Multinaturalismo

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Multinaturalismo

A idéia de mundo que compreende uma multiplicidade de posições subjetivas traz logo à
mente a noção de ‘relativismo’. E de fato, menções diretas ou indiretas ao relativismo são
freqüentes nas descrições das cosmologias ameríndias. Tome-se, ao acaso, este juízo de
Kaj Århem, etnógrafo dos Makuna. Após ter descrito com minúcia o universo perspectivo
desse povo do Noroeste amazônico, Århem conclui: a noção de múltiplos pontos de vista
sobre a realidade implica que, no que concerne aos Makuna, “qualquer perspectiva é
igualmente válida e verdadeira”, e que “uma representação verdadeira e correta do mundo
não existe” (1993:124).

Århem tem razão, por certo; mas só em certo sentido. Pois é altamente provável que, no
que concerne aos humanos, os Makuna diriam, muito ao contrário, que só existe uma vera
e justa representação do mundo. Se começarmos a ver, por exemplo, os vermes que
infestam um cadáver como peixesgrelhados, ao modo dos urubus, podemos estar seguros
de que algo andamuito errado conosco. Pois isso significa que estamos virando urubus: é
sinal de doença, ou pior. As perspectivas devem ser mantidas separadas. Apenas os xamãs,
que são como andróginos no que respeita à espécie, podem fazê-las comunicar, e isso sob
condições especiais e controladas.

Mas há uma questão bem mais importante aqui. A teoria perspectivistaameríndia está de
fato, como afirma Århem, supondo uma multiplicidade de representações sobre o mesmo
mundo? Basta considerar o que dizem as etnografias, para perceber que é o exato inverso
que se passa: todos os seres vêem (‘representam’) o mundo da mesma maneira o que
muda é o mundo que eles vêem. Os animais utilizam as mesmas categorias e valores que
os humanos: seus mundos, como o nosso, giram em torno da caça e da pesca, da cozinha
e das bebidas fermentadas, das primas cruzadas e da guerra, dos ritos de iniciação, dos
xamãs, chefes, espíritos etc. Se a lua, as cobras e as onças vêem os humanos como antas
ou porcos selvagens, é porque, como nós, elas comem antas e porcos selvagens, comida
própria de gente. Só poderia ser assim, pois, sendo gente em seu próprio departamento,
os não-humanos vêem as coisas como ‘a gente’ veem. Mas as coisas que eles vêem são
outras: o que para nós é sangue, para o jaguar é cauim; o que para as almas dos mortos é
um cadáver podre, para nós é mandioca fermentando; o que vemos como um barreiro
lamacento, para as antas é uma grande casa cerimonial…
A idéia, à primeira vista, soa ligeiramente contra-intuitiva, pois quandocomeçamos a
pensar sobre ela parece transformar-se em seu contrário, como naquelas ilusões de ótica
figura-fundo. Gerald Weiss, por exemplo, descreveo mundo dos Campa como “um mundo
de aparências relativas, onde diferentes tipos de seres vêem as mesmas coisas
diferentemente” (1972:170). Mais uma vez, isso é, em certo sentido, verdadeiro. Mas o
que Weiss não consegue ‘ver’ é que o fato de diferentes tipos de seres verem as mesmas
coisas diferentemente é meramente uma conseqüência do fato de que diferentes tipos de
seres vêem coisas diferentes da mesma maneira. Pois o que conta como “as mesmas
coisas”? Mesmas em relação a quem, a que espécie? O espectro da coisa-em-si ronda a
formulação de Weiss.

O perspectivismo não é um relativismo, mas um multinaturalismo. O relativismo cultural,


um ‘multiculturalismo’, supõe uma diversidade de representações subjetivas e parciais,
incidentes sobre uma natureza externa, una e total, indiferente à representação; os
ameríndios propõem o oposto: uma unidade representativa ou fenomenológica puramente
pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma diversidade real. Uma só ‘cultura’,
múltiplas ‘naturezas’; epistemologia constante, ontologia variável — o perspectivismo é
um multinaturalismo, pois uma perspectiva não é uma representação. Uma perspectiva
não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o
ponto de vista está no corpo.10 Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma
potência da alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um
espírito; mas a diferença entre os pontos de vista e um ponto de vista não é senão diferença
não está na alma. Esta, formalmente idêntica através das espécies, só enxerga a mesma
coisa em toda parte; a diferença deve então ser dada pela especificidade dos corpos. Isso
permite responder a duas perguntas cruciais: se os não-humanos são pessoas e têm almas,
em que se distinguem dos humanos? E por que, sendo gente, não nos vêem como gente?

Os animais vêem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque seus
corpos são diferentes dos nossos. Não me estou referindo a diferenças de fisiologia quanto
a isso, os ameríndios reconhecem uma uniformidade básica dos corpos, mas aos afetos,
afecções ou capacidades que singularizam cada espécie de corpo: o que ele come, como
se move, como se comunica, onde vive, se é gregário ou solitário… A morfologia corporal
é um signo poderoso dessas diferenças de afecção, embora possa ser enganadora, pois
uma figura de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afecção-jaguar. O que
estou chamando de ‘corpo’, portanto, não é sinônimo de fisiologia distintiva ou de
anatomia característica; é um conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um
habitus. Entre a subjetividade formal das almas e a materialidade substancial dos
organismos, há esse plano central que é o corpo como feixe de afecções e capacidades, e
que é a origem das perspectivas. Longe do essencialismo espiritual do relativismo, o
perspectivismo é um maneirismo corporal.

A diferença dos corpos, entretanto, só é apreensível de um ponto de vista exterior, para


outrem, uma vez que, para si mesmo, cada tipo de ser tem a mesma forma (a forma
genérica do humano): os corpos são o modo pelo qual a alteridade é apreendida como tal.
Não vemos, em condições normais, os animais como gente, e reciprocamente, porque
nossos corpos respectivos (e perspectivos) são diferentes. Assim, se a Cultura é a
perspectiva reflexiva do agente objetivada no conceito de alma, pode-se dizer que a
Natureza é o ponto de vista do agente sobre os outros corpos-afecções; por outras
palavras, se a Cultura é a natureza do Sujeito, a Natureza é a forma do Outro enquanto
corpo, isto é, enquanto algo para outrem. A cultura tem a forma do pronome sujeito ‘eu’;
a natureza é a forma por excelência da ‘não-pessoa’ ou do objeto, indicada pelo pronome
impessoal ‘ele’ (Benveniste 1966a:256).

Se o corpo é o que faz a diferença aos olhos ameríndios, então se compreende, afinal,
por que os métodos espanhóis e antilhanos de averiguação da humanidade do outro, na
anedota narrada por Lévi-Strauss, mostravam aquela assimetria. Para os europeus,
tratava-se de decidir se os outros tinham uma alma; para os índios, de saber que tipo de
corpo tinham os outros. O grande diacrítico, o sítio da diferença de perspectiva para os
europeus é a alma (os índios são homens ou animais?); para os índios, é o corpo (os
europeus são homens ou espíritos?). Os europeus não duvidavam que os índios tivessem
corpos animais também os têm; os índios, que os europeus tivessem almas animais
também as têm. O que os índios queriam saber era se o corpo daquelas ‘almas’ era capaz
das mesmas afecções e maneiras que os seus: se era um corpo humano ou um corpo de
espírito, imputrescível e proteiforme. Em suma: o etnocentrismo europeu consiste em
negar que outros corpos tenham a mesma alma; o ameríndio, em duvidar que outras almas
tenham o mesmo corpo.

O estatuto do humano na tradição ocidental é, como sublinhou Ingold (1994, 1996),


essencialmente ambíguo: por um lado, a humanidade (humankind) é uma espécie animal
entre outras, e a animalidade um domínio que inclui os humanos; por outro, a humanidade
(humanity) é uma condição moral que exclui os animais. Esses dois estatutos coabitam
no conceito problemático e disjuntivo de ‘natureza humana’. Dito de outro modo, nossa
cosmologia imagina uma continuidade física e uma descontinuidade metafísica entre os
humanos e os animais, a primeira fazendo do homem objeto das ciências da natureza, a
segunda, das ciências da cultura (as Geisteswissenschaften). O espírito é o grande
diferenciador: é o que sobrepõe a humanidade aos animais e à matéria em geral, o que
singulariza cada ser humano diante de seus semelhantes, o que distingue as culturas ou
períodos históricos enquanto consciências coletivas ou espíritos de época. O corpo, ao
contrário, é o grande integrador: ele nos conecta ao resto dos viventes, unidos todos por
um substrato universal (o ADN, a química do carbono etc.) que, por sua vez, remete à
natureza última de todos os ‘corpos’ materiais. Os ameríndios, em contrapartida,
imaginam uma continuidade metafísica e uma descontinuidade física entre os seres do
cosmos, a primeira resultando no animismo, a segunda, no perspectivismo. O espírito,
que não é aqui substância imaterial, mas forma reflexiva, é o que integra; o corpo, que
não é substância material, mas afecção ativa, o que diferencia.

O perspectivismo não é um relativismo, mas um relacionalismo. Vejamos uma outra


discussão do ‘relativismo’ amazônico: aquela feita por Renard-Casevitz (1991) em seu
livro sobre a mitologia matsiguenga. Comentando um mito em que os protagonistas
humanos visitam diversas aldeias habitadas por gentes estranhas que chamam “peixe”,
“cutia” ou “arara” (comida humana) às cobras, morcegos ou bolas de fogo de que se
alimentam, a autora se dá conta que o perspectivismo indígena não é exatamente um
relativismo cultural:

O mito afirma que existem normas transculturais e transnacionais, em vigor em toda parte. Essas normas
determinam os mesmos gostos e desgostos, os mesmos valores dietéticos e as mesmas proibições ou
aversões. (…) Os mal-entendidos míticos decorrem de visões defasadas, não de gostos bárbaros ou de um
uso impróprio da linguagem (op.cit.: 25–26; grifo meu).

Mas isso não impede a autora de ver aqui algo perfeitamente banal:

Essa posição em perspectiva [mise en perspective] é apenas a aplicação e transposição de práticas sociais
universais, tais como o fato de que a mãe e o pai de X são os sogros de Y … A variabilidade da
denominação em função do lugar ocupado explica como A pode ser ao mesmo tempo peixe para X e
cobra para Y. (op.cit.:29)
O problema é que tal generalização da relatividade posicional própria da vida em
sociedade, com sua aplicação às diferenças interespecíficas ou intergenéricas, tem a
conseqüência paradoxal de fazer da cultura humana (i.e. matsiguenga) algo natural, isto
é, absoluto: todo mundo come ‘peixe’, ninguém come ‘cobra’.

A analogia feita por Casevitz, entre as posições de parentesco e o que passa por peixe ou
cobra para diferentes tipos de ser, é, entretanto, muito interessante. Façamos um
experimento mental. Os termos de parentesco são relatores, ou operadores lógicos
abertos; eles pertencem àquela classe de nomes que definem algo em termos de suas
relações com outra coisa (os lingüistas certamente têm um rótulo para essas palavras,
talvez ‘predicados de dois lugares’, ou algo assim). Já conceitos como ‘peixe’ ou ‘árvore’,
por outro lado, são substantivos ‘próprios’, fechados ou bem circunscritos, aplicando-se
a um objeto em virtude de suas propriedades auto-subsistentes e autônomas. Ora, o que
parece ocorrer no perspectivismo indígena é que substâncias nomeadas por substantivos
como ‘peixe’, ‘cobra’, ‘rede’ ou ‘canoa’ são usadas como se fossem relatores, algo entre
o nome e o pronome, o substantivo e o deítico. (Há, supostamente, uma diferença entre
nomes de natural kinds como ‘peixe’ e nomes de artefatos como ‘rede’ ver adiante.)
Alguém é um pai apenas porque existe outrem de quem ele é o pai: a paternidade é uma
relação, ao passo que a ‘peixidade’ ou a ‘serpentitude’ é uma propriedade intrínseca dos
peixes e cobras. O que sucede no perspectivismo, entretanto, é que algo também só é
peixe porque existe alguém de quem este algo é o ‘peixe’.

Mas se dizer que os grilos são os peixes dos mortos ou que os lameiros são a rede das
antas é realmente como dizer que Nina, filha de minha irmã Isabel, é minha sobrinha o
argumento de Renard-Casevitz, então, de fato, não há nenhum relativismo envolvido.
Isabel não é uma mãe ‘para’ Nina, ‘do ponto de vista’ de Nina, no sentido usual,
subjetivista, da expressão. Ela é a mãe de Nina, ela é real e objetivamente sua mãe, e eu
sou de fato seu tio. A relação é interna e genitiva minha irmã é a mãe de alguém, de quem
sou o tio, exato como os grilos dos vivos são os peixes dos mortos, e não uma conexão
externa, representacional, do tipo “X é peixe para alguém”, que implica que X é apenas
‘representado’ como peixe, seja lá o que for ‘em si mesmo’. Seria absurdo dizer que,
desde que Nina é filha de Isabel mas não minha, então ela não é uma ‘filha’ para mim
pois de fato ela o é, filha de minha irmã, precisamente. Em Process & reality, Whitehead
observava: “a expressão ‘mundo real’ é como ‘ontem’ ou ‘amanhã’ ela muda de sentido
conforme o ponto de vista” (apud Latour 1994:197). Assim, um ponto de vista não é uma
opinião subjetiva; não há nada de ‘subjetivo’ nos conceitos de ‘ontem’ e ‘amanhã’, como
não os há de ‘minha mãe’ ou ‘teu irmão’. O mundo real das diferentes espécies depende
de seus pontos de vista, porque o ‘mundo’ é composto das diferentes espécies, é o espaço
abstrato de divergência entre elas enquanto pontos de vista: não há pontos de vista sobre
as coisas as coisas e os seres é que são pontos de vista (Deleuze 1988:203). A questão
aqui, portanto, não é saber “como os macacos vêem o mundo” (Cheney & Seyfarth 1990),
mas que mundo se exprime através dos macacos, de que mundo eles são o ponto de vista.

Imagine-se que todas as ‘substâncias’ que povoam os mundos ameríndios sejam desse
tipo. Suponha-se que, assim como dois indivíduos são irmãos porque têm os mesmos pais,
eles sejam co-específicos porque têm o mesmo peixe, a mesma cobra, a mesma canoa e
assim por diante. Tal suposição imagina, em suma, uma ontologia integralmente
relacional, na qual as substâncias individuais ou as formas substanciais não são a
realidade última. Aqui não haveria distinção entre qualidades primárias e secundárias para
evocarmos um tradicional contraste filosófico, ou entre ‘fatos brutos’ e ‘fatos
institucionais’ para evocarmos a dualidade advogada em um importante livro de John
Searle (1995).

Falemos um pouco desse livro de Searle. Ali, o autor opõe o que chama de fatos ou objetos
brutos, cuja realidade é independente da consciência — como a gravidade, as montanhas,
as árvores e os bichos (os naturais kinds pertencem a esta classe) —, aos fatos e objetos
ditos institucionais, cuja existência, identidade e propósito derivam de significados
culturais específicos a eles atribuídos pelos humanos — coisas como o casamento, o
dinheiro, os machados ou os computadores. Note-se que o livro em pauta se intitula The
construction of social reality, e não The social construction of reality, como a conhecida
obra de P. Berger & T. Luckmann. Os fatos brutos não são construídos, os fatos
institucionais sim (as afirmações sobre os fatos brutos inclusive). Nesta versão
modernizada do velho dualismo natureza/cultura, o relativismo cultural valeria para os
objetos culturais, ao passo que o universalismo natural aplicar-se-ia aos objetos naturais.

Se por acaso topasse com minha exposição do perspectivismo ameríndio, Searle diria,
provavelmente, que o que estou dizendo é que, para os índios, todos os fatos são do tipo
mental ou institucional, e que todos os objetos, mesmo as árvores e os peixes, são como
o dinheiro ou as canoas, no sentido de que sua única realidade (enquanto dinheiro ou
canoas, não enquanto pedaços de papel ou de pau) se deve aos significados e usos que os
humanos lhes atribuem. Isto não seria senão um relativismo uma forma, aliás, extremada,
absoluta de relativismo.

Uma das implicações da ontologia anímico-perspectiva ameríndia, com efeito, é a de que


não existem fatos naturais autônomos, pois a ‘natureza’ de uns é a ‘cultura’ de outros (ver
supra). Se a fórmula de uma regra constitutiva ou de um fato institucional é “X conta
como Y no contexto C” (Searle 1969:51- 52), então os fatos indígenas que nos interessam
aqui são, realmente, deste tipo: “Sangue conta como Cauim no contexto Jaguar”. Mas
esses fatos institucionais (os ‘Y’ da fórmula de Searle) são aqui universais, o que escapa
à alternativa de Searle, onde os fatos brutos são universais, os institucionais, particulares.
É impossível reduzi-los a um tipo de relativismo construcionista (que definiria todos os
fatos como de tipo institucional e concluiria que eles são culturalmente variáveis). O que
temos aqui é um caso de universalismo cultural, cuja contrapartida é um relativismo
natural (tomo a expressão de Latour 1991:144). É semelhante divergência face a nossa
conjugação da natureza com o universal e da cultura com o particular que chamo de
multinaturalismo.

Todos se recordam do dito de Wittgenstein: “se um leão pudesse falar, não seríamos
capazes de entendê-lo”. Esta sentença se presta facilmente a uma interpretação relativista.
Já para os índios, eu diria, os leões no caso, os jaguares não apenas podem falar, como
somos perfeitamente capazes de entender o que eles dizem; o que eles querem dizer com
isso, entretanto, é outra história. Mesmas representações, outros objetos; sentido único,
referências múltiplas. O problema do perspectivismo multinaturalista não é, digamos
assim, um problema fregeano.

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