Wilhelm Dilthey - Psicologia e Compreensão

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PSICOLOGIA

COMPKE ENSAO

Textos Filosóficos
edições 70
Pôr o leitor directam ente em contacto
com textos m arcantes da história da filosofia
- através de traduções feitas
a partir dos respectivos originais,
por tradutores responsáveis,
acom panhadas d e introduções
e notas explicativas -
foi o ponto de partida
para esta colecçuo.
O seu âm bito estender-se-á
a todas as épocas e a todos os tipos
e estilos de filosofia,
procurando incluir os textos
mais significativos do pensam ento filosófico
na sua m ultiplicidade e riqueza.
S erá assim um reflexo da vibratil idade
do espírito filosófico perante o seu tem po,
perante a ciência
e o problem a do hom em
e do m undo.
Textos filosóficos
Director da Colecção; Ai lui Morüo
Professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Cicncius
Hum anas da Universidade Católica Portuguesa

1. Crítica da Razão Prática , Immanuel Kunt


2. Investigação sobre o Entendimento Humano, Davi d Hume
3. Crepúsculo dos ídolos, Friedrich Nielzsche
4. Discurso cie M etafísica , Gottfried Whilhelm Leibniz
5. Os Processos da M etafísica , Immanuel Kant
6. f o g r a s / w r a a Direcção do Espírito , René Descartes
7. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Friedrich Nietzsche
8. A Ideia da Fenomenologia, Ed mu nd H usserl
9. Discurso do M étodo , René Descartes
10. Ponto de Vista Explicativo da Minha Obro como Escritor , Soren Kicrkcguacd
11. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos , Friedrich Nietzsche
12. Car/a sobre a Tolerância, John Locke
13. P rolegó menos a Toda a Metafísica Futura , Immanuel Kant
14. Tratado da Reforma do Entendimento* Bento de Espinosa
15. Simbolismo: Seu Significado e Efeito, Alfrcd North Whitchcad
16. Ensaio Sobre os Dados Imediatos da Consciência, Henri Bergson
17. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome (vol. I), Georg Whilhelm Friedrich Hegel
18. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos , [mmanuel Kant
19. Diálogo sobre a Felicidade , Santo Agostinho
20. Princípios da Filosofia do Futuro, Ludwig Feuerbach
21. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome ( vol II),Georg Whilhelm Friedrich Hegel
22. Man use ri tos Econóníicos- Fi losófi cos » Kar l M arx
23. Propedêutica Filosófica, Georg Whilhelm Friedrich Hegel
24. O Anticristo, Friedrich Nietzsche
25. Discurso sobre a Dignidade do Homem , Giovanni Pico dclla Mirandola
26. EcceH om o , Friedrich Nietzsche
27. O Materialismo Racional, Gaston Bachclard
28. Princípios M etafísicos da Ciência da Natureza, Friedricli Nietzsche
29. Diálogo de um Filósofo Cristão e de um Filosófo Chinês, Nicolas Malebranchc
30. O Sistema da Vida Ética, Georg Whi lhelm Friedrich Hegel
31. Introdução à História da Filosofia, Georg Whilhelm Friedrich Hegel
32. As Conferências de Paris, Edmund Husserl
33. Teoria das Concepções do Mundo * Wilhelin Dilthey
34. A Religião nos Limites da Simples Razão , Immanuel Kant
35. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Epítome (vol III), Georg Whilhelm Friedrich Hegel
36. Investigações Filosóficas Sobre a Essência da Liberdade Humana, F.WJ.Sehelling
37. O Conflito da Faculdadey Immanuel Kunt
38. Morte e Sobrevivência, Max Scheier
39. A Razão na Históriay Georg Whilhelm Friedrich Hegel
40. O Novo Espírito Científico , Gaston Bachelard
41. Sobre a M etafísica do Ser no Tempo, Herrique de Gand
42. Prif u:ídios da Filosofta, René Descartes
43. Tratado do Primeiro Principio , Joiio Duns Escoto
44. Ensaio sobre a Verdadeira Origem, extensão e fim do Governo Civil, John Locks
45. A Unidade do Intelecto contra os Averrohtas, São Tomás de Aquino
46. A Guerra e Queixa da Paz, Erasmo de Roterdao
47. Lições sobre a Vocação do SábioyJohann Gotllieb Ficli tc
48. Dos Deveres (De Officiis), Cícero
49. Da Alma (De Anima), Aristóteles
50. A Evolução Criadora, Henri Bergson
51. Psicologia e Compreensão , Wilhelm Dilthey
PSICOLOGIA
E COMPREENSÃO
Título original:
Ideen iiber eine besdm ibende und zergliedernde Psychologie

© desta tradução, Edições 70, Lda.

Tradução: Artur Morão

Capa dc Edições 70

Depósito Legal n.° 178829/02

ISBN 972-44-1119-2

Direitos reservados para língua portuguesa


por Edições 70

EDIÇÕES 70, LDA.


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Qualquer transgressão à Lei dos Direitos do Autor será passível de
procedimento judicial.
Wilhelm D1LTHEY

PSICOLOGIA
E COMFREENSÂO
Ideias para uma Psicologia Descritiva e Analítica

V
f e d iç õ e s 7 0
Advertência do tradutor

É o presente escrito um dos mais interessantes de Wilhelm


Dilthey (1831-1911). Não pela diversificação ou pela riqueza
interna de temas, mas pela singular densidade com que aborda um
problema fundamental que assediou o filósofo em grande parte da
sua vida: como fornecer às ciências do espírito, de recente formação
e em plena expansão, um fundamento epistemológico que esta­
belecesse a sua originalidade, a sua índole genuína, a sua auto­
nomia, o caracter autóctone e irredutível dos seus problemas e das
suas realidades, a sua incomensurabilidade com as ciências da
natureza.
Não era, pois, intento seu travar uma guerra entre os dois grupos
de saberes desenvolvidos na cultura ocidental, nem oferecer um
modelo de ciência humana que se regulasse pela bitola ou pelos
i

procedimentos da ciência natural, mas antes tentar fornecer um


princípio de unidade funcional, que os situasse na sua fonte comum
- a nossa imaginação criadora - , para depois respeitar, sem falsas
identidades e confusões, a especificidade, a modalidade cognitiva,
as metodologias típicas de cada complexo de saberes.
A motivação nuclear de W. Dilthey era polêmica: cedo deu
pela sedução que o êxito das ciências naturais exercia em muitos
filósofos e nos investigadores do universo humano, induzindo-os
a adoptar o pressuposto mecanicista, subjacente à prática e à

9
interpretação dessas ciências. O alvo da sua crítica era o conjunto
das ciências humanas' (“ciências do espírito”) que se formara, se
instituirá e se autocompreendia à luz de ideias que promanavam
de Hobbes, Espinosa e Hume. Impugnava, portanto, uma certa
tradição filosófica de materialismo com a sua pretensão de inter­
pretar a vida humana, na sua integral idade, com o instrumental e a
convicção naturalistas.
A reflexão diltheyana, no seu processo de maturação e apro­
fundamento, recebeu influxos de três fontes: em primeiro lugar, a
inspiração kantiana, com a sua proposta do a priori enquanto
estruturador da experiência humana nos três níveis da sensibilidade,
do entendimento e da razão. Mas, para Dilthey, o a priori kantiano
era inaplicável ao carácter inédito da realidade histórica; por um
lado, ao pretender dilucidar o estatuto da metafísica, polarizou-se
excessivamente em torno da ciência natural e da matemática;
depois, ostenta um giro abstracto e insensível à densidade e ao
devir históricos no seu desdobramento criativo, que suscita diversas
culturas e obras díspares em cada época cultural; além disso,
enquadra-se numa concepção que fracciona, decerto involuntaria­
mente, a experiência humana global, sem conseguir estabelecer
um convincente elo de ligação entre a razão teórica, a razão prática
e a actividade estética. O a priori surgirá, pois, em Dilthey essen­
cialmente como o elo, o vínculo, a conexão, a tessitura ou a con­
textura da vida psíquica, que acontece, flui sempre e se intui como
uma unidade, que se exterioriza e manifesta nas obras culturais de
toda a espécie, mas se furta a uma apreensão total.
Outra fonte é a lição hegeliana, com o seu conceito de realidade
enquanto processo da mudança histórica. Dilthey acolhe o relevo
dado à história como campo de realização das virtualidades da
razão dos homens, portanto, o peso e as possibilidades criativas
do tempo histórico, cujos limites ninguém nem filosofia alguma
(ou qualquer outra obra cultural) consegue ultrapassar. Deixa,
porém, de lado a razão absoluta de Hegel, a sua metafísica do
absoluto em devir e a necessária peregrinação do Espírito univer­
sal ao longo da história.
A terceira fonte é a de Schleiermacher, com a sua descoberta e
realce da unicidade e da peculiaridade dos indivíduos humanos e
do elemento comum que eles partilham; e também com a sua

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acentuação do jo g o da vida, que se distende no contraste de
receptividade e espontaneidade, de universal e particular, de uni­
dade e diversidade, de interioridade e exterioridade, de comunidade
e indivíduo, de forma social e unilatéralidade pessoal (*). Foi
possivelmente com o grande teólogo que Dilthey discerniu o
significado fundamental da categoria da ‘vida’. O seu trabalho
ulterior consistiu em extrair dela todas as conseqüências possíveis.

Mas que significa, neste contexto, a ‘vida’? Apenas isto: não é


a vida como realidade biológica; é, acima de tudo, o fluxo par­
tilhado das actividades e das experiências dos homens que, no seu
todo, constituem o tecido da história, na sua diversidade social e
na sua particularidade humana.
A ‘vida’, no entrosamento de acção e compreensão, imbui,
atravessa e percorre todos os nexos da humanidade; as suas
‘expressões’ ou manifestações incluem signos, símbolos, o discurso
oral e a escrita, as práticas multímodas em que os humanos se
espraiam e se estiram na demanda da natureza e de si próprios.
Tais expressões encerram, pois, um conteúdo psicológico mais
rico e denso do que o alcançado pela introspecção. Irrompem e
manam de profundezas que a consciência não consegue iluminar.
São fruto, não só da explosão imaginária, da elaboração intelectual,
do esforço conativo de criação e empenhamento, mas também de
múltiplas formas e actos de ‘pensamento tácito’, que se furtam à
captação introspectiva.
Daí a convicção diltheyana, aprendida de Hegel, de que só pela
história chegamos ao conhecimento de nós mesmos. Aqui reside
igualmente a base da sua hermenêutica: interpretar é obter a
compreensão do outro graças à ‘re-vivência’ (Nacherlebnis) da
experiência alheia, isto é, através de uma ‘transposição’ empática
ou da captagem do sentido das expressões corporificadas nas obras.
C om que pressupostos se dá esse salto empático? Não por
introspecção, como se fosse possível adentrar-se e imergir na
subjectividade de outrem. A autocom preensão em face das
realizações culturais assenta na revelação das semelhanças e

(') Cf. F. S C H L E IE R M A C H E R , Texíe zur Padagügik , I, Francoforte,


Suhrkamp, 2000, pp. 214-216; 292-297.

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diferenças, das variações e particularidades, que assomam não só
na reflexão, mas também na interacção social, e a partir das quais
se aprende a empatia e se desenvolve a imaginação. Depois, a ‘re-
-vivêneia’ da experiência alheia supõe e depende da autotrasladação
individual para as circunstâncias temporais suscitadoras da ex­
pressão vital, que convida à compreensão (2). Neste mundo cul­
tural, construído objectivamente, com suas implicações complexas,
é que a mente se encontra a si própria e o Eu se re-descobre no Tu,
Mais uma vez, não em termos de encontro imediato de subjectivi-
dades translúcidas, mas por interposição de um mundo partilhado.
Ganhou assim plausibilidade o projecto filosófico diltheyano
de uma ‘crítica da razão histórica’, nunca por ele totalmente levada
a efeito, mas que fez despontar e florescer virtualidades fecundas
e levou à afirmação da essencial historicidade humana, de tão ricas
conseqüências no desenrolar ulterior da hermenêutica. Reforçou-
-se ainda a intenção de Dilthey de fundamentar epistemologica-
mente as ciências humanas, não de acordo com o figurino cientí-
fico-natural, mas para fazer jus à sua verdadeira independência
cognitiva.
Como assim? Na obra Introdução às ciências do espírito (3),
no livro I, aduzem-se motivos para semelhante autonomia. As
ciências humanas nascem emancipadas, porque se centram nos
processos de expressão interna, nas vivências que seguidamente
ganham corpo cultural; a fundamentação do seu lugar indepen­
dente, ao lado das ciências do reino material, realiza-se passo a
passo, com a análise da vivência total do mundo espiritual, na sua
incomensurabilidade com toda a experiência sensível acerca do
cosmos. É verdade que os processos espirituais e os materiais se
entrosam uns nos outros, em virtude da interacção entre a unidade
psicofísica e o curso geral da natureza, ao nível dos estímulos e
dos fins. Mas os primeiros não podem derivar-se da ordem natural
mecânica.

(2) A N TH O N Y C, THISELTON, New Horizons in Henneneutics, The Theory


and Practice ofTransforming Biblical Reading, Grand Rapids, Michigan, Zon-
dervan Pub. House, 1992, p. 248.

(•’) W. DILTHEY, Introducción a las Ciências dei Espíritu, Madrid, Revista


dc Occidente, 19662, pp. 45-69.

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Incluem as ciências humanas factos naturais, sem dúvida; e a
vida espiritual do ser hum ano é uma parte, separável só por
abstracção, da unidade vital psicofísica. Em virtude de ser uma
unidade vital, existe ele como um complexo de factos espirituais,
que são o limite superior dos factos da natureza, tal como estes
A

constituem as condições inferiores da vida espiritual. E real, por


isso, uma relativa delimitação recíproca das duas classes de
ciências. Os conhecimentos de umas mesclam-se com os das outras.
As ciências do homem, da sociedade e da história têm como
fundamento as da natureza, pois incluem referências à biologia,
ao mundo inorgânico, etc. Originaram-se na prática da própria
vida, desenvolveram-se pelas, exigências da formação profissional
e estão ligadas ao exercício das funções sociais: direito, actividade
política, e assim por diante. O seu material é, por conseguinte, a
realidade histórico-social, enquanto se conservou como notícia,
dentro do tempo humano, na consciência da humanidade e se
tornou acessível à ciência como conhecimento social. Deparamos
nelas com três classes de afirmações: a) o dado na percepção real,
ou seja, o elemento histórico do conhecimento; b) o comportamento
uniforme dos conteúdos parciais dessa realidade, separados por
abstracção, isto é, o elemento teórico ; e c) juízos de valor e normas,
a saber, o elemento prático. Estas três tendências confluem, no
seio das ciências do espírito, numa determinação básica:a com­
preensão do singular e do individual constitui nelas o fim último,
além da explicação de regularidades abstractas.
Eis porque é grande a relevância do opúsculo Ide ias para uma
psicologia descritiva e analítica (1894), de notável coesão inte­
rior, de escrita concisa e precisa. O seu tema está longe de ter
perdido interesse. Continua a ser um campo de batalha eminente­
mente filosófica, mas não só.
Ajuda a perceber o modo como Dilthey perspectiva a vida
anímica: o rasgo central desta última é o fluxo permanente, a
unidade da sua torrente com os seus momentos qualitativos, as
vivências; é una e única, dotada de uma tessitura indestrutível,
não obstante todo o seu contrastado devir, que podemos percep-
cionar na consciência, sem contudo o vislumbrarmos no seu todo.
E m contraste com a experiência interna, que é um contínuo de
muitos matizes mas ligado, a experiência externa é quase ponti-
Ihista, descontínua, e só ganha coesão precisamente graças ao
contínuo anímico., em cujo marco ela se vem incrustrar. Por isso,
enquanto as ciências do espírito radicam na contextura da vida
anímica, e tentam compreendê-la nas suas objectivações culturais,
entretecendo o interior com o exterior, e vice-versa, as ciências da
natureza não têm outro recurso excepto hipotetizar, construir
nuvens de hipóteses.
Quer isto dizer que, enquanto práticas humanas e invenções
teóricas, enquanto diálogo com o cosmos, só ganham sentido no
enquadramento total de uma civilização, no jogo dos seus inte­
resses, no enleamento e na luta contra as suas possíveis ilusões e
erros.
Mas o melhor é ler e ouvir o próprio Dilthey. A sua distinção
entre ‘explicação' e ‘compreensão’ levanta, decerto, alguns pro­
blemas e suscita múltiplas questões e reservas, sobretudo na sua
aplicação dualista, exclusiva e alternativa, aos vários ramos do
saber. Mas, a uma outra luz, é verdade que ‘explicar’ e ‘compre­
ender’ não são a mesma coisa, e que ambos actuam em todo o
exercício da cognição, seja qual for o campo da sua aplicação.

***

Para a versão presente, que se ajusta o mais possível ao discurso


de Dilthey, evitando paráfrases ou fugas extraliterais, utilizou-se
o texto das obras completas, volume V, 1968, editadas pela editora
Vandenhoeck & Ruprecht de Gotinga

Elementos bibliográficos

A) Obras de Dilthey

Dilthey, W. (1914-90) Gescimmelte Schriften , Gõttingen: Van­


denhoeck & Ruprecht, 20 vols. (A edição de referência)
Dilthey, W. (1985-) Selected Works, ed. R.A. Makkreel e F.
Rodi, Princeton, NJ: Princeton University Press, 6 vols. (Vol. 1
(1989), vol. 4, Henneneutics and the Study o f History (1996), e
vol. 5, Poetry and Experience (1985). Há outros volumes em
preparação.

14
Dilthey, W, (1883, 1982j Einleitung in die Geisteswissens-
chaften, trad. R. A. Makkreel e F. Rodi, lntroduction to the Human
Sciences , in Selected Works, ed.R.A. M akkreel and F. Rodi,
Princeton, NJ: Princeton University Press, vol. 1, 1989,
Dilthey, W. (1894) Ideen über eine beschreibende und zer-
gliedernde Psychologie , trad. R. Zaner and K. Heiges, Ideas
Concerning a Descriptive and Analytic Psychology , in Descriptive
Psychology andHistorical Understanding , intr. de R.A. Makkreel,
T he Hague: Martinus Nijhoff, 1977.
Dilthey, W. (1900) ‘Entstehung der Hermeneutik’, trad de. R.A.
Makkreel eF. Rodi, ‘The Rise of Hermeneutics’, i n Hermeneutics
and the Study ofH istory, vol. 4 de Selected Works, ed. R. A. M ak­
kreel e F. Rodi, Princeton, NJ: Princeton University Press, 1996.
Dilthey, W. (1910) DerAufbau der geschichtlichen Welt in den
Geisteswissenschaften , trad de. R.A. Makkreel e F. Rodi, The
Formation o f the Historical World in the Human Sciences, in
Selected Works, ed. R.A. Makkreel e F. Rodi, Princeton, NJ:
Princeton University Press, vol. 3.)
Dilthey, W. (1911) Die Typen der Weltanschauung und ihre
Ausbildung in den metciphysischen Systemen, trad. de W. Kluback
e M. Weinbaum, Types o f Worldview and their Development in
Metaphysical Systems, in Dilthey’s Philosophy ofExistence , Nova
Iorque: Bookman Associates, 1957.
Dilthey, W. (1976) Selected Writings, ed. H.P. R ickm an,
Cambridge: Cambridge University Press.

B) Sobre W. Dilthey

Ermarth, M. (1978) Wilhelm Dilthey: The Critique o f Historical


Reason , Chicago, IL: University of Chicago Press. (Visão global
do pensamento de Dilthey; bom enquadramento histórico.
Makkreel, R.A. e Scanlon, J. (org.) (1987) D ilthey and
Phenomenology, Washington, DC: Center for Advanced Research
in Phenomenology and University Press of America. (Vários
estudiosos exploram as possíveis ligações entre D ilth ey e a
fenomenologia.)

15
I
\

Orth, E. W. (ed.) (1985) Dilthey und die Philosophie der Gegen-


wart (Dilthey e a Filosofia contemporânea), Friburgo, Alber Verlag.
(Discute-se a importância de Dilthey em relação a vários tópicos.)
Owensby, J. (1994) Dilthey and the Narrative ofHistory, Ithaca,
NY: Cornell University Press.
Rodi, F. (ed.) (1983-) Dilthey-Jahrbuch fü r Philosophie und
Geschichte der Geisteswissenschaften , Gõttingen: Vandenhoeck
& Ruprecht.
Rodi, F. e Lessing, H.-U. (org.) (1984) Materialien zur Philo­
sophie Wilhelm Diltheys , Frankfurt.

16
Capítulo I

A tarefa de uma fundamentação psicológica


das ciências do espírito

A psicologia “explicativa”, que hoje tantos trabalhos e tanto


interesse suscita, estabelece um nexo causai que pretende tornar
concebíveis todos os fenômenos da vida psíquica. Quer explicar a
constituição do mundo anímico segundo as suas componentes,
forças e leis, tal como a física e a química explicam a constituição
do mundo dos corpos. Representantes desta psicologia explicativa
são os psicólogos associacionistas, Herbart, Spencer, Taine, as
diversas formas de materialismo. A distinção entre ciências
explicativas e descritivas, que aqui tomamos como base, corres­
ponde ao uso lingüístico. Importa entender por ciência explicativa
toda a subordinação de um campo de fenômenos a um nexo causai
por meio de um número limitado de elementos (isto é, partes
integrantes do nexo) univocamente determinados. Este conceito
indica o ideal de semelhante ciência, tal como ele se formou
sobretudo graças ao desenvolvimento da física atômica. A psi­
cologia explicativa pretende, pois, subordinar os fenômenos de
vida psíquica a uma conexão causai mediante um número limitado
/

de elem entos u n iv o cam en te determ inados. E uma ideia de


extraordinária ousadia, que conteria em si a possibilidade de uma
imensurável evolução das ciências do espírito para um sistema
rigoroso de conhecim ento causai, que corresponderia ao das
ciências da natureza. Se toda a teoria psíquica procura trazer à

17
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

consciência as relações causais da vida anímica, então a carac­


terística diferencial da psicologia explicativa consiste na sua con­
vicção de poder alcançar um conhecimento pleno e transparente
dos fenômenos psíquicos, a partir de um número limitado de
elementos univocamente determinados. O nome de psicologia
‘construtiva’ caracterizá-la-ia com maior precisão e, ao mesmo
tempo, realçaria o amplo contexto histórico em que ela se encontra.
A psicologia explicativa só pode conseguir o seu fito através
de urna combinação de hipóteses.
O conceito de hipótese pode conceber-se de modos diferentes.
Todo o raciocínio que, mediante a indução, procura completar um
conjunto de experiências deve designar-se, em princípio, como
hipótese. A conclusão nele contida encerra uma expectativa que,
para lá do dado, se estende a algo não dado. Semelhantes racio­
cínios integradores existem, naturalmente, em todo o gênero de
exposição psicológica. Sem tal inferência, nem sequer posso
reduzir uma recordação a uma impressão anterior. Seria insensato
pretender excluir da psicologia os elementos hipotéticos. Seria
também injusto censurar à psicologia explicativa o emprego de
tais componentes, já que a psicologia descritiva também deles não
poderia prescindir.
Mas, nas ciências da natureza, elaborou-se o conceito de hipó­
tese num sentido mais determinado, na base das condições que se
dão no conhecimento natural. Como nos sentidos somente é dada
a coexistência c a sucessão, sem o nexo causai daquilo que se
apresenta simultânea ou sucessivamente, o vínculo causai surge
na nossa apreensão da natureza só graças a uma acção que a com ­
pleta. A hipótese é assim o recurso necessário do conhecimento
progressivo da natureza. Em geral, são várias as hipóteses que se
apresentam como igualmente possíveis; a tarefa é, então, com ­
provar uma delas c excluir as outras, desenvolvendo as suas con­
seqüências e comparando-as com os factos. A força da ciências
naturais radica em que, graças à matemática e ao experimento,
podem conferir a este processo o grau máximo de exactidão e de
segurança. O exemplo máximo e mais instrutivo de como uma
hipótese se converte em patrimônio seguro da ciência temo-lo na

18
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA...

hipótese copernicana de que a Terra gira em volta do seu eixo em


vinte e quatro horas menos quatro minutos e possui, ao mesmo
tempo, um movimento progressivo à volta do sol durante cerca de
trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto; foi ela desenvolvida
e fundada sucessivamente por Kepler, Galileu, Newton, Foucault,
etc., até se transformar numa teoria subtraída a toda a dúvida.
Outro exemplo famoso de como uma hipótese aumenta a sua
probabilidade, até ao ponto de já não ser necessário ter em conta
outras possibilidades, é a explicação da luz pela hipótese ondu-
latória, em contraste com a hipótese da emanação. Saber em que
ponto a hipótese subjacente á uma teoria científico-natural obtém
semelhante grau de probabilidade, graças à travação com todo o
conhecimento natural e à comprovação das conseqüências nos
factos, de maneira que se possa prescindir do nome de hipótese, c
decerto uma questão ociosa e, ao mesmo tempo, insolúvel. Há
uma característica muito simples, graças à qual distingo as hi­
póteses dentro do vasto domínio de proposições baseadas em
inferências. Quando uma ilação pode estabelecer um fenômeno
ou um grupo de fenôm enos numa conexão suficiente que se
harmoniza com todos os factos conhecidos e com as teorias válidas,
mas não consegue excluir outras possibilidades de explicação,
estam os perante uma hipótese. N unca deparam os com esta
característica, sem que semelhante proposição possua o carácter
de hipótese. Mas também onde ela falta, quando não se formaram,
ou não se corroboraram, hipóteses contrárias, permanece cm aberto
a questão de se uma proposição fundada em conclusões indutivas
não possuirá, todavia, o carácter de hipótese. Não dispomos de
nenhuma característica absoluta pela qual possamos, em todas as
circunstancias, distinguir as proposições eientífico-naturais, que
encontraram para sempre a sua formulação definitiva, daquelas
que expressam adequadamente a conexão dos fenômenos só para
a situação actual do nosso conhecimento acerca de tais fenômenos.
Persiste sempre um hiato intransponível entre o grau máximo de
probabilidade alcançado por uma teoria indutivamente fundada e
a apodicticidade que corresponde às relações matemáticas fun­
damentais. Não são só as relações numéricas que possuem este

19
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

caracter apodíctico; seja qual for a forma como se constituiu a


nossa imagem do espaço, tal processo situa-se para lá da nossa
memória: ei-la justamente diante de nós; em qualquer lugar seu
podem os apreen der as m esm as relações fundam entais, com
absoluta independência do lugar em que se apresentam. A geo­
metria é a análise desta imagem espacial, de todo independente da
existência dos objectos singulares. Aqui radica o caracter da sua
apodicticidade, não é condicionado pela origem desta repre­
sentação espacial. Neste sentido, as hipóteses não têm só uma
significação decisiva como etapas determinadas na origem das
teorias científico-naturais; não pode também deixar-se de observar
que, inclusive com o incremento máximo da probabilidade da nossa
explicação da natureza, jamais desaparecerá o seu caracter hipoté­
tico. Nem por isso ficam abaladas as nossas convicções científico-
-naturais. Quando Laplace introduziu o cálculo de probabilidades
no tratamento das inferências indutivas, alargou-se também a
mensurabilidade ao grau de segurança do nosso conhecimento
natural. Subtraímos assim o chão à utilização do caráctcr hipotético
da nossa explicação da natureza em prol de um cepticismo árido
ou de um misticismo ao serviço da teologia.
Mas quando a psicologia explicativa transfere o método cien-
tífico-naturai da formação de hipóteses, graças á qual se acrescenta
uma conexão causai complementar, surge a questão de se tal
transferência será justificada. Importa mostrar que semelhante
transferência tem lugar, de facto, na psicologia explicativa, e é
necessário aduzir os pontos de vista que suscitam escrúpulos em
face desta transferência. Faremos ambas as coisas, por agora, provi­
soriamente, já que na exposição ulterior se encerram a este respeito
outros desenvolvimentos directos ou indirectos.
Constatamos, em primeiro lugar, o facto de que a toda a psi­
cologia explicativa está subjacente uma combinação de hipóteses,
que se revelam como tais em virtude da característica mencionada,
pois não podem excluir outras possibilidades. A cada complexo
de hipóteses contrapõem-se nela muitas outras. Ruge no seu âmbito
uma luta de todos contra todos, não menos violenta do que a que
impera no campo da metafísica. Nem na lonjura do horizonte se

20
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA...

vislumbra algo que consiga arbitrar esta peleja. Consola-se, sem


dúvida, a psicologia pensando nos tempos em que também não
cra melhor a situação da física e da química; mas, que imensas
vantagens têm estas na firmeza dos seus objectos, no uso livre do
experimento, na mensurabilidade do mundo espacial! Além disso,
a insolubilidade do problema metafísico da relação entre o mundo
espiritual e o corporal impede, neste domínio, o desenvolvimento
puro de um conhecimento causai seguro. Ninguém, pois, pode
dizer se algum dia acabará esta luta das hipóteses no seio da psi­
cologia explicativa, nem quando tal acontecerá.
Quando pretendemos estabelecer um conhecimento causai
pleno, somos impedidos por uma nuvem dc hipóteses, sem nenhu­
ma perspectiva de as comprovar com os factos psíquicos. Correntes
muito influentes da psicologia mostram-nos isto com grande
claridade. Uma hipótese deste tipo é a teoria do paralelismo entre
os processos nervosos e os processos anímicos, segundo a qual os
factos espirituais mais poderosos também nada mais são do que
fenômenos concomitantes da nossa vida corporal, Semelhante
hipótese é a redução de todos os fenômenos de consciência a
elementos de tipo atômico, que actuam entre si segundo relações
nomológieas. Outra hipótese análoga é a construção, com o intento
de explicação causai, de todos os fenômenos psíquicos por meio
das duas classes de “sensações” e “sentimentos” ; a vontade, que
na nossa consciência e na nossa conduta vital se apresenta tão
impetuosa, não passaria então de uma aparência secundaria.
Mediante puras hipóteses deriva-se a autoconsciência a partir dos
elementos psíquicos e dos processos entre eles. Dispomos somente
de hipóteses sobre os processos causais, graças aos quais o nexo
psíquico adquirido influi constantemente, dc modo tão poderoso
c misterioso, nos nossos processos conscientes dc raciocínio e
volição. Hipóteses, em toda a parte só hipóteses! E não como
componentes subordinadas, que se ajustam singularmente à marcha
do p ensam en to científico. Tais hipóteses são, com o vim os,
inevitáveis. Mais ainda, hipóteses que, como elementos da expli­
cação causai psicológica, possibilitam a derivação de todos os
fenômenos psíquicos e devem neles comprovar-se.

21
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

Os representantes da psicologia explicativa costumam apoiar-


-se nas ciências da natureza para justificar um tão amplo emprego
de hipóteses. Mas já no início das nossas investigações queremos
proclam ar a pretensão das ciências do espírito de determinar
autonomamente os seus métodos, de harmonia com o seu objecto.
As ciências do espírito, partindo dos conceitos mais gerais da
metodologia geral, devem chegar, graças à comprovação nos seus
objectos peculiares, a métodos e a princípios mais genuínos dentro
do seu âmbito, tal como fizeram as ciências da natureza. Não nos
revelaremos genuínos discípulos dos grandes pensadores cientí-
fico-naturais pelo facto de trasladar para o nosso campo os métodos
por eles encontrados mas, ao invés, conformando o nosso conheci­
mento à natureza dos nossos objectos e comportando-nos em
relação a estes tal como eles com os seus. Natura parando vincitur.
As ciências do espírito distinguem-se das ciências da natureza,
em primeiro lugar, porque estas têm como objccto seu factos que
se apresentam na consciência dispersos, vindos de fora, como
fenômenos, ao passo que naquelas se apresentam a partir de dentro,
como realidade e, originaliter , corno uma conexão viva. Por isso,
nas ciências da natureza é-nos oferecido um nexo natural só através
de ilações suplementares, mediante um complexo de hipóteses.
Pelo contrário, nas ciências do espírito, a base é a conexão da vida
anímicacomo algo originariamente dado. “Explicamos” a natureza,
“compreendemos” a vida anímica. Na experiência interna são
também dados os processos de causação, dos laços das funções,
como membros singulares da vida psíquica, num todo. Primordial
é, aqui, a conexão vivida, secundária a distinção dos seus diversos
membros. Isto condiciona uma diferença muito grande dos métodos
com que estudamos a vida psíquica, a história e a sociedade, relati­
vamente aos outros métodos pelos quais se obtém o conhecimento
da natureza. Para a questão que aqui nos interessa infere-se da
diferença aduzida que as hipóteses, no seio da psicologia, não
desempenham de modo algum o mesmo papel que no interior do
conhecimento natural. Neste toda a conexão se estabelece mediante
uma formação de hipóteses; na psicologia, a conexão é dada de
um modo originário e constante na vivência: a vida está presente

22
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA.

em toda a parte só como nexo. Portanto, a psicologia não necessita


dc conceitos subjacentes obtidos por inferências para estabelecer
uma conexão que englobe os grandes grupos dos factos anímicos.
Quando uma classe de efeitos surge condicionada interiormente
c, todavia, se apresenta sem consciência alguma das causas que
interiormente actuam, como acontece na “reprodução” ou no
influxo que sobre processos conscientes exerce a conexão psíquica
adquirida, subtraída à nossa consciência, é também possível que a
descrição e a análise do decurso de tais processos os submeta à
grande articulação causai do todo, que pode ser estabelecida a
r% ■.

partir das experiências internas. E, por isso, quando constrói uma


hipótese sobre as causas dc tais processos, não se sente impelida a
pô-la, cm seguida, nos alicerces da psicologia. O seu método é
inteiramente diferente do da física ou da química. A hipótese não
é o seu fundamento imprescindível. Portanto, quando a psicologia
explicativa subordina os fenômenos da vida psíquica a um número
limitado de elementos explicativos univocamente determinados,
de absoluto carácter hipotético, não podemos admitir que tal possa
ser fundam entado pelos seus representantes com o o destino
inevitável de toda a psicologia, a partir da analogia do papel das
hipóteses no conhecimento natural. Além disso, no âmbito psi­
cológico, as hipóteses também não possuem a capacidade de reali­
zação de que deram provas no conhecimento científico-natural.
Não é possível elevar os factos da vida psíquica à determinidade
estrita que se exige para a comprovação de uma teoria, mediante a
comparação das suas conseqüências com tais factos. Por isso, em
nenhum ponto decisivo se conseguiu a exclusão de outras hipóteses
e a averiguação da hipótese alternativa. Na fronteira da natureza e
da vida anímica, o experimento e a determinação quantitativa
revelaram-se igualmente prestáveis à formação de hipóteses, como
acontece no conhecimento natural. Mas nada disso se adverte nos
campos centrais da psicologia. Sobretudo, a questão, tão decisiva
para a psicologia construtiva, quanto às relações causais que condi­
cionam a influenciação dos processos conscientes pela conexão
psíquica adquirida ou a “reprodução”, não avançou sequer um
passo, apesar de todos os esforços até agora empreendidos. Quão

23
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

diversamente se podem combinar as hipóteses e com que igual


facilidade se podem delas derivar os grandes factos psíquicos
decisivos, a autoconsciência, o processo lógico e a sua evidência,
ou a consciência moral! Os defensores de semelhante conexão
hipotética possuem o olhar mais acutilante para aquilo que lhe
pode servir de corroboração, e são de todo cegos para aquilo que
a contradiz. Neste caso, sim, podemos dizer da hipótese o que
Schopenhauer afirmava, erroneamente, de todas em geral: seme­
lhante hipótese leva na cabeça onde se instalou, ou onde nasceu,
uma vida que se pode comparar à de um organismo: recebe do
mundo exterior apenas o que lhe é homogêneo e a faz prosperar;
pelo contrário, aquilo que lhe é heterogêneo ou prejudicial, ou
não o deixa aproximar-se ou, se inopinadamente o recebe, expul­
sa-o sem qualquer assimilação. Por isso, as conexões hipotéticas
da psicologia explicativa não têm em vista elevar-se alguma vez à
categoria que corresponde às teorias científico-naturais. Levanta­
mos, por isso, a questão de se outro método da psicologia - a que
chamaremos descritivo e analítico - poderá evitar a fundamentação
da nossa compreensão de toda a vida psíquica sobre um conjunto
de hipóteses.
O predomínio da psicologia explicativa ou construtiva, que
funciona com hipóteses segundo a analogia do conhecimento
natural, implica conseqüências extraordinariamente danosas para
o desenvolvimento das ciências do espírito. Aparentemente, os
investigadores positivos vêem-se, neste campo, obrigados a
renunciar a toda a fundamentação psicológica ou, então, a aceitar
todos os inconvenientes da psicologia explicativa. Por isso, a
ciência actual desembocou no dilema seguinte, que contribuiu de
modo extraordinário para o incremento do espírito céptico e da
empiria superficial, estéril e, portanto, para a separação crescente
da vida em relação ao saber. Ou as ciências do espírito se servem
dos fundamentos que a psicologia lhes oferece, c adquirem assim
um carácter hipotético, ou procuram resolver os seus problemas,
sem o fundamento de qualquer sinopse cientificamente ordenada
dos factos psíquicos, apoiadas apenas na equívoca e subjectiva
psicologia da vida. No primeiro caso, a psicologia explicativa

24
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA...

comunica à teoria do conhecimento e às ciências do espírito todo


o seu caracter hipotético.
Podemos pôr num mesmo plano a teoria do conhecimento e as
ciências do espírito, no tocante à necessidade de uma fundamen­
tação psicológica, embora exista uma diferença considerável
quanto à amplitude e à profundidade de tal fundamentação. A teoria
do conhecimento ocupa, decerto, na conexão da ciências, um lugar
muito diferente do das ciências do espírito. É impossível fazê-la
preceder de uma psicologia. Todavia, embora de forma diferente,
existe também para ela o mesmo dilema. Poderá ela configurar-se
sem pressupostos psicológicos? E se tal não é possível, quais seriam
as conseqüências, no caso de se fundar numa psicologia explica­
tiva? A teoria do conhecimento nasceu da necessidade de se
garantir, no oceano das flutuações metafísicas, um pedaço de terra
firme, um conhecimento universalmente válido de alguma ampli­
tude. Se ela se tornasse insegura e hipotética, acabaria com a sua
própria finalidade. Vemos, pois, que o mesmo fatal dilema se põe
à teoria do conhecimento e às ciências do espírito.
As ciências do espírito buscam um fundamento firme, univer­
salmente válido para os conceitos e as proposições com que se
vêem forçadas a operar, Sentem uma desconfiança, demasiado
justificada, contra as construções filosóficas submetidas a discussão
c que introduzem esta discussão nas análises e nas comparações
empíricas. Por isso, em amplos círculos da jurisprudência, da
economia política e da teologia, existe a tendência a renunciar de
todo às fundamentações psicológicas. Cada uma delas procura
estabelecer uma conexão a partir do laço empírico dos tactos e
das regras ou normas próprias do seu âmbito, cuja análise teria
como resultado certos conceitos e proposições elementares gerais
como subjacentes à respectiva ciência do espírito. Dada a situação
da psicologia explicativa, não podem fazer outra coisa, se querem
escapar aos múltiplos escolhos e vórtices da psicologia explicativa.
Mas, ao fugir do vórtice filosófico de Caribdis, enredam-se nos
escolhos de Cila, isto é, de uma empiria anêmica.
Não se requer nenhuma prova de que a psicologia explicativa,
porquanto só se pode fundar em hipóteses incapazes de se alçar à

25
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

categoria de uma teoria convincente, que exclui as outras hipóteses,


deveria comunicar a sua incerteza às ciências empíricas do espírito,
que nela se apoiassem. E mostrar que toda a psicologia explicativa
necessita de tais hipóteses para se fundamentar será um objectivo
nuclear da nossa exposição. Mas deve, já aqui, comprovar-se que
nenhuma tentativa de estabelecer uma ciência empírica do espírito
sem psicologia pode levar a um resultado útil.
Uma empiria que renuncie à fundamentação do que acontece
no espírito, ao nexo compreendido da vida espiritual, é forçosa­
mente estéril. Tal pode comprovar-se em cada uma das ciências
do espírito. Cada uma delas carece de conhecimentos psicológicos.
Assim, toda a análise do facto religião recorre a conceitos como
sentimento, vontade, dependência, liberdade, motivo, que só
podem ser clarificados num contexto psicológico. Lida com nexos
da vida psíquica, já que é nesta que brota e ganha força a cons­
ciência dc Deus. Mas estes nexos são condicionados pela textura
psíquica geral, regular, e só a partir dela são compreensíveis. A
jurisprudência ocupa-se de concertos como norma, iei, imputa­
bilidade, de nexos psíquicos que exigem uma análise psicológica,
Sem uma compreensão clara da conexão regular de cada vida
anímica, é-íhe impossível expor a urdidura em que surge o
sentimento jurídico ou aquela em que os fins se tornam efectivos
no direito e as vontades são submetidas à lei. As ciências políticas,
que lidam com a organização exterior da sociedade, encontram
cm toda a relação associativa os factos psíquicos dc comunidade,
domínio c independência. Estes exigem uma análise psicológica.
A história e a teoria da literatura e da arte vêem-se em toda a parte
remetidas para os sentimentos estéticos, compostos, do belo, do
sublime, do humorístico ou do ridículo. Estes, sem análise psíquica,
permanecem como simples representações obscuras e mortas para
o historiador da literatura, que não compreenderá a vida de nenhum
poeta, se não conhecer os processos da imaginação. É assim, e
nenhuma delimitação de especialidades o pode impedir: assim
como os sistemas culturais, a economia, o direito, a religião, arte
e a ciência, a organização externa da sociedade nas associações da
família, do comum, da Igreja, do Estado, dimanaram da textura

26
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA...

viva da alma humana, assim também só a partir dela se podem


explicar. Os factos psíquicos constituem a sua componente mais
importante; não podem ser estudados sem a análise psicológica.
Encerram em si um nexo, porque a vida psíquica é uma trama. Por
isso, a compreensão desta conexão interna que em nós existe
condiciona em toda a parte o seu conhecimento. Conseguiram
surgir como um poder que se fecha sobre os indivíduos, porque
existe uniformidade e regularidade na vida psíquica, e tal possibilita
uma ordem análogapara muitas unidades de vida (')•
Assim como o desenvolvimento de cada uma das ciências do
f :

espírito está ligado à constituição da psicologia, também não é


possível conseguira articulação das mesmas num todo sem com ­
preender a urdidura psíquica cm que se encontram entrosadas.
Sem referência alguma à conexão psíquica em que se fundam as
suas relações, as ciências do espírito são um agregado, um feixe
disperso, e não um sistema. Qualquer ideia, por muito bronca que
seja, assenta em alguma ideia grosseira acerca do nexo dos fenô­
menos psíquicos. Só a partir da tessitura psíquica ampla, uniforme,
se podem tornar compreensíveis as relações em que se encontram
a economia, o direito, a religião, a arte e o saber entre si e com a
organização externa da sociedade humana, pois deste marco foram
elas brotando lado a lado e, graças a ela, coexistem cm cada unidade
psíquica de vida, sem mutuamente se confundir ou destruir.
A mesma dificuldade pesa sobre a teoria do conhecimento.
Uma escola que sobressai pela sagacidade dos seus representantes
exige a total autonomia da teoria do conhecimento relativamente
à psicologia. Afirma ela que na "crítica da razão” de Kant se levou

(') Smoller, no seu ensaio sobre economia nacional, teoria cconóm ico-
-nacional e seus métodos - no novo Dicionário cie ciências políticas - mostrou
de modo convincente, a propósito da economia política, a dependência em que
se encontra uma ciência particular do espírito, se pretende fixar objcctivos à vida
prática, de um contexto mais amplo. Leva também ao reconhecimento de que só
um nexo teleológico pode solucionar esta tarefa. O presente ensaio pretende
mostrar como a psicologia descritiva contém os meios para um conhecimento
universalmente válido de sem elhante contextura, subjacente às ciências do
espírito.

27
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

a cabo, em princípio, a emancipação da teoria do conhecimento


mediante um método especial. Quer desenvolver este método; aqui
parece residir, segundo ela, o futuro da teoria do conhecimento.
Mas, claro está, os factos espirituais que constituem o material
da teoria do conhecimento não podem ser entrelaçados sem o pano
de fundo de alguma representação do nexo psíquico. Nenhuma
arte mágica do método transcendental torna possível o que em si é
impossível. Nenhum sortilégio da escola kantiana pode aqui ajudar.
A aparência de tal conseguir deve-se a que o teórico do conhe­
cimento possui, na sua própria consciência viva, esta textura e a
transfere para a sua teoria. Pressupõe-na. Serve-se dela. Mas não
a controla. Por isso, agregam-se-lhe inevitavelmente, a partir das
esferas lingüística e de ideias da época, interpretações desta textura
em conceitos psicológicos. Aconteceu assim que os conceitos
fundamentais da crítica kantiana da razão pertencem a uma deter­
minada escola psicológica. A teoria classificadora das faculdades,
da época de Kant, teve como conseqüência as separações taxativas,
a técnica dissecadora da sua crítica da razão. Posso ver isto nas
suas separações de intuição e pensamento, de matéria c forma do
conhecimento. Ambas as distinções, tão taxativas em Kant, dila­
ceram uma conexão viva,
A nenhuma das suas descobertas atribuía Kant tanta importância
como à sua separação nítida da natureza e dos princípios da intuição
e do pensamento. [Mina, sem dúvida, esta separação rigorosa, pois
foi o primeiro a oferecer uma prova clara da acção do entendimento
no seio da sensibilidade.] Mas naquilo que ele chama intuição
cooperam sempre processos mentais ou actos que lhe são equi­
valentes. Assim, o diferenciar, a avaliação de graus, o igualar, a
união e a separação. Lidamos, pois, aqui unicamente com etapas
diferentes na acção dos mesmos processos. Os mesmos processos
elementares de associação, de reprodução, de comparação, de
diferenciação, de apreciação de graus, de separação e de união, do
prescindir e do destacar - em que depois assenta a abstracção -
actuam na formação das nossas percepções, das nossas imagens
reproduzidas, das figuras geométricas, das representações da
fantasia, que, em seguida, imperam também no pensamento dis­

28
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA...

cursivo. Esses processos constituem o segundo e imensamente


fecundo campo do pensamento tácito. As categorias formais foram
abstraídas de tais funções lógicas primárias. Kant não tinha, pois,
necessidade de deduzir do pensamento discursivo estas categorias.
E todo o pensamento discursivo se pode representar como uma
etapa superior dos processos mentais tácitos.
Hoje, já não se pode também defendera separação entre matéria
e forma do conhecimento desenvolvida pelo sistema kantiano.
Muito mais importantes do que esta separação são as relações
internas que existem entre a multiplicidade das sensações, enquanto
matéria do nosso conhecimento, e a forma de conceber esta matéria.
Possuím os ao mesmo tempo sons diferentes e unimo-los na
consciência, sem captarmos a sua divergência recíproca numa
coexistência. Pelo contrário, só numa coexistência podemos lograr
uma pluralidade de sensações tácteis ou ópticas. Nem sequer
podemos representar junta e simultaneamente duas cores excepto
numa coexistência. Não está claramente em jogo nesta necessidade
de as possuir em coexistência a natureza das impressões ópticas e
das sensações tácteis? Não é, pois, muito provável que aqui a forma
da sua conjunção dependa da natureza da matéria sensível? A
seguinte consideração mostra-nos também como é necessário
completar a doutrina de Kant acerca da matéria e da forma do
conhecimento. Uma multiplicidade de sensações como simples
matéria implica em cada ponto diferenças, por exemplo, relações
e gradações entre as cores. Mus estas diferenças e estes graus só
existem para uma consciência abarcadora; portanto, a forma tem
de estar presente para que a matéria possa existir, como também
deve estar presente a matéria a fim de a forma se apresentar. De
outro modo seria de todo incompreensível como é que elementos
psíquicos materiais poderiam ser articulados a partir de for a, graças
ao víncuio de uma consciência unificadora (2).
Por isso, na teoria do conhecimento, não será possível subtrair-
-se à introdução arbitrária e fragmentária de pontos de vista psico-
(2) Para complclar esta breve exposição, rcnielo para as subtis investigações
de Stuinpl' sobre psicologia e teoria do conhecim ento nas publicações da
Academia bávara das Ciências.

29
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

lógicos, se não estabelecermos como base, com consciência


científica, uma apreensão clara da tessitura anímica. Poderemos
eludir as influências casuais de psicologias errôneas na teoria no
conhecimento, se conseguirmos pôr à sua disposição proposições
válidas acerca da textura da vida psíquica. Seria, decerto, impro­
cedente exigir como base antecipada da teoria do conhecimento
uma psicologia descritiva desenvolvida. Mas, por outro lado, a
teoria do conhecimento sem pressupostos é uma ilusão.
Poderíamos, pois, imaginar do seguinte modo a relação entre
psicologia e teoria do conhecimento. Assim como esta vai buscar
a outras ciências proposições seguras e universalmente válidas,
poderia também receber da psicologia descritiva e analítica um
complexo de proposições de que tem necessidade e não submetido
a dúvida alguma. Uma rede lógica artiííciosa, tecida a partir de
dentro e, sem chão, agitando-se no ar vazio - alguém acredita que
semelhante teia de aranha será mais segura e sólida do que uma
teoria do conhecimento que se serve de proposições universalmente
válidas e sólidas, já extraídas e comprovadas nas intuições, nas
ciências particulares? Poderá, porventura, assinalar-se uma teoria
do conhecim ento que não tenha feito de um modo tácito ou
expresso semelhantes empréstimos? O que importa é se as pro­
posições que se foram buscar de empréstimo resistiram à prova da
validade universal, da evidência mais rigorosa, cujo conceito
encontrará então o seu sentido e a justificação do seu emprego nos
fundamentos da teoria do conhecimento, os quais residem unica­
mente na experiência interna. Disto se poderia também tratar na
aceitação de proposições psicológicas. Haveria apenas uma ques­
tão: seria possível facultar tais proposições sem uma psicologia
hipotética? Já isto nos leva ao problema de uma psicologia em
que as hipóteses não desempenham o mesmo papel que na psi­
cologia explicativa agora dominante.
Mas a relação da psicologia com a teoria do conhecimento é
diferente da que conserva qualquer outra ciência, mesmo as
pressupostas por Kant, a matemática, a ciência matemática da
natureza e a lógica. A conexão psíquica constitui o fundo do pro­
cesso cognoscitivo e, portanto, este processo só nesta conexão

30
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA...

psíquica pode ser estudado e determinado no seu alcance. Já vimos


que a vantagem metodolódica da psicologia consiste em que a
textura anímica lhe é dada de um modo imediato, vivo, como
realidade vivida. A vivência da mesma está subjacente a toda a
apreensão dos factos espirituais, históricos e sociais. Mais ou
menos esclarecida, analisada, investigada. A história das ciências
do espírito tem como seu fundamento esta conexão vivida e ele­
va-a, pouco a pouco, a uma mais clara consciência. A partir daqui
pode também resolver-se o problema da relação entre teoria do
conhecimento e psicologia. Na consciência viva e na descrição
f • í'

universalmente válida desta conexão psíquica está contido o


fundamento da teoria do conhecimento. Esta não precisa de uma
psicologia completa, desenvolvida; pelo contrário, toda a psicolo­
gia desenvolvida é apenas o apuramento científico daquilo que
constitui também o fundo da teoria do conhecimento. Teoria do
conhecimento é psicologia em movimento, e que se dirige para
uma meta determinada. Tem o seu fundamento na autognose, que
abarca toda a realidade intacta da vida anímica; a validade univer­
sal, a verdade, a realidade, são determinadas no seu sentido unica­
mente a partir desta realidade.
Resumamos. O que importaria exigir da psicologia e o que
constitui o núcleo do seu método peculiar impelem-nos na mesma
direcção. Só uma ciência que denominarei psicologia descritiva e
analítica, em oposição à explicativa ou construtiva, nos pode livrar
de todas as dificuldades expostas. Entendo por psicologia descritiva
a exposição das componentes e dos nexos que se apresentam
uniformemente em toda a vida psíquica humana desenvolvida,
entrelaçados numa única textura, que não é inferida ou interpolada
peto pensamento, mas simplesmente vivida. Esta psicologia é,
portanto, a descrição e a análise de uma conexão que, dc modo
originário e sempre, nos é dada como a própria vida. Daí se depre­
ende uma conseqüência importante. Tem por objecto as regulari-
dades no contexto da vida psíquica desenvolvida. Expõe esta
tessitura da vida interna num homem típico. Observa, analisa,
experimenta e compara. Serve-se de qualquer ajuda para a solução
da sua tarefa. Mas o seu significado na articulação das ciências

31
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

assenta em que todo o nexo por ela utilizado pode ser univocamente
verificado mediante a percepção interna, e em que toda a conexão
análoga se pode mostrar como membro da textura mais ampla,
total, não inferida, mas originalmente dada.
O que entendo por psicologia descritiva e analítica tem, ade­
mais, de satisfazer outra exigência, implicada nas necessidades
das ciências do espírito e na direcção da vida por elas.
As uniform idades que constituem o objecto principal da
psicologia do nosso século referem-se às formas do acontecer
interno. O conteúdo poderoso da realidade da vida anímica excede
esta psicologia. Nas obras dos poetas, nas reflexões sobre a vida
expressas por grandes escritores como Séneca, Marco Aurélio,
S. Agostinho, Maquiavel, Montaigne, Pascal, encerra-se uma com­
preensão do homem em toda a sua realidade, longe e aquém da
qual se encontra qualquer psicologia explicativa. Mas em toda a
literatura reflexiva, que quisesse abarcar a realidade integral do
homem, sente-se, ao lado da sua superioridade de conteúdo, a
incapacidade de uma exposição sistemática. Sentimo-nos afectados
até ao mais íntimo por reflexões isoladas. Aparentemente, paten-
teia-se nelas a própria fundura da vida. Mas, logo que tentamos
estabelecer uma conexão clara, elas não nos servem. Totalmente
diferente de tais reflexões é a sabedoria dos poetas sobre o homem
e sobre a vida que nos fala só através das figuras e das disposições
dos destinos, aqui e além iluminados, quando muito, de modo
fulgurante pela reflexão. Mas também esta sabedoria não contém
nenhuma urdidura geral apreensível da vida psíquica. Ouvimos
até à náusea que o rei Lear, Hamlet e Macbeth encerram mais
psicologia do que todos os manuais juntos. Oxalá esses fanáticos
da arte nos desvendassem a psicologia desenvolvida em tais obras!
Se por psicologia entendemos uma exposição da conexão regular
da vida psíquica, então as obras dos poetas não contêm psicologia
alguma; não há nelas nenhuma psicologia velada, e nenhuma arte
mágica poderá delas extrair uma teoria análoga acerca da unifor­
midade dos processos psíquicos. Mas é certo que o modo como as
grandes escritores e poetas abordam a vida humana constitui tarefa
e matéria para a psicologia. Depara-se aqui com a compreensão

32
A TAREFA DE UMA FUNDAMENTAÇÃO PSICOLÓGICA...

intuitiva da conexão integral de que a psicologia, à sua maneira,


procura aproximar-se, generalizando e servindo-se da abstracção.
Deseja-se uma psicologia que seja capaz de apreender na rede das
suas descrições o que estes poetas e escritores contêm, e que hoje
também não se encontra na teoria psicológica; uma psicologia que
torne úteis para o saber humano, numa textura de validade univer­
sal, os pensamentos que em S. Agostinho, Pascal ou Lichtenberg
sobressaem tanto pela sua rude iluminação unilateral; e só uma
psicologia descritiva e analítica se pode acercar da resolução desta
tarefa; só no seu âmbito é possível tal solução. Pois parte da co­
nexão vivida, que nos é dada de uni modo originário e com uma
força imediata; e expõe também aquilo que ainda é inacessível à
análise, sem o silenciar.
Se consideramos em conjunto as características de uma psi­
cologia descritiva e analítica por nós expostas, veremos também
com claridade a importância que a solução desta tarefa terá para a
própria psicologia explicativa. Esta obteria um firme vigamento
descritivo, uma terminologia definida, análises exactas e um instru­
mento importante para o controlo das suas explicações hipotéticas.
-\
Capítulo II

A distinção entre a psicologia explicativa


e a descritiva

Não é nova a distinção entre uma psicologia descritiva e outra


explicativa. Várias vezes na história da psicologia moderna se
repetiu a tentativa de levar a cabo duas abordagens complementares
da mesma. Christian Wolff via na distinção entre psicologia racio­
nal e empírica um especial timbre de glória da sua filosofia Q .
Segundo ele, a psicologia empírica é a ciência empírica que nos
faculta o conhecimento daquilo que existe na alma humana. Pode
comparar-se com a física experimental (“Deutsche Log., § 152
Nach. V. s. Schriften, p. 232). Não pressupõe a psicologia racional,
não pressupõe em geral nenhuma outra ciência. Serve antes para
examinar e confirmar o desenvolvido a priori pela psicologia
racional (Psych. emp. §§ 1,4,5). Esta é por ele designada também
como explicativa (Ps. rat., § 4). Encontra a sua base empírica na
psicologia empírica. Por meio dela desenvolve a priori , partindo
da ontologia e da cosmologia, o que é possível na alma humana. E
como possui a sua base empírica na psicologia empírica acha tam­
bém nela o seu controlo (Ps. emp., § 5). Mas Kant demonstrou a
impossibilidade de uma psicologia racional e, todavia, ficou-nos

(■’) WüiíT apresentou a distinção, primeiro, em Discursas praeliminaris


lotfices, § 12 e, em seguida, quando Thtiming se lhe antecipou no desenvolvi­
mento, apareeeu a sua psicologia empírica cm 1732 e a racional em 1734.

35
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

destas proposições de Wolff, como núcleo precioso, a distinção


entre um método descritivo e outro explicativo, e a noção de que a
psicologia descritiva constitui a base empírica e o controlo da
explicativa.
Dentro da escola de Herbart, Theodor Waitz desenvolve esta
distinção em sentido moderno. Na sua Psicologia como ciência
natural, 1849, fixou o método desta obra, afirmando que explicava
os fenômenos psíquicos dados na experiência mediante hipóteses
adequadas; fundou deste modo, na Alemanha, a Psicologia expli­
cativa segundo o modelo científico-natural moderno. Em 1852
expôs no Monatsschrift de Kiel o plano de uma psicologia descri­
tiva que acompanharia esta psicologia explicativa. Baseava esta
distinção na separação que existe no conhecimento da natureza
entre as ciências descritivas e as teóricas. A psicologia descritiva,
em paralelo com as ciências da vida orgânica, dispõe dos seus
recursos metódicos: descrição, análise, classificação, comparação
c teoria evolutiva; deve sobretudo constituir-se como psicologia
comparada e como teoria da evolução psíquica. A psicologia
explicativa ou científico-natural trabalha com o material que a
descritiva lhe subministra, investiga nele as leis gerais que regem
o desenvolvimento e o curso da vida psíquica e expõe as relações
dc dependência em que se encontra a via da psíquica relativamente
ao seu organismo e ao mundo exterior. Compõe-se, assim, de uma
ciência explicativa da vida anímica e de uma ciência da inleracção
entre ela, o organismo e o mundo exterior: diríamos, hoje, que se
trata de uma psicofísica. E, finalmente, declara: “A claridade e o
trabalho científico dependem apenas do rigor e da pureza com
que se realizar e preservar esta divisão de tarefas.” A sua grande
obra acerca da antropologia dos povos primitivos era uma parte
dos trabalhos de psicologia descritiva por ele planeados. No seio
da escola herbartiana, também Drobisch utilizou, em seguida, esta
distinção e expôs, além da sua psicologia matemática, a magistral
psicologia empírica, cujas descrições são ainda hoje valiosas.
Waitz não conservou somente as ideias de Wolff; ao excluir o
metafísico da psicologia explicativa, realizou vários progressos
importantes na determinação das relações entre ambas as psico­

36
A DISTINÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA EXPLICATIVA ...

logias. Reconhecia que os elementos da explicação, de que parte a


psicologia científico-natural, possuem o caracter de hipóteses;
afirmou mesmo que a psicologia explicativa unicamente podia
mostrar “a possibilidade de, graças à cooperação dos elementos
aduzidos de acordo com uma legalidade geral, se constituírem
fenôm enos psíquicos tão com plicados com o os que em nós
encontramos mediante a observação” ( Psychol., p. 26). Deu-se
também conta da extraordinária amplitude dos recursos de uma
psicologia descritiva: estudo comparado, que utiliza a vida psíquica
dos animais, dos povos primitivos, as alterações psíquicas no
progresso da cultura: história evolutiva dos indivíduos e da so­
ciedade. E sem dirigir um olhar para os manuais da escola herbar-
tiana, navegou no mar alto da antropologia dos povos primitivos e
da incomensurável história das religiões: um ousado e obstinado
descobridor, ao qual unicamente se fixou demasiado cedo o seu
objectivo; de outro modo teria conseguido, juntamente com Lotze
e Fechner, na história da psicologia moderna, uma influência muito
diferente da que, efectivãmente, lhe correspondeu.
Dois pontos de vista me parecem exigir uma ulterior transfor­
mação das relações entre a psicologia descritiva e a explicativa,
que vá além de Waitz.
A psicologia explicativa nasceu da análise da percepção e da
memória. O seu cerne foi, desde o início, constituído por sensações,
representações, sentimentos de prazer e de dor na qualidade de
elementos, e também pelos processos entre estes elementos, so­
bretudo o de associação, aos quais se juntaram, como processos
explicativos, a apercepçao e a fusão. Não tem, pois, por objecto a
natureza humana integral e o seu entrecho concreto. Por isso, numa
época em que estes limites da psicologia explicativa sobressaíam
com maior rigor ainda do que hoje, contrapus-lhe o conceito de
uma psicologia real (v. o meu estudo sobre Novalis), cujas descri­
ções visavam apreender a integridade da vida psíquica, as conexões
que nela existem e, além das suas formas, também o seu conteúdo.
Inscrevem-se neste conteúdo factos cuja dureza nenhuma análise
convincente, até agora, conseguiu fender. Deparamos assim, no
seio da nossa vida afectiva e impulsiva, com o afã de conservação
\

PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

e de expansão do nosso Si mesmo; dentro do nosso conhecimento,


com o carácter de necessidade em certas proposições e, na esfera
das nossas acções volitivas, com o dever-ser ou com as normas
que se apresentam à consciência com carácter absoluto. É neces­
sária uma sistemática psicológica cm que encontre espaço todo o
conteúdo da vida da alma. Assim, também a poderosa realidade
da vida, que os grandes escritores e poetas tentavam c tentam apre­
ender, vai além das fronteiras da nossa psicologia escolar. O que
aí se expressa de um modo intuitivo, com símbolos poéticos, com
vislumbres geniais, terá de ser estabelecido por uma psicologia
que descreva todo o conteúdo da vida anímica, saiba atribuir-lhe o
seu lugar e seja capaz de o analisar.
Para quem se ocupa da conexão das ciências do espírito
sobressai neste momento outro ponto de vista. As ciências do
espírito necessitam de uma psicologia que, antes demais, seja firme
e segura, coisa de que não se pode ufanar nenhuma das psicologias
explicativas hoje existentes, c que ao mesmo tempo submeta toda
a poderosa realidade da vida psíquica à descrição c, na medida do
possível, à análise. Pois a análise da realidade social e histórica,
tão complexa, só poderá ser levada a cabo se esta realidade for,
primeiro, desmembrada nos diversos sistemas de fins que a inte­
gram; cada um dos sistemas tcleológicos, como a vida econômica,
o direito, a arte e a religião, permite em seguida, graças à sua ho­
mogeneidade, uma análise da sua textura. Mas a trama de tal sis­
tema é apenas a conexão psíquica própria dos homens que nele
V

cooperam. E portanto, em último termo, somente uma conexão


psicológica. Poderá assim ser entendida por uma psicologia que
encerre cm si a análise destas conexões, c o resultado dc semelhante
psicologia só será relevante para os teólogos, os juristas, os econo­
mistas ou os historiadores da literatura contanto que a partir dela
não se introduza na ciências empíricas do espírito um elemento de
incerteza, de unilateralidade, de partidismo científico.
Os dois pontos de vista expostos encontram-se, claro está, numa
relação intrínseca recíproca. A consideração da própria vida exige
que se exponha toda a realidade intacta e poderosa da alma, desde
as suas possibilidades ínfimas até às supremas. É uma das exi­

38
A DISTINÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA EXPLICATIVA ...

gências que a si mesma a psicologia deve impor, se não quiser


ficar atrás da experiência da vida e da intuição poética. O mesmo
exigem justamente as ciências do espírito. Na sua fundamentação
psicológica, deverão expor-se e, por assim dizer, encontrar o seu
lugar todas as forças anímicas, todas as formas psíquicas, desde
as infimas às supremas, ao génio religioso, ao fundador de religião,
ao herói histórico e ao criador artístico, como aqueles que fazem
avançar a história c a sociedade. E ao fixar assim a tarefa, abre-se
à psicologia um caminho que promete um grau muito maior de
segurança do que aquele que a psicologia explicativa pode alcançar
quanto aos seus métodos. Parte-se do homem civilizado desen­
volvido. Descreve-se a trama da sua vida psíquica, fazem ver-se
com toda a clareza possível as manifestações principais da mesma,
servindo-se dc todos os recursos da actualização artística, analisam-
se do melhor modo possível as diversas conexões singulares
contidas nesta textura abrangente. Nesta análise vai-se até onde é
possível; o que lhe resiste deixa-se tal como é; daquilo cuja conexão
podemos mais profundamente perserutar oferece a explicação da
sua gênese, indicando, todavia, o grau de certeza que lhe corres­
ponde; apcla-sc em todo o lado à psicologia comparada, à história
evolutiva, ao experimento, à análise dos produtos históricos: a
psicologia transformar-se-á então no instrumento do historiador,
do economista, do político e do teólogo; poderá assim dirigir e
guiar também o observador dos homens e o homem prático.
A partir destes pontos de vista, o conceito da psicologia expli­
cativa e o da descritiva e a relação entre as duas ganham uma con­
figuração que sc determina com maior pormenor nos capítulos
seguintes.

39
Capítulo III

A psicologia explicativa

Entendemos doravante por psicologia explicativa a derivação


dos factos que ocorrem na experiência interna, no esforço, no
estudo dos outros homens e na realidade histórica, a partir de um
número limitado de elementos encontrados por meio da análise.
Por “elemento” entender-se-á, em seguida, cada componente da
fundamentação psicológica que se utiliza para explicar os fenôme­
nos psíquicos. Portanto, para a construção da psicologia explicativa,
é um elemento tanto a conexão causai dos fenômenos psíquicos
segundo o princípio causa aequat ejfectum, ou a lei de associação,
como o pressuposto de representações inconscientes ou a sua
aplicação.
Por isso, a primeira característica da psicologia explicativa,
como já tinham pressuposto WolfeWaitz, é a sua marcha sintética
ou construtiva. Ela deriva todos os factos que se encontram na
experiência interna e nas suas expansões de um número limitado
de elementos univocamente determinados. As origens desta cor­
rente construtiva da psicologia religa-se historicamente ao espírito
construtivo da grande ciência da natureza do século XVII. Des­
cartes e a sua escola, tal como Espinosa e Leibniz, construíram a
partir de hipóteses, sob o pressuposto da plena transparência desta

41
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

situação, as relações entre os processos corporais e as operações


psíquicas. Leibniz foi o primeiro que, fixando-se por assim dizer
atrás da vida psíquica dada, tentou “construir” o influxo que no
decurso consciente do pensamento exercem a conexão adquirida
da vida psíquica e a reprodução das representações, mediante
conceitos auxiliares que ideou para completar o dado: assim o
princípio da continuidade e, por conseguinte, o da gradação
contínua dos estados de consciência desde os graus de consciência
infinitamente pequenos, e facilmente se adverte a ligação que man­
têm com as suas descobertas matemáticas e metafísicas. Também
o materialismo foi inspirado pela mesma corrente construtiva do
espírito, que postulava a possibilidade de elevar â conceptualização
transparente o dado na vida psíquica, apelando para ta! a conceitos
auxiliares complementares. A atitude de consciência do espírito
construtivo explica alguns rasgos decisivos da psicologia constru­
tiva do século XVII e dos começos do XVI11, que ainda persistem.
Concepções muito influentes na actuaüdade são derivados desta
posição construtiva da consciência. Ao rastrear estas circunstâncias,
capta-sc a condicionalidade histórica da psicologia construtiva:
expressa-se nela o poder dos métodos c dos conceitos fundamentais
da ciência da natureza manifesto em todos os ramos do saber: po­
de, portanto, submeter-se a uma crítica histórica.
O capital que a psicologia explicativa gere consiste num número
limitado de elementos univocamente determinados, a partir dos
quais se podem construir todas as manifestações da vida psíquica.
Mas a procedência deste capital é muito diversa. Neste ponto, as
velhas escolas de psicologia distinguem-se das que predominam
na actuaüdade. A psicologia anterior a Herbart, Drobisch e Lotze
deduzia da metafísica uma parte destes elementos; a psicologia
moderna - esta teoria da alma sem alma - vai buscar os elementos
para a sua síntese à análise dos fenômenos psíquicos na sua união
com os factos fisiológicos. Portanto, o desenvolvimento rigoroso
de um moderno sistema de psicologia explicativa compõe-se de
análise, que encontra os elementos nos fenômenos psíquicos, e de
síntese ou construção, que, a partir deles, estabelece os fenômenos
da vida psíquica e comprova assim a sua adequação. O conjunto e

42
A PSICOLOGIA EXPLICATIVA

a relação destes elementos constituem as hipóteses com que se


explicam estes fenômenos psíquicos.
Portanto, o processo dos psicólogos explicadores é o mesmo
de que se serve, no seu campo, o investigador da natureza. A seme­
lhança no método torna-se ainda maior em virtude de o experi­
mento, graças a um progresso notável, se ter transformado num
recurso normal da psicologia em muitos dos seus campos. E a
semelhança aumentaria ainda se tivesse êxito qualquer dos intentos
de aplicação de determinações quantitativas, não só nos arrabaldes
da psicologia, mas no seu próprio seio. Para a inserção de um sis­
tema na psicologia explicativa é naturalmente indiferente a ordem
em que se apresentem estes elementos. Importa, sim, que a psico­
logia explicativa trabalhe com o capital de um número limitado.
Mediante esta característica ser-nos-á possível demonstrar que
algumas das obras psicológicas mais influentes da actualidade per­
tencem a esta corrente explicativa da psicologia; e, a partir desta
característica, até poderemos entender as correntes principais da
moderna psicologia explicativa.
Como se sabe, a psicologia inglesa encontrou a sua exposição
mais ampla, depois do antecedente de Hume (1739-1740) e de
Hartley (1746), na grande obra de James Mill, Análise dos fe n ô ­
menos do espirito humano. Esta obra estabelece como base a
hipótese de que toda a vida anímica, nas suas manifestações mais
altas, se desdobra com necessidade causai, a partir de elementos
simples, sensíveis, numa vida interna em que operam as leis da
associação. O método demonstrativo desta psicologia explicativa
consiste na análise e na composição, revelando que os elementos
assinalados explicam com suficiência os processos superiores da
vida anímica. O filho de James e herdeiro do seu pensamento,
John Stuart, descreve na sua Lógica o método da psicologia como
uma cooperação da descoberta indutiva dos elementos e a com ­
provação sintética dos mesmos, em total acordo com o procedi­
mento do seu pai.
Mas desenvolve já com o maior ênfase o valor lógico de um
recurso mental, que se revela necessário nesta psicologia dos dois
Mill. Supõe uma química psíquica; quando se conjugam ideias ou

43
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

sentimentos simples, podem gerar um estado que, para a percepção


interna, é simples e, ao mesmo tempo, qualitativamente diferente
dos factores que o geraram. As leis da vida psíquica podem, pois,
comparar-se, umas vezes, às leis mecânicas e, outras, às químicas.
Quando no espírito cooperam muitas impressões ou representa­
ções, tem lugar um processo que se assemelha a uma combinação
química. Quando se experimentaram impressões combinadas com
tanta frequência que cada uma delas pode evocar facilmente e de
um modo instantâneo todo o grupo, essas ideias fundem-se entre
si e já não aparecem como várias, mas como uma só; tal como as
sete cores do prisma suscitam a impressão da cor branca quando
são apresentadas ao olho em rápida sucessão. É claro que a su­
posição de semelhante princípio tão geral e indeterminado, que
contrasta de modo tão palmar com a exactidão das leis da natureza,
deve facilitar enormemente a sua tarefa ao psicólogo explicativo.
Pois encobre a deficiência da derivação. Permite apoiar-se em
certos antecedentes regulares e colmatar as lacunas entre eles e o
estado seguinte, mediante a química psíquica. Mas, ao mesmo
tempo, o grau ínfimo de força convincente que corresponde a esta
construção e aos seus resultados deve baixar para zero.
Sobre esta escola psicológica edificou-se, na Inglaterra, a de
í-Ierbert Spencer. No ano de 1855 apareceram, pela primeira vez,
os dois volumes da sua Psicologia e tiveram uma grande influência
sobre a investigação psicológica europeia. O método desta obra
era muito diferente do empregue pelos Mil!. Não se servia apenas
do método científico-natural, como eles fizeram, mas, de harmo­
nia com Comte, lançou-se a subordinar os fenômenos psíquicos à
conexão real dos fenômenos físicos e, portanto, a psicologia à
ciência natural. Alicerçou a psicologia na biologia geral. Mas
aprontou nesta os conceitos de adaptação do ser vivo ao seu meio,
evolução de todo o mundo orgânico e paralelismo dos processos
que têm lugar no sistema nervoso com os processos internos ou
psíquicos, Interpretou, portanto, os estados internos e a sua conexão
mediante o estudo do sistema nervoso, da consideração comparada
dos organismos do mundo animal e da pesquisa da adaptação ao

44
A PSICOLOGIA EXPLICATIVA

inundo exterior. Ingressam assim novamente na psicologia expli­


cativa elementos explicatórios dedutivamente determinados, como
já acontecera com Wolff, Herbart e Lotze. Só que agora não pro­
vinham da metafísica mas, de acordo com a mudança dos tempos,
da ciência geral da natureza, Sob estas novas condições, a obra de
Spencer não passa de uma psicologia explicativa. A sua própria
ordenação externa divide-a em duas partes: a primeira extrai um
nó de hipóteses do estudo do sistema nervoso, do estudo comparado
do mundo animal e da experiência interna, por meio de ilações
convergentes; a segunda põe estas hipóteses como base do método
explicativo. Só que Spencer limitou este procedimento à investi­
gação da inteligência humana. A explicação dos estados emotivos
afigurou-se-lhe, na altura, irrealizável. “Quando se pretende expli­
car algo, separando as suas diversas partes e investigando o modo
e o jeito como entre si se enlaçam, deve tratar-se de algo que possua
realmente partes diferenciáveis c unidas de um modo determinado.
Se lidarmos com um objecto, decerto composto, mas cujos diversos
elementos se encontram tão confusamente misturados e fundidos
que não é possível conhecê-los isoladamente com suficiente rigor,
deve supor-se de antemão que a tentativa de uma análise, no caso
de não ser de todo estéril, só levará a conseqüências duvidosas e
insuficientes. Este contraste existe, de facto, entre as formas da
consciência que distinguimos como intelectuais e emotivas.”
Neste contexto surgem para Spencer os seguintes recursos
mentais da psicologia explicativa. Transfere da evolução exterior
do mundo animal para a interna um princípio de diferenciação
crescente das partes, funções e integração, isto é, do estabele­
cimento de uniões superiores c mais finas entre estas funções
diferenciadas, c para a explicação dc problemas que a psicologia
individual não conseguiu resolver de um modo convincente,
sobretudo o problema da origem do a p r i o r i serve-se deste
princípio de evolução, que actua dentro de todo o reino animal.
Em seguida, explica, a partir da estrutura do sistema nervoso, das
suas células nervosas e das fibras nervosas conectoras, a articulação
da vida psíquica, dos seus elementos e das relações que entre eles
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

existem. Por fim, sobre a base da hipótese do paralelismo psico-


físico, pode interpolar-se a conexão fisiológica onde a tessitura
psíquica apresenta lacunas.
Sem dúvida, a psicologia explicativa de Spcncer, em vários
pontos, aproxima-se mais da vida da conexão psíquica do que foi
possível à escola dos Mill. Também a inserção na ciência da natu­
reza fornece ao nó de hipóteses um apoio mais firme e uma maior
autoridade. Mas esta inserção mediante a teoria do paralelismo
psicofísico transforma a psicologia explicativa assim condicionada
em assunto de um partido científico. Imprime-lhe o selo de um
materialismo refinado. Esta psicologia não representa para os
juristas ou os historiadores da literatura uma base segura, mas um
perigo. Todo o desenvolvimento ulterior mostrou como na eco­
nomia política, no direito penal e na teoria do Estado, o materia­
lismo dissimulado da psicologia explicativa, tal como Spencer a
configurou, actuou de um modo destrutivo. E o próprio cálculo
psicológico, na medida em que opera com percepções internas,
torna-se ainda mais inseguro, graças à introdução de uma nova
hipótese.
A corrente spenceriana da psicologia explicativa difundiu-se
de modo incontido na França e na Alemanha. Aliou-se de múltiplas
formas ao materialismo. Este, em todos os seus matizes, é sempre
psicologia explicativa. Toda a teoria que estabelece como base a
contextura dos processos físicos c a estes subordina os factos
psíquicos é uma teoria materialista. Influenciada pelo materialismo
e condicionada em alto grau por Spencer se nos apresenta a psico­
logia dos maiores autores científicos franceses da última geração.
O primeiro fragmento da sua psicologia publicado por Spencer
aparecera em 1853, antes da publicação da obra completa (1855)
e tinha como objecto a indagação das bases da nossa inteligência.
Em 1864 surge a obra filosófica de Hippolyte Taine sobre a inte­
ligência humana. Baseia-se sobretudo cm Spencer, utilizando tam­
bém os dois Mill. O próprio Spencer escreve acerca da difusão
das suas ideias psicológicas: “Na França, o senhor Taine aproveitou
a ocasião da sua obra sobre inteligência para dar a conhecer algu­
mas dessas ideias.” Mas também Taine acrescentou algo aos

46
A PSICOLOGIA EXPLICATIVA

métodos da psicologia explicativa. Na altura, privilegiava-se na


França o estudo dos factos psíquicos anormais c tendia-se a utilizar
na pesquisa das leis da vida psíquica os fenômenos agrupados e
interpretados pelo alienista, pelo psiquiatra, pelo hipnotizador e
pelo criminalista. A teoria da afinidade entre o génio e a loucura é
uma descoberta genuinamente francesa; encontrou eco na Itália,
como em geral as invenções francesas. Taine foi o primeiro psicó­
logo “explicador” que empreendeu a ampliação dos métodos
psicológicos introduzindo o estudo dos factos psíquicos anormais
na psicologia propriamente dita. Não é necessário expor a hipótese
singular que, a este propósito, acrescentou aos pressupostos da
psicologia explicativa, já que não obteve uma influência conside­
rável. “A natureza, com a ajuda de percepções e de grupos de im a­
gens, produz em nós, segundo leis, fantasmas que consideramos
como objectos exteriores e quase sempre sem nos equivocarmos,
porque existem de facto objectos exteriores que lhes correspondem.
As percepções exteriores são verdadeiras alucinações.” Mas tem
um interesse geral observar a fatal influência que esta teoria exerceu
na historiografia de Taine. Assim como a unilateral psicologia
explicativa dos Mill influiu com muita desvantagem nos grandes
talentos históricos como Grote e Buckle, assim também o filósofo
Taine, que de todos nós faz alucinados perpétuos, forneceu ao
historiador Taine a sua interpretação de Shakespeare e a sua con­
cepção da Revolução francesa como uma espécie de alucinação
das massas. Ribot juntou-se em seguida a Taine.
Entretanto, Herbart desenvolveu na Alemanha uma psicologia
explicativa que conquistou as cátedras, sobretudo na Áustria e na
Saxónia. A sua importância extraordinária para o progresso da
psicologia explicativa deveu-se ela ter agido com um grande rigor
científico nas exigências metódicas implicadas pela tarefa de buscar
uma explicação, segundo o modelo das ciências da natureza. Se a
psicologia explicativa tem de apreender conceptualmente sem
excepção alguma os processos psíquicos, deverá estabelecer como
base o pressuposto do determinismo. Mas, ao partir desta su­
posição, não pode esperar vencer as dificuldades da instabilidade
dos processos psíquicos, das suas diferenças individuais e dos
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

limites estreitos da observação, se não for capaz de introduzir


determinações quantitativas nas suas explicações, como fazem as
ciências físicas. Conseguirá então dar às suas leis uma forma mais
rigorosa: pode igualmente surgir uma mecânica da vida psíquica.
Herbart não conseguiu este propósito de um modo efectivo nos
seus trabalhos, mas a direcção foi seguida por Fechner; ao valorizar
os ensaios de Ernst Heinrich Weber, estabeleceu uma relação
quantitativa entre o incremento da força do estímulo e o aumento
da intensidade da sensação. E foi também importante para a intro­
dução da medida e do número no campo psicofísico e psíquico o
facto de nestas investigações ter desenvolvido os métodos das
mudanças mínimas, dos graus médios, do erro médio, dos casos
verdadeiros e falsos. De um outro ponto de vista abriu também o
caminho para a observação quantitativa dos processos psíquicos.
O astrônomo alemão Bessel, ao comparar as determinações tem­
porais de diversos astrônomos acerca do mesmo fenômeno, em ­
bateu na descoberta da diferença pessoal entre os astrônomos. O
momento em que uma estrela passa pelo meridiano é diversamente
determinado por diferentes observadores. Isto é condicionado pela
diferença na duração temporal requerida para se produzir a per­
cepção sensível e o seu registo. Os astrônomos e os biólogos deram-
-se conta do alcance psicológico deste facto. Surgiram assim tenta­
tivas para medir o tempo exigido pelo decurso dos diversos fenô­
menos psíquicos.
Estes trabalhos, ao apresentarem-se ao mesmo tempo como
experimentos psicológicos e psicofísicos, apontaram na direcção
de uma psicologia experimental, juntamente com as grandes aná­
lises das nossas percepções ópticas e sonoras, graças às quais sobre­
tudo Helmholtz abriu outro caminho à experimentação na vida
psíquica. Aconteceu assim que na Alemanha se alargaram extra­
ordinariamente os recursos intelectuais da psicologia descritiva,
em virtude da elaboração do experimento psicofísico e psicológico.
Foi este um procedimento que proporcionou à Alemanha, a partir
da década de setenta, a primazia indiscutível na ciência psicológica.
Com a introdução do experimento, cresceu de modo extraordinário
o poder da psicologia explicativa. Abriu-se uma perspectiva sem

48
A PSICOLOGIA EXPLICATIVA

limites. Com a introdução do experimento e da determinação


quantitativa, a psicologia explicativa, seguindo o modelo da ciência
natural, podia obter um fundamento firme por meio de relações
“ legais” experimentalmente controladas e quantitativamente de­
terminadas. Mas, nesta situação decisiva, surgiu o contrário do
que haviam esperado os entusiastas do método experimental.
No âmbito psícofísico, o experimento levou a uma análise muito
valiosa da percepção sensível. Revelou-se como o instrumento
imprescindível dos psicólogos para o estabelecimento de uma
descrição cxacta de processos psíquicos internos, tais como o estrei­
tamento da consciência, a velocidade dos processos anímicos, os
factores da memória, o sentido do tempo; a habilidade e a paciência
dos experimentadores conseguirá, decerto, obter pontos de apoio
para abordar experimentalmente outras situações intrapsíquicas.
Mas de nenhum modo levou ao conhecimento de leis no campo
psíquico interno. Foi, pois, útil para a descrição e a análise. Mas,
até agora, deíraudou as esperanças que a psicologia explicativa
nele depusera.
Nestas circunstâncias, a actual psicologia alemã oferece duas
manifestações notáveis no tocante à utilização do método expli­
cativo.
Uma escola influente avança, com passo decidido, no caminho
da subordinação da psicologia ao conhecimento natural, mediante
a hipótese do paralelismo entre processos fisiológicos e físicos
(4). O fundamento da psicologia explicativa é o postulado de que
não existe nenhum fenômeno psíquico que não seja acompanhado
por um fenômeno físico. Assim, no decurso da vida, há uma corres­
pondência mútua entre a série dos processos fisiológicas e a dos
fenômenos psíquicos concomitantes. A série fisiológica constitui
uma textura fechada, sem lacunas e necessária. Pelo contrário, as
alterações psíquicas, tal como acontecem na percepção interna,

(4) O método desta escola podemos vê-lo com a maior simplicidade na obra
de Münsterberg sobre objcctivos e métodos da psicologia (1891). Esta obra tem
o mérito de ser uma exposição clara e precisa desse ponto de vista.

49
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

não se podem juntar num a conexão semelhante, Que atitude se


segue daqui para o psicólogo explicativo? Deve transferir a conexão
necessária, que encontra na série física, para a série psíquica. Á
sua tarefa descreve-se com maior pormenor: “ Decompor a totali­
dade dos conteúdos de consciência nos seus elementos, estabelecer
as leis de combinação e as combinações singulares destes elemen­
tos, buscar empiricamente para cada conteúdo psíquico elementar
o estímulo fisiológico concomitante, a fim de assim poder explicar
de um modo indirecto, a partir da coexistência e da sucessão causal-
mente inteligíveis daquelas excitações fisiológicas, as leis de
combinação e as combinações dos diversos conteúdos psíquicos
que não se podem explicar de um modo puramente psicológico.”
Com isto anuncia-se apenas a bancarrota de uma psicologia expli­
cativa autônoma. Os seus assuntos passam para as mãos da fisio-
logia. Ao investigador natural que se ocupa da fisioíogia oferecem-
se recursos muito maleáveis para a interpretação dos factos psí­
quicos. Onde na experiência interna não há um membro de enJace
entre as condições e o efeito, basta inserir elos fisiológicos, que
não possuem nenhum equivalente psíquico. Poderá assim explicar
facilmente, por exemplo, na acção volitiva, o que não é possível
explicar a partir dos elementos explicativos psíquicos pressupostos.
Se atendermos ao conjunto dos recursos da psicologia expli­
cativa assim elaborados, veremos que o objecto de semelhante
psicologia explicativa é constituído só por possibilidades, e a sua
finalidade é unicamente urna qualquer probabilidade.
Mas a marcha da investigação experimental desencadeou, ao
mesmo tempo, outra viragem muito notável. Wühelrn Wundt, que
foi o primeiro entre os psicólogos a delimitar todo o campo da
psicologia experimental como um ramo especial do saber, que
criou um instituto de grande estilo de que partiu o impulso mais
forte para a elaboração sistemática da psicologia experimental, c
que no seu manual resumiu, pela primeira vez, os resultados dessa
psicologia, viu-se obrigado, pelo andamento dos seus amplos
ensaios experimentais, a entrar num a concepção do psiquismo que
abandona o ponto de vista, até então predominante. “Quando eu -
conta ele - abordei pela primeira vez os problemas psicológicos,

50
A PSICOLOGIA EXPLICATIVA

partilhava o preconceito comum aos fisiólogos de que a formação


das percepções sensíveis era apenas obra das propriedades
fisiológicas dos nossos órgãos do sentidos. Mas, ao estudar as
actividades do sentido da vista, dei-me conta daquele acto de síntese
criadora que, pouco a pouco, foi o meu guia na conquista de uma
compreensão psicológica do desenvolvimento das funções supe­
riores da fantasia e da inteligência, para o qual a velha psicologia
não me oferecia meio algum.” Fixou o princípio do paralelismo
nos termos seguintes: “o paralelismo psicofísico só sc pode aplicar
aos processos psíquicos elementares, que apenas são acom pa­
nhados paralelam ente por fenôm enos dinâm icos muito bem
limitados, mas não se pode aplicar a nenhum dos produtos com ­
plicados da vida espiritual, suscitados por uma elaboração espiritual
do material sensível, nem também às forças gerais, intelectuais,
de que dimanam esses produtos” (Menschen und 7'iereseele, p.
487, cf. a causalidade psíquica e o princípio do paralelismo psí­
quico, sobretudo nas pp. 38 ss.). Além disso, renunciou à validade
do causa aequat ejfectum no mundo espiritual; reconheceu o facto
da síntese criadora; “entendo por ela o facto de que os elementos
psíquicos geram, mediante as suas interacções causais e os seus
efeitos conseqüentes, uniões que podem, decerto, explicar-se
psicologicamente a partir das suas componentes, mas que, todavia,
possuem propriedades qualitativas que não estavam contidas nos
elementos; por isso, entrosam-se também com estas novas proprie­
dades determinações axiológicas peculiares não prefiguradas nos
ditos elementos. Na medida em que a síntese psíquica produz em
tais casos algo novo, dou-lhe o nome de criadora” ; em oposição à
lei da conservação da energia física, no “encadeamento da síntese
criadora numa série evolutiva progressiva” encerra-se um “princí­
pio de incremento da energia espiritual” (op. c i t p. 116). Com
mais força ainda do que Wundt acentuam James, na sua Psicologia,
e Sigwart, no novo capítulo da sua Lógica sobre os métodos da
psicologia, em que recomenda também que se cultive a psicologia
descritiva, o elemento livre e criador dentro da vida psíquica. Na
medida em que se difundir este movimento, terá de perder in­
fluência a psicologia explicativa e construtiva.
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

A primeira característica da psicologia explicativa residia na


derivação a partir de um número limitado de elementos explicativos
univocos. Como segunda característica, condicionada pela pri­
meira, o laço dos elementos explicativos possui o carácter de uma
hipótese. Tal foi reconhecido já por Waitz. Se agora considerarmos
a trajectória da psicologia explicativa, chamar-nos-á a atenção o
aumento constante do número de elementos explicativos e de
recursos mentais. Tal deve-se ao afã de aproximar cada vez mais
as hipóteses do vivo do processo psíquico. Mas tem como con­
seqüência o aumento constante do carácter hipotético da psicologia
explicativa. Na mesma medida em que aumentam os elementos
explicativos e os recursos mentais decresce o valor da sua com ­
provação nos fenômenos. Além disso, recursos mentais como a
química psíquica e o perfazimento da série psíquica por meio de
elos fisiológicos a que não corresponde nenhuma representação
na experiência interna, abrem à explicação um campo incerto de
possibilidades ilimitadas. Dissolve-se assim o núcleo genuíno do
método explicativo, a comprovação dos elementos explicativos
hipotéticos pelos fenômenos.

52
Capítulo IV
f

A psicologia descritiva e analítica

O conceito de um a psicologia a descritiva e analítica dimanou


em nós da natureza das nossas vivências psíquicas, da necessidade
de uma apreensão intacta e sem preconceitos da vida anímica,
bem como da textura das ciências do espírito e da função da psico­
logia no seu seio. Portanto, as suas propriedades terão de derivar
destes motivos, sobretudo da tarefa que lhe corresponde dentro da
conexão das ciências do espírito e da ponderaçãoi dos meios
necessários para o seu cumprimento. Duas coisas exige esta tarefa.
Por um lado, importa expor a realidade integral da vida psíquica
e, quanto possível, analisá-la; por outro, esta descrição e esta análise
terão de possuir o grau m áxim o de segurança que se puder
conseguir. Neste contexto terá dc ser mais importante oferecer
algo seguro dentro dos estreitos limites do conhecer, do que suscitar
uma acumulação dc conjecturas acerca das ciências do espírito.
Se esta é a tarefa que incumbe à psicologia relativamente às ciências
do espírito, não a poderá, decerto, resolver mediante uma cons­
trução a partir de hipotéticos elementos explicativos. Visto que os
factos psíquicos nos são dados de um modo tão multívoco, é
possível conseguir uma conexão lógica irrepreensível do sistema
psicológico, mediante os recursos mentais da psicologia construtiva
exposta por nós no último capítulo, a partir dos mais diversos pres­
supostos. O método construtivo é incapaz de decidir entre as
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

diversas escolas da psicologia actual. Como será possível um


método que resolva a tarefa que as ciências do espírito impõem à
psicologia?
A psicologia deve empreender o caminho inverso do percorrido
pelos representantes do método de construção. A sua marcha deve
ser analítica, e não construtiva. Deve manar da vida anímica evo-
luida e não tentar derivá-la de processos elementares. E certo que
dentro da psicologia também não é possível separar a análise e a
síntese, nem a indução e a dedução correspondentes. Condieionam-
-se reciprocamente no processo vivo do conhecimento, segundo a
bela expressão de Goethe, tal como se condicionam a inspiração e
a expiração. Quando desmembrei nos seus faetores a percepção
ou a recordação, comprovo o alcance dos meus resultados ao pôr
em jogo a combinação destes faetores. O exemplo, porém, não é
perfeito, pois posso distinguir faetores no processo vivo, mas não
posso produzir vida com a sua combinação. Aquilo de que se trata
é que a marcha de semelhante psicologia deve ser exclusivamente
descritiva e analítica, e é indiferente que cm prol deste procedimen­
to se exijam actos mentais sintéticos. Outro rasgo metódico funda­
mental corresponde a esta psicologia. O seu objecto deve ser um
homem desenvolvido, a vida psíquica completa c acabada. É esta
que terá dc ser apreendida, descrita e analisada na sua totalidade.
Como é isto possível? E qual o sentido exacto em pensar aqui
num procedimento descritivo e noutro puramente analítico como
partes do mesmo método psicológico, e em confrontá-los com o
método explicativo da psicologia? Vimos, no início deste ensaio,
que os métodos gerais da ciência humana adquirem nos domínios
particulares um carácter também particular. Que, dc um modo
especial, a natureza particular da nossa experiência dos fenômenos
psíquicos proporciona ao conhecimento da conexão dos mesmos
certas peculiaridades, e que os métodos gerais adquirem neste
domínio determinações mais definidas. Isto ressalta nas operações
metódicas da descrição e da análise, da explicação e da formação
de hipóteses.
Conhecemos os objectos naturais a partir do exterior mediante
os nossos sentidos. Por muito que os analisemos ou os dividamos,

54
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

não chegamos às suas últimas componentes. Sobrepensamos tais


elementos, graças a um perfazimento cta experiência. Os nossos
sentidos, considerados na sua pura actividade fisiológica, também
nunca nos podem proporcionar a unidade dos objectos. Esta é-nos
dada, igualmente, só em virtude de uma síntese das percepções
sensíveis que dimana de dentro. Esta proposição continuaria a ser
correcta mesmo se surgisse só como um artifício heurístico o
desm em bram ento da percepção unitária em sensações e suas
sínteses. Quando pomos os objectos em relações de causa e efeito,
as impressões sensíveis contêm somente a condição suposta pela
sucessão regular, ao passo que a relação causai surge, de novo, em
virtude de uma síntese que procede do nosso interior. Também a
validade desta proposição é independente de se esta síntese dimana
do entendimento ou se, como expus num ensaio anterior, na relação
de causa e efeito se encerra apenas um derivado da conduta viva
da vontade que experimenta a pressão de algo estranho, de maneira
que na base desta relação teríamos um elemento primordial e
constitutivo, ao passo que o pensamento abstracto não faria mais
do que interpretar intelectualmente esta conduta viva. Seja, pois,
qual for o modo de se conceber a origem das representações dos
objectos c das suas relações causais, o certo é que nas impressões
sensíveis, na sua coexistência e sucessão, nada se contém da co­
nexão implicada pelos objectos e pelas suas relações causais. A
vida anímica é-nos dada de modo muito diferente. Em contraste
com a percepção externa, a percepção interna assenta num aper­
cebi mento íntimo, numa vivência: é-nos imediatamente dada. Na
sensação ou no sentimento dc prazer que a acompanha dá-se-nos
algo simples c indivisível. Seja qual for o modo como se tiver
originado a sensação de uma cor violeta, olhada como fenômeno
interno é algo indivisível. Se levarmos a cabo um acto mental,
veremos que nele conflui, na unidade indivisível de uma função,
um a pluralidade discrimináve! dc factos internos, pelo que encon­
tramos na experiência interna algo novo que não tem analogia
alguma na natureza. Se agora nos voltarmos para a ipseidade, que
contém simultaneamente vários processos internos e concentra a
sucessão dos processos na unidade da vida, encontraremos de novo,

55
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

desta vez de modo mais surpreendente, algo que se nos dá como


vivência na experiência interna, que não admite comparação com
os processos naturais. Temos constantemente em nós a vivência
de enlaces, de conexões, ao passo que temos de subsumir no en­
lace e na conexão as excitações sensíveis. O que assim experimenta­
mos jam ais o conseguiremos clarificar frente ao entendimento. A
ipseidade, que congrega o simultâneo e o sucessivo dos diversos
processos vitais, revela-nos, perante o tribunal do entendimento,
as contradições já sublinhadas por Herbart. Temos uma outra
vivência de conexão, quando das premissas surge em nós uma
conclusão: há aqui urna conexão que nos leva das causas aos efeitos:
também esta conexão nasce de dentro, é dada como realidade na
vivência. Concebemos assim os conceitos de unidade de uma
multiplicidade, de partes num todo, de relações causais; e através
deles compreendemos a natureza, ao aplicar-lhe estas concepções
em determinadas condições de coexistência ou sucessão uniformes.
Só de modo fragmentário experimentamos em nós esta conexão;
ora neste ponto, ora naquele, cai sobre ela a luz do apercebimento:
pois a força psíquica, de acordo com uma importante peculiaridade
sua, só pode elevar à consciência um número limitado de membros
da conexão interna. Mas temos, de um modo constante, consciência
de tais uniões. Na variabilidade imensa dos conteúdos de consciên­
cia retornam as mesmas combinações e assim sobressai, pouco a
pouco, com claridade, a sua forma. Igualmente, a consciência de
como estas sínteses ingressam em combinações mais amplas e
constituem, por fim, uma só textura torna-se cada vez mais distinta,
clara e segura. Se um membro evoca regularmente um segundo ou
uma classe de membros outra classe, se, em seguida, noutros casos
repetidos, este segundo m em bro evoca um terceiro, ou uma
segunda classe de membros uma terceira, e isto continua num
quarto ou quinto membro, terá, por fim, de se constituir, e com
certeza universalmente válida, uma consciência da conexão de
todos os membros, uma consciência da textura de classes inteiras
de membros. Noutras casos, costumamos também destacar do caos
de processos, graças à concentração discriminadora atenção, um
só processo, procurando mantê-lo em percepção ou recordação

56
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

constante para a sua apreensão mais minuciosa. No rápido, dem a­


siado rápido, fluir dos processos internos, destacamos, isolamos
um deles, e elevamo-lo a uma atenção mais intensa. Nesta activi-
dade isoladora reside a condição para a marcha ulterior da abstrac­
ção. Só mediante uma abstracção destacam os numa conexão
concreta uma função, um modo de união. E só por meio de uma
generalização estabelecemos a forma sempre recorrente de uma
função ou a constância de certas gradações de conteúdos sensíveis,
a escala das intensidades sensoriais ou afectivas, que a todos nos
são conhecidas. Em todos estes actos lógicos estão incluidos o
diferenciar, o equiparar, a determinação dos graus de diferença.
Brotam assim necessariamente das operações lógicas a divisão e a
designação, na qual reside o germe da definição. Gostaria eu de
dizer que as operações lógicas elementares, tal como cintilam nas
impressões e nas vivências, se podem apreender melhor na ex­
periência interna. Diferenciar, equiparar, determ inar graus de
diferença, unir, separar, abstrair, ligar várias conexões numa, obter
a partir de diversos factos um a uniformidade: tais operações estão
contidas em toda a percepção interna ou destacam -se da sua
com posição. Em erge assim, como prim eira peculiaridade da
captação dos estados internos, que condiciona a investigação psico­
lógica, a intelectualidade da percepção interna. Tal como a percep­
ção exterior, a interna ocorre mediante a cooperação dos processos
lógicos elementares. E na percepção interna adverte-se, com es­
pecial claridade, como os processos lógicos elem entares são
inseparáveis da captação das suas componentes.
Existe assim uma segunda característica da apreensão dc estados
psíquicos. Esta apreensão provém da vivência e a ela se mantém
vinculada, Na vivência cooperam conjuntamente os processos de
todo o ânimo. Nela é-nos dada a conexão, enquanto os sentidos
oferecem apenas um a m ultiplicidade de particularidades. O
processo individual é sustentado na vivência pela totalidade integral
da vida anímica, e a conexão em que se encontra em si e com a
totalidade da vida anímica pertence à experiência imediata. Isto
determina já a natureza da compreensão de nós mesmos c dos
outros. Explicamos por meio de processos puramente intelectuais,

57
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

mas compreendemos graças à interacção de todas as forças do


ânimo na apreensão. E na compreensão partimos da textura do
todo, que se nos oferece de um modo vivo, tornando-nos assim
apreensível o singular. O facto de vivermos na consciência da
conexão do todo perm ite-nos com preender um a proposição
singular, um gesto ou uma acção determinada. Todo o pensar
psicológico oferece este rasgo fundamental, a saber, que a apreen­
são do todo torna possível e determina a interpretação do singular.
Se a reconstrução da geral natureza humana pela psicologia quer
ser algo são, vivo, fecundo para a inteligência de vida, terá de se
basear no método original da compreensão. A experimentada
conexão da vida psíquica terá de constituir o fundamento firme,
vivido e imediatamente seguro da psicologia, por muito que esta
se concentre na investigação experimental de pormenor.
Se, pois, a segurança do método psicológico assenta na reali­
dade plena de cada objecto, na doação imediata da textura interna
deste, então é reforçada por outra peculiaridade da experiência
interna. Os vários processos psíquicos cm nós, os feixes de factos
psíquicos que internamente percebemos, apresentam-se-nos com
uma consciência diversa do seu valor para a totalidade da nossa
contextura vital. Por isso, na própria apreensão interna, o essencial
separa-se do inessenciaL A abstracção psicológica, que realça a
conexão da vida, possui para esta sua obra um fio condutor na
consciência imediata do valor de cada uma das funções para o
todo, fio de que não dispõe o conhecimento natural.
Dc tudo isto se depreende, como outro rasgo fundamentai da
investigação psicológica, que ela brota da própria vivência e nesta
deve ter as suas sólidas raizes, se quiser manter-se sã e fecunda. À
vivência juntam-se as acliv idades lógicas simples que encontramos
reunidas no observação psicológica. Possibilitam a fixação do
observado na descrição, a sua designação nominal, a sua visão
sinóptica mediante a classificação. Como de per si conflui o pensar
psicológico na investigação psicológica. Acontece o mesmo que
nas ciências do espírito vivas. Ao pensar jurídico acrescentou-se a
ciência jurídica, à reflexão econômica e à regulamentação estatal
das circunstâncias econômicas a economia política.

58
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

Se resumirmos estas propriedades do método psicológico,


poderemos então, a partir delas, especificar mais o conceito de
uma psicologia descritiva e apresentar a sua relação com o conceito
de uma psicologia analítica.
A oposição entre o método descritivo e o explicativo apresenta-
-se tradicionalmente nas ciências da natureza. Embora a sua rela­
tividade sobressaia cada vez mais com os progressos das ciências
descritivas da natureza, continua todavia a guardar a sua impor­
tância. Mas o conceito de uma ciência descritiva adquire, dentro
da psicologia, um sentido muito mais profundo do que aquele que
pode ter nas ciências da natureza. Já a botânica, e mais ainda a
zoologia, parte de uma conexão de funções que só se pode esta­
belecer mediante uma interpretação dos factos físicos, segundo a
analogia dos factos psíquicos. Ora na psicologia esta conexão de
funções na vivência é dada a partir de dentro. Todo o conhecimento
psicológico particular é apenas análise desta conexão. Assim, pois,
é-nos aqui dada de um modo directo e objectivo uma estrutura
firme; por isso, a descrição tem neste campo um fundamento
indubítável, de validez universal. Não descobrimos a conexão
completando os vários membros mas, pelo contrário, o pensar
psicológico articula e distingue a partir da conexão dada. Ao
serviço desta actividade descritiva estão as operações lógicas do
comparar, do distinguir, do apreciar graus, da separação e união,
da abstracção, da junção de partes num todo, da derivação de
relações uniformes a partir de casos isolados, da análise de pro­
cessos singulares, da divisão. Pois todas elas se encontram já
compreendidas no método de observação. Assim, a vida anímica
é concebida como uma textura de funções em que se ligam partes
e que, além disso, se compõe de outras várias conexões de índole
especial, cada uma das quais encerra novas tarefas para a psicologia.
Estas tarefas só se podem resolver mediante a análise; a psicologia
descritiva deve ser, ao mesmo tempo, psicologia analítica.
Entendem os por análise o desm em bram ento de uma dada
realidade complexa. Pela análise desmembram-se partes que, na
realidade, estão vinculadas. As componentes que assim se encon­
tram são de índole muito diversa. O lógico analisa um silogismo

59
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

ao decompô-lo nos seus dois juízos e nos três conceitos que nestes
nos é dado. O químico analisa um corpo ao separar, pelo experi­
mento, os seus elementos materiais. O físico faz uma análise modo
muito diferente, já que nos mostra nas formas legais do movimento
as componentes de um fenômeno acústico ou óptico. Mas, por
muito diversos que sejam estes processos, toda a análise tende
como meta última para a descoberta dos factores reais, mediante
o desmembramento do real; a indução e o experimento são apenas
recursos seus. Entendido neste sentido geral, o método da análise
das ciências do espírito é comum ao das ciências da natureza. Mas
este procedimento configura-se de maneira diferente segundo o
campo da sua aplicação. Já na apreensão corrente da vida anímica
a captação da textura está unida ao diferenciar, separar, desarticular.
Na actividade reíacionadora assenta toda a profundidade e largura
da compreensão de uma vida anímica. Em contrapartida, o diferen­
ciar, o separar, o analisar proporciona a esta compreensão caridade
e distinção. Quando o pensar psicológico, numa marcha natural,
contínua, sem interposição de hipóteses, desemboca na ciência
psicológica, a análise neste domínio obtém uma vantagem inco-
mensuráivel. Possui na totalidade viva da consciência, na conexão
das suas funções, na visão das formas e uniões válidas desta
conexão obtida por abstracção, o fundo de todas as suas operações.
Cada problem a que ela levanta e cada conceito que forma estão
condicionados por esta conexão e ocupam nela o seu lugar. A
análise realiza-se aqui de modo que o processo de desm em bra­
mento pelo qual se esclarecerá um membro particular da conexão
psíquica é referido a esta textura integral. Preserva sempre algo
do processo vivo, artístico do compreender. Depreende-sc desta
circunstância a possibilidade de uma psicologia que, a partir da
conexão da vida psíquica captada com validez universal, analisa
os membros singulares desta conexão, descreve e investiga com
toda a profundidade possível as suas partes constitutivas e as fun­
ções que as unem, mas omite a construção da total conexão causai
dos processos psíquicos. A vida anímica não se pode compor a
partir de elementos, não se pode construir mediante a composição,
e a mofa que Fausto faz dos in tentos de Wagner para fabricar

60
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

quimicamente o homúnculo aplica-se muito bem a essa tentativa.


A psicologia descritiva e analítica desem boca em hipóteses,
enquanto a explicativa com eça com elas. A sua possibilidade
baseia-se no facto de que também é possível uma conexão de
validez universal, legal, que abranja toda a vida da alma, sem
necessidade de aplicar o método construtivo que se nos oferece
nas ciências explicativas da natureza. U m a exposição científica
da vida psíquica que renunciasse ao conhecimento da sua conexão
teria de ser de todo impossível. E a sua força reside justamente em
que pode reconhecer os limites do nosso conhecimento, sejam
eles provisórios ou permanentes, sem por isso perder a conexão
interna. Pode em si albergar as hipóteses a que chega a psicologia
explicativa relativamente aos diversos grupos de fenômenos; mas,
ao medi-las com os próprios factos e ao determinar o grau da sua
plausibilidade, sem empregar nenhum factor construtivo, tal não
afectará a sua peculiar validez universal. Pode, por fim, submeter
à discussão também as hipóteses amplas da psicologia explicativa,
mas reconhecendo todo o caracter problemático das mesmas. Terá
de pôr a claro a impossibilidade de, em geral, elevar as vivências
a conceitos. O princípio que à filosofia actual incumbe demonstrar,
prosseguindo a obra de Kant nos campos da experiência, é o se­
guinte: não só a concepção de conceitos transcendentes induz a
antinomias, mas estas derivam do trabalho do pensar humano sobre
as experiências que, no fim de contas, não se reduzem por completo
a conceitos; há, portanto, antinomias imanentes no campo do
conhecimento da realidade dada na experiência.
Vamos descrever a articulação de semelhante psicologia des­
critiva c analítica, antes de começarmos a tratar os três capítulos
principais, que têm uma significação decisiva para o seu estabele­
cimento e desenvolvimento.
A parte geral de semelhante psicologia descritiva expõe, designa
e elabora assim o acordo futuro acerca de uma terminologia psico­
lógica. Para tal necessita já da análise. Outra tarefa sua consiste
em destacar a conexão estrutural da vida psíquica desenvolvida.
A análise deve aqui ocupar-se da articulação arquitectónica do
edifício concluído, não pergunta pelas pedras, pelo cimento e pela
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

mão-de-obra, mas pela textura interna das partes. Terá de encontrar


a lei estrutural mediante a qual se religam a inteligência, a vida
impulsiva e afectiva, as acções volitivas no todo articulado da vida
psíquica. A conexão que se exibe nesta lei estrutural compõe-se
exclusivamente de experiências vivas sobre as diversas ligações
das componentes psíquicas. O seu significado é-nos dado, de modo
muito premente, na experiência interna. Segundo esta, o seu ca­
rácter é para nós simultaneamente teleológico c causai. Um dos
capítulos que se seguem consagrar-se-á à exposição desta conexão
estrutural.
Do carácter teleológico desta conexão deriva, como segunda
lei fundamental da vida psíquica que actua na direcção da longi­
tude, a lei do desenvolvimento. Se na estrutura anímica e nas suas
forças motrizes não existisse uma adequação ao fim e um nexo
axiológico, que a empurra para a frente com uma tendência deter­
minada, o curso da vida não seria um desenvolvimento. Por isso,
é impossível deduzir o desenvolvimento de um homem tanto da
vontade cega de Schopenhauer como do jogo atômico de forças
psíquicas singulares nos sistemas dos herbartianos ou dos mate­
rialistas. Este desenvolvimento tem no ser humano a tendência
para suscitar uma conexão firme da vida psíquica, que concorda
com as suas condições vitais. Em nós, todos os processos da vida
psíquica actuam em comum para levar a cabo semelhante conexão,
que é, por assim dizer, uma forma da alma; pois também o distinguir
e o separar suscitam relações e servem, deste modo, de conjunção.
As fórmulas da filosofia transcendental acerca da natureza da nossa
faculdade sintética são apenas expressões abstractas c inadequadas
destas propriedades da nossa vida anímica que, numa acção cria­
dora, originam o desenvolvimento e a configuração. Outros rasgos
deste desenvolvimento foram correctamente expostos por Herbart
na sua doutrinados processos de diferenciação e integração. Noutro
capítulo faremos ver como se podem jungir estas ideias com as da
escola especulativa alemã e como é possível uma teoria científica
a propósito do desenvolvimento do homem.
Uma terceira circunstância geral está contida na mudança dos
estados de consciência e na actuação da adquirida conexão da

62
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

vida anímica sobre cada acto singular da consciência. Só ao


apreender-se esta amplíssima relação, segunda qual cada acto sin­
gular da consciência é condicionado na sua ocorrência e no seu
carácter por toda a conexão psíquica adquirida, se descobrem as
verdadeiras relações entre as teorias da estreiteza da consciência,
da sua unidade e da diferenciação dos nossos estados internos [no
tocante à força do interesse e ao grau de consciência com estão
equipados]. Graças ao discernimento dessa relação se esclarece
analiticamente a livre vivacidade da vida psíquica. No centro desta
conexão adquirida agita-se sempre um feixe de impulsos e dc
✓ .

sentimentos. Comunica eie interesse a uma nova impressão, suscita


uma representação, deixa nascer uma direcção da vontade. O in­
teresse desem boca no processo da atenção. O grau maior de
consciência, em que consiste esta atenção, não existe in abstraefo,
mas consiste em processos, e estes configuram a percepção, for­
mam uma representação mnemónica, constituem um fim ou um
ideal, e tudo isto em ligação viva e vibrante com toda a vida psíquica
adquirida. Tudo aqui c vida. Anteriormente, na minha exposição
cia poética, mostrei comi) c insustentável a teoria da reprodução
morta das imagens; tão impossível é que uma imagem da recor­
dação regresse em novas circunstâncias como impossível é também
que a mesma folha da árvore retorne na nova primavera. O mesmo
princípio foi, há pouco, subtilmente fundamentado por James, com
a assombrosa força realista da sua capacidade de percepção interna.
Esta amplíssima relação interna, na qual os processos singulares
da consciência são suscitados a partir da contextura adquirida da
vida psíquica ou, pelo menos, são por ela condicionados, encon­
tra-se num laço intrínseco com a lei estrutural da vida anímica.
Depende da eficiência da estrutura. Surge somente em ligação com
a diferenciação desenvolvida da estrutura, graças à qual se separam
entre si a percepção, a recordação, a atenção, os processos involun­
tários e a vontade que os domina. O poder central dos nossos im­
pulsos e afectos, a sua relação com os estímulos exteriores e, por
outro lado, com as acções volitivas condicionam a distribuição
dos estados de consciência, a reprodução das representações e a
acção da conexão representativa adquirida sobre os processos

63
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

conscientes. Daqui saiem relações operantes para o nascimento


do interesse, da atenção, da estimulação reforçada da consciência
que, em seguida, tem a sua existência nos processos de apreensão.
E através da luta dos impulsos, essas relações encaminham-se
tam bém para a suscitação do interesse prático; provoca ela uma
intensificação e uma concentração da energia da consciência que,
em seguida, se manifesta nos processos da problematizaçãoi
prática, da eleição e da preferência.
Se os estados da distribuição de consciência e os processos da
actuação da textura psíquica adquirida na formação dos actos
conscientes dependem das relações vivas procedentes da estrutura
da vida psíquica, formam também, por seu lado, uma conexão
que pode ser destacada mediante a abstracção. Esta conexão não
está patente à experiência interna da mesma maneira que a da
estrutura. Pois os seus membros e a acção entre os eles encontram-
-se, numa parte muito grande e importante, fora da consciência
clara e, portanto, fora da percepção interna. Nada sabemos de um
vestígio que seja reproduzivel. E como poderíamos saber algo de
como se faz uma reprodução sua? Ou como uma conexão dc tais
vestígios começa a determinar um processo consciente? A alegre
segurança acerca da acção exclusiva de relações associativas
desenvolvidas sempre que se apresenta uma representação na
consciência tem de se desvanecer também perante uma crítica mais
rigorosa. Quem poderia negar ou demonstrar que existe um livre
emergir de representações, sem mediação alguma de uma associa­
ção? Quem poderia tentar explicar todos os casos que parecem
oferecer uma tal reprodução imediata, directa, à maneira triunfalista
da psicologia associacionista, isto é, através da comprovação de
uma mediação oculta? Ou quem poderia negar o nascimento de
reproduções medi atas que não se baseiam numa associação de
representações anteriores? Assim é; aqui, onde a experiência interna
nos abandona, a psicologia deveria dedicar-se, primeiro, a descrever
com exactidão, a destacar formas de reprodução, introduzindo
modestamente as hipóteses possíveis. E como todo o conceito da
natureza de qualquer facto reproduzivel e actuante, mas que se
tornou inconsciente, e toda a decisão sobre se ele é psíquico, físico

64
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

ou psicofísico, não passa de uma hipótese, e como também o


conceito sobre o nascimento de uma reprodução é hipótese, e nada
mais do que hipótese, então toda a ideia acerca do modo de acção
de uma conexão adquirida de tais factos sobre representações
conscientes é, de novo, somente uma hipótese. Estas hipóteses
constituem o fundamento genuíno da psicologia explicativa des­
de o momento em que a escola anglo-francesa considerou as pro­
priedades do sistema nervoso como a base explicativa real dessa
actuação, e desde que se lhe apresentou outra razão explicativa
nas “representações pequenas” de Leibniz. Como não era possível
um conhecimento causai transparente da vida psíquica sem o
conhecimento das relações causais que aqui existem, o espírito
construtivo do século XVII apoderou-se da psicologia, graças ao
desenvolvimento das duas hipóteses capitais. Mas estas encontram-
-sc expostas a objecções que, por agora, são insolúveis. Para a pri­
meira hipótese, é incompreensível a interacção entre a consciência
e o inconsciente. Não é capaz de clarificar a diferença que existe
entre processos psíquicos acompanhados de consciência e os que
dela carecem. As “ representações inconscientes” da outra hipótese
são uma simples palavra, que contém apenas o problema, transcen­
dente à experiência, de um psiquismo inconsciente, sem nada
aduzir para a sua solução; aqui, em que as teorias desenvolveram
com toda a amplitude possível o seu próprio jogo, trata-se hoje de
obter, em primeiro lugar, uma descrição das diferentes formas em
que a conexão inconsciente actua sobre os actos conscientes. Todas
as anedotas que passam de uma psicologia para outra devem ser
submetidas a exame. Além disso, importa submeter esses processos
ao experimento, Trata-se, cm geral, da experiência e da interacção
entre o não consciente e o consciente, e jam ais da interacção entre
o corporal e o psíquico e, dentro daquela interacção, somente da
descrição das suas formas singulares. Há que prescindir, para o
efeito, de representações inconscientes, de vestígios fisiológicos
sem equivalente, e é necessário tomar sempre em consideração a
relação da conexão estrutural viva com essas relações causais.
Revela-se então quão insuficientes são as representações abstractas
de uma conexão mecânica neste campo. Também noutras ciências,
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

por exemplo, na economia política, se tentou fazer deduções a


partir de poucas premissas e se constituíram assim perfeitas co­
nexões mecânicas; algo semelhante acontece com o mecanismo
psíquico de Herbart: uma vez reconhecido o carácter precipitado
e deformador de tais construções, é necessário, tanto na psicologia
como na econom ia política, primeiro, juntar factos, sujeitá-los à
variação e, em seguida, distinguir as formas necleares do acontecer
e fazer delas uma descrição individual.
A esta parte geral segue-se a análise das três grandes conexões,
que se encontram articuladas na estrutura da vida psíquica.
Do modo como elas nos são dadas deriva o ponto de vista que
nos guiará na análise das mesmas. Tentei demonstrar, noutro lugar
(5), que o nexo adquirido da vida anímica contém já as regras de
que depende o curso dos processos psíquicos individuais. Constitui
ele, portanto, o objecto principal da descrição e da análise psico­
lógicas dentro dos três grandes membros da vida psíquica reiigados
na estrutura psíquica, a saber, a inteligência, a vida impulsiva e
afectiva e as acções volitivas. Este nexo adquirido surge, antes de
mais, no homem desenvolvido e, claro está, em nós próprios. Mas
por não existir como um todo na consciência, só o podemos apre­
ender, de um modo medi ato, em algumas das suas partes repro-
duzíveis ou na sua acção sobre os processos psíquicos. Compara­
mos, por isso, as suas criações a fim de o apreender de um modo
mais completo e profundo. Nas obras de homens geniais podemos
estudar a acção enérgica de determinadas formas da actividade
espiritual. Na linguagem, no mito, nas práticas religiosas, nos cos­
tumes, no direito e na organização exterior temos outras tantas
produções do espírito colectivo em que a consciência humana,
para falar à Hegel, se tornou objectiva e, portanto, se oferece à
análise. O que o homem é não se conhece mediante a ruminação
sobre si mesmo, nem também por meio de experimentos psico­
lógicos, mas graças à história. Esta análise dos produtos do espírito
humano, que pretende vislumbrar a origem da conexão psíquica,

(5) EinbiUhmgskraft und Wahnsinn, 1886, p. 14 ss.; Poetik (Aufsatzc, Zeller


gewidment), p. 355 ss. (impresso nos Ge s. Scríften V, 2. Hiilltc)

66

A
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

as suas formas e a sua acção, deve, porém, combinar com a análise


dos produtos históricos a observação e a recolha de todo o frag­
mento acessível dos processos históricos em que tal conexão se
/•

forma. E justam ente na união destes dois métodos que assenta


todo o estudo histórico acerca da origem, das formas e da acção
da textura psíquica no homem. Já nas mudanças históricas, que
ocorrem nas produções do espírito colectivo, se patenteiam tais
processos vivos; assim na mudança dos sons, na mudança de sig­
nificação das palavras, nas modificações das representações que
se associam a um nome divino. Nas memórias, diários, cartas,
tem-se notícia de processos internos que iluminam a gênese de
determinadas formas da vida espiritual. Assim, para estudar a
natureza da imaginação, comparamos as obras poéticas com as
manifestações de genuínos poetas sobre os processos que neles
têm lugar. Que rica fonte, para a compreensão dos processos tão
misteriosos cm que surge uma conexão religiosa, mana em tudo o
que sabemos de S. Francisco de Assis, de S. Bernardo e, sobretudo,
de Lutero.
Esta análise da gênese, das formas e da acção da estrutura psí­
quica segundo os seus membros capitais, começa com a conexão,
finamente articulada, das percepções, representações e conheci­
mentos na amadurecida vida psíquica de um homem, na plenitude
das suas faculdades.
Já Spencer observara que, neste campo, a análise progrediu
mais porque nele se torna mais fácil distinguir nos produtos as
suas partes constitutivas. Foi sobretudo Sigwait quem indicou que
a contextura firme e duradoura deste domínio constitui o objecto
principal da análise da inteligência, e a nova elaboração da sua
metodologia ofercce, entre outros méritos extraordinários, o dc
ter levado a cabo uma tal análise no tocante ao número, ao tempo,
ao espaço e ao movimento (veja-se Logik , 112, 41 ss, 112, 187).
Segundo ele, cada uma dessas conexões oferece uma regra cognos-
cível que governa a transição da consciência real de um membro a
outro. Na constataçlão analítica desta regra pode prescindir-se dos
fenômenos subjectivos concomitantes de cada um dos ac tos, dos
múltiplos sentimentos e impulsos; as diferenças entre os indivíduos

67
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

pospõem-se; apreendem-se as relações objeetivas e permanentes


que se encontram na base da inteligência humana. Aqui reside o
fundo sólido sobre o qual se balanceia a luz variável da consciência
momentânea. Aqui se encontram as regras permanentes que, em
última análise, regem o jogo contingente das associações. Aqui se
nos abre, pois, um vasto campo de fidedigno conhecimento ana­
lítico da vida psíquica humana.
Pode mostrar-se na pedagogia a fecundidade para as ciências
do espírito de semelhante análise da nossa inteligência. Toda a
gente conhece a revolução suscitada por Pestalozzi mediante o
seu ensino intuitivo. O que ele captou com a sua visão genial pode
ser explicado pela psicologia analítica. Parte esta da conexão
adquirida e configurada da vida psíquica. Desmembra-a nas di­
versas conexões singulares que constituem o fundo criador de todos
os processos conscientes. Apreende no jogo dos vários processos
psíquicos a acção destas conexões como aquelas regras de que
depende tal jogo no seu pormenor. E reconhece assim o sentido
da m etodologia genial de Pestalozzi no facto de que a força
criadora, plasmadora, do hom em é condicionada pelo desenvol­
vimento adequado de tais conexões. Este grande princípio da
pedagogia deriva da doutrina, mais geral, acerca da natureza da
textura adquirida de vida psíquica, que é a regra e a força que rege
os processos singulares. Pestalozzi não conheceu este princípio in
abstracto : a pedagogia é uma obra da escola: graças à pesquisa,
deu-se ele conta da acção benéfica da auto-actividade regular c
ordenada que configura as conexões mais elementares e homo­
gêneas. Estabeleceu como fundamentais quatro delas: a ordem
numérica, as relações espaciais, as relações músicais básicas, a
conexão legal da linguagem. Duas coisas se tornam claras. As
relações numéricas, espaciais e acústicas constituem sistemas
homogêneos que podem ser desenvolvidos a partir de dentro; mas
a linguagem não é um sistema assim, e nela fracassou o seu método.
Dentro dos três sistemas homogêneos a intuição é, em última
instância, inseparável do pensamento: pensam ento tácito, em
oposição ao discursivo, e por isso mesmo tão incomparavelmente
fecundo para o homem de trabalho em comparação com o pala­

68
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

vreado educacional. Se se considerar como se apreende qualquer


distância espacial, qualquer distância tonal, qualquer gradação de
cinzento, num acto mental que é inseparável da posse conjunta
das sensações, desvanecer-se-á a falsa oposição entre ensino intui­
tivo e desenvolvimento mental, que até hoje desempenha um papel
tão grande nas leis da pedagogia e nos tratados pedagógicos
práticos.
As grandes conexões permanentes em que se move a nossa
inteligência podem analisar-se em partes e processos elementares.
Ao revelarem-se auto no ma mente mutáveis, os conteúdos e os seus
enlaçamentos separam-se uns dos outros. Antes de mais, isto não
quer dizer algo diferente do facto de que também na sensação
distinguimos assim a qualidade e a intensidade. Nem por isso a
qualidade e a intensidade se transformam em componentes da
sensação. Mas quanto mais elevados são os enlaces em que ela se
apreende, com tanto maior claridade se revela a livre vitalidade
do nosso apreender como actividadc e se separa do que é dado nas
sensações. Se tento representar simultaneamente certo número de
pontos luminosos numa superfície cinzenta (um ensaio que permite
várias conseqüências interessantes), então a possibilidade de eu
poder representar, por exemplo, simultaneamente mais de cinco
pontos, depende, além do exercício, de eu conseguir construir uma
figura mediante relações, c quanto maior for o número de pontos
que nela tento agrupar com tanto maior claridade me precatarei da
minha actividade. Na apreensão de uma melodia concentram-se
ainda mais relações num acto. Em tais enlaçamentos superiores e
mais vivos faz-se valer a consciência da actividadc, de modo muito
diferente de como me são dadas as sensações. Mas se queremos
transferir esta distinção para a formação dos grandes nexos inte­
lectuais tais como espaço, tempo, causalidade, se também aqui
queremos separar das sensações funções nas quais se estabelecem
as suas relações, há que considerar, por outro lado, que, para cada
conexão, se deve conter nas próprias sensações a possibilidade do
seu ordenamento: tem de estar já dentro delas, quando pretendo
destacá-lo. Se formamos ainda que seja só a conexão de uma série
tonal, as relações da proximidade de cada um dos sons relativa­

69
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

mente aos outros têm de se fundar já na índole das sensações


acústicas. Portanto, elas existem já com uma pluralidade de sensa­
ções sonoras. Procurei igualmente demonstrar noutro lugar de que
modo originário se nos oferecem, com os agregados sensoriais,
no dinamismo vivo do processo, relações de causalidade. Assoma,
pois, em toda a conexão intelectual lima relação de componentes
discrimináveis, o que decerto nos permite uma exposição analítica,
mas não uma construção de semelhante conexão.
A psicologia explicativa pretende construir as grandes texturas
permanentes tais como espaço, tempo e causalidade, a partir de
certos processos elementares por ela estudados, como associação,
fusão, apercepção; a psicologia descritiva, pelo contrário, estabe­
lece uma separação entre a descrição e a análise destas conexões
permanentes e as hipóteses explicativas. Possibilita assim uma
contextura universalmente válida do conhecimento psicológico na
qual se vê de uma maneira intuitiva, clara e aguda, o conjunto da
vida psíquica. É, sem dúvida, inevitável formar hipóteses acerca
da origem da nossa representação do espaço; mas ninguém se
poderá negar a reconhecer o carácter inteiramente problemático
das teorias até agora propostas. Esta consciência crítica sobre a
situação real de nenhum modo diminui a nossa admiração ou
dificulta o acolhimento dos importantes resultados obtidos relativa­
mente ás componentes e aos processos elementares da percepção
e do curso mental, resultados que constituem um título de glória
imortal da lisiologia, da psicofísica e da psicologia modernas,
sobretudo alemãs. Também é certo que os trabalhos mais recentes
neste domínio, como a teoria dc Stum pf acerca da fusão do sons,
mostram a tendência de substituir uma representação obscura do
processo, que avança juntamente com analogias físicas, pela expo­
sição universalmente válida das características que se apresentam
no resultado dos processos elementares, neste caso particular os
graus e outras relações íntimas que dificultam a distinção entre os
sons. Isto é condicionado por não nos precatarm os de modo
imediato dos processos dentro de nós ou da realização de uma
função em nós, mas só nos chegar à consciência o resultado. Se
esta via se seguir, veremos como também neste campo a descrição

70
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

universalmente válida irá ganhando maior vigência. Há também


que renunciar a estabelecer um número determinado de processos
elementares absolutos, como hoje se faz amiúde com a associação,
a reprodução e a fusão. A psicologia descritiva só pode delinear
os processos elementares que, por agora, são irredutíveis. Reco­
nhecimento, associação e reprodução, fusão, comparação, iguala-
ção e grau de diferença (o que se encontra compreendido no dife­
renciar), separar e reunir, eis outros tantos processos desta catego­
ria. As relações internas em que se encontram alguns deles recor­
dam-nos provisoriamente que neste campo a descrição e a análise
universalmente válidas não podem ir além de um determinado
ponto, e que se apresentam dificuldades para comprovações de
earácter absoluto bastante parecidas às que se oferecem na questão
dos elementos últimos das nossas percepções e representações, e
que se fazem valer cada vez com maior força, sobretudo na psico­
logia do som. Na análise da inteligência, revela-se uma circuns­
tância cujo carácter geral assinalámos, a saber, como no termo da
análise se encontram a psicologia descritiva e a explicativa. A
própria tentativa de contrastar os factos elementares encontrados
com a estrutura de um determinado campo que assim nasce é uma
operação auxiliar necessária da psicologia descritiva para deter­
minar o grau de probabilidade das hipóteses estabelecidas. Pois a
psicologia descritiva, só quando determina o grau dc probabilidade
das hipóteses singulares, contém a justificação exigida sobre a
relação em que, num momento determinado, se encontra com os
trabalhos e hipóteses mais notáveis da psicologia explicativa.
A situação é muito diferente no tocante à contextura dos nossos
impulsos e sentimentos, que constitui o segundo grande objecto
da análise das campos psíquicos singulares. E, no entanto, temos
aqui o centro genuíno da vida anímica. A poesia de todos os tem­
pos encontra aqui o seu objecto. O interesse dos homens dirige-se
constantemente para esta vida do ânimo; dela dependem a felici­
dade e a infelicidade da existência humana. Por isso, a psicologia
do século XVII, orientada com profundidade para o conteúdo da
vida psíquica, fez da teoria dos estados de ânimo - pois outra
coisa não são os seus ajfectus - o seu centro. Mas embora sejam

71
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

tão importantes e centrais estes estados, resistem com igual perti­


nácia à análise. Os nossos sentimentos fundem-se quase sempre
em estados totais, em que já não é possível discernir as componen­
tes individuais. Os nossos impulsos, sob determinadas condições,
manifestam-se num esforço concreto, limitado na duração, deter­
minado no seu objecto, sem que consigamos ganhar consciência
deles como tais impulsos, isto é, como impulsos omnipresentes
que sobrevivem a cada uma das labutas concretas. Nem os senti­
mentos nem os impulsos podem, à vontade, ser reproduzidos ou
elevados à consciência. Podemos sempre renovar um estado de
ânimo, se suscitarmos experimentalmente na consciência as condi­
ções em que se produz. Daí que as nossas definições dos estados
de ânimo não analisem o seu conteúdo, mas ofereçam apenas as
condições sob as quais emerge o estado. Desta natureza são todas
as definições de estados de ânimo em Hobbes e Espinosa. Temos,
pois, de aperfeiçoar antes o método destes pensadores. A psicologia
descritiva deve elaborar primeiro, neste campo, definições, ter­
minologia e classificação. O estudo dos movimentos expressivos
e dos sím bolos representativos oferece, decerto, novos meios
auxiliares para os estados de ânimo; acima de tudo, o método com ­
parado, que acrescenta as circunstâncias impulsivas e afectivas,
mais simples, dos animais e dos povos primitivos, permite-nos ir
além da antropologia do século XVII. Mas o emprego destes meios
auxiliares também não proporciona nenhum ponto de apoio seguro
para um método explicativo, que pretendesse derivar os fenômenos
deste âmbito a partir de um número limitado de elementos univoca-
mente determinados.
E, de facto, os ensaios explicativos surgem-nos num a luta
recíproca em que não se divisa decisão alguma. Nem sequer as
questões fundamentais permitem uma solução convincente. A
psicologia explicativa, conhecida até agora, toma sempre como
base da sua exposição alguma teoria acerca da relação entre senti­
mento, impulso e vontade, e sobre a relação dos estados afectivos
qualitativos com as representações que com eles se fundem. Uns
encontram no impulso o facto original e consideram os sentimentos
como estados internos dados com a situação da vida impulsiva.

72
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

Outros têm o sentimento por facto primário e derivam dos enlaça­


mentos em que ele se encontra com as sensações e as representações
o impulso e, mais ainda, a própria vontade; nenhuma das duas
teorias consegue, porém, demonstrar a simplificação da realidade
que pretende. Também não é possível desenvolver de um modo
convincente a redução de todas as diferenças qualitativas da nossa
vida afectiva aos estados simples de agrado e desagrado e sos seus
enlaces com sensações e representações. Se encararmos a literatura
assombrosamente rica que nos oferecem os mais diferentes povos
acerca de estados de ânimo e das paixões dos homens, ver-se-á
que as proposições mais fecundas e ilustradoras não exigem ne­
nhum desses pressupostos explicativos; em geral, descrevem-se
nelas as grandes formas dos processos em que se associam entre
si estes di versos aspectos. Por outro lado, basta penetrar bastante
fundo na análise dos grandes feitos neste campo para lobrigar
também a inutilidade de tais hipóteses explicativas. A maioria dos
psicólogos inclina-se a caracterizar o gozo estético, suscitado por
um a obra de arte, como um estado de prazer. Mas o estético que
rastreia os efeitos dos diversos estilos nas diferentes obras de arte
vê-se forçado a reconhecer a insuficiência desta concepção. O estilo
de um fresco de Miguel Ângelo ou de uma fuga de Bach dimana
da acção de uma grande alma, e a apreensão destas obras de arte
comunica à alma de quem dela frui uma determinada forma de
acção, em que ela se exalta, se eleva e expande .
Por isso, o campo da vida afectiva não se encontra ainda real­
mente maduro para um tratamento analítico pleno; a psicologia
descritiva e analítica deve antes ter realizado o seu labor minucioso.
A investigação move-se especialmente em três direcções. Expõe
os tipos principais do decurso dos processos afectivos; o que os
grandes poetas, e especialmente Shakespeare, ofereceram em
imagens, procura ela torná-lo acessível à análise conceptual. Salien­
ta certas relações fundamentais qtie atravessam toda a vida afectiva
e impulsiva dos homens, e tenta detectar as componentes singulares
dos estados afectivos e impulsivos. Se a primeira direcção das in­
vestigações é bastante clara, as outras duas requerem, porventura,
ser ilustradas mediante alguns exemplos.

73
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

Toda a vida impulsiva e afectiva se encontra imbuída de certas


relações fundamentais, que são de importância decisiva para a
compreensão do homem. Saliento algumas delas: temas, por assim
dizer, para um método que as descreva com exactidão. Apresen­
tadas como temas, parecem decerto triviais, pois só no desdobra­
mento da descrição se torna visível o valor de tais exposições, o
qual aumenta porque de tais relações dependem diferenças impor­
tantes entre as individualidades. Semelhante relação reside na fusão
dos sentimentos e na sua transferência. Entender-se-á por esta
última a deslocação do sentimento para algo que, regularmente,
se encontra em conexão com o seu campo originário; assim, do
fim para os meios, do efeito para as causas. Há também uma relação
fundamental deste tipo naquilo que os estóicos, Hobbes e Espinosa
designaram como impulso da autoconservação ou de afirmação
do eu: uma ânsia por se atulhar de estados afectivos, de viver, de
desfraldar as forças e os impulsos. Descobrimos que, numa situação
entorpecedora, do sentimento de pressão costuma brotar regular­
mente o esforço de dela se livrar. A representação de um mal fu­
turo ac tua amiúde na alma, relativamente a determinadas condi­
ções, com tanta força como a presença do próprio mal, e por vezes
até com maior; sobretudo quanto mais intensamente os homens
vivem nas representações do que nas impressões, quanto maior a
atenção com que costumam olhar todo o seu futuro, com tanto
maior facilidade são movidos pelo temor, onde uma perturbação
ameaça a textura da vida. Também o modo e o grau em que o
passado agita a alma depende de certas condições da estrutura
psíquica. Pode observar-se como os homens se potenciam recipro­
camente nos seus afectos; uma assembleia é politicamente mais
excitável do que o seria cada um dos presentes tomado por si, e
tam bém as diferenças que aqui surgem dependem de certas
condições da vida psíquica. Outro rasgo igualmente importante é
constituído pela transformação incessante dos nossos estados
afectivos em símbolos representativos e cm movimentos expres­
sivos. Ambas as formas de tradução do novo estado anímico se
referem uma à outra e se diferenciam do desencadeamento de
acções orientadas para mudanças externas ou internas. Caem sob

74
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA
*

(j conceito de actividade simbolizadora, exposto na Ética de


Schlciermacher. Revestem a maior importância tanto para as
manifestações da vida religiosa como da artística.
A análise procura, em seguida, detectar as componentes sin­
gulares dos estados afectivos. Em geral, os sentimentos apre-
sentam-se-nos na vida em fusões concretas. Assim como a imagem
pcreeptiva contém com o unidades sensações, assim também o
estado afectivo concreto encerra em si sentimentos elementares.
Num quadro, o estado afectivo próprio de cada cor, da harmonia
das cores, do contraste, da beleza da forma, da expressão, do gozo
do conteúdo ideal, cooperam na impressão total. Não indagamos
qual seja o fundamento primeiro das diferenças qualitativas nos
nossos sentimentos, junto das quais se apresentam as diferenças
dc intensidade, mas tomamos de imediato essas diferenças como
outros tantos factos. Se as sensações contidas nas percepções se
repetem, podemos igualmente assinalar a mesma circunstância nos
sentimentos elementares. A uma determinada classe de antece­
dentes alia-se, regularmente, uma determinada classe de processos
afectivos. Assim como a uma classe de estímulos corresponde um
círculo de qualidades sensoriais, assim também a uma classe de
tais antecedentes corresponde um círculo de sentimentos ele­
mentares. Patenteia-se aqui à psicologia experimental um vasto
campo de investigações fecundas. Podemos tentar estabelecer os
antecedentes mais simples possíveis para, em seguida, constatar
as conexões regulares dos mesmos com sentimentos simples. Assim
nasce o conceito de círculos afectivos como factos últimos da vida
afectiva que analiticamente se podem encontrar (6). E de forma
análoga podemos traçar círculos dc impulsos. Mas também aqui,
tal como acontecia na demanda das funções elementares da nossa
inteligência, temos de renunciar provisoriamente a estabelecer um
número limitado de factos elementares definitivos. O método
explicativo exigiria algo semelhante, ao passo que o método des-

(íl) Philosophische Aufscitze, Zellcr gcwidmenl, 365 s. (Ges. Schrifíen V, 2)


PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

critivo e analítico sente precisamente neste domínio a superiori­


dade, que a limitação a tarefas solúveis lhe proporciona.
A terceira grande conexão na nossa vida psíquica é constituída
pelas acções volitivas. Também aqui a análise encontra um guia
seguro em certas relações lirmes. Deve, antes de mais, definir os
conceitos de adopção de fim, motivo, relações entre fim e meios,
eleição e preferência, c desenvolver ainda as relações recíprocas
entre estes conceitos. Tem, em seguida, de analisar a acção volitiva
singular, como se fez no cuidadoso trabalho de Sigwart. E o recurso
da psicologia descritiva consiste justamente em transformar em
objecto da análise o processo já desenvolvido, em que as partes
integrantes se diferenciam com maior claridade. Separamos motivo,
fim e meio. O fenômeno da eleição ou da preferência é apreendido
com clareza na percepção interna. Além disso, as nossas acções
teleológicas ingressam, em parte, no mundo exterior, e assim se
objectivam para nós. A acção volitiva promana da situação total
da nossa vida impulsiva e afcctiva. Tem a intenção da sua mudança.
Implica, portanto, algum gênero de representação do fim. Este
fim, ou pretende conseguir a sua intenção no mundo exterior, ou
renuncia a alterar o estado de consciência mediante acções externas
e visa suscitar directamente mudanças internas na vida psíquica.
Há uma época no desenvolvimento ético-religioso do homem em
que a disciplina das acções volitivas internas ganha nele poder.
Um estado ou processo interno, ao converter-se em factor dc uma
V.

decisão voluntária, é também um motivo. A representação teleo-


lógica junta-se já, durante a deliberação, a representação do meio.
Se da ânsia de mudar a situação surgiram uma ou várias represen­
tações do fim, então surge na alma um provar, escolher, preferir, e
a representação teleológica mais adequada, cujos meios são ao
mesmo tempo mais facilmente acessíveis, eleva-se a uma resolução
volitiva minha. Emerge então, mais uma vez, um provar, escolher
e decidir acerca de todos os meios disponíveis para este fim.
Mas a análise das acções volitivas não tem de se limitar à desar­
ticulação da acção voluntária. Assim como, no âmbito intelectual,
a associação individual ou o acto mental singular não constitui o
objecto principal da análise, assim também não a decisão volitiva

76
A PSICOLOGIA DESCRITIVA E ANALÍTICA

singular, no domínio prático. A análise cuidadosa das acções volun-


lárias individuais leva-nos à sua dependência da adquirida textura
da vida psíquica que, tal como as relações fundamentais das nossas
representações, abarca as determinações axiológicas permanentes,
os hábitos da nossa vontade e as ideias teleológieas imperantes e,
por isso, contém as regras sob as quais se encontra a nossa conduta,
amiúde sem que delas tenhamos consciência. Constitui, pois, esta
contextura, que actua incessantemente em cada um dos actos
volitivos, o objecto principal da análise psicológica da vontade
humana. Não preciso de tomar consciência da conexão das minhas
tarefas profissionais para a ela subordinar uma acção, segundo a
situação actual, e a intenção implicada por esta conexão de tarefas
co.uinua a agir, sem que eu a eleve á consciência. E em cada
consciência banhada pelas relações culturais cruzam-se diversas
texturas ou nexos teleológicos. Nunca podem estar ao mesmo
tempo na consciência. Mas, para agir, não é preciso que cada uma
delas esteja na consciência. Não são essências fictícias interpoladas.
São realidades psíquicas. Só a teoria da conexão adquirida da
vida anímica, que actua sem ser distintamente consciente, e que
também engloba as conexões, nos permite apreender esta realidade.
Ao lado desta constancia na conexão volitiva existe a uniformidade
desta conexão nos indivíduos. Assim nascem as grandes formas
da cultura humana, em que se objectiva a vontade constante e
uniforme. E elas constituem um objecto destacado da análise
orientada para os elementos e os nós no querer. Estudamos a
natureza, as leis e a conexão das nossas acções volitivas na orga­
nização exterior da sociedade, na ordem econômica e jurídica.
Temos aqui perante nós a mesma objectivação da textura na nossa
atitude prática, que existe no número, no tempo e espaço, e nas
outras formas do nosso conhecimento do mundo para a nossa per­
cepção, representação e pensamento. O acto volitivo singular já
no indivíduo é apenas a expressão de uma direcção permanente
da vontade, que pode encher a vida inteira, sem que nos esteja
incessantemente presente. Mas isto constitui justamente o carácter
do mundo prático: imperam nele relações permanentes que passam
de indivíduo para indivíduo, e que são independentes dos m ovi­

77
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

mentos vol iti vos do momento e que dão a sua firmeza ao mundo
prático. A análise deve, neste campo, orientar-se para as relações
duradouras, tal como acontece no campo da inteligência.
Pode indicar-se ainda que o método descritivo e analítico nos
proporciona igualmente uma base para a apreensão das formas
individuais da vida psíquica, das diferenças entre os sexos, dos
caracteres nacionais, dos grandes tipos da vida teleológica humana
dos e das individualidades.

78
1

Capítulo V
f '

Relação entre a psicologia explicativa


e a descritiva

Se estas considerações se examinarem com boa vontade - o


que não é de esperar de muitos fanáticos na psicologia - poderá
chegar-se a um acordo sobre os pontos seguintes. Os representantes
da psicologia explicativa continuarão a defender com razão que a
comprovação e o desenvolvimento de uma hipótese num âmbito
mais ou menos amplo de fenômenos constitui o método mais
importante do progresso psicológico (por conseguinte, o trabalho
psicológico propriamente dito). Pois, nos pontos em que a expe­
riência não faculta ao psicólogo nenhuma conexão, onde não
permite já compô-la e desarticulá-la, onde nem sequer possibilita
obter uma regra dominadora a partir da multiplicidade dos casos,
será necessário orientar para uma determinada meta, mediante
hipóteses, a observação, a comparação, o experimento e a análise.
Não afirmarão eles, porém, que na actualidade qualquer hipótese
pode pretender descobrir, em face das outras, as verdadeiras razões
explicativas da vida psíquica. Por seu lado, a psicologia descritiva
afirmará que, por agora, nenhuma psicologia explicativa existe
que seja adequada para servir de base à ciências do espírito.
Mais ainda, deverá assinalar os efeitos danosos que semelhante
psicologia explicativa exerce sobre as ciências do espírito. A histo­
riografia de Grote, Buckle e Taine encontrava-se sob a impressão

79
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

de que o emprego da experiência da vida não chegava para a com ­


preensão profunda da contextura causai histórica, e pensava que
os grandes progressos da psicologia, que atraía todos os olhares
em Inglaterra e na França, tinham de se aplicar também à história.
Mas estas obras demonstram justamente que se preserva melhor a
objectividade do historiador quando este se abandona ao seu senti­
mento da vida do que quando pretende aplicar as teorias unilaterais
da psicologia explicativa. E, contudo, no anelo destes historiadores
acoitava-se uma grande tendência que teve por conseqüência a
acção extraordinária que suscitaram os seus ensaios. Se se con­
seguisse uma psicologia objectiva, que abarcasse de modo fide­
digno toda a vida psíquica, semelhante psicologia, juntamente com
as ciências empíricas acerca dos sistemas culturais e da organização
da sociedade, proporcionaria um fundamento aos esforços dos his­
toriadores filosóficos, que dem andam uma profunda conexão
causai na história.
Um segundo caso dos efeitos nocivos da psicologia explicativa
sobre as ciências do espírito é constituído pela moderna corrente
do direito penal. Cola-se esta sobretudo aos dois Mill, a Spencer e
a Taine, e constrói um direito penal determinista com base psico­
lógica ou biológica, Este direito penal sacrifica os conceitos
contidos na própria vida, e que a jurisprudência clássica destacou
de modo exemplar, às teorias unilaterais que os tempos consigo
trazem e levam. Na realidade, a liberdade de eleição é apenas a
expressão representativa da consciência inextirpável da nossa
espontaneidade e vitalidade. Enquanto o modo de efectuação, que
nos leva das premissas à conclusão, de um sentimento do dor a
um anelo, é acompanhada habitualmente pela advertência da neces­
sidade, há outras formas de efcctividade, como a superação de um
impulso mediante uma actuação da vontade segundo o dever, que
são acompanhadas pelo sentimento Interno particular, indicado
na expressão de liberdade. Limitamo-nos assim a expressar algo
que existe na experiência interna. A questão das regularidades ob-
jectivas nas acções dos homens e na vida da sociedade nada tem a
ver, de imediato, com a constatação do que ocorre na experiência
interna. A liberdade, no sentido de que a acção singular podia ter

80
RELAÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA EXPLICATIVA ...

sido outra, não é a conseqüência científica necessária do que se


encerra na experiência interna. Pelo contrário, quando a consciência
de livre efectuação que ocorre na experiência interna é referida na
minha representação à relação da acção última, que constitui o
caso penal ou o caso moral com as suas condições, esta liberdade,
enquanto poder-fazer de outro modo na acção singular, é somente
a expressão representativa da espontaneidade e da liberdade na
efectuação, que se refere a toda a conexão do meu agir dentro do
meu caracter. Esta é a verdade que se encerra na doutrina de Scho-
penhauer acerca da liberdade inteligível. E se em toda esta relação
conexa, que encontramos presente na vivência da consciência da
liberdade, está contida a produção de novos valores que não se
podem explicar pelas meras relações dos motivos, tal não representa
anomalia alguma no campo do espírito, pois deparamos com ana­
logias em todas as acções estéticas ou intelectuais de tipo criador.
Por isso, não está justificado o direito penal moderno para colocar
a noção entediosa e indemonstrada de uma máquina psíquica ou
psicofísica, em vez dos conceitos vitais que a jurisprudência desen­
volveu, a partir da consciência da espontaneidade, da vida e da
responsabilidade nas acções volitivas. Efeitos semelhantes da
psicologia explicativa poderemos indicar também no campo da
economia política, da história literária e da estética.
É, portanto, necessária e possível uma psicologia que ponha
na base dos seus procedimentos o método descritivo e analítico c
que empregue as construções explicativas só em segundo lugar e
com a consciência dos seus limites, de tal modo que as suas hipó­
teses não se convertam, por seu turno, em fundamento de outras
explicações hipotéticas. Será o fundamento das ciências do espírito,
com o a matemática o é das ciências da natureza. Justamente nesta
sadia interacção com as ciências empíricas do espírito se desenvol­
verá em todas as direcções. Graças a uma determinação conceptual
e designação nítidas, introduzirá pouco a pouco uma terminologia
científica comum às ciências do espírito. Por outro lado, preparará
as monografias explicativas mediante a acumulação de material,
por meio da descrição das conexões da vida psíquica e de análises
cuidadosas. Facilitará o controlo das suas hipóteses.

81
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

Entre psicólogos sem preconceitos poderá, pouco a pouco,


chegar-se a um acordo sobre estas proposições. E, por outro lado,
bastam as mesmas para fixar à psicologia descritiva a sua tarefa
na tessitura das ciências do espírito. Por isso as separo de outra
proposição de maior alcance, que não pode contar com o mesmo
grau de reconhecimento. A psicologia explicativa como sistema é
incapaz, não só por agora, mas sempre, de alcançar um conheci­
mento objectivo da textura dos fenômenos psíquicos. Tem somente
um valor heurístico. Por muito grande que seja a importância da
monografia explicativa, o método que consiste em estabelecer um
conjunto de elem entos explicativos hipotéticos e em derivar,
mediante uma construção, o conjunto dos fenômenos psíquicos
ao nosso alcance, não leva a nenhum conhecimento objectivo da
vida anímica.
Estipulo um princípio de que deriva esta proposição. O fito do
estudo dos fenômenos psíquicos é a conexão dos mesmos. Esta
depara-se-nos, através da experiência interna, nas circunstâncias
A

da actuação como algo vivo, livre e histórico. E a suposição geral


com que a nossa percepção e o nosso pensar, o nosso fantasiar e o
nosso agir podem estabelecer qualquer conexão. A textura de uma
percepção sensorial não dimana das excitações sensíveis que nela
se entrelaçam. Nasce da actividade viva, unitária em nós, que já é
em si conexão. Também os processos do nosso pensamento con­
sistem nesse mesmo unir vivo. O comparar, unir, separar, fundir
assenta na vitalidade psíquica. Nestes processos elementares pene­
tra, no interior do pensamento discursivo, a relação entre sujeito e
predicado, coisa, propriedade e acção, substância e causalidade, e
também ela dimana da experiência interna do eu e da sua acção,
da sua efectuação. Portanto, toda a conexão, apreendida pela nossa
percepção ou posta pelo nosso pensamento, foi subtraída à vida
interna individual. Também quando expressamos uma identidade
causai se trata de um conteúdo parcial desta conexão viva. Pois
esta contém igualmente relações de necessidade e de igualdade.
Mas em cada ponto contém mais do que isto. Não podemos, porém,
estabelecer uma conexão fora daquilo que nos é dado. Para lá disto,
tal como nos é dado na experiência interna, não pode ir a ciência

82
RELAÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA EXPLICATIVA ...

da vida psíquica. A consciência não pode sair de si mesma. A


contextura em que actua o pensamento, e da qual parte e depende,
constitui para nós o pressuposto irremovível. O pensamento não
pode ir além da sua própria realidade, além da realidade donde
nasce. Se pretende construir uma conexão racional para lá desta
última realidade que nos é dada, então ela só poderá estar composta
dos conteúdos parciais que se apresentam nessa mesma realidade.
Isto acontece também em toda a psicologia racional, explicativa,
construtiva. As relações de necessidade e de igualdade que se
apresentam na conexão psíquica são destacadas isoladamente e
entrelaçadas num todo abstracto. Mas não há nenhum meio m en­
tal legítimo que nos conduza desta abstracção à realidade viva da
concxão psíquica. Sem o recurso mental causa aequat ejfectum
não haveria para a psicologia explicativa nenhuma regra segura
de progresso. Por isso, tinha de alicerçar a vida dada na experiência
sobre uma conexão racional situada para lá dela, mas que na vida
empírica não existe assim. A construção do que é dado na vida
mediante algo que lhe é sotoposío não pode pretender completar
o nosso saber acerca da tessitura viva. Ela só é possível se os con­
teúdos parciais da experiência viva da efectuação se entrosarem
com o fio condutor do conhecimento exterior da natureza. Por
isso, a psicologia explicativa serve-se da abreviatura da vida plena
e da mistura com pressupostos que procedem do campo natural.
Deduz partindo de conteúdos parciais da vida, que são inseridos
numa conexão causai racional. O exemplo mais brilhante a este
respeito é oferecido por Herbait. O vislumbre fundamental da sua
psicologia deve-se à experiência pedagógica, que constituía a base
fecunda do seu pensamento. Aprendeu com Pestalozzi a considerar
as representações como forças que, uma vez adquiridas, influirão
para sempre a ulterior vida psíquica. Mas o método com que desen­
volveu esta visão pode ser submetido à mesma crítica que, de modo
Ido convincente, Trendelenburg aplicou à lógica de Hegel. Introduz
lueilamente nas suas noções toda a vida que, em seguida, procura
derivar. De igual modo procede a psicologia assoeiacionista. Na
ftiiuplcs facilitação da sucessão por efeito do hábito nada há em
rclnçiio ao qual tal habituação suscite uma conexão, uma união
•\
•>

PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

interna; o aparecimento de lima conexão interna sobre a base de


reiteradas relações no tempo é, pelo contrário, algo que se foi buscar
à nossa vida e tacitamente se interpola na associação. Vê-se assim
que em todo o sistema explicativo racional se insere a vida nas
componentes da explicação, porque na compreensão de semelhante
teoria é co-partícipe toda a nossa vida e, por isso, pode ser depois
deduzida.
O método da psicologia explicativa nasceu de uma extensão
ilegítima dos conceitos científico-naturais ao campo da vida psí­
quica e da história. O conhecimento da natureza converteu-se em
ciência quando, no campo dos fenômenos dinâmicos, se conseguiu
estabelecer equações entre causas e efeitos. Esta conexão da natu­
reza segundo equações causais foi imposta ao nosso pensamento
vivo pela ordem objectiva da natureza, representada nas percepções
externas. A regra das mudanças de Heraclito, as relações numéricas
dos sons e das trajectórias dos astros dos Pitagóricos, a conserva­
ção da massa e a homogeneidade do universo de Anaxágoras, a
redução das mudanças qualitativas inapreensíveis do universo a
relações quantitativas, o cálculo com os movimentos dos átomos
sob o pressuposto da persistência de todo o movimento começado,
segundo Demócrito - todos estes primeiros passos de uma teoria
geral da natureza nos mostram o espírito humano em actividade
comprovativa, induzido pela constância e pela uniformidade da
natureza. Os axiomas, que Kant indica como nosso patrimônio a
priori, foram referidos à natureza a partir da conexão viva em nós.
Na conexão racional dos fenômenos que assim surge, a lei, a cons­
tância, a uniformidade, as equações causais constituem a expressão
das relações objectivas da natureza exterior. Pelo contrário, não
obtivemos a conexão viva da alma com tentativas graduais. Esta
conexão é a vida, que está aí anteriormente a todo o conhecimento.
Vitalidade, historicidade, liberdade, desenvolvimento sãs as suas
características. Se analisarmos esta conexão psíquica, nunca depa­
ramos com algo coisal ou substancial, nada podemos compor com
elementos, não há elementos isolados, pois estes são inseparáveis
das funções. Mas, em geral, não temos consciência das funções.
Deparamos com diferenças, graus, separações, sem termos cons­

84
RELAÇÃO ENTRE A PSICOLOGIA EXPLICATIVA ...

ciência dos processos que os estabeleceram. Isto elevou assim as


dificuldades do problema gnoseológico do a priori . Não podemos
avançar com identidades causais que estariam empiricamente
fundadas; o conjunto causai, com que depara realmente a percepção
interna, não regressa simplesmente no efeito.
Só em princípio podemos oferecer aqui outra demonstração de
que não se pode transferir para a vida psíquica a conexão natural
externa. A explicação racional do mundo não conduz a contradições
só ao aplicá-las ao transcendente, como mostrou Kant de forma
indiscutível, mas surgem também antinomias dentro da realidade,
quando sc tenta mostrá-la como transparente para o entendimento
em todos os seus elementos e em toda a sua conexão. Estas anti­
nomias são imanentes à realidade empírica, enquanto o entendi­
mento procura mostrar a sua plena transparência lógica. Deve-se,
em primeiro lugar, a que a nossa consciência do mundo, tal como
a consciência de nós mesmos, brotou da vida do Si mesmo; mas
esta é algo mais do que ratio. De tal são provas os conceitos de
unidade, ipseidade, substância, causalidade. Outras antinomias
devem-se a que não é possível reduzir uns aos outros factos de
procedência distinta. A prova disso é a relação das grandezas
espaciais, temporais e dinâmicas contínuas com o número. Com
isto se liga o facto de que não é possível subsumir o vivido a partir
de dentro em conceitos que foram desenvolvidos a propósito do
mundo exterior, que nos é dado nos sentidos.
Capítulo VI

Possibilidade e condições da solução da tarefa


de uma psicologia descritiva

A solução desta tarefa pressupõe, antes de mais, que possamos


perceber os estados internos. A demonstração efectiva disso reside
no conhecimento indubitável que temos dos estados anímicos.
Cada um de nós sabe o que é um sentimento de prazer, um impulso
volitivo ou um acto m ental Ninguém corre o risco de os confundir.
Se existe, tal conhecimento deve ser possível. Como poderiam
aguentar-se as objecções levantadas contra esta possibilidade? De
facto, assentam numa transferência patente para a percepção interna
daquilo que vale para a percepção externa. Toda a percepção
exterior se baseia na distinção do sujeito percipiente em relação
ao seu objecto. Pelo contrário, a percepção interna não passa da
consciência interna de um estado ou processo. Um estado existe
para mim enquanto dele sou consciente. Quando me sinto triste,
tal sentimento de tristeza não é objecto meu mas, enquanto sou
consciente de tal estado, ele existe para mim, para mim enquanto
alguém que deie tem consciência. Apreendo-o intimamente. As
percepções dos estados internos são recordadas. Ao regressarem
amiúde, na mesma união, com as condições externas e internas de
que brotaram, nasce o conhecimento que cada um de nós possui
acerca dos seus estados, das suas paixões e do seu esforço.
Se pretendemos tomar a expressão “percepção” no sentido mais
exacto e estreito de um a percepção atenta, a possibilidade de

87
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

semelhante percepção encontra, decerto, limites mais estreitos;


mas continua a subsistir a possibilidade. Se chamarmos a esta per­
cepção atenta observação, então a psicologia terá de se confrontar
com a teoria que defende que é impossível a observação dos estados
próprios. O que seria certo se estivesse vinculada à separação entre
sujeito observador e o seu objecto. A observação dos objectos
naturais assenta, sim, na separação entre sujeito observador e objec­
to observado. Mas tem lugar um processo muito diferente quando
os estados internos são objecto de observação. Pois a observação
dos processos ou estados internos distingue-se da sua mera apre­
ensão unicamente pela potenciação da consciência que introduz a
vontade. Se, em geral, se deve evitar a confusão dos pressupostos
do conhecimento natural com o dos factos psíquicos, também neste
caso temos de nos precaver de transferir o que acontece na obser­
vação dos objectos exteriores para a apreensão atenta do estados
internos. Posso, sem dúvida, dirigir a minha atenção para uma dor
de que me dou conta e, portanto, observá-la. Nesta capacidade de
observar estados internos assenta a possibilidade da psicologia
experimental. Mas a observação dos estados internos encontra-se,
decerto, limitada pelas condições sob as quais emerge. Pense-se
como se quiser sobre o nascimento dos actos volitivos, é empirica-
mente certo que a atenção mostra a sua afinidade com os aclos de
vontade, porque faz cessar todo o estado de dispersão, de jogo
indeliberado das representações, e que nunca pode actuar noutra
direcção quando existe um acto voluntário simultâneo. Por isso,
nunca podemos nem observar o jogo das nossas representações
nem apreender com atenção o próprio acto mental. De tais pro­
cessos sabemos só graças à recordação. Mas esta é um recurso
muito mais seguro do que em geral se pensa, e até podemos apre­
ender na recordação o processo recentemente interrompido, como
recolhendo as pontas soltas de um tecido roto.
Ofereceremos noutro lugar explicações mais amplas, a partir
do que aqui se disse; por agora, é suficiente a indicação sobre a
base da possibilidade do nosso conhecimento dos estados internos.
A possibilidade da apreensão de estados internos é-nos dada dentro
de certos limites. Também dentro destes limites ela é dificultada,

88
POSSIBILIDADE E CONDIÇÕES DA SOLUÇÃO ...

sem dúvida, pela interna inconstância de todo o psíquico. Encontra-


-se sempre em processo. Uma dificuldade ulterior provém do facto
de que a percepção se refere a um só indivíduo. Também não
podemos medir nem o poder que uma representação possui no
nosso ânimo nem a força de um impulso volitivo ou a intensidade
de uma sensação de prazer. Não tem para nós sentido algum atribuir
a um destes estados a força dupla da do outro. Mas as desvantagens
são mais do que compensadas pela vantagem decisiva que a percep­
ção interna oferece relativamente à externa. Nesta apreensão dos
estados próprios apreendemo-los, sem mediação dos sentidos
externos, na sua realidade, tais como são. E para compensar as
deficiências indicadas oferece-se ainda outro recurso.
Completamos a percepção interna mediante a apreensão de
outras pessoas. Apreendemos o seu íntimo. Tal acontece graças a
um processo espiritual que eqüivale a um raciocínio por analogia.
As deficiências deste processo devem-se a que se leva a cabo me­
diante uma transferência da nossa própria vida anímica. Aquilo
que, numa vida psíquica alheia, não se distingue do nosso íntimo
só quantitativamente ou pela ausência de algo presente no nosso
próprio interior não pode ser completado por nós de um modo
positivo. Podemos, em semelhante caso, dizer que nos encontramos
na presença de algo estranho, mas sem conseguirmos dizer de que
se trata. Fala muito a favor da grande afinidade interna de toda a
vida psíquica humana o facto de que a compreensão de um psiquis-
mo alheio é possível ao investigador acostumado a olhar em redor
e eonhecedos do mundo. Em contrapartida, no tocante ao conheci­
mento da vida psíquica animal, este limite cognitivo impõe-se de
um modo bastante desagradável. A nossa compreensão dos verte­
brados, que possuem a mesma estrutura orgânica fundamental, é
relativamente a melhor dentro do nosso conhecimento da vida
animal; sobretudo no tocante ao estudo dos impulsos e dos estados
afectivos, esta psicologia animal é muito proveitosa para a psico­
logia humana; mas se tivermos em conta que, além dos vertebrados,
os artrópodes constituem a classe animal mais importante, mais
ampla e intelectualmente mais desenvolvida, sobretudo os hime-
nópteros, que englobam as formigas e as abelhas, a organização

89
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

tão distinta da nossa dificulta-nos extraordinariamente a inter­


pretação das suas manifestações físicas de vida; e, claro está, cor­
responde a estas uma vida interior altamente estranha para nós.
Fogem-nos, pois, aqui todos os meios para penetrar num grande
domínioi psíquico, que é para nós um mundo de todo estranho; a
nossa impotência neste particular expressa-se no facto de que
subordinamos ao mais obscuro de todos os conceitos, o de instinto,
as surpreendentes realizações psíquicas das abelhas e das formigas.
Não conseguimos fazer ideia alguma das representações espaciais
na cabeça de uma aranha. Por fim, também não dispomos de ne­
nhum meio para constatar onde termina a vida psíquica e onde
existe matéria organizada sem tal vida.
A psicologia vê-se, pois, obrigada a compensar as deficiências
de cada um dos seus recursos. Por isso, conjuga a percepção e a
observação de nós mesmos, a apreensão de outras pessoas, o mé­
todo comparado, o experimento, o estudo dos fenômenos anormais.
Tenta penetrar na vida psíquica por muitas portas.
Um complemento deveras importante de todos estes métodos,
na medida em que se ocupam de processos, consiste em utilizar os
produtos objectivos da vida psíquica. Possuímos na linguagem,
no mito, na literatura e na arte, e em geral em todas as realizações
históricas, uma vida psíquica que se objectivou: produtos das forças
efectivas de natureza psíquica; formas firmes que se estruturam
com elementos psíquicos e segundo as suas leis. Quando em nós
ou nos outros observamos os processos, vemos que mostram uma
mutabilidade constante, algo com o formações espaciais cujos
contornos se alteraram constantemente; daí o valor inestimável
que supõe a posse de formas permanentes de linhas nítidas, a que
continuamente pode retornar a observação, a análise.
Saber se a tarefa de uma psicologia descritiva pode ser resolvida
com estes recursos decide-se pela própria tentativa de conhecer
uma estrutura ampla e uniforme de toda a vida psíquica humana.
A análise psicológica estabeleceu com plena segurança muitas
conexões singulares. Podemos muito bem seguir os processos que
nos levam desde uma impressão exterior até ao nascimento de
lima imagem perceptiva; podemos perseguir a transformação da

90
POSSIBILIDADE E CONDIÇÕES DA SOLUÇÃO

m esm a num a representação recordada; podem os descrever a


formação de representações da fantasia e de conceitos. O mesmo
acontece com os motivos, a escolha, a acção em vista de um fim.
Mas é necessário ordenar todas estas conexões singulares numa
textura geral. E disto se trata agora, de saber se podemos abrir
caminho para tal meta.

91
4

J
Capítulo VII
9'

A estrutura da vida psíquica

O Si mesmo encontra-se numa mudança de estados que se


reconhecem como unitários pela consciência da ipseidade da
pessoa; encontra-se ao mesmo tempo condicionado por um mundo
exterior e reagindo sobre ele, mundo a cujo respeito sabe que é
apreendido na sua consciência e se encontra determinado pelos
actos da sua percepção sensorial. Ao encontrar-se assim a unidade
da vida condicionada pelo meio em que vive e, por seu turno, ao
reagir sobre ele, desponta uma articulação de estados internos;
designo-a como estrutura da vida psíquica. E quando a psicologia
descritiva procura apreender esta estrutura, revela-se-lhe a conexão
que entrosa as séries psíquicas num todo. Este todo é a vida.
C ada estado psíquico aparece em mim num determ inado
momento e também num dado momento se desvanece. Tem um
decurso: começo, meio e final. E um processo. No meio da mu­
dança destes processos o permanente é aquilo que constitui a forma
da nossa vida consciente: a correlação do Si mesmo e do mundo
objectivo. A ipseidade, em que se entrosam em mim os processos,
não é em si mesma um processo, não é passageira mas, como a
minha própria vida, vinculada permanentemente a todos os pro­
cessos. De igua! modo este mundo objectivo, presente a todos,
que existiu antes de mim e depois de mim existirá, constitui, como
limitação, o correlato, o antagonista do Si mesmo, presente em

93
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

todo o estado consciente. A consciência dele também não é um


processo, um agregado de processos. Mas tudo o mais em mim,
fora desta correlação entre mundo e Si mesmo, é processo.
Estes processos sucedem-se uns aos outros no tempo. Não raro,
posso aperceber-me de uma sua união interna. Vejo que uns produ­
zem os outros. Assim, um sentimento de repugnância produz a
propensão e o empenho de afastar o seu objecto da minha consciên­
cia. Dc igual modo as premissas suscitam a conclusão. Em ambos
os casos, dou-m e conta desta produção. Estes processos sucedem-
-se uns aos outros, mas não com espaços intermédios, como vagões
em fila, cada um separado do outro, ou como companhias dc um
regimento militar. A minha consciência teria então um carácter
intermitente, pois uma consciência sem um processo, em que ela
existe, é algo sem sentido. Pelo contrário, dentro da minha vida
desperta encontro uma continuidade. Os processos transcorrem
de tal forma simultâneos e enleados uns nos outros que há sempre
algo presente na minha consciência. Tal como atrás de um cam i­
nhante, que avança animado, os objectos, que há pouco estavam
diante dele e a seu lado, se dissipam na rectaguarda, e outros apare­
cem, enquanto persiste sempre a continuidade da imagem da
paisagem.
Designarei como s tatus conscientiae, estado de consciência,
aquilo que num dado momento constitui a amplitude da minha
consciência. Faço um corte transversal para reconhecer a estratifi-
cação de semelhante momento cheio de vida. Ao comparar entre
si estes estados momentâneos de consciência, descubro que quase
todos eles contem de um modo patente alguma representação, um
sentimento e um momento volitivo.
Em primeiro lugar, em todo o estado de consciência se encerra
uma componente representativa. O discernimento da verdade desta
afirmação depende do facto de que por sem elhante elemento
representativo não se entenda apenas imagens completas presentes
na percepção, ou resíduos desta, mas também cada conteúdo re­
presentativo, tal como se apresenta enquanto parte de um estado
psíquico total. Uma dor física, como a queimadura de uma ferida,
contém, além do forte sentimento de dor, uma sensação orgânica,

94

L
A ESTRUTURA DA VIDA PSÍQUICA

que é de natureza qualitativa, tal como uma sensação gustativa ou


uma óptica; além disso, inclui uma localização. Também todo o
processo de pulsão, de atenção ou volição, contém em si semelhante
conteúdo representativo. Por muito obscuro que seja, é ele que
determina a direcção do processo volitivo.
Aperceber-se da presença de uma afecção em todo o estado de
consciência implica que se conceba este aspecto da vida psíquica
em toda a sua amplitude. Além do agrado e do desagrado, fazem
parte dela também o gosto e o desgosto, a complacência e a displi­
cência e todo o jogo das tonalidades afectivas mais leves. Em todo
o impulso actuam de m odo irresistível sentimentos obscuros. A
atenção é guiada pelo interesse, mas este é a participação afectiva
que dim ana da situação do nosso Si mesmo e das suas relações
com o objecto.
Na volição, a imagem que se apresenta à vontade é acompa­
nhada de prazer; encerra, além disso, um desprazer pela situação
/

actual; os seus motores são sempre sentimentos. E difícil constatar


a presença de uma excitação afectiva na nossa atitude represen­
tativa e pensante ; mas observações cuidadosas chegam a detectá-
la, Não consigo convencer-me da teoria muito difundida de que
toda a sensação é acompanhada por um tom afectivo. Mas logo
que uma sensação simples e forte se coloca no centro da nossa
atenção, irradia dela uma suave coloração afectiva do estado
psíquico. Visto que as sensações visuais possuem a tonalidade
afectiva mais débil, pode considerar-se como demonstrada esta
proposição a seu respeito. Mas isto é já o resultado de uma expe­
riência realizada pela primeira vez por Goethe. Contemple-se uma
paisagem através de cristais de cor diferente; estende-se então
imediatamente sobre ela, embora de modo menos perceptível, uma
tonalidade afectiva diferente, devido à acção diversa das cores sobre
o nosso sentimento. Mais clara ainda é a acção que exerce a altura
e o timbre dos sons sobre a nossa vida afectiva. Assim, por exemplo,
o efeito produzido por uma trombeta ou por uma flauta. Se destes
sentidos, que são os portadores dos efeitos estéticos e dos conhe­
cimentos, passarmos aos sentidos mais profundos, que se encon­
tram em relação próxima com a própria conservação, a participação

95
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

afectiva revela-se mais quente e, amiiíde, violenta. Estes factos


contradizem, de resto, a teoria de Herbart, segundo a qual os senti­
mentos prom anam das relações entre as representações. Quando
as sensações ingressam numa relação recíproca, suscitam-se novos
sentim entos, com o é patente no prazer da consonância e no
desprazer da dissonância. Também o processo mental, enquanto
actividade da atenção, se encontra já acompanhado de uma partici­
pação afectiva enqiuanto interesse. Acrescentam-se, em seguida,
os movimentos afectivos do êxito e do fracasso. Também as im­
pressões do gracejo, da agudeza, da combinação surpreendente,
prescindindo de que também a evidência e a consciência da con­
tradição, taí como da falsidade, se apreendem diversamente como
um sentimento. Gostaria de dizer que estes estados internos não
são em si mesmos sentimentos, mas que, de modo inevitável, à
evidência se cola a satisfação e à contradição um desprazer afim à
dissonância. Também a consonância, enquanto estado de fusão
parcial, por exemplo, de um tom fundamental e de uma oitava, é,
antes de mais, um estado representativo e, em segundo lugar, para
a nossa com preensão do processo, o sentimento agradável da
afinidade sonora.
Se, por fim, tivermos em vista a presença da actividade volitiva
nos processos psíquicos, a demonstração fica aqui muito mais longe
das devidas exigências. Todo o sentimento tem a tendência para
desembocar num desejo ou numa repulsa. Todo o estado perceptivo,
que se encontra no centro da minha vida psíquica, é acompanhado
de actividades de atenção; graças a estas unifico e enxergo as im­
pressões: as manchas de cor de um quadro transformam-se assim
em objecto. Cada processo mental é dirigido por uma intenção e
direcção da atenção. Mas também em associações, que aparente­
mente decorrem de modo involuntário, o interesse determina a
direcção na qual se levam a cabo os enlaces. Não indica isto a
existência de algo volitivo, que constitui o seu substrato? Chega-
-se aqui a zonas fronteiriças de tipo obscuro: o voluntário nas
direcções duradoiras do espírito, a espontaneidade como condição
de que eu experimente a pressão ou a acção. Como tem de se
elim inar todo o elem ento hipotético destas descrições, deve

96

i
A ESTRUTURA DA VIDA PSÍQUICA

reconhecer-se que a presença de actividades volitivas nos processos


psíquicos é a mais difícil de clara comprovação.
Designamos também alguns estados totais como sentimento,
outros como processo voluntário e outros como atitude represen­
tativa. Tal deve-se, em primeiro lugar, a que costumamos carac­
terizar todas as vezes este estado total segundo a parte que mais
sobressai na percepção interna. Na percepção de uma bela paisa­
gem, domina a atitude representativa; só num exame mais atento
lobrigo um estado de atenção (portanto, uma atitude volitiva) en­
trelaçado com aquela e o todo imbuído de um profundo sentimento
*

de felicidade. Mas não é só isto o que constitui a natureza de


semelhante estado total e que decide se o designaremos como
atitude afectiva, volitiva ou representativa. Não se trata apenas da
relação quantitativa das diversas vertentes de um estado total. A
relação interna destes diversos aspectos da minha atitude , por
asim dizer, a estrutura em que se entrosam estes fios, é distinta no
estado afectivo e no volitivo, e neste distinta do que é no represen­
tativo. Assim, em toda a atitude representativa as actividades da
atenção e os movimentos conscientes nela entrelaçados estão ao
serviço total da formação da representação; as incitações volitivas
imiscuem-se nestes processos for inativos de natureza represen­
tativa: dissolvem-se neles. Brota daí a aparência de uma atitude
meramente representativa, isenta de vontade. Pelo contrário, o
processo volitivo mostra uma relação bem diferente entre o con­
teúdo representativo e a volição, pois nele trata-se de uma relação
sui generis entre intenção, imagem e a realidade futura. A imagem
do objecto é aqui, por assim dizer, o olho do desejo, que se está
orientado para a realidade.
Prossigam os. Dentro dos estados representativos podemos
estabelecer, sem hipótese alguma, uma série entre as percepções,
representações recordadas e processos mentais verbais, cujos
membros se encontram internamente ligados. Podemos igualmente
descrever sem hipóteses a conexão em que se ponderam os motivos,
se faz uma eleição e, a partir da decisão da vontade, se desenca­
deiam processos dinâmicos numa seriação adequada. Além, temos
a formação progressiva da inteligência, que é suscitada pelo poder

97
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

penetrante das ideias gerais; aqui, a idealização progressiva das


actividades volitivas, que é induzida pela habituação de processos
internos e de movimentos externos, e põe à disposição da vontade
um número cada vez maior de combinações entre actividades
internas e movimentos exteriores. Põe sempre, por assim dizer,
novos escravos ao serviço dos seus fins. Mas trata-se agora de
estabelecer a relação entre estas duas séries. Uma decorre do jogo
das excitações até ao processo mental abstracto ou à plasmação
artística interior, enquanto a outra vai desde os motivos até ao
processo dinâmico. Ambas as séries se encontram entrosadas na
contextura da vida, e só a partir desta se torna compreensível o
seu valor vital. Tentemos, pois, apreendê-la.
É uma tarefa extraordinariamente difícil, pois o que estabelece
a união entre estes dois membros e descobre o seu valor vital
constitui a parte mais obscura de toda a psicologia. Entramos na
vida sem nenhuma claridade acercado núcleo do nosso Si mesmo.
Só pouco a pouco a própria vida nos vai instruindo em certa medida
acerca das forças que a impelem de um modo incontível.
Todas as formas da existência animal estão dominadas pela
relação entre excitação c movimento. Com ela se realiza a adap­
tação da unidade vital animal ao seu ambiente. Vejo uma lagartixa
a deslizar ao longo da parede ensoleirada e a estender os seus
membros no lugar mais quente; dou um grito; e ela desaparece.
As impressões de luz e de calor despertou nela esse jogo. Foi
interrompido graças à percepção que avisa de um perigo. Com
rapidez extraordinária, o instinto de conservação da frágil criatura
reage à percepção mediante movimentos adequados, apoiados num
mecanismo reflexo. A impressão, a reacção e o mecanismo reflexo
encontram-se, pois, adequadamente imbricados.
Tento agora explicar a natureza deste entrosamento. As condi­
ções externas em que se encontra uma vida psíquica residiriam
nesta, para as mudanças, só numa relação causai, e nenhum juízo
moral surgiria sobre o seu valor para este psiquismo mutável; o
indivíduo seria apenas um ser representativo. E em todas as per­
cepções, representações e conceitos de semelhante ente repre­
sentativo não haveria ocasião alguma para as suas acções. O valor

98
A ESTRUTURA DA VIDA PSÍQUICA

nasce apenas na vida afectiva e impulsiva, e só nele se encontra


albergado o que põe em comunicação o jogo das excitações e a
m udança das impressões com a força dos movimentos volitivos,
aquilo que conduz dos primeiros aos segundos. De acordo a reacção
da vida impulsiva e afectiva, que as condições de vida suscitam,
tornam-se elas de tipo entorpecedor ou estimulante. Conforme as
condições exteriores provoquem uma pressão ou uma intensifi­
cação na esfera afectiva, nasce desta um afã de manter ou de mudar
a situação dada. Como as imagens fornecidas pelos sentidos, ou
as ideias que a elas se juntam, estão entrelaçadas com representa­
ções e sentimentos de satisfação, de plenitude vital e de bem-estar,
destas representações e sentimentos emanam acções teleológicas
que se encaminham para a consecução de um bem acessível me­
diante tais acções. Ou quando estas imagens ou ideias se entrelaçam
com representações e sentimentos de torpor e dor nascem acções
teleológicas, que visam evitar o prejudicial. Satisfação dos im­
pulsos, obtenção e conservação do prazer, da plenitude vital e da
intensificação da existência, evitação do que desgasta, pressiona,
entorpece: eis o que estrutura o jogo das nossas percepções e
pensamentos com as nossas acções volitivas numa conexão estru­
tural. O centro da nossa estrutura psíquica é constituído por um
feixe de impulsos e sentimentos; a partir dele eleva-se o jogo das
impressões ao plano da atenção graças à participação afectiva que
se lhes comunica, formam-se percepções e os seus nós com recor­
dações, séries mentais a que, em seguida, se juntam a intensificação
da existência ou a dor, o temor, a cólera. Assim se agitam todas as
profundezas do nosso ser. E daqui irrompem, na transição da dor
ao anseio, deste à apetência, ou noutra série de estados afectivos,
as acções voluntárias. E isto é o [elemento] decisivo cm todo o
estudo da conexão estrutural psíquica: as transições de um estado
para outro, a acção que leva de um a outro, caem dentro da
experiência interna, A conexão estrutural é vivida. Porque vivemos
eslas transições, esta acção, porque nos damos intimamente conta
da conexão estrutural que abarca em si todas as paixões, dores e
destinos da vida humana, compreendemos a vida dos homens, a
história, todas as profundezas e abismos do humano. Quem não

99
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

experimentou em si o modo como as imagens, que se impõem à


fantasia, provocam de imediato uma apetência violenta, ou como
esta, em luta com a consciência de grandes dificuldades, tende
para um acto voluntário? Em conexões concretas semelhantes ou
parecidas apercebemo-nos de transições, de efectuações singulares,
agora de um enlace, em seguida de outro; repetem-se estas ex­
periências internas, itera-se na vivência ora este ora aquele vínculo
íntimo, até que toda a conexão estrutural, na nossa consciência
interna, se transforma numa experiência segura. E não só as grandes
partes desta conexão estrutural se encontram em íntima relação
vivida, mas também podemos ter consciência de relações sem e­
lhantes dentro de cada um destes membros. Sento-me diante do
palco; Hamlet enfrenta o fantasma de seu pai; segundo o que
antes expusemos, não posso dar-me direetamcnte conta de que
forma, devido à minha viva participação afectiva na cena, se produz
em mim uma tensão da atenção em contínua transição; mas, com
a reprodução na lembrança, posso dela aperceber-me e experi­
mentá-la em mim em qualquer outro momento. Articulo raciocínios
para demonstrar um facto que influi fortemente no meu sentimento
vital, e nesta articulação, que infere de proposição para proposição,
há uma efectuação que vai das premissas à conclusão. Com o
motivo dou-m e conta da força actuante que me impele para uma
acção. Como é natural, esta advertência íntima, este viver, este
recordar não traz ao meu conhecimento destas conexões o que a
análise científica pode fornecer. Na conexão podem participar,
como factores, processos ou elementos que não caem no campo
da experiência interna. Mas a textura vivida é o fundamento.
Esta conexão psíquica estrutural é, ao mesmo tempo, teleo-
lógica. U m a conexão, que tem a tendência de realizar a plenitude
vital, a satisfação dos impulso e o bem-estar, é uma textura id e o ­
lógica. Visto que as partes na estrutura estão de tal modo enlaçadas
umas nas outras que a sua união é capaz de provocar satisfação e
bem-estar e de evitar dores, designemo-la como teleológica. Só
na estrutura psíquica existe originalmente o carácter de adequação
a um fim; quando atribuímos esta adequação ao organismo ou ao
mundo, trata-se de uma transferência deste conceito a partir da

100
A ESTRUTURA DA VIDA PSÍQUICA

vivência interna. Cada relação de partes num todo recebe o carácter


de adequação a um fim do valor nela realizada, mas este valor só
é experimentado na vida afectiva e impulsiva.
A biologia transitou, muitas vezes, desta adequação teleológica
subjectiva imanente para uma adequação objectiva. O seu conceito
promana da relação da vida impulsiva e afectiva com a conservação
do indivíduo e da espécie. Esta relação é uma hipótese, e o trabalho
dirigido à sua corroboração não levou ainda a uma suficiente com ­
provação. Mas a minha exposição seria incompleta se aqui não
acrescentasse que a sua consideração é apropriada para alargar o
horizonte destas explicações. Poderíamos imaginar organismos
que realizassem a sua adaptação à realidade circundante pelo cami­
nho mais curto. Viriam ao mundo com um conhecimento suficiente
daquilo que lhes era útil, isto é, do que favorecesse a sua conserva­
ção. Multiplicara-se-iam segundo a sua necessidade e, a partir
destes conhecimentos, realizariam os movimentos correspondentes
para suscitar a sua adaptação ao meio. Tais seres deveriam poder
distinguir, desde o leite materno, o proveitoso e o nocivo nos
alimentos. Desde o primeiro aíento teriam de julgar e utilizar conve­
nientemente o valor da constituição do ar para o processo respira­
tório. Necessitariam também de um conhecimento do grau de tem­
peratura conveniente para os seus processos vitais. Exigiriam ainda
o conhecimento das relações com os seus semelhantes, que lhes
foram mais favoráveis. Aparentemente, semelhantes seres teriam
de estar dotados de uma pequena omniseiência. Mas a natureza
resolveu o problema com um dispêndio muito menor de recursos.
Adaptou o indivíduo vivo ao seu meio de um modo indirecto,
com uma poupança muito maior de actividades. O conhecimento
do útil ou do nocivo das coisas exteriores, daquilo que aumenta
ou diminui o bem-estar do corpo vivo está representado em todo o
mundo animal e humano pelos sentimentos de prazer e dor. As
nossas percepções constituem um sistema de sinais das proprie­
dades do mundo exterior ignoradas por nós; também os nossos
sentimentos são outros tantos sinais. Constituem um sistema in­
dicativo, isto é, no tocante ao gênero e à gradação do valor vital
dos estados de um Si mesmo e das condições que sobre este actuam.

101
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

A relação, que aqui existe, apresenta-se da maneira mais simples


nas dores e nos prazeres físicos do ser vivo. Trata-se, neste caso,
de sinais internos do estado daqueles tecidos que se encontram
ligados a o cérebro, graças aos nervos sensitivos. Tanto a alimen­
tação deficiente como a actividade excessiva, em seguida, as
influências perturbadoras do exterior têm como conseqüência dores
crônicas ou agudas. Pelo contrário, sentimentos somáticos agra­
dáveis dimanam do funcionamento normal dos órgãos no corpo
vivo, e são tanto mais fortes quanto maior é o número das fibras
nervosas que participam e mais rara é a sua excitação. Daí que
também o prazer físico fique muito aquém, quanto à intensidade,
das dores físicas mais fortes. Nem a actividade normal se pode
elevar sobre a média nem o ataque e a destruição podem descer
até ao limite em que terminam a vida e a sensação. Por isso, a teo­
ria pessimista de Schopenhauer acerca do predomínio da dor na
vida orgânica é confirmada pelos factos. Todavia, os sentimentos
somáticos constituem uma linguagem de sinais de um gênero algo
grosseiro e imperfeito; elucidam-nos sobre os efeitos momentâneos
de um estímulo num tecido, e não sobre as conseqüências ulteriores.
O efeito imediato de um alimento sobre o órgão do gosto não é
menos agradável pelo facto de, mais tarde, tal alimento provocar
efeitos nocivos noutras partes do corpo, assim, surgirem nas partes
correspondentes do sistema nervoso, como sinais seus, as dores
reumáticas.
Esta adequação dos sentimentos somáticos prolonga-se no
campo dos sentimentos espirituais: à previsão ou à expectação
indefinida de dores físicas está unido um sentimento espiritual de
pena, e à expectativa do corporalm ente agradável, um prazer
psíquico.
Mas os impulsos poderosos que dominam o mundo animal, o
mundo social humano e o mundo histórico humano mostram uma
adequação de tipo mais enérgico. Entre eles temos, como a classe
mais poderosa, os três grandes impulsos físicos que se baseiam
em mecanismos reflexos. Pode dizer-se que as forças mais pode­
rosas do mundo moral são a fome, o amor e a guerra; nelas operam
os impulsos mais fortes: o de nutrição, o de geração e cuidado da

102
A ESTRUTURA DA VIDA PSÍQUICA

prole e o impulso de protecção. A natureza utilizou, pois, os meios


mais fortes para a conservação do indivíduo e da espécie. Os
mecanismos reflexos da respiração, do movimento cardíaco e do
aparelho circulatório trabalham automaticamente, sem intervenção
da vontade; em contrapartida, a tomada do alimento, que exige
uma escolha e uma posse, leva-se a cabo por meio de um impulso
consciente, acompanhado pelas sensações típicas de fome, degus­
tação e satisfação, e capaz de escolha. A natureza estabeleceu aqui
um amargo castigo da má alimentação por meio de um violento
sentimento de desagrado ou í.)sco. E com sentimentos aprazíveis
estabelece um prêmio para a alimentação correcta. Obrigou assim
os animais e os homens a escolher e a preservar, até nas circunstân­
cias mais difíceis, uma alimentação conveniente. Com não menos
força do que este impulso actuam o amor sexual e o cuidado da
prole. O primeiro está ao serviço da conservação do indivíduo, o
segundo da espécie; também aqui o impulso, a apetência e o prazer
se encontram numa relação teleológica com o fim da natureza.
Igualmente elementar e poderoso é o terceiro círculo de impulsos:
os de protecção, unidos a mecanismos reflexos. Revestem uma
forma dupla. Ou respondem à agressão com movimentos de defesa
ou reagem mediante a fuga, que põe o animal em segurança. Os
mecanismos reflexos mais surpreendentes articulam-se com este
impulso no mundo animal. Vemos animais que rejeitam elementos
líquidos repugnantes; outros encolhem-se como se estivessem
mortos; ou assustam os seus inimigos com mudanças espantosas
das suas formas.
Por isso, a educação moral da humanidade assenta, em primeiro
lugar, na regulação destes poderosíssimos impulsos, nos seus
ordenam entos sociais. Se facultarem um trabalho regular, se
obtiverem uma satisfação ordenada, haverá lugar para a activação
tios impulsos e afãs espirituais, que crescem no seio da sociedade
com uma força extraordinária. Na própria natureza da vontade se
funda o impulso de exercer domínio e, quando daqui nasceu uma
aquisição cultural, o de propriedade. Pois a vontade só age livre­
mente numa esfera do seu domínio. Estes impulsos e as relações
que deles brotam só desaparecerão, pese a todos os sonhos, com a

103
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

própria humanidade. São restringidos pelos sentimentos sociais,


pela necessidade de comunidade, pela alegria na estima dos outros,
pela simpatia, pela alegria na actividade e pela conseqüência. Neste
vasto âmbito de impulsos, afãs e sentimentos espirituais, a alegria
e a dor encontram-se numa relação de relação teleológica com o
proveito do indivíduo e da sociedade.
Esta é a hipótese pela qual a consideração biológica transforma
a teleologia imanente subjectiva da conexão estrutural psíquica,
que nos é dada na experiência interna, numa teleologia objectiva.
Pode servir também de exemplo da importância que a explicação
de hipóteses pode ter para a ampliação do horizonte da psicologia
descritiva e analítica. Retomo agora o fio. Mostrei já como a estru­
tura da vida psíquica, que encadeia o estímulo e o movimento re-
activo, tem o seu centro no feixe de impulsos e de sentimentos a
partir do qual se mede o valor vital das mudanças do nosso meio e
se dirigem as reacções sobre o mesmo. Viu-se também que todo o
conceito de adequação ao fim e de teleologia expressa apenas o
contido e experimentado nesta conexão vital. A adequação ao fim
não é um conceito natural objectivo, mas designa somente o tipo
de conexão vital de um ser animal ou humano, que se experimenta
no impulso, no prazer e na dor. Olhada a partir de dentro, a unidade
biológica de vida procura utilizar as condições do seu meio para
buscar o sentimento de prazer e a satisfação dos impulsos. Vista
de fora, c segundo a hipótese exposta, esta unidade acha-se equi­
pada com os seus impulsos e sentimentos para a conservação de si
mesma e da sua espécie. O entrosamento dos processos tão diversos
do representar, sentir e querer em semelhante conexão constitui a
estrutura da vida psíquica. E esta união de processos tão diversos
numa unidade não se estabelece por meio de conclusões; é a expe­
riência mais viva de que somos capazes. Todas as outras experiên­
cias internas estão nela incluídas. A adequação ao fim é a proprie­
dade fundamental de vida desta conexão; esta tem, de acordo com
aquela, a tendência para produzir valores vitais de satisfação e
alegria.
Esta textura da nossa vida psíquica, que existe na experiência
interna, pode ser clarificada e confirm ada exam inando a sua

104
A ESTRUTURA DA VIDA PSÍQUICA

presença e a sua função em todo o reino animal. Semelhante con­


sideração tem valor também, se prescindimos do pressuposto
hipotético, mas dificilmente evitável, de uma evolução no reino
orgânico.
Todo o sistema do mundo animal e humano se nos apresenta
como o desfraldar desta simples estrutura fundamental da vida
psíquica em diferenciação crescente, autonomia de cada uma das
funções e partes, bem como na articulação superior das mesmas.
Em virtude da dificuldade de interpretar a vida psíquica dos
animais, podemos ver isto com maior simplicidade no seu sistema
nervoso. As massas protoplasmáticas que não possuem nervos nem
músculos reagem também ao estímulo. Se eu aproximar um grão-
zinho de uma amiba, estendem-se as suas partes, abraçam a partí­
cula e retiram-se de novo para a massa. Na hidra, as mesmas células
são os suportes das actividades sensoriais e motoras. Nas belas
medusas, que flutuam aos montões nas águas do mar, estão já
separados os órgãos da sensibilidade e do movimento. A evolução
avança no mundo animal para dois pontos superiores: um é cons­
tituído pelos artrópodes, que formam as quatro quintas partes de
todas as espécies animais e entre os quais se destacam, como mais
desenvolvidas, as abelhas e as formigas. O outro grupo é constituído
pelos vertebrados, de cuja organização corporal participa o homem.
Encontramos aqui um sistema nervoso muito desenvolvido em
que as partes centrais estabelecem a comunicação entre os nervos
sensitivos e motores numa forma muito perfeita e são suportes de
um a estrutura psíquica muito desenvolvida.

Tentemos agora expressar concisamente as propriedades mais


gerais da estrutura interna da vida psíquica.
O processo vital psíquico é, originariamente e em geral, uma
unidade, desde as suas formas mais elementares até às mais ele­
vadas. A vida psíquica não cresce por composição de partes; não
se constitui a partir de elementos; não é um composto, um resultado
de átomos sensitivos ou afectivos que cooperam em conjunto; é
sempre, e de modo originário, uma unidade englobante. A partir
desta unidade, diferenciaram-se as funções psíquicas, mas m an­

105
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

tendo-se na sua conexão. Este facto, cuja expressão no estádio


mais elevado é a unidade da consciência e a unidade da pessoa,
distingue o psiquismo radicalmente de todo o mundo corpóreo. A
experiência desta contextura vital exclui a teoria mais recente
segundo a qual os processos psíquicos seriam representações
singulares discretas de uma conexão física de processos. Toda a
doutrina que seguir esta direcção entra em contradição com as
experiências, em prol de um feixe de hipóteses.
Esta conexão psíquica interna é condicionada pela situação da
unidade de vida dentro de um meio. A unidade vital encontra-se
em interacção com o mundo exterior; o modo particular de tal
interacção pode conceber-se com uma expressão muito geral -
pois, trata-se aqui apenas de descrever um facto que, em última
instância, se nos revela efectivam ente no hom em da nossa
experiência e que, em seguida, nele se há-de descrever, como
adaptação entre a unidade vital psicofísica e as circunstâncias em
que vive. Nela se leva a cabo a ligação da série dos processos sen­
sitivos com a série dos processos motores. Também a vida humana
nas suas formas mais elevadas se encontra sob esta grande lei de
toda a natureza orgânica. A realidade que nos rodeia suscita sen­
sações. Estas representam-nos as condições da diversidade de
causas fora de nós. Encontramo-nos, pois, de modo incessante
condicionados, corporal c psiquicamente, por causas exteriores;
segundo a hipótese indicada, os sentimentos expressam o valor
das acções que procedem do exterior para o nosso organismo e
para o nosso sistema de impulsos. Condicionados por eles, o inte­
resse e a atenção levam a cabo uma selecção dc impressões. Diri-
gem-se para certas impressões. Mas a intensificação da consciência,
que tem lugar na atenção, é em si e por si um processo. Consiste
nas actividades de diferenciar, equiparar, unir, separar, aperceber.
Surgem nelas percepções, imagens e, no decurso ulterior das acti­
vidades sensoriais, os processos mentais, pelos quais a unidade
vital torna possível um certo domínio sobre o real. Pouco a pouco,
forma-se uma conexão firme de representações, de determinações
axiológicas e de movimentos volitivos reproduzíveis. A unidade
vital já não está entregue ao jogo dos estímulos. Impede e domina

106
A ESTRUTURA DA VIDA PSÍQUICA

as reacções, escolhe, quando pode provocar uma adaptação da


realidade à sua necessidade. E, acima tudo, quando não consegue
determinar esta realidade, adapta a ela os seus processos vitais,
domina as paixões soltas e o jogo das representações mediante a
actividade interna da vontade. Tal é a vida.
A terceira propriedade fundamental desta textura vital consiste
em que os seus membros se encontram entre si vinculados de tal
maneira que um não se segue do outro segundo a lei da causalidade
prevalecente na natureza exterior, a saber, a lei da igualdade quan­
titativa c qualitativa entre causa e efeito. Nas representações não
existe nenhuma razão suficiente para que desemboquem em sen­
timentos; poderia imaginar-se um ser puramente representativo
que, no meio do alvoroço de uma batalha, fosse um espectador
indiferente e abúlico da sua própria destruição. Também nos
sentimentos não existe razão suficiente alguma para se transfor­
marem em processos volitivos. Poderia pensar-se que esse mesmo
ser acompanhava a luta em seu redor com sentimentos de terror e
horror sem que, todavia, desses sentimentos surgissem movimentos
de defesa. A conexão entre estas componentes heterogêneas, não
deriváveís urnas das outras, é sui generis. A expressão de ‘adequa­
ção a um fim ’ não esclarece a natureza de tal conexão; expressa
apenas algo contido na vivência da textura psíquica, e também
não o expressa dc um modo completo, mas só numa abreviatura
conceptual.

107
Capítulo VIII

O desenvolviriiento da vida psíquica

Uma segunda conexão mais ampla, que atravessa toda a nossa


vida psíquica, c-nos oferecida pelo seu desenvolvimento. A sua
estrutura estende-se, por assim dizer, através da sua amplitude;
também a sua evolução se expande na sua vastidão. Por isso, numa
psicologia descritiva, deveria dedicar-se a este tema um capítulo
especial e pormenorizado, e tal aconteceu muitas vezes nas psico­
logias antigas, mais descritivas: aqui, aludiremos apenas a este
complemento da teoria da conexão estrutural.
As duas classes de conexão condicionam-se mutuamente. Não
se poderia compreender o desenvolvimento do homem sem ter
uma ideia da ampla conexão da sua existência: o ponto de partida
de todo o estudo do desenvolvimento é esta apreensão da conexão
que existe no homem já desenvolvido e na sua análise. Só aqui há
uma realidade dada, na experiência interna do psicólogo, à clara
luz do meio-dia; ao passo que pela observação e experimentação
em crianças apenas conseguimos inseguros vislumbres da semi-
-obscuridade do desenvolvimento inicial. Por outro lado, o nexo
da história evolutiva explica o da estrutura. A psicologia descritiva,
ao associar os dois modos de consideração, tenta com pletar a
descrição e a análise do tipo homem maduro e completo por meio
dc um a biografia geral deste tipo. Por isso, só comseguimos tam­
bém com preender totalmente um indivíduo, por muito chegado
que nos seja, quando soubermos como chegou a ser o que é.

109
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

O andamento metódico do conhecimento desta história evo­


lutiva é distinto do andamento da própria vida ou da sua represen­
tação. O conhecimento só pode avançar recuando, analiticamente,
da textura adquirida da vida psíquica para as condições e faetores
do seu desenvolvimento. Se observarmos o nosso procedimento
na apreensão da história evolutiva de um indivíduo concreto,
veremos que é assim mesmo. Necessitamos, primeiro, de ter alcan­
çado uma certa compreensão do ponto cimeiro de um desenvolvi­
mento individual, antes de podermos determinar as suas etapas,
tal como, por outro lado, do conhecimento dessas etapas prévias
recebe a vida psíquica individual já desenvolvida uma iluminação
maior. O desenvolvimento da vida nas primeiras etapas evolutivas
só pode compreender-se a partir da compreensão daquilo que, no
tipo homem ou em tipos individuais, delas se costuma desenvolver.
Nenhum mestre se poderia orientar na alma dc um menino, se
nela não deparasse com os germes daquilo que ele conhece em
desenvolvimentos mais amplos.
Há que estudar três classes de condições da evolução de uma
vida psíquica desenvolvida. Essa vida encontra-se em alguma
relação dc condicionamento ou de correspondência com o desen­
volvimento do corpo e, portanto, depende das acções do meio
físico, e também da conexão com o mundo espiritual que o rodeia.
Estas condições actuam sobre a conexão estruturai da vida
psíquica. Se nesta estrutura e nas suas forças impulsivas não hou­
vesse uma adequação teleológica, que as movesse para diante,
então o decurso da vida não seria um desenvolvimento. Por isso,
tão impossível é deduzir o desenvolvimento de um homem da
vontade cega de Schopenhauer quanto do jogo atomístico de forças
psíquicas singulares, segundo a teoria dos herbartianos e dos semi-
-materialistas ou dos materialistas integrais. Os impulsos e os
sentimentos constituem, portanto, o agente peculiar que impele
para a frente', a adequação teleológica e a conexão inerentes à
relação desses impulsos e sentimentos com os processos intelec­
tuais, por um lado, e com as acções voluntárias, por outro, dão às
mudanças psíquicas que assim surgem o carácter da adaptação
entre o indivíduo e as condições vitais; surge uma articulação

110
0 DESENVOLVIMENTO DA VIDA PSÍQUICA

crescente da vida psíquica; o desenvolvimento faz da textura adqui­


rida do psiquismo o seu centro; assim se forma o unitário, o cons­
tante e o teleoiogicamente determinado, que constitui o conceito
de desenvolvimento.
Explico agora, com maior exactidão, as relações em que se
encontra a ideia do desenvolvimento e que se nos apresentam
nessas proposições. Pode assim clarificar-se cada um dos conceitos
entrelaçados na ideia de desenvolvimento. É possível, sobretudo,
discernir plenamente a conexão causai interna, cm que o desenvol­
vimento psíquico, enquanto consequência necessária da estrutura
anímica, se encontra a esta ligado.
Da teoria da conexão estrutural da vida psíquica depreende-se
que as condições exteriores em que se encontra um indivíduo,
sejam elas inibidoras ou propícias, desencadeiam todas as vezes o
afã de suscitar ou de conservar um estado de satisf ação dos impul­
sos e de bem-estar. Ora, com o todo o desenvolvimento mais fino
das percepções, toda a formação mais adequada de representações
ou conceitos, todo o incremento na riqueza de reacções sentimen­
tais, toda a adaptação maior dos movimentos aos impulsos, toda a
habituação de direcções voluntárias favoráveis e de enlançamentos
convenientes entre meios e fins operam no sentido de facilitar a
satisfação dos impulsos, a suscitação de sentim entos agradáveis e
a evitação do desagradável, a conexão estrutural em que radicam
estas relações causais tem outra consequência importante: consiste
ela em favorecer e fomentar tais diferenciações mais finas e en­
laces superiores no indivíduo, e estes, p o r seu turno, possibilitam,
em seguida, uma satisfação de impulsos, um a mais rica plenitude
vital e de maior bem-estar. Quando uma concxão das componentes
da vida psíquica suscita tais efeitos sobre a plenitude vital e a
satisfação dos impulsos, dizemos que é adequada a um fim. O
ajustamento teleológico, que impera na vida psíquica, é, pois, uma
propriedade inerente à concxão das su as componentes. Muito
longe, portanto, de tal ajustamento se derivar de uma ideia de fim
a nós exterior, todo o conceito de uma finalidade em acção fora da
vida psíquica se foi buscar à adequação teleológica interna, própria
da vida psíquica. Dela foi transferido. É congênito à nossa estrutura

111
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

psíquica. Só em virtude desta transferência dizemos adequada


qualquer conexão fora da mesma. Os fins, efectivamente, só nos
são dados nesta estrutura psíquica. Apenas de acordo com a
experiência encontramos nela a adaptação a eles. Designamos esta
adequação teleológica da estrutura psíquica como subjectiva e

imanente. E subjectiva, porque é objecto de vivência, dada na


experiência interna. E imanente, porque não se funda em nenhuma


ideia de fim fora dela. E o conceito da adequação subjectiva e
imanente da estrutura psíquica é dual, isto é, encerra em si dois
momentos. Indica, em primeiro lugar, uma conexão das com po­
nentes da vida psíquica, apropriada para suscitar riqueza de vida,
satisfação dos impulsos e bem-estar, nas mutáveis condições exte­
riores em que vivem todos os organismos. Sobrevêm, depois, um
segundo conceito desta adequação teleológica. Segundo ele, nesta
conexão estrutural, encerra-se ao mesmo tempo, pressupostas as
mutáveis condições da vida, a disposição para o seu aperfeiçoa­
mento. E este leva-se a cabo nas formas da diferenciação e no es­
tabelecimento de enlançamentos superiores. Consiste, justamente,
nessa grande faculdade de suscitar a plenitude vital, a satisfação
dos impulsos e o bem-estar.
Desta finalidade subjectiva imanente distinguimos uma objec-
tiva e que, todavia, também é imanente. O seu conceito surge me­
diante uma hipótese, quando se toma em consideração esta circuns­
tância, implicada na conexão estrutural e que tende para a produção
dos estados subjectivos, em vista da conservação do indivíduo ou
da espécie. Descobrimos que esta conservação está ligada, numa
certa amplitude, à produção de reacções afectivas agradáveis, à
evitação das desagradáveis e à satisfação dos impulsos. Referimo-
-nos aqui às explicações do capítupo anterior. Mas sublinhamos
de novo: tal como nessa finalidade subjectiva, também na finalidade
objectiva imanente não se encerra nenhum pressuposto de uma
ideia dc fim, subjacente à conexão. A transcendência da ideia de
fim é apenas uma interpretação, com a qual se busca uma explica­
ção para semelhante conexão teleológica.
Passemos a outro momento da ideia de desenvolvimento. O
conceito da conexão psíquica da vida está em íntima relação com

112
O DESENVOLVIMENTO DA VIDA PSÍQUICA

o valor da vida. Este radica na realidade psíquica, porquanto esta


encontra a sua expressão nos sentimentos. Só o vivido no senti­
mento tem para nós um valor; o valor é, portanto, inseparável do
sentimento. Mas daqui não se segue que o valor vital conste de
sentimentos, que se deva considerar como uma acumulação dos
mesmos e que se possa estabelecer mediante a sua adição. Tal não
o diz a experiência interna. Pelo contrário, o que nos aparece como
o valor da nossa existência é toda a plenitude da vida por nós
experimentada, a riqueza da realidade vital que sentimos, a vivência
do que em nós reside. Situamos, sim, este valor nas circunstâncias
vitais em que nos é dado viver, nas intuições e nas ideias com que
podemos encher a nossa existência, na acção que nos é permitida;
ver em tudo isto unicamente condições e ocasiões dos sentimentos
é algo intolerável para o homem são. Afigura-se-lhe antes que
toda a realidade da vida é medida segundo o seu valor no senti­
mento. Atendamos agora ao conceito do valor da vida. A conexão
estrutural psíquica é teleológica, porque tem a tendência para
desenvolver, manter e acrescentar valores vitais.
Prossigamos com o exame de outro momento. A adequação da
conexão vital que se manifesta na produção e na conservação de
valores vitais e na eliminação do prejudicial produz, sob a acção
das condições em que se encontra o indivíduo, uma cada vez maior
articulação da vida psíquica. A partir dos impulsos e dos senti­
mentos valorizam-se as impressões, para conseguir o domínio sobre
as condições vitais. Graças à participação afectiva nestas impres­
sões, dedica-se-lhes um interesse e uma atenção persistentes,
surgem imagens perceptivas, adequadas e aproveitáveis, formam-
-se representações típicas que representam as condições exteriores
de um a maneira utilizável, e desdobram-se ideias sobre as relações
de semelhança e causação no mundo exterior. As experiências
ensinam aquele que cresce a ponderar entre si de modo mais
correcto os valores vitais, relações firmes das determinações axio-
lógicas suscitam a unidade do ideal de vida, que dimana das profun­
dezas da individualidade. N um a luta áspera, o ideal de vida e o
sonho futurista do adolescente adaptam-se à força das coisas.
Desponta o domínio do hom em na sua esfera vital. Consciente e

113
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

seguro, eleva-se sobre a subjectividade unilateral do adolescente,


no reconhecimento do nexo axiológico da realidade, que ele já
não tenta produzir, mas apenas fomentar na parte que lhe corres­
ponde. Este reconhecimento liberta-o da melancolia pelo fracasso
dos seus ideais juvenis, pois descobre que é na tessitura axiológica
da realidade que se encerra o verdadeiro daqueles ideais. Mezzo
clel cammino : nesta altura da vida, ultima-se também a articulação
dos impulsos e dos sentimentos, que adquirem nas esferas da vida
e nas suas circunstâncias reais uma configuração particular. A
mesma articulação tem lugar no domínio da vontade. Emprego o
conceito de articulação para expressar que a conexão viva é a base
de todo o desenvolvimento, e que todas as diferenciações e as
mais claras e finas relações se desenvolvem a partir desta estrutura,
tal como do embrião a articulação de um ser animal. Inserindo-se
as ligações no patrimônio sólido da vida psíquica, tal como as
representações, constitui-se ao mesmo tempo, com esta articulação,
uma textura adquirida da vida psíquica e o seu domínio sobre os
processos conscientes individuais. Os processos em que isto
acontece persistem até à idade mais avançada. Ancilosa-se agora
a sensibilidade viva. Na tessitura psíquica adquirida triunfa o pas­
sado e fecha-se a novas realidades; reinam as recordações.
Os actos em que este desenvolvimento tem lugar criam algo
que ainda não se podia revelar nos estados anteriores; fazem surgir
valores novos. Quão diferentes eles são! Junto das sínteses cria­
doras da ciência, surge a plasmação artística de símbolos para
excitar a vida interna, ou a fixação unilateral de um a direcção
apaixonada da vontade, com a qual ingressa no desenvolvimento
legal o elemento trágico da vida.
Resumamos agora estes momentos. Deparámos com a conexão
estrutural, a finalidade, o valor vital, a articulação psíquica, a for­
mação de um a textura anímica adquirida e os processos criadores
numa recíproca relação interna. Ao pensarmos estes diversos mo­
mentos em actividade, surge o desenvolvimento. Um ser em que
cooperam estes momentos da vida será um ser que se desenvolve.
O desenvolvimento só é possível onde existe como base uma
conexão estrutural. Isto é tão verdadeiro que o colectivo huma-

114
O DESENVOLVIMENTO DA VIDA PSÍQUICA

nidade possui um desenvolvim ento porque a cooperação das


diversas estruturas individuais se manifesta numa espécie de estru­
tura do todo, a sociedade. Desta circunstância derivam as proprie­
dades fundamentais individuais do desenvolvimento. Este é, em
primeiro lugar, um avanço, uma mudança espontânea numser vivo,
porque os seus impulsos constituem um agente que o impele para
diante. Vita motus perpetuus. Por isso, todo o desenvolvimento
psíquico consiste numa conexão, internamente condicionada, de
mudanças na série temporal. Graças à actuação constante dos
impulsos internos, em andamento gradual, surge uma segunda
propriedade fundamental de todo o desenvolvimento, a sua con­
tinuidade. Além disso, visto que a adequação ao fim é o carácter
da estrutura psíquica, surge como outra propriedade fundamental
do desenvolvimento a sua conexão teleológica. O desenvolvimento
alberga a tendência para produzir valores vitais. E do modo duplo
em que vimos actuar a conexão psíquica estrutural nasce a cir­
cunstância mais surpreendente, que o desenvolvimento humano
nos revela. Cada época da vida possui um valor próprio, pois cada
uma delas é capaz, em correspondência com as suas condições
particulares, de uma culminação com sentimentos vivazes, que
potenciam e exaltam a existência. A vida mais perfeita seria, sim,
aquela em que cada momento se enchesse com o sentimento de
um valor autônomo. O encanto, com que a vida de Goethe nos
rodeia, radica justamente nisto. Faz dele também o maior lírico de
todos os tempos. Rousseau, Herder e Schleiermacher elaboraram
teoricamente este princípio. Não fizeram mais do que expressar
numa fórmula o que a poesia de todos os tempos soube revelar
com imagens arrebatadoras. Em especial, o romance de desenvol­
vimento e o Fausto enquanto drama de desenvolvimento - uma
forma inteiramente nova de drama, pejado de germes de um grande
futuro poético - tentaram patentear o valor autônomo das épocas
singulares do homem. O desenvolvimento consta de simples
estados de vida, cada um dos quais tenta conseguir e conservar
um valor vital próprio. Infeliz a infância, que é sacrificada aos
anos da maturidade. Louco o cálculo com a vida, que incessante­
mente cam inha para a frente e faz do anterior um meio do ulterior.

115
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

Nada mais errôneo do que situar na maturidade a meta para o


desenvolvimento, que constitui a vida, fazendo que os tempos ante­
riores sirvam de meio. E como poderiam servir para a consecução
de um a meta, quando tão incertas são todas elas? Pelo contrário,
na natureza da vida, é ínsita a tendência de encher cada momento
com a plenitude do seu valor. M as vemos também como da ade­
quação da estrutura psíquica dimana ainda outra relação dos valores
vitais com o desenvolvimento. Esta relação pode parecer-nos estar
em contradição com a primeira, quando é apenas o seu com ple­
mento. Os estados que compõem a série evolutiva constituem, em
virtude da realidade da conexão estruturai teleológica, um processo
de adaptação crescente mediante a diferenciação, a potenciação e
articulações superiores. E é deveras importante que neste amplo
processo os impulsos mais elementares decrcsçam em energia pela
sua satisfação regular e dêem lugar a impulsos superiores. Justa­
mente pela conexão de uma série ascendente constituem estes
estados um desenvolvimento. Estão de tal modo entre si adequada­
mente entrosados que, com o andar do tempo, se torna possível
um desenvolvimento mais amplo e mais rico dos valores vitais.
Nisto consiste a natureza do desenvolvim ento na existência
humana. Cada época da vida tem o seu próprio valor; mas, na
progressão, desenvolve-se uma forma mais articulada, mais adap­
tada, mais configurada em enlaces superiores. E esta progressão
pode crescer até aos Jimítes últimos da velhice. Aqui assenta o
bem-estar, tão frequentemente celebrado, da senectude e o seu
significado moral. De Kant se conta que, na sua velhice, já não era
capaz de assimilar nenhum círculo de ideias estranhas. Frederico,
o Grande, mostra o mesmo hermetismo no tocante à meta prática
da vida. A forma interna da vida tornou-se rígida. A energia física
diminui constantemente, decresce o intercâmbio vivo com o mundo
exterior e com as outras pessoas, o corpo do ancião está submetido,
como todos os organismos, à lei da decadência, mas, sem ser por
isto influenciado, o grande processo do desenvolvimento de uma
massa de ideias dominantes, de uma organização espiritual arti­
culada, de uma firmeza da configuração da vida anímica, pode ir
crescendo até ao fim dos dias. Daqui brota a grande lei que con­

116
O DESENVOLVIMENTO DA VIDA PSÍQUICA

grega os momentos e as épocas do desenvolvimento vital do


homem num todo. O desenvolvimento do homem tende a produzir
uma textura firme da vida psíquica que se ajusta às condições gerais
e particulares de vida. Todos os processos do psiquismo actuam
em uníssono para suscitar em nós semelhante textura. Também
perante as grandes perturbações do equilíbrio psíquico esta textura
adequada contém em si uma força de restauração.
Tudo, tanto as condições em que vivemos como a conexão
estrutural anímica por elas determinada, opera na produção da
forma da vida psíquica. Taijibém o distinguir e separar origina
relações e serve assim para o entrosamento. O diferenciar está
inseparavelmente unido à consciência do grau de diferença e,
portanto, a um a relação positiva. O ju ízo negativo, enquanto
exclusão de um pressuposto, está ao serviço do estabelecimento
de laços mais justos. O desprazer, a repulsa e a defesa, todo o jogo
dos afectos desagradáveis, agressivos e defensivos, toda a energia
dos actos volitivos hostis servem para a particularização consciente
da existência, na qual se baseia a sua configuração. Por isso, sem
a dor, que os pessimistas tão erroneamente contrapõem ao prazer,
para assim deduzir um saldo desfavorável do valor vital, não seria
possível uma configuração da vida psíquica e de uma individua­
lidade valiosa e compacta. A psicologia conhece, como resultado
do desenvolvimento humano, o domínio de uma textura psíquica
adquirida que determina todas as acções e todos os pensamentos.
Tudo o que o desenvolvimento humano consegue levar a cabo é
apenas a formação desta conexão, que é soberana, adaptada às
condições da existência, fechada em si mesma e significativa. Eis
o que significava a expressão de Napoleão perante Goethe: voilà
un homme. O caracter constitui somente um aspecto, embora o
mais importante, desta plenitude. Em todo a realidade terrena
apresenta-se-nos esta configuração de uma alma como o mais
elevado. E nesse sentido designava Goethe a personalidade como
a dita suprema dos filhos da terra. A filosofia transcendental de­
mandou as condições desta forma interna da personalidade. Na
fórmula da unidade da consciência está já contida uma condição
desta faculdade sintética. Mas a filosofia transcendental vai mais

117
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

fundo. E, em última análise, o seu extraordinário poder sobre o


pensamento europeu assenta no facto de que, de modo abstracto,
as suas formulas opuseram o sintético, o que espontaneamente
conforma, a síntese transcendental da apercepção, ao agregado
psíquico empírico, que transforma o carácter, o génio e o herói em
algo incompreensível. A sua deficiência, porém, consistia em
buscar abstractamente nos processos intelectuais o elemento pro­
gressivo, o criativo e, depois, em plena desconexão, analisava os
outros aspectos da natureza humana. Em oposição a tal, partimos
da conexão estrutural, pois é ela que produz também a adequação
teleológica na forma interna da vida. Esta forma da vida anímica
que se realiza no curso do seu desenvolvimento normal está, en­
quanto desfraldar da sua estrutura original, igualmente cheia do
mesmo rasgo de uma finalidade interna, como revela a mais simples
emergência da estrutura. Quer isto dizer apenas que a relação, na
qual as impressões despertam os impulsos, se experimenta o seu
valor nos sentimentos e se leva a cabo a adaptação do mundo ex­
terior a eles, relação que, no seu efeito sobre os impulsos e o senti­
mento, designamos como finalidade, experimenta na maturidade
da vida o acabamento possível nesta vida individual. Pois a con­
figuração mais unitária permite, no indivíduo, o máximo desenvol­
vimento da força que actua em vista de um fim, e esta unidade é
tanto mais preciosa para a própria conservação e para o sentimento
vital quanto mais fina é a diferenciação e mais elevadas as diversas
estruturas que compõem o material desta unidade superior.
Nesta conexão pode determinar-se de um modo definitivo o
ponto de vista da psicologia descritiva no tocante à teoria do
desenvolvimento. Uma psicologia explicativa teria de se decidir
entre as hipóteses que lutam entre si, quanto à natureza do processo
de desenvolvimento: a psicologia descritiva evita estas hipóteses,
que induzem aos antagonismos mais profundos da concepção
humana do mundo. Relata o que encontra, destaca a sucessão regu­
lar dos processos que têm lugar nos indivíduos. Assim como o
botânico tem de descrever, primeiro, a sucessão segunda qual se
produzem os fenômenos no carvalho, desde o momento em que
germina a semente até à altura em que ela torna outra vez a cair da

118
O DESENVOLVIMENTO DA VIDA PSÍQUICA

árvore, assim a psicologia descreve, de modo completo, as leis


evolutivas e as uniformidades da sucessão que ocorrem numa
estrutura psíquica da vida. Estas leis evolutivas e estas unifor­
midades vai buscá-las às relações entre o meio, o nexo estrutural,
os valores vitais, a articulação anímica, a textura psíquica adquirida,
os processos criadores e o desenvolvimento: “momentos”, que são
dados intuitivamente na experiência interna e na sua complemen-
tação pela externa, sem nenhuma adição de hipotéticas relações
causais.
Se em oposição a este método descritivo se tentar estabelecer
uma teoria explicativa que pretenda ir além da experiência interna,
o conjunto de elementos intrapsíquicos univocamente determina­
dos é insuficiente para abordar o problema; por esta razão, as psico­
logias explicativas que, nas suas construções, se limitaram a sem e­
lhantes elementos psíquicos costumavam eludir a teoria da evolu­
ção da vida psíquica. A psicologia explicativa vê-se obrigada a
colocar o desenvolvimento humano numa conexão metafísica uni­
versal ou a tentar abarcá-lo dentro da universal conexão natural.
Para a compreensão das teorias metafísicas, pode partir-se da
expressão “desenvolvimento” ; tal expressão designa o desenvol­
vimento de algo germinal compacto numa sucessão constante de
processos até chegar a uma estrutura de vida em que uma riqueza
maior de membros se articula num todo vitahnente mais eficaz.
Isto implica que entre a conexão de uma estrutura no ponto inicial
e a articulação final desta conexão existe uma relação segundo a
qual o ponto terminal se encontra implicado no começo, e só no
ponto final se revela o que se estava contido no princípio. Supõe
tam bém - o que não está compreendido no já dito - que, a partir
da acção unitária da estrutura desenvolvida, o começo nos aparece
como um germe que se desdobra para uma meta. Daqui se segue
que podemos conceber este ponto cimeiro como fim que se vai
realizando no desenvolvimento. Tais são os factos empíricos a partir
dos quais Aristóteles elaborou o conceito metafísico de desenvol­
vimento que, decerto, ultrapassa toda a experiência. A essência
deste conceito metafísico radica no facto de que os rasgos genera-
líssimos do desenvolvimento que são comuns ao mundo orgânico

119
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

e à vida psíquica e ao processo histórico, se transformam numa


potência cósmica. Isto acontece em Aristóteles e em Leibniz, tal
como em Schelling e Hegel. Mas a partir deste poder cósmico de
novo nos fita o mesmo enigma, que encontramos nos desenvol­
vimentos concretos. Algo que ainda não é, mas que chega à exis­
tência através do tempo, partindo do não ser. Temos um feto e,
num ponto determinado, nasce-lhe a consciência de nós conhecida.
As energias sensoriais singulares que conhecemos formam-se a
partir de uma energia sensorial geral inapreensivel. Por isso, pensa-
-se que do conceito de desenvolvimento se podem tirar todas as
coisas com o que por encanto - pois todas as possibilidades estão
escondidas neste conceito incerto, misterioso, cheio de contradição.
O conceito empírico científico-natural do desenvolvimento
encontra o cam po imediato do seu domínio dentro do mundo
orgânico. Não só a história de cada organismo individual cai sob
este conceito, mas também a sucessão demonstrável das formas
orgânicas em todo o reino orgânico se subsume hipoteticamente
neste conceito, e a continuidade do desenvolvimento que não
consiga mostrar-se em piricam ente estabelece-se por meio de
com plem entos hipotéticos. Se buscarm os a explicação desta
realidade empírica, descobrimos que também aqui nos movemos
entre hipóteses. Pode assim considerar-se a evolução do mundo
orgânico como um caso particular dos resultados, quais unidades
invariáveis que surgem mediante o mecanismo de um sistema.
Pode igualmente tratar-se de reduzir de algum modo a um funda­
mento unitário o facto dc o estado alcançado se transformar em
condição para uma ulterior elevação da realização vital. Tal funda­
mento constitui, em seguida, a razão explicativa da presença de
um princípio de intensificação no seio do mundo orgânico. Ambas
as explicações não passam de hipóteses.
Dentro deste mundo orgânico, e nos desenvolvimentos que
gradualmente se vão elevando, emerge a vida psíquica. A sua pre­
sença é o grande enigma, que resiste também aos meios do conheci­
mento natural. Conseguimos estabelecê-la empiricamente só pela
presença de movimentos produzidos pelos estímulos e segundo o
princípio da estrutura. Caminha em desenvolvimento ascendente

120
O DESENVOLVIMENTO DA VIDA PSÍQUICA

em paralelo com a gradação do reino dos corpos orgânicos. Tam­


bém nos indivíduos animais ou humanos se desenvolvem de modo
coincidente o físico e o psíquico nas épocas de crescimento, de
maturidade e de decrescimento. Mas visto que o desenvolvimento
psíquico se insere na experiência interna e é vivido tal como é,
sobressaem aqui propriedades dos processos que não se podem
derivar mediante hipótese alguma de cooperação de unidades
psíquicas constantes. Tal como não se pode representar a velocidade
de um corpo como a soma das velocidades das suas partes, de
igual modo dos estados internos de unidades singulares imutáveis
não se pode também derivar, por meio da sua acção recíproca, o
contributo unitário do comparar, ajuizar, preferir, formar um ideal.
As coisas são assim, e nenhum artifício de uma teoria materialista
as poderá obscurecer: estas actividades exigem como sua condição
uma conexão original, primordial, uma unidade que não se compõe
de elementos separados e das suas respectivas actividades. Este
conhecimento elucida-se ainda pelo que dissemos no capítulo an­
terior, segundo o qual a conexão estrutural não dimana de realiza­
ções; pelo contrário, as articulações mais finas diferenciam-se a
partir dela, e não se pode ir além dela. Mas a natureza da unidade
que se deve admitir como condição dos processos psíquicos é-nos
completamente desconhecida. Tentar indagá-la excede os limites
do nosso conhecer. Como nos é desconhecido o que se encontra
por trás dos fenômenos corpóreos, não se pode excluir que aquilo
que constitui a sua realidade abranja tam bém a conexão do
representar, sentir e querer. Mas, de qualquer modo, na conexão
estrutural psíquica é-nos dado um sujeito unitário do desenvolvi­
mento psíquico. Aqui se faz uma ligação com a exposição ante­
rior, segundo a qual os impulsos constituem nesta conexão o centro
que faz progredir o desenvolvimento
A índole do desenvolvimento psíquico, na sua diferença do
físico, também se apresenta com um caracter negativo. Não pode­
mos predizer o que no decurso psíquico terá de suceder a um estado
já alcançado. Só retrospectivamente podemos mostrar as razões
do que aconteceu. Partindo dos motivos, não podemos predizer as
acções. Só a partir das acções podemos estabelecer analiticamente

121
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

os motivos. Não sabemos o que no dia seguinte ira ser de nós. E o


desenvolvimento histórico ostenta este mesmo carácter. Justamente
nas grandes épocas criadoras desponta uma ascensão que não se
pode derivar das etapas anteriores.
Atingiu-se assim o ponto em que já estão assaz preparadas a
descrição e a análise pormenorizadas das uniformidades no decurso
da vida humana. Para esta descrição e análise da história evolutiva
humana, dispomos de materiais de grande valor. Quando no século
XVIII penetrou no horizonte das pessoas cultas a concepção natu­
ral da vida, à maneira de uma história natural da vida psíquica,
também a poesia teve de se apropriar desta consideração natural
do desenvolvimento humano. Rousseau, o criador do novo gênero
de poesia, Goethe, Novalis, Dickens, Keller e tantos outros, criaram
tipos singulares dessas histórias evolutivas. Acresce ainda o facto
de os séculos XVIII e XIX terem criado a moderna biografia sob
a mesma influência da orientação para uma história natural do
homem. Ela representa, em certo sentido, a forma mais filosófica
da História. O seu objecto é constituído pelo homem como proto-
-realidade de toda a história. Ao descrever o singular, retlecte-se
nele a lei gerai do desenvolvimento. As autobiografias têm um
valor inestimável: nas “ viagens de Antônio” de Filipe Moritz e na
“ Vida de G oethe” sobressaíram justamente os rasgos universais
das épocas da vida. Mas seria ainda necessário criar a consideração
científica da história do desenvolvimento humano. Deve ela estudar
a influência dc três classes de condições: o desenvolvimento do
corpo, as influências do meio físico e as do mundo espiritual circun­
dante. No Si mesmo que se desdobra nestas condições deverá, em
seguida, apreender as relações da estrutura psíquica, segundo os
“momentos” de adequação e valor vital, com os outros “momentos”
do desenvolvimento: importa mostrar como destas relações se
extrai uma conexão dominante da alma, “forma cunhada que se
desenvolve vivendo” ; importa mostrar as imagens das idades da
vida, em cuja conexão reside este desenvolvimento, e fazer a análise
dessas idades segundo os factores que as condicionam. Infância
em que, a partir da estrutura da vida psíquica, se pode derivar o
jogo como uma manifestação necessária da vida. O dilúculo em

122
O DESENVOLVIMENTO DA VIDA PSÍQUICA

que ainda não se vislumbram as alturas e as lonjuras: tudo inde­


finido, desconhecidos os limites dos valores, o halo da infinidade
sobre toda a realidade; na primeira independência e na mobilidade
fresca de todas as incitações da alma, com todo o futuro à frente,
formam-se os ideais da vida. Em contrapartida, na senectude, a
forma da alma dominando senhorialmente, ao mesmo tempo que
os órgãos do corpo perdem as suas forças: um humor misto e so­
frido sobre a vida, que jorra do domínio de uma alma, que elaborou
muito dentro de si, sobre os estados de ânimo singulares: eis
também o que confere às produções artísticas da velhice a sua
sublimidade peculiar, como a Nona Sinfonia de Beethoven ou o
final do Fausto de Goethe.

A textura adquirida da vida psíquica, que encontramos no


homem desenvolvido, e que abarca ao mesmo tempo imagens,
conceitos, determinações axiológicas, ideais, orientações volun­
tárias fixas, etc., inclui conexões constantes que retornam uniforme­
mente em todos os indivíduos humanos e, além destas, outras que
são próprias de cada um dos sexos, de uma raça, de uma nação, de
uma classe, etc. c, por fim, do indivíduo singular. Como todos os
homens se encontram no mesmo mundo externo, produzem tam­
bém o mesmo sistema numérico, as mesmas relações espaciais, as
mesmas relações gramaticais e lógicas. Como vivem nas mesmas
relações entre este mundo exterior e uma textura estrutural psíquica
que lhes c comum, daqui nascem igualmente as mesmas formas
de preferir c eleger, as mesmas relações entre fim e meios, certas
relações uniformes de valores, certos rasgos uniformes do ideal
de vida, onde ele emerge. As fórmulas da identidade da razão em
todos os indivíduos, que Sehleiermaeher e Hegel nos oferecem, a
da identidade da vontade, que Schopenhauer nos indica, expressam
com abstracção metafísica este facto da afinidade. Na uniformidade
das produções individuais que o homem suscita, nas grandes e
amplas conexões que transformam estas produções em sistemas
culturais, nas organizações poderosas que entrelaçam os homens
c se baseiam na afinidade entre os mesmos, tem a psicologia possui
um material resistente, que torna possível uma análise real do psi-

123
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

quismo humano, inclusive no tocante aos seus rasgos fundamentais


concretos.
A textura uniforme que assim se espraia em estrutura e em his­
tória evolutiva da vida psíquica contém, se se olhar com profundi­
dade, as regras de que depende a plasmação das individualidades.

124
Capítulo IX

O estudo das diversidades da vida psíquica.


O indivíduo

O conhecimento da natureza e do valor da individualidade


desenvolveu-se pouco a pouco na humanidade européia. Sócrates
é o primeiro a tomar consciência do processo moral dentro si m es­
mo, que torna possível o desenvolvimento da pessoa unitária. O
“conhecc-tc a ti mesmo” orienta-se, em primeiro lugar, para o uni­
forme da natureza humana, mas disto, que nele oferecia a validade
universal e que elevou à luz do saber, tinha de se separar o poderoso,
o insondável, que designava como “demônio”, e que, sem dúvida,
pertencia à profundidade da subjectividade. A partir de então,
Sócrates converteu-se para os seus discípulos, para os cstóicos,
Montaigne, etc., no tipo da reversão do pensamento nas profundi­
dades da pessoa. O próximo grande avanço foi obra do estoicismo,
com o seu ideal do sábio. Com este ideal, a pessoa autônoma,
fechada em si mesma, eleva-se no horizonte da consciência filo­
sófica. A acentuação da vontade no pensar, a orientação para o
desenvolvimento de uma convicção que seja capaz de prestar à
acção unidade e consciência da sua meta. O fechamento da pessoa
para o exterior, superando a força das dores e prazeres externos, o
ideal do sábio que assim nasce, que, graças ao poder consciente
da plasmação intelectual dc uma personalidade inteiriça, possui o
seu centro de gravidade em si mesmo e é mais do que os reis e os
heróis, o culto da amizade em que a afinidade dos indivíduos
proporciona a união: todos estes são outros tantos rasgos da vida e

í 25
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

do pensamento estóicos que acrescentaram de forma imensa o valor


da pessoa unitária e compacta e clarificaram o seu conceito. Quando
o ímpeto das personalidades romanas se impregna desta mentali­
dade surge aquela união admirável da energia de vontade romana
com a configuração consciente da pessoa que provinha da fi losofia,
nimbada pela luz serena das Graças helénicas, como no-lo mostra
a época dos Cipiões; assim se desenvolveu a literatura estóico-
-romana, orientada para a formação da pessoa, que exerceu tão
enorme uma influência; desenvolveu-se ao mesmo tempo uma
assombrosa capacidade para apreender as individualidades, como
no-lo revela o historiador Tácito. Nesta região histórica desponta
a autognose cristã. A literatura de “meditações” da Idade Média
continua esta direcção. O que se designou como descoberta da
personalidade no Renascimento não é mais do que a secularização
deste tesouro religioso.
A transição desde a apreensão do conceito de personalidade
unitária, fechada em si mesma, que foi aperfeiçoado pela filosofia
transcendental, ao conceito da individualidade, tal como hoje
existe, reaiizou-se pela primeira vez na filosofia transcendental
alemã. Preparam-no Moritz, Schiller e Goethe e, por fim, a teoria
da individualidade foi formulada por Humboldt e Schleiermacher.
“Na individualidade - diz Humboldt - reside o mistério de toda a
existência” (Obras, I, 20). “Cada individualidade humana é uma
ideia que radica na aparência; em algumas brilha ela de modo tão
radiante que parece ter adoptado a forma do indivíduo só para
nela se revelar. Quando se desenvolve a acção humana e se elimi­
nam todas as causas que a determinam, persiste algo radical que,
em vez de ser sufocado pelas suas influências, as transforma, e
nesse mesmo elemento encontramos um anelo sempre activo para
dar existência exterior à sua natureza interna” (Obras, 1,22). Tam­
bém Schleiermacher vê na individualidade um valor ético, ínsito
na ordem cósmica; brota da razão divina como um todo ideal:
uma revelação da divindade. “Se todo o moral, porque se põe a si
mesmo, se deve diferenciar de tudo o mais como individual, e
também conceptualmente, então os homens singulares têm de ser
distintos conceptualmente na sua raiz, isto é, cada dever a sua

126
O ESTUDO DAS DIVERSIDADES DA VIDA PSÍQUICA

peculiaridade.” “O conceito de cada homem, tanto quanto se pode


formar semelhante conceito individual, é diferente.” (Ética, Sch-
weitzer, § 131). “A maioria dos indivíduos não seria moral, se o
ser da razão não fosse diferente em cada u m ” “O que a razão for­
ma com o alma do indivíduo deve possuir também o carácter da
peculiaridade e ser para ele fechado ”
Distingamos. A doutrina do valor da individualidade é a expres­
são da cultura alemã de então e continua a ser, considerada dentro
de certos limites, uma verdade sociaí e ética, que já não se pode
esquecer. Mas a afirmação de, que o valor da individualidade remete
para a sua relação com a divindade, que, portanto, se deve pensar
como originário, como unitariamente posto, pois dimana da ordem
divina do cosmos, não é mais do que uma interpretação metafísica
indemonstrável da realidade ética. Pertence às concepções meta-
físicas que ultrapassam os limites do experimentável. Interpreta
simbolicamente as experiências internas e alicerça-as num fundo
substancial.
A tarefa da psicologia descritiva é, pelo contrário, agrupar as
nossas experiências sobre a individualidade, estabelecer a termino­
logia para a sua descrição e analisá-las. Se toda a teoria metafísica
justapesse o universal e o individual sem relação alguma, ou só
com uma mediação estética, então a busca das relações em que o
peculiar se encontra com o geral constitui já, na descrição do histo­
riador ou do poeta, não menos do que na reflexão da experiência
da vida, o único meio de expressar a individualidade. A descrição
possui nos conceitos gerais que, segundo a sua natureza, expressam
as uniformidades das coisas particulares, o recurso para representar
a particularidade. A análise só consegue proporcionar as relações
básicas do uniforme, para que possamos apreender e expor as
relações que existem no que é peculiar. Para se aproximar do par­
ticular, deverá tratar de apreender as relações que tem com o geral.
Pretendo, por exemplo, descrever os Evangelistas de Dürer; devo
então servir-me dos conceitos gerais que me oferece a teoria das
artes plásticas; além disso, tenho de falar dos temperamentos, da
sua concepção na época de Dürer. Se quero analisar esta obra de
arte, tenho de trazer à consciência os recursos que a pintura possui

127
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

para expressar grandes caracteres histórico-imiversais, como João


ou Pedro; devo representar a natureza de grupos ideais que mostram
várias personagens histórico-universais em repouso completo, sem
vínculo algum mediante uma acção histórica, só em relações ideais;
tenho de subordinar a estas relações gerais de factos abstractos,
inerentes à teoria da pintura, a particularidade concreta específica
do Renascimento em relação com tais temas; Leonardo, Miguel
A

Angelo, Rafael, Dürer, etc., como tipos especiais de semelhante


representação de homens historicamente importantes, bem como
o tratamento pictórico de grupos ideais de pessoas historicamente
significativas, devem subordinar-se ao carácter do Renascimento
e então, finalmente, poderá determinar-se, para a obra de Dürer, o
lugar da individualidade. Portanto, as relações dos factos gerais
com os individuais é que nos permitem uma análise dos últimos.
A proposição principal, que expressa esta relação, podemos
constatá-la analiticamente em cada individualidade desenvolvida.
As individualidades não se distinguem entre si pela existência de
determinações qualitativas ou de modos de articulação que não
haveria nas outras. Não existe em nenhuma individualidade uma
classe de sensações, ou uma classe de afectos, ou uma conexão
estrutural, que noutras não exista. Não há pessoas - excepto devido
a um defeito anormal - que vejam só um determinado feixe de
cores ou mais cores que as outras, ou que não possam vincular os
sentimentos de agrado às sensações de cor, às combinações de
sons, ou que sejam incapazes de sentir cólera ou compaixão e
impotentes para praticar a defesa contra os ataques. A uniformidade
da natureza humana manifesta-se no facto de que em todos os
homens (quando não existir um defeito anormal) se ocorrem as
mesmas determinações qualitativas e as mesmas formas de com ­
binação. Mas as relações quantitativas em que se exibem são muito
diferentes; estas diferenças congregam-se em combinações sempre
novas, e nisto assenta , em primeiro lugar, a diferença entre as
individualidades.
Destas diferenças no quantitativo e nas suas relações surgem
outras que se nos apresentam como rasgos qualitativos. No mesmo
banco escolar sentam-se o sonhador, o pateta, o versátil, o traba­

128
O ESTUDO DAS DIVERSIDADES DA VIDA PSÍQUICA

lhador, o obstinado. O que com estas expressões designamos são


os seus rasgos qualitativos dominantes ou os seus vínculos típicos.
Se os examinamos mais de perto veremos que são rasgos que
surgem em cada qual mas que, por exemplo, alcançaram uma força
especial no obstinado ou no sonhador, ou são determinações
quantitativas de velocidade, de sucessão, de mudança, etc., como
no versátil, ou de vínculos de determinações quantitativas como
no pateta: numa palavra, determinações quantitativas adquirem
na observação dos homens e na sua linguagem o carácter do qua­
litativo sem que, por isso, sofram uma mudança na sua verdadeira
natureza, À mesma mesa de jogo senta-se o invejoso, o problemá­
tico, o libertino, o pedante, O que está contido na qualificação de
invejoso ou libertino é, em primeiro lugar, o grau de intensidade
de um impulso e o seu domínio sobre os outros aspectos da alma.
Entendem os por natureza problemática, tentando reproduzii o
conceito de Goethe, um a pessoa que não pode ser apieendida
claramente, porque a incongruência entre o seu anseio e as suas
obras, entre as suas exigências perante a vida e o seu podei paia
realmente a determinar, se reflecte em tantos m a t iz e s que o obsei-
vador fica cego. Também não é mais do que uma forma da co­
nhecida desproporção entre a força dos sentimentos nobtes e a
impotência da reacção para as acções, donde brotam as pietensões
excessivas, nascidas de sentimentos elevados, e a incapacidade de
fazer algo proveitoso para os outros e para si. Trata-se também,
aqui, de uma relação de determinações quantitativas.
De acordo com uma segunda proposição principal, estas combi­
nações encontram-se submetidas a certas regras que limitam as
possibilidades da confluência de relações quantitativas diferentes.
Das posições dos três termos, da distribuição das diteienças de
qualidade e quantidade na premissa maior e na menor, pode derivar-
-se abstractamente uma tábua de combinações possíveis de piemis-
sas maiores e menores com as conclusões, mas daí não se segue
que todas estas combinações sejam efectivas: o que a este íespeito
decide são relações lógicas mais profundas. Assim também entre
as possibilidades in abstracto de c o m b i n a ç ã o de piopoições
quantitativas diferentes numa conexão psíquica nem todas são

129
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

individualmente possíveis. São decerto possíveis mais combina­


ções do que em geral se supõe. Costumamos geralmente esperar
que um alto grau de piedade seja acompanhado de confiança e
lealdade. Não é, porém, necessário. O dominhoco da carteira esco­
lar revela-se, no campo do jogo, o capitão da equipa mais atrevida.
Não é em vão que se adverte aos professores que observem os
seus alunos no jogo, para assim completar as observações feitas
na aula. O grau diverso de energia no efeito produzido pelo
estímulo, num caso pelos livros e noutro pelo jogo, num caso
abaixo do normal e noutro muito acima, é algo que pode muito
bem existir na mesma conexão psíquica. De que forma as quali­
dades se pressupõem e mutuamente se excluem é algo tão recôndito
que não se torna patente aos olhos do observador corrente.
Semelhante conhecimento tornaria possível uma ciência que con­
tivesse regras fixas para a observação dos homens e para a repre­
sentação estética ou histórica dos homens: pois o conhecimento
dos homens apoia-se, sobretudo, no facto de podermos julgar cor­
rectamente que propriedades podem ou têm de se aliar a outras e
quais as que se excluem.
Surge aqui um dos problemas mais surpreendentes da observa­
ção dos homens. Quanto mais limitado é alguém, com tanto maior
facilidade fala de contradições nos caracteres. Mas, em certo
sentido, este conceito costuma ser empregue também pelos conhe­
cedores experimentados de homens. Que significa esta expressão?
Atrever-me-ia a dizer que o conceito de contradições numa indivi­
dualidade nasce da comparação do empiricamente dado com a
representação de uma textura psíquica logicamente ordenada e
que actua de modo teleológico. Um certo médico tem uma boa
ideia do que é são e age incessantemente contra ela; temos isto
por uma contradição, porque é incompatível com o nosso ideal de
uma conexão lógica e adequada. Ao perguntarmos agora porque
supomos no indivíduo uma conexão adequada e consideramos a
sua ausência como uma contradição, e donde dimana tal contra­
dição, dam o-nos conta da dualidade presente no conceito de
indivíduo; acercamo-nos assim da visão última da natureza da
individualidade.

130

á
O ESTUDO DAS DIVERSIDADES DA VIDA PSÍQUICA

A disposição individual reside, em primeiro lugar, nas massas


quantitativas e nas suas relações, que distinguem um indivíduo
dos outros. Mas na estrutura actua a adequação ao fim, as partes
da estrutura são postas em jog o pelos impulsos e estes operam em
uníssono para fomentar a vida nas circunstâncias dadas. Adaptam-
-se, pois, pouco a pouco a este fim. Graças à prática, tornam-se
habituais os caminhos da conexão que levam à satisfação. A am­
bição dominante de um político vence a timidez na exposição que,
em circunstâncias normais, não seria vencida. Se num grande inte­
resse histórico a memória está debilmente desenvolvida, esta la­
cuna colmata-se relativamente a partir desse interesse. Na indivi­
dualidade actua, portanto, um princípio de unidade, que submete
as forças ao nexo teleológico. Este facto foi, com razão, realçado
por Humboldt e Schleiermacher com as suas fórmulas metafísicas,
em bora os seus modos de expressão sejam muito deficientes.
Legitima-se o direito para essas fórmulas. Mas nenhum dos dois
sabe que o fundo último, a partir do qual actua este princípio, pro-
mana das determinações quantitativas incalculáveis, individuali­
zadas, particulares. Estas, por assim dizer, constituem a matéria
hyle - que, mediante este princípio unitariamente configurador
- um a espécie de eidos - é plasmada no todo da individualidade.
N esta união de fundamentos concretos, não determinados por
lógica alguma, com uma estrutura plasmadora que age segundo
um fim, na qual eles se articulam, a individualidade surge como
uma imagem do próprio mundo. E o conceito de desenvolvimento
adquire aqui um novo rasgo; as determ inações particulares e
contingentes das disposições individuais transformam-se, nas
circunstâncias dadas, numa conexão teleológica e unitária.
As contradições numa individualidade são, em muitos casos,
só aparentes. Pois, por trás das propriedades antagônicas oculta-
-se uma conexão adequada que se subtrai ao olhar superficial.
Assim, a paciência de um caracter não exclui que possa estalar em
violenta cólera perante determinadas coisas, O interesse vivo pelo
jogo não exclui numa criança o total desinteresse pela lição. As
contradições reais são, pelo contrário, relações de propriedades
que eliminam a conexão lógica ou a adequação ao fim. Há assim

131
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

em alguns poetas a contradição entre uma fantasia selvagem e um


anseio ideal. Rousseau, o reformador da educação, entrega os seus
próprios filhos ao orfanato. Gustavo Adolfo é o herói do protestan­
tismo e, todavia, persegue com tenacidade os interesses do seu
Estado sueco, É inútil pretender interpretar tais contradições con-
ciliando-as, nos grandes homens ou nos homens correntes, e o
juízo tirado do homem médio revela-se falso perante as grandes
naturezas.
Se queremos agora ampliar o conhecimento da natureza da
individualidade e obter uma visão das suas diversas formas, será
necessário circunscrever o circulo das diferenças quantitativas.
Em geral, os indivíduos diferenciam-se já pelo grau da sua força
espiritual; os graus da vitalidade espiritual estendem-se desde as
naturezas vegetativas até às espiritualmente criadoras. Um primeiro
círculo de diferenças determinadas existe nas diferentes intensi-
dades dos estados internos. Há homens que sofrem sob a força da
sua compaixão; e conhecemos demasiado o tipo contrário, a in­
significância da compaixão e até o acentuado prazer que em alguns
suscita a impressão da desgraça alheia. Uma segunda diferença
surge no tocante à duração dos estados. Em determinada pessoa
apresentam-se como aos sacões, noutras duram mais e com uma
força mais moderada. Assim o sentimento doloroso, o de ódio em
virtude de um dano na própria vida, é em algumas pessoas tão
impetuoso que, aparentemente, se destruirão a si próprias; e, da
noite para o dia, mudou o cenário, apresentam-se com o humor
mais prazenteiro. Noutras pessoas, a depressão provocada pelo
dano persiste calada, penetrante, irreprimível: mesmo no meio de
novas impressões depressa ela espreita. Há grandes diferenças no
tocante à velocidade no acolhimento das impressões. Também as
afecções são diferentes segundo a profundidade com que penetram,
tudo influenciam e persistem. A tal corresponde a sua expansão
pela vida da alma graças à sua recorrência freqüente e à sua entrada
em novas combinações. Naturezas superficiais entregam-se às
impressões, deixam que uma desaloje a outra, enquanto nas natu­
rezas profundas as impressões se afirmam com grande força. As
naturezas superficiais serão versáteis, enquanto as outras persis­

132
O ESTUDO DAS DÍVERSIDADES DA VIDA PSÍQUICA

tentes. Todavia, estas e outras diferenças segundo o grau, a duração,


a repetição dos processos internos, que distinguem os indivíduos,
constituem apenas o primeiro alicerce da individualidade. Chegam,
em seguida, à expressão na diferença dos temperamentos.
Decisiva é, todavia, a proporção que existe na estrutura da vida
psíquica entre as diversas componentes que a constituem (7). Como
o núcleo da estrutura consiste na sua reacção às impressões, a
diferença mais profunda será a que se estabelece entre aqueles em
que predomina o acolhimento das impressões e aqueles em que a
vontade reage por si mesma,. Naturezas submetidas às impressões
ou que descarregam a impressão em palavras e gestos são muito
diferentes das que respondem às impressões com uma força própria
e com uma acção voluntária directa. O acolhimento das impressões
das percepções sensíveis é também muito diferente segundo a
atitude de cada domínio sensorial. Neste particular se diferenciam,
em primeiro lugar, as capacidades congênitas. Surgem, de imediato,
diferenças no tocante aos processos de reprodução e aos outros
processos intelectuais. No campo dos sentim entos aparece a
diferença fundamental entre o “díscolo” e o “êucolo”; naquele, as
impressões provocam de preferência estados de ânimo penosos e,
neste, alegres. Outras diferenças profundas entre as individuali­
dades dimanam das relações dos impulsos entre si, segundo o seu
vigor; como aqui se situa o centro da estrutura psíquica, aqui se
apresentam também as diferenças mais patentes. E em nenhum
outro lugar tão claramente se mostra como as diferenças quanti­
tativas se transformam no fundamento das diferenças individuais
que se apresentam à nossa maneira de apreender com um caracter
qualitativo. Os tipos do ambicioso, do vaidoso, do devasso, do
violento, do cobarde são apenas a expressão de relações quanti­
tativas, já que o sistema dos impulsos é o mesmo em todos, e estes
tipos característicos devem-se unicamente à proporção entre os

(7) N a conexão estrutural, que consiste na dependência recíproca dos diversos


aspectos, radica uma circunstância segundo a qual uma disposição do sentimento
se faz valer na vontade, assim, por exemplo, a concepção estética grega no nexo
id e o ló g ic o para o bem supremo, etc. Importa desenvolver aqui este princípio.

133
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

impulsos, e ao modo como a estrutura suscita, a partir deste, outras


relações. Tomemos, por exemplo, o ambicioso. Que tenha de afastar
o rival, sejam quais forem os meios, é algo que está condicionado
pela força dominante do seu impulso. A proporção que a impres-
sionabiíidade tiver com a reacção mediante acções constitui o
motivo de outras diferenças importantes. A este respeito é indi­
ferente se estas acções volitivas regulam e dirigem o pensamento,
dom inam os sentimentos ou se governam unicamente os m o­
vimentos no mundo exterior. Além, o homem encontra-se entregue
às impressões; uma receptividade múltipla não permite que nele
surja nenhuma forma fixa; o jogo de sentimentos provocado pelas
impressões manifesta-se nas maneiras, no rir c no chorar, na mu­
dança do humor. Aqui, em oposição à anarquia das impressões,
temos uma direcção monárquica da vida pela força da vontade; as
naturezas sentimentais sentem-se aqui repelidas pela dureza, pelo
rectilíneo, pelo prosaico: na realidade, a têmpera humana dom i­
nante é a varonil do homem formador, em contraposição ao sensi­
tivo, gozador e versátil, que facilmente imagina que sente com
maior profundidade porque dá rédea solta aos seus sentimentos.
A esta poupança da energia volitiva está muitas vezes associada a
preguiça, a incapacidade de uma valoração moral objectiva de si
mesmo e dos outros, porque predominam os sentimentos violentos
contra todos os que exigem acção e esforço em vez de sentimentos
e, por fim, um anseio oculto, enganador, dissimulado, por satisfazer
os anseios da vida sentimental. Ocorrem novas diferenças porque
em alguns as acções singulares são governadas durante anos, em
sólidas articulações de meios e fins, pela força da conexão adqui­
rida, por vezes até durante uma parte inteira da vida, ao passo que
outros tipos só inconstantemente buscam resoluções e regulam de
novo as relações do novo fim com os meios. Uns agem segundo
os seus planos - gente do mundo! - , outros segundo as suas
máximas - naturezas morais e sérias - , outros, finalmente, actuam
de modo demoníaco. Se olharmos o conjunto de todos os últimos
motivos que condicionam as diferenças das individualidades, creio
que ficará demonstrada a proposição de que em toda a parte se
podem encontrar em diferenças quantitativas os fundamentos das

134
O ESTUDO DAS DIVERSIDADES DA VIDA PSÍQUICA

diversidades, pelo que nestas reside uma incomensurável riqueza


das mesmas.
A isto se deve que em semelhantes condições naturais do nosso
desenvolvimento radiquem as componentes menos valiosas da
nossa conduta. A autonomização do espiritual, a preferência pelos
sentimentos duradoiros de alegria na consequência, de gozo no
trabalho, de entrega, rompem, pouco a pouco, o anel de ferro com
que as determinações naturais, as primeiras relações quantitativas
no nosso sistema de impulsos, cercam a nossa vida psíquica. Mas
não de um modo absoluto. Pgr isso, a mistura no talento, na idios­
sincrasia, no carácter, é instilada pela natureza, e nenhum desdobra­
mento, no sentido de uma unitária e livre adequação da vida, con­
segue destruir por completo estes ingredientes terrenos da nossa
existência psíquica. Além disso, a possibilidade da corriipção está
muito perto da evolução para a norma humana.
As classes das diferenças que assim se produzem são consti­
tuídas, primeiro, pelas esferas em que se separam as particulari-
zações, dentro das uniform idades da natureza humana. Não
consideraremos agora a diferença devida à idade , pois constitui,
dentro de cada indivíduo, o seu desenvolvimento. A diferença mais
geral é a dos sexos - tema cuja discussão nunca terá fim, objecto
de toda a poesia, entretecido com toda a literatura e, na actualidade,
de uma influência prática poderosa nas grandes questões da vida.
Na nossa cultura, a diferença fundamental consiste em que a vida
sentimental e mental da mulher se ergue sobre as relações com a
família, o homem e a criança, intimamente vividas, ao passo que a
educação profissional do homem permite a este considerar a vida
em circunstâncias mais objectivas e amplas, mas também de modo
menos directo e íntimo. Mas a questão de quanto nesta situação,
nestas diferenças, corresponde 5 educação e quanto a disposições
in v en cív eis só se p o d erá re so lv er p o u co pouco, graças ao
experimento pedagógico, e todo aquele que se ocupa da natureza
humana deve exigir espaço para toda a classe de ensaios a este
respeito. As raças, as nações, as classes sociais, as form as profis­
sionais, as etapas históricas, as individualidades : representam
outras tantas delimitações das diferenças individuais dentro da

135
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

uniforme natureza humana. Quando a psicologia descritiva inves­


tigar mais de perto estas formas do particular na natureza humana,
ter-se-á encontrado o elo entre ela e as ciências do espírito. Nas
ciências da natureza, o uniforme constitui a meta principal do
conhecimento; no mundo histórico, pelo contrário, trata-se da
particularização até chegar ao indivíduo. Na escala destas parti-
cularizações, não estamos a afastar-nos, mas a aproximar-nos. A
História encontra a sua vida no aprofundamento progressivo do
peculiar. Nele existe a relação viva entre o reino do uniforme e o
mundo individual. Impera nela, não o singular por si, mas esta
y

relação. E disso expressão o facto de a complexão espiritual de


uma época inteira poder estar representada num indivíduo. Há
personalidades representativas. No trabalho pedagógico pelo qual,
no seio de um verdadeiro sistema educativo, o educador deve
orientar a individualidade do discípulo, compreendida por ele, para
a meta do ofício que lhe corresponde, também esta relação de
articulação entre o geral e o individual lhe ilustrará a tarefa; pois
esta grande faina só é resolíível se existir uma relação entre as
disposições individuais e os grandes sistemas uniformes da vida
social e profissional.
Podemos observar aqui também a significação que corresponde
a um a psicologia descritiva da individualidade para o estudo
histórico do desenvolvimento da individualidade. Este desenvolvi­
mento tem de estar condicionado por dois faetores. Depende do
incremento das diferenças quantitativas nas disposições. Como
vimos, a individualidade não está já contida nas diferenças, mas
nasce com base nelas mediante a sua articulação num todo adequa­
do. Não é congênita, como supõem Schleiermacher e Humboldt,
mas configura-se no próprio desenvolvimento. Por isso, temos uma
segunda condição do incremento da individualidade dentro de uma
sociedade em tudo aqui lo que pode facilitar essa articulação num
todo adequado. O incremento das diferenças quantitativas é con­
dicionado, primeiro, pela divisão do trabalho e pela diferenciação
político-social. No mesmo sentido actua o aumento da cultura;
suscita existências mais sensíveis, espiritualmente mais refinadas,
à medida que as diferenças quantitativas crescem de geração em

136
0 ESTUDO DAS DIVERSIDADES DA VIDA PSÍQUICA

geração. Tudo o que fomenta a liberdade e a força interna da forma­


ção opera em prol da articulação das diferenças quantitativas dadas
num todo adequado. A dissolução dos vínculos político-sociais
na sociedade antiga, a dissolução da velha fé religiosa, a formação
livre de uma atmosfera de visão própria da vida e do mundo em
tom o da pessoa, tais como se fomentam por uma espécie de força
metafísica da reflexão e pela actividade artística da fantasia. Estas
e outras forças actuaram quando se desenvolveu a individualidade
na Grécia na época dos sofistas, em seguida na primeira época
dos imperadores romanos e, mais tarde, no Renascimento italiano.
Grande tarefa é a que representa o lançamento de pontes entre
a psicologia actual e a visão do mundo histórico. Podemos aproxi­
mar-nos gradualmente desta meta quando aos recursos actuais se
acrescentam o estudo dos produtos históricos e o experimento
orientado para as diferenças psíquicas dos indivíduos.

r .

Anotação

As ciências do espírito partem da conexão psíquica, dada na


experiência interna. No facto de a conexão existir primariamente
na vida anímica é que consiste a diferença fundamental entre o
conhecimento psicológico c o conhecimento da natureza; aqui
reside também a primeira e fundamental especificidade das ciências
do espírito. Visto que no âmbito dos fenômenos externos apenas
ocorre a recíproca justaposição e sucessão, não poderia surgir a
ideia de conexão, se ela não fosse dada na unicidade específica
que lhe está adscrita. Esta tem lugar na conexão estrutural da vida
anímica, sem hipóteses acerca de uma espontaneidade uniforme
ou substância psíquica, mediante as nossas percepções internas e
suas ligações. Pela m esm a são abarcadas todas as formações
unitárias e todas os nexos singulares. Não podemos recuar para lá
desta conexão; ela é a condição unitária da vida e do conhecimento.
Por isso, encerra o ponto de partida seguro da psicologia. Também
nela, assim como nesta conexão estrutural, se entrelaçam a per­
cepção e o pensamento com impulsos e sentimentos, c estes com
acções voluntárias, também nela é dada primariamente a finalidade
interna como propriedade básica da tessitura psíquica. Ora esta
conexão estrutural, graças aos processos de associação, de re­
produção e de fusão, acessíveis imediatamente só à descrição e à
análise, opera ainda a articulação estrutural e teleológica da textura

139
PSICOLOGIA E COMPREENSÃO

psíquica adquirida que, em seguida, condiciona os actos cons­


cientes e possibilita a recordação. Suscita a articulação crescente
das realizações psíquicas, que tem lugar no desenvolvimento da
unidade espiritual da vida. Por isso, esta conexão estrutural, en­
quanto força unitária, tomando esta palavra sem qualquer substan-
cialização metafísica, torna compreensível a actucuite conexão viva
no seio cia vida anímica e do mundo histórico , pelo menos dentro
de uma certa extensão. E pode também assim possibilitar a uma
psicologia descritiva e analítica um movimento seguro e natural
desde o todo para os membros, desde a conexão mais ampla para
as conexões singulares.
Desenvolver com maior pormenor estas proposições sobre a
conexão estrutural e demonstrar o seu valor para a configuração
de uma psicologia descritiva e analítica foi o fito exclusivo do
tratado ( !).

(') A anotação estende-se ainda por mais duas páginas, onde W. Dilthey res­
ponde a críticas e a interpretações inadequadas que Ebbinghaus fizera do seu
ensaio, na Revista de Psicologia, Outubro de 1895. Como as referências são
muito pontuais, e também as réplicas, decidiu-se não as referir aqui - sem qualquer
dano conseqüente. (N. T).

140
ÍNDICE

Advertência do tradutor

Capitulo I
A tarefa de uma fundamentação psicológica das ciências
do e s p írito ................................................................................

Capítulo II
A distinção entre a psicologia explicativa e a descritiva.

Capítulo III
A psicologia explicativa.......................................................

Capítulo IV
A psicologia descritiva e analítica.......................................

Capítulo V
Relação entre a psicologia explicativa e a descritiva.........

Capítulo VI
Possibilidade e condições da solução da tarefa de uma
psicologia descritiva..............................................................

Capítulo VII
A estrutura da vida psíquica.................................................

Capítulo VIII
O desenvolvimento da vida p síq u ica.................................

Capítulo IX
O estudo das diversidades da vida psíquica. O indivíduo

Anotação

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