Compulsao Sexual Sob Perspectiva Fenomenologica Um
Compulsao Sexual Sob Perspectiva Fenomenologica Um
Compulsao Sexual Sob Perspectiva Fenomenologica Um
1Médico formado pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Residente em Psiquiatria pelo
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (IPq-HCFMUSP). Especialização em
Psicopatologia Fenomenológica pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
2Psiquiatra e psicoterapeuta pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP (IPq-
HCFMUSP). Filósofo pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP). Membro
da Sociedade Brasileira de Psicopatologia Fenômeno-Estrutural (SBPFE).
Abstract
Despite being historically described, the diagnosis of ''Compulsive Sexual Behavior Disorder''
was little considered in the main psychiatric diagnostic manuals until the formulation of the
11th International Classification of Diseases, valid in 2022. The present study seeks, through
the exposition of a clinical case followed by analysis from the perspective of Structural
Phenomenological Psychopathology, to bring elements that enrich and contribute to the
nosographic diagnostic definition. For this purpose, the case study utilizes the main conditions
of possibility of existence considered throughout the phenomenological tradition: temporality,
spatiality, corporeality, and intersubjectivity, in addition to considerations about sexuality as an
access point to being. This analysis allows the attribution of an essence characterized by the
predominance of a partial apprehension under a totality, preventing living different experiences
and an adequate maturation process. Through the phenomenological method, one can
effectively determine an adequate diagnosis and therapeutic proposal, beyond the consensually
established diagnostic criteria.
Keywords: Sexual Compulsion; Perversion; Phenomenological Psychopathology;
Phenomenological Therapy
Introdução
O diagnóstico do “Transtorno de Comportamento Sexual Compulsivo” foi incluído na
11ª Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (CID-11), cuja
versão final tornou-se válida em 2022. Em sua décima edição, publicada em 2007, é apresentada
a categorização do diagnóstico nomeado “apetite sexual excessivo”, dividido em “Ninfomania”
e “Satiríase”, sem outras descrições. A dificuldade no seu estabelecimento como entidade
clínica autônoma, com uma fisiopatologia estabelecida, levou a certa marginalização do
diagnóstico, sendo historicamente pouco considerado pelos principais manuais, em especial o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Categorizado como
“Transtorno Psicossexual sem Outra Especificação” pelo DSM-III em 1980, DSM-IV em 1994
e DSM-IV-TR, em 2000, apresenta uma breve descrição: “mal-estar quanto ao padrão de
relacionamentos sexuais repetidos que envolvem uma sucessão de amantes que são vivenciados
pelo sujeito como objetos para serem usados”. Devido à pouca robustez em estudos que definam
e caracterizem o transtorno, a categoria foi eliminada na publicação do DSM-V em 2013.
A análise do caso a seguir parte de uma proposta distinta dos manuais diagnósticos
atuais. Ao invés da atribuição de critérios operacionais, tal objetivo é proposto a fim de
apresentar descrições das experiências psicopatológicas subjetivas do paciente, e, a partir delas,
estabelecer como o indivíduo se configura no mundo através da maneira como suas condições
de possibilidade da existência se articulam. Em outras palavras, evidenciando como cada
vivência do paciente estabelece uma relação dialética com a forma que está no mundo (Messas,
2021).
Dentro dos relatos do paciente, será discutida também sua sexualidade, configurada
como uma via de acesso ao ser a partir da sua constituição intersubjetiva, dialogando com seu
todo existencial.
Caso clínico
Durante infância e adolescência, sentia-se solitário, sem amigos, com a sensação de não
ser aceito socialmente por outros jovens e por vezes sofrendo agressões verbais pela sua
sexualidade. Na época, em processo de descobertas, identificava-se mais com o “universo
feminino” do que com atividades ditas masculinas, passando a sentir atração sexual de maneira
mais clara por homens a partir dos 13 anos. Muito de sua angústia se dava pelo fato de “não
saber se relacionar” com as pessoas, evitando ir à escola para não lidar com colegas.
Aos 12 anos, por estímulo de sua família, iniciou atividade no teatro como forma de
ajudá-lo a interagir com outras pessoas. Sentia que as atividades “eram os únicos momentos em
que não questionava sua própria existência”, esquecendo as preocupações ligadas a
relacionamentos. A partir de então, também iniciou atividades na igreja, vendo sua sexualidade
como algo errado e buscando penitência.
Quando começou a trabalhar por volta dos 17 anos, iniciou a vida sexual. Relacionava-
se com homens de idade similar ou mais velhos. O cortejo se dava de maneira sucinta, através
de uma troca de olhares ou de uma conversa curta, concretizando o ato normalmente em
banheiros públicos. Desde essa idade, largou a igreja e passou a viver sua sexualidade de
maneira aflorada.
Considera-se “sexualizado”, isto é, observa que atribui uma conotação sexual para
muitas de suas vivências rotineiras. Utiliza-se de temas sobre sexo como forma de interagir com
grupos de amigos, tanto na fala quanto em gestos. Refere que não tem consciência de se
comportar desta forma, encarando como brincadeiras, mas normalmente apontadas por amigos
mais próximos como sendo inapropriadas. Sente que atribui conotação sexual também a
interações com pessoas que acabou de conhecer, sempre avaliando a possibilidade de que o que
é dito por elas tem função de flerte. Tem a sensação de que é incapaz de se “organizar de outro
jeito, objetificando muito as pessoas”. Comenta que tem poucos amigos, contando-os a dedo.
Destes, muitos são antigos parceiros sexuais que, após a relação e a instalação de uma
intimidade, foram vistos como amigos e não como potenciais parceiros para relacionamento
afetivo.
Em consulta médica, J. sente-se triste e desmotivado pelo fato de que “lidar com as
pessoas é difícil”, acreditando que nunca terá continuidade em seus empregos, principalmente
na carreira de teatro, que é a atividade que mais gosta de realizar, pelo fato de sempre haver
uma barreira que o impede de se relacionar com outras pessoas de maneira completa.
Temporalidade
Quando procuro comprar um produto como um livro, por exemplo, tenho uma busca
ativa até achar o melhor lugar para a compra e como vou realizá-la. Ao adquiri-lo, irei me
apropriar do objeto, lendo-o e estudando-o. Após dedicar-me ao mesmo, terei certa sensação de
completude e aprendizado, guardando-o em minha estante, pronto para leitura de novos livros.
Isso se dá devido à constituição implícita de fluxo temporal, articulando protensão durante o
momento da compra, presente no momento da “incorporação” do livro em minha biografia e
retenção ao guardá-lo. É fundamental que a experiência do livro diminua sua importância no
presente para dar lugar a novas vivências, em outras palavras, para que tenha uma protensão
aberta novamente.
ideia de estar retido no presente impede o paciente de se aprofundar nas relações, que solicita
amadurecimento, em outras palavras, tempo.
Espacialidade
Corporeidade
uma unidade de expressão correspondente, atribuindo, segundo Gebsattel (1966), uma figura
corporal (Leibgestalt).
De maneira compatível, atribui-se uma figura sexual do corpo e, no caso descrito, uma
tensão dialética entre o corpo sexual e a totalidade das formas corporais do paciente. O corpo
sexual preenche o campo de possibilidades existenciais de maneira inflexível, comprometendo
o movimento alternante entre figuras corporais. Em primeiro lugar, a rigidez impede a
sedimentação biográfica da experiência, afetando o amadurecimento de outras instâncias da
vida do paciente e impedindo-o de construir e aprofundar suas relações com o mundo sob uma
perspectiva mais ampla, que abranja outras possibilidades (Messas, 2021). Em segundo lugar,
não apenas há uma rigidez no câmbio entre formas corporais, mas uma tiranização do corpo
sexual, que tende a se tornar o modo preferencial de apreensão de diferentes contextos da vida
do paciente.
Intersubjetividade
Apesar dessa forma de interação descrita, é importante ressaltar que o outro ainda está
preservado sob uma totalidade. A busca pelo consenso através de sinais sucintos, como olhares,
parte da premissa de que o paciente intui de maneira empática um interesse recíproco com o
outro, maneira esta de se relacionar que pressupõe integridade na relação intersubjetiva
(Messas, 2021).
Cabe ressaltar também outra medida tomada pela existência em questão. Diante da
dificuldade em estabelecer relações, optou-se pelo distanciamento dessa vivência com uma
nova aproximação mediada pela técnica, ocorrida no teatro e na faculdade de Artes Cênicas.
Apesar de certa compensação dada em nível externo à estrutura, ainda há uma dificuldade
inerente a ela, numa constante busca racional em alcançar aquilo que, de fato, já está dado
anteriormente ao pensar.
Sexualidade
O fetichismo será estudado a partir do objeto, pois, dentro dessa vivência, ele aparece já
imbuído de um sentido sexual (Gebsattel, 1966). Isso significa que um mesmo objeto aparece
de formas diferentes para uma pessoa dita fetichista e uma não, ao contrário de uma sensação
que aparece posteriormente à percepção do objeto, por exemplo. Dentro desse contexto, o
fetichismo é uma apreensão sexual parcial, distorcendo a captação de uma totalidade. Deve-se
destacar também que, do ponto de vista do observador, isso se manifesta de maneira
incompreensível, não sendo capaz de intuição empática. A importância disso é alertar para a
O objeto aqui se dispõe num espectro de possibilidades que podem ser abarcados desde
objetos inanimados até objetos humanos vivos. Uma relação em que o objeto não se constitui
como inteiro torna sua apreensão aberta de diferentes formas pela estrutura (Becher, 2022). Um
objeto inanimado, por exemplo, pode ser apreendido pela consciência como um objeto sexual,
pois ele não constitui uma totalidade humana, passível então de ser captado sem restrições de
sentido inerentes ao objeto. No caso de objetos humanos vivos, como nos casos de pedofilia,
considera-se novamente uma parcialidade que se sobrepõe à totalidade, sendo esta um ser
humano dotado de juízo com plenas condições de consentimento (Becher, 2022).
Desdobramentos
Cabe aqui a análise de elementos que se estabelecem a partir dos desdobramentos das
condições de possibilidades postas em evidência acima. Esses se colocam em torno da
intensificação das tensões expostas ao longo do tempo, estreitando as relações do paciente com
o mundo e com o outro.
Manejo terapêutico
Outra tarefa do clínico é o manejo da importância que a experiência sexual tem na vida
do paciente. Segundo discussão anterior, o aumento da frequência sexual apresenta como
consequência a diminuição do prazer em cada ato sexual. O desafio encontra-se no fato de que
a vida sexual do paciente não deve ser suprimida, e sim reproporcionada. Uma existência antes
comprimida numa única forma de vivência entrará em contato constantemente com ela,
remodelando-a em um novo sentido, ou seja, temporalizando-a adequadamente e
ressignificando o prazer.
humano, mas com sua versão reificada e ceifada de sua totalidade; um ser humano tão complexo
quando aquele que o curso é diminuído a uma condição ou categoria”. Isto permite dar unidade
a uma gama de fenômenos ao invés de catalogá-los extensivamente pela sua apresentação. A
desconsideração do outro como pessoa pode ocorrer tanto no caso descrito acima como em
outros casos de perversão.
Conclusão
Apesar de historicamente descrita, a compulsão sexual não teve lugar nos manuais
diagnósticos até 2018, aparecendo apenas na CID-11. Isso reflete uma dificuldade do sistema
diagnóstico criteriológico em estabelecer sintomas que configurem uma síndrome de maneira
eficiente. A apresentação e a análise do caso a partir do método fenomenológico demonstra
uma opção necessária para a formulação de diagnósticos para além de algo consensual e que
restrinja o que é relatado pelo paciente. Além disso, os estudos em Psicopatologia
Fenomenológica a respeito da sexualidade humana são escassos e demandam novos estudos a
fim de atualizar o tema dentro dos paradigmas contemporâneos, além da necessidade de
discriminar de maneira mais refinada as vivências dentro desta ampla área de conhecimento.
Referências bibliográficas