motivo também optei por fazer a apresentação do conceito “debilidade” na
psiquiatria, mesmo não encontrando as fontes bibliográficas primárias.
115
Desde Mannoni (1964) a psicanálise propõe uma escuta para o débil, seja ele
assim diagnosticado pelo teste de QI ou pela escuta clínica. Como vimos, as duas
concepções de debilidade são diferentes, mas tanto aqueles diagnosticados débeis pelo
teste de QI, quanto aqueles diagnosticados débeis enquanto posição psíquica, podem ser
escutados.
Insisto em fazer notar que muitos sujeitos diagnosticados como débeis pelos
clinicamente escutados em sua posição subjetiva. Nestes casos de “eternos alunos” nunca
saberemos se são sujeitos débeis também do ponto de vista psíquico ou se são sujeitos
ser uma manifestação pouco debatida, desconhecida, oferece ao clínico um sujeito cuja
apresentação discursiva tem uma aparência de fala do sujeito psicótico, vimos isso com
Elizabeth.
mais um nome que surge, pelo contrário, a identificação clínica de uma debilidade mental
dela como uma posição subjetiva, uma posição que pode ser encontrada em qualquer
sujeito, mas só será escutada se alguns mitos em torno do conceito forem desconstruídos.
116
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