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VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


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CARTA AO LEITOR
FOTOS JORGE ALOY/EFE; MARIANO MARTINO/GETTY IMAGES

POLÍTICA DE
BOA VIZINHANÇA
COMO CONVÉM às democracias, a Argentina foi às ur-
nas em paz. Demonstrou maturidade ao anunciar o nome
do presidente eleito de modo rápido, sem margem para
teorias conspiratórias, como aconteceu nos Estados Uni-
dos de Donald Trump. O derrotado, o ministro da Econo-
mia, o kirchnerista Sergio Massa, antes mesmo do fecha-

1|4
TRISTE DESTINO O peronista Néstor Kirchner com Cristina
e o liberal Mauricio Macri: fracassos, à esquerda e à direita

mento total das urnas, reconheceu a derrota para Javier


Milei, que se intitula “anarcocapitalista”, é anunciado co-
mo “ultraliberal” e não esconde as ideias de extrema di-
reita. Foi uma noite louvável, do ponto de vista das insti-
tuições. A dúvida, a partir de agora: Milei descerá dos pa-
lanques para governar, longe das bravatas e dos cercadi-
nhos, dos palavrões e das redes sociais? O primeiro dis-
curso parecia indicar algum desejo de normalidade.
“Quero dizer a todos os argentinos e a todos os dirigentes
políticos que todos aqueles que querem somar à nova Ar-
gentina serão bem-vindos. Não importa de onde vieram,
não importa o que fizeram antes, não importa que dife-

2|4
rença tenhamos”, disse. Não demorou, porém, para emitir
sinais preocupantes. Reafirmou sua porção “anarquista”
ao propor o fechamento do Banco Central e o desmonte
total do Estado — embora tenha, também, defendido um
vasto, necessário e sensato programa de privatização.
Qual Milei, afinal, presidirá a Argentina? Eis a ques-
tão. Dono de cabelos revoltos e fartas costeletas, ele foi
eleito como um rotundo não dos cidadãos a sucessivos go-
vernos, à esquerda (em maior quantidade) e à direita. To-
dos foram incapazes de conter a inflação (hoje em 142%)
e a pobreza — condição na qual vivem 40% das famílias,
como se percebe nas ruas de Buenos Aires. Administra-
ções como as do peronista Néstor Kirchner, de 2003 a
2007, de Cristina Kirchner, de 2007 a 2015, e do liberal
Mauricio Macri, de 2015 a 2019, apenas aprofundaram a
balbúrdia e a descrença dos cidadãos argentinos no país.
E então, contra tudo que sempre esteve aí, surgiu um per-
sonagem desconhecido, que mostrará sua cara e suas
ideias no cotidiano da Casa Rosada. Pode até funcionar,
desde que tenha apoio político, bom senso e não proponha
o impossível. Seu fracasso, por outro lado, pode encurtar
dramaticamente sua gestão e, por tabela, nos atrapalhar.
Goste-se ou não de sua figura, o sucesso de Milei é fun-
damental para o Brasil. Ressalve-se que a Argentina é o
terceiro maior destino exportador de brasileiros — com
14,9 bilhões de dólares em 2023 —, atrás apenas de China
e Estados Unidos. É também o quarto maior importador.

3|4
Os primeiros passos do tango entre os dois países depois
da eleição de domingo, contudo, foram preocupantes. Mi-
lei convidou Jair Bolsonaro para sua posse, em 10 de de-
zembro, anunciou viagens para Estados Unidos e Israel,
mas não para o Brasil. Lula, ao parabenizar as institui-
ções argentinas e a “voz do povo”, não citou o nome do fu-
turo presidente. Há tempo para correção de rota. A amis-
tosa convivência entre os vizinhos, no avesso da disputa
ideológica, é decisiva para o bom andamento da econo-
mia brasileira, para o Mercosul e, claro, para a Argentina,
país ferido pela incompetência de seguidos governos.
É crucial que nossos hermanos saibam distinguir a reali-
dade do populismo, a verdade das ilusões (nós também,
aliás). O escritor Tomás Eloy Martínez (1934-2010), autor
de O Romance de Perón, entre outros grandes livros, pôs
na epígrafe dessa obra uma frase que ouviu da própria bo-
ca de seu famoso personagem, nos tempos de exílio em
Madri: “Por esta casa passam muitos argentinos, cada um
querendo vender uma verdade diferente como se fosse a
única. E o que é que eu posso fazer? Acredito em todos”.
Não pode ser assim. A Argentina precisa reencontrar, na
estabilidade e na ponderação, uma direção que a levará de
volta ao crescimento econômico. ƒ

4|4
ENTREVISTA DANIEL ZOHAR ZONSHINE
SERGIO LIMA/FOLHAPRESS

“ISRAEL NÃO É
TERRORISTA”
O embaixador do país que trava uma sangrenta
guerra diz que é injusto comparar a ofensiva
israelense à barbárie do Hamas, como fez Lula, e
acha que o conflito ainda pode escalar
MONICA WEINBERG E CAIO SAAD

1 | 10
COM MAIS de três décadas de estrada na diplomacia, Da-
niel Zohar Zonshine, 65 anos, já é perito em Brasil, país on-
de serve pela segunda vez e do qual aprendeu a decodificar
a cultura e os ritos do poder. Sua primeira temporada em
Brasília foi como conselheiro, na gestão Fernando Henrique
Cardoso, período cuja data exata ele se recorda com a ajuda
do futebol. “Cheguei no dia da final da Copa do Mundo de
98 e saí logo depois da Copa de 2002”, conta o flamenguis-
ta. Após passagens por Índia e Mianmar, Zonshine voltou a
aterrissar em solo brasileiro em 2021, para chefiar a missão
diplomática ainda na era Jair Bolsonaro, que vira e mexe fa-
zia afagos a Israel, e engatou no governo Lula, ao qual diplo-
maticamente destina ressalvas. Às vezes, também é alvo de
críticas, se metendo em polêmicas das quais tenta escapar
em um português de leve sotaque lusitano, graças a um tem-
po trabalhando em Lisboa. Na entrevista concedida a VEJA
por videoconferência, o embaixador analisou o início da li-
bertação dos reféns em poder do Hamas e não se esquivou
dos espinhosos temas que o cercam nestes agitados dias.

Recentemente, o presidente Lula afirmou que “Israel


também comete vários atos de terrorismo”, igualando a
ofensiva do país em Gaza aos ataques de 7 de outubro
encabeçados pelo Hamas. A comparação é razoável?
Ela não é justa. Não há base possível de comparação entre
Israel e o Hamas. Estamos falando aqui de uma organiza-
ção terrorista com explícita intenção de exterminar civis,

2 | 10
que faz uso de cidadãos como escudo, com um país demo-
crático, reagindo diante da barbárie de um ataque sem pre-
cedentes. Repare que a intenção faz toda a diferença: os is-
raelenses não querem matar ninguém. Estão disparando
contra alvos legítimos, até quando miram um hospital, já
que ali, debaixo da terra, estão entrincheirados criminosos
dispostos a tudo.

Tamanho drama humanitário em um pedaço de terra tão


pobre e castigado não fere o que estabelece o direito in-
ternacional sobre a guerra? Na minha visão, não. Israel
não tem opção neste momento senão eliminar os terroris-
tas, o que está previsto nas normas internacionais. Agora,
não dá para curar um câncer com Merthiolate. A guerra é
uma coisa feia que ninguém quer, mas esta é necessária e
não há como conduzi-la de outro jeito.

“Há informações de que o Hezbollah


quer aumentar sua influência política,
econômica e militar no Brasil. Eles estão
de olho no tráfico de drogas na América
Latina para financiar suas atividades”
3 | 10
O senhor já fez ressalvas ao governo brasileiro por não
considerar o Hamas um grupo terrorista, linha que acom-
panha a de outros países e da própria ONU. Mantém a
crítica? Há várias definições de terrorismo por aí. Pode-
mos gostar delas ou não — o que não dá é para não enxer-
gar a realidade como ela é. Acho possível que a atual leitura
da situação esteja contaminada por ideologia. Isso ocorre
quando uma certa narrativa colide contra os fatos e a ver-
dade não prevalece.

Como é ocupar o cargo de embaixador num país em que o


presidente e assessores tecem críticas ao atual governo
de Israel? Há muita saia justa? Como diplomata, não me
cabe outra postura que não me adaptar ao cenário. O que
posso dizer é que, desde 1947, Brasil e Israel têm sólida rela-
ção. Há muita fofoca, muita gente dando manchete nos jor-
nais, mas nos gabinetes a conversa é outra. A parceria se-
gue. De um governo ao outro, o que muda mesmo é o tom.

Na região, Bolívia cortou relações com Israel e Colôm-


bia e Chile convocaram seus diplomatas a voltar. Isso
incomoda Tel Aviv? Na verdade, não. Nunca tivemos
muita relação com a Bolívia, que não é o Brasil, um país
muito mais sério.

Por que o senhor, tão cioso dos ritos diplomáticos, se


deixou fotografar ao lado do ex-presidente Jair Bolso-

4 | 10
naro num evento na Câmara dos Deputados? A ideia
desse encontro ocorreu um mês após os ataques, para
exibir aos parlamentares imagens das atrocidades. Nun-
ca iria querer politizar um evento dessa natureza. Bolso-
naro é que apareceu ali. E como você vai tirar um ex-pre-
sidente da sala? Me adaptei à realidade. Desde o fim do
governo, ele me ligou uma vez só, para demonstrar soli-
dariedade depois de 7 de outubro.

Os brasileiros que estavam em Gaza apenas consegui-


ram deixar o enclave na oitava lista de liberação de ci-
vis. Circulou nas rodas do poder que a tensão gerada
por declarações de autoridades brasileiras atrasou a
saída. Procede? Posso garantir que Israel não teve ne-
nhuma intenção de adiar a saída dos brasileiros de Gaza.
É mais um boato enviesado.

O senhor afirmou que o recrutamento de brasileiros pelo


grupo libanês Hezbollah para cometer atos terroristas
ocorre aqui “porque tem gente que os ajuda”, sobretudo
na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. No
que se fia para dizer isso? Há informações de que o Hez-
bollah quer aumentar sua influência política, econômica e
militar no Brasil. Eles estão de olho no tráfico de drogas na
América Latina para financiar suas atividades. Aquelas
pessoas que foram presas, segundo a própria Polícia Fede-
ral, estavam supostamente envolvidas num plano para ata-

5 | 10
car judeus em solo brasileiro. Não seria a primeira vez na
região: ocorreram dois episódios na Argentina.

Se essa história se confirmar, o Brasil terá de tirar satis-


fações com o Irã, o grande financiador do Hezbollah? O
Irã tem interesse em se ramificar para além do Oriente Mé-
dio. E, sim, se o Hezbollah atua no Brasil, o Irã está certa-
mente por detrás. Caberá às autoridades brasileiras decidir
como lidar com os iranianos.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, veio a público recha-


çar um post do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu
que atrelava o sucesso da operação no Brasil ao traba-
lho do Mossad, o serviço de inteligência israelense. Is-
rael extrapolou suas atribuições? Não falamos sobre a
atuação do Mossad, mas como o terror e o contrabando
de drogas não conhecem fronteiras, evidentemente que
há cooperação entre as agências de segurança mundo
afora. Sobre as palavras do ministro Dino, só ele pode ex-
plicar o que quis dizer.

O senhor adiou um encontro no Rio de Janeiro em que se-


riam exibidas imagens do conflito, justificando questões
de segurança. Pode explicar melhor o que aconteceu?
Não posso dar detalhes, mas espero ter a chance de mos-
trar aquelas imagens num futuro próximo. De modo geral,
me sinto seguro no Brasil.

6 | 10
Mesmo com o início da libertação de um grupo de re-
féns, o governo Netanyahu vem sendo torpedeado por
não colocar o drama que atinge tantas famílias como
prioridade zero. Faz sentido? A verdade é que estamos
norteados por duas grandes metas que seguem em pa-
ralelo — libertar os reféns e eliminar o poderio militar
do Hamas. A complexidade é que elas estão umbilical-
mente ligadas. O governo avalia que só a pressão mili-
tar, econômica e política pode fazê-los cooperar. Sem
isso, não há conversa. É o que explica a libertação des-
ses reféns agora.

O senhor é muito claro em relação à barbárie do Hamas.


Mas e Israel, não comete erros nesta guerra? Ninguém
pode afirmar que um país não erra numa guerra. Claro que
acontece, especialmente numa área urbana em uma bata-

“Falhamos na compreensão das intenções


do Hamas, apesar de conhecermos sua
capacidade. Nas primeiras horas, não
estávamos sequer prontos para reagir.
Foi um erro doloroso”
7 | 10
lha travada contra uma organização terrorista, não contra
um Exército. Isso torna tudo mais imprevisível.

É possível exterminar o Hamas, visto que jovens casti-


gados pelo conflito são facilmente cooptados para o
terrorismo? Não se pode matar uma ideia — nesse caso, a
destruição de Israel —, mas é possível mudá-la. Acabar
com o poder militar do Hamas também serve para liber-
tar os palestinos, que vivem sob o jugo dessa milícia em
condições sofríveis. A esperança é que entendam que as-
sim não têm horizonte.

Muitos especialistas sérios sustentam que Israel deu for-


ça ao Hamas para enfraquecer a Autoridade Palestina e
enterrar a ideia da existência de dois Estados. Acha plau-
sível? É uma teoria interessante, e conheço vozes respeitá-
veis que a disseminam. Não sei se é verdade, mas, no Orien-
te Médio, tudo é possível.

A paz duradoura não passa necessariamente pela solu-


ção dos dois Estados, convivendo lado a lado? É no que
acredito, mas agora no longo prazo. O caminho até lá ficou
mais difícil. Temos de reconstruir a trilha. A imensa maio-
ria dos jovens assassinados neste trágico 7 de outubro era
da centro-esquerda israelense, pessoas que apoiavam o Es-
tado palestino e até agiam em prol da causa. Os ataques
atingiram em cheio a solução dos dois Estados.

8 | 10
Um governo de extrema direita, claramente contrário à
causa palestina, não é um freio à existência desses dois
Estados? Cada governo tem sua linha, suas prioridades,
mas a ideia essencial, da convivência pacífica entre os dois
povos, não muda.

Netanyahu sugeriu que não sairá tão cedo de Gaza após


a guerra. As conversas estão enveredando por essa di-
reção? Não. Está claro que Israel não tem nenhuma inten-
ção de reocupar Gaza. Não sei quem cumprirá esse papel,
se a Autoridade Palestina ou outras forças internacionais.

Por que a inteligência de Israel, considerada uma das


mais eficientes do planeta, falhou de forma tão retum-
bante? Foi um erro doloroso. Falhamos claramente na
compreensão das intenções do Hamas, apesar de termos
as informações sobre sua capacidade bélica e de treina-
mento. Nas primeiras horas após os ataques, não estáva-
mos sequer prontos militarmente para reagir com a rapi-
dez que a situação exigia.

O senhor aposta na permanência de Netanyahu depois da


guerra? Claro que há forças políticas contra e a favor e terá
de haver uma reavaliação do cenário. É muito difícil saber.

Há sinais de que o conflito irá se espalhar pela região?


Sim. Além do interesse do Irã e do Hezbollah, é tudo tão

9 | 10
delicado que na fronteira com o Líbano, onde há lança-
mentos diários de mísseis, se eles fizerem um cálculo ruim
e atingirem uma escola nossa, por exemplo, Israel terá de
reagir com vigor. Não queremos isso, mas, se preciso, a ba-
talha ganhará uma nova frente.

Em meio ao conflito, observa-se um aumento do antisse-


mitismo. Isso o preocupa? A guerra trouxe à luz o precon-
ceito latente contra os judeus. Assistimos a demonstrações
de aversão a Israel até em Harvard e nas ruas da Europa,
onde agitam bandeiras contra a existência do país. E muita
gente boa defende o Hamas. Quando alguém pensa dez ve-
zes antes de condenar o terror, não é bom sinal. Também a
islamofobia e qualquer outra forma de intolerância devem
ser combatidas. Não há paz onde viceja o ódio. ƒ

10 | 10
IMAGEM DA SEMANA

ESPETÁCULO DEPRIMENTE

FOI TRISTE. Na terça-feira, 21, antes da derrota do


Brasil para a Argentina por 1 a 0 — a primeira em casa
na história das Eliminatórias para uma Copa do Mundo, a
terceira seguida em 2023 — um pedaço da arquibancada
do Maracanã virou palco de pancadaria, com
violência extremada entre torcedores e policiais. Brasileiros
trocaram socos com argentinos. Agentes de segurança
WAGNER MEIER/GETTY IMAGES

1|2
bateram com cassetete em fãs, sobretudo os que vestiam a
camisa azul e branca do vizinho, mas também em cidadãos
que estavam com a canarinho. Alguns saíram sangrando, de
maca. Apuram-se, agora, as culpas — sabe-se, desde já, que
a responsabilidade de manter o ambiente em mínimas
condições de segurança era da CBF. O cracaço Messi, que
muito possivelmente fez seu derradeiro jogo no outrora
“maior do mundo”, conduziu os companheiros para longe do
gramado, como protesto, assim que eclodiu a estupidez. A
seleção campeã do mundo exigiu adiamento da partida por
pelo menos quinze minutos, e só então retornou ao campo.
“Fomos para o vestiário para avaliar a situação e ver o que
acontecia”, disse o camisa 10. “Poderia ter acontecido uma
tragédia aqui.” A batalha lembrou a agressividade do início
do mês, entre apoiadores do Boca Juniors e do Fluminense,
nas ruas e praias do Rio de Janeiro. É inaceitável que tenha
se repetido. Ao final da noite, ante o fracasso da equipe
dirigida por Fernando Diniz, a plateia entoou o clássico
“time sem vergonha”. Era o corolário de uma noite indizível,
deprimente. Vergonhosa. ƒ

Alessandro Giannini

2|2
CONVERSA ELIZA CAPAI

“NUNCA QUIS ABORTAR”


Diretora de Incompatível com a Vida, filme a
respeito da dura escolha de interromper uma
gravidez, documentarista fala sobrea necessidade
de se discutir francamente o tema tabu no país
JOÃO PINA

REGISTRO DOLORIDO Eliza Capai, de 44 anos, sobre a


experiência: “Se estivesse no Brasil, provavelmente eu morreria”

1|3
Seu filme foi elogiado pelo The New York Times e está
elegível para o Oscar. Como foi essa trajetória de
transformar sua experiência pessoal em um docu-
mentário? Eu comecei a gravar como registro pessoal da
gravidez. Até receber o diagnóstico de que o feto tinha
uma malformação, que era incompatível com a vida, e
não sobreviveria fora do útero. Não pensei que era possí-
vel ficar tão triste com a perda de um feto, mas era meu
filho desejado e amado. Senti que tinha uma missão em
registrar essa dor.

Algumas mulheres do filme com o mesmo diagnóstico


optaram por levar a gravidez adiante, e outras busca-
ram a interrupção na Justiça. No seu caso, como foi essa
decisão? Eu estava em Portugal, onde a interrupção é le-
gal. Ele tinha catorze semanas quando descobri. Acho que
cada mulher tem que ter o direito de decidir. Eu nunca quis
abortar. Eu estava feliz com a gravidez. Depois, não conse-
guia me imaginar levando a gestação adiante. As semanas
que passei sentindo aquele bebê crescendo, sabendo que ele
iria morrer, foram enlouquecedoras.

Como é fazer o procedimento em um país onde o aborto


é legalizado? O mais importante é que eu pude falar sobre
isso. Se fosse um aborto clandestino, estaria confessando
um crime. Brasileiras precisam enfrentar a ilegalidade, judi-
cializar o caso ou são obrigadas a levar a gravidez adiante,

2|3
além do julgamento social. Não passei por isso em Portugal,
tive o apoio e o aconselhamento de médicos.

Como acha que teria sido por aqui? Difícil. Eu tinha uma
condição prévia, voltei para casa e minha febre não passava.
Fui internada novamente e naquele momento pensei que, se
estivesse no Brasil, talvez eu morreria.

Por quê? Nos países onde o aborto é ilegal, há o medo de


ser presa, assim mulheres não contam o que aconteceu. Se
eu chegasse como cheguei a um pronto-socorro no Brasil e
não falasse sobre o aborto, o tempo que se perderia talvez
fosse tarde demais. O fato de que eu ainda tenho meu útero
e minha vida é o maior desenho do que significa estar em
um país com aborto legalizado.

É a favor da legalização em casos distintos do seu, que ti-


nha um diagnóstico médico? Sim. Acho que só tem que nas-
cer quem é desejado e amado. Estudos mostram que boa parte
das mulheres que abortam são religiosas, mães e sem condi-
ções de ter outro filho. O direito à escolha é fundamental. ƒ

Amanda Capuano

3|3
DATAS

A TRAGÉDIA DA FÃ

DESCASO Ana Clara Benevides no show de Taylor Swift:


sonho interrompido

DANIELA MENIN/ARQUIVO PESSOAL

1|4
A estudante de psicologia Ana Clara Benevides, 23
anos, de Pedro Gomes, no Mato Grosso do Sul, passou os úl-
timos meses entre a ansiedade e a euforia, alegre por ter a
chance de assistir a um show de Taylor Swift. Horas antes do
início do espetáculo, na sexta-feira, 17, no estádio Nilton San-
tos, no Rio, ela postou uma foto em suas redes sociais sorri-
dente. Vestia uma camiseta branca informando, em coração
vermelho: “I Love T.S.”. Na altura da segunda canção da noi-
te, quando a americana entoava Cruel Summer, passou mal.
Foi atendida rapidamente, levada ao hospital, mas morreria.
“Do nada, ela simplesmente caiu”, contou a amiga Daniela
Menin. A temperatura no recinto chegou a 42,5 graus, com
sensação térmica de 60 graus. Mesmo com a previsão de ca-
lor extremo, a organização do evento, patrocinado pela em-
presa T4F, vetou a entrada de garrafas de água no estádio,
alegando que a proibição é uma exigência de órgãos públicos.
A afirmação é inconsistente. O Código de Defesa do Consu-
midor define que o público pode levar água, desde que este-
jam de acordo com as restrições de segurança, como em co-
pos plásticos lacrados. Outra agravante foi o uso inadmissí-
vel de tapumes nas aberturas de ventilação — que permiti-
ria a circulação de ar —, abafando ainda mais o local. Taylor
cancelaria o show de sábado. No de domingo, tocou a vida
como se nada tivesse havido e não citou a tragédia. A família
de Ana Clara pediu ajuda financeira para poder levar o cor-
po de volta a seu estado. O braço fluminense do Ministério
Público Federal abriu investigação criminal contra a T4F.

2|4
A COPRESIDENTE DOS
ESTADOS UNIDOS
Os homens da Casa Branca
chamavam-na, jocosamente,
de “copresidente”, ridiculamen-
te incomodados. Rosalynn
Carter, primeira-dama dos Es-
tados Unidos durante o man-
dato do democrata Jimmy Car-
ter, entre 1977 e 1981, participa-
va das reuniões do governo e
costumava se pronunciar em
torno de questões ruidosas.
Mais de uma vez foi enviada a
DIANA WALKER/GETTY IMAGES

países da América Latina para


deixar claro aos ditadores de
plantão que a gestão de seu ma-
rido tratava o respeito aos direi- DEMOCRATA Rosalynn
tos humanos de modo inego- Carter: voz relevante na
ciável. Diz-se que Carter foi o Presidência de Jimmy
melhor ex-presidente america-
no — não por acaso, em 2002 ele ganhou o Nobel da Paz. Ro-
salynn esteve a seu lado o tempo todo, nas relações familiares,
mas também no campo das ideias. Os dois foram casados du-
rante 77 anos. Carter tem 99 anos, e desde fevereiro passa por
cuidados paliativos. Ela morreu em 19 de novembro, aos 96
anos, em Plains, na Geórgia, onde viviam.

3|4
TUBARÃO! Kastel
e o mais conhecido
dos pôsteres de
REPRODUÇÃO

cinema: mandíbula

UM ÍCONE DA CULTURA POP


Faça um teste. Peça a alguém para dizer algo a respeito do
clássico Tubarão, filme de 1975 dirigido por Steven Spielberg. A
lembrança do pôster oficial será, muito provavelmente, a res-
posta mais comum. Copiado à exaustão, usado como referência
em capas de livros e cartazes de outros temas, sempre que é ne-
cessário misturar medo e suspense, virou ícone incontornável.
Seu autor, o ilustrador americano Roger Kastel fez o desenho
para a capa do livro de Peter Benchley que inspiraria o longa.
Depois, esquentou as cores do mar, abriu as mandíbulas do pei-
xe e pôs uma mulher nadando na superfície. Nascia um clássico
pop. Kastel morreu em 8 de novembro, aos 92 anos. ƒ

4|4
FERNANDO SCHÜLER

AS LIÇÕES DA
ARGENTINA
CONFESSO que me surpreendi. Não tanto com a eleição,
mas com o “baile” de Javier Milei, presidente eleito com a
maior votação da história da Argentina. Há muitas lições.
Uma delas é que a campanha do medo, fabricada pelos mar-
queteiros brasileiros, de Sergio Massa, não funcionou.
A campanha tentou todos os truques sujos imagináveis. Um
deles mostrava crianças com armas na mochila; outro suge-
ria que o voucher educação, proposto por Milei, faria com
que os alunos pobres tivessem que pagar pela educação. Isso
fora a narrativa do “risco à democracia”, velha conhecida,
que parece ter se tornado uma especialidade de exportação
do marketing político brasileiro.
Muita gente tentou associar Milei à ideia da “antipolítica”. O
que se viu, ao final, foi o oposto. Designar o adversário como
“inimigo da democracia” equivale a retirar dele um sentido de
legitimidade. Na prática, significa negar um princípio elemen-
tar da vida política: a capacidade de aceitar os contrários. Se a
democracia tem dono, perde-se quase tudo de seu sentido fun-
damental. No Brasil, esta retórica funcionou; na Argentina, o

1|6
tiro saiu pela culatra. A grande imprensa não entrou no jogo.
Trataram a retórica do “risco à democracia” como o que ela
era, de fato: narrativa eleitoral, não um dado de realidade.
Os juízes não entraram em campo. Vai aí outra lição das
eleições argentinas: é possível se fazer uma disputa política
dura sem que o Estado funcione como “curador” da opinião.
Sem combater fake news, sem praticar nenhum tipo de cen-
sura ou edição dos debates eleitorais. Houve discursos de
ódio, com um candidato sendo chamado de “ladrão”, e outro
sugerindo que seu adversário teria algum problema mental.
E uma quantidade respeitável de mentiras. Coisas como es-
palhar que Milei propunha a “venda de crianças”. E, pas-
mem, uma montanha de gente criticando o sistema de vota-
ção, as urnas não eletrônicas, arcaísmo argentino. E denun-
ciando fraudes, reais ou imaginárias. Nada disso fez com que
a justiça eleitoral interferisse no direto à expressão. O próprio
“mercado de ideias” tratou de diluir esses temas. Cada notí-
cia ou discurso bizarro foi digerido pelo contraditório, na im-
prensa, nos debates, nos cafés, nos programas eleitorais. Ne-
nhum juiz falou em “desordem informacional”, censurou fil-
mes ou sugeriu que os “eleitores ordinários” não tinham con-
dições de decidir no que acreditar. A democracia argentina
nos passou uma lição constrangedora. Mas não tenho expec-
tativa de que vamos aprender alguma coisa com isso.
Milei teria conseguido o prodígio de tornar populares as
ideias liberais? Lemos por aí que os jovens estão se voltando
à esquerda, com a retórica identitária. E agora essa? Um

2|6
RENOVAÇÃO A turma de jovens que apoiou Javier Milei: as
“fuerzas del cielo”

candidato que gosta de Mises e Friedman, que quer um Es-


tado mínimo, se tornar o guru da juventude empobrecida,
na Argentina? Um liberal argentino me disse o seguinte:
“Passamos muito tempo falando em livre mercado; o argu-
mento de Milei é essencialmente ético”. Uma inversão: o li-
beralismo não como a ideologia dos homens de negócios,
mas uma filosofia do cidadão comum. Dos que pagam im-
postos, dão duro, pagam a conta da malandragem e inven-
cionices do mundo político. O “liberalismo como rebelião
IGOR WAGNER/DPA/GETTY IMAGES

3|6
“O ‘risco à
democracia’ virou
narrativa de
marketing político”
contra o status quo”, na frase dita no dia da vitória. Se isso
vai funcionar, está em aberto, mas o elemento ético está lá.
Algo como: “Não nos tratem como otários”. Há vinte anos
oferecem subvenções para os mais pobres, e a pobreza só
aumenta. O que há de errado? E o que tem a ver com os mais
pobres sustentarem uma empresa aérea estatal, e ainda defi-
citária, como Aerolíneas Argentinas?
Há uma retórica outsider aí. O status quo, na política, não
é apenas lugar de poder, mas uma forma de pensar. Exem-
plo: a Argentina tem um dos principais centros de ópera no
mundo, o Teatro Colón. O teatro deixaria de ser financiado
pelo governo? Perguntei isso a um dos próceres da campa-
nha e não houve resposta clara. “O Colón talvez seja uma
exceção”, me disse. Talvez se possa “buscar fundos no setor
privado.” Retruquei: “Mas o teatro não poderia passar à ges-
tão privada?”. O sujeito me pareceu surpreso. Mesmo um li-
beral não concebia algo que é relativamente comum (e bem-
sucedido) aqui no Brasil. Mencionei a Sala São Paulo e a

4|6
Osesp, de gestão privada, e ele rapidamente compreendeu.
Vale o mesmo para a revolução copernicana nas subvenções
sociais. Se a ideia é subsidiar a energia ou uma cesta de pro-
dutos básicos, para que pagar a conta de todo mundo? Por
que não focar apenas nos mais pobres? Porque uma família
de renda alta, que pagaria o equivalente a 100 dólares de
energia, paga menos de 20% do valor? E qual o sentido do
subsídio genérico à gasolina, que faz a festa dos brasileiros,
nas áreas de fronteiras? Milei anunciou que privatizará a TV
estatal. O.k. Há algo de excepcional aí? Alguém realmente
acha que o governo deve ter um canal de televisão? Quando
retiramos os óculos da ideologia, boa parte do que apresen-
tam como terríveis ideias liberais (e aí não se inclui a dolari-
zação da economia) são argumentos de bom senso.
A grande pergunta: por que uma sociedade habituada ao
paternalismo estatal toparia o processo doloroso de migra-
ção para uma economia liberal? Milei diz que “não haverá
gradualismos”, que fará um ajuste fiscal duro, e que está pre-
parado para enfrentar as ruas “com a força da lei”. Diz que o
primeiro ano será difícil, mas que em 2025 a inflação cede-
rá. Há um imenso otimismo aí. A questão é saber o que
aquele motorista de táxi, que em uma noite qualquer encon-
trei raivoso com a “casta”, em Buenos Aires, e que votou em
Milei, pensará quando descobrir que a conta da luz e o pre-
ço do combustível aumentaram 20%. E quando os funcio-
nários da TV estatal convencerem seus colegas de que a pri-
vatização é a destruição de um “patrimônio histórico da na-

5|6
ção argentina”. Tudo ao sabor dos sindicatos e bumbos pe-
ronistas, que fatalmente voltarão às ruas. Mais do que um
desafio para a Argentina, é um laboratório para a América
Latina. Eleger uma alternativa liberal é uma coisa; outra é
aceitar o ônus de produzir e viver em uma sociedade liberal.
Milei faz alusão a um passado glorioso, com a Argentina en-
tre as maiores economias do mundo; menciona Alberdi, o
patrono do liberalismo argentino, no século XIX. E apela às
“fuerzas del cielo”, que se transformaram na multidão de jo-
vens que o apoia. E faz sua aposta. Se ganhar, quem sabe se
equipare a Perón, ainda que pelo lado inverso, como mito
argentino; se perder, é provável que devolva a faixa a um pe-
ronista, nos velhos salões da Casa Rosada, e o dramalhão
argentino seguirá seu curso. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
SOBEDESCE

SOBE
JANJA
A primeira-dama foi uma das
personalidades condecoradas pelo
presidente (e maridão)
Lula com o mais alto grau
da Ordem do Rio Branco.

JEJUM INTERMITENTE
Segundo estudo do King’s College
London, do Reino
Unido, o regime pode trazer
benefícios para o humor,
aos níveis de energia e
até para o apetite.

KARATÊ KID
A Sony irá lançar em 2024 um novo
filme da saga, com os atores Jackie
Chan e Ralph Macchio revivendo seus
antigos personagens.

1|2
DESCE
ZÉ TROVÃO
Investigado no inquérito sobre os
atos antidemocráticos, o deputado
do PL-SC agora é acusado de
agressão pela ex-noiva.

JUSCELINO FILHO
Segundo a PF, o titular da pasta de
Comunicações pagou uma emenda
parlamentar a uma empresa da
qual ele seria sócio oculto. O
ministro nega.

TAYLOR SWIFT
O comportamento da cantora
americana e de sua produção no
episódio da morte da estudante
Ana Clara Benevides foi
absolutamente lamentável e
desnecessariamente insensível.

2|2
VEJA ESSA

“Foi como ler uma homenagem póstuma


enquanto eu ainda estou vivo.”
SAM ALTMAN, CEO da OpenAI, empresa que criou o
ChatGPT, depois de ser destituído do cargo. Dias depois, seria
recontratado, em um balé corporativo para lá de esquisito —
no meio do caminho namorou um cargo na Microsoft

PATRICK T. FALLON/AFP

1|4
“Direta ou indiretamente, toda a
sociedade brasileira deveria pedir
desculpas ao povo negro por algum tipo
de participação naquele momento triste
da história. Neste contexto, o Banco do
Brasil de hoje pede perdão ao povo negro
pelas suas versões predecessoras e
trabalha intensamente para enfrentar o
racismo estrutural no país.”
TARCIANA MEDEIROS, presidente do Banco do
Brasil, chamando a atenção para a postura da instituição
durante a escravidão. Ela é a primeira mulher negra a
presidir o banco

“O que aconteceu não tem como mudar.


Mas essa reparação (histórica)… eu acho
que é falha.”
HELIO LOPES, deputado federal pelo PL do Rio de Janeiro,
a quem Jair Bolsonaro chama de “Helio Negão”, ao rejeitar o
incentivo a políticas públicas voltadas para reparação
histórica dos descendentes de negros escravizados no país

“Me achavam preta demais para ser


rainha do Carnaval.”
EGILI OLIVEIRA, passista à frente da escola
de samba Acadêmicos de Vigário Geral

2|4
“A internet do país vai parar.”
FÁBIO ANDRADE, vice-presidente da Claro, em tom
alarmista. Para ele, a possível instalação de uma usina de
dessalinização de água em Fortaleza ameaça cabos submarinos
que conectam a internet do Brasil com a de outros continentes

“Medicina é a “Não acho que


mistura de arte conseguiria
e ciência.” viver em outro
LUDHMILA HAJJAR, lugar que não
cardiologista, professora
fosse sob os
titular da disciplina de
emergências clínicas da
holofotes.”
Faculdade de Medicina da USP MEGAN FOX, atriz

“Tenho um outro lado, nada angelical.”


ANGÉLICA, apresentadora de televisão

“A gente não beija técnico não. Claro que


não, gente! Você abre uma boca, um lábio
em cima do outro, a língua pra lá e pra cá.
Você chama isso de quê? Beijo!”
SUSANA VIEIRA, atriz, instada a dizer se o “beijo técnico”
existe entre artistas. Ela aproveitou para salientar que o ator
que melhor beijava, de longe, era José Wilker (1944-2014)

3|4
MARVIN RECINOS/AFP

“Não há limitações para


as mulheres hoje.”
SHEYNNIS PALACIOS, da Nicarágua, Miss Universo 2023. Ao
ser indagada pelos apresentadores sobre quem gostaria de ser se
pudesse voltar no tempo, ela citou a britânica Mary Wollstonecraft,
pioneira na defesa dos diretos femininos no século XVIII

4|4
RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Gustavo Maia,


Nicholas Shores e Ramiro Brites

Cheiro de fritura apagada demais para o ta-


Condecorada nesta semana manho e a relevância polí-
por Lula, a ministra Nísia tica e financeira da Saúde.
Trindade voltou a ser alvo
de movimentos por sua de- Velho fogo amigo
missão no Planalto. A quei- Nísia não está sozinha nessa
xa de colegas a Lula é co- cobrança de aliados por re-
nhecida: pilota uma gestão sultados. Outro ministro na
CAROLINA ANTUNES/MS

SOB ATAQUE Nísia Trindade: ala do governo quer a


demissão da ministra da Saúde

1|6
mira é Camilo Santana, da rantiu a vitória bolsonarista.
Educação. O problema é o Fernando Haddad também
mesmo: tem orçamento, escutou. Cheio de pedidos ao
apelo político, mas não gera STF — precatórios, por
agenda positiva para Lula. exemplo —, o Planalto deve-
ria ter se dedicado mais.
Nova reforma?
Se ouvir essa ala do Planal- Erro de avaliação
to, Lula pode terminar o ano Até o último instante da vo-
com mais mudanças no mi- tação, Eliziane Gama e
nistério, de modo a iniciar Randolfe Rodrigues garan-
2024 “sem pendências”. tiam a ministros do STF, em
conversas por telefone, que
X-tudo o texto não seria aprovado
A lista de demissões inclui- no Senado. Foi.
ria ainda as trocas na Pe-
trobras, de Jean Paul Pra- Não deu
tes, e no Ministério das Co- O decano do STF falou até
municações, de Juscelino com Valdemar Costa Neto
Filho, alvo recorrente de para barrar a PEC no Se-
denúncias no governo. nado. O cacique tentou,
mas não conseguiu mudar
A onça com vara curta votos no PL.
Gilmar Mendes teve uma
dura conversa com Jaques Falta combinar ali
Wagner sobre a votação da Alexandre Padilha recebeu
PEC no Senado. O petista ga- críticas no Supremo. “Pare-

2|6
ce que ele é ministro da arti- Eu avisei
culação da Câmara. No Se- Lira alertou Flávio Dino
nado, não tem entrada”, diz sobre o risco de sua au-
um ministro. diência no plenário da Câ-
mara, em dezembro, virar
Alguém ficou feliz um grande circo para a
Se o STF perdeu uma no oposição. O ministro de
Senado, quem ganhou foi Lula não se intimidou.
Davi Alcolumbre. Maior
fiador da PEC, ele conquis- Novo endereço
tou capital político com a A TV Justiça vai trocar de
oposição a Lula e aumen- endereço no Supremo. A
tou o custo para quem qui- mudança para um prédio
ser enfrentá-lo na sucessão ao lado da sede do tribu-
a Rodrigo Pacheco — leia- nal vai custar 1,5 milhão
se MDB e PSD.
NÃO PASSA
Outras prioridades Barroso, do
Presidente do STF, Luís Ro- STF: conversa
berto Barroso conversou com Lira foi
com Arthur Lira e em clima
ouviu do chefe de paz
da Câmara que a
Casa deixará a
PEC do Se-
nado na
sombra.
FELLIPE SAMPAIO/SCO/STF

3|6
de reais e ocorrerá para de Mauro Cid em sua de-
abrir espaço ao Museu do lação à Polícia Federal.
Supremo, reformulado
após o 8 de Janeiro. Deu briga
A bancada do Podemos
Todo o cuidado é pouco no Senado anda agitada.
O STF, aliás, vai reforçar Na reunião desta semana,
seu arsenal. Lançou licita- Marcos do Val e Soraya
ção para comprar um kit Thronicke duelaram aos
com vinte capacetes e cas- gritos pela vaga de líder.
setetes antitumulto, além
de 22 máscaras de gás e Nenhum dos dois
seis fuzis Fire Eagle cali- A confusão começou
bre 9x19 mm. quando o líder Oriovisto
Guimarães anunciou que
Tô 100% deixaria o posto no fim do
Lula, quando recebe alia- ano. Do Val quis o cargo.
dos, costuma dar dois puli- Soraya, também. Depois
nhos para mostrar que está dos gritos, ficou combina-
completamente recuperado do que quem deve assumir
da cirurgia no quadril. é Rodrigo Cunha.

Missão complicada Sete anos de cadeia


Jair Bolsonaro pode com- Operador de propinas do
prar o peru de Natal e co- PT na Petrobras, Renato
m e m o ra r. E st á d i f í c i l Duque acaba de ser con-
comprovar as declarações denado novamente na La-

4|6
va-Jato. Pegou sete anos de Vai sair caro
prisão por corrupção. O Banco Votorantim con-
seguiu uma decisão de exe-
Era meio a meio cução de 7,5 milhões de
“Nota-se que o pagamento reais contra o CEO do Sou-
das vantagens indevidas (1% thRock, Kenneth Pope.
por contrato) é reconhecido
pelo próprio acusado... Me- A galinha toda
tade para a ‘Casa’ (Duque) e A Virgo pede à Justiça a
metade para o PT”, diz o juiz inclusão do Subway na re-
Fábio Martino. cuperação do SouthRock
e diz que ela tenta segre-
Trabalho atrasado gar as “maçãs podres” dos
Presidente do Cade, Alexan- “ovos de ouro” no caso.
dre Cordeiro avalia convocar
sessões extraordinárias para o Caso arquivado
recesso de janeiro. Quer com- A Justiça arquivou a ação
pensar o apagão desse mês. em que uma advogada
questionava a divisão de lu-
Minha casa, minha vida cros no escritório do advo-
O grupo SouthRock, que gado Nelson Wilians. Diz
opera o Starbucks, excluiu que o caso é de arbitragem.
a SRC 5 Participações da
recuperação judicial. Tenta Calma, hermano
blindar uma mansão no O deputado Alberto Fra-
Guarujá comprada por 46 ga vai acompanhar Bolso-
milhões de reais. naro à posse de Javier Mi-

5|6
INSTAGRAM @MARAISA

NO CAMPO Maraisa: compra de fazenda terminou


em briga na Justiça

lei e já levará um pedido: após comprar uma fazen-


quer o fim do pedágio no da de 13 milhões de reais
Rio Paraná. em Goiás. O vendedor diz
que não recebeu todos os
Fazenda da discórdia pagamentos e até pediu
A cantora Maraisa envol- 50 000 reais da sertaneja
veu-se em briga judicial por danos morais. ƒ

6|6
BRASIL GOVERNO

PODEROSO
E ODIADO
O chefe da Casa Civil cumpre missões que ampliam
sua influência no governo, expandem seu horizonte
eleitoral e o tornam o alvo principal de intrigas
dentro e fora do Palácio do Planalto
DANIEL PEREIRA

VISIBILIDADE
Costa: responsável
por alguns dos
mais importantes
programas da
administração
petista
BRUNO CECIM/AG.PARÁ

1|9
O
presidente Lula nem sempre viu com bons olhos as
movimentações do chefe da Casa Civil, Rui Costa.
Em 2018, ele não gostou de saber, logo após ser
preso pela Operação Lava-Jato, que o agora minis-
tro, à época governador da Bahia, passou a defen-
der a escolha de um nome alternativo para concorrer ao Pa-
lácio do Planalto, enquanto o PT insistia em dizer que Lula
não ficaria fora do páreo. O incômodo cresceu no ano se-
guinte, quando Rui Costa, em entrevista a VEJA, apresentou-
se como presidenciável e, projetando a sucessão que ocorre-
ria em 2022, declarou que o PT não deveria abandonar a
bandeira “Lula livre”, mas não poderia exigir que outros par-
tidos a empunhassem. Em ambos os casos, o ministro pare-
ceu pragmático demais — ou comprometido de menos com a
batalha judicial do chefe para recuperar a liberdade. Apesar
desses desencontros e da resistência de petistas graúdos à
ideia, Lula convidou o ex-governador para ser o capitão do
time de seu terceiro mandato, o novo gerente da máquina, o
seu “Dilma de calças”, como o próprio mandatário definiu.
De gosto duvidoso, a analogia não é de todo descabida.
Assim como a ex-presidente, Rui Costa é alvo de críticas
diversas à frente da Casa Civil. Diz-se que não faz política,
tem péssima relação com o Congresso e atropela colegas de
governo. Assim como sua antecessora no cargo, ele também
foi incumbido de formatar e tirar do papel o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) e de empenhar as estatais
nos esforços governamentais destinados a turbinar os investi-

2|9
mentos no país. Essas tarefas estão na origem de boa parte do
desgaste do ministro. Nos últimos dias, ele se dedicou a pres-
sionar o presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, a seguir
suas ideias. Em público, o motivo do embate é o preço dos
combustíveis. Com base numa queda circunstancial da cota-
ção do dólar e do barril de petróleo, Rui Costa — com o apoio
do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira — cobra a
redução do valor da gasolina, que poderia ter impacto positi-

DISPUTAS INTERNAS
O chefe da Casa Civil, Rui Costa, é apontado como um
dos “presidenciáveis” do governo e, por isso, enfrenta
concorrência acirrada por protagonismo
SERGIO DUTTI

FERNANDO HADDAD

Considerado o sucessor natural de Lula, o ministro da


Fazenda é contestado com frequência por Rui Costa, como
nos casos da reoneração dos combustíveis e da manutenção
da meta de déficit primário zero em 2024

3|9
vo na inflação. Prates resiste por entender que a Petrobras não
deve repassar ao consumidor brasileiro toda e qualquer vola-
tilidade do mercado externo, seja para encarecer ou baratear
o preço. “Não faz sentido atuar por impulso ou açodamento”,
declarou. O peso dos combustíveis na inflação e no humor do
eleitorado é inegável, mas o pano de fundo é outro.
Em diferentes reuniões nas últimas semanas, inclusive com
a participação de Lula, Costa reclamou do plano de investimen-
to da Petrobras. De forma resumida, ele quer mais dinheiro de-
sembolsado em um intervalo de tempo menor. Como Dilma, o
ministro acredita piamente que a empresa tem de cumprir um
papel de indutora do crescimento, o que em gestões anteriores
do PT resultou em obras monumentais, mas também serviu de
AG. BRASIL

FLÁVIO DINO

Uma das apostas do PSB para a sucessão de Lula,


o ministro da Justiça é alvo de petardos pela sua voluntária
superexposição – críticas identificadas pelo próprio
Dino como oriundas da Casa Civil

4|9
terreno fértil para o petrolão. Em meio à disputa, o site de O
Globo divulgou que Rui Costa indicaria a Lula o nome de um
subalterno de sua confiança para substituir Prates. O ministro
não negou a informação e, depois que ela circulou, disse a um
representante de uma empresa privada, numa conversa reser-
vada, que não haveria troca no comando da companhia. O re-
cado a Jean Paul Prates, no entanto, já estava dado. Quando
chegou a Brasília, o chefe da Casa Civil fez questão de espalhar
a versão de que, na Bahia, tinha fama de tocador de obras. Daí,
o apelido de Rui Correria, que agora precisa comprovar em âm-
bito nacional. Para isso, o ministro diz ser essencial incentivar
os investimentos privados, mas não abre mão de pressionar a
equipe econômica por mais gastos públicos.
AG. BRASIL

GERALDO ALCKMIN

Com discrição e sem alarde, o vice-presidente e ministro do


Desenvolvimento expande sua área de influência no governo
e tenta se viabilizar como uma opção considerando a
hipótese de Lula decidir se aposentar em 2026

5|9
CRISTIANO MARIZ/AG. O GLOBO
FUTURO Com Lula: sonho de ser
o candidato do PT à sucessão do chefe

Hoje, sua maior queda de braço se dá com o ministro da


Fazenda, Fernando Haddad. Rui Costa fez o que pôde para
convencer Lula a desistir da meta de déficit primário zero em
2024. Influenciado pela pregação do auxiliar, o presidente
chegou a declarar que seria difícil alcançar essa meta e que
não aceitaria cortar despesas do PAC e das áreas de saúde e
educação para viabilizá-la. Haddad foi pego de surpresa com
as afirmações do chefe, mas não recuou. O embate se desen-
rolou até o momento em que o governo informou que não
abrandaria o alvo inicial, como queria Rui Costa. O chefe da
Casa Civil não se fez de rogado e, mesmo após o anúncio pú-
blico da decisão, tentou convencer Lula a recuar. Não deu cer-
to. Até segunda ordem, a meta de déficit zero está mantida,
mas será afrouxada caso os projetos propostos pela equipe
econômica para aumentar a arrecadação não sejam aprova-
dos — ou não gerem recursos na quantidade necessária para
equilibrar receitas e despesas. Desde o início do terceiro man-

6|9
dato de Lula, Haddad tomou a frente de boa parte das nego-
ciações com o Congresso diante da queixa dos parlamentares
com a articulação política feita pelos ministros do palácio.
O ponto fulcral das reclamações de deputados e senado-
res era justamente Rui Costa, chamado em conversas reser-
vadas de “troglodita” e “desleal”, entre outros termos menos
edificantes. Congressistas até do PT dizem que acordos po-
líticos não são cumpridos por serem barrados pelo chefe da

TENSÃO NO CONGRESSO
Como Dilma Rousseff, Rui Costa tem fama de não
fazer política e de ser truculento no trato com os
parlamentares
CÂMARA DOS DEPUTADOS

ARTHUR LIRA

O presidente da Câmara chegou a sugerir a Lula a demissão


do chefe da Casa Civil, que, depois do episódio, pediu ajuda
para se aproximar do deputado, com quem agora conversa
com certa regularidade

7|9
Casa Civil. A insatisfação cresceu tanto que o presidente da
Câmara, Arthur Lira, chegou a sugerir a Lula a demissão de
Rui Costa. Nos bastidores, costuma-se afirmar que o minis-
tro enfrenta problemas porque age com a mesma postura
imperial que tinha como governador. Pode até ser verdade,
mas essa não é a questão central. Petistas como José Dirceu,
o poderoso chefe da Casa Civil no primeiro governo Lula,
alegam que o presidente cometeu um erro de origem ao es-
colher para o cargo um quadro que não gosta de fazer políti-
ca. Um gerentão puro e simples.
Quando foi nomeado para a Casa Civil, o ministro entrou
na lista de potenciais candidatos à Presidência na hipótese
de Lula não concorrer à reeleição. Hoje, o nome considerado
AGÊNCIA SENADO

JAQ U E S WAG N E R

O líder do governo no Senado é amigo há quarenta anos do


chefe da Casa Civil, mas se distanciou dele, com quem trava
embates, por exemplo, sobre indicações para tribunais
superiores e estratégias eleitorais na Bahia

8|9
sucessor natural do presidente nas urnas é Fernando Had-
dad, mas várias outras opções são cogitadas, como o vice
Geraldo Alckmin e até o ministro da Justiça, Flávio Dino,
ambos do PSB. Até 2026 há muito chão pela frente. Favori-
tos podem ser obrigados a deixar o páreo, como ocorreu no
passado com José Dirceu e Antonio Palocci, abatidos por es-
cândalos de corrupção. Azarões também podem surpreen-
der. Dilma Rousseff nunca tinha disputado uma eleição ma-
joritária até ser ungida por Lula. Ela não era muito benquis-
ta na Esplanada e no Congresso, mas contava com a aprova-
ção do chefe, exatamente como ocorre até agora com Rui
Costa. Ser “Dilma de calças”, quem diria, pode alçá-lo a pro-
jetos ainda mais ambiciosos. ƒ
CÂMARA DOS DEPUTADOS

ELMAR NASCIMENTO

Rui Costa desaconselhou Lula a nomear para o ministério o


líder do União Brasil, mas depois, por necessidade política,
pediu ajuda ao parlamentar a fim de melhorar sua relação
com a cúpula da Câmara

9|9
POLÍTICA E INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL
A mistura perigosa que pode influenciar
as eleições de 2024

A ELEIÇÃO presidencial na Argentina, que terminou com


a vitória de Javier Milei, é também histórica por ser a pri-
meira a usar de maneira intensiva a inteligência artificial
(IA). Durante a campanha, o candidato peronista Sergio
Massa lançou mão da IA para criar conteúdos virais e men-
sagens nas redes sociais. Consta que Milei também utilizou
a mesma artimanha, embora ele negue.
A era da IA representa a terceira onda de transformação
tecnológica na política do século XXI, depois do uso exten-
sivo das redes sociais e a proliferação de fake news. As re-
des sociais foram crucialmente utilizadas por Barack Oba-
ma em 2008, enquanto Donald Trump se beneficiou ampla-
mente das fake news em 2016. No Brasil, em 2018, Jair Bol-
sonaro também dominou o uso das redes sociais a seu favor.
Os acontecimentos registrados na Argentina são graves
e sublinham a necessidade urgente de debater e estabelecer
regulamentações éticas e transparentes para o uso da IA na
política. Esses eventos sinalizam que as eleições municipais

1|3
de 2024 podem ser a próxima grande arena para o uso in-
tensivo da IA com o objetivo de destruir reputações e preju-
dicar adversários.
A crescente utilização de deepfakes, onde a IA gera con-
teúdos falsos substituindo imagens reais, traz preocupações
significativas para a integridade do processo democrático.
Especialistas destacam a necessidade de regulamentações
para prevenir abusos e danos à democracia, dado o potencial
dessas tecnologias de influenciar a opinião pública e com-
prometer a credibilidade das instituições.
A IA, em um país com limitada reflexão crítica e educa-
ção precária, pode incentivar decisões políticas pouco in-
formadas. A má utilização das redes sociais para dissemi-
nar fake news e deepfakes pode manipular percepções e ex-
pectativas do eleitorado brasileiro.

“Especialistas destacam
a necessidade de
regulamentações para
prevenir abusos e danos
à democracia”
2|3
É essencial que a utilização da IA estimule discussões e
debates. No Brasil, já existem projetos de lei sobre o tema.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, propôs um pro-
jeto que estabelece o marco legal da IA no país, elaborado
por uma comissão de especialistas liderada pelo ministro
Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça. A pro-
posta ainda está longe de ser aprovada.
O debate no Congresso sobre a IA começa sem uma con-
clusão sobre o tema das fake news. Um projeto relevante so-
bre o assunto está parado na Câmara dos Deputados devido
a divergências entre veículos de comunicação e plataformas
de redes sociais.
Em 2017, temendo os efeitos das fake news na política,
propus um debate a respeito desse problema no Conselho de
Comunicação Social do Congresso e no Tribunal Superior
Eleitoral, à época presidido pelo ministro Gilmar Mendes,
do Supremo Tribunal Federa. O alerta foi dado, algumas ini-
ciativas regulatórias ocorreram e houve negociações com as
plataformas sociais que resultaram em certa contenção.
Em um contexto histórico, muitos ditadores alteraram a
história removendo imagens de ex-aliados. Hoje, com a IA, es-
sa falsificação pode ocorrer em tempo real. Sem legislação
apropriada, o Congresso pode acabar transferindo para o Ju-
diciário, especificamente o Tribunal Superior Eleitoral, a res-
ponsabilidade de prevenir que fake news e deepfakes pertur-
bem o processo eleitoral de forma decisiva. ƒ

3|3
BRASIL ELEIÇÃO

TELHADOS
DE VIDRO
Fracassos da esquerda em administrações muito mal
avaliadas nas capitais entram na mira dos rivais, que
vão explorar o tema nas eleições de 2024
LAÍSA DALL’AGNOL E VICTORIA BECHARA

INSATISFAÇÃO Protesto de servidores em Belém: rejeição de


mais da metade dos eleitores da capital paraense

FACEBOOK @ASFUNPAPA

1 | 11
O ANO DE 2020 foi difícil para a esquerda brasileira.
Com o seu maior cabo eleitoral, o hoje presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, chamuscado pela Lava-Jato, e com
Jair Bolsonaro no poder, os candidatos desse espectro
político naufragaram nas eleições municipais — em es-
pecial o PT, que, pela primeira vez em sua história, não
conquistou nenhuma das metrópoles mais importantes.
Os partidos que mais levaram essas prefeituras estavam
do centro à direita (pela ordem, MDB, PSD, DEM, PSDB
e PL). Nas capitais, apenas quatro cidades escolheram
um candidato de esquerda, todas no Norte/Nordeste:
Recife, Fortaleza, Belém e Aracaju. Três anos depois,
com Lula de novo no Palácio do Planalto, o sentimento é
o de que será possível virar o jogo. Mas há um problema
considerável no horizonte esquerdista: o desempenho
ruim de seus prefeitos, o que tende a virar munição de
adversários na campanha.
O caso mais delicado envolve a gestão mais à esquer-
da do país: a de Belém, comandada pela aliança PSOL-
-PT. O prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL) ostenta no
momento um recorde negativo: tem a desaprovação de
nada menos que 71,3% da população, segundo levanta-
mento feito no início do mês pelo Paraná Pesquisas — é
de longe o prefeito mais mal avaliado entre todas as capi-
tais pesquisadas pelo instituto. A péssima performance
faz com que ele apareça em segundo lugar na pesquisa
para a sua sucessão em 2024, atrás do deputado federal

2 | 11
FILIPE BISPO/FOTOARENA
MAU EXEMPLO Edmilson Rodrigues:
criticado até por correligionários do PSOL

Éder Mauro (PL) — apenas 16,6% dos moradores de Be-


lém estão, por ora, dispostos a lhe dar um novo mandato.
Problemas é que não faltam em sua gestão. Além de crí-
ticas a sua articulação política, ao inchaço da máquina e a
falhas em ações básicas de zeladoria, como limpeza urba-
na, as greves de servidores por causa de salários atrasados
ou por melhores condições de trabalho desgastaram ainda
mais a imagem do prefeito — apenas no segundo semestre
deste ano, houve paralisações de funcionários da Funpapa
(fundação de assistência social) e de médicos de UPAs
(Unidades de Pronto-Atendimento). Isolado, Rodrigues

3 | 11
POUCO A MOSTRAR
Candidatos à reeleição, prefeitos de
Belém e Fortaleza largam mal para 2024

B EL ÉM *

Prefeito: Edmilson Rodrigues (PSOL)

17,5% 17,1%
ÓTIMO OU REGULAR
BOM

1,5% 63,9%
NÃO SABE/ RUIM OU
NÃO OPINOU PÉSSIMO

16,6%
DOS ELEITORES DIZEM QUE

ESCOLHERIAM RODRIGUES EM UMA

NOVA ELEIÇÃO

4 | 11
FO RTAL E Z A **

Prefeito: José Sarto (PDT)

16% 42%
ÓTIMO OU REGULAR
BOM

4% 39%
NÃO SABEM/ RUIM OU
NÃO OPINARAM PÉSSIMO

13,9%
* **

DO ELEITORADO VOTARIA PELA

RECONDUÇÃO DE SARTO AO CARGO

EM 2024

Fontes:
*Paraná Pesquisas — novembro de 2023
**Datafolha — junho de 2023
***Paraná Pesquisas — abril de 2023

5 | 11
ainda enfrenta dificuldades de interlocução com o governo
estadual, de Helder Barbalho (MDB), com a Câmara e até
mesmo com uma ala do seu próprio partido.
Para se ter uma ideia do nível de rejeição, nem os com-
panheiros de partido o poupam de críticas. Em agosto, a
deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) chegou a fus-
tigar publicamente o correligionário. “O PSOL já adminis-
tra uma prefeitura, que é a de Belém. E eu honestamente
quero que o Boulos faça uma prefeitura como a de Luiza
Erundina (...) e não como a do Edmilson, que infelizmente
é um prefeito com uma das piores avaliações do país”, dis-
se em um evento da legenda. Algumas lideranças do PSOL
minimizam, no entanto, o possível impacto negativo em
2024. De uma forma um tanto quanto otimista, dizem que,
depois de meses de crise fiscal, as dificuldades estão sendo
enfrentadas com novos aportes dos governos federal e es-
tadual. Além disso, apostam que os investimentos para a
COP30, a cúpula ambiental que ocorrerá na cidade, terão
forte potencial para melhorar a avaliação da prefeitura.
Tendo em conta o cenário atual para lá de negativo, será
quase um milagre se essa virada se concretizar.
O mau desempenho do prefeito tem potencial até para
influenciar eleições em outras capitais, em especial a de
São Paulo, onde o psolista Guilherme Boulos desponta co-
mo favorito no momento. Aliados do prefeito Ricardo Nu-
nes (MDB) afirmam que uma das estratégias contra Bou-
los será justamente a de associar a sua imagem ao fracas-

6 | 11
HÉLIA SCHEPPA/PCR
RINDO À TOA João Campos: prefeito do Recife tem governo
aprovado por 71% dos eleitores e aliança que inclui até o ex-rival PT

so em Belém. Em outras palavras, vão bater na campanha


que uma gestão do PSOL pode ter resultados ainda mais
desastrosos, considerando o tamanho e a complexidade
de São Paulo. Boulos, naturalmente, já sentiu o cheiro de
perigo — e tem uma resposta pronta. “Nunes deveria se
preocupar com a gestão dele, que é péssima e mal avalia-
da em São Paulo. Eu vou usar a rejeição dele na minha
campanha”, rebate. A desaprovação a Nunes, no entanto,
está longe da ostentada por Edmilson Rodrigues em Be-
lém. Segundo pesquisa Datafolha de setembro, o prefeito
paulistano tem a gestão considerada ótima ou boa por
23% da população e regular por 49% — apenas 24% a
avaliam como ruim ou péssima.

7 | 11
Em Fortaleza, a esquerda vive um dilema parecido. O
prefeito José Sarto (PDT), aliado do ex-ministro Ciro Go-
mes, tem a gestão reprovada por quase quatro em cada
dez eleitores da capital do Ceará (veja o quadro). Nas son-
dagens eleitorais mais recentes, ele aparece em terceiro
lugar, atrás do ex-deputado Capitão Wagner (União Bra-
sil) e da ex-prefeita Luizianne Lins (PT). Como ocorre
com Edmilson Rodrigues, apenas 16% dos eleitores acei-
tariam hoje lhe dar um novo mandato. Há dentro do PDT
quem defenda inclusive que ele não seja candidato, e que o
partido apoie o nome do PT (de quem os pedetistas são
aliados no plano estadual). Uma das possibilidades é o ex-
-presidente da Assembleia Evandro Leitão, que acabou de
deixar o PDT por divergências com o grupo de Ciro e Sar-
to e que deve ir para o PT. Aliados do prefeito acham, no
entanto, que pode haver uma desidratação de Capitão
Wagner e que Sarto pode ir ao segundo turno com um
candidato petista — nesse caso, apostam que podem
atrair o eleitorado de centro e de direita.
Embora os pontos fracos sejam bem aparentes, a esquer-
da tem ao menos um reduto para comemorar o seu desem-
penho — e ironicamente é onde o gestor chegou ao poder
após derrotar o PT numa das eleições mais acirradas de
2020. O prefeito do Recife, João Campos (PSB), tem a ges-
tão aprovada por 71% dos eleitores, segundo pesquisa feita
pelo Ipespe em outubro — mais do que a avaliação positiva
de Lula e da governadora Raquel Lyra (PSDB). Campos

8 | 11
CAIO ROCHA/ISHOOT/AGÊNCIA O GLOBO
RACHA INTERNO José Sarto: imagem ruim em Fortaleza
faz com que o PDT não esteja unido na defesa de seu nome

ocupa o terceiro lugar no ranking de prefeitos mais bem


avaliados das dez maiores capitais, segundo o Paraná Pes-
quisas, o que, naturalmente, o colocou no topo dos levanta-
mentos de intenção de voto para 2024.
O desempenho de João Campos se dá, principalmente,
pela reestruturação da educação no município, incluindo
a contratação de professores, a reforma de escolas e a am-
pliação de vagas em creches, além de obras de infraestru-
tura. O prefeito tem o Conecta Recife como uma das prin-
cipais marcas de sua gestão — um aplicativo para acesso a

9 | 11
serviços municipais, como agendamento de consultas mé-
dicas e matrículas escolares, emissão de documentos e até
a possibilidade de solicitar podas de árvores ou remoção
de entulhos. Se vencer em 2024, o PSB irá para o quarto
mandato seguido no Recife. João Campos já conta com o
apoio de siglas de esquerda como PDT e PCdoB, mas terá
também o apoio do ex-rival PT, inclusive de Lula. Nos
bastidores, a disputa maior é pela vaga de vice na chapa,
já que são grandes as chances de Campos deixar o cargo
em 2026 para tentar o governo. A presidente do PT, Gleisi
Hoffmann, já manifestou o interesse na vaga. “Queremos
manter a unidade feita entre PT e PSB na eleição do presi-
dente Lula. Por isso entendemos que a posição de vice do
prefeito é a posição ideal para nosso partido”, disse.
Em uma escala um pouco menor de sucesso, Aracaju é
outro exemplo de trabalho até aqui bem-sucedido de uma
gestão de esquerda. Edvaldo Nogueira tem aprovação de
66% dos eleitores — ex-PCdoB e atualmente no PDT, o
prefeito está no quarto mandato como prefeito e não po-
derá disputar a reeleição em 2024. Ele já sinalizou, po-
rém, uma inflexão ao centro ao dizer que pretende indicar
o candidato para suceder-lhe em acordo com o governa-
dor Fábio Mitidieri (PSD), que derrotou o PT em 2022 no
estado com o apoio do prefeito.
O sonho da esquerda em retomar os dias de glória nas
maiores cidades do país depende muito, é claro, de como
estará a popularidade de Lula no ano que vem. O tamanho

10 | 11
do cacife do presidente como cabo eleitoral estará umbili-
calmente ligado ao desempenho da economia, que, aliás,
começa a dar alguns sinais de preocupação. “O bolsonaris-
mo pode voltar a crescer em uma eventual crise de gover-
no”, afirma Marco Antonio Teixeira, coordenador do mes-
trado em gestão e políticas públicas da FGV. O outro desa-
fio será reverter, ao menos em parte, a péssima avaliação
que a população faz de suas administrações em algumas
das capitais. Nesse sentido, Belém e Fortaleza são hoje os
grandes telhados de vidro desse projeto eleitoral. ƒ

11 | 11
VIVA O ZÉ
LETRINHA
O país precisa de uma campanha
para a educação como a da vacina

A CARACTERÍSTICA mais visível do Brasil é a desi-


gualdade como a população tem acesso aos benefícios
econômicos e sociais — renda, moradia, serviços urbanos,
saúde, educação e alimentação. Nossa cara é a concentra-
ção, não a distribuição. Única característica universal é a
vacinação contra os vírus que contaminam sem respeitar
fronteiras de classes: para proteger a parcela rica foi pre-
ciso vacinar a parcela pobre. Em 1973, ainda no governo
militar, o Brasil criou o Programa Nacional de Imuniza-
ções. Em 1986, iniciou o sistema de vacinação simboliza-
do pelo personagem Zé Gotinha, com a estratégia de vaci-
nar as crianças de todas classes sociais no mesmo dia em
todo o território nacional. Começava não apenas uma
campanha de vacinação, mas uma filosofia e um instinto
nacional para vencer a poliomielite e outras doenças
transmissíveis. O país venceu a batalha graças ao envolvi-
mento de todos os partidos, meios de comunicação, cien-
tistas, pais e mães, todos irmanados usando a capacidade

1|3
logística de transporte terrestre, aéreo e marítimo em uma
mesma luta, com um propósito comum.
Este compromisso, contudo, não existe em relação aos
problemas que atingem apenas a população pobre. Não fi-
zemos esforço pela educação de qualidade para todos,
porque imagina-se que a deseducação não é transmissível.
Os educados não seriam contaminados pelo abandono
educacional dos outros. Isso impediu, até aqui, uma cam-
panha nacional pela educação universal, nos moldes da
vacinação. Não há um instinto nacional que convoque to-
dos os brasileiros para alfabetizar 10 milhões de adultos
que não sabem ler, e para assegurar a conclusão do ensino
médio com qualidade para todas as crianças e jovens do
Brasil, independente da renda e do endereço da família.
Essa ilusão de imunidade ignora que a deseducação con-
tamina, provoca baixa produtividade, limita a renda nacio-

“Não há um instinto
nacional que
convoque 10 milhões
de adultos que
não sabem ler”
2|3
nal, causa desigualdade e pobreza, afeta a qualidade de vi-
da, gera ineficiência nos serviços e nas indústrias, onde os
profissionais de nível superior não conseguem dialogar tec-
nicamente com seus auxiliares. Em ambiente deseducado,
ninguém se beneficia plenamente de sua própria educação.
O Brasil inteiro precisa entender que não basta educar
alguns em universidades e deixá-los contaminados pela
deseducação em geral, definir estratégia para superar a
contaminação deseducativa, promover consciência na-
cional pela educação, como se conseguiu para a imuniza-
ção sanitária; impregnar em cada brasileiro o valor da
escolaridade de cada brasileiro como uma necessidade
do país inteiro, não apenas de cada pessoa. Precisamos,
inclusive, de um movimento alimentado também por
campanhas de divulgação. Foram publicitários, especial-
mente Washington Olivetto, que criaram no Brasil a ma-
nia de “Mexa-se”, levando os brasileiros a descobrir a im-
portância da ginástica e o valor das academias. Está na
hora de eles criarem um mexa-se para promover a im-
portância da educação e o valor das escolas.
O presidente da República precisa convidar nossos pu-
blicitários para juntos superarmos a ilusão de que desedu-
cação não contamina os educados. Que tal desenharem
um Zé Letrinha que seja símbolo da aglutinação nacional
pela alfabetização? Uma figura que ajude os brasileiros a
concluir o ensino médio com o mais alto padrão de quali-
dade, independente da renda e do endereço. ƒ

3|3
BRASIL GESTÃO

O MINISTÉRIO
DO ATRASO
Em onze meses de governo, a pasta do Trabalho
articulou e materializou propostas que avançam na
contramão das economias mais modernas do mundo
HUGO MARQUES
ROBERTO CASIMIRO/FOTOARENA

RETROCESSOS Luiz Marinho, o ministro do Trabalho:


propostas que atendem ao sindicalismo do século passado

1|6
EM 1998, Luiz Marinho, então presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, viveu o grande momento de sua carrei-
ra. Na época, uma crise atingiu em cheio o setor automobilísti-
co. Numa única tacada, duas montadoras, a Volkswagen e a
Ford, anunciaram a demissão de mais de 12 000 trabalhado-
res. Uma negociação conduzida pessoalmente por Marinho
conseguiu reverter a decisão das empresas e as terríveis conse-
quências sociais que a medida certamente provocaria. Vinte
cinco anos depois desse feito, o hoje ministro do Trabalho tem
defendido propostas que, ao invés de proteger, ameaçam em-
pregos. Na semana passada, por exemplo, Marinho assinou
uma portaria estabelecendo que setores do comércio e de ser-
viços só poderão funcionar nos feriados se houver negociação
com os sindicatos. Essa exigência, que pode dificultar o fun-
cionamento de supermercados e farmácias, por exemplo, ha-
via deixado de existir em 2021. Diante da repercussão negati-
va do retrocesso, o ministro decidiu suspender a medida.
Na terça-feira, 21, o presidente Lula deu empuxo a outra
proposta polêmica lançada pelo Ministério do Trabalho — a
que promete regulamentar o trabalho por aplicativo, espe-
cialmente os de transporte de passageiros e de entrega de
alimentos. Marinho critica o que chama de “precarização do
trabalho das plataformas” e pretende criar o que define co-
mo “mínimo de formalização”. Uma das medidas em estudo
é criar uma maneira de obrigar as empresas de aplicativo a
contratar seus prestadores de serviço. “Eles têm que ter pro-
teção e não concordamos com a ideia de que quem está em

2|6
JOA SOUZA/SHUTTERSTOCK

DESEMPREGO Comércio: travas para dificultar o trabalho


nos feriados

aplicativos é empreendedor ou empresário. Ele tem que ban-


car tudo, saúde, manutenção, alimentação e os custos re-
caem sobre ele”, defende o presidente da CUT, Sérgio Nobre.
Segundo o ministro, a regulamentação precisa garantir um
salário mínimo, controle de jornada, previdência e proteção
social. “As pessoas se machucam, se acidentam, ou se adoe-
cem não têm nenhuma proteção”, afirma.
O problema é que a proposta vai de encontro à lógica da
existência desse tipo de serviço. Os próprios motoristas e en-
tregadores não querem esse tipo de vínculo empregatício.
Muitos desfrutam hoje autonomia de horários, possuem ou-

3|6
tras ocupações ou simplesmente aproveitam o tempo livre
para se dedicar a afazeres domésticos e pessoais. Os traba-
lhadores que usam o iFood ficam a serviço do aplicativo ape-
nas de 13 a 17 horas por semana. Evidentemente, a formali-
zação forçada desses funcionários vai provocar a demissão
de muitos deles e será um baque para as empresas. A Uber,
por exemplo, já cogitou deixar de operar no Brasil caso essa
proposta avance. “Primeiro, que a Uber não vai sair do Bra-
sil. Segundo, se caso queira sair, o problema é só da Uber,
porque outros concorrentes ocuparão esse espaço, como é no
mercado normal”, disse o ministro em uma audiência no
Congresso, confirmando, inclusive, a hipótese de os Correios
substituírem os aplicativos. “Eu provoquei os Correios para
estudar um aplicativo de forma mais humana para trabalha-
dores, para poder trabalhar sem a neura do lucro dos capita-
listas, que acontece com Uber, iFood”, acrescentou.
Com olhos voltados para as relações trabalhistas do pas-
sado, o governo transformou em prioridade a alteração des-
se sistema — como se não existissem problemas mais urgen-
tes no Brasil, a exemplo da segurança pública, educação,
saúde, inovação, transição energética, entre outros. “Nós
não queremos que a pessoa deixe de ser autônomo. O que
queremos é dar um pouco de seguridade para ele quando o
carro quebra, quando a mulher fica doente. Estamos tentan-
do negociar com a Uber. Tudo o que a gente fizer é para ga-
rantir emprego para essa gente”, disse o presidente Lula em
sua live semanal. Para os especialistas, é mais um retrocesso

4|6
RUBENS CAVALLARI/FOLHAPRESS

AUTÔNOMOS Uber: regulamentação encontra resistência


mesmo entre os motoristas

que está sendo gestado pelo Ministério do Trabalho. “A van-


tagem do aplicativo está justamente no fato de a pessoa po-
der decidir o tempo disponível para o trabalho, a aceitação
ou não das corridas ofertadas e a forma de execução do ser-
viço”, diz o advogado Donne Pisco, especialista no assunto.
“No caso da Uber, a regulamentação pode ser prejudicial
para o próprio motorista”, ressalta.
O resultado da negociação de Luiz Marinho junto às
montadoras em 1998 mostrou na ocasião a relevância e a
necessidade de se ter sindicatos fortes e atuantes. O mundo,
porém, mudou. Durante oito décadas, a lei obrigou todos os

5|6
trabalhadores a destinar um dia de serviço aos sindicatos —
fossem eles atuantes ou não. O dinheiro fácil — cerca de 3,6
bilhões de reais por ano — resultou na proliferação desme-
dida de entidades que supostamente representavam catego-
rias, mas que, na prática, se dedicavam apenas a gerir a for-
tuna arrecadada muitas vezes em benefício de alguns pou-
cos. Em 2017, a reforma trabalhista acabou com a mamata.
As contribuições passaram a ser voluntárias, o que reduziu
drasticamente a receita. Luiz Marinho garante que não há
hipótese de o governo propor a recriação do antigo imposto
sindical — e nem vai precisar.
Aproveitando uma brecha na legislação e com total apoio
do Ministério do Trabalho, os sindicatos conseguiram autori-
zação do STF para validar a cobrança da chamada “contri-
buição assistencial”, um valor que já existia e que voltará a ser
pago anualmente por todos os trabalhadores — sindicaliza-
dos ou não. O montante será definido por cada categoria, atra-
vés dos sindicatos, em acordos coletivos. A diferença é que a
taxa não será obrigatória. Porém, quem não quiser contribuir,
precisará enfrentar o inconveniente de pedir formalmente a
devolução do dinheiro. A contribuição voltará a injetar bi-
lhões de reais nos cofres dos sindicatos — o que vai engordar
o caixa das entidades sérias e também das entidades nada sé-
rias que fazem da atividade uma profissão lucrativa. ƒ

6|6
BRASIL MARKETING

BOMBOU
NA INTERNET!
Pensando no futuro, o vice-presidente da República
muda o estilo e usa as redes sociais para tentar se
aproximar do eleitorado jovem RICARDO CHAPOLA
CADU GOMES/VPR

IMAGEM RARA Geraldo Alckmin:


a aparência circunspecta é coisa do passado

1|6
EM BRASÍLIA, qualquer movimento mais inusitado de
uma autoridade, por menor e mais desimportante que pa-
reça, se não for muito bem explicado, logo ganha versões.
Desde o início do governo, percebe-se uma radical mudan-
ça de comportamento do vice-presidente da República nas
redes sociais. Até bem pouco tempo, Geraldo Alckmin re-
sistia muito a expor sua imagem. Em 2018, na campanha
presidencial que disputou e perdeu, ele não escondia o en-
tusiasmo zero com as sugestões que lhe eram apresentadas
para atuar na internet. Vídeos informais, mensagens des-
contraídas, memes? Nem pensar. Não combinavam com
seu estilo monocórdio, cerimonioso, formal. Aquela figura
sisuda, porém, é coisa do passado — ao menos no ambien-
te digital. Aos 71 anos, Alckmin agora é um político ante-
nado. Aparece vestindo meias listradas, usando boné de
cantor hip hop e até dialogando com Harry Potter. Recen-
temente, postou uma foto pendurado numa tirolesa no
meio de uma mata. A imagem, evidentemente, era uma
montagem, mas, como dizem os jovens, causou.
Dono de três celulares, Alckmin incorporou à rotina de
vice-presidente e ministro do Desenvolvimento seu lado
influencer. Antes avesso a esse tipo de coisa, hoje reserva
um tempo para gravar vídeos e, quem diria, postar memes
nas redes sociais. “Sou o Lula da sorte: toda vez que eu as-
sumo a Presidência, a economia melhora”, diz um deles, no
qual o presidente aparece em uma montagem fantasiado
de duende, celebrando a queda da inflação. Foi um sucesso

2|6
BOMBANDO
Um levantamento da Quaest Consultoria e Pesquisa mostra
que Geraldo Alckmin é o terceiro ministro mais popular nas
redes sociais numa escala que vai de 0 a 100 pontos

F E RNAN D O HA DDA D
67,3

F LÁ V I O D I N O
63,9

G ER A L D O A LCKMIN
44
SI M O N E T EB ET
4 0,8

PAU LO P I M E N TA
3 8,8

0 100

de engajamento. A maioria das publicações, no entanto,


tem o próprio vice como personagem. Ele pretende com is-
so se aproximar do eleitorado mais jovem, usando uma lin-
guagem própria, algo que, para quem achava que conhecia
bem o vice, parece soar de maneira um tanto artificial.
“Não é bem assim”, esclarece o publicitário Nelson Biondi,
responsável pela campanha de Alckmin ao governo de São
Paulo em 2014. “A imagem dele acabou se confundindo

3|6
com a de alguém muito conservador por ele ser uma pes-
soa religiosa. Mas quem convive com o Geraldo sabe que
não é bem assim. Ele vive fazendo piada”, acrescenta.
Para operar essa metamorfose, Alckmin conta com a
ajuda de Fábio Valente Cabral, um jovem de 30 anos, que
cria os memes, edita os vídeos e os textos publicados. For-
mado em Relações Internacionais, o rapaz acompanha
Alckmin desde 2015. O trabalho, segundo auxiliares do vi-
ce, é totalmente voluntário e informal. Fábio tem um cargo
de gerente na Agência Brasileira de Promoção das Expor-
tações e Investimentos (Apex), órgão subordinado ao Mi-
nistério do Desenvolvimento, comandado por Alckmin, e
recebe um salário mensal de 35 000 reais. Como em Brasí-
lia quase nada passa completamente despercebido, a repa-
ginação digital do vice está na base de várias teorias. Uma
delas, a preferida entre os políticos, é que Alckmin se pre-
para na surdina, com a discrição necessária, para disputar
as eleições de 2026, seja ela mais uma vez para o governo
de São Paulo ou mais uma vez para a Presidência da Repú-
blica, caso Lula decida não concorrer à reeleição. Ele nega,
dá a entender que tudo não passa de pura treta, mas o PSB,
seu partido, não descarta nenhuma das duas hipóteses.
Intrigas à parte, a ação mais ostensiva do vice-presiden-
te na internet registra um balanço positivo. No início do
ano, ele nem chegava perto do pódio digital dos ministros
mais populares do governo. Nos últimos meses, Alckmin
deixou para trás colegas bem posicionados como Marina

4|6
POSTS E MEMES
Realidade digital: Geraldo
Alckmin usa boné, dialoga
com Harry Potter e se
pendura numa tirolesa

FOTOS INSTAGRAM @GERALDOALCKMIN_

5|6
Silva, do Meio Ambiente, e Simone Tebet, do Planejamen-
to, duas ex-candidatas à Presidência da República. No últi-
mo levantamento realizado pela consultoria Quaest, ele já
aparece em terceiro lugar, atrás de dois “presidenciáveis”,
os ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Flávio Di-
no, da Justiça. O Índice de Popularidade Digital (IPD) é
calculado com base na análise de 175 variáveis coletadas
em plataformas digitais como Facebook, Instagram, Twit-
ter, YouTube, Google e TikTok (veja o quadro). “As redes
sociais se tornaram o meio mais eficiente para conectar li-
deranças políticas diretamente com seus eleitores sem me-
diação”, explica Felipe Nunes, cientista político e CEO da
Quaest. “Com a população jovem cada vez mais conecta-
da, as redes também servem como cartão de visitas para
um encontro de gerações”, acrescenta. A versão descolada
de Alckmin está “causando” no universo digital. ƒ

6|6
BRASIL POLÍTICA

UMA JOGADA
ELEITORAL
Presidente do Senado toma a dianteira na negociação da
dívida bilionária de Minas Gerais, ofusca Romeu Zema e se
movimenta para tentar o governo do estado em 2026
VALMAR HUPSEL FILHO

PRESTÍGIO Pacheco, com deputados estaduais:


proposta foi entregue em mãos a Lula

GERALDO MAGELA/AGÊNCIA SENADO

1|6
EMBORA TENHA nascido em Porto Velho (RO), Rodri-
go Pacheco se considera um mineiro. Foi nesse estado que
ele estudou, atuou como advogado e foi eleito a cargos pú-
blicos. Chegou a Brasília em 2015 como deputado e, logo
no primeiro mandato, virou chefe da poderosa Comissão
de Constituição e Justiça. Em 2021, já no Senado, foi alça-
do ao comando da Casa. Em fevereiro deste ano, acabou
reeleito a novo mandato até 2025. No último pleito presi-
dencial, o cacique-mor de seu partido, Gilberto Kassab, do
PSD, ensaiou o lançamento do nome dele à disputa, mais
como uma espécie de balão de ensaio. Tudo indica agora
que Pacheco vai levar a sério a pretensão de testar a popu-
laridade nas urnas a um cargo executivo — só que num
plano regional. Seu olhar volta-se novamente para Minas
Gerais. Nos bastidores, ele articula o lançamento de uma
candidatura ao governo estadual em 2026.
Uma conjunção de fatores vem dando a Pacheco opor-
tunidade (e motivação) para a empreitada. O primeiro foi
a encalacrada em que se encontra o governador Romeu
Zema (Novo), que corre contra o tempo para fechar uma
negociação em torno da gigantesca dívida com a União,
de 160 bilhões de reais — o orçamento anual do estado é
de 109 bilhões de reais. Com ambições nacionais, Zema
tem relação distante com o governo federal, porque
apoiou Jair Bolsonaro na última eleição e alimenta a pre-
tensão de ser o nome da centro-direita para enfrentar Lu-
la em 2026. Com o peso de presidente do Congresso, Pa-

2|6
ISAAC FONTANA/EFE

ACUADO Zema: dificuldades locais e falta de diálogo


com o governo federal

checo tomou a frente da negociação. De uma só vez, ofus-


cou Zema, ganhou mais proximidade a Lula e avançou al-
gumas casas na pavimentação do caminho longo que po-
de levá-lo à disputa do governo mineiro.
A dívida do estado remonta à década de 1990 e só cresce
desde então. Foi determinante para o insucesso do governa-
dor Fernando Pimentel (PT) em sua tentativa de reeleição
em 2018, quando, fustigado por atrasos nos salários dos ser-
vidores, nem sequer chegou ao segundo turno. No final da-

3|6
quele ano, uma liminar do Supremo Tribunal Federal per-
mitiu a suspensão do pagamento da dívida por cinco anos,
dando uma folga a Zema até o primeiro ano do segundo
mandato. A liminar, porém, vence em 20 de dezembro e, se
não houver acordo aprovado em lei, o estado terá que pagar
parcelas mensais de 1,2 bilhão de reais.
A opção escolhida por Zema para resolver a encrenca, por
ora, só lhe trouxe dor de cabeça. Embora seja bastante razoá-
vel e aponte na direção correta, a proposta tramita na As-
sembleia, mas esbarra na resistência dos deputados, que a
consideram impopular, e dos servidores, que têm feito pro-
testos. Acertadamente, Zema sugere privatizar estatais de sa-
neamento, energia e desenvolvimento econômico (Cemig,
Copasa e Codemig) e limitar os reajustes salariais de servido-
res — a apenas dois de 3% em nove anos, caso não haja incre-
mento de receita. Como na política brasileira o caminho cer-
to nunca é o mais fácil, sua ideia não tem prosperado.
Astuto, Pacheco viu nas dificuldades de Zema uma opor-
tunidade de ouro — e conta com ajuda de Lula para viabili-
zar sua proposta alternativa. Ela prevê a federalização das
mesmas estatais — mais cargos para abrigar aliados do go-
verno petista — e o uso de créditos do estado para abater o
saldo devedor, além de uma renegociação que permita a re-
dução do débito. Segundo os críticos, a fórmula é convenien-
te para o estado e muito ruim para a União, que irá abrir
mão de receita bilionária e aumentar os gastos (exatamente
no momento em que deveria cortar custos e não aumentá-

4|6
DANIEL PROTZNER/ALMG

PRESSÃO Servidores na Assembleia: eles são contra


limitação salarial e privatizações

-los). Além disso, o receio é de que, se aprovada, outros esta-


dos em dificuldade, como Rio Grande do Sul, Goiás e Rio de
Janeiro, vão tentar algo parecido, gerando efeito cascata.
As desvantagens não impediram Pacheco de dar um pas-
so na concretização do plano. Na terça 21, entregou a propos-
ta em reunião em que estavam os ministros Fernando Had-
dad (Fazenda), Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Silveira
(Minas e Energia) — também do PSD mineiro —, além do
presidente da Assembleia, Tadeu Leite (MDB). “Lula bem co-
mo o ministro Fernando Haddad foram receptivos ao nosso
pleito, que visa a tirar dos ombros dos servidores públicos de
Minas o ônus de uma dívida impagável”, disse Pacheco. No

5|6
mesmo ato, Lula afirmou que Haddad tem tentado discutir
dívidas dos estados com os governadores. “O de Minas Ge-
rais não compareceu em nenhuma reunião. Ele mandou o vi-
ce”, criticou. Na quarta, 22, após se encontrar com Haddad,
Zema disse que estava aberto à proposta de Pacheco. Afir-
mou, no entanto, que a prioridade seria adiar o prazo fixado
pelo STF ao menos até março de 2024, que é quando o Minis-
tério da Fazenda poderia, segundo ele, formatar uma propos-
ta de acordo. “Estou satisfeito, esperançoso”, disse.
Apesar dos sinais claros de sua ambição, Pacheco, co-
mo bom mineiro, tenta caminhar de forma discreta, com
um pé em cada canoa. A proximidade com Lula pode, de
fato, virar um grande trunfo eleitoral, caso consiga mesmo
resolver o problema da dívida mineira. O jogo é bom tam-
bém para o presidente, pois fortalece um aliado no estado
em que o PT nem sequer teve candidato em 2022 e que é o
maior pêndulo das eleições presidenciais (o nosso swing
state). Ao mesmo tempo em que namora a esquerda, Pa-
checo pisca para a direita. Recentemente, ele passou a dar
tração a pautas que batem de frente com o STF, como a
PEC que limita as decisões monocráticas do Supremo.
Apesar de o governo petista ter embarcado na proposta, o
gesto de mostrar força contra os “abusos” da Corte é visto
como aceno claro ao eleitorado conservador, que deu duas
vitórias a Zema. Se o plano der certo para viabilizá-lo co-
mo candidato em 2026, faltará a Pacheco mostrar que é
tão bom de voto quanto de articulação. ƒ

6|6
RADAR ECONÔMICO
PEDRO GIL

Com reportagem de Diego Gimenes


e Felipe Erlich
DINOCO GRECO/ALTOPRESS/AFP

MAQUININHA Compras: nova proposta deverá limitar o


parcelamento sem juros

Sem pressa Um passo de cada vez


Assunto caro ao governo, a Uma proposta preliminar su-
proposta de limitação dos gere um período de transi-
juros do rotativo do cartão ção, limitando o parcelamen-
de crédito deverá ser apre- to sem juros a nove vezes e
sentada por entidades fi- reduzindo os juros do rotati-
nanceiras até 3 de janeiro. vo a 12% ao mês. Após isso, o
“Não temos pressa”, diz parcelamento sem juros seria
um alto executivo que par- limitado a seis vezes e os ju-
ticipa das discussões. ros no rotativo a 8% ao mês.

1|3
Risco calculado galu após a recente denún-
Representantes da agência cia de irregularidades no
americana de classificação pagamento de bonifica-
de risco Standard & Poor’s ções pela varejista.
estiveram no Brasil recente-
mente para se encontrar Luz no fim do túnel
com funcionários do Minis- Em reunião com investido-
tério da Fazenda. Em pauta, res, Frederico Trajano, pre-
a meta fiscal. sidente da Magalu, de-
monstrou otimismo com o
Briga sem fim cenário econômico. “Esta-
A disputa entre a rede vare- mos saindo do fundo do
jista Magazine Luiza e a poço com a redução dos ju-
empresa de eletrônicos ros e o aumento de crédito
KaBuM! está longe de aca- que devem vir nos próxi-
bar. A Magalu comprou a mos trimestres”, afirmou.
companhia em julho de
2021 e, depois disso, elas ja- Descrédito
mais se acertaram. A afirmação do presidente
do Banco Central, Rober-
Fogo de ex-amigo to Campos Neto, de que
Os irmãos Leandro e Thia- os aplicativos dos bancos
go Ramos, fundadores da vão acabar “em até dois
KaBuM! e acionistas mino- anos” não convenceu mui-
ritários da Magazine Lui- ta gente. “Admiro a au-
za, votaram contra a apro- toestima”, brinca um exe-
vação das contas da Ma- cutivo do setor.

2|3
Ainda não pegou inteligência artificial. Ela
A expectativa do BC é que o lançou uma ferramenta que
open finance — sistema que permite ao comerciante pa-
permite o compartilhamen- gar 500 000 boletos em até
to de dados entre institui- três minutos.
ções financeiras — permiti-
rá a criação de um aplicati- O agro entra em campo
vo único. Desde que foi lan- Novo xodó dos investidores,
çado, os bancos gastaram 2 os Fiagros, como são chama-
bilhões de reais para se ade- dos os fundos de investimen-
quar às regras do open fi- to nas cadeias agroindus-
nance. Mas o compartilha- triais, devem receber uma re-
mento é, até agora, conside- gulamentação exclusiva pela
rado baixo. Uma das razões: Comissão de Valores Mobi-
rejeição do consumidor a liários (CVM) no início do
compartilhar seus dados. ano que vem. As audiências
públicas já começaram. ƒ
Velocidade máxima
A Linx, empresa de tecno- OFERECIMENTO
logia para o varejo do gru-
po Stone, aposta no uso de

3|3
ECONOMIA PIB

TON MOLINA/FOTOARENA/AGÊNCIA O GLOBO

QUE ROMBO Haddad: déficit fiscal de 177 bilhões de reais em


2023 mostra falta de disposição do governo para conter gastos

FÔLEGO PERDIDO
A expectativa de crescer 3% em 2023 já ficou para trás:
a economia brasileira dá sinais de que pode decepcionar
mais uma vez. Para romper o ciclo de mediocridade, é
preciso cuidar das contas públicas

PEDRO GIL E VICTOR IRAJÁ

1|9
TON MOLINA/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

SOB CONTROLE Roberto Campos Neto: inflação contida abre


mais espaço para novos cortes de juros pelo Banco Central

O
Botafogo viveu um sonho em 2023. Depois de
amargar três rebaixamentos nos últimos anos, o
time dominou o Campeonato Brasileiro de futebol
com um desempenho avassalador. A certa altura,
a distância para o segundo colocado chegou a ser
de (quase) inalcançáveis 13 pontos. Parecia questão de tem-
po: o clube voltaria a ganhar um título nacional após 28
anos. O ímpeto, contudo, minguou nas últimas rodadas e a
conquista, que parecia assegurada, agora está sob ameaça

2|9
de outros postulantes. Essa comparação futebolística, tão
ao gosto do presidente Lula, infelizmente se assemelha à da
economia brasileira em 2023. No início do ano, ninguém
diria que o Botafogo seria capaz de disputar o troféu nacio-
nal, já que o desempenho nos anos recentes era medíocre.
Da mesma forma, parecia improvável que a economia cres-
ceria acima de 1% diante das desconfianças que pairavam
sobre o novo governo. Mas o novo arcabouço fiscal foi
aprovado, a reforma tributária andou e a supersafra de
grãos semeou o avanço do Produto Interno Bruto. As proje-
ções de crescimento melhoraram — apontaram até mais de
3% de expansão. Na reta final, contudo, o Brasil vai chutan-

SOBE E DESCE
As projeções do mercado para o aumento
2,92 2,89
do PIB em 2023 (em %) 2,64

2,2 2,26

1,7

0,85 0,9 1
0,8 0,8

JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT NOV

Fonte: Boletim Focus do BC

3|9
do bolas para fora e, tal qual o Botafogo, mostra perda de
fôlego para entregar o que estava prometido.
Segundo o IBC-Br, indicador que é considerado uma
prévia da evolução do PIB, a economia brasileira encolheu
0,06% em setembro comparada a agosto, contrariando as
expectativas de crescimento, que eram de pelo menos
0,2%. Além do arrasto negativo para o quarto trimestre (o
que pode resultar até em uma recessão técnica), o número
sugere que o avanço da atividade econômica fique mais
perto dos 2,5% em 2023. Entre os conservadores, já se fala
em variação do PIB de 2%, o que seria uma tremenda de-
cepção diante da aposta do governo de que cresceria 3,2%
no ano. Afinal, o que houve? Diversos fatores explicam o
movimento. O setor de serviços, antes vigoroso, perdeu
força. Impactado pela alta inadimplência e o crédito caro,
o consumo não trouxe a pujança esperada. Por sua vez, o
agro não foi mais aquela maravilha do início de ano. E, cla-
ro, há o temerário quadro de incertezas fiscais, que só traz
desconfiança. “As projeções de crescimento foram feitas
quando os números superaram as expectativas no primei-
ro semestre do ano”, disse a VEJA o economista e ex-mi-
nistro da Fazenda Marcílio Marques Moreira. “Agora,
existe um ajuste na direção da verdade.”
O governo ainda não chegou naquele estágio em que a
descrença ameaça frear o “espírito animal” dos empresá-
rios, para usar uma expressão consagrada pelo economis-
ta e ex-ministro da Fazenda, Delfim Netto, e que traduz o

4|9
ANDRESSA ANHOLETE/BLOOMBERG/GETTY IMAGES

NO CAMPO Produção de soja: o agronegócio foi


responsável por impulsionar o PIB no começo do ano

apetite por investimentos do setor produtivo. No mercado


financeiro, contudo, há crescente desconforto com os de-
sígnios econômicos do país. Uma nova pesquisa realizada
pela Genial/Quaest não deixou dúvidas sobre isso: 77%
dos 100 gestores, analistas e profissionais do ramo entre-
vistados no levantamento consideram a política fiscal ina-
dequada o principal problema econômico do país. Além

5|9
RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS

NA RUA Comércio em São Paulo: crédito caro e


inadimplência alta abatem o consumo

disso, 55% deles acreditam que a economia brasileira de-


verá piorar nos próximos doze meses.
Uma parte considerável das preocupações deve ser
atribuída à política fiscal. Na quarta-feira 22, o Ministério
da Fazenda informou que o déficit primário — ou o rom-
bo das contas públicas, em bom português — em 2023 de-
verá ser de 177 bilhões de reais. Trata-se de uma piora ine-

6|9
quívoca das expectativas. Em setembro, na previsão ante-
rior, o tombo era de 141 bilhões, já elevadíssimo, portanto.
Nesse contexto, ninguém mais acredita na realização de
déficit zero em 2024, conforme promessa feita pela equi-
pe econômica. A pesquisa da Genial/Quaest traduz tal
suspeição – absolutamente todos os pesquisados disseram
ser impossível zerar as contas públicas no ano que vem.
Como os números não estão fechando, o governo anun-
ciou um bloqueio adicional de 1,1 bilhão de reais no orça-
mento deste ano. Em 2023, o valor total dos bloqueios de
despesas chegará a 5 bilhões de reais, com possibilidade
nada desprezível de aumentar até 31 de dezembro.
Antes de a realidade se impôr, o presidente Lula e alia-
dos próximos sugeriram revisar a meta fiscal do ano que
vem, justamente para ter espaço para novos gastos. Na-
quele momento, ficou claro para todos que o governo de-
sejava ter licença para gastar, pouco se importando com o
equilíbrio das contas públicas. A sinalização de que a ad-
ministração federal desistiu da meta fiscal foi mal recebi-
da pelo mercado financeiro, por empresários e economis-
tas — e o que se vê agora é a redução das expectativas em
relação ao potencial de crescimento do país. Não custa
lembrar: o desequilíbrio fiscal afeta a credibilidade do go-
verno e, no final das contas, ameaça o desenvolvimento
econômico por disseminar incerteza entre os investidores.
Uma corrente de especialistas também atribuiu a falta
de ímpeto do PIB às taxas de juros elevadas. “A política

7|9
monetária restritiva dificulta o crescimento”, diz Juliana
Trece, coordenadora do Monitor do PIB da Fundação
Getulio Vargas (FGV). Atualmente, a Selic está em
12,25% ao ano após passar meses em campo ainda mais
restritivo — 13,75%. Sim, tal medida é um obstáculo para
a expansão, mas é assim que se combate a inflação, um
risco que, agora, graças à liderança de Roberto Campos
Neto no Banco Central, está sob controle.
Em outubro, o IPCA cresceu 0,24%, ou 4,82% nos últi-
mos doze meses. Como efeito de comparação, em 2022 a
inflação oficial do país fechou em 5,78%. “A redução da ta-

NO TOPO DO MUNDO
Taxa de juro real projetada para os próximos 12 meses (em %)

6,9 6,8

5,4
4,6 4,4
3,9
3,6 3,3
2,9 2,6

IA LE A G L
O A SIA SIA
L U
BI
I C R I C N S
S X I M G H É S E KO O
BRA MÉ L Ô U N C
O N RÚ CH G D
H A N A
CO IND L IC HO R IC
Ú B Á F
EP
Fonte: Money You R

8|9
xa de juros demora um ano para ter efeito”, diz Carlos Tha-
deu de Freitas Gomes, ex-diretor do Banco Central. O Bra-
sil, registre-se, lidera o ranking dos juros reais mais altos do
mundo, aquele que leva em consideração a taxa nominal e a
expectativa de inflação para os próximos doze meses.
Apesar da perda de fôlego, é preciso reconhecer que
nem tudo está perdido. Além da queda da inflação, que de-
verá continuar derrubando os juros, a desvalorização do
dólar, cuja cotação caiu 3,5% desde o fim de setembro, aju-
da a conter a escalada dos preços. O movimento reflete
mais entrada do que saída de moeda estrangeira, dado o
excelente desempenho das exportações, que deverão apon-
tar para um saldo positivo recorde na balança comercial
deste ano, de 60 bilhões de dólares. Há também a reta fi-
nal do processo de aprovação da reforma tributária, a pers-
pectiva positiva de nova safra de grãos no ano e os bons
índices de emprego. “O mercado de trabalho está robusto”,
diz Alexandre Manoel, economista-chefe da AZ Quest e
ex-secretário de Planejamento. “Devemos encerrar o ano
com uma taxa de desemprego baixa, de 7,5%.” Ainda as-
sim, é fato que estamos distantes de romper o ciclo de me-
diocridade que vem marcando a trajetória da economia
brasileira há anos. Para o Brasil chegar ao lugar que mere-
ce, será preciso fazer muito mais. ƒ

9|9
ALEXANDRE SCHWARTSMAN

A OPÇÃO NUCLEAR
A inflação americana caiu; o juro deve
demorar algo mais

NUM MUNDO em que não faltam tensões geopolíticas, o


título do artigo é chamativo, mas não trato aqui de questões
militares, e sim da forma como economistas analisam o
comportamento da inflação e, mais importante, suas impli-
cações para a política econômica.
A medida de inflação é algo muito simples: uma média
ponderada das variações de preços de bens e serviços, de
“arroz” a “combo de telefonia, internet e TV por assina-
tura” no caso do IPCA, nosso termômetro oficial, com-
posto por 377 itens.
Já se ela captura mesmo aquilo que economistas enten-
dem por “inflação”, isto é, o aumento persistente do nível ge-
ral de preços, a resposta é bem mais complicada.
Há preços que variam muito de mês a mês, em ambas
as direções; outros se movem comparativamente pouco,
mas quase sempre num único sentido. O primeiro con-
junto, de preços voláteis, traz mais ruído que informação,
pelo menos na leitura mensal de inflação; já o segundo
costuma nos dar informações mais confiáveis sobre seu
comportamento recente.

1|3
Medidas que dão mais peso aos componentes pouco vo-
láteis do índice de preços são conhecidas no jargão como
“núcleos de inflação” e frequentemente norteiam análises
do fenômeno, inclusive a dos próprios bancos centrais.
BCs precisam entender em particular se a variação ob-
servada de preços é persistente (e não fruto de flutuações
de curtíssimo prazo), bem como ter uma ideia mais clara
da força desses movimentos. Desenvolveram assim um
pequeno arsenal de “núcleos”, alguns mais simples (por
exemplo, definindo a priori preços que consideram volá-
teis, como alimentos e energia no caso americano), outros
um pouco mais elaborados.
Tais métricas não necessariamente são bons indicado-
res de como a inflação se comportará no futuro, mas cos-
tumam nos dar uma ideia mais clara de como se compor-
ta naquele momento.

“Ainda teremos que


conviver algum tempo
com a taxa de juros
básica americana
próxima a 5,5% ao ano”
2|3
No caso americano, a inflação “cheia” nos últimos três
meses variou um bocado, atingindo 0,63% em agosto
(equivalente a uma velocidade anual de quase 8%), mas
caindo a 0,05% em outubro (apenas 0,5% ao ano). Por ou-
tro lado, a média de cinco diferentes “núcleos” de inflação
nos mesmos meses revela certa estabilidade do ritmo de
aumento de preços, 0,34% e 0,30%, respectivamente.
Por essa ótica, a inflação lá tem rodado na casa de
4,0%-4,5% ao ano nos últimos poucos meses, bem menos
do que os valores ao redor de 7% ao ano registrados em
meados do ano passado, mas ainda longe da meta de 2%
estabelecida pelo Federal Reserve. É um progresso respei-
tável em intervalo até que curto comparado a experiên-
cias anteriores, mas não há como ignorar que falta um
tanto para que a inflação retorne à meta.
Parece, portanto, afastado o risco de novas rodadas de
elevação de juros nos Estados Unidos, perspectiva que leva-
va ao fortalecimento do dólar frente às demais moedas glo-
bais e, consequentemente, também em relação ao real.
Não se afigura provável, contudo, reverter tão já o pro-
cesso iniciado em 2022, quer dizer, ainda teremos que
conviver algum tempo com a taxa de juros básica ameri-
cana próxima a 5,5% ao ano.
Isso tem implicações relevantes para o comportamento do
juro no Brasil, assunto que tratarei na minha próxima coluna. ƒ

3|3
ECONOMIA NEGÓCIOS

NO CLUBE DOS
BILIONÁRIOS
Dois jovens, de São Paulo e do Rio de Janeiro,
fazem barulho — e fortuna — no Vale do Silício
ao criar uma empresa que oferece serviços
financeiros para startups LUANA ZANOBIA

SUCESSO PRECOCE Pedro Franceschi e Henrique Dubugras:


eles largaram a Universidade Stanford para se dedicar à Brex

BREX/DIVULGAÇÃO

1|5
BILL GATES, o gênio por trás da Microsoft, virou bilioná-
rio aos 31 anos. Larry Page, cofundador do Google, entrou
para o clube do bilhão aos 30. À frente deles, paira o recor-
dista Mark Zuckerberg, o inventor do Facebook, que viu
sua conta bancária alcançar a marca com apenas 23 anos.
O Brasil tem notório representante na lista, o discreto pau-
listano Eduardo Saverin, parceiro de Zuckerberg na criação
da rede social, que ingressou aos 25 no time dos ultrarricos.
Mas ser bilionário antes dos 30 é algo raro, que quase sem-
pre torna esses privilegiados figuras lendárias no mundo
corporativo. Isso por si só seria suficiente para chamar a
atenção para Henrique Dubugras e Pedro Franceschi, dois
jovens nascidos respectivamente em São Paulo e no Rio de
Janeiro que estrearam no ranking dos bilionários da revista
americana Forbes em 2022, aos 26 e 25 anos, com fortuna
estimada para cada um em 1,5 bilhão de dólares. Esse, con-
tudo, não é o único feito da dupla. A fintech criada por eles,
a Brex, é agora uma das sensações do Vale do Silício, a ca-
pital mundial das empresas de tecnologia.
Poucas companhias criadas por brasileiros fizeram su-
cesso tão veloz nos Estados Unidos quanto a Brex, que for-
nece cartões de crédito corporativos e softwares de gestão
de despesas, além de atuar como uma espécie de banco
para startups. Fundada em 2017, tornou-se um unicórnio,
como são chamadas as empresas avaliadas em pelo menos
1 bilhão de dólares, apenas seis meses depois de seu lança-
mento. Seu modelo de negócio, centrado em um software

2|5
BREX/DIVULGAÇÃO
ÊXITO Sede em São Francisco: entre as
100 empresas mais influentes dos EUA

avançado de gerenciamento de despesas que ajusta os li-


mites de crédito com base nos saldos de caixa e receita,
capturou clientes sedentos por inovação, e a Brex passou a
ser referência em serviços financeiros no Vale do Silício.
Tanto é assim que foi eleita pelo canal de televisão
CNBC a segunda empresa mais disruptiva dos Estados
Unidos, atrás apenas da OpenAI, a inventora da inteligên-
cia artificial ChatGPT. Mais recentemente, a Brex recebeu
da revista americana Time o título de uma das 100 com-
panhias mais influentes do país. “Uma boa maneira de
pensar a Brex é que somos uma mistura de fintech com
empresa de software”, disse Dubugras, que ocupa o cargo
de CEO da empresa, em entrevista para a publicação.

3|5
WEI LENG TAY/BLOOMBERG/GETTY IMAGES
RIQUEZA O brasileiro Eduardo Saverin, que fundou o
Facebook com Mark Zuckerberg: bilionário aos 25 anos

A trajetória de Dubugras e Franceschi é marcada pelo


talento precoce. Dubugras tinha 14 anos quando criou sua
primeira companhia, uma desenvolvedora de videogames
que fechou depois de receber avisos por violação de paten-
te. Franceschi se tornou, aos 12 anos, a primeira pessoa do
mundo a desbloquear o iPhone 3G. Aos 15, ensinou a Siri, o
comando de voz da Apple, a falar português. Os rapazes se
conheceram em um fórum no Twitter sobre criação de sof-
twares e nasceu daí a ideia de se tornarem sócios. Ainda
menores de idade, fundaram a Pagar.me, uma empresa de
meios de pagamento on-line que atraiu de largada 1 milhão
de reais de um grupo de investidores. Em 2016, a Stone, já
consolidada na indústria financeira, comprou a startup da
dupla, que decidiu tentar a sorte nos Estados Unidos.

4|5
Ambos ingressaram no curso de ciência de computa-
ção da Universidade Stanford, na Califórnia, mas larga-
ram as aulas para fundar a Brex. Agora, comandam um
negócio avaliado em 12 bilhões de dólares. “Jovens em-
preendedores escolhem o exterior porque encontram
ecossistemas que valorizam a inovação”, diz Felipe Matos,
vice-presidente da Associação Brasileira de Startups.
Avessos a entrevistas, Dubugras e Franceschi seguem a
discrição que caracteriza muitos bilionários. Uma exceção
foi o casamento recente de Dubugras, que fechou parte de
Fernando de Noronha para sua festa de casamento orçada
em 10 milhões de reais. Um troco para quem está no sele-
to clube do bilhão. ƒ

5|5
INTERNACIONAL ARGENTINA

O PERIGO MORA
AO LADO
Javier Milei, político iniciante que já lançou insultos ao
“comunista” Lula, é o novo presidente argentino. Teme-se
o efeito de sua eleição nos negócios entre os dois países

AMANDA PÉCHY E RICARDO FERRAZ

INCÓGNITA
Javier Milei:
dúvidas sobre
qual versão
do presidente
eleito irá
governar
a Argentina

JUAN IGNACIO RONCORONI/EFE

CAPA: TOMAS CUESTA/GETTY IMAGES

1 | 12
A
esta altura, a turma que se arrepia com a possi-
bilidade de um nome saído dos desvãos da polí-
tica, sem experiência e sem travas, ganhar uma
eleição presidencial já devia estar acostumada
— mas não. Como aconteceu com Donald
Trump nos Estados Unidos e com Jair Bolsonaro no Bra-
sil, um desalentado “não pode ser” de um naco da opi-
nião pública acompanhou a vitória na Argentina de Ja-
vier Milei, 53 anos, frenético disseminador de ideias
pouco ou nada ortodoxas que até recentemente era moti-
vo de piada. E que vitória: Milei derrotou o ministro da
Economia, Sergio Massa — e por tabela o peronismo,
força dominante há meio século, com breves interregnos
—, com 55% dos votos, ou 14,5 milhões do total, um re-
corde. Em seu primeiro pronunciamento como presiden-
te eleito, deixou de lado os socos no ar, a motosserra em
riste e os ataques pessoais e optou por suavizar o discur-
so: “Tenho compromisso com a democracia, o comércio
livre e a paz”, afirmou.
A mudança de tom, que já era visível nas semanas que
precederam o segundo turno, é recebida com alta dose de
desconfiança por quem passou pela máquina de moer
carne do candidato em estado raivoso, aí incluído em lu-
gar de destaque o governo brasileiro, para a apreensão
dos empresários que mantêm longa e lucrativa relação
comercial com o país vizinho. Em um esforço diplomáti-
co como havia tempos não se via em relação à Argentina,

2 | 12
LAÇOS LUCRATIVOS
O Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina,
enquanto o país é o terceiro com o qual os brasileiros
mais fazem negócios

E X P O R TA Ç Õ E S E X P O R TA Ç Õ E S
BRASIL-ARGENTINA ARGENTINA-BRASIL

14,9 10,1
BILHÕES
DE DÓLARES* BILHÕES
DE DÓLARES*

PRINCIPAIS PRODUTOS PRINCIPAIS PRODUTOS

Veículos, tratores e
Automóveis
peças automotivas

Soja Petróleo

Energia elétrica Trigo

* De janeiro a outubro
Fonte: MDIC

3 | 12
o Itamaraty tenta interpretar os sinais para entender qual
Milei governará o país — se El Loco, apelido dos tempos
de colégio, ou se a versão moderada que agora incorpora.
Ao longo da disputa eleitoral, Milei, economista de
formação, discípulo de corpo e alma de um certo anar-
cocapitalismo com opção preferencial por posições ca-
ras à extrema direita, usou sua língua afiada para desan-
car Lula, a quem chamou de “comunista” e “corrupto”
em entrevistas. Os ataques continham, além dos ingre-
dientes da cartilha ideológica que opõe direita e esquer-
da no continente, um tempero de vingança: Milei não
engole o fato de marqueteiros ligados ao PT terem se
juntado à campanha de Massa, empregando técnicas de
propaganda nas redes sociais semelhantes às utilizadas
na peleja contra Bolsonaro no ano passado. No novo am-
biente de moderação, as farpas migraram para as entre-
linhas. Lula escreveu uma mensagem reconhecendo a
vitória do novo mandatário sem citar seu nome. Milei,
por seu lado, fez questão de convidar Jair Bolsonaro pa-
ra a posse, em 10 de dezembro, durante uma celebratória
ligação por vídeo na qual o ex-presidente derramou-se
em elogios ao argentino: “Você representa muito para
nós”, afirmou Bolsonaro.
Já antes da posse, Milei dirá a que veio, ao menos do
ponto de vista de imagem. Ele marcou duas viagens nas
três semanas que antecedem à cerimônia. Na primeira,
aos Estados Unidos, se reunirá com o ex-presidente Do-

4 | 12
JUAN MABROMATA/AFP

ADEUS O ministro Sergio Massa:


imensa derrota do peronismo nas urnas

5 | 12
nald Trump, com quem tem fortes laços de afinidade. “O
mundo inteiro acompanhou, estou orgulhoso por você”,
declarou Trump em sua rede social. Depois, em Israel,
pretende reforçar uma alardeada união espiritual com o
judaísmo — ele relata que estuda a Torá e já cogitou se
converter – em um encontro com o assoberbado primei-
ro-ministro Benjamin Neta nyahu. Apesar da falta de
empatia até o momento, o Itamaraty tem trabalhado pa-
ra garantir que as relações com a Argentina não degrin-
golem. “O Brasil está fazendo todos os esforços para ini-
ciar o trabalho com o novo governo nos melhores ter-
mos”, disse a VEJA o embaixador brasileiro em Buenos
Aires, Julio Bitelli. “Estamos esperando gestos da mes-
ma direção.” Depois de muita pressão, o presidente eleito
emitiu um aceno a Lula, mas pelos jornais: “Se quiser
vir, será bem-vindo”.
A preocupação maior de Brasília é a possibilidade de
a Argentina sair do Mercosul, “uma união aduaneira de-
feituosa” que, segundo Milei, deveria ser extinta. Para
piorar, a vitória do candidato ocorre às vésperas da assi-
natura de um acordo comercial do bloco com a União
Europeia, após quase duas décadas de articulação, que
elimina tarifas de importação sobre 92% dos produtos
sul-americanos e 72% das mercadorias vindas da Euro-
pa. Além de intensificar o comércio, o pacto prevê inves-
timentos europeus nos países-membros que, juntos,
acrescentariam até 12 bilhões de dólares ao PIB regio-

6 | 12
INSTAGRAM @JAIRMESSIASBOLSONARO

JOSEPH PREZIOSO/AFP
AMIGOS Bolsonaro e o filho Eduardo em chamada de vídeo
(à esq.) e encontro marcado com Trump: conservadorismo

nal. Com receio de que a saída da Argentina destrua


anos e anos de esforços diplomáticos, Lula ligou para a
presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von
der Leyen, pedindo que o pacto seja firmado na cúpula
do Mercosul no Rio de Janeiro em 7 de dezembro — três
dias antes da posse de Milei.
No entorno do novo presidente, a chance de saída do
bloco é tida como remota. Defensor do comércio ultrali-
vre, Milei penderia mais a promover mudanças nas re-
gras atuais, o que não é totalmente malvisto pelo Planal-
to. A economista Diana Mondino, a futura ministra das
Relações Exteriores, reuniu-se dias depois da vitória
com o embaixador argentino no Brasil, o peronista Da-
niel Scioli, e ouviu argumentos favoráveis à permanên-

7 | 12
cia. O próprio Milei cogita fazer a primeira viagem ofi-
cial ao Paraguai, para se encontrar com o presidente
Santiago Peña, que é de direita e também defende uma
mudança, ainda a ser determinada. “Já vimos esse filme
no governo Bolsonaro”, diz Leonardo Trevisan, profes-
sor de relações internacionais da ESPM. “Paulo Guedes
era contra o Mercosul, mas o empresariado brasileiro
não permitiu que o bloco se desmantelasse. O mesmo
deve acontecer na Argentina.”
Ao longo de mais de trinta anos do acordo de coope-
ração, os dois países alcançaram um nível de interdepen-
dência comercial. O Brasil é o maior parceiro da Argenti-
na, que por sua vez é o terceiro país com o qual os brasi-
leiros mais fazem negócios. Grandes exportadoras de
commodities agrícolas, as duas nações trocam principal-
mente produtos de alto valor agregado, como veículos,
autopeças e máquinas agrícolas, em uma balança comer-
cial que, em 2023, chegará a 25 bilhões de dólares (veja o
quadro). No atual cenário de incerteza, as montadoras
que operam dos dois lados da fronteira convocaram seus
executivos para traçar cenários para o futuro. “É urgente
esperar”, recomenda Marcos Azambuja, ex-embaixador
brasileiro em Buenos Aires. “Tenho a impressão de que
nem Milei sabe como será seu governo.”
As maiores dúvidas não estão na política externa,
mas na economia. No profundo buraco em que a Argen-
tina se enfiou, a inflação acumulada nos últimos doze

8 | 12
FRANCO TROVATO FUOCO/DPA/GETTY IMAGES

DESALENTO Moradora de rua em Buenos Aires:


40% da população na pobreza

meses é de 142%, com expectativa de bater em 200%


no início do próximo ano. O dólar passou de 1 000 pe-
sos e a taxa de juros do Banco Central atingiu 133% ao
ano. Mais de 40% da população vive abaixo da linha de
pobreza. Para complicar ainda mais, o país deve 44 bi-
lhões de dólares ao FMI e não tem reservas para honrar
o empréstimo. Em seu primeiro pronunciamento, Milei
avisou que o remédio da sua receita será amargo e que
“não haverá espaços para gradualismo”. Até o momen-
to, contudo, não detalhou como cumprirá a promessa de
cortar 15% dos gastos do governo e acabar com subsí-
dios nas tarifas públicas. “Milei se elegeu vendendo ma-
gia, mas agora tem o desafio de realizar as aspirações

9 | 12
ALI BURAFI/AFP

A PONTAPÉS Protesto contra os bancos, em 2001:


sucessivas crises econômicas há pelo menos quatro décadas

do povo”, diz Eduardo Amadeo, ex-deputado que já co-


mandou diversos organismos econômicos argentinos.
Pior situação só se viu em 2001, quando o governo con-
fiscou as contas da população, levando a uma onda de
protestos nas portas dos bancos.
A promessa de fechar o Banco Central para cessar a
emissão de moeda segue de pé, mas, desde que foi eleito,
Milei aboliu do vocabulário a palavra “dolarização”. No
lugar, sugere a convivência da moeda americana com o
peso até que a população faça a troca naturalmente. “Não
é proposta factível”, diz Marina Dal Poggetto, professora
de economia da Universidade Austral. “Além disso, não
há dólares disponíveis no país.”

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REPRODUÇÃO
TRAJETÓRIA ANIMADA
Milei como roqueiro, goleiro
e com os cachorros
TWITTER @JMILEI

confidentes: temperamento
forte em todas as ocasiões

MARCELO DUBINI/CARAS

11 | 12
Propostas econômicas alternativas têm sido levadas à
nova equipe pelo PRO, partido de centro-direita do ex-
-presidente Mauricio Macri, que foi derrotado nas urnas
e negocia apoio ao próximo governo. Até agora, porém,
as conversas andam frias — o único consenso é a bem-
vinda privatização de petrolíferas estatais, entre elas a
YPF, espécie de joia da coroa. Contabilizados os votos, o
partido de Milei, A Liberdade Avança, soma apenas 38
dos 257 assentos na Câmara dos Deputados e sete dos 72
no Senado. Para aprovar qualquer lei relacionada ao seu
ambicioso e polêmico projeto, Milei precisa do apoio de,
no mínimo, metade das cadeiras mais uma. “Ele depende
da casta que tanto criticou”, aponta o cientista político
Eduardo Sartelli.
A versão mais sensata que exibe não conseguiu apa-
gar da memória dos políticos a quem agora afaga as ex-
centricidades da sua ruidosa vida pessoal: foi cover de
Mick Jagger à frente da banda de rock Everest, destemi-
do goleiro do Chacarita Juniors, time da periferia de Bue-
nos Aires, e se aconselha com Conan, mastim inglês já
morto de quem clonou os cinco cachorros com quem vive
atualmente. Para o bem da Argentina e do Brasil, tomara
que as tais conversas com o além ajudem a incutir uma
boa dose de bom senso no novo presidente. A Argentina
não pode afundar. ƒ

12 | 12
INTERNACIONAL ORIENTE MÉDIO

UM FIO DE
ESPERANÇA
Após intensa negociação, Israel e Hamas anunciam um
acordo de cessar-fogo e libertação de reféns, a
primeira boa notícia em seis semanas de guerra
ERNESTO NEVES, de Tel Aviv

MOBILIZAÇÃO Israelenses exigem o retorno dos


reféns em Tel Aviv: críticas às prioridades do governo

JUSTIN TALLIS/AFP

1|9
DEPOIS DE 47 DIAS de guerra, desencadeada por ata-
ques terroristas que deixaram 1 200 mortos em Israel e
agravada por bombardeios ininterruptos e operações ter-
restres que vêm dando à Faixa de Gaza contornos de terra
arrasada, o Hamas e o governo israelense cederam a pres-
sões vindas de todos os lados e anunciaram um acordo de
cessar-fogo temporário. A cláusula principal do documen-
to é a libertação de cinquenta mulheres e crianças, parte
dos 246 reféns capturados pelo grupo palestino no decor-
rer do massacre de 7 de outubro. Em troca, Israel se com-
promete a soltar cerca de 150 palestinos (três para cada
cativo liberado), também em sua maioria mulheres e me-
nores de idade, presos sob acusação de terrorismo. Previs-
ta para durar de quatro a cinco dias, a pausa nos combates
pode se estender, se mais reféns forem devolvidos às suas
famílias, mergulhadas em dolorosa espera — ou ser sus-
pensa, imediatamente, à menor faísca de suspeição no
campo minado das desconfianças mútuas.
Horas após o anúncio do cessar-fogo e da troca de re-
féns, ambos previstos para começar na quinta-feira, 23,
Israel informou que o início da ação seria no dia seguinte,
na melhor das hipóteses. No meio tempo, o comando mili-
tar israelense comunicou que “continua a lutar em Gaza”
e o Hamas esclareceu que concordara com a trégua, “mas
nosso dedo continua no gatilho”, acentuando o clima de
esperança misturada à incerteza na população dos dois la-
dos. As tratativas entre Israel e Hamas para se chegar ao

2|9
HAIM ZACH/GPO

PRESSÃO Gabinete de emergência


de Netanyahu: acertos antes da trégua

acordo duraram mais de três semanas e demandaram


uma maratona diplomática iniciada pelo Catar, interlocu-
tor privilegiado do Hamas, impulsionada por Estados
Unidos, fazendo pressão sobre o aliado Israel, e apoiada
pelo Egito, dono do único portão de saída de civis de Gaza
e entrada de suprimentos. Além da trégua nas hostilida-
des, que pode ser ampliada sempre que dez novos reféns
sejam libertados, o acordo prevê o acesso de médicos da
Cruz Vermelha aos cativeiros e a entrada diária de 300
caminhões de ajuda humanitária. Até aqui, além das víti-
mas em Israel, a guerra matou 14 000 palestinos, metade
crianças (segundo o Hamas).

3|9
ATAQUE NO FERIADO
“Minha mãe foi sequestrada em casa, com o
marido, o irmão, a irmã e uma sobrinha. A
família estava reunida para o feriado de
Simchat Torá. Quando ouviram as explosões,
se fecharam no quarto seguro, mas o Hamas
invadiu o cômodo e levou todos.”
Geffen Marman (à dir.), 40, filha de Clara, 64

ERNESTO NEVES

4|9
Outro fator de influência na obtenção do acordo foi a
mobilização da sociedade israelense, que foi às ruas exigir
uma solução para a questão dos reféns — no sábado, 18,
mais de 50 000 pessoas se reuniram em Tel Aviv e Jeru-
salém, cobrando respostas do governo. Desde o início da
guerra, a estratégia do gabinete de emergência montado
pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de dar prio-
ridade total à eliminação do Hamas foi alvo de críticas de
civis e até militares, pelos riscos que embute de alvejar se-
questrados no fogo cruzado.
Até agora, porém, Netanyahu evitava entrar em cho-
que com a linha-dura que sustenta seu instável governo
de coalizão. “É um desastre o que está acontecendo”,
criticou o radical ministro da Segurança Nacional, Ita-
mar Ben-Gvir, do ultradireitista Partido do Poder Ju-
deu, opositor do acordo, antes da votação do gabinete
que optou pela trégua. “Se Netanyahu diz que vencere-
mos unidos, isso inclui trazer os reféns de volta em se-
gurança”, contrapõe Ramos Aloni, cujas filhas Danielle
e Sharon estão presas em Gaza, um dos vários sofridos
relatos ouvidos por VEJA (leia outros depoimentos ao
longo desta reportagem). Apenas quatro dos capturados
foram libertados pelo Hamas e uma soldada, Ori Megi-
dish, resgatada por Israel. Outros dois foram mortos e
seus corpos recuperados em uma ofensiva terrestre, trá-
gico desfecho que alimenta o medo entre os que aguar-
dam por notícias.

5|9
DIAS DE AGONIA
“Meu neto passou o aniversário no cativeiro.
Imagino que esteja fazendo flexões para se
exercitar, porque é muito ativo e adora surfar.
Mas me pergunto: será que dentro do túnel tem
oxigênio suficiente para ele respirar?”
Dalia e Musa Weissman, 70 anos, e Mishal, 40,
avós e tia de Amit Shani, 16

ERNESTO NEVES

6|9
Na reorganização das forças no Oriente Médio promo-
vida pela guerra, ficam evidentes, de um lado, a turbulen-
ta situação de Netanyahu, refém ele próprio de partidos
religiosos radicais e altamente impopular, e, de outro, a
relevância adquirida pelo Catar no meio de campo da me-
diação. Empenhado em se sobressair e ampliar sua área
de influência nessa esquina conturbada do globo — ambi-
ção que o levou a ser sede da Copa do Mundo de 2022 —,
o país hospeda uma representação do Hamas e dá guarida
a sua cúpula política, além de sustentar financeiramente o
poder público em Gaza — o que lhe deu cacife para nego-
ciar concessões junto aos palestinos. “Os cataris iniciaram
sua empreitada diplomática há duas décadas, interme-
diando acordos no Iêmen, em 2007, e no Líbano, no ano
seguinte”, diz Bader Al-Saif, especialista em história islâ-
mica do Carnegie Middle East Center, de Beirute.
A negociação de agora envolveu diplomatas de Estados
Unidos, França, Holanda e Egito. “Nosso foco é garantir
que Israel e o Hamas cumpram os termos acertados”, afir-
mou Majed Al-Ansari, porta-voz do Ministério das Rela-
ções Exteriores catari. Até o Irã, inimigo número 1 de Is-
rael e maior fornecedor militar do Hamas, sentou-se à
mesa de debates. Sua atuação envolveu o destino de onze
trabalhadores rurais tailandeses presos em Gaza — o go-
verno de Bangcoc percebeu que eles não estavam rece-
bendo atenção e apelaram para o regime dos aiatolás, que
viu na missão uma chance de melhorar a imagem.

7|9
SAIU E SUMIU
“Naquele dia, às 7h, Michel foi buscar a netinha.
Pouco depois, soubemos do ataque e ligamos para
ele. Uma pessoa respondeu aos berros, em árabe.
O notebook dele está em Gaza. Me agarro à esperança
enquanto cuido da nossa mãe, de 87 anos, doente
desde o sequestro.”
Mary Shohat, 66, irmã do brasileiro
Michel Nisembaum, 59

ERNESTO NEVES

8|9
Ainda que se concretize e represente de fato um alívio
depois de seis semanas sangrentas, a suspensão da guerra
não desata a crise que se abate sobre a região. “O coman-
do israelense teme que o Hamas use o período para se re-
organizar e promover novos ataques contra Israel”, disse a
VEJA Moty Cristal, ex-chefe do Centro de Gestão de Ne-
gociações, órgão ligado ao gabinete de Netanyahu. Moty
também ressalta que a trégua deve intensificar a pressão
internacional pelo fim da guerra, o que contraria os pla-
nos do primeiro-ministro de só terminar a operação quan-
do extinguir o Hamas, meta quase impossível. “Em uma
guerra, os canais de negociação são muito instáveis”, diz
Moty. No mesmo dia do anúncio do cessar-fogo, os isra-
elenses rebateram ataques do grupo xiita Hezbollah, no
Líbano, com a morte de quatro supostos terroristas e dois
repórteres. A suspensão do bombardeio em Gaza é o pri-
meiro passo, mas as gestões diplomáticas ainda têm um
longo caminho pela frente. Até lá continuará o drama. ƒ

9|9
GENTE
VALMIR MORATELLI

SEM CENSURA
Aos 50 anos, ANGÉLICA envereda pela mesma trilha de Xuxa e
agora expõe os altos e baixos de sua trajetória sem vergonha de tra-
zer à luz episódios incômodos. É verdade que, neste caso, não há
um desafeto da estatura de uma Marlene
Mattos, a todo-poderosa empresária de
Xuxa, para sacudir a trama, mas em An-
gélica 50 e Tanto, no ar a partir de do-
mingo 26, no Globoplay, ela prome-
te que o enredo não trará sono.
“Comecei muito nova e pulei eta-
pas numa época em que a gente
sofria abuso no trabalho e nem
sabia, simplesmente não tinha
voz”, lembra a apresentado-
ra, que falará ainda do casa-
mento com Luciano Huck,
52, e da vida ao lado dos
três filhos. “Passei a me
considerar feminista de-
pois que minha filha,
Eva, hoje com 11 anos,
nasceu. As coisas que
eu passei, não quero
para ela, não”, afir-
ma a neoativista.

INSTAGRAM @ANGELICAKSY
DAQUI NINGUÉM ME TIRA
Enquanto uma leva crescente de colegas debanda para o streaming,
CLÁUDIA ABREU, 53 anos, segue firme e operante no rol cada vez
mais minguado de quadros fixos da Globo, onde agita a bandeira do ve-
lho e bom folhetim. “É importante no Brasil, onde nem todos podem pa-
gar por streaming, teatro e cinema, que se faça novela de qualidade pa-
ra honrar o público”, defende ela, que, à espera de ser escalada para
alguma produção na emissora, roda o país com a peça solo Virginia,
sobre a escritora britânica Virginia Woolf, inspiradora das feministas no
século XX. Separada desde 2022 do cineasta José Henrique Fonseca,
com quem ficou 25 anos, a atriz diz que tem gostado da fase sozinha,
nos palcos e na vida. “Há esse tabu da solitude, mas conseguir ser uma
boa companhia para mim mesma é uma grande libertação”, garante.
INSTAGRAM @CLAUDIAABREU_ATRIZ

2|5
CHRISTIAN LIEWIG/CORBIS/GETTY IMAGES

ISSO QUE É ESPERA


Em raro momento em que abriu o coração sem filtros, a primeira-
dama da França, BRIGITTE MACRON, 70, contou detalhes do ele-
trizante e ruidoso início do namoro com o presidente EMMANUEL
MACRON, 45. Ele tinha 15 anos quando se apaixonou pela então
professora de teatro, e era colega de classe de sua filha. A diferença
etária de mais de duas décadas que separava os dois pombinhos
fez com que os pais dele o enviassem para Paris, na tentativa de es-
friar os hormônios. De nada adiantou. Quando estava na casa dos
30 e era funcionário público, Macron enfim pediu Brigitte em casa-
mento, união tão adiada, segundo ela, também para não ferir seus
filhos, com idades próximas à do marido. “Não queria destruir a vida
deles, então a espera durou o tempo de colocá-los nos trilhos. Você
pode imaginar o que eles estavam ouvindo, mas eu não queria per-
der minha vida”, desabafou ela à revista Paris Match.

3|5
DIVULGAÇÃO

SEGUE A FUMAÇA
Adepto contumaz dos cigarrinhos de Cannabis, o rapper SNOOP
DOGG, 52 anos, causou espanto ao anunciar que a “fumaça”, como
diz, era coisa do passado. “Após muita consideração e conversas
com minha família, decidi parar. Por favor, respeitem minha privaci-
dade”, postou nas redes, e mais não disse. Dias depois, a verdade
veio à tona sem névoas. Ele esclareceu que era tudo parte de uma
jogada de marketing para chamar atenção para uma churrasqueira
que leva sua grife. Detalhe singelo: como não produz fumaça, o arte-
fato é ideal para assar marshmallows. Ferrenho defensor da libera-
ção da maconha, que já o levou à prisão e a ter problemas com a
Justiça, Snoop segue firme em sua atuante militância.

4|5
HAJA CANSAÇO
Ao aparecer com o rosto visivelmente inchado na pré-estreia do novo
Jogos Vorazes (abaixo, à esq.), ADRIANA LIMA, 42 anos, foi alvo de
uma saraivada de críticas nas redes, onde a torpedearam por abusar
de procedimentos estéticos. Logo começaram a circular um antes e
depois de seu rosto, para provar que havia se excedido nos retoques.
Ela enfaticamente nega. “Este é o rosto de uma mãe cansada de uma
adolescente, dois pré-adolescentes, um menino ativo, uma criança de
1 ano aprendendo a andar e ainda três cachorros”, listou ela, sem ma-
quiagem, no Instagram. A artilharia, porém, não cessou. Não é a primei-
ra vez que Adriana se vê às voltas com a
patrulha digital, à qual rebate: “Tenho que
lembrar que sou humana e, com a idade,
o corpo reage de maneira diferente”, diz
a modelo, que sustenta que as mudan-
ças são pura obra da natureza. ƒ
S
GE S; MO ND AD OR I/G ET TY IMAGE
FOTO S ST EV E GR AN ITZ /GE TTY IMA

5|5
GERAL SAÚDE

ARMADILHAS
MENTAIS
Medos e obsessões podem ganhar uma dimensão
patológica e tornar-se fonte de sofrimento — um
fenômeno ainda mais crítico nestes tempos, mas
para o qual já existem novas soluções
DIOGO SPONCHIATO

CLAUSTROFOBIA
O pavor de lugares
fechados: condição
chega a afetar entre
5% e 10% da população

LIGHTFIELD STUDIOS/SHUTTERSTOCK

1 | 11
Q
uem atravessou a pandemia de Covid-19 sabe o
que é ficar com os nervos à flor da pele. Um nú-
mero incalculável de pessoas experimentou dois
estados psíquicos extremos diante da doença que
se alastrava: a fobia do vírus e a mania por higie-
ne. Estratégias naturais de autodefesa, claro, mas que,
tantas vezes, levaram os cidadãos a vivenciar um suplício
emocional. Essas circunstâncias simbolizam à perfeição
um binômio de reações humanas: reforçam a sensação de
proteção ou recompensa e, simultaneamente, tendem a
ventilar ares doentios quando passam dos limites. E é essa
fronteira entre o que se convencionou chamar de normal e
o patológico que percorre O Livro das Fobias e Manias
(Intrínseca), da escritora britânica Kate Summerscale, um
inventário recém-lançado de 99 pavores e obsessões hu-
manas, demasiado humanas.

LISTA DE
AVERSÕES… FOBIA SOCIAL
Fobias são
marcadas por O medo patológico e
receio desmedido persistente de se expressar
a situações ou diante de outras pessoas ou
criaturas falar em público

2 | 11
Trata-se de um tema em ebulição, não só pelos tempos
pós-pandêmicos, mas por trazer à tona novas condições a
atormentar pessoas de diversas idades e classes sociais. E
talvez o melhor exemplo disso seja o que os cientistas bati-
zaram de nomofobia, a aflição alucinante de ficar sem aces-
so ao celular ou no modo off-line. O fato é que fobias e ma-
nias acompanham o Homo sapiens desde remotas eras. O
medo, ainda que exagerado, era (e é) resposta fisiológica
contra criaturas ou situações potencialmente ameaçadoras.
E não é à toa que todo mundo tem certo receio de se escorar
numa varanda no 20º andar de um edifício ou fica com o
pé atrás diante de uma aranha. No entanto, algumas pes-
soas entram em pânico só de imaginar cenas assim, tendo
inclusive calafrios, taquicardia e até desmaios. Do mesmo
modo, mas na outra ponta do espectro, atividades que nos
dão alguma espécie de gratificação são essenciais para nos

ARACNOFOBIA ACROFOBIA

Verdadeiro pânico de É o pavor de altura; e


aranha; existem também algumas pessoas passam mal
fobias de insetos, ratos e só de imaginar entrar em um
outros bichos avião, a aerofobia

3 | 11
sentirmos animados e dispostos. Porém, quando se trans-
formam em compulsões, conduzem o indivíduo a um mun-
do cujo sentido só se expressa ao repetir determinado com-
portamento — comprar, mentir, limpar etc.
Depois de farta investigação, em cima de periódicos
médicos, tratados de psicologia e documentos históricos,
Summerscale expõe não só condições relativamente co-
muns como comportamentos exóticos e bizarros, que nos
convidam a pensar até onde pode ir a mente humana.“Fi-
quei comovida com muitos dos casos que pesquisei: a me-
nina malaia aterrorizada com barulhos, mesmo com o ruí-
do de sacos plásticos; o psiquiatra chileno atormentado pe-
lo medo de enrubescer; a jovem americana que tinha tanto
receio de sujeira que não suportava tocar em jornais e no-
tas de dinheiro e nas próprias roupas”, disse a escritora a
VEJA. “E há episódios fascinantes que, à primeira vista,

…E DE
COMPULSÕES MITOMANIA
Mania por uma
atividade ou É um impulso doentio
objeto pode levar por mentir, ainda que
à perda do a pessoa não leve
autocontrole vantagem nisso

4 | 11
parecem bastante estranhos, como a mania por dança que
tomou conta de aldeias na Europa medieval.”
Ao consultar as páginas do livro, fica evidente que não
há fim para as fobias e manias da nossa espécie. Tem de
tudo no catálogo: medo de insetos, cobras, escuridão, san-
gue, avião, injeção, dentista... Compulsão por ler, roer as
unhas, arrancar cabelos, roubar... “É impressionante ver as
obsessões secretas com as quais muitas pessoas vivem.
Obsessões até por determinadas palavras ou números”,
afirma Summerscale. Mas há uma pergunta que não quer
calar: o que distingue uma fobia ou mania patológica de
uma reação ou comportamento excêntrico? Em outros ter-
mos, quando elas viram transtornos mentais? “Todos nós
temos medos e desejos irracionais. É quando eles se tor-
nam extremos e incapacitantes que se qualificam como
distúrbios psíquicos”, responde a autora do livro.

BIBLIOMANIA ONEOMANIA

A loucura por ler A compulsão por


ou ter livros faz o sujeito comprar piorou com
esquecer a realidade e as lojas on-line e após
empilhar volumes em casa a pandemia

5 | 11
Não é tarefa fácil calcular o percentual de pessoas que
seriam diagnosticadas dessa forma. Primeiro porque fo-
bias e manias dependem, em certo grau, do ambiente e da
cultura em que se está imerso. Segundo porque nem sem-
pre as vítimas procuram ajuda especializada, seja por sen-
tir vergonha, seja por achar que não se trata de um proble-
ma a ser resolvido em consultório. Com base em suas pes-
quisas, Summerscale estima que uma em cada dez mulhe-
res e um entre vinte homens padecem de fobias passíveis
de detecção e tratamento. “As manias são mais difíceis de
quantificar, pois fazem parte de uma série de condições,
como dependência e transtorno obsessivo-compulsivo
(TOC)”, diz a britânica. E esse ponto merece ser sublinha-
do, porque, inúmeras vezes, os pavores e as fixações são
manifestações ou integrantes de outras doenças mentais,
a exemplo de ansiedade, vício ou depressão.
Fobias e manias dividem o mesmo livro por serem como
dois lados de uma moeda. “A primeira é a compulsão por
evitar algo; a segunda, a compulsão por fazer algo”, resume
Summerscale. E porque também refletem não só receios e
anseios íntimos como dores e sonhos coletivos. Se a muso-
fobia, o medo extremo de ratos, fez vilas inteiras saírem pa-
ra caçar os animais até o século XX, na Idade Média povo-
ados foram tomados por ondas de coreomania — uma ob-
sessão por dançar até perder as forças — e demonomania
— surtos de possessão que se alastravam sobretudo entre
mulheres. Mais recentemente, na década de 1960, os críti-

6 | 11
SEVENTYFOUR/SHUTTERSTOCK

SUPORTE HIGH-TECH Realidade virtual: recurso extra na


terapia para dessensibilizar fobias de bichos e de avião

cos classificaram de Beatlemania a loucura dos fãs pela


banda de Liverpool. A ideia até era apontar o dedo para um
comportamento errático do público, que perdia literalmen-
te o ar diante do grupo, mas, com os anos, a expressão tor-
nou-se emblema de fã-clube e de uma autêntica logomarca.
No frigir dos ovos — e cabe dizer que existe até “ovofo-
bia” —, o caldo das compulsões é repleto de nuances, con-

7 | 11
JOVANMANDIC/GETTY IMAGES

CLEPTOMANIA Impulso por roubar:


ele independe de necessidade

fusões, sofrimentos reais e até brincadeiras. Convenha-


mos que não dá para levar a sério algo como “hipopoto-
monstrosesquipedaliofobia”, ou simplesmente “sesquipe-
daliofobia”, a aversão por palavras longas. Em paralelo,
boiam em sua superfície questões que, longe de serem
diagnósticos clínicos, denunciam preconceitos, posturas e
visões sociais, caso de xenofobia (a ojeriza a estrangeiros)

8 | 11
AKG/FOTOARENA

CONTÁGIO SOCIAL Coreomania: aldeias


passavam a dançar loucamente até pessoas
desfalecerem na Idade Média

e a homofobia (a homossexuais), que ainda hoje alimen-


tam ondas de discriminação e ataques mundo afora.
O assunto, portanto, pode ser preocupante, como pre-
ocupante também é a dor emocional de alguém que se vê
preso ou limitado em seu dia a dia por fobias ou manias.
Enquanto condições de saúde, elas figuram, de forma iso-
lada ou dentro de outros distúrbios, em documentos mé-

9 | 11
dicos como o inf luente
DSM-5, o Manual Diagnós-
tico e Estatístico de Trans-
tornos Mentais, da Associa-
ção Americana de Psiquia-
tria. As fobias são frequen-
temente variações de ansie-
dade, enquanto as manias
podem escancarar casos de
TOC ou transtorno bipolar.
Em comum, são quadros O LIVRO DAS FOBIAS
que demandam a avaliação E MANIAS, de Kate
e o apoio de um profissio- Summerscale (tradução de
nal. E aí reside um dos prin- Renato Marques; Intrínseca;
cipais obstáculos em seu 320 páginas; 59,90 reais e
tratamento: a busca por as- 39,90 reais o e-book)
sistência especializada. “É
da natureza dos comportamentos compulsivos que eles
nos confortem antes de nos controlarem, assim como
podemos ter medo de abandonar o que nos distrai e
acalma”, diz Summerscale. “Mas somente quando senti-
mos que nós — ou aqueles de quem gostamos — esta-
mos sendo prejudicados por nossos pensamentos ou
ações obsessivas é que podemos procurar ajuda”, com-
pleta a autora do Livro das Fobias e Manias.
Vencida a barreira do diagnóstico, hoje a medicina
conta com vastos recursos para domar compulsões pa-

10 | 11
tológicas. Boa parte dos pacientes tira proveito da psico-
terapia e da chamada terapia de dessensibilização, por
meio da qual pessoas fóbicas são expostas gradativa-
mente à situação que as assusta tanto. E até a tecnologia
se tornou aliada nessa empreitada. Experimentos com
realidade virtual se mostram bem-sucedidos para apla-
car a fobia social (a aversão de estar e falar em público)
e o medo de avião, por exemplo, como demonstram pes-
quisas conduzidas na Faculdade de Medicina da USP.
Nesse modelo, o paciente entra em contato com as cir-
cunstâncias penosas primeiramente em um ambiente
recriado digitalmente — basta utilizar óculos especiais
conectados ao programa de computador. A proposta já
chegou a consultórios de psicoterapeutas.
Entre as manias duras na queda, que incluem a ob-
sessão por fazer compras e arrancar pelos ou cabelos a
ponto de lesar a pele, além das sessões de terapia, medi-
camentos podem ser prescritos para regular áreas do
cérebro que regem nossos impulsos e satisfações. A
questão crucial, a despeito do que nos apavora ou nos
induz a repetir sucessivamente qualquer coisa, é se
conscientizar de que, se aquilo interfere na rotina e na
saúde, pode (e deve) ser combatido com as ferramentas
à disposição de psicólogos e médicos. No fundo, fobias e
manias integram esse complexo pacote da mente huma-
na: a mesma que constrói soluções para as armadilhas
que ela pode plantar. ƒ

11 | 11
GERAL FAMÍLIA

OS OPOSTOS NÃO
SE ATRAEM
Uma vasta pesquisa mostra que o que mais
une casais que se revelam felizes são valores em
comum e afinidades no modo de tocar a vida
DUDA MONTEIRO DE BARROS E PEDRO CARDONI

NA MESMA PÁGINA Em sintonia: ciência derruba o mito


de que quanto mais diferente o parceiro, melhor a relação

TETRA IMAGES/GETTY IMAGES

1 | 10
VEM DA MITOLOGIA grega a ideia de que uma figura
como Eros, rebatizado de Cupido nos tempos romanos,
escolhia a esmo pessoas que se encantariam umas pelas
outras depois de flechadas por ele, o Deus encarregado do
amor e da paixão, que tinha lá seus caprichos. Quando da-
va na telha, usava sua ferramenta de trabalho para pro-
mover combinações que desembocavam em pura desilu-
são. Estava ali embutido um conceito que viria a ganhar
envergadura na era medieval — a do amor romântico, em
que uma metade completaria a outra, numa fusão de por-
ções diferentes que formariam um todo harmonioso. A lei
da física que trata da atração magnética entre dois corpos
eletricamente carregados examinou o tópico sob outra lu-
pa — segundo ela, a força que aproxima dois objetos é
sempre mais intensa quando eles contêm cargas opostas.
Nos anos de 1950, o sociólogo americano Robert Winch
enlaçou o raciocínio em um enunciado repisado até os
dias de hoje: “Os opostos se atraem”, cravou em artigo pu-
blicado na American Sociological Review.
Agora, esse caldo feito de tão variadas leituras ganha
nova luz depois de uma vasta pesquisa conduzida por
psicólogos da Universidade do Colorado, recém-publica-
da no respeitado periódico Nature Human Behavior. Em
uma ambiciosa empreitada, em que os especialistas apli-
caram um mesmo formulário a 80 000 pessoas mundo
afora, Brasil incluído, chegou-se a uma constatação que
derruba o velho ditado: 89% dos entrevistados, engata-

2 | 10
E LÁ SE VÃO TRÊS DÉCADAS
Os farmacêuticos Cleide, 55 anos, e Paulo Freitas,
60, se esbarraram no final dos anos 1990 em um retiro
de Carnaval e seguem juntos numa trilha em que cultivam
novos hábitos. “Aprendemos um com o outro”, diz Paulo

ARQUIVO PESSOAL

3 | 10
dos em relacionamentos sérios e felizes, segundo afirma-
vam, mantinham muito mais similaridades do que dife-
renças com seus parceiros.
Foram examinados ao todo mais de uma centena de itens
— de hábitos a crenças religiosas, de escolaridade a perso-
nalidade e valores, abrangendo a postura frente à vida. Em
geral, os que eram mais abertos ao novo, por exemplo, man-
tinham em dupla a curiosidade que os levava a percorrer
inúmeras trilhas juntos. “Descobrimos que as pessoas vão
ativamente atrás de quem compartilha semelhanças com
elas, uma procura que é facilitada pelo fato de, não raro, es-
tarem inseridos no mesmo contexto social”, disse a VEJA o
americano Jared Balbona, um dos autores do estudo.
Um mergulho às raízes da psicanálise mostra que o pri-
meiríssimo exemplo de afeto e amor vem de casa e se re-
flete em graus distintos ao longo da existência. “A forma
como a criança é cuidada e a dinâmica dos elos estabeleci-
dos pelos pais ficam marcados no inconsciente, sem que
ele perceba, e influencia suas escolhas amorosas na idade
adulta”, afirma a doutora em psicanálise Ana Suy, da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com o
próprio Sigmund Freud (1856-1939), que fincou os pilares
da teoria, o amor contém uma camada de narcisismo, uma
vez que os enamorados sempre veem um pouco de si mes-
mos em seus pares. “Não escolhemos os outros ao acaso,
mas encontramos aqueles que já existem em nosso incons-
ciente”, escreveu o pai da psicanálise.

4 | 10
O estudo americano ati-
ça um debate que, como
outros que mexem com a
condição humana, revela

LIBRARY OF CONGRESS/CORBIS/GETTY IMAGES


variadas nuances. Ele sus-
tenta que semelhanças, so-
bretudo no campo dos va-
lores — visão de família,
ética de trabalho, relação
com dinheiro —, ajudam a
firmar laços sólidos. Mas as “Não escolhemos
inevitáveis diferenças que outros ao acaso.
se pronunciam no dia a dia
também contêm uma rique-
Encontramos
za que engrandece o conví- aqueles que já
vio e são, portanto, desejá- existem em nosso
veis. “Ser igual em tudo po-
de quebrar o encanto”, re- inconsciente.”
sume Ana Suy. Existe, no Sigmund Freud (1856-1939)
entanto, um limite para o
fosso que às vezes separa um casal. “Conflitos são natu-
rais, porém, quando as diferenças são tantas e é preciso ne-
gociar sobre absolutamente tudo, a situação acaba se tor-
nando insustentável”, lembra a psicóloga Marta Souza, te-
rapeuta de casais. Os estudantes de jornalismo Kezya Pai-
va e João Pedro Sabadini (ambos de 22, começando aí as
similaridades) se conheceram na faculdade e contam que

5 | 10
ARQUIVO PESSOAL

TECLA SEMELHANTE
Os estudantes Kezya Paiva e João Pedro Sabadini,
de 22 anos, têm visão de mundo parecida, mas, de vez
em quando, sai briga. “São discordâncias mais
cotidianas, sobre as quais conversamos bem”, diz Kezia

6 | 10
tiveram uma criação parecida, no interior, o que acabou
por aproximá-los. “Nossas origens ajudam a explicar nossa
forma de pensar em várias áreas”, avalia João Pedro.
A neurociência também se deteve sobre a lógica da
atração humana, examinando o que se passa no cérebro
quando dá o match, aquele clique que une duas pessoas.
Já é bem sabido que a conexão não é produto de uma quí-
mica aleatória: a efervescência observada na mente é fru-
to da identificação de qualidades mapeadas no outro que
despertam sensação de familiaridade. A paixão, o amor
— esses são sentimentos que logo põem em marcha os
neurônios que atuam no chamado sistema de recompen-
sa, regulado principalmente pela dopamina, que propor-
ciona prazer. “Quando esbarramos com alguém que apre-
senta muito em comum conosco, os disparos neste siste-
ma são ainda mais intensos”, esclarece o neurologista Ri-
cardo Afonso, diretor do Instituto do Cérebro de Brasília.
Uma pesquisa realizada pela Universidade de Boston
rastreou um mecanismo adicional no elétrico circuito dos
encontros. “Ao estar frente a frente com um indivíduo que
dê sinais de cultivar gostos parecidos, a tendência é logo
achar que ele compartilha uma visão de mundo igual à
sua, tomando a parte pelo todo”, alerta o psicólogo Char-
les Chu, autor da investigação, que serve de ponderação:
só mesmo o convívio vai indicar se o par, na alegria ou na
aridez do cotidiano, nutre mesmo tantas afinidades essen-
ciais à longevidade da parceria.

7 | 10
MATTHIAS RITZMANN/GETTY IMAGES
QUESTÃO DE SAÚDE Solidão:
segundo a OMS, uma “ameaça urgente”

SÓ, E BEM ACOMPANHADO


Se você se sente solitário, não está sozinho. Este é um mal que vem
acometendo a civilização em escala planetária — de acordo com uma
recente pesquisa do Instituto Meta Gallup, que investigou 142 países,
um de cada quatro adultos revela solidão em graus de moderado a
elevado. O sinal de alerta acaba de ser aceso pela Organização Mun-
dial da Saúde (OMS), que classificou o problema como prioridade de
saúde global e anunciou a criação de uma comissão com o objetivo de
travar um duelo contra esta “ameaça urgente” que se apresenta na
forma de “epidemia”. A ideia é traçar estratégias para ajudar os indiví-
duos a aprofundarem os laços sociais e partirem rumo a novas cone-
xões, algo que a roda da sociedade moderna — acelerada e atada ao
universo das redes — compromete em alto grau. “Diante das conse-
quências sociais e à saúde provocadas pela solidão, temos a obriga-
ção de investir com o mesmo vigor em seu combate que dedicamos

8 | 10
ao uso de tabaco, à obesidade e à dependência ligada a vícios varia-
dos”, enfatiza o médico Vivek Murthy, integrante da comissão da OMS
e porta-voz do governo americano para assuntos de saúde.
A ciência já se encarregou de mapear os males provocados pela
sensação de isolamento, quando se olha em volta sem encontrar um
ouvido com quem compartilhar os altos e baixos da existência. O soli-
tário, segundo estudos, tem maior propensão a registrar disfunções
no sistema imunológico e cardiovasculares, como hipertensão, e seu
risco de acidente vascular cerebral sobe 30%. No terreno dos hábi-
tos, quem se vê só tende a alimentar uma rotina menos saudável, com
índices de consumo de álcool e sedentarismo acima da média. Uma
pesquisa da própria OMS, que pesou o quanto todos esses fatores
prejudicam o bem-estar, chegou à conclusão preocupante: os malefí-
cios da solidão correspondem ao consumo diário de quinze cigarros.
Existe um termômetro que ajuda a dar a medida da solidão, mesmo
sendo tão subjetiva. “Ela pode ser entendida de forma simples, como a
diferença entre o número e a qualidade dos relacionamentos que al-
guém almeja e os que realmente tem”, explica a psicóloga Olivia Remes,
especialista em saúde mental da Universidade de Cambridge, na Ingla-
terra. O ponto central não é exibir uma rede de 1 000 amigos nem tam-
pouco estar envolvido em um relacionamento de pouca troca e signifi-
cado. “Há muita gente por aí sozinha no meio da multidão”, resume. Vale
ainda um lembrete do psicanalista francês Jacques Lacan (1906-1981):
a trilha antissolidão não passa necessariamente pelo elo com o mundo
exterior, mas pela busca do que desperta “o imaginário e o simbólico”,
encontrando interesses genuínos e renovadores do espírito. É quando
a pessoa está sozinha, sim, mas muito bem acompanhada.

9 | 10
Muitas vezes, hobbies e hábitos que satisfazem a am-
bos são descobertos e alimentados na convivência, como
ocorreu com o casal de farmacêuticos Cleide e Paulo Frei-
tas, 55 e 60 anos, respectivamente, já com três décadas de
estrada. De cara, tiveram diante de si pelo menos um indí-
cio de que algo os unia: devoradores de livros, ambos liam
Anna Kariênina, de Tolstói, num retiro de Carnaval.
“A conexão foi instantânea”, diz Cleide, que, com o mari-
do, sedimentou novos gostos com o tempo. Evidentemen-
te que o mundo dos afetos não é regido por fórmulas ma-
temáticas e nele cabe de tudo, inclusive a atração dos
opostos. O que importa, lembram os especialistas, é que a
relação se desenrole sobre bases saudáveis, em que a soli-
dão — um mal da civilização moderna que a Organização
Mundial da Saúde acaba de classificar como epidemia
(leia no quadro) — saia verdadeiramente de cena. ƒ

10 | 10
GERAL TURISMO

ÚLTIMA CHAMADA
Com o risco de paisagens paradisíacas sumirem do mapa
devido ao aquecimento global, movimenta-se um mercado
de viagens justamente para destinos ameaçados
DIEGO ALEJANDRO

BARREIRA DE CORAIS Recife na Austrália: beleza natural


está a caminho da extinção

BRANDI MUELLER/GETTY IMAGES

1|6
QUEM BATER OS OLHOS no anúncio poderá pensar que
não passa de marketing: “Não perca a chance.” E, ao lado da
promoção, imagens deslumbrantes de lugares como a Gran-
de Barreira de Corais da Austrália, do Monte Kilimanjaro, na
Tanzânia, ou das Maldivas. Mas a publicidade não mente: de
fato, alguns destinos têm os dias contados. E, se as mudanças
climáticas seguirem as previsões, a maioria das pessoas não
terá a sorte de desfrutá-los nas férias. Pois o mercado, claro,
captou quão atraentes esses lugares têm se tornado, e empre-
sas já apostam no que chamam de turismo de última chance,
nicho em ascensão que envolve visitar ambientes ameaçados
de extinção. A demanda está em alta e traz um dilema: se
soubesse que o destino dos seus sonhos estivesse prestes a
desaparecer, compraria logo uma passagem ou evitaria o lo-
cal na esperança de ajudar a preservá-lo?
Dilemas à parte, há uma onda de viajantes querendo ter
experiências únicas e raras, próximas da escassez. Com o
aquecimento global, haverá menos paraísos naturais em
praias, montanhas e outras paragens. O caso da Grande
Barreira de Corais, que cobre a costa nordeste da Austrá-
lia, talvez seja o mais sintomático. Apesar de estar mais
vulnerável e correr o risco de colapso devido ao aumento
da temperatura das águas, um estudo descobriu que quase
70% dos turistas já a visitam motivados pelo anseio de “ver
o recife antes que acabe”. Porém, eis o paradoxo da ten-
dência, o avanço do turismo marinho, que fomenta 64 000
empregos e contribui com 6,4 milhões de dólares por ano

2|6
MARCO TACCA/GETTY IMAGES

VENEZA Leis e taxas para controlar turismo: do contrário,


cidade viverá alagada

para a economia local, resulta em mais poluição, intensifi-


cando a acidez das águas e a morte dos corais.
Cenário semelhante é o das geleiras antárticas, que cada
vez mais se dissolvem e inundam os oceanos. Espera-se um
crescimento de 40% nas visitas após o hiato da pandemia.
Derretendo também estão os Alpes europeus e o Monte Ki-
limanjaro, na África, que se encontram cada vez mais abar-
rotados de turistas — e das pegadas de carbono que eles dei-

3|6
N. ECONOMOU/NURPHOTO/GETTY IMAGES

MALDIVAS Férias dos sonhos: destino no Pacífico está na


lista de locais em risco

xam pelo caminho. No arquipélago de Galápagos, ao largo


do Equador, um aumento de 92% no número de viajantes e
o desenvolvimento hoteleiro levaram a Unesco a reconhecer
o turismo como ameaça. E até mesmo uma atração como
Veneza, na Itália, já implementou leis e taxas a fim de con-
trolar o entra e sai de gente e preservar o patrimônio. Com
as transformações ambientais, a cidade corre o risco de es-
tar debaixo d’água até 2100.

4|6
FERRERO & LABAT/BIOSPHOTO/AFP

MONTE KILIMANJARO Atração na Tanzânia:


neve com dias contados

A preocupação a rondar empresas de turismo e conserva-


cionistas é que as viagens de avião, ônibus ou navio colaboram
para o efeito estufa. Não só. “Muitos destinos turísticos já nas-
cem condenados”, afirma Reinaldo de Sá Teles, expert em tu-
rismo comunitário e professor da USP, fazendo referência à pro-
pagação de quiosques, resorts e outras estruturas que tantas ve-
zes prejudicam os bens naturais e culturais. “É preciso criar um
turismo realmente sustentável.” Vontade existe. Segundo pes-

5|6
JOHAN ORDONEZ/AFP

ANTÁRTICA Visitas em alta: para o


desespero dos biólogos

quisa da plataforma Booking com 33 000 viajantes de 35 paí-


ses, 66% dos brasileiros ouvidos buscam adotar práticas mais
positivas ao ambiente, 90% querem viajar de forma mais cons-
ciente e respeitosa ao planeta e 55% topam pagar valores extras
por opções mais ecológicas. “O planejamento das férias e o de-
sejo de explorar novos lugares estão se adaptando às questões
climáticas”, afirma Nelson Benavides, gerente da Booking no
país. Nesse sentido, é melhor todo mundo se apressar. ƒ

6|6
GERAL ESPORTE

ELE É O MÁXIMO
Na espetacular temporada de 2023, Max Verstappen
aumentou sua pilha de recordes na Fórmula 1, com uma
forma de competir que não dá espaço para ninguém
ALESSANDRO GIANNINI
BRYN LENNON/FORMULA 1/GETTY IMAGES

IMBATÍVEL O piloto da Red Bull


comemora: tricampeão aos 26 anos

1|7
É COMUM — no esporte, sem
dúvida, mas também em outras
atividades — que filhos sigam a
carreira de pais bem-sucedidos.
É incomum, contudo, que façam
sucesso. O caso do piloto holan-
dês Max Verstappen, da escude-

CLIVE MASON/FORMULA 1/GETTY IMAGES


ria Red Bull, é particular, como
se ele tentasse corrigir as curvas
do destino. O pai do tricampeão
de Fórmula 1, Jos, foi corredor
mediano, e olhe lá. Entre 1994 e TRADIÇÃO
2003, disputou 107 provas, com Kelly, a namorada,
apenas dois pódios, e nunca ven- filha de Nelson
ceu. A mãe, a belga Sophie-Ma- Piquet: em família
rie Kumpen, bicampeã de kart,
abandonou as pistas um ano antes do nascimento de seu
primeiro filho. Aos 26 anos, o “holandês voador”, como foi
apelidado, escreve um capítulo diferente — e espetacular.
Dos 21 Grandes Prêmios disputados em 2023 antes da
derradeira competição, em Abu Dhabi, no domingo, 26, ele
venceu dezoito — o equivalente a 82% de sucesso, à frente
de outros mitos do volante (veja no quadro abaixo). Até a
penúltima disputa, em Las Vegas, tinha somado 549 pontos,
ante 273 do companheiro de equipe, Sergio Pérez, e os 232
de seu principal rival, Lewis Hamilton, da Mercedes. É dife-
rença imensa, resposta natural para o menino que aos 4

2|7
ALTA OCTANAGEM
Os números do holandês voador, até a penúltima
etapa do campeonato de 2023

VITÓRIAS NUMA ÚNICA TEMPORADA

Max Verstappen

(2023)

18
82% DAS PROVAS

2º Alberto Ascari
(1952)

6
75% DAS PROVAS

Michael Schumacher

(2004)

13
72% DAS PROVAS

3|7
VITÓRIAS
Lewis Hamilton

103 EM 331 CORRIDAS


Michael Schumacher

91 EM 308 CORRIDAS
Sebastian Vettel

53 EM 300 CORRIDAS
Max Verstappen

53 EM 184 CORRIDAS

4|7
PILOTO MAIS JOVEM
A INICIAR UMA CORRIDA

Max Verstappen

GP DA AUSTRÁLIA
(2015)

17 ANOS E 166 DIAS

2º Lance Stroll
GP DA AUSTRÁLIA
(2017)

18 ANOS E 148 DIAS

Lando Norris

GP DA AUSTRÁLIA
(2019)

19 ANOS E 124 DIAS

5|7
anos subiu em um kart e não parou mais. Ele tem talento e
determinação de sobra, com iguais doses de arrogância e
autossuficiência, e em muitos aspectos lembra o perfeccio-
nismo lendário de Ayrton Senna, que não aceitava errar, ain-
da que pouco errasse. “Verstappen é diferente”, disse a VE-
JA Felipe Giaffone, piloto brasileiro da Fórmula Truck e co-
mentarista da Band. Claro que o acerto dos bólidos faz dife-
rença na F1, e um carro ruim estraga tudo, mas convém
lembrar que mesmo o genial Hamilton comeu poeira. To-
me-se, então, como régua, o parceiro da Red Bull, o mexica-
no Sergio Pérez, de 33 anos. Não há comparação possível.
Mas, afinal, o que faz de Verstappen um personagem
tão especial? Não há uma única resposta. Ele não dá bola
para o festival de caras e bocas, festas e rapapés do circo
da velocidade. Não hesitou, portanto, em criticar a escolha
de um circuito em Las Vegas. “Na minha infância, o que
importava era a emoção do esporte”, disse. “Foi por isso
que me apaixonei, e não pelo espetáculo.” Na condução
lembra, de algum modo, o estilo agressivo de Senna. A en-
trada de curva muito rápida e precisa pode ser notada até
por quem não tem muita intimidade com o ronco dos mo-
tores. É postura cultivada por anos de trabalho — o holan-
dês foi o mais jovem piloto a iniciar uma prova, em 2015,
no Grande Prêmio da Austrália, então pela Toro Rosso,
uma espécie de Red Bull B. Um ano depois, em Barcelona,
se converteu no mais jovem vencedor, aos 18 anos e 228
dias, já pela Red Bull.

6|7
P. RONDEAU/ALLSPORT/GETTY IMAGES

PERFECCIONISTA Senna: irritação


quando errava, embora quase nunca

Acompanhá-los nas próximas temporadas será exercício


fascinante, o crescimento de uma figura que adora desafios.
Pouco importa que o ambiente lhe seja adverso. Tanto no ano
passado quanto agora, em 2023, ele chegou ao GP de São Pau-
lo campeão. Foi vaiado pela torcida nas arquibancadas, que há
anos adotou Hamilton como ídolo. “Faz parte”, disse Verstap-
pen, mais de uma vez, confrontado com as agressões verbais.
Tentou se aproximar, apoiado no fato de ter uma namorada
brasileira, Kelly, filha de Nelson Piquet. Sabe algumas palavras
de português, diz-se torcedor do Vasco da Gama, mas nem as-
sim caiu nas graças da turma de cá. Um aviso: quem torce o
nariz para Verstappen deve ir se acostumando. Ele tem longa
supremacia pela frente. Ao menos até 2026, quando as mu-
danças estruturais dos carros mudarem a história. Por ora, não
há indício algum de que vá frear o imparável ímpeto. ƒ

7|7
GERAL COMPORTAMENTO

ENTRANDO NUMA FRIA


Uma nova mania põe celebridades em banheiras geladas,
ansiosas por melhorar o ânimo de corpo e mente — pode
funcionar, mas convém acompanhamento médico
HENRIQUE BARBI
INSTAGRAM @LADYGAGA

NO CAMARIM A cantora Lady Gaga não perde a oportunidade


de estar num ambiente glacial: faltam estudos concretos

1|5
NUNCA FOI UMA FRIA. Na Grécia Antiga, imergir em
bacias de gelo era encarado como fonte de relaxamento e
socialização, palco de muita conversa entre uma tina e ou-
tra, em evidente tempo sem redes sociais. Depois, o médico
e filósofo Cláudio Galeno (129-216) empregou a água glacial
como forma de aliviar a febre dos gladiadores romanos. Há
evidências de possíveis efeitos terapêuticos para a fisiologia
humana que remontam a 3500 a.C., todas elas contidas no
chamado Papiro Edwin Smith, batizado com o nome do
egiptólogo que o descobriu, no fim do século XIX. Trata-se
de um dos mais antigos tratados da medicina. A ideia, con-
tudo, ficou congelada por muito tempo. Até que, na década
de 1960, a confirmação científica de que as baixas tempera-
turas aceleram a recuperação física, reduzindo a inflama-
ção, serviram de incentivo para que a prática fosse adotada
por esportistas de alto rendimento. Virou coisa séria.
Mas como tudo que é sério faz caminho de volta, no ace-
lerado mundo de hoje, ampliado pela internet, brotou recen-
temente uma nova onda: a de famosos ou quase famosos ba-
nhados de gelo. Em fotos e vídeos compartilhados maciça-
mente propagam-se as supostas vantagens da ideia. A ten-
dência é tão popular que a hashtag #coldplunge (mergulho
frio, em tradução livre) já conta com mais de 2 bilhões de
visualizações no TikTok. As estrelas mais assíduas atribuem
à modalidade — tal qual gregos e troianos da antiguidade —
bem-estar para mente e corpo. Sim, é real, mas é bom estar
atento a estudos que confirmem os bons resultados. Não há

2|5
DEF JAM

CORAGEM O estilo de Justin Bieber, incomodado: cuecão


branco nas geleiras

nada ainda, porém, do ponto de vista científico, que assegu-


re sobejamente a ilação direta entre gelo e ânimo. O casal
Justin e Hailey Bieber puxa a fila dos que dizem tirar provei-
tos emocionais da prática. A modelo, neta do pianista brasi-
leiro Eumir Deodato, garante que o rito a ajudou com a an-
siedade e o humor. Já o astro pop surpreendeu a organiza-
ção do Rock in Rio no ano passado com uma exigência inu-
sitada: 80 quilos de gelo em uma banheira só dele nos cama-
rins do evento. Lady Gaga e Harry Styles também entraram
na onda. Ela diz sofrer de fibromialgia — doença crônica
que provoca dor e fraqueza generalizada dos músculos. Ma-
donna, sempre Madonna, que parece estar na vanguarda de
tudo, é outra que diz banhar-se sem medo de sair tremendo.

3|5
Mas, afinal, fun-
ciona? Do ponto de
vista muscular, tudo
indica que sim. Rea-
firme-se, como sabe
a turma do esporte,
a capacidade regene-

KEVIN MAZUR/WIREIMAGE/GETTY IMAGES


rativa. “O contato
com temperaturas
de 10 a 15 graus, por
um tempo máximo
de dez minutos, é INFLUENCIADORA Madonna,
responsável por ati- sempre ela: sem receio de banhar-se
var de forma rápida
e eficaz a parte do cérebro responsável pelo relaxamento”,
diz o fisiologista do time principal do Botafogo, Dailson
Paulucio. Mergulhar em águas ainda mais geladas é um
processo desafiador e gradativo. Nos primeiros instantes,
o organismo entra em “modo de sobrevivência”, o que au-
menta a circulação de sangue e desencadeia a produção de
hormônios, como a noradrenalina e o cortisol. Estudos
confirmam o reforço da imunidade e aceleração da ativi-
dade metabólica, que pode ser útil em casos de depressão.
Mas não há mágica. Um vasto estudo conduzido por
pesquisadores da Universidade Ártica da Noruega averi-
guou mais de 100 artigos. A conclusão: funciona, de algum
modo, embora exista longa estrada de investigação para

4|5
não tornar o recurso uma brincadeira irresponsável. “Nin-
guém deveria fazer isso sem um check-up médico preventi-
vo”, diz Mike Tipton, professor de fisiologia humana da
Universidade de Portsmouth, e com mais de quatro décadas
dedicadas a entender os mecanismos de sobrevivência no
frio. A restrição maior é para os cardíacos, pois o aumento
de uma proteína que deixa o indivíduo em estado de alerta
pode levar a ataques do coração.
Tudo somado, entre prós e contras, o calorão deste no-
vembro brasileiro parece alimentar o sucesso do mergulho,
como se fosse um oásis. A atriz Rayssa Bratillieri, de 26
anos, decidiu ler a respeito de uma técnica popularizada pe-
lo atleta radical Wim Hof — que une trabalho respiratório
com exposição ao frio, e leva o nome de seu criador. Não de-
morou muito para ela e o namorado embarcarem na aventu-
ra Hof. O primeiro passo foi comprar um freezer, daqueles
horizontais, que logo integrou a decoração da sala e o coti-
diano do casal. “As imersões quase diárias me ajudaram a
ter mais disposição para as gravações e a controlar a minha
mente”, diz Rayssa, no ar em Elas por Elas, da TV Globo.
“Me tiram da zona de conforto.” Sair da zona de conforto,
brrrrr...., é uma certeza — mas sabe-se lá para que outro
campo encaminha, porque há risco de choques desnecessá-
rios. O cuidado é vital. Hipócrates (460 a.C.-377 a.C.), o pai
da medicina, desde sempre louvou a relevância da água co-
mo inesgotável fonte de cura. Tê-la gelada é outra conversa,
e convém zelo para não entrar numa fria. ƒ

5|5
GERAL MODA

O MUNDO SE
RENDEU A ELA
Após levar a renda brasileira do sertão para o mundo e
conquistar estrelas como Sofía Vergara e Beyoncé,
Martha Medeiros tem sua trajetória contada em livro
SIMONE BLANES

FADA-MADRINHA Sofía Vergara:


a atriz abriu portas em Hollywood

ALEXANDRE GODINHO

1|6
A ATRIZ Sofía Vergara, colombiana radicada nos Esta-
dos Unidos, não poderia ser mais incisiva: “Martha Me-
deiros entrou na minha vida sorrindo como uma das mu-
lheres mais criativas e fascinantes que conheço. Ela é uma
artista revolucionária”. O comentário faz parte do prefá-
cio da biografia Do Sertão a Hollywood (Matrix), escrita
pela jornalista Eliane Trindade. É o relato de vida da ca-
rismática e bem-sucedida estilista nascida em Alagoas.
Martha é um caso vencedor de empreendedorismo, trans-
formação social e conquista do mercado fashion interna-
cional. Sim, ao atravessarem fronteiras, as criações da es-
tilista fizeram o mundo se render à renda brasileira —
com o perdão do trocadilho.
Desde o início da carreira, a alagoana valoriza o traba-
lho artesanal. Uma arte que, ela faz questão de frisar, não
é só dela, e sim de todas as rendeiras do sertão nordestino.
“O que eu fiz foi colocar a palavra ‘moda’ na renda, que
antes era vista como aquela coisa de tia-avó solteirona”,
disse a VEJA. “Nós a devolvemos ao lugar de onde nunca
devia ter saído, o da nobreza.” A tradição, repaginada pela
estilista, deitou raízes cedo em sua trajetória. Martha co-
meçou vendendo roupas de boneca em uma barraca de
feira e, desenvolvendo novos modelitos para gente como a
gente, agregou valor ao produto, abriu um amplo mercado
consumidor e impulsionou um modelo de negócios que
resgatou e valorizou as rendeiras. “Era vergonha usar
uma roupa de renda no Nordeste, mas agora elas estão or-

2|6
ARQUIVO PESSOAL

GAROTO-PROPAGANDA Com o papa:


foto surpresa ganhou as redes

gulhosas do que fazem”, diz a estilista, que chegou a ter


mais de 400 desses profissionais atrelados à sua marca.
De renda em renda, inclusive financeira, Martha trans-
formou a vida dessas mulheres, que, assim como ela, fo-
ram feirantes e sacoleiras. Persistente, chegou a trabalhar
numa agência do Banco do Brasil, onde improvisou uma
lojinha no banheiro, antes de tentar a sorte em São Paulo.
“Meu sonho era vestir a Luciana Gimenez”, revela. Na dé-
cada de 1990, a moda fervilhava por novidades, mas Mar-
tha não emplacou suas ideias de cara. Munida de algumas
peças, procurou uma badalada assessoria de imprensa, só
que foi dispensada com o conselho de voltar para sua ter-
ra com “suas roupas coloridas de feira”. Fez o contrário.
Apostou em sua lábia de negociante, sem nunca perder a

3|6
fé nas conquistas. E foi assim
que se apresentou a fornece-
dores, parceiros... e artistas.
Funcionou. Martha abriu
sua primeira loja na capital
paulista e arrebanhou clien-
tes até vestir famosas como
Xuxa, Ivete Sangalo e a pró-
pria Luciana Gimenez, a qui-
mera enfim alcançada.“Eu
falava que ia com fogo no ra-
bo, mas a minha mãe disse
que não era chique”, ri. “En-
tão, digo que vou com brilho
nos olhos e consigo tudo o
que quero.” O pulo do gato,
como convém aos novos
tempos, veio pelo Instagram,
em 2015, quando uma moça
INSTAGRAM @MARTHAMEDEIROSREAL

falando portunhol entrou em


contato com sua loja. Era
ninguém menos que Sofía
Vergara. A atriz queria que a
estilista fosse a Los Angeles PROJEÇÃO
fazer seu vestido de noiva. Beyoncé: roupa
Depois de muita negociação, rendada em videoclipe
a brasileira embarcou, levan- alavancou estilista

4|6
do duas assistentes. Hospedou-se na
suíte do hotel Beverly Wilshire, hotel
onde foi gravado o filme Uma Linda
Mulher (outro sonho realizado), e ba-
teu asas para voar. Diz ter viajado
com seu “olhar de fita métrica” e criou
o modelo no corpo da estrela.
Estava aberta a porta de Holly-
wood. Com a ajuda de Sofía, com quem
firmou laços de amizade, abriu uma loja
em Los Angeles, atraindo nomes como
Jessica Alba e Elizabeth Hurley, além
de Beyoncé, que se entregou às rendas
e projetou mundialmente o tecido em
seus videoclipes. O êxito pode ser medi-
do em cifras: graças a Martha Medeiros
e outras grifes nacionais, a moda brasi-
leira vem ampliando sua participação no
exterior. Em 2022, o setor de confec-
ções exportou 1,14 bilhão de reais,
muito acima do esperado. “Tem o
dedo da Sofía aí”, diz a estilista.

VITÓRIA
Luciana Gimenez:
sonho alcançado ao
vestir a apresentadora

FERNANDA CALFAT/GETTY IMAGES

5|6
Sim, tem. Mas o interesse é resultado de produtos de
extrema qualidade e estratégias de marketing inteligentes.
Uma das mais inusitadas envolveu o papa Francisco. Ao
saber da visita do pontífice ao Brasil, em 2013, Martha deu
um jeito de assinar a decoração de sua residência no Rio.
Não contente, conseguiu uma foto com ele, com uma má-
quina fotográfica que tinha escondido em uma marmita e
jogou nas mãos da freira que os acompanhava. “Essas coi-
sas só acontecem comigo porque Deus é meu sócio”, brin-
ca. “A Martha consegue muita coisa pelo jeito dela, mas
também tem um trabalho muito consciente”, ecoa Eliane
Trindade, autora da biografia. E seu novo projeto está em
curso: transformar a renda em obra de arte, com direito a
uma escola no sertão. “Só sossego quando ela estiver nas
melhores galerias do mundo”, diz. Quem duvida? ƒ

6|6
PRIMEIRA PESSOA

FERNANDO PINHEIRO/TOK&STOK

1|4
ESTOU DE VOLTA
Fundadora da rede de lojas Tok&Stok, Ghislaine Dubrule,
73 anos, diz por que retomou o comando da empresa

EM 2012, eu e meu marido vendemos 60% de nossa parti-


cipação na Tok&Stok, empresa que criamos em 1978 com
muito suor. Na ocasião, insisti para permanecer à frente do
dia a dia dos negócios e participar da transição. A ideia era
que esse processo durasse um ano, mas acabou levando cin-
co, exatamente a quantidade de filhos que tenho — conside-
ro a Tok&Stok o meu sexto filho.
Durante esse período, nunca entregamos resultado negati-
vo. A operação funcionava bem, mas em 2017 o fundo que ha-
via comprado a nossa participação quis abrir o capital da em-
presa e achou que a minha saída valorizaria as ações. O obje-
tivo era contratar um profissional de mercado, com experiên-
cia em IPO e negociação com bancos. Para mim, foi muito di-
fícil. Quase caí em depressão. Eu gostava da companhia, de
ver o seu crescimento e de estar ao lado de minha equipe.

2|4
Eu soube que as pessoas com quem trabalhava sentiram
minha saída. Foi muito difícil não estar mais com elas. Nes-
se período, nossa participação se limitava às reuniões de
conselho, mas sem voz ativa. A carta branca para os novos
profissionais — foram cinco gestores até o meu retorno e to-
dos eles tinham perfis diferentes — era absoluta. Não havia
muita coisa que eu pudesse fazer.
Mas agora estou de volta, após a Tok&Stok ter enfrenta-
do tempos difíceis. Eu me ofereci para retornar e os acionis-
tas concordaram. É difícil explicar o que me motivou. São
muitos fatores. Um deles é que eu precisava colocar a em-
presa nos trilhos. Tem a parte emocional, certamente. Todo
mundo falava que eu estava maluca de voltar, mas acho que
tem também um pouco de instinto materno. No fundo, até
demorei para fazer isso.
O que houve com a Tok&Stok é que foi feito um plano de
negócios muito agressivo, com alta alavancagem e endivi-
damento, fatores que levaram a uma situação de grande fra-
gilidade. Num período de pujança econômica até poderia
dar certo, mas o Brasil é oscilante. A economia desacelerou,
os juros dispararam e o pós-pandemia não representou a
volta do consumo que se esperava.
Tudo isso machucou a empresa. A ousadia às vezes é
boa, mas nem sempre dá retorno. Talvez até por isso pas-
saram tantos gestores pela companhia, que se deram con-
ta de que os resultados planejados não seriam alcançados
tão rapidamente. Eu tentei alertar sobre os riscos — afi-

3|4
nal, eu e meu marido tocamos a companhia por quarenta
anos e enfrentamos muitas crises no Brasil —, mas acho
que não fui ouvida.
Como todos os concorrentes, os controladores preferi-
ram ir pelo caminho da digitalização e da tecnologia, mas
esse mercado é uma verdadeira guerra. Tudo virou uma pla-
nilha Excel impessoal e asséptica. Afinal, é exatamente o
que o mercado valoriza: crescimento das vendas e não re-
sultados sustentáveis. Garanto a você que a Tok&Stok não é
isso. Ela entrou no mercado brasileiro revolucionando o se-
tor com design acessível, lúdico e atraente.
O que pretendo fazer? Meu trabalho é resgatar a imagem
de uma marca que é rebelde e colorida, que não segue forço-
samente os padrões definidos pelo mercado. O digital tem
seu espaço, mas o físico também tem. Não vamos vender
produtos simplesmente por vender. Essa filosofia nos conta-
minou. Somos curadoria, seleção e tendência. Meu sonho,
do ponto de vista de negócios, é fazer um bom trabalho para
que essa empresa volte ao lugar em que ela sempre esteve e
em que não deveria ter deixado de estar. É o que a marca
merece. E sonho então entregá-la um dia para pessoas que
possam dar continuidade a isso. Outro sonho, este mais pes-
soal, é registrar toda essa incrível jornada em um livro. De
preferência, bem colorido. ƒ

Depoimento dado a Pedro Gil

4|4
CULTURA CINEMA

BATALHA
INGLÓRIA
Com cenas épicas e violentas, Napoleão retrata
a controversa figura do imperador francês que,
em nome da pátria, sacrificou milhões de vidas
e abandonou a mulher que amava
RAQUEL CARNEIRO

AVANTE Phoenix no papel principal: ator inspirado

KEVIN BAKER/APPLE

1|5
A
pós a derrota humilhante na Batalha de Water-
loo, em 1815, Napoleão Bonaparte foi condenado
ao exílio em Santa Helena, uma pequena e remo-
ta ilha britânica no meio do Atlântico, entre An-
gola e o Nordeste brasileiro. Lá o ex-imperador
francês morreu vítima de um câncer, em 1821, aos 51 anos,
e suas últimas palavras foram, em sequência: “França,
exército, comandante, Josephine”. A lista elenca as paixões
que conduziram a vida do controverso general, da devoção
à pátria até a única mulher que amou. Lida no sentido lite-
ral, por ordem de importância, a relação deixa claro o
combustível do ex-soldado, que saiu do nada e chegou ao
topo do mundo: Napoleão era perdidamente apaixonado
pelo poder. O custo da ambição foi alto tanto para ele
quanto para seus objetos de desejo: no caminho, sacrificou
colegas de farda em combates inúteis, abandonou Josephi-
ne por “amor à França” e fez do próprio país um pária na
Europa. A jornada de ascensão e queda é retratada com to-
ques de ironia e violência no esperado filme Napoleão
(Napoleon; Reino Unido; 2023), em cartaz nos cinemas,
nova empreitada épica do cineasta inglês Ridley Scott.
Aos 86 anos, o diretor de Alien, o Oitavo Passageiro e
Gladiador se vale da experiência e reputação conquistadas
em quase seis décadas de trabalho para bancar o desafio
hercúleo de traçar a trajetória de uma das figuras mais bio-
grafadas da história. Pesa ainda o fato de que Napoleão
passa longe de ser uma unanimidade — as narrativas so-

2|5
AIDAN MONAGHAN/APPLE

ROMANCE Vanessa Kirby como Josephine:


a esposa que perdeu o valor

bre ele transitam entre os extremos, de herói notável a su-


jeito patético, o qual compensaria com violência sua pe-
quenez (social e de estatura, pois ele media por volta de
1,60 metro). Não à toa, Scott logo foi criticado por historia-
dores, especialmente franceses, que contestam liberdades
poéticas do diretor, como a cena inicial, que coloca errone-
amente Napoleão na execução da rainha Maria Antonieta.
Scott não se intimidou com a saraivada de disparos. “Na-
poleão é fascinante, reverenciado, odiado, amado, mais do
qualquer outro homem, líder ou político da história”, disse
o diretor. “Como eu poderia não fazer esse filme?”

3|5
CORBIS/GETTY IMAGES

APARÊNCIAS Retrato do imperador: heroico e vilanesco

Houve quem não fez: Stanley Kubrick (1928-1999) pla-


nejou uma cinebiografia sobre o personagem, mas os estú-
dios não toparam bancar os custos — o roteiro da obra
perdida vai se tornar uma minissérie nas mãos de Steven
Spielberg. Scott não teve a mesma dificuldade de Kubrick:
Napoleão custou 200 milhões de dólares — boa parte da
verba advinda da coprodução da Apple Studios, que pro-
meteu lançar uma versão estendida do filme (que já tem
duas horas e 38 minutos) em sua plataforma de streaming.
O interesse renovado na figura histórica reflete os dias de
hoje. Interpretado por um sempre inspirado Joaquin Phoe-
nix, Napoleão ecoa a sociedade polarizada — enquanto o
próprio foi um poço de contradições. Um voraz líder anti-

4|5
monarquia, ele se coroou imperador. Estrategista, conduziu
embates vitoriosos — glória que o fez ainda mais arrogante
e, consequentemente, imprudente: ao menos 3 milhões de
soldados morreram nas guerras promovidas por ele.
Seguindo as últimas palavras de Napoleão, o diretor
menospreza os detalhes políticos que alçaram o general ao
posto de estadista e volta as câmeras para o campo de ba-
talha (onde os 200 milhões de dólares saltam aos olhos) e
para o romance complicado com Josephine de Beauhar-
nais (Vanessa Kirby). Viúva e seis anos mais velha que Na-
poleão, Josephine era nobre até ser vertida em miserável
pela Revolução Francesa. Carismática, bonita e elegante,
conquistou o militar e mais tarde foi coroada imperatriz ao
lado dele. Mesmo apaixonado, Napoleão pediu o divórcio,
já que ela não era mais capaz de lhe dar herdeiros — e a
França dependia, exclusivamente, de sua futura prole. No
filme, ao ler o argumento no texto da separação, Josephine
tenta controlar o riso: afinal, é ridícula a vaidade daquele
homem. Das batalhas que perdeu, a pior foi a luta inglória
contra o próprio ego. ƒ

5|5
CULTURA CINEMA

HERÓIS EM
PERIGO
Após mais de uma década dominando as bilheterias
mundiais, as superproduções da Marvel amargam
arrecadações pífias que refletem o cansaço do público
com a fórmula THIAGO GELLI

DEU RUIM As Marvels: produção


pode virar o maior fiasco do estúdio

MARVEL STUDIOS

1|5
NOS QUADRINHOS, o lema de Carol Danvers, a Capitã
Marvel, é superlativo: “Mais alto, mais longe, mais rápido”.
A heroína chegou aos cinemas em 2019, vivida por Brie
Larson — a produção lotou salas de cinemas no mundo,
acumulando mais de 1,1 bilhão de dólares na venda de in-
gressos. A popularidade da personagem lhe conferiu uma
vaga especial em Vingadores: Ultimato, lançado no mesmo
ano, que se tornou a segunda maior bilheteria da história,
somando 2,7 bilhões de dólares — atrás de Avatar, que os-
tenta 2,9 bilhões. Parecia uma personagem invencível na
luta contra o mal e na capacidade de amealhar cifrões.
Passados quatro anos, no entanto, o cenário mudou um
bocado: dez filmes depois e onze séries de TV no Disney+,
o opulento universo dos estúdios Marvel entrou em queda
livre. O mais recente fracasso envolve justamente a heroí-
na Carol Danvers, uma das estrelas de As Marvels, sequ-
ência do filme de Brie Larson, agora com duas coprotago-
nistas, Iman Vellani (a Ms. Marvel) e Teyonah Parris (Mo-
nica Rambeau). Após duas semanas em cartaz, o longa
não chegou aos 200 milhões de dólares — o montante in-
vestido foi de 220 milhões, e, para ser lucrativa, a produ-
ção deveria passar dos 600 milhões.
Nesse ritmo, As Marvels será o maior fracasso da histó-
ria do estúdio, liderando o triste ranking que já conta com
Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, também deste
ano, e Eternos, de 2021. São sinais claríssimos de um vilão
muito perigoso, o esgotamento da fórmula. Os roteiros

2|5
MARVEL STUDIOS

AUGE Vingadores: Ultimato maior bilheteria


:

da saga soma 2,7 bilhões de dólares

manjados seguem uma lógica-padrão: nela, o protagonista


passa por algum drama (uma crise existencial, por exem-
plo), mas se recupera a tempo de salvar o mundo — claro,
sem esquecer das sequências intermináveis de lutas e efei-
tos especiais. Tudo tão previsível que está ficando chato
até para grandes fãs.
Boa parte desses adeptos encantou-se por esse universo
lendo os quadrinhos da Marvel, que se destacavam justa-
mente pela criatividade. Nos anos 1960, Stan Lee sacudiu
a editora de HQs ao se distanciar do estereótipo do herói
imbatível com a criação do Quarteto Fantástico e, espe-
cialmente, do Homem-Aranha, personagens imperfeitos,
inseguros e moralmente ambíguos.

3|5
ZADE ROSENTHAL/MARVEL STUDIOS
FRAQUEZA
Homem de Ferro
(acima) e Loki:
a fórmula original
se perdeu
MARVEL STUDIOS

4|5
Na primeira fase da transposição das HQs para as telas
de cinema, as produções conseguiram manter esse espírito,
como ficou claro em Homem de Ferro, que marcou em 2008
o início da febre. De lá para cá, a Marvel, sob o guarda-chu-
va da Disney, explodiu, e arrecadou impressionantes 30 bi-
lhões de dólares com 33 filmes. Só que a ambição de expan-
dir mais e mais esse universo logo virou um tiro no pé. O ex-
cesso de lançamentos fez cair até o apelo desse tipo de filme
junto à geração Z: a porcentagem de espectadores entre 18 e
24 anos da atual fase da Marvel foi de 32% para 29%. En-
quanto isso, as séries do Disney+ tentaram inovar, mas de
forma desastrosa: inicialmente, os vilões ganharam o prota-
gonismo, de Wandavision a Loki, duas tramas que começa-
ram ousadas, antes de se render à velharia apocalíptica.
Enquanto os heróis foram caindo na absoluta mesmice,
produções como o arrasa-quarteirão Barbie deixaram evi-
dente a maior fraqueza dos poderosos da Marvel e da rival
DC: sem um roteiro decente, não há Hulk capaz de salvar o
planeta-bilheteria. Vale lembrar que, numa galáxia não mui-
to distante, o aclamado cineasta Martin Scorsese, responsá-
vel por clássicos como Touro Indomável, foi desancado por
acusar o filão heroico de pobreza criativa, dizendo que os
filmes eram só um “parque de diversão”. Ironicamente, o
mais recente longa de Scorsese, Assassinos da Lua das Flo-
res, está empatado em bilheteria com As Marvels. Custou
um pouco menos e é bem melhor do que qualquer coisa da
atual safra de super-abacaxis. ƒ

5|5
CULTURA TELEVISÃO

MISTÉRIO
FILOSÓFICO
Com ares de Agatha Christie na era da inteligência
artificial, a série Assassinato no Fim do Mundo,
do Star+, põe em xeque os excessos de um
mundo ultratecnológico KELLY MIYASHIRO
STAR+

HACKER A detetive Darby Hart (Emma Corrin): sem


respostas em um estranho retiro orquestrado por um bilionário

1|3
FILHA DE UM LEGISTA, Darby Hart (Emma Corrin)
aprendeu desde cedo a ficar confortável perto de um cadá-
ver — e a ouvir do pai, que a criou sozinho, os pormenores
que caracterizam um assassinato. Sua outra atividade favo-
rita também não era lá comum aos adolescentes: Darby
nem tinha atingido a maioridade e já era uma hacker habili-
dosa. Ao unir as duas competências, a jovem começou a in-
vestigar crimes sem solução com a ajuda de outros progra-
madores em foruns on-line. Logo deparou com uma realida-
de que não poderia ser chamada de coincidência: a maior
parte das vítimas eram mulheres. Protagonista da série As-
sassinato no Fim do Mundo, novidade da plataforma Star+,
Darby muda completamente de vida quando descobre um
serial killer. Ao narrar a investigação em um livro, ela sai
do anonimato e vira uma autora famosa, atraindo atenções
diversas, inclusive a de um bilionário excêntrico com pinta
de Elon Musk (vivido por Clive Owen). Convidada a parti-
cipar de um retiro misterioso patrocinado pelo ricaço, e ao
lado de figuras ilustres do ramo da tecnologia, ela vê a via-
gem dos sonhos se tornar um caso de polícia ao testemu-
nhar uma morte suspeita — advento que logo expõe a rela-
tivização do valor da vida humana entre os presentes.
A produção em sete episódios, lançados semanalmente,
às terças, é cria do mesmo casal por trás da peculiar série
de ficção científica The OA, da Netflix, os americanos Zal
Batmanglij e Brit Marling (ela também atriz, intérprete da
esposa do bilionário). A dupla bebe do cânone literário dos

2|3
britânicos Agatha Christie e de Arthur Conan Doyle, cria-
dor do detetive Sherlock Holmes, para mergulhar de for-
ma filosófica na complexa dualidade que separa ricos de
pobres, homens de mulheres e, mais assustadoramente,
humanos da tecnologia. Tal fórmula vem sendo bem ex-
plorada também pelo autor e cineasta inglês Alex Garland,
nome por trás do filme Ex_Machina: Instinto Artificial
(2014) e da série Devs (2020), ambas envolvendo megalo-
maníacos do Vale do Silício e mortes sem a devida Justiça
em ambientes isolados — um paralelo da falta de legisla-
ção adequada sobre as empresas do ramo ou de autorida-
des que limitem as ações dessa turma.
No caso de Assassinato no Fim do Mundo, o enredo ga-
nha um tom paranoico-claustrofóbico. Presos em um hotel
ultratecnológico, no qual cada quarto conta com o olhar de
uma inteligência artificial, os convidados vão de mestres
da robótica e da criptografia até uma astronauta que pes-
quisa a colonização da lua (vivida pela brasileira Alice Bra-
ga). O grupo mira uma solução inovadora para o aqueci-
mento global. Com o aparente suicídio de Bill (Harris Dic-
kinson), um artista plástico e ex-parceiro de Darby, a arro-
gância do grupo se impõe: afinal, o experimento não pode
ser cancelado com a perda de uma só vida — mesmo se
houver um assassino entre eles. A postura carrega uma
ironia: habitantes do mesmo planeta em crise climática, os
que se veem acima do bem e do mal ignoram que suas vi-
das também estão em risco. ƒ

3|3
O CRUEL TESTE
DE POPULARIDADE
Hoje, é melhor usar uma roupa
espalhafatosa do que ser anônimo

ENTRO EM uma feira de livros bastante concorrida.


Lamentavelmente, não sou uma estrela. Nem um padre
que faz lindos textos de autoajuda ou palestras que le-
vam os corações aos céus. Também não discuto novos
ângulos da política, que ensinam a olhar o mundo sob
outra ótica, nem falo sobre nenhum assunto da moda,
nem sobre a cor dos vestidos, o tamanho dos decotes e,
sinceramente, não me sinto confortável para debater pu-
blicamente as questões de gênero que movem o mundo
de hoje. Comigo é assim: cada um que curta o seu e nin-
guém tem nada com isso.
Por isso, levei um susto ao ver um grupo bem grande
correr na minha direção de celulares erguidos, cantando
uma música da moda. Mães, pais e filhos, deduzi pela fai-
xa etária. Qual seria a conexão comigo? Na verdade, eu
não era o alvo. Estava ao lado de outros autores convida-
dos e as atenções se dirigiam a uma cantora que, ouvi di-
zer, estava lançando um livro com o tema da tal música.

1|3
Celebridade por tabela, preparei meu melhor sorriso,
torcendo para nenhum dente balançar ou cair naquele mo-
mento inadequado. Não conhecia nenhum dos autores que
estavam ao meu lado. E assinei, assinei, com dedicatórias
genéricas: “Querida Bruna, espero que goste de desse li-
vro”, “Amarildo, espero que...”, “Nina...”, “Spartucus...”.
Houve um momento constrangedor quando troquei o no-
me de dois irmãozinhos, detalhes superáveis. Um homem
se aproximou do fundo com cara de poucos amigos:
“Quem é o senhor?”. Tentei responder: “Seja bem-vindo,
mas está interrompendo a fila de autógrafos, eu souuuu....”.
Não deu tempo de terminar. “Tenho certeza de que o se-
nhor não é o senhor tal”, continuou reclamando ele. Em se-
guida, me mostrou um cartaz atrás da minha cadeira.
Na foto, um apresentador de televisão — o sucesso do
momento, que acabara de lançar um livro para adolescen-

“Para aparecer
a qualquer custo,
melhor botar uma
fantasia de lhama, como
me sugeriu um amigo”
2|3
tes — para minha inveja explícita, era bom e educativo. O
livro que eu gostaria de escrever. Olhei e lá longe, bem lon-
ge, vi um grupinho de amigos meus. Um deles fazia sinais
de volta. Finalmente, cansou de fazer sinais e se aproxi-
mou. Ao notar que quase ninguém dava bola para mim na-
quele momento, aconselhou-me: “Era melhor botar a me-
lancia na cabeça e sair vestido de lhama”. E afastou-se,
provavelmente para ninguém ver que nos conhecíamos.
Há eventos, como este, que nos levam a medir nosso
grau de popularidade. No meu caso, era abaixo de zero.
Melhor botar uma fantasia de lhama, como sugeriu o ami-
go. Hoje, é melhor se vestir de lhama que ser um anônimo.
Seja criativo, invente outros looks. Ultimamente tem dado
certo com festas de Halloween fora de época, inclusive.
Mas são gestos desesperados.
Nem tudo é tão ruim assim, pensando bem. O pior é
quando alguém faz aniversário e ninguém vem. Um vexa-
me. Todo mundo corre o risco de comemorar a data sozi-
nho ou de fracassar ao tentar organizar um simples encon-
tro entre amigos para animar a vida, mesmo oferecendo
open bar.
Se nem para um drinque grátis a turma aparece, o que
fazer? Meu conselho: procure uma coleção de livros de au-
toajuda e decore uns dois ou três trechos. Vai servir de
consolo para o fracasso do teste de popularidade. ƒ

3|3
CULTURA VEJA RECOMENDA

ELE VOLTOU Godzilla na série: do cinema para o streaming

TELEVISÃO
MONARCH — LEGADO DE MONSTROS
(Na Apple TV+, com novos episódios às sextas-feiras)
Cate (Anna Sawai) sobreviveu à batalha colossal entre mons-
tros que assolou São Francisco no filme Godzilla (2014) —
porém, perdeu o pai e acumulou traumas. Um ano depois, ela
descobre que ele tinha uma segunda família no Japão — e ao
lado do “novo” irmão, Kentaro (Ren Watabe), a garota entra
em uma trilha de mistérios que culmina nas origens da orga-
nização secreta Monarch, criada para combater monstros.
Em paralelo, a trama viaja para os anos 1950, quando os avós
cientistas da dupla e o militar Lee Shaw (Wyatt Russell divi-
de o papel com o pai, Kurt Russel, na maturidade) alertaram
sobre os perigosos grandalhões. Adição instigante à franquia
de fantasia, a série replica toda qualidade técnica e cenas de
ação dos filmes, enquanto seu diferencial é explorar a dimen-
são humana do choque com o desconhecido.
APPLE TV+

1|8
CINEMA
CULPA E DESEJO
(L’Été Dernier; França, 2023, em cartaz)

ESPINHOSO Samuel Kircher e Léa Drucker no filme: thriller erótico

Uma das vozes mais provocativas do cinema francês, Ca-


therine Breillat deixa o hiato de dez anos sem lançamentos
para lidar com o espinhoso tema do consentimento sexual.
No enredo, a advogada especializada em abuso Anne (Léa
Drucker), de quase 50 anos, desenvolve um caso com seu
enteado, de 17. Encurralada entre um desejo imoral e a pre-
servação de sua família, ela mergulha em um thriller eróti-
co angustiante. Em jogo, o contraste entre as vidas pública
e privada, além das fantasias e preconceitos em torno do
romance de uma mulher madura com um amante muito
mais jovem.
PYRAMIDE FILMS

2|8
DISCO
NEW BLUE SUN,
de André 3000 (nas plataformas de streaming)
Rapper americano aclamado, André 3000 ganhou notorie-
dade mundial nos anos 2000 com o grupo Outkast. Inexpli-
cavelmente, desde então, ele parou de lançar discos, fazendo
apenas participações especiais, como em 2013, na elogiadís-
sima interpretação de Jimi Hendrix nos cinemas. Neste pri-
meiro álbum solo totalmente instrumental, ele busca influ-
ências em Pharoah Sanders e Alice Coltrane para compor
canções minimalistas, calcadas no jazz contemporâneo. O
resultado são saborosas músicas ambientes para relaxar. ƒ

3|8
CULTURA OS MAIS VENDIDOS

FICÇÃO
1 É ASSIM QUE COMEÇA
Colleen Hoover [8 | 55] GALERA RECORD

2 A BIBLIOTECA DA MEIA-NOITE
Matt Haig [3 | 65#] BERTRAND-BRASIL

3 É ASSIM QUE ACABA


Colleen Hoover [4 | 117#] GALERA RECORD

4 TUDO É RIO
Carla Madeira [7 | 63#] RECORD

5 VERITY
Colleen Hoover [0 | 80#] GALERA RECORD

6 TODAS AS SUAS IMPERFEIÇÕES


Colleen Hoover [2 | 80#] GALERA RECORD

7 IMPERFEITOS
Christina Lauren [6 | 13#] FARO EDITORIAL

8 OS SETE MARIDOS DE EVELYN HUGO


Taylor Jenkins Reid [0 | 103#] PARALELA

9 VÉSPERA
Carla Madeira [0 | 1] RECORD

10 O LADO FEIO DO AMOR


Colleen Hoover [1 | 27#] GALERA RECORD

4|8
NÃO FICÇÃO
1 AMIGOS, AMORES E AQUELA COISA
TERRÍVEL Matthew Perry [1 | 3] BEST SELLER

2 BOX BIBLIOTECA ESTOICA: GRANDES MESTRES


Vários autores [8 | 20#] CAMELOT EDITORA

3 EM BUSCA DE MIM
Viola Davis [0 | 59#] BEST SELLER

4 SAPIENS: UMA BREVE HISTÓRIA DA HUMANIDADE


Yuval Noah Harari [6 | 349#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

5 NAÇÃO DOPAMINA
Anna Lembke [2 | 22#] VESTÍGIO

6 RÁPIDO E DEVAGAR
Daniel Kahneman [0 | 185#] OBJETIVA

7 O REI DOS DIVIDENDOS


Luiz Barsi Filho [0 | 14#] SEXTANTE

8 PEQUENO MANUAL ANTIRRACISTA


Djamila Ribeiro [7 | 125#] COMPANHIA DAS LETRAS

9 ESCRAVIDÃO — VOLUME 2
Laurentino Gomes [0 | 30#] GLOBO LIVROS

10 ESCRAVIDÃO — VOLUME 3
Laurentino Gomes [0 | 23#] GLOBO LIVROS

5|8
AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 ADMIRÁVEL MUNDO LOUCO
Renata Spallicci [0 | 1] GENTE

2 O HOMEM MAIS RICO DA BABILÔNIA


George S. Clason [0 | 147#] HARPERCOLLINS BRASIL

3 A PSICOLOGIA FINANCEIRA
Morgan Housel [0 | 15#] HARPERCOLLINS BRASIL

4 CAFÉ COM DEUS PAI KIDS — 2024


Júnior Rostirola [6 | 4#] VÉLOS

5 FORÇA, FORTALEZA!
Marcelo Facchini [2 | 4#] CITADEL

6 TALVEZ VOCÊ DEVA CONVERSAR COM ALGUÉM


Lori Gottlieb [0 | 15#] VESTÍGIO

7 MAIS ESPERTO QUE O DIABO


Napoleon Hill [8 | 232#] CITADEL

8 ESSENCIALISMO
Greg Mckeown [0 | 23#] SEXTANTE/GMT

9 OS SEGREDOS DA MENTE MILIONÁRIA


T. Harv Eker [9 | 441#] SEXTANTE

10 PAI RICO, PAI POBRE


Robert Kiyosaki e Sharon Lechter [0 | 113#] ALTA BOOKS

6|8
INFANTOJUVENIL
1 CIDADE DA LUA CRESCENTE:
CASA DE CHAMA E SOMBRA
Sarah J. Mass [0 | 1] GALERA RECORD

2 CIDADE DA LUA CRESCENTE: CASA DE CÉU E SOPRO


Sarah J. Mass [0 | 2#] GALERA RECORD

3 AS AVENTURAS DE MIKE 4 — A ORIGEM DE ROBSON


Gabriel Dearo e Manu Digilio [1 | 3] OUTRO PLANETA

4 ATÉ O VERÃO TERMINAR


Colleen Hoover [6 | 83#] GALERA RECORD

5 O MEU PÉ DE LARANJA LIMA


José Mauro de Vasconcelos [0 | 8#] MELHORAMENTOS

6 O PEQUENO PRÍNCIPE
Antoine de Saint-Exupéry [4 | 397#] VÁRIAS EDITORAS

7 BOX — O POVO DO AR
Holly Black [0 | 14#] GALERA RECORD

8 KIT HOPELESS
Colleen Hoover [0 | 6#] GALERA RECORD

9 CORTE DE NÉVOA E FÚRIA


Sarah J. Maas [0 | 21#] GALERA RECORD

10 DIÁRIO DE UM BANANA 18: CABEÇA OCA


Jeff Kinney [2 | 3] VR

7|8
[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas
o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas

Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita: Real
Peruíbe, Belém: Leitura, SBS, Belo Horizonte: Disal, Jenipapo, Leitura, Livraria da Rua, SBS,
Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau: Curitiba, Brasília: Disal, Leitura,
Livraria da Vila, SBS, Vozes, Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha: Santos, Campina Grande: Leitura,
Campinas: Disal, Leitura, Livraria da Vila, Loyola, Saber e Ler, Senhor Livreiro, Vozes,
Campo Grande: Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim, Campos dos Goytacazes: Leitura,
Canoas: Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos, Caruaru: Leitura, Cascavel: A Página,
Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura, Cotia: Prime, Um Livro, Criciúma:
Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal, Evangelizar, Livraria da Vila,
SBS, Vozes, Florianópolis: Curitiba, Livrarias Catarinense, Fortaleza: Evangelizar, Leitura,
Vozes, Foz do Iguaçu: A Página, Kunda Livraria Universitária, Frederico Westphalen: Vitrola,
Goiânia: Leitura, Palavrear, SBS, Governador Valadares: Leitura, Gramado: Mania de Ler, Guaíba:
Santos, Guarapuava: A Página, Guarulhos: Disal, Livraria da Vila, Leitura, SBS, Ipatinga:
Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Joinville: A Página,
Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Vozes, Jundiaí: Leitura, Limeira: Livruz, Lins: Koinonia, Londrina: A
Página, Curitiba, Livraria da Vila, Macapá: Leitura, Maceió: Leitura, Livro Presente, Maringá:
Curitiba, Mogi das Cruzes: A Eólica Book Bar, Leitura, Natal: Leitura, Niterói: Blooks, Palmas:
Leitura, Paranaguá: A Página, Pelotas: Vanguarda, Petrópolis: Vozes, Poços de Caldas: Livruz,
Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron, Disal, Leitura, Mania de Ler,
Santos, SBS, Porto Velho: Leitura, Recife: Disal, Leitura, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal,
Livraria da Vila, Rio Claro: Livruz, Rio de Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, SBS, Rio
Grande: Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura, SBS, Santa Maria: Santos, Santana
de Parnaíba: Leitura, Santo André: Disal, Leitura, Santos: Loyola, São Bernardo do Campo: Leitura,
São Caetano do Sul: Disal, Livraria da Vila, São João de Meriti: Leitura, São José: A Página,
Curitiba, São José do Rio Preto: Leitura, São José dos Campos: Curitiba, Leitura, São José dos Pinhais:
Curitiba, Serra: Leitura, Sete Lagoas: Leitura, São Luís: Leitura, São Paulo: A Página, B307,
Círculo, CULT Café Livro Música, Curitiba, Disal, Dois Pontos, Drummond, HiperLivros,
Leitura, Santuário, Simples, Livraria da Tarde, Livraria da Vila, Loyola, Megafauna,
Nobel Brooklin, SBS, Vida, Vozes, WMF Martins Fontes, Taboão da Serra: Curitiba,
Taguatinga: Leitura, Taubaté: Leitura, Teresina: Leitura, Uberlândia: Leitura, SBS, Umuarama: A
Página, Vila Velha: Leitura, Vitória: Leitura, SBS, Vitória da Conquista: LDM, internet: A Página,
Amazon, Americanas.com, Authentic E-commerce, Boa Viagem E-commerce, Bonilha
Books, Canal dos Livros, Curitiba, Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza, Shoptime,
Sinopsys, Submarino, Vanguarda, WMF Martins Fontes

8|8
JOSÉ CASADO

FÁBRICA DE POBRE
QUATRO em cada dez argentinos vivem na pobreza, e mais
de 10% sobrevivem na indigência.
Pela primeira vez, há mais pobres do outro lado da fron-
teira do que no Brasil.
Um em cada três brasileiros é pobre, e o número de indi-
gentes beira 8% da população.
Em ambos os países, donos das maiores economias da
América do Sul, o empobrecimento avançou com celerida-
de nas últimas duas décadas.
É notável que, por dois terços do tempo, isso tenha aconteci-
do sob governos eleitos com projetos de redução das desigual-
dades e resgate social, conduzidos por partidos hegemônicos à
esquerda: PT no Brasil e partido peronista na Argentina.
É relevante, também, observar que no restante do ca-
lendário essas fábricas de pobreza tenham se mantido a
pleno vapor sob governos dogmaticamente adversários,
empenhados no reformismo, mas com propostas distintas
para reverter a agonia da degradação sistemática e contí-
nua da renda de argentinos e brasileiros.
Algo deu errado nos dois lados da fronteira. E o eleitorado
resolveu responder à crise de liderança nesses países elegendo

1|4
para a Presidência personagens estranhos aos grupos que as-
cenderam na política regional no ciclo pós-ditadura.
Pode-se discutir sobre o papel de Jair Bolsonaro e de Javier
Milei na aglutinação e autoestima da extrema direita. Será
inútil, até porque se diferenciam na essência. Bolsonaro é um
radical do militarismo arcaico, com um longo histórico de de-
fesa da intervenção do Estado na economia. Milei é um eco-
nomista formado no fundamentalismo da doutrina sobre o
poder do mercado, e faz questão de apresentar-se como um
talibã do ultraliberalismo.
Os governos da América do Sul faliram nas ditaduras do
século passado e ainda não conseguiram superar o desequilí-
brio nas contas públicas. No Brasil e na Argentina, elites sur-
fam na retórica liberalizante, mas continuam lutando heroica-
mente pela dependência do Estado. Todos são liberais, porém
viciados em subsídios e incentivos estatais, como realça o pro-
jeto de reforma tributária que se negocia em Brasília.
A cada eleição, renovam-se promessas de abertura dos
portais da prosperidade — “colocar os pobres no orçamento”,
na expressão recorrente —, mas os problemas estruturais dos
estados nacionais continuam a estimular a expansão acelera-
da das linhas de produção de pobreza, ampliando desigualda-
des e derrubando pela metade a renda da maioria das famílias
nos dois lados da fronteira. Não se vê preocupação efetiva com
as razões do empenho de 40% dos orçamentos na rolagem da
dívida pública, nem com a eficácia no uso dos recursos públi-
cos restantes, mais restritos a cada ano.

2|4
“O avanço da pobreza no
Brasil e na Argentina corrói
e desmonta governos”
No Brasil, o protesto contra essa “ordem” política che-
gou às ruas em junho de 2013, mas, por razões que nem a
razão explica, esquerda e direita preferiram abstrair a aná-
lise das motivações e dedicar-se à concentração de energia
num embate de mútua deslegitimação política para ver
quem sangra mais rápido.
No Brasil de 2018 deu Bolsonaro, ano passado deu Lula. O
líder petista ganhou por margem mínima (1,8 ponto percen-
tual) e seu desempenho em Minas Gerais foi simbólico: sua
vantagem de 563 000 votos no primeiro turno encolheu para
49 000 na segunda rodada, apenas três semanas depois.
Na Argentina, semana passada, Milei elegeu-se com larga
dianteira em vinte das 23 províncias. Obteve 90% dos votos
em algumas e ficou com metade do eleitorado de Buenos Ai-
res, reconhecido pilar do peronismo há 78 anos.
Nos dois países, parcela significativa do eleitorado empo-
brecido deixou evidente a exaustão com a insuficiência dos
programas sociais paliativos e a inexistência de perspectivas
realistas de prosperidade individual. Paradoxalmente, parti-
dos e candidatos estimularam o voto pela rejeição ao adversá-

3|4
rio — entre argentinos chegou-se ao empate (50%) em repú-
dio na quase totalidade das pesquisas antes do segundo turno.
Nos lados da fronteira, a massa de eleitores empobrecidos,
sobrevivente em pequenos negócios, aderiu aos acenos de re-
dução do custo operacional do Estado de bem-estar social,
cujo peso tem sido crescente nos orçamentos familiares. “Lá e
cá, a esquerda decidiu abandonar a reflexão sobre a realidade
socioeconômica e deu prioridade à abordagem de costumes,
de políticas identitárias”, observa o sociólogo Creomar de
Souza. “Isso choca o pessoal que chega ao dia 30 de cada mês
sem dinheiro e com contas para pagar.”
Não há fórmula mágica. O problema central é o empobreci-
mento. Sem renovação das ideias as ofertas eleitorais tornam-
se irrelevantes, porque são originalmente ineficazes. E, na irre-
levância, governos e partidos tornam-se dispensáveis. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

4|4

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