O Sinthoma Como Escritura Do Real
O Sinthoma Como Escritura Do Real
O Sinthoma Como Escritura Do Real
Expediente
fazer em alguma parte a sutura entre esse simbólico que se estende ali, sozinho, e esse imaginário que está aqui. É uma
emenda do imaginário e do saber inconsciente. Tudo isso para obter um sentido, o que é objeto da resposta do analista ao
exposto, pelo analisando, ao longo de seu sintoma (LACAN, 2007, p.70-71).
Uma concepção de sintoma como fala endereçada ao Outro, como mensagem cifrada, que se trata de, pela via da fala, desvelar seu
sentido. Este sintoma é tomado por Lacan, nesse momento, como “o significante de um significado recalcado da consciência do sujeito
[…] ele participa da linguagem pela ambigüidade semântica que já sublinhamos em sua constituição” (LACAN, 1998a, p. 282). Sintoma
como metáfora, que faz deslizar os sentidos a partir dos significantes mestres para aquele sujeito. O inconsciente simbólico,
evidenciado pelos tropeços e lacunas no discurso do sujeito. Mas assim como Freud se referiu em Análise terminável e interminável
(1937) ao rochedo da castração, impossível de ultrapassar, como obstáculo ao trabalho analítico; a partir do Seminário 7 o conceito de
real se destaca de seu uso aproximado à ideia de realidade, para se referir à Coisa freudiana, Das Ding. No Seminário 10 sobre a
Angústia, a marca da separação do Outro deixa um um resto inquantificável, algo que não é da ordem do significante, absoluto, que não
se pode resolver e nem dissolver. Muda o conceito de objeto, da série de objetos parciais para agora construir o objeto a, que é um
resíduo, um resto de tudo que pode ser nomeado. A angústia como via de acesso ao real, não mediado pela linguagem. (MILLER, 2003)
A questão fundamental sobre o ser do sujeito se esvazia, e se mostra em sua inconsistência:
Ele é o elemento que perturba os semblantes identificatórios, pois é a prova de que nenhuma identificação corresponde ao
que o sujeito é. Esse elemento é, acima de tudo, concebido por Lacan no segundo momento do seu ensino, como pura
consistência lógica (SANTOS, 2006, p.200-201).
Gradativamente, o registro do real e o gozo ganham centralidade em sua teorização em relação à anterior ênfase no simbólico, a partir
do significante e seus efeitos. No Seminário 22, Lacan(1974-1975) propõe a teoria dos nós borromeanos e menciona pela primeira vez
a orientação ao real, e no Seminário 23 (1975-1976) ele vai falar do sinthoma como uma produção singular, como invenção do sujeito
para lidar com sua angústia, o registro real da pulsão, em resposta à invenção freudiana do inconsciente (LACAN, 2007). O trabalho
clínico com a palavra não é abandonado, mas exige um mais além do sentido: “A psicanálise como um curto circuito, passando pelo
sentido, como copulação da linguagem, suporte do inconsciente como nosso próprio corpo” (LACAN, 2007, p.118). Fazer com que algo
desse gozo sem nome possa ser capturado pelo significante, ainda que permaneça como letra de gozo, fora do campo do deslizamento
do sentido, permite que algo do insuportável do gozo possa ser reduzido:
Quando fazemos essa emenda, fazemos ao mesmo tempo uma outra, precisamente entre o que é simbólico e o real. Isso
quer dizer que, por algum lado, ensinamos a analisante a emendar, a fazer emenda entre seu sinthoma e o real, parasita do
gozo. (LACAN, 2007, p.70-71).
Isso que não pode ser posto em palavras e que excede o que é suportável, que faz furo no real, é preciso encontrar uma forma de fazer
do sintoma um suporte ao sujeito. O sinthoma cumpre então um arranjo que sustenta algum enlaçamento possível entre os registros
imaginário, simbólico e real. Ele exemplifica com os escritos de James Joyce o que é um sinthoma. Em seu uso da letra fora do campo da
significação, joga com enigmas e com os sons como propriedades que podem ser isoladas e retiradas de seu contexto linguístico. O
exemplo de uma homofonia escrita em língua inglesa, e que dificilmente é percebida no que forma de sons da sua língua (Joyce era
irlandês, e Lacan nos informa que o Gaélico, sua língua, é uma língua apagada do mapa, perdida) é sublinhado por Lacan como um
exemplo radical de sua apropriação da escrita. Joyce é o próprio sintoma, na medida em que usa o significante como modo de gozo do
que Lacan chama de Lalíngua, um balbucio gozoso do som. E é aí que Lacan situa o sinthoma, como uso privado da língua, que cumpre a
função de nomear para este sujeito em particular, e para ninguém mais. Para ele, isso se arranja. E isso basta ao enodamento que o
sustenta. Ao seu modo: “É nisso que o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o
que é conveniente chamar de sinthoma” (LACAN, 2007, p. 163). O inconsciente se enoda ao sinthoma, o traço unário, singular, e é ao
encarnar o sintoma que Joyce escapa a toda a morte possível. Pois é palavra que não se refere a coisa nenhuma. A palavra é a coisa.
Um paciente, citado por Lacan, articula que as falas são impostas. Lacan reconhece nessa articulação um saber psicanalítico, na medida
em que todas as falas são impostas, imposturas, como uma espécie de parasita. Após a sensação de que as falas lhe eram impostas, o
paciente teve a sensação de ser afetado pelo que ele mesmo chamava de telepatia. Mas diferente do uso corrente do termo, para ele
tratava-se de que todo mundo sabia de suas reflexões. Ele escutava algo como “sujo assassinato político” e o tornava equivalente a “sujo
assistanato político”. O significante reduzido a uma torção, a um equívoco. Ele mesmo respondia com um “mas…” e algo mais. E o que o
atormentava era que todos soubessem sobre essas reflexões que fazia. Ele se exprimia como “telepata emissor”. Não tinha mais
segredo, reserva alguma. O que o levou a uma passagem ao ato numa tentativa suicida e à internação.
Neste Seminário, Lacan iguala a pulsão de morte ao impossível de ser pensado, como deriva do sentido, fundamento do real. Mais
radical do que a foraclusão do Nome-do-Pai é a foraclusão do sentido pela orientação ao real. Em Joyce, questiona Lacan, essa
decomposição permanece ambígua se visava livrá-lo do parasita da linguagem ou se era a própria invasão pelas propriedades fonêmicas
– a linguagem como coisa. Que algo de um gozo se articule no inconsciente onde rateia o sentido, isso Freud já havia percebido com o
lapso, o chiste: “a linguagem está ligada a alguma coisa que no real faz furo […] a linguagem come o real. “ (LACAN, 2007, p. 31).
Com isso, Lacan se pergunta sobre a função da arte como um quarto nó, um quarto termo a enlaçar os três registros e a permitir alguma
consistência atingindo o sintoma: O problema todo reside nisto – como uma arte pode pretender de maneira divinatória substancializar
o sinthoma em sua consistência, mas também em sua ex-sistência e em seu furo? (LACAN, 2007, p.38) Em Joyce, Lacan se refere a
quando “usamos a linguagem de um modo que vai mais longe do que o que é efetivamente dito”. (LACAN, 2007, p.41) O quarto nó, o
Sinthoma, enlaça os três registros (RSI). A resposta assim obtida não diz respeito ao campo do sentido, do discurso; e nem tampouco ao
corpo, mas como ressonância que de fora do corpo faz acordo com a linguagem: “O sinthoma é o que permite reparar a cadeia
borromeana no caso de não termos mais uma cadeia” (LACAN, 2007, p. 90) Joyce se serve da linguagem para gozar, e ao tomá-la como
letra acaba por localizar algo do que pode produzir efeito de nomeação para ele mesmo. A escritura, termo derivado do ato de dar
forma escrita a um ato, como quando registramos a compra de um imóvel, equivale a essa operação de nomeação pela via da letra de
gozo. Algo de uma localização se produz, mesmo que pela via de uma borda que não se insere no campo do sentido, mas que produz
efeitos de apaziguar uma parcela da angústia.
Referências
FREUD, S. (1937). Análise terminável e interminável. Em: Obras Completas. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
LACAN, J. (1953). Função e campo da fala e da linguagem. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LACAN, J. (1975-76). O Seminário: livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
MILLER, J.-A. Introdução à leitura do seminário da angústia de Jacques Lacan. Em: Revista Opção Lacaniana, n. 43, 2005.
[1]
LACAN, J. O Seminário: livro 23 O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 162
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