WARAT Luis Alberto - A Cià Ncia Jurà Dica e Seus Dois Maridos
WARAT Luis Alberto - A Cià Ncia Jurà Dica e Seus Dois Maridos
WARAT Luis Alberto - A Cià Ncia Jurà Dica e Seus Dois Maridos
melancias se acomodam
Borges/ os semiocídios que ficaram às voltas de minha Gosto de Dona Flor porque é um exercício que esca
formação acadêmica/ o erotismo semiológico de Barthes/ a pa ao uno. Mulher-cabrocha que assume sem nenhuma
malandra subversão e o compromisso político que me pro vergonha a contradição e resiste ao poder de castração de
vocam Macumaíma e a presença do outro como diferença/ toda a psicologia da unidade.
a Sorbone importada que consumimos nas universidades Em meus encontros com Flor, vejo-a sempre como a
latino-americanas/ os infernos simbólicos do cartesianismo/ heroína da poligamia, dos significados e do imaginário
as possibilidades de vida que surgem dos territórios erotizado. Um impulso vulcânico para viver que me traz a
carnavalizados por Bakhtin/ o conformismo, acumulado a imagem de uma espécie de “Mãe-Coragem” baiana, cuja
partir de uma experiência de imobilidade - uma ideologia grandeza está precisamente em haver aprendido a existir,
da ordem e da totalidade - graças à qual o pensamento pondo em risco o padrão de desejos instituídos (podados).
ocidental matreiramente define o mundo e nós. Concreta É um jogo sutil que lhe permite sobreviver e resplandecer
mente explodiu em mim a possibilidade do emprego das frente a tantas tentativas de castrações, feitas em nome de
personagens de um romance, como entrada de uma rede uma cultura aparentemente sem manchas. Não há desejos.
de vozes com mil estradas. Talvez a volta ao mundo de Não há mistérios. Falta o sabor apimentado da marginalidade,
Dona Flor, através de meu mundo de intenções, multipli da ambivalência.
que e dissemine as possibilidades de sua leitura. Metamor Quando penso em uma Dona Flor quero fugir da
foses dos personagens que me permitirão valer-me deles cabeça de Jorge Amado, que a construiu muito enquadrada
como metáforas tutoras de minha versão de mundo, da nos estereótipos da sociedade, inclusive nas idéias pré-
magia dos significados que portam a sensibilidade, do Di concebidas que o imaginário estabelecido tem sobre a
reito como expressão do amor e dos escribas da lei e sua marginalidade.
alienada sabedoria. Minha Dona Flor tem um imaginário de desejos que
aspiram à liberdade, detesta toda regra que institui e foge,
como pode, dos casamentos regrados que nos obrigam a
1.2 Dona Flor e seus dois maridos, como criaturas da fazer amor com um cadáver.
linguagem, encarnam a possibilidade de um espaço onde O segundo marido de Dona Flor estava mais morto
se possa fazer a sondagem crítica de pontos de partida ou do que o primeiro.
de chegada, que sustentam a versão congelada e sublima Teodoro conseguiu transformar o amor em dever,
da da realidade. Personagens da fuga. conseguiu simular a vida, perdendo a oportunidade de vi
Aliados de peso aos quais recorrerei para desajustar ver e vivendo envolto a um emaranhado de infinitos rituais
toda submissão a um mundo sólido, material e uno; tentarei burocratizantes.
destronar essa idéia monstruosa que serve, com suma dis O amor de Vadinho (como eu o imagino) não conhe
crição, para que a cultura-detergente (empreendimento ceu a morte, porque sempre foi um exercício de autono
cultural que representa piamente um pensamento sem su mia. Amou intensamente, alegremente, despretensiosamen
jeira) penetre no nosso imaginário e o imacule. te, e nunca pensou em fazer de Flor sua dependente. Meu
14 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 15
Vaclinho tem um imaginário que foge de todos os intentos tudo que não é conjuntamente verossímil e consagrado cul
de castração. turalmente.
Ela é uma armadilha preparada ao desejo, petrifican
do o seu processo.
1.3 A castração é sobretudo a poda de um desejo. À Como consumidores de significados castrados, vamos
primeira vista, a castração revela-se, passivamente, como nos distanciando de nossos desejos, sentindo medo (e por
uma falta, uma insuficiência, um vazio. É essa representa que não, culpa?) de escutar palavras que nomeiem refe
ção camuflada da castração que nos faz submergir nos sun rentes socialmente intoleráveis.
tuosos anacronismos das verdades completas. Assim somos Somos sujeitos castrados quando não sentimos a ne
tranqüilizados, pois somos levados a crer que, somente cessidade de um confronto com o instituído, quando não
quando opera uma verdade incompleta, incapaz de fazer- vemos a importância de expor os poderes estabelecidos
se nomear plenamente, é que há castração. As verdades - frente aos conflitos que os desestabilizam, quando não po
completas - estariam, desse modo, isentas de castração. demos fazer (porque não percebemos a necessidade) uma
Essa é uma crença que nos conviría queimar. prática descentrada e desierarquizada do político e, sobre
Por que não enxergar também a castração pelo seu tudo, na medida em que não sabemos transformar o políti
outro lado, o ativo? Ela é, muito mais que corte (o seu lado co, o saber e os sentimentos em um espaço simbólico sem
passivo), um direcionamento permanente em todas as for proprietários. Enfim, quando procuramos a autodestruição
mas do cotidiano. Ela ocupa plenamente todos os lugares da sociedade adormecendo Eros, simulando o alívio da cul
através do empanzinamento da linguagem. Daí pode ser pa originária na mecânica das verdades científicas e nas
captada como a estereotipação dos desejos. Um “prêt-à- lendas de amor.
desirer” que substitui o vazio - passivo - pelo bitolamento A castração, mais que uma falta, é a afirmação feroz
pleno com que definimos seu lado ativo. Diria ainda que, de uma versão cultural de nós mesmos e de nossas cir
' nessa direção, a castração é o desejo posto, ideologica cunstâncias. É a cultura do imobilismo.
mente, fora da história. É o desejo sublimado que ambicio Assumindo o arbitrário das generalizações, eu diria
na o controle dos corpos, como se fosse a coisa mais natu que o que está em jogo em toda a teia castradora é a
ral e benéfica do mundo. É o modo com que o desejo virá totalitária imposição de uma unidade, desejada por um anô
a olhar no rastro das verdades. A castração como ideologia. nimo fantasma externo.
O certo é que estou tentando predispor você, caro e Persisto em acreditar que as castrações simbólicas
supostamente afável leitor, a uma indagação sobre o poder provêm de um sentido de inalterabilidade dos esquemas o
da castração que nos chega através de múltiplas formas de qual nos faz sentir a verdade embutida na ordem e nos
significação, pelas quais somos levados a engolir uma costumes. Desejos alugados à razão.
cosmovisâo imobilizadora da sociedade. Na castração simbólica, o que há de mais vital não é a
Pelo seu lado ativo, a castração da linguagem é um poda, a perda, mas sim a saturação, o excesso. Os homens
modo de fechar nossos olhos, pelo pavor ao distinto, a estão tão repletos de estereotipações, de prêt-à-parler, das
16 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 17
versões singulares e lineares que lhes são impostas, que gas que nos impedem de conhecermo-nos, amarmo-nos,
não há espaço dentro deles para a criatividade, para a sentirmo-nos a nós mesmos. Tudo o que nos impossibilita
autonomia, para a compreensão não-oficial dos sentidos, o para dar e receber amor. As peles invisíveis que nos dis
que viria a constituir o plural das significações. tanciam do próprio corpo e do corpo dos outros.
Talvez fosse bom lembrar que, para mim, com a libe Claro que não se pode confundir a castração com a
ração da castração simbólica, adviria como conseqüência a imposição de limites. A perda de limites é a falta do pai e
proliferação do plural das significações, pois o plural já isso é mortal para a constituição de uma identidade autôno
existe. E o que há nos castrados é o terror da aceitação ma. Sem a lei do pai, navegamos na castração primordial.
desse plural, ou talvez mais simplesmente o puro terror Se não existe algum outro que imponha limites, não é pos
frente ao plural. Daí a impossibilidade, para eles, de auto sível o amor nem a construção da diferença. A identidade
nomia. ' perdida em sua própria anarquia.
A gênese da castração é uma gênese de dominação. A castração é toda impossibilidade de conhecer-se a
Qualquer dominação começa por proibir a linguagem que si mesmo, de abrir as portas subjetivas da consciência. O
não está prevista e sancionada. Quadro dramático, quadro homem castrado está impossibilitado de enganchar-se a si
dogmático, que bem define como capador-capado o cam mesmo.
po do imaginário instituído: jurídico, educacional, científi A castração é a negação do vazio que nos permite
co, amoroso ou cotidiano. É o imaginário onde se produz conhecer-nos, adquirir a dimensão da própria interioridade.
um frágil equilíbrio entre castrações e sublimações e que A impossibilidade de ser por uma sobressaturação de
faz crer que, quebrado esse equilíbrio, o homem tende ao palavras, conceitos e verdades que nos impedem a trans
autoritarismo. Nesse sentido, o discurso jurídico existe para formação interior.
fazer crer que há menos autoritarismo. O inverso da castração é o vazio que nos permite
Recapitulando e acrescentando à idéia: quero impri mergulhar em nós mesmos, produzir com o outro a dife
mir vários sentidos ao termo castração. Em sentido mais rença. O vazio erótico que nos impulsa a despojar-nos de
amplo, diria que tudo o que limita castra. A castração trans todas as couraças, dogmas e vaidades que nos levam ao
formou o homem em um ser inválido e cheio de culpa. imobilismo. O saber que cria uma terceira perna que nos
Falo de todas as verdades, deveres, ritos, idéias e impede de andar.
sentimentos congelados que não permitiram ao homem re O vazio tem sua própria plenitude. A construção do
alizar sua autonomia, fizeram-no prisioneiro. Converteram- ego. Sua existência coisificadora é castradora.
no em um ser miserável, roubando-lhe a alegria, a ingenui Buda foi o primeiro que negou o ego, deixando-nos
dade primordial e suas possibilidades de amor. a mensagem de que somos um vazio, que não existe ne
A castração vista como uma rede de condenações: o nhum ponto em que possamos dizer eu. Unicamente pode
sexo /o amor /o corpo/... e tudo o que permite ao homem mos sonhar que somos.
encontrar os apoios para alcançar sua autonomia. Estou falando de algo forte, mas nada negativo. Nos
A castração tem a ver com todas as barreiras, as car sos corpos estão plenos de vazio, estamos repletos de va
18 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 19
A mente não está nunca onde tu estás. Experimenta, Seus dois maridos, como retrato de uma duplicidade
exprime o momento, sem pensar nele. Traz a ti mesmo o convergente/persistente, funcionam dialeticamente como
momento. espaço de confronto da estabilidade dentro da qual acredi
Não se trata de buscar realidades com interpretações tamos existir. Deste modo, Vadinho, o folião, e Teodoro, o
que simulem a descoberta da verdade, tu és quem tem que amanuense do cotidiano, podem ser apreendidos, metafo
voltar a casa. Não permitas que a mente te faça fugir da tua ricamente, como uma interferência do mágico no verdadei
casa. O melhor exercício de meditação é afastar a mente ro; do plural no singular; do imprevisso no costume; do
do momento, permitindo-te desfrutá-lo. insólito na vida cronometrada; enfim, do natural aos soníferos
Aprender da experiência própria com o mundo e da cultura.
com o outro é uma forma de fugir da castração. Seu imaginário aboliu as barreiras, as classes, o senti
O homem castrado leva dentro de si uma criança do dicotômico dos paradoxos, o sentido totalitário das clas
insatisfeita. A castração como o jogo da insatisfação com a sificações, não por sincretismo, mas por ignorância de duas
imaginação da plenitude que gera uma estrutura de depen velhas divindades: a coerência lógica e a unidade. Flor
dências. Uma base para a psicologia da dependência amo soube misturar com orgulho as contradições, para ultrapas
rosa. A saudade da primeira mamada (esse momento ima sar suas próprias acomodações. Verdades menos garanti
ginário, de satisfação plena que o adulto procura reprodu das e relações humanas mais frutíferas.
zir procurando dependências que atualizem a mamada inau Os dois maridos de Dona Flor colocam em quarente
gural.) na o próprio conceito de realidade. O entrecruzamento do
Estar castrado é, também, procurar suprir a insatisfa vivido e do sonhado, do fantástico com o senso comum
ção por alguma dependência. nos obriga a questionar as fronteiras do que chamamos
Os discursos ideológicos não deixam de ser formas realidade. Dona Flor me permite mostrar o imaginário car
de dependência que simulam suprir insatisfações que vêm navalesco. Vadinho e Teodoro, como Arlequim e Pierrot,
do mundo da criança. refletem-se um no outro, seguindo as leis da ambivalência
carnavalesca. Eles podem ser contrapostos como o tango
canalha e o “ballet” culto.
1.4 Redescubro Dona Flor como uma mulher que Vadinho: solto, preguiçoso, cara-de-pau, jogador e
consegue não se contaminar pela castração. Encanta-me perdulário... indo até o fundo dessa malandra experiência
Imaginá-la como a heroína da ambivalência, que foge do que foi para ele estar vivo, sentindo-se parte do mundo no
dever e abre horizontes ao desejo. Seu valor de plenitude fruir de seu corpo.
Vlrlil da intensidade, da vitalidade, do jeito vibrante com Teodoro Madureira: meticuloso, insosso, dono de uma
tjue encara a possibilidade de romper com os costumes do cultura sem surpresas, um homem que nunca sai de suas
desejo, o hábito dos corpos e o dever do sentido. Tudo gavetas, tedioso, que pede permissão e hora para amar,
UlfUVÓS de um confronto apaixonado com o “vivement mar- exteriorizador contido de seus desejos, anestesiador legalista
Uillill" (o que é com alma e vida marginal). da alta voltagem erótica de Flor e dono de uma intrigante
22 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 23
mania cartesiana de etiquetar tudo... Ele reprime como pe 1.5 Teodoro, Vadinho - ambos se ligam expressando,
cado todo sintoma de erotismo e de prazer. Irrita Eros até magicamente, o contraste entre a “metafísica do desejo” e
adormecê-lo. É representante genuíno da falsa moral que a “metafísica dos costumes”.
está louca por infringir as proibições e precisa do pecado Talvez pudéssemos concentrar em Vadinho o carna
para encarar disfarçadamente o desejo. val e a folia, e em Teodoro a quaresma, os dias em que
Continuemos. Com Vadinho, tudo pode ser mistura nossas vidas funcionam como uma oficina de controles inú
do, ambíguo, ele e a rua, a irresponsabilidade, o provedor teis, mas que servem “per se” para justificar sua existência
de desejos e fantasias, a malandragem, o jogo e as incerte e bem alimentar os que nela mandam.
zas. Através de Vadinho, Dona Flor (cheia de trabalho e Vadinho, o primeiro marido, volta da morte para dar
lealdades - símbolo da casa e provedora de recursos mate a Dona Flor, com sua temperatura emocional, a possibilida
riais) podia ler a vida por méio do movimento, do desejo, de de ampliar, pelo insólito, os seus desejos. Eu não posso
da imprevisibilidade e da ambigüidade. Alegremente irres deixar de ver em Vadinho um entusiasmo para preencher
ponsável, produtor de festas ardentes, Vadinho mostra o os territórios da vida com floreios e umbigadas que nos
sentido erótico da vida, transformando-a em algo lúdico. desintoxicam de tantas coisas que permanecem. É a pre
Filósofo do subsolo, o primeiro marido de Flor encontra a sença constante do inesperado. A marginalidade como con
possibilidade de desejar o novo. É o gesto debochado às junto oxigenante dos desejos.
convenções da vida. O deboche e a presença crítica da Seu retorno é o símbolo de como, pelo fantástico,
loucura carnavalesca, da loucura ambiguamente sentida podemos manter uma relação adúltera com o real. É o
como sabedoria, da loucura realizada como momento de marido sem o espírito da legalidade que a mulher sonha
equilíbrio do corpo e do desejo frente à ordem e à razão. ter, para temperar a alquimia de ternura e segurança do
No caso de Teodoro, a vida perde seu movimento, desejo instituído.
torna-se univocidade de atos e de desejos, repetindo-se A volta de Vadinho permite a Dona Flor romper os
nos dias e nas palavras. Flor e Teodoro são parceiros sepa ímpetos do desejo com o dever, aceitando o adultério como
rados pelas atividades regulares. Respeitam-se tanto que condição normal do casamento. Dona Flor termina agitan
mio se relacionam. Para que exista uma relação, é preciso do-se dentro de um imaginário logo-mítico ficando bem
que exista mistura, antagonismos. Necessita-se da lei do casada, com uma ordem sólida de conceitos e encantado
Impulso. No casamento de Teodoro, as convenções sociais ramente adúltera, com devir malandro e espontâneo das
6 morais substituíram o impulso. sig n ifica ç õ e s vagabundas dos sen tid os ao vento e
Cabería finalmente reafirmar o valor deste romance despenteados, dos sentidos democráticos.
Nfíbre a ambigüidade, onde um imaginário feminino realiza Apresso-me em aclarear aos “Teodoros” que me es
tl conjunção positiva entre os desejos, os afetos e as leis. tão lendo, que aqui a palavra adultério está conotando o
mágico, o carnavalesco, a moral analfabeta (quase como
uma verdade física), a mobilidade e a marginalidade que
contêm o novo. O casamento por sua vez, conotando a
24 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 25
realidade culturalmente imobilizada, o desejo legalizado e desde o momento em que as concebe. A maioria de nós
a ternura cronometrada, o prazer transformado em um pilar somos filhos do segredo. Mantemos o lugar do segredo
da moral dos bons costumes. É um sentido de adultério que como uma necessidade até para presevar as verdades físi
pode dar-se com os próprios cônjuges. cas mais pronunciadas. Um direito à intimidade resguarda
Enfim, uma fórmula de começar o livro propondo ao da, inclusive, de nós mesmos. Em nossa própria gênese,
leitor algumas idéias excitantes: podemos encontrar os lastros da sedução pecaminosa, que
a) não existe democracia sem marginalidade (adulté funciona como código último e secreto dos argumentos
rio), sem uma louca cavalgada, o delírio febril, os ais do construtores das verdades persuasivas. Dessa forma, vive
amor que vêm da experiência comum da gente, surgidas mos construindo labirintos de mistérios culposos. Mecanis
nos momentos primordiais do cotidiano, na encruzilhada da mos de defesa para fantasias adúlteras. Estupefacientes.
fome e da hipocrisia (da órdem prepotente) com os ele Tranqüilizantes que se somam aos castigos como polícias
mentos imaginativos mais ousados que incendeiam a liber das consciências e lavagem das culpas. Segredo. Censura.
dade em cada esquina; Mecanismos, enfim, de produções do silêncio que fundam
b) a ciência deve ser questionada com atos de o autoritarismo e a castração.
“vadinhagem” que nos provoquem orgasmos mágicos com
o real. Estou, assim , tentand o um desvio da visão
monogâmica (devida) do mundo que a ciência nos dá. Sin 1.7 Cada vez que leio esse romance de Amado me
to este livro como um campo de batalha entre os orixás da surgem as associações mais esquisitas: a necessidade de
verdade e da objetividade e o Exu do aliciamento fantásti misturar e não separar conotação de denotação, o meu do
co. Ganhando Exu, as pessoas queimarão o tempo da men seu, os uns dos outros, a pragmática da semântica, a razão
tira. Da cosmovisão nobre e sensata do mundo, ficarão só da história, a ciência da literatura, a segurança da subver
os restos que poderão ser de imediato arquivados no mu são, a marginalidade do instituído, a am bivalência da
seu das ilusões respeitosas. Os mitos, as incoerências, as univocidade. Tudo isso para separar e desviar o desejo das
perversões das hierarquias explodirão nos terreiros, dei proibições prepotentes... É como se estivesse lendo o ro
xando de ser os fantasmas do objetivismo demonstrável. mance da intersexualidade... Sem culpas.
c) o comércio elegante das verdades científicas pre Na primeira versão deste livro, omiti a associação
cisa mostrar suas frustrações, os recalques que nos deixam que, com o correr dos anos, se converteu em minha favori
sublimando os desejos na representação dos objetos. As ta, a mais didática. A associação que, de um jeito ou de
ficções são mecanismos de sublimação. outro, terminava aproximando-se aos devires e às surpre
sas de minhas alegorias “semio-sensibilistas”. Refiro-me aos
modos em que identifiquei os dois maridos com o lado
1.6 Existem coisas que se fazem e que não se podem feminino e masculino respectivamente: Vadinho como o
vttr, diz Teodoro a Dona Flor, enquanto apaga a luz para feminino, Teodoro Madureira como o masculino.
mníí-la. Toda uma cultura do pecado, que marca gerações De que estou querendo falar? Obviamente nada a ver
26 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 27
com a genitalidade, com fêmeas e machos de nossa espé as insatisfações de nossa criança interior.
cie. Falo de dois tipos de energia contrapostas que influem O masculino não deixa de ser uma forma melodra
na configuração dos modos de desejar dos dois gêneros de mática de ver a vida em branco e preto. Uma incapacidade
nossa espécie. Você, eu, todos temos, em diferente pro de fertilizar o novo.
porção, os dois tipos de energia. Pensando projeções para o direito:
Vadinho, como expressão do feminino, representa o O saber jurídico da modernidade organizou o lado
projeto identificatório começando a comprometer-se com a masculino do imaginário do direito. Mobiliza o social ne
procura do novo: o ser na procura de um suplemento de gando as incertezas e o novo, impede a inscrição do direito
sensibilidade. Vale dizer a feminilidade como suplemento na temporalidade.
da masculinidade, para realizar a política do afeto. O lado masculino do direito acaba facilitando as cren
O feminino manifesta-se como despertar das diferen ças que edificam o cenário das crenças jurídicas aditivas, as
ças, para produzi-las com o outro. O feminino resolve no que tornam o poder impecável.
incessante do novo, a criação do novo possível.
O feminino, como um lado da energia do desejo,
constitui possibilidades de transformação do eu, desman 1.8 Opondo Teodoro a Vadinho, encontram-se defi
ches de cenas estereotipadas, de normas e valores conge nidos, para o imaginário de Dona Flor, os lugares do dever
lados e de estruturas aditivas. e do prazer. Trata-se de um contraste que permite - gene
O feminino como que se arrisca a fazer uma viagem ralizando a questão - perceber como o desejo pode per
interior para que possamos aprender que a liberdade inte der-se quando o lugar do prazer é convertido em um lugar
rior é a chave do amor. A superação da paixão, entendida do dever; perde-se quando o prazer é realizado como obri
como obsessão de dependência. O encontro com o amor gação, como um mecanismo de defesa do desejo frente ao
maduro. pecado. Sempre que a obrigação repercute no prazer, te
Poder-se-ia dizer que o lado feminino é o resultado remos alguma forma de exercício da repressão. Do mesmo
do masculino posto em crise para fundar nossa própria modo, teremos alguma forma de neutralização do desejo
política de libertação. pela identificação do prazer com o pecado.
Precisamente o masculino, vejo-o como energia aditiva No caso do amor, podemos esperar sua morte, o pra
que constitui o próprio corpo como necessidade. zer tornando-se obrigação, tingindo de culpa o prazer não
O masculino, represento-o como o risco do previsí realizado como dever. O desejo como bloco monolítico de
vel, daí a sua identificação com Teodoro. obrigações é um esforço desesperado para provocar a dis
Vejo o masculino como o limite que nos aparece ciplina do prazer através da purificação do pecado. É pre
paru viver de acordo com o potencial próprio; ter habilida- cisamente o desejo de Teodoro, que é sobretudo um beco
ílen que permitam sentir-se contente; estar aberto a experi sem saída na procura do prazer, já que ele se realiza no
ê n c ia novas; viver na temporalidade, o presente como cumprimento da obrigação. Certamente porque sente o pra
novidade; enfrentar e superar os próprios medos e superar zer com o pecado e necessita, para sua purificação, enlutá-
28 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 29
lo com as fantasias do dever. Fora do dever, o prazer fica expressões, desintoxicando o corpo de suas proibições.
como pecado e os corpos ficam minados e disciplinados O dever é um desejo que impõe e propaga a submis
pela proliferação de proibições culposas. Todo prazer que são. O dever prejulga e condena todo desejo que não pode
não seja executado como dever será castigado. Não existe ser regulado por ele. O amor, em nossas sociedades, é
nenhuma distância entre o Herculanno de Nelson Rodrigues burocrático e repressivo por apresentar um excesso de
e este Teodoro Madureira de Jorge Amado. deveres. E o amor será um exercício democrático do pra
Não posso deixar de relacionar o prazer executado zer, quando se liberar de suas proibições e inocentar o
como obrigação a uma mentalidade autoritária, totalitária e prazer realizado fora do dever.
profundamente repressiva que, em nome do pecado, apro Socialmente, existe toda uma lógica do dever que
pria-se do prazer do outro na segurança que dá o dever extrapola o prazer do corpo e se consagra como mecanis
como "panóptico" beatificadó. Abrindo um diminuto pa mo de constituição do social. Aprendemos a encarar todas
rêntese, eu diria que, para uma mentalidade burocrático- as nuances da vida como dever, regulando nossos prazeres
repressora, o pecado é tudo o que escapa ao dever. Na como uma mais-valia triste de uma "estrutura" de proibi
execução do "prazer devido", encontramos as formas tota ções. Vendo o prazer como lucro do dever, fica instituído
litárias do desejo que, em nome de um dever superior, no coração da sociedade o imaginário preconceituoso que,
consagram o desejo unificado como o avesso do prazer: é mais cedo ou mais tarde, leva ao autoritarismo. O dever,
o gozo legalizado, o prazer igualitário, o prazer reprimi como agente transformador real, pode conduzir-nos a uma
do.1 ' forma não-democrática da história. A ordem da lei, do po
Para o prazer desligar-se do mundo infinitamente der e do saber, inscrita em uma lógica includente do dever,
desértico dos deveres, precisa negá-lo em todas as suas não pode trazer outro resultado que a hipocrisia do Estado
e do Direito como legitimadores dos incidentes tolerados.
Talvez o estágio seguinte ao Estado-de-Direito (na América
Latina) seja o Estado-de-Hipocrisia, mas a forma subseqüente
ao grau máximo de hipocrisia do Estado pareceria ser no
lÍNtou escrevendo em plena praia Brissol, um lugar onde a classe vamente o Estado-de-Direito. Enfim, uma cadeia muito pouco
lllótllst argentina se simula descansando em meio de barracas cativas, revolucionária. Uma cadeia que se torna altamente perigo
IIICHUH de truco e pôquer, visitas a barracas de outros, (para tomar chi-
sa num estágio da civilização onde o espírito do político
mitlTíiO e comer croissants) - sem ver o mar - programadas com um mês
lie HtUecIpação. Onde não faltam fotógrafos esclerosádos que ritualizam tende a ser substituído por "competentes" decisões silenci
fino U ano o crescimento das crianças e o aumento das calorias dos osas, respaldadas por “normas técnicas".
pilltí, í? a mesma conversa sem assunto que vai passando de geração Para sair desse engodo, precisamos conceber as de
pllffl praçflo, este ano apresentando como variação, para dissimular o
MMlo, lim papo furado e até insultante sobre os desaparecidos. Enfim,
mocracias latino-americanas funcionando na procura da li
UI11H maneira farmacêutica de relacionar-se com o mar. beração de suas proibições, isso é, prolongando, ao máxi
li#(junl)amtmtc, apesar do que termino de escrever, depois de dez anos mo, as distâncias entre o dever e o desejo, entre o prazer e
ílp (JJtílio, Nlnlo-rne atraído a voltar todas as manhãs à barraca de minha suas ficções. Em suma, precisamos provocar a decomposi
ftwifllu) ilflnal (le contas, aí fiz minhas primeiras verdades de areia.
30 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 31
1.9 30 de outubro de 1984 - Nossa cultura judeu-o esperma urgente. Institucionalmente sobrevivemos. No
cristã não tolera o prazer, salvo que esse se encontre en confronto com os desejos punidos, perderemos o medo de
quadrado e sirva aos valores que governam o quotidiano. cultivar as ambigüidades e o imprevisível. É uma possibili
Dentro de nossas sociedades, todos ajustamos nossos dese dade de renascer. Estamos diante de uma chance de ven
jos às idéias de ordem, dever, legalidade e seriedade. Os cer a sedentariedade e pensar sobre nós mesmos, sem
corpos perdem seus desejos e os discursos são congelados modelos.
e, desse modo, impedidos de mostrar a imensa possibilida Os dois maridos de Dona Flor simbolizam para mim
de de sentimentos e pensamentos acasalados para signifi esse confronto. Vadinho é uma voz do subsolo, um desejo
car. E uma moral de desejos escravizados. Espírito de "jívaro" marginal que permite a Dona Flor não ter medo de refletir
que quer reduzir a liberdade e a imprevisibilidade dos de ludicamente suas contradições.
sejos ao diminuto mundo de pma sexualidade regrada, morta Porém, Dona Flor é uma mulher instituída. Nunca
e dependente de um destino purificado. Porém esquecida poderia ter um imaginário plenamente marginal. Como
de que o princípio molar da sexualidade da vida não está muitos de nós, sem um princípio de ordem em sua cabeça,
na projeção moralizante de um destino pleno e programa desestruturar-se-ia, entraria no delírio. Ela nunca poderia
do, mas no tormento de uma caminhada cheia de incerteza. reproduzir Vadinho. Simplesmente necessita dele como o
O final feliz é mentiroso. Nele esquecemos que a meta do lugar do confronto, para que sua vida não fique neutra.
desejo é o caminho; que a viagem é o valioso e não o Dir-se-ia que o segundo casamento de Dona Flor, tal
momento da chegada: um lugar sem imprevisibilidades onde qual o espaço público burguês, transforma o amor em de
a segurança substitui a criatividade e as coisas acontecem ver, p rofanando o d esejo e a vida. São figuras do
como eram previstas. Nesta forma de sociedade, os outros autoritarismo: os conflitos se simulam inexistentes e os su
nunca serão "energia" para sentir-se vivos. Eles serão sem jeitos desaparecidos. Estamos diante de um matrimônio e
pre um "letargo" para nossos desejos. É o desaparecimento de um espaço público sem tempo político. Perdido o diálo
do amor. Unicamente amamos a fonte da nossa energia. go e a disputa, unicamente resta um recíproco dissuadir-se
Ora, numa sociedade onde existe a continência de para não provocar implosão.
gestos, corpos e desejos, numa sociedade que se apresenta De pronto associo o casamento de Dona Flor e
cheia de práticas fortemente instituídas que substituem a Teodoro ao espaço público, penso na democracia, nas fic-
paixão da vida pelo dever, numa cultura onde não existe ções de nossa cultura e vejo tudo como os vários espelhos
mais o tempo político substituído pela militarização do co pelos quais pode mirar-se simultaneamente um estado de
tidiano, as fontes da nossa energia precisam provir do con guerra sem guerra. São as instituições do desaparecimento.
fronto com o "vivement marginal". A redescoberta da pai Matrimônio de desaparecidos. Sociedade do desapareci
xão pela vida, da paixão de compreender os outros virá de mento. Matrimônios e sociedades onde é impossível recu
Um confronto com os desejos que fluem marginalmente. A perar a democracia. Essa precisa do tempo político e do
marginalidade é o lugar da recuperação das relações livres co n fro n to p erm an en te com os h á b ito s a c e ito s , as
Com OS desejos. Aí é onde encontramos o sangue quente e efervescências dos desejos e os acontecimentos marginais.
34 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 35
A democracia não se resolve na ordem sedentária, precisa Dona Flor é um romance que se escreve dentro do
do confronto com as leis do submundo para que não vire gênero dialógico. Quando se dialoga, criam-se espaços
uma montagem de relações ocas, um punhado de liberda ambíguos, ambivalentes espaços onde existe uma forte
des de papel, finalmente substituídas por um estado de dualidade moral. Nesse ponto, "Dona Flor e seus dois
guerra pura: o quotidiano militadzado e o jogo do direito maridos" é um romance malandro, marginal. Um romance
simulado. A democracia precisa de bênçãos e de blasfêmi que se realiza estabelecendo ambigüidade no confronto do
as. instituído e do marginal.
Dona Flor procurou a democratização de seus afetos.
Para isso precisou entender que> anulada pelo dever, a
imprevisibilidade de seus desejos a deixa em estado de 1.10 5 de d ezem bro de 1984 - E rotism o e
emergência. O dever perverte o desejo, reduzindo-o a uma marginalidade. O problema é imediatamente político: im
marca representativa. Não existe amor nem democracia sem plica a inversão dos valores negativos da sensibilidade
um estado de permanente nascimento. judeu-cristã pela ambivalência do desejo. É a política da
A a-realidade do amor e da democracia consistem em energia do desejo que vê a ambigüidade na sua face posi
imaginá-los como situações prontas, acabadas, súbitas: o tiva. A ssim , difu sa e irrep rim ív el, a d ia lé tic a da
grito do Ipiranga é uma ilusão de independência; o voto, marginalidade leva à liberação do desejo contra as censu
uma ilusão de democracia e o desejo racionalizado é uma ras públicas e privadas, contra os efeitos corrosivos das
forma de perpetuar a carência afetiva. máquinas e dos valores dominantes sobre a libido. O dese
Um matrimônio, um relacionamento, uma sociedade, jo, à diferença de Eros, não se liga ao corpo ou à lei, não
o espaço público podem ser chamados de democráticos, está ligado à vergonha do corpo e da sublimação. O desejo
se emergem como "locus nascendi . Do desmascaramento, - diz Guattari - não é sexual , é transsexual. Não mortifica a
tia perda, da "toilette" da cultura. É difícil repensar a demo criança, a mulher ou o homossexual. Não sabe o que é a
cracia se o lugar do desejo não é simbolicamente assumido normalidade e o que é a preservação. Basta observar sem
como vazio, isso é, como um espaço sem sublimações. preconceitos as moças, as crianças e os primitivos (os mar
Dona Flor intuiu isso, compreendeu que sem os dois ginais) para entender que o desejo pode fazer amor com
maridos seu corpo não poderia reconciliar-se com seus flores, máquinas ou situações festivas. Enfim, a energia do
desejos, ultrapassar suas próprias acomodáções, sentindo- desejo não está baseada sobre as dignificações ou valores
um ninho de enigmas. A democracia é sempre uma (saberes) dominantes, e sim na infinita amplitude da teia
procura de confrontos. O importante nela é assegurar a significativa em que a vida se vai formando. Existe uma
procura, não sua resolução. A democracia, tal qual Eros, significação desejante e uma dominante. Devido às suas
flftu tem Como função aquietar o sangue ardente. Eles ser interpretações, seus efeitos interpretativos podem ser dife
vem pura esquentar o conflito integrando o instituído com renciados. Precisam ser diferenciados, se queremos nos
6 pólo du marginalidade. Uma das razões pela qual pode comprometer numa política de liberação da expressão dos
jlitMUMia nu mediação como realização da democracia. desejos. Estamos diante de uma história de dissidências, de
36 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 37
um caminho de fuga dos infantilismos. Temos então que transformação do desejo em objeto, num olhar de consu
falar das significações marginais. Situar-nos além das mo. Um teatro erótico. Um espetáculo objetivo dos desejos
semiologias que estabelecem a realidade dominante. A lei, comandados por conjunto de deveres-fetiches. Um estado
que é a última arma contra a liberação da expressão dos narcisista onde o olhar substitui o corpo como instrumento
desejos, passa através da linguagem inesperada. dc desejo. Assim, o homem fica prisioneiro da contempla
A semiologia dominante, apelando à linguagem, es ção da cena primitiva: a angústia da castração.
tabelece modelos de desejo. Neles gozar é igual a possuir. Nossa sociedade instala o prazer censurado pelo olhar
Por meio desses modelos, o homem não só aceita as hie devido. Toda sociedade funciona como um grande espetá
rarquias como também aprende a amá-las. Todos somos culo proibido para menores. Um espetáculo onde pode
proprietários burgueses de nossos desejos. Todos ajuda ver-se o corpo na abstração do desejo devido e na sublima-
mos a manter a ilusão de, uma verdade imóvel. ção visual do pecado.
A energia do desejo morre quando se procura fazê-la O erotismo marginal desvia o olhar da cena primitiva
pertencer, pela força, a um sistema de significações. E isso e faz do desejo desnudado um lugar crítico do investimen
o entendia muito bem Vadinho, que resistia a ficar prisio to social e da libido.
neiro a uma espécie de matemática dos desejos. Assim Na relação erotismo-marginalidade, o Eros deixa de
devemos recuperar a significação desejante, pré-significa- ser valorado como dever e como mercadoria. No erotismo
tiva (dos loucos e das crianças). Uma semiologia e uma marginal, a pornografia é o erotismo dos outros. É não
pedagogia marginal que não se encontram codificadas pe saber conjugar sexo e afeto. Nesse sentido, Dona Flor é
los esquemas de poder dominantes. uma heroína do erotismo marginal. Ela consegue articular
Sob o plano da semiologia marginal, joga-se a possi cm seu corpo a dialética pelo qual Eros se constitui.
bilidade de abolir toda a censura pela desnudez que pro A história do desejo é inseparável - leio em Guattari -
voca o espaço ambivalente. Na ambivalência, pode-se dar da história da repressão e da história dos sistemas de signi
o fluxo do desejo. Um Eros contestatório, que reivindica ficação que estabelecem a realidade dominante. Existe um
um erotismo pluralista e ambivalente. princípio da realidade dominante e um princípio do prazer
O desejo desnudando-se. Aqui a chave da semiologia lícito. O desejo está obrigado a manter-se no limite que
marginal, plural e ambivalente. A desnudez é a negação do separa a realidade do prazer, ao longo desta fronteira zelo-
estar fechado no próprio eu. A desnudez é o estado pleno samente custodiada pelo poder. O desejo é perseguido
da comunicação. É a comunicação sem fantasmas moralis por tantas sentinelas, por tantos Teodoros, que termina por
tas. Sem o olhar pornográfico do censor. Ele é o que inven renunciar a seus objetos, identificando-se com o limito o
ta o obsceno e converte o desejo em dever e a transgres seus guarda-costas. Assim se fará amor do limite, se fará
são em objeto. Objetivando, congelando os desejos, capa policiamento. Assim uma contemplação invejosa, um espe
citam-se os tutores da ordem a dominar. A pornografia, táculo proibido que simulamos transgredir com o olhar,
enfim, está na univocidade e no dever. Entretanto, poderi substituirá o objeto de um desejo nunca atingido. O desejo
amos também dizer que a pornografia é o processo de vira olhar para que ninguém saia de um sistema de víncu
38 Luís Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 39
Quando erotizamos a vida, o cadáver deixa de ser cou, Gabriela tinha no sangue e Quincas Berro D’água rea
imagem de nosso destino. Ele é substiuído por imagens de lizou dividindo seus dias.
plenitude. O erotismo cria o desejo através do interdito. Esse é
Na relação com Teodoro, Dona Flor compreendeu a o valor estrutural do direito.
saída. Entendeu que a melhor maneira de estender e multi Dona Flor, com a parceria de dois, constitui ritualmente
plicar seus desejos é querer impor-lhes limites, estabelecer seus desejos. O ritual purifica a transgressão e constiui a
interditos, regulá-los pela alquimia do dever. Assim, Teodoro proibição na razão do desejo. A transgressão ritualiza, legi
introduziu com mais força o Vadinho no imaginário de Dona tima a violação da proibição. Toda a proibição pode ser
Flor. violada se é executada conforme uma lei que regula a
Nesse sentido, a marginalidade é o território onde o transgressão. O tabu da morte se levanta na guerra e na
homem estende o desejo institucionalmente reprimido. sanção jurídica porque se executam cumprindo rituais, re
O contato entre as forças carnavalizadas de expres gras meticulosas. É a transgressão sentida como dever. É a
são e a marginalidade é de extrema intimidade. O discurso transgressão beatificada. 'O interdito não expressa absten
carnavalizado é sempre um discurso marginal onde corpos, ção e sim uma prática em forma de transgressão regulada
desejos e significações crescem, vencendo limites. - geralmente pela expiação da culpa.
Os interditos não se impõem à inteligência senão à Para o homem a atividade sexual é uma transgressão.
sensibilidade. Por isso a verdade nunca nos dá consciência O prazer não emerge sem o sentimento do interdito. Inclu
de sua superação. Violamo-los por emoções de sentido sive na base de um matrimônio virginal pinta a transgres
contrário. são. O marido adquire o poder de transgredir o interdito,
A transgressão do interdito é um episódio geralmente matar a pureza do corpo de sua mulher. Com dois maridos,
tão normativizado como a proibição. Com exceção, a trans Dona Flor consegue viver em estado de permanente trans
gressão sem sujeições, ilimitada e possível, é a transgres gressão.
são marginal. À medida em que o homem foi adquirindo consciên
Abrindo parênteses, eu diria que é im possível cia do mundo e das coisas, foi perdendo consciência de si.
instrumentalizar as concepções jurídicas para a democracia A consciência das coisas é oposta à consciência do erotis
sem uma implementação dos mecanismos de transgressão mo. O homem erótico é um mau produtor.
dos interditos. Nas formas de transgressão dos interditos, A razão se vincula sempre ao trabalho. Por definição,
realiza-se a democracia. Ela é sempre a exuberância dos o excesso está sempre fora da razão. A força do excesso
direitos e a superação do sistema de castigos. A democra está na marginalidade da razão.
cia como marginalidade encontra seu ponto de equilíbrio
não no aniquilamento da lei e do estado, senão em sua
superação pela transgressão.
O erotismo precisa do jogo alternativo do interdito e 1.11 30 de dezembro de 1984. As aparências jurídi
dit transgressão. Isso é precisamente o que Dona Flor sa cas enganam. As aparências morais enganam. O cálculo
42 Luis Alberto Warat l A ciência jurídica e seus dois maridos 43
reflexivo da razão também nos engana. Muitas aparências ; O direito esconde a democracia. Alfonsin e Tancredo
me enganam. ocultam os sinais do novo.
Máscaras que apagam o que o desejo e a paixão | A democracia precisa ser um ponto erótico.
ardente sugerem. Rosto instituído, indiferente, anódino. Uma j Caminhemos devagar. Registremos sem confusões
mesma máscara para todos. Tédio ritualista, moralista d o f duas máscaras em contraste: as que despertam e as que
dia útil. Os mascarados instituídos cumprirão anonimamen adormecem, as democráticas e as despóticas, as fulguran-
te com a vida, farão trâmites regrados, deixarão de lado os 1 les e as anódinas.
apetites imediatos. Morrerão sem haver aprendido a su b-1 As primeiras permitem expressar o imaginário e
verter as previsões raciocinadas das normas. Morrerão sem íiproximá-lo de todos os outros. Põem em marcha a
ter tido chance de assumir intensamente a vida. As aparên-1 criatividade da gente.
cias instituídas matam o' plural dos desejos, reduzem-nos a j As segundas, como um vento do exterior, escrevem
meios disciplinadores (amortecedores) que substituem nos o comportamento por, nós. Tramam as aparências engano
sos fins pela garantia das coisas e a preservação de uma f sas... Confundem-nos lentamente com o silêncio.
grande máscara chamada Estado. Quais são as máscaras de Vadinho e Teodoro?
Parece que existem outras máscaras. Elas são porta- 1 Tome um susto ao reconhecê-las. Assombrosamente
doras de um enorme poder subversivo: carnavalizam e trans que os dois falam sempre desde uma única máscara, care
tornam as vidas automatizadas, despertam as respostas e os 1 cem de rostos alternativos.
desejos eróticos, permitem seriamente o jogo de reconhe De fato, os dois enxergam através dos olhos-das más
cer-me e reconhecer ao outro. caras autoritárias. Também existe o transgressor instituído.
Os portadores desse segundo tipo de máscaras ficam j Vadinho o espelha muito bem.
abertos a seu próprio mundo imaginário, abandonam as As máscaras que portam os dois maridos de dona Flor
atitudes rígidas para aceitar a multiplicidade de desejos dão a sintonia a seus corpos. Dois tristes estereótipos que
que essas máscaras incentivam. simulam o conflito. Certamente podemos procurar outras
Estourando uma máscara carnavalesca, os homens leituras. Prefiro, por exemplo, mirar a Vadinho e Teodoro
compreenderão que seus desejos têm mil rostos. Poderão como as máscaras que dona Flor constrói para si como
desprezar as nimiedades da razão. forma de expressar os encontros e desencontros com seus
Teremos facilidade para entender que a razão nunca desejos. Dança de máscaras onde, sem elas, podemos as
soube fixar seus limites. Em busca de outras linguagens, sumir o contraponto dos dois maridos.
sentiremos o conflito das relações entre o erotismo e as O primeiro seria o rosto que desperta, que cria.
normas. Ninguém considera as possibilidades de uma vida O segundo a cara do dever convertido em objetivo
desligada para sempre da lei e da razão. Porém o erotismo maior de vida.
6 0 ponto de transgressão que impede que as leis se trans Luz e penumbra.
formem nos próprios fins da vida civilizada. Colocando-me a máscara de Vadinho, começo a com
Pela falta de erotismo, as aparências enganam. preender que o importante é que o homem em cada ins
44 Luis Alberto Warat A dôncia jurídica e seus dois maridos 45
tante, em todos os momentos, mergulhe na criação. O im para perseguir a democracia e transformar as verdades em
portante é permítir-se esse jogo. desejos.
Para estar aberto ao mundo sem limites, temos que A máscara de Vadinho seria a proposta de um jogo
vibrar com os furacões do desejo. de descobertas. Assim poderiamos pensar o direito como
As máscaras da ciência do direito são disciplinadoras. um espaço para garantir o plural dos desejos. A semiologia
Impedem fixar os limites da lei. Carapuças impotentes frente democrática tem que gerar novos espaços de desejos.
à rotina cultural. Escritos estéreis que não conseguem pro- As palavras instituídas sempre atraem. Mascaram de
criar uma cultura jurídica visceralmente democrática. Um sejos mortos. Proporcionam, na democracia, aparências en
saber sobre o direito que reconcilie o homem com suas ganosas.
paixões, tenha respostas de acordo com o mundo e trans Aparências que nos estupram para vigiar sua própria
forme a estagnação de súas verdades em desejos vivos. Identidade sem fissuras.
Há essa possibilidade? Poderão os juristas, como Dona Aparências suicidas, aparências cinza, prontas para
Flor, construir uma máscara de Vadinho que incite sua abordar o novo que subverte, o novo que transforma.
criatividade, que lhes provoque uma ardente aspiração à Para enxergar a democracia, teremos que olhar o ta
extrem a lib erd ad e das idéias? P od erão p ro teg er a manho do super ego. Se ele não é diminuto, veremos tota
criatividade mais que a propriedade? litarismo. Defrontar-nos-emos com o rosto de Teodoro.
O saber vulgar que os juristas identificam como a sua Todo problema é saber que o novo bate à porta,
ciência nos leva a respostas negativas. É como se o pres arromba-a.
sentimento duplo da morte e da repressão dominasse a A democracia não pode ser uma coisa tão incolor
reflexão. como a sonham Alfonsin e Tancredo. Que pouco radical é
Existem evidências difíceis de suportar. Precisamos, o destino radical! Que velha me parece a nova república! É
então, das aparências. Precisamos, então, dos argumentos a comodidade do lugar comum.
da ciência do direito. . Frente a tudo isso, apelo à fantasia para fecundar o
A ciência jurídica clássica unicamente serve para des real e seus símbolos.
crever os mecanismos que reprimem o eu. Por tabela, ela Mostrando uma ilusão, o mundo muda algo.
reforça os mecanismos simbólicos da militarização do coti Sou portador de uma geração que necessita do sonho
diano. Em última instância, o que apreendemos da cultura (* da fantasia para não converter seus membros em bobos
jurídica instituída é o prestar contas. da corte. Este livro é filho dessa história.
Ora, preciso colocar na ciência jurídica a máscara de
Vadinho, imaginada por Dona Flor, para montar minhas
instituições subversivas e sublimar a parte maldita da cultu 1.12 30 de outubro de 1999. Madrid, no dia de meu
ra jurídica. Sonho com uma vida intelectual liberada de último aniversário do século.
autoridades, com um mínimo de medidas de segurança. Sempre pareceu-me distante e comovente chegar ao
Desejo uma ilusão diferente, uma aparência marginal l'lm do milênio. Desde criança, senti como a mídia fomen
46 Luis Alberto Warat A ciôncia jurídica e seus dois maridos 47
tou o valor emblemático do ano 2000, como chegada do onde vai a modernidade?
novo. A grande promessa de que tudo seria diferente nes Temos indícios para dizer que a transmodernidade
se ano de três zeros. leva a modernidade para caminhos que deixaram de lado a
Curiosamente, faltam dois meses para a chegada des fantasia apocalíptica de sermos os últimos homens.
se novo tempo e não senti nenhuma das emoções espera Tensões escatológicas à parte, penso que é impor-
das. No externo a mim, acredito que pouca coisa mudou. lante deter-nos para indagar as situações que nos permitem
Internamente descubro em mim a última grande pos assinalar a possibilidade de irrupção de algo novo na cena
sibilidade de mudança interior, de meu encontro com mi do presente.
nha própria vitia interior, como possibilidade de encontrar- Quero sentir-me instalado após a ruptura, após o trân
me e realizar a fantástica experiência do amor maduro. O sito.
mundo segue igual ou pior. Surpreendo-me ao ver inespe Não quero somar-me ao coro dos que tentam definir
radamente a mim mesmo revolucionando minhas adições. nosso tempo como o tempo que se ocupou da idéia do
Penso que o século vinte se foi há muito tempo, e final. O fim, para mim, é mudança, uma atitude para não
que o próximo século demorará alguns anos para chegar. licar prisioneiro do passado, para não viver a história, e a
O fim do mesmo. própria história como muro.
Pensar no século que se vai é uma forma de permi Os que falam de pós estão obcecados pela idéia do
tir-nos capturar chaves para a projeção do futuro. Uma boa fim, por isso prefiro o prefixo trans.
, oportunidade de fazer algo no dia em que começo a des Os que falam de pós-modernidade estão preocupa
pedir-me de minha juventude cinqüentona e tentar ver, dos por saber, como se isso fosse o único possível de
também algumas coisas de meu próprio futuro como ho saber, o que vamos abandonando, o que estamos obriga
mem maduro. dos a renunciar. A expressão fiel de um inevitável senti
Projetar, comparto a idéia de Frierich Scheleger, é mento de epílogo.
construir o lugar da diferença para que o que ainda é só Não quero ter uma sensibilidade pós-moderna, que
possível, se faça real. O germem subjetivo de um objeto me condene a ter a última palavra e a última sensibilidade.
em devir: fragmentos internos do porvir. No fundo, o pós-moderno como o esforço para fazer o
Este século que se vai, se deixa pensar? Foi um sécu novo impensável e negado de sensibilidade.
lo inútil, perdido? A obsessão pela especificidade do sécu A transmodernidade fala do novo como o lugar em
lo não está jogando uma armadilha contra ele mesmo? É o que cada um de nós pode descobrir-se a si mesmo. Em
século que indica o fim da modernidade? lodo caso, o novo não como território de que se vislumbra
Deixo as perguntas para você. a terra prometida, a exterioridade sonhada. É o novo como
Acredito que a modernidade encontra-se em trânsito sensibilidade.
para outras formas de sensibilidade e de razão. Chamo a A condição de sensibilidade nos fala, entre outras
essa situação de transmodernidade. eoísas, da dimensão do ainda não.
Pergunto-me, então, pelas condições do trânsito. Para Não adianta levar a crítica aos limites do esgotamento
48 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 49
2.4 Lamentavelmente, os "plantados’’ silo uma espé crer unicamente na poesia e na verdade, desde que bitola-
cie quase inexistente entre os juristas. Entre os “servos da da em seu vocabulário.
lei”, sobram os “famas” e sobrevivem os "esperanças”. Porque, se não podemos arrancar a poesia e a verda
Não faltam os juristas que se sobressaltam perceptivelmen- de de suas respectivas bitolas, imobilizaremos para a eter
te cada vez que alguma esperança sobrevivente os convi nidade uma distância mortífera entre os nossos desejos e a
da a declarar relativamente insana a versão do mundo con sua execução.
solidada (com paciência histórica) pelos grandes juristas de Associa-se à “A Casa Tomada” uma fantastica denún
todos os tempos. Porém os famas do Direito não se sobres cia do monstro escondido no discurso das ciências sociais,
saltam, têm medo quando se filtra em seu mundo um que nos vai penetrando, deixando menos espaço para nós
cronópio que lhes diga que é preciso começar tudo de mesmos, até sermos engolidos por um mundo que não é
novo, virar a mesa, trocar resolutamente os esquemas. “Data mais nosso.
Venia” custa horrores. Possivelmente a casa não foi tomada por um só m ons
Entretanto, as esperanças conseguiram seu espaço tro. Pode ser um invisível esquadrão de heterogêneas
entre os famas da lei, conformando-se em descrever, inter monstruosidades, onde nossos medos não deixam de ter
pretar e classificar tudo o que os famas do Direito fazem, um lugar de destaque.
decidem ou violentam.
Cortázar cria para criticar. Inventa ilusões para dilacelar desafiando a tentação suicida da linguagem. Sempre vale
a miséria institucionalizada. mais um suicida que um zumbi. “Jazz-verdades talvez seja
Logo quero dizer que esse sentido da obra cortazariana chave para transformar uma arcaica vontade de verdade
serve de modelo para repensar a pedagogia e as condi em uma vontade de criação, mostrando a atmosfera dos
ções de possibilidade das ciências sociais. desejos. A vida renasce nas artes.
Didaticamente acredito na construção de labirintos. Como Cortázar, sinto que o estranhamente vital e o
É importante considerar, a esta altura, que, desde o literário terminam coagulando um mesmo desejo. Como
ponto de vista pedagógico, pela via da invenção e da ilu ele, sinto que a poética é a consciência surrealista da ex
são, pode-se tentar conjuntamente a sondagem dos limites periência vital.
dos códigos acadêmicos e epistêmicos estabelecidos. O Nosso cotidiano nos exige diariamente respostas pal
docente precisa ironizar-se, mostrar-se como uma esfinge pitantes. Para desenquadrar-nos dos moldes rotineiros, pre
sempre a ponto de ser revelada. Embora conserve seus cisamos saltar o limite, mergulhar no espaço que nos foi
mistérios para devastar os segredos - a autoritária magia - distraidamente concedido. Nessa tarefa, as ciências sociais
do ensino tradicional. O mestre deixa-se converter num andam pouco. O reconhecimento da realidade pela teoria
novo personagem do caminho da arte. não dá o mergulho. O salto à ação exige o reconhecimento
Até certo ponto, como a narrativa, um projeto peda e a vivência da realidade como poética. O desejo também
gógico, engajado com a vida, acaba de exigir também a é poesia: o halo significativo do jazz.
finalização do próprio ato pedagógico. Precisamos preencher o copo de poesia, de loucu
À pedagogia de uma perseguição se faz a persegui ra... e beber como Gortázar, como Artaud.
ção de uma pedagogia. O professor confunde-se com o Transformemos a linguagem numa questão crucial e
saber. Como na narrativa cortazariana, a crítica justapõe façamos dela um instrumento de conquista de nossos dese
seus momentos de construção e desconstruçáo. Não se ter jos encalacrados.
mina nunca de saber se um “cronópio", quando ensina, No fundo, com o conhecimento, com a cultura cientí
constrói ou destrói. Provavelmente construa para destruir fica, tem-se a ilusão de haver saído do labirinto da vida.
ou destrua para construir. Talvez a destruição seja o dobro Na realidade essa saída é só um lugar do labirinto de onde
da construção. No fundo, cada um deve fazer sua própria se simula a saída. Os que chegam a esse lugar ficam geral
montagem. Um cronópio nunca pode comunicar-se com mente em paz. Dormem.
um fama. A porta está fechada e a chave para abri-la é do Não é com esses olhos que se enfrenta o mito (Los
outro lado (Histórias de Cronópios e Famas, p, 132). Reyes). A única saída do labirinto é ir ao encontro de si
É possível dizer também que cabe aos juristas, como mesmo. A única forma de liquidar uma esfinge é atribuir-
aos escritores, dar testemunhos, até provocar o exorcismo lhe outro enigma aceitando o primeiro como tal. O único
da história de sua ciência. meio para matar os monstros é aceitá-los (Los Reyes). Não
Avançando nessa perspectiva, podemos dizer que as pensarmos neles.
verdaeds jurídicas precisam estar sempre atraídas pelo caos, O homem está imerso num labirinto sem saídas, infi
60 A ciência jurídica e seus dois maridos
6.1
Luis Alberto Warat
nito. Imerso nele inventamos a miragem de uma fuga, in Apenas vivendo absurdamente, ppder-se-ia romper
ventamos a cultura. Ficamos com dois labirintos: um natural alguma vez o absurdo infinito (Rayuela).
e outro artificial. Cada um simulando a solução do enigma Precisamos tentar uma pedagogia do absurdo. Assim
do outro. a doutrina deixará de ser uma absurda guerra de princípi
A saída é jogar, inventando nosso lugar no labirinto. os.
As crianças estão fora do labirinto porque não têm consci Devemos minar a linguagem jurídica para aprender
ência dele. Não precisam tê-la. O labirinto é infinito. O que o direito também é o espelho da irracionalidade huma
desejo se realiza num faz-de-conta, sem angústias. na. A justiça também é o teatro do absurdo.
Fica evidente que a vivência infantil do jogo elabora Paremos de distinguir logicamente o absurdo da con
do esteticamente torna-se uma atitude essencial. A criança dição humana. Descubramos a sua poesia: temos que rei
pedagógica que quero para minhas aulas é a mesma que vindicar a língua. Para isso é preciso recuperar o papel da
desejou Cortázar para seus escritos: não distinguir o co linguagem que está em nosso próprio corpo, e com ele
mentário de uma ação e a ação de um comentário. iniciarmos uma crítica.
Assim, na sala de aula, a criação lúdica pela lingua Estou farto do ensino tradicional. Sua linguagem
gem e pela ação dos desejos passa a ser um instrumento instiuída nos coloca na pior das prisões.
de descoberta do real. É a carnavalização como busca espi Em vinte anos de docência, vivendo entre juizes, pro
ritual (A dimensão primordial do carnaval não está na em motores e advogados, mantive-me sempre fiel a minha
briaguez dos corpos e do desejo, ela está na procura de um necessidade de rebelar-me contra a falsidade do dizer. Isso
eu sem angústias. Ela é uma iniciação ao absoluto). não o perdi sequer nos momentos em que fiquei exilado.
Jazz. Jogos. Erotismo. Zen. Cortázar. Sala de aula. Pon As mentiras formam parte do real. Para mudar o mundo, é
tos convergentes. Algo extremamente sério. Ironias como preciso reinventar a mentira.
técnica de iniciação. O quebra-cabeças iniciatório. A quali A epistemologia reanima a linguagem da ciência. A
dade está na estranheza. A sala de aula precisa transfor- arte a reinventa para vivê-la. Para viver a linguagem, é
mar-se numa sessão de jazz. preciso trair as verdades.
Ninguém aprende se não se renova a linguagem. É Como Morelli, o professor deve ser um transgressor
preciso romper a linguagem para tocar a vida. total do saber acadêmico. Para que serve um professor, se
A visão da linguagem de Artaud e de Cortázar tem não pode destruir o saber institucionalizado? O professor
muitos pontos em comum-, a temática do absurdo, o precisa reencontrar seu outro na marginalidade.
deseprezo à guerra, princípios (científicos, morais), o en Cortázar escreve textos impuros que me marcam a
canto do irracional e do fantástico, a ironia frente a toda necessidade de ser um professor impuro, um ilusionista
procura de um mundo fechado pelos sistemas. Tudo isso realizador de projetos impossíveis.
deve ser jogado numa sala de aula para fundar uma didáti Como Buenos Aires, o saber acadêmico é uma capi
ca da ilusão. Aprender e começar a ser minado (diría Camus tal hipertrofiada. O restante não existe.
se houvesse sido pedagogo).
62 Luis Alberto Warat 63
A ciência jurídica e seus dois maridos
Ser cronópio é conseguir viver o presente, não colo ser, de consciência, de presença.
car o passado como futuro ou como impossibilidade de Se algum cronópio tomasse o poder, perdê-lo-ia ins
viver o momento. Um cronópio ama antes a si mesmo, sua
tantaneamente.
loucura consiste em atentar contra a sensatez c]ue gera as Fam a: São seres cinza acomodados, prudentes, aman
dependências. É uma loucura ou uma sensatez surrealista: tes do cálculo, da semiologia dominante e dos desejos líci
consiste em uma permanente procura de sua própria sere tos. Os famas sabem tudo da vida prática. Embalsamam
nidade. Um cronópio nunca pretende cjue outra pessoa suas recordações e podem dizer o que vai acontecer a
preencha alguns de seus vazios interiores. cada instante, no passar das horas, porque para eles hoje é
Um cronópio nunca pretende mudar os outros. Um
igual a ontem.
cronópio está sempre satisfeito com ele mesmo. Sua felici Os famas são caras conformistas, bem adaptados a
dade é interior, não a espera de ninguém.
tudo e aditos às obsessões.
O cronópio vive os acontecimentos sem tentar redu Os famas conseguem pôr um lugar em cada coisa e
zi-los a palavras como fazem as esperanças. cada coisa em seu lugar. Se decidem participar de uma
Se um cronópio vê uma flor, não pensa nela. Se pen escola de samba, fazem-no na comissão de frente.
sas numa flor, que é algo real, impedes que ela te inunde Quando um cronópio enche a rua de sua casa com
com o aroma. A flor estava pronta para chegar ao teu cora pasta de dentes, o fama organiza uma reunião de vizinhos
ção, porém começaste a pensar a respeito dela; e, quando para ir protestar de forma regular e oficial. Os famas não
tu voltares de teus pensamentos, a flor já não estará, por se apuram em mudar o mundo e deixam que o mundo os
que a flor não espera, murcha. Os filósofos, as esperanças
dissolva.
pensam sobre as flores; os poetas sentem as flores; os Quando uma desigualdade social os toca, gritam com
cronópios são poetas por excelência. força: que vergonha, filhos de uma mãe, e vão para o seu
Os cronópios têm muito claro que se saem dos pen clube achando-se muito bem e pensando na maneira como
samentos .chegarão aos momentos, estarão no momento, se comprometeram socialmente. Sua profissão predileta é
não usarão o passado como futuro, tampouco o futuro como a de serem advogados.
o momento que estão vivendo agora. O fama tem o cotidiano agendado. Se perde sua agen
Os cronópios sabem que se vivem o momento des da, perde parte de sua vida.
cobrem que seu ser tem magia em si mesmo, é um mila Quando os famas tomam o poder, militarizam o coti
gre. Quando se aprende a viver o momento, tudo se faz
diano.
mais profundo. A tristeza, a felicidade tornam-se profun Esperanças: Personagens inadaptados, ingênuos,
das.
que, geralmente, levam todas as bofetadas. As esperanças
Os famas e as esperanças vivem a felicidade de for sedentárias deixam-se levar pelas coisas e pelos homens e
ma muito superficial, é um acontecimento de superfície. são como as estátuas. É preciso ir vê-las porque elas não
Mas, se permaneces na felicidade, como no amor, tudo se vêm até nós.
transformará, porque aportarás numa nova qualidade de Os esperanças são cordiais e chamam verdades cien
66 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos
67
tíficas ao conjunto de metáforas que os povos usam para com torpor, com a ressaca de um resfriado que me embota
viver sua própria história. O esperança é um pára-vidas as idéias. Minha irmã traz a notícia de que Cortázar morreu.
que escuta aos outros como ouve chover. Um esperança Deixo este quebra-cabeças que estava tentando consertar,
não aceita dirigir abstrações se não são eurocêntricas e peço para comprarem os jornais e, enquando espero, sinto
reconhecidas por um professor da Sorbonne. a necessidade de dizer por escrito adeus ao homem que
Os esperanças vivem graças ao espírito cartesiano, me mostrou, com impecável perícia, como se deve viajar
não suportam as ingerências, detestam os famas sem admi em direção ao fantástico, para poder ter as realidades e
tir que eles quando fazem seus raciocínios analíticos, os evidências por enigmas; como poder transmutar em loucas
copiam. Os esperanças constituem o direito do saber. Quan as razões, para poder sobreviver socialmente a tantos mons
do um esperança leciona em uma universidade, não co tros que, nobre, militar e sensatamente, nos governam.
nhece os seus alunos e por isso os trata bem, no final não Ainda adolescente, aprendi em Cortázar a horrorizar-
lhe importam nada. me das antinomias e a gostar dos textos que transpirassem,
Quando os esperanças tomam o poder, falam de de por todos os seus poros, uma vitalidade ardentemente ex
mocracia. posta e comprometida. Durante todos esses anos, cada vez
Ponto “vélico”: (de um navio). Lugar de convergên que, como nesta manhã, me sentia lento e entorpecido
cia, ponto de intersecção misteriosa até para o construtor frente a uma folha de papel em branco, recorria a Cortázar,
do navio. Nele, somam-se as forças dispersas em todo o porque sabia que teria uma leitura inspiradora. Junto com
“valâmen” desdobrado. Ponto “vélico" do ar, lugar onde Barthes, é o autor mais anonimamente citado em meus
enxergamos o que ainda não sabemos ver. Ponto “vélico” trabalhos. Os dois são minha gramática do desejo.
do fantástico, a grande surpresa que nos espera, onde apren Chegam os jornais. Júlio Cortázar morreu ontem em
demos finalmente a não surpreender-nos de nada. É a cros Paris, ficando, desde agora, só Cortázar nos outros. Daqui
ta aparencial do fantástico. em diante, unicamente de nós dependerá que seu modo
Piantado: Em italiano, “mandar-se a mudar”. Neolo- de iluminar tudo o que olhava, descobrindo o que nós não
gismo quê define um tipo particular de louco, o maluco víamos, ou víamos cheios de lugares-comuns, não se perca
que não se crê normal se pensa muito nisso, pois os nor como um lugar literário.
mais se parecem demais a um juiz de plantão. Para enten Acabamos de perder um grande cientista social que,
der um louco convém ser psiquiatra; para entender um como diz Vargas Llossa, soube combinar um tipo de litera
piantado, basta ter bom humor. A loucura é uma saída, tura cotidiana, baseada na experiência comum das pessoas,
piantar-se e ver chegar cronópios. com elementos fantásticos, com o elemento imaginativo
mais audaz e insólito. As palavras de Vargas Llossa encer
ram uma p re c io sa d efin ição do que é ro m a n e sco ,
2.9 13 de fevereiro de 1984. São dez tristes, chuvo carnavalizado, como expressão do compromisso das lin
sas horas da manhã, em uma cidade que, quando lhe tiram guagens, com a democracia. A obra de Cortázar responde
o sol de verão, fica perdida. Estou escrevendo devagar e bastante ao ideal de linguagem política, tal como a pode
69
A ciência jurídica e seus dois maridos
68 Luis Alberto Warat
é a chave de nossa identificação. dos complexos burocráticos que tecem nosso social. As
Quando se fala de discurso dialógico, polifônico, ex sociedades burocráticas dependem de um totalitarismo que
pressa-se num certo sentido a possibilidade que o discurso não está fundado exclusivamente na unidade burocrática
dos outros oferece para um trabalho de identificação, de da tomada de decisões. Ela promove-se principalmente pelo
transferência. É um pouco de concepção do homem em apelo a uma certa unidade do campo simbólico (isso é, a
Dostoiévski, como sujeito do apelo. Para ele só no diálogo, ideologia definida a partir da noção de intertextualidade).
na interação do homem com o homem, revela-se o homem Divisão do social e dissimulação dessa divisão em nome de
no homem, para o outro e para si. Dessa forma, Dostoiévski m últiplas u n id ad es qu e, p or sua vez, resultam
propõe o discurso dialógico como fim e não como meio. eufemisticamente unificadas na forma um da história.
Cértamente a concepção do discurso dialógico extrapola o Simular a unidade é o segredo da dominação. Isso
plano em que a lingüística fixa a problemática das signifi não se consegue se não se aprende a dissimular certas
cações. Por isso o discurso dialógico, mais que um territó práticas de areia que comprometem todo o tempo e todo
rio de ação, é a própria ação que se manifesta como mun o espaço da significação. ’
do e scritív e l. O d iálogo com o e q u iv a le n te da O raciocínio está maduro para alertar sobre os peri
intertextualidade exprime a infinidade precária de toda a gos das revoltas direcionadas que estalinizam a contesta
ação. Uma só voz nâda resolve, duas vozes interceptadas ção, envolvendo-a com a mesma intertextualidade petrifi
são o mínimo de vida. cada que os revoltou. No fundo não deixa de ser uma
Afinidades, enfim, com algumas vidas amigas, que revolta totalitária. As revoltas democráticas precisam de uma
identificam para identificar-me. Ronai Pires da Rocha e meu intertextualidade.
pai.
“culturalectos” que precisam ser identificados na medida analogia e o mito da unidade, transgredindo permanente
em que funcionam como mecanismo de pressuposição dos mente - nesta expedição pelo saber dos juristas e dos de
enunciados - como uma prática estruturante, isso é, como mais sociolóides - as deformações regradas da semântica
um processo de produção dos sentidos. Gosto de chamar a cientificista. Impulso permanente de inserir-se nas coerên-
este território estruturante, a essa prática significante ou cias e nas incoerências, no jogo sem fronteiras entre o real
atmosfera simbólica: lugar da palavra. Ela seria metaforica e o imaginário, entre o dado e os seus significados. Ambi-
m en te um e sp a ço individual do qual em ergem as güidades que estão na raiz mesma das significações e do
enunciações. Com relação à intertextualidade, particular mundo. Exploração ilimitada das possibilidades da signifi
mente a situo como uma câmera de ecos que precisa ser cação que só poderiamos apontar pela via do fragmento da
sentida em uma dupla direção: como lugar de enunciação atopia, isso é, da escrita em deriva. Sinto que somente do
e como história. Enquanto história, ela é uma visão que grande jogo dos fragmentos podemos perturbar o encadea-
permite encarar o saber na sociedade e a sociedade como mento infinito das réplicas, das fingidas consistências dos
saber. A intertextualidade é uma produtividade onde se estereótipos, do lugar do dever que as instituições arranjam
operacionaliza a polifonia das significações. Trata-se, en para os intelectuais.
fim, de uma matriz anônima, onde se dá o trabalho do Pelo fragmento, podemos dispensar os catecismos das
significado. ciências sociais. Pelo fragmento, podemos constituir uma
erótica das significações. Apelando ao fragmento, posso
mostrar-me em migalhas, sem nenhum centro de gravida
de, procurando a inteligibilidade do instante, marcando a
3.7 Ler e escrever são momentos concomitantes de preferência do fugaz frente à ordem e ao dever da escrita
uma mesma produção onde se dá a Intertextualidade: den que deforma o desejo.
tro do próprio discurso, do discurso com outros discursos O fragmento é a camada da linguagem que melhor
anonimamente citados e do discurso com a história. Trata- sg oferece paxéi um encontro com s.s citações anônimas,
se de instantes de interrogação, de prolongamento do infi com o discurso dos outros. Idéias avulsas onde pode fer
nito das significações. É uma procura do conto poético das mentar-se um livro de areia. Assim, é que busco o sabor
significações. A poesia é a inflexão do jnfinito. deste livro, uma cadência de imagens, uma dissertação
destruída onde deslizam meus jogos imediatos: nas aulas,
no leito, na mesa de um bar, numa barraca da praia Brissol,
nos livros dos outros. Varejo.
3.8 Inaugurar um território de ambigüidade é o que Enfim, pelo fragmento procurarei mostrar, clandesti
pretendo com esta escritura, já que sinto a necessidade de namente, minha biografia intertextualizada.
pulverizar-me como sujeito acadêmico de enunciação. Daí
a importância de pôr à vontade meu prazer pela escrita,
escapando a três grandes fantasmas: a estereotipação, á
78 79
Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos
neste tiiste e edipia.no ponto final, tenho claro que ele Gosto de supor que Barthes, no fundo, ambicionou
tratou os objetos do mundo da mesma forma que tentou se realizar a “semiologia democrática” como semiologia do
ficei car das fotografias: procurando interpretá-las como sig desvio constante e como construção coletiva, solidária, plural
nos, perseguindo penetrar no labirinto fascinante de sua e inconclusa das verdades.
instantaneidade e de seu mistério. Assim toda a sua obra Na minha opinião, pode-se enxergar, a partir da es
será percorrida pelas exigências de uma erótica das signifi crita bartheana, uma semiologia preocupada em desenhar
cações. Sem ela não se poderão encontrar os caminhos as dimensões simbólicas do político e em mostrar o poder
para uma verdade seduzida, para o texto do prazer. das significações. Seria um jogo onde a oposição legível/
O prazer está ligado em Barthes a uma consciência escritível serviría de fio condutor para diferenciar um dis
do “eu”. O prazer opõe-se a todo sistema de leitura - ou - curso dem ocrático de outro autoritário, repressivo e
enunciação - através do qual o sujeito, em vez de existir, dogmático.
de afirmar sua autonomia, se dissolve no discurso produzi O próprio Barthes confessa-se intolerante frente aos
do, na ficção objetiva. discursos dogmáticos, autoritários e estereotipados, suge
rindo um percurso teim oso em direção a uma prática
discursiva que eu chamaria democrática e, ele, textual.
4.2 Muito antes dos cientistas políticos privilegiarem Enfim, colocando em xeque a obra legível através do
análises das dimensões simbólicas da política, Barthes já texto escritível, reivindicando o infinito das significações,
denunciava a ausência de uma teoria política da lingua tentando divulgar uma reflexão sobre o erotismo da leitura,
gem. Ademais forneceu importantes pistas para que o co indo contra as linguagens estereotipadas e o discurso
nhecimento político dos signos criasse seu próprio objeto. dogmático, desacreditando no discurso científico, Barthes
Depois vieram os inspirados em Merleau-Ponty (Foucault, entrega muitas pistas para pensar sobre as condições de
Castoriades e Lefort). possibilidade de uma prática da linguagem democrática.
D evo confessar que a minha proposta sobre a Encontro sugerida em Barthes uma prática democráti
semiologia do poder parafraseou os gestos básicos da ca das significações que é desenvolvida por meio de um
se m io lo g ia b arth e an a. Uma sem io lo g ia feita sem duplo movimento. Primeiro: a crítica, o combate, a denún
metalinguagem, no interior da literatura, formada de pe cia e a resistência às dimensões simbólicas autoritárias e
quenos fragmentos heterogêneos, provisórios, das cintilações repressivas; segundo: a prática coletiva, descentralizada e
do mundo. Uma semiologia nascida da desconstrução das desierarquizada da produção e leitura dos discursos.
formas que nelas se impuseram, que abandona a análise Detendo-me nas questões concernentes à realização
pela evocação e a insinuação poética. Semiologia essa que dos discursos democráticos, eu diria que eles se concreti
nos descobre a expressão do inacessível, que nos mostra zam como subversão das múltiplas formas com que se apre
que a poética é uma propriedade do real. Um arrepio dos sentam as versões autorizadas do mundo, versões essas
sentidos, como uma mão apontando para o céu, isso é, com as quais se reprime qualquer relação livre dos discur
para o inapontável. . sos com os acontecimentos.
82 Luis Alberto Warat 83
A ciência jurídica e seus dois maridos
Existe uma permanente luta na sociedade para impor vel - a simbolização democrática aparece como a subver
versões unívocas do mundo. É a guerra do um contra o são que desloca os centros estabelecidos para atenuar, através
outro um. da dispersão do sentido, o poder repressor das significa
Porém, as práticas sociais democráticas utilizam as ções.
palavras para o desenvolvimento de uma luta muito dife P ela am big ü id ad e ilim itad a das c o n o ta ç õ e s
rente. Uma luta que requer coragem, astúcia e malandra descentradas, a simbolização democrática institui-se no cam
gem : a a b o liç ã o de toda co sm o v isão au torizad a e po social, amenizando, por conseguinte, o imaginário das
centralizadora (cheia de medo e falsa unidade) do mundo. proibições, dos medos e das hierarquias, fundando uma
Contudo, a luta pela democratização semiológica não prática lingüística amoral.
precisa de críticos agressivos. No fundo a democracia é o A simbolização democrática parece exigir um exercí
controle da agressividade pela sensibilidade. Uma critica cio permanente de convivência com as ambigüidades, para
agressiva, além de imatura, é reveladora de estruturas poder desmanchar o imaginário castrador. Pois é a castra
aditivas, deselegante e fundamentalmente autoritária. Isso ção do seu imaginário que nos fornece imagens, como: a
Barthes o sabia, por isso sempre praticou a aristocracia sociedade ideal - transparente, virtuosa e sem conflitos - o
discursiva. bom governo e o povo unido. A ambigüidade aludida é um
Cuidado, em nome da razão, ou da crítica, você pode caminho que permite a confrontação da sociedade transpa
tornar-se agressivo, intolerante. rente, uma, indivisível, plenamente reconciliada consigo
Apelando a Derrida, apontaria a simbolização demo mesma e coerente com os processos de simbolização de
crática como a dinâmica do “descentramento”, ou seja, a mocrática.
resistência permanente ao valor semiológico da idéia de A prática simbólica da democracia passa pelo con
unidade e ao vigor totalizador das significações logocêntricas. fronto com o instituído. Ela não cessa de expor os poderes
Insisto na resistência perm anente, uma vez que a ocor estabelecidos aos conflitos que os desestabilizam e trans
rência do “descentramento" não é imunizadora em relação formam numa recriação contínua do político. É preciso di
ao surgimento de novos processos de recentralização. zer, em seguida, que o questionamento frente ao instituído
Para falar tudo, um elemento decisivo na formação pode convidar à criação de novas formas de convivência
de uma prática simbólica democrática é o perpétuo devir política, inventando poderes sociais capazes de questionar
ambivalente. As conseqüências que isso acarreta, meu caro e controlar o poder do Estado.
leitor, têm muito a ver com o estabelecimento de uma Para a constituição de uma prática democrática, é ne
nova eficácia semiológica, que dá férias aos demônios do cessário, a meu ver, que o poder, a lei e o saber fiquem
dogmatismo. expostos simbolicamente à sociedade para a reconstituição
Frente à tendência autoritária, - que surge da confi permanente do social e para o controle participativo do
guração das obras legíveis, de leitores atrapalhados e re poder do Estado. Neste ponto, estou com Lefort. A demo
primidos pela redução do infinito das significações ao finito cracia precisa ser sentida como uma invenção constante do
centro localizado, onde, precisamenté, se constitui o legí novo. Ela se reconhece no inesperado que resiste aos equi-
H<1 Luis Alberto Warai A c iê n c ia jurídica e seus dois maridos 85
líbrios demasiadamente sólidos de uma ordem de proibi monológico, que pressupõe um leitor que recebe ou rejei
rdes. Obviamente o novo de que falo não é uma fuga dos ta o discurso como um produto acabado, exterior a ele. A
estereótipos à procura de uma readaptação autoritária dos escrita legível exalta o valor da linearidade, provocando o
discursos. Não é o novo pelo novo. efeito da unidade de sentido. Trata-se de um efeito repressor
No império dos signos, lê-se. da abertura do infinito das linguagens. No discurso escritível,
Os signos que nos foram legados pela sociedade e o leitor põe-se a escrever com o autor.
pelos nossos pais fazem de nós, também, pais e proprietá Assim, com a proposta de um texto escritível, desta
rios de uma cultura que precisamente a história transforma ca-se a questão do infinito das significações, colocando-
em natureza. Uma cultura camuflada que é toda uma visão nos, desse modo, frente ao dilema de entender o que va
política do mundo. mos fazer com ele. O leitor do escritível acaba com um
É impossível criticar esse mundo empregando preci mito da progressiva precisão conceituai, deixando-nos em
samente os signos que os constituem. Precisamos repensá- troca o problema de fixar certos fins para o infinito das
los. Questionar seus limites. Transformar a língua num es significações. Como seria, por exemplo, o de desvendar a
corpião que crave o ferrão na própria cabeça. teia de segredos em que se organizam as culturas para
preservar as sociedades da democracia. O leitor do escritível
encaminhar-se-ia então para desvendar os segredos que
4.3 Em S/Z ele introduz uma posição chave para en sustentam o poder de uma cultura.
tender as regras do jogo de sua produção: escritível e legí Ampliando o sentido da oposição entre o legível e o
vel. escritível, diria que, para Barthes, o recurso ao escritível
O escritível é a rebeldia do leitor (sua resistência a demanda um certo desvio do que deve entender-se por
ser castrado) que reclama o direito de ter pleno acesso ao uma operação de interpretação. Apela para isso ao sentido
encantamento do discurso, a volúpia da escrita. A procura que Nietzsche atribui à palavra interpretação: mais que atri
do e scritív e l ex ig e uma leitu ra d ifícil, dem anda o buição de um sentido mais ou menos fundamentado, mais
desgarramento, a perda consciente do regime de leitura da ou menos livre, é a apreciação do plural com que um texto
escrita adormecida, que pode ser focalizada como contra é feito. A interpretação, mais que o reconhecimento de um
valor do escritível, isso é, a escritura legível. O segredo de sentido, é a consagração de uma galáxia de significações.
lima fala escritiva é que fica sempre uma interpretação Por último, o legível aponta ao poder do narrador de
muito anêmica se não é transferida completamente para conduzir o sentido, comprometendo-se com um sistema de
meu regime de leitura. fechamento ideológico das significações do ocidente. O
narrador pretende assim entregar um produto acabado; e o
O leitor do escritível só p o d e ser um cronópio. escritível é a exploração como ato produtor de leitura, é o
plural cru das significações: a produção sem o produto / a
O legível é o discurso que eu não poderia reescrever poesia sem o poema / a estruturação sem a estrutura / a
ntil' lleai' preso a uma gramática estereotipada. É o discurso ciência sem as verdades / a universidade sem os sábios.
86 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 87
cidade dos corpos e das emoções. irreconhecíveis, hiediante a teatralização de uma nova lín
A escrita barthesiana é um território pleno de sonhos gua (é a proporção de outra retórica).
e desejos. É o produto fragmentado de um escritor erótico, Esta última questão já a explorei em parte falando de
à deriva. Cortázar. Acrescento: atualmente não existe linguagem ex
Por detrás de um conjunto de assuntos heterogêneos, terior à ideologia burguesa. Escutamos à exaltação das men
o sentido de sua obra pode ser preenchido pela eroticidade. sagens e não as mensagens.
Sua proposta redunda em um olhar erótico sobre os signos. O olhar erótico do signo permite a Barthes resistir à
“Tout ce qui est erotiquement surdeterminé”, diz em “Sollers história repressiva de nossas enunciações. Por meio de um
escrivain”. Para ser lido, é preciso escrever sensualmente, signo erótico, construiremos um novo discurso abalando a
acrescenta. moral das palavras, os preconceitos das linguagens.
O tema é explícito nos “Fragmentos de um discurso Esses preconceitos são fortíssimos no discurso jurídi
amoroso”, mas percorre como uma segunda natureza toda co. Para os juristas, as transgressões de sua linguagem pos
a sua produção. “Fragmentos para um discurso erótico” suem um poder de ofensa pelo menos tão forte como as
podería ser o título para suas obras completas. A mesma que tipificam a injúria.
volúpia de Sade, de Fourier para juntar o sistema social, a Aplicando Fourier ao erotismo semiológico, digamos
erótica e a fantasmática”. A mesma obsessão enunciativa que não existe normalidade discursiva. Precisamos refazer
contra o corpo e os desejos imolados à alma humana. Tal as significações com nossos desejos e não condicionar os
vez a escrita barthiana tenha um pouco dos dois, seja ao desejos às regularidades sígnicas.
mesmo tempo uma escrita maldita e utópica, sádica e A palavra deve ser sensual, transgressora da censura
contestatória. Sade, Fourier, no fundo logotecas (fundado dos puristas, dos protocolos. O erotismo semiológico é uma
res de línguas), como Barthes. guerra (jogo, teatro, riscos). Ele não tem medida. Enfim, o
Os três sabem produzir textos. Quando a escrita coe que pode aprender-se, procurando o erotismo das pala
xiste com fragmentos de nossa cotidianidade é que temos vras, é que a descoberta da verdade, como a do sexo, na
logrado o texto. Este está formado por fragmentos de signi hermenêutica ocidental, não leva às marcas de uma prática
ficado que sabem emigrar para nossa vida. O autor morre e erótica, dependem de um pornógrado... apenas um con
a idéia fica expropriada. teúdo grosseiro.
Há três fórmulas que gostaria de produzir ç comentar O erotismo semiológico é o futuro textual. Por ele
em torno do comportamento erótico dos signos proposto não se volta para trás da linguagem. Assim se escreve para
por Barthes: dialogar com as idéias desse corpo e perder-nos no plural
a) o erotismo de uma leitura garante sua veracidade; das significações. Aproximando-nos do plural, adquirimos
b) o lugar da leitutra deve ser sempre erótico, um o valor erótico do sentido, estamos perto do orgasmo das
plural de encantos; significações.
c) o viés erótico isolará fragmentos de uma nova lin É pena que Barthes e Cortázar, morando ambos em
guagem , da id eo lo g ia burgu esa, segundo fórm ulas Paris, puderam amar-se apenas em meu discurso.
Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 91
desejos.
Dessa maneira, Barthes se desliga da intertextualidade
4,6 Certamente a semiologia de Barthes é o romance consagrada para todas as ciências sociais, buscando um
que ele nunca assumiu ter escrito. O romance teórico que plural sem indiferença. Procurando a liberação política da
lem por personagens o observador e a coisa observada. sexualidade numa dupla transgressão: do político pela se
Em “Fragmentos de um discurso amoroso”, na “Câ xual e vice-versa.
mara Clara”, em “Barthes por Barthes”, nota-se claramente
<> desempenho romanesco de sua escrita. Precisamente no
Início deste último texto, ele confessa o seu desejo de ser 4.7 O fragmento é seu ideal, a escritura curta respon
um personagem de romance. Tornar a ciência ficção, para de nele seu desejo de armar um tecido de significados
poder fazer com a linguagem, ao mesmo tempo, conheci definíveis como um mero território tácito. Gosta assim do
mento, combate e prazer. Sem dúvida, pela semiologia, texto sintomático, de esboços de sentido que possam con
Barthes procurou produzir não uma comédia do intelecto, vidar a uma leitura flutuante.
mas seu romanesco. Os atos de leitura flutuante são comparáveis, em al
Sua semiologia, como romance do saber, em sua con guns pontos, à escuta que relaciona o analista com o dis
tinuidade, procede pela via de movimentos (que também curso do seu paciente.
formam parte de minha estratégia): a linha reta que insiste, Tenho a impressão de que Barthes sonha com um
ampliando uma posição, um gesto, uma idéia ou uma ima leitor que saiba ler como escuta o analista: fugindo ao blo
gem; e o ziguezague, a contramarcha, a contrariedade vol queio imposto pelo sentido linear de uma história, pelo
tada para a decomposição de todas as formas da consciên dito pela epiderme dos significantes, reparando nos silên
cia hipócrita, dos efeitos cultivados que formam entre si a cios, sensibilizando-se nas reiterações, unindo os sentidos
mentalidade totalitária. que estão na pele da escrita com certos tons, com alguns
Suspeito que, para Barthes, a tarefa histórica do inte suplementos e com certos encantamentos construídos de
lectual é a de acentuar a decomposição de uma mentalida costas à ordem manifesta do discurso. Enfim, um leitor que,
de opressora. Decompor e não destruir, para poder, fingin desaprendendo a ler, aprecie o plural, com que é feita
do ainda pertencer a ela, decompor-se, derrapar e arrastar toda a fala. Um leitor que, desaprendendo uma forma
tudo quanto consegue agarrar. Barthes se assemelha muito esclerosante da leitura (plastificada por algum sistema sin
â "Maga”, aquela heroína de Cortázar no “Jogo da Amareli gular: ideologia, ciência, a literatura dos famas), aprenda
nha", que não suportava que lhe colocassem as coisas em um outro tipo de atenção sobre a fala dos outros. Talvez a
lermos de método. esse preço possamos despertar para o interminável do dis
Com sua semiologia, procurou escrever dia a dia um curso, que é uma forma de despertar para o infinito do
texto ardente, mágico, em um texto que nunca termina, mundo. Isso é o que transforma uma escrita legível em
«tlbmelendo assim seu prazer só aos imperativos de um escritível.
livro liberto, de um delicado adivinhar-se do “eu” dentre os Quem sabe, propondo a existência de um leitor flu-
92 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 93
lua Mc, não seja uma maneira de propor a entrada num jogo ser situado como efeito de combate e como revelador da
cujo primeiro tempo consiste em adivinhar que se devem microfísica dos segredos sociais.
adivinhar as regras para jogar. Isso sintetiza bastante a pro Tanto ele como eu, suspeitamos das ciências sociais
posta barthiana. Minha diferença com Barthes: eu digo qual e as censuramos por produzir discursos que se simulam
6 a primeira regra. indiferentes, como respondendo a leis das quais os sábios
Uma pista para aprender a jogar com Barthes não se constituem em procuradores.
seria a carnavalização? A censura, para Barthes, cai por terra cada vez que é
Voltando ao tema do fragmento, trata-se de empregar possível dramatizar a ciência, devolver-lhe um poder de
a letra de um discurso para deslocar, para propor as regras diferença, um efeito textual; ele gostava dos sábios nos
de um jogo, mas não de conquistar, de instalar uma lógica quais poderia descobrir uma exaltação, um delírio ou pelo
e uma coerência demasiado enceguecedora, como para menos um sobressalto, uma emoção.
permitir ao ouvinte tramar, desenhar uma outra linguagem Por exemplo, ele pensa que, por não ter sabido exal
que vai-se construindo através da primeira, dentro e fora tar-se, é que a semiologia não evoluiu muito bem: muitas
dela. vezes ela não era mais que um murmúrio de trabalhos
O fragmento tem, assim, a possibilidade de um com indiferentes que diferenciavam o objeto, o significado e o
bate, de uma luta contra as exaltações da objetividade. Uma corpo. Como esquecer, entretanto, lembra Barthes, que a
pequena máquina de guerra montada contra as tiranias uni semiologia tem alguma relação com a paixão do corpo: seu
versitárias do sentido verdadeiro, por ser o sentido reto da apocalipse e/ou sua utopia.
vida acadêmica. O fragmento serve a Barthes para abolir a Deleito-me lendo agora em Barthes: sempre pensar
lei do contexto institucionalizado, o sentido depravado das em Nietzsche: somos cientistas por falta de sutileza. Imagi
dissertações, fundando, como ele mesmo diz, um tática no, pelo contrário, utopicamente, uma ciência dramática e
sem estratégia. sutil voltada para a reviravolta carnavalesca da proposta
Um belo sonho a aula por fragmentos. Seria um modo aristotélica, e que ousasse pensar, pelo menos num relâm
tlc permitir a existência de alumautas. pago, que só há ciência na diferença.
De minha parte, suspeito da ciência e a censuro tam
bém por suas pomposas procuras da verdade, por sua ou
sadia de pretender refletir o mundo. Tolero melhor (sem
*1.8 A idéia de ciência em Barthes fica como uma pre com um gostinho amargo) nomear a ciência com aque
lembrança alegórica, um lugar onde estamos certos de que la fala que poderia ser reconhecida com o uma escuta
H verdade não está. Ele imagina uma ciência - muito vasta - alcagüeta, isso é, o segredo com que os poderosos domi
I1H dIUinciação da qual o cientista se incluísse, enfim, seria nam (explicitam o segredo do rei, dos despotismos ilustra
H ciência dos efeitos de linguagem: a semiologia para ele. dos, dos uniformados ou dos jalecos brancos).
: Dessa forma, ele toma partido contra o sonho de uma Toda a microfísica do “poder-saber” assenta numa
üinUUie pura e a favor do prazer de um léxico que pode microfísica do segredo-medo, esconde uma intertextualidade
94 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 95
cie en ig m as e an g ú stias. R evelar essa segu n d a A sedução está no que permite o uso permanente,
intertextualidade é uma postura de combate que esvazia o performativo das palavras, um jogo que revive a fantasia
lugar do “poder-saber”, perversamente respaldado pelas de dispor da linguagem.
palavras de verdades. Como diz meu amigo Giancarlo Reuss: Erotismo e pornografia são dois significados em opo
fazer uma ciência social para emancipação é burlar as re sição alegórica que permitem iluminar em Barthes o que
gras de algum jogo. Desde esse ponto de vista, a ciência é ele sente como falso contraste lingüístico entre a denota-
uma cumplicidade no conhecimento do mal. ção e a conotação, entre o grau zero do discurso vazio do
O projeto de Barthes aponta, no fundo, para um pro desvio. Para Barthes, cada vez que se acredita na verdade,
fundo questionamento da própria prática epistemológica, precisa-se da denotação.
para pôr em seu lugar a semiologia como um simples pro Possivelmente o discurso da sedução pode consistir
jeto de escritura em torno da moralidade dos signos. É uma na promoção de um escândalo: dizer ao outro o que se tem
busca do im aginário carnavalizado, de um trabalho horror de ouvir, aproveitando-se do racional, desde um
semiológico feito sem a tutela de um grande sistema. território onde o sonhador e seu sonho não estão distancia
dos por categorias do entendimento. Enfim, a morte de
uma tradição em torno do sujeito de conhecimento.
4.9 A semiologia deve ocupar-se, assim, das verda Como diz Marilena Chauí: o que caracteriza o sujeito
des seduzidas. A sedução é uma idéia que vem de Nietzsche, do conhecimento e o sujeito da ação modernos é justamen
que a emprega como desvio de sentido. Nessa direção, a te o fato de que este ocupa, com relação ao mundo, isso é,
sedução implica o fascínio da divisão, da cumplicidade, da com relação à experiência a ser conhecida e a ser realiza
ambivalência. Na sedução, não há termos individualizados, da, exatamente o mesmo lugar que o poder ocupa perante
mas duais, que se encaixam pela atração uns nos outros. É a sociedade: está fora, acima, antes da experiência. Sobre
a regra de um jogo implicando a luta, o segredo. Num voa o mundo para dominá-lo intelectualmente, produzindo
discurso de sedução, a verdade é um lugar vazio que ad a objetividade. Nesse lugar, separado, neutro, atemporal,
quire as formas de um ritual, dirigido à permanente sus aespacial, ahistórico, soberano, nesse “lugar do real”, insta
pensão dos sentidos, impedido de converter-se num dis la-se o sujeito do saber e da ação, de sorte que o lugar do
curso monológico. saber e o lugar do poder possuem exatamente as mesmas
Os segredos da sedução rompem os preconceitos que características. Desse modo, o humanismo moderno, fonte
articulam o “bon sens”, que articulam as pretensões de do Estado moderno (a idéia de soberania popular) e sujeito
onipotência da verdade. A palavra sedutora, como um gran do saber moderno (a consciência) gera dentro de si mesmo
de Casanova, triunfa quando consegue mostrar-se como a figura moderna do poder - isso significa que o saber e o
uma possibilidade, como uma disponibilidade absoluta, mas poder possuem vínculos internos, que é um engano Imagi
não como um corpo estruturado. O que é sedutor nas pala narmos que o poder usa (bem ou mal) o saber através das
vras é tudo o que está ao lado de Eros, ou seja, o que em técnicas. Nós nos enganamos quando percebemos que o
llngüíslica chama-se conotação. saber é ele próprio exercício de poder - sobre a natureza,
96 A ciência jurídica e seus dois maridos 97
Luis Alberto Warat
distribui com fartura, mas calmamente. Aí está um dos se escritível que, como presença de desejos suspensos não
gredos de Barthes: a cortesia impecável como insuspeita suporta as práticas de ensino, sustentadas na palavra
arma de subversão. Ele entendia que a força subversiva repetível. Não se aprende repetindo, talvez sonhando, como
das palavras estava mais no desvio inesperado do seu sen Barthes.
tido que na fetichização de alguns estereótipos neurotizados.
A palavra calma, serena é uma palavra democrática, que
acolhe e estimula as diferenças sem pô-las em conflito, e
que convida a vivê-las em pluralidade. Um convívio que, 4.11 Em Barthes por Barthes, ele registra sua pro
evidentemente, não exclui os desenvolvimentos dos anta funda antipatia sobre a doxa com a qual faz referência às
gonismos. vozes arrogantes do natural, com as quais se consagra o
Visivelmente ele sonha com a erotização do ensino; “co n sen su s” p equ eno-bu rgu ês. No fundo, a doxa é,
é o próprio jeito de uma pulverização, de uma multiplica barthianamente falando, um conglomerado de preconcei
ção de sentidos flutuantes nunca fixados pornograficamen- tos naturalizados com o que se simula vencer as incertezas.
te pelas intolerâncias do conceito unívoco. Tudo parece No grande jogo dos poderes das palavras, a doxa
indicar que para Barthes as pequenas diferenças levam ao expressa o espírito majoritário da racionalide cotidiana.'’É o
racismo, mas a pluralização sem freios conduz para uma discurso vencedor das arrogâncias cotidianas. É a ética das
democracia sem racismos. Por aí podemos despertar para a cosmovisões estereotipadas do mundo.
constatação da existência de democracias racistas, totalitári No entanto, posso dizer - prolongando os efeitos
as, cartesianas, que em nome de uma sociedade unificada barthianos - que os cientistas não gostam da opinião cor
não cessam de guardar uma elegante compostura retórica rente. Impõem, assim, uma espécie de racismo semiológico
para estimular as sutis formas do simbolismo repressor. que desvirtua (colocando no regime da infracompreensão)
Nota-se aí o contraste entre o desvio cortês da palavra todas as formas cotidianas de racionalização do mundo.
barthiana e os eufemismos elegantes do racismo democrá- Surge, desse modo, uma reserva de opiniões da máxima
lico. periculosidade. Uma doxa autoritária im pudicam ente
Como professor, Barthes se mostra em permanente purificada, que recebeu o hoje vulgarizado nome de
estado de enunciação. Ele nunca preencheu seu lugar como episteme.
autoridade ou como exemplo. Ele foi sempre um professor Em meu entendimento, a doxa, em suas grandes li
de areia que, servindo-se da cortesia de sua voz, combate nhas, é uma pluralidade de emoções, valores, dogmas, fi
as unidades indiferentes da ciência, pregando por um jogo guras estereotipadas e pré-noções. E a episteme 6 sim
de signos seduzidos, significativos, relevados por um dis plesmente uma doxa politicamente ignorada como tal, pílllt
curso insólito, onde se encontram saberes imprevisíveis, preservar os efeitos sociais da verdade. É o discurso ven
provoeadores de uma cosmoaula, onde se pode desfrutar cedor das arrogâncias filosóficas.
dilN significações que só ocorrem uma vez. Os filósofos, os cientistas, os juristas comungam, ft
Pode ver-se que a didática da sedução é um discurso margem de suas discrepâncias, com um espaço cltí dronçHM
100 Luis Alberto Warat 101
A ciência jurídica e seus dois maridos
Informuladas que servem para responder anonimamente k miticamente pura, e da conotação para situar os compo
ao interrogante: como se pensa cientificamente? nentes históricos que a determinam em um gesto conceituai.
Trata-se de uma resposta logom ítica que vai-se Sobre tal ilusão, a denotação surge na lingüística como sen
esclerosando em sua própria história até formar a opinião tido primeiro, diretamente colado no mundo. E a conotação
corrente dos cientistas. como um jogo situacional, espúrio, onde a objetividade se
Claro que, quando de juristas se trata, o consenso perde pela emoção, pela subjetividade, ou pelas sutis e
pequeno-legalista, sobre o que é fazer ciência do Direito, agudas interferências do bicho-papão da burguesia, isso é,
complica-se bastante, ao misturar as efervescências difusas a ideologia.
da intertextualidade, gerada pelo cotidiano, dos cientistas Pela denotação, diz Barthes, o texto finge voltar à
com as versões - emocionalmente carregadas - do funcio natureza da linguagem, a linguagem como natureza. Pode
namento social e a natureza ontológica do Direito. ver-se que, ao longo de toda a história da lingüística, a
Para dizê-lo com outras palavras, existe uma conotação conotação fica como a Gata Borralheira das significações,
fundante dos territórios científicos. Trata-se de um regime engendrando por princípio o duplo sentido, corrompendo
que esconde certos segredos, provoca alguns medos e en as mensagens nada menos que com os desejos, os medos,
cerra as verdades em discursos arrogantes legíveis. as ternuras, os protestos, as desculpas, as músicas de que é
Um vazio repleto de retórica, um nível popular de feita a língua viva.
conotação, uma caricatura de certezas que combati insis Barthes, como um belo príncipe, descobre a conotação
tentemente nos últimos anos: o senso comum teórico dos travestida no baile das denotações e faz dela a rainha de
juristas. sua semiologia.
Para Barthes, a doxa se combate através do parado Assim, Barthes mostra como a denotação finge ser o
xo. primeiro dos sentidos, quando não é mais que a última das
conotações (aquela que simultaneamente parece inaugurar
e fechar a leitura), o mito superior, graças ao qual o con
4.12 No trabalho semiológico de Barthes, uma oposi ceito nega o plural em que todas as significações se consti
ção clássica é dissolvida: conotação/denotação. Assim, uma tuem.
falsa inocência é denunciada. Ele encontra a denotação Você já escutou aquela música em que Caetano canta
como uma velha de idade, vigilante, astuta, teatral, encar o vampiro de óculos escuros? Pois suspeite de alguma se
regada de representar a inocência coletiva da linguagem. É melhança de tal vampiro com a denotação. Ela tenta sugar
um sistema de significações jubilosamente neutro, destina o plural, as duplicidades, as ambivalências, o escritível, o
do a imobilizar um imaginário racionalista: a crença no re polissêmico das significações, deixando-lhe, em troca, seu
ferente. impossível excludente (o mito da univocidade que suga a
Barthes pensa que unicamente tem valor diferenciar liberdade).
H Conotação da denotação no campo da verdade. Cada vez A d enotação, no fundo, é a estereo tip ação da
tUie acredito na verdade preciso da denotação para afirmá- conotação, fi como bom estereótipo não deixa de ser um
102 Luis Alberio Waraí A ciência jurídica e seus dois maridos 103
Um no tratamento da questão ideológica como crença falsa consciência. Ela é um sistema de significados destinados a
ou falsa consciência. Esse posicionamento pressupõe, en disciplinar os pensamentos e precisa, portanto, de uma
tre outras coisas, a possibilidade de imacular alguns signifi atividade social para processar sua história. A ideologia,
cados como unidade. Para isso se precisa contar com um qualquer que seja o uso de seu termo, se processa na
conjunto de idéias e valores, com uma ordem simbólica história, e não na consciência.
que guie os comportamentos epistemológicos coletivos. O conceito de ideologia, do modo como está sendo
Enfim, ao postular a ideologia como falsa consciência, omi focalizado, tem muito a ver com a ilusão veiculada pelo
te-se a existência de uma consciência das verdades que se pensamento científico sobre a sua própria autonomia.
precisa aceitar, para pressupor a existência de uma consci Agora, aprazer-me-ia examinar a relação saber-poder
ência falsa. para d izer q u e, qu and o se p re te n d e , atrav és da
Por esse motivo, prefiro desviar a questão do ideoló epistemologia, sanear os pontos obscuros da prática cientí
gico da temática da consciência falsa, relacionando-a pre fica social, mais que um “alvejamento” se obtém um poder.
ferencialmente à idéia da consciência da unidade. Pórque na instância epistemológica é onde se cozinham as
A ideologia é também consciência verdadeira. Para armadilhas semiológicas, se mistificam os segredos que trans
referir-me nos últimos anos (obsessivamente) à questão da formam todo e qualquer discurso da ciência social em obras
consciência verdadeira, no conhecimento do direito, in insossamente legíveis.
ventei a expressão: sentido comum teórico dos juristas. Para satisfazer tal objetivo, a epistemologia se nutre
Valería a pena também não esquecer as relações en de uma constelação de representações de base (senso co
tre o saber e o poder que, a partir de Foucault, mantêm mum teórico), de segredos dissimulados como processos
ocupados os epistemólogos (algo assim como a Frente Li compreensivos, isso é, se realiza como ideologia. Trata-se
beral dos epistemólogos). de uma forma autoritária de regulação do saber que guarda
À medida em que vou-me inserindo na análise, des uma distância ponderável com o funcionamento econômi
cubro o modo como se apresenta o ideológico nessa rela co e social. São os “acordos silenciosos de Wittgenstein”.
ção. Acho que o sinal mais sutil para caracterizar o ideoló Dessa análise, vou depreender uma grande suspeita
gico aqui é reconhecê-lo como processo de castração polí difícil de confirmar: os perigos das ciências sociais não
tica da escrita científica. Estamos dessa forma ampliando a estão unicamente em ficar prisioneiras das categorias bur
idéia da consciência da unidade, incorporando-lhe, como guesas, mas ém ficar presas a uma doxa chamada “episteme".
componente de peso, o fato do controle político do saber, Possivelmente encaixe como uma luva no saber do direito,
mediante o simulacro da unidade. embora, como aponta Leonel Rocha lendo este manuscrito,
Embora esteja empregando a palavra consciência (bus possivelmente a fragmentação histórica dos saberes das
cando talvez um certo efeito contradiscursivo na mentali ciências sociais faça com que a maneira ambígua em que
dade dominante), isso não me impede de registrar minha se articulam esses discursos falsifique a suspeita que estou
absoluta desconfiança em relação às tentativas de situar a levantando.
Ideologia como uma forma particularmente elaborada da Daí o interesse em produzir análises referidas â fun-
106 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 107
algo muito complexo. É a mais complexa das místicas. O tornar-se conhecidos, um pacto para que dois conhecidos
lugar mágico mais complexo. Os conflitos que unicamente compartilhem uma cama, para que dois cadáveres prati
a magia pode resolver. quem o simulacro de uma sexualidade devida. Duas peri
Os dois que se encontram vêm carregados com um ferias que se unem. Uma zona prostibular altamente tolera
longo passado, geralmente de adições, que resiste a ser da socialmente.
desarmado. Frente a cada possibilidade de amor, a arma- Dona Flor, de Jorge Amado, teve dois conhecidos
çáo de defesas tende a crescer, a fortificar-se. por maridos. Em nenhum caso, conheceu o amor.
No começo de um caminho que leva para o amor, os O encontro de duas pessoas na palavra está longe da
encontros são periféricos. As reservas selvagens não inter zona de reserva. Uma relação carregada de palavras unica
vém, observam a distância. Quando uma relação cresce em mente determina um encontro de conhecidos, na periferia.
intensidade e intimidade, então as reservas começam a apro O encontro de duas reservas selvagens só se pode produ
ximar-se, a encontrar-se mais e mais. Isso pode começar a zir nos silêncios, onde as palavras morrem para permitir
ser chamado amor. que os corpos aproximem seus sentimentos. As reservas
A periferia nunca é uma zona de amor. Quando duas selvagens exigem a leitura dos corpos. É uma semiótica
periferias se aproximam, dá-se um encontro entre conheci dos silêncios.
dos. A leitura dos corpos tem que estar vazia de palavras,
A grande maioria das pessoas se engana, confunde exige um entendimento corpo a corpo. Um corpo que sen
os conhecidos com o amor. Uma grande falácia com um te o outro sem traduções. É um diálogo das energias.
triste final, no mínimo, de desilusões. As palavras sempre são péssimas tradutoras dos sen
Para amar é preciso encontrar o outro em sua reserva timentos. Quando falo de ler o corpo do outro, não penso
selvagem. Algo duro, que não é fácil, obriga cada parceiro em palavras, penso numa leitura desde o sentimento, o
a passar por uma revolução que o transforme, porque se entendimento sem porquês.
queres qncontrar a alguém em tua reserva, terás que per Para sentir é necessário esvaziar o corpo de pensa
mitir que essa pessoa chegue a tua reserva. Tua reserva mentos. Não existem orgasmos com palavras.
selvagem terá que voltar a se desarmar, terá que ficar ab O sexo geralmente é periférico. A não ser que as
solutamente desarmada. Algo que traz muito risco. reservas selvagens se encontrem. Fora desse encontro, há
A periferia de cada um está muito longe do próprio dois corpos que se conhecem , dois conh ecid os que
devir da identidade. A periferia é o lugar onde cada um de intercambiam sua sexualidade diminuída.
nós termina. A última fronteira que nos aproxima do mun Para permitir que alguém ingresse a mirar a reserva,
do. Uma região altamente enganosa, onde prolifera todo é preciso estar desarmado, para o que é preciso não ter
tipo dc contrabandos e defraudações. medo. O medo nos arma.
As periferias geralmente servem para tornar desco Temos duas formas de viver: orientados até o medo
nhecidas as reservas selvagens. ou orientados até o amor.
Quando as pessoas se casam, assinam um acordo para O modo de viver orientado até o medo nunca pode
112 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 113
levar-te a uma relação profunda, das que permitem a aber também perde seus próprios medos, cria-se uma confian
tura das reservas selvagens. Teu medo não permite que o ça. Quando alguém te habita, é porque confia em ti.
outro chegue profundamente a ti e te transforme, te permi À medida em que a confiança cresce, o amor tende a
ta crescer. aumentar, a existência tende a ser mais generosa contigo.
A pessoa orientada até o amor é a que não tem medo; O medo é sempre filho da desconfiança. Pensemos
permite-se viver os riscos do presente, não tem medo dos no ciúme, é o medo pela falta de habitação.
resultados e das conseqüências do aqui e agora. Quando Quem não tem confiança em si mesmo não pode dá-
estamos orientados ao amor vivemos atuando totalmente. la ao outro.
Sem cálculos. Quando duas pessoas se unem afetivamente com medo
Os que vivem orientados até o medo estão sempre não há amor, existe dependência, exploração, manipula
calculando, planejando, tentando fazer acordos, tentando ção, autoritarismo, poder, controle, possessão. Não existe o
segurar o outro com palavras. O medo nos orienta para cuidado. O amor é uma teia de cuidados. Amar é cuidar do
procurar refúgios que nos salvem. Porém esses refúgios outro.
não salvam nada, unicamente nos fazem perder a vida. O amor é raro. Deves abandonar o medo. O estranho
O próximo momento não tem nenhum sentido para o é que temos tanto medo e não temos nada a perder. Des
amor. Nesse momento, tudo é delicioso. O medo não pode nudos sem roupas e temendo por elas.
fazer que o perca. Unicamente na plenitude dos instantes Ninguém pode sair da periferia com medo. O medo
se pode amar. Por isso o amor é raro. nos aprisiona nas periferias do outro e de nós mesmos.
O amor é um raro florescimento, ele unicamente pode O pior dos medos é o da própria solidão. Uma rela
florescer quando não há medo. Se estamos cheios de medo ção baseada no medo da solidão não é amorosa.
não existe espaço em nosso corpo para o amor. A morte quitaria teu corpo. Antes que isso aconteça,
Quando não tens medo, não há nada que ocultar, entrega teu corpo ao amor. Para um amante não existe
então tu podes ser aberto, desarmado, tu podes retirar to morte, para um amante cada momento é uma morte (Osho).
das as tuas alfândegas e podes convidar o outro a penetrar A reserva selvagem é um espaço de autonomia, ela
em ti para que habite tua reserva salvagem. se alimenta da felicidade não da necessidade. É uma zona
Tu unicamente podes habitar-te se perdes o medo, de afetos abundantes que se deseja compartir.
tua terceira perna, se abandonas os porquês. O diálogo de duas reservas selvagens é um estado
Se tu não te habitas, não permitirás que o outro te em que se comparte a felicidade sem nenhuma condição,
habite. sem nenhuma exigência.
í’ preciso amar desde o centro de si mesmo, isso é a Na reserva selvagem, o outro pode entrar e sair à
reserva selvagem. vontade. É uma zona onde as gaiolas douradas não podem
Kntretanto, também é necessário permitir que o outro construir-se, desmoronam-se imediatamente. Se existe uma
encontre seu centro em nós. gaiola dourada, é porque ainda não atingimos a reserva, as
Quando tu te habitas, perdendo os medos, o outro reservas não estão integradas.
114 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 115
Aprendí a não fazer do amor uma coisa frívola. Estou ponsabilidade é sua, é a melhor forma de abrir as reservas
aprendendo a não fazer do amor uma ocupação da mente de ambos. Pensar que o outro está equivocado é fechar-se,
(está resultando-me estranho escrever este texto, a ajuda construir a armadura, fugir para a periferia.
que pode servir para outros, para minha própria vida está Os sentimentos são contagiosos. Esse contágio surge
tornando-se dispensável); tampouco quero um afeto amo quando exercitamos o que o Dalai denomina: a compaixão
roso que seja unicamente uma satisfação do corpo. Quero pelo outro e por si mesmo.
o amor como uma procura interna, com a ajuda da mulher Essa idéia de compaixão não envolve nenhum senti
que ocupa o lugar da mestra. mento de pena ou piedade. Falo de uma compaixão enten
O amor é a grande permissão para que o outro me dida como simpatia, como alteridade. Refiro-me à possibi
habite sem nenhuma Condição. lidade de entrar no sentimento do outro, entendendo assim
O outro tem que chegar para habitar-me unicamente a diferença de seus pontos de vista. A compaixão de que
trazendo seu mistério. Permanecerá enquanto tenha esse estou falando permite a produção com o outro da diferen
mistério, não pode perdê-lo nunca, se quer que o amor ça. A produção da diferença com o outro, que é uma forma
não morra. de inscrever com o outro o novo na temporalidade, permi
A chave é sempre para que o mistério não morra. É te dar os primeros passos na produção do amor, ou seja, na
preciso permanecer no centro, na própria reserva, ela é produção de um relacionamento sadio.
sempre jovem. As periferias envelhecem e fazem morrer o
amor. Não existe mistério em nenhuma periferia, nas peri
ferias se confunde o contrabando, a fraude com o mistério. 5.3 O amor é doloroso porque cria os caminhos da
A reserva selvagem, por ser o inconsciente do amor, transformação, da felicidade. Toda transformação é doloro
está fora do tempo, não tem temporalidade. sa porque há que deixar o velho pelo novo.
O velho é familiar, seguro, porém letal. O novo é
absolutamente desconhecido. Com o novo, é impossível
5.2 Uma das piores armaduras é a de pensar que o empregar a razão. O ouro que quer ser purificado tem que
outro é o culpado se alguma coisa sai mal. É importante passar pelo fogo.
pensar sempre que a responsabilidade é nossa. Assim aju O amor é doloroso porque nos deixa sem armaduras,
damos o crescimento, projetando a responsabilidade no vulneráveis, o amor nos coloca no risco, fora dos cálculos,
outro, impedimos toda transformação futura. É sempre me fora dos portos seguros.
lhor pensar na própria responsabilidade e modificar. Sem Podes evitar as dores do amor evitando o amor. Esta
pre é bom abandonar as qualidades que trazem problemas. rás renunciando a viver. As dores do amor são criativas,
I(m nome cie que as pessoas afirmam que não podem mo- levam-te a um maior dar-te conta, transformam-te.
dlllcar-se, que sãõ de um determinado jeito e não podem Se renuncias às dores do amor, deixas de ser um
mudar, peregrino. Tua vida deixa de ser um rio que vai até o
Quando os dois se amam, sempre sentem que a res o cean o, transform a-se em um charco estancado, Q
I 16 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 117
suas asas para voar. Nenhum fazendo do afeto uma adição, sentido, digo que o escândalo discursivo constitui a subs
uma fuga de si mesmo, tratando de refugiar-se no outro, tância que provoca o “subidón”.
nos discursos de afeto idealizados pelo outro. Para o dependente afetivo, existe gozo inclusive na
A co-dependência é um processo de ingestão do ou perda. Um dos maiores poetas da música popular gaúcha,
tro (real idealizado, ou simplemente idealizado). Lupicínio Rodrigues, é um exemplo interessante dessa afir
Existem dependências químicas em que se ingerem mação.
substâncias e dependências afetivas em que se ingere a Lupicínio se obcecava pela busca da mulher amada,
uma outra pessoa. assim como enxergava, com a mesma obsessão, na deusa
Os discursos jogam um papel fundamental na confi dos seus sonhos, uma necessária inimiga, que fatalmente o
guração dos processos de co-dependência afetiva. São o trairia e acabaria nele provocando a dor e a criação.
equivalente das substâncias químicas. Toda co-dependên Lupicínio foi o maior poeta da música popular brasi
cia se assenta, descansa ou consolida em discursos leira porque era um adito. Precisava das perdas, do aban
idealizantes do sexo, do outro ou das próprias virtudes de dono, para alimentar sua adição. Era um adito das perdas
estar em relação. Basta lembrar que o adito do sexo preci amorosas. Precisava perder o outro para provocar seu
sa dos discursos de sexo como estímulo e como possibili “subidón”.
dade p osterior de poder fazer o escân dalo de seus Escrever músicas que cantem as perdas constituíam
pseudologros. grandes doses para sustentar sua adição. Cada poema de
O romanticismo nos faz co-dependentes. Os discur sua obra registra um momento de êxtase em sua adição ao
sos midiáticos sobre o amor alimentam esse romanticismo, abandono. Precisava das pregas de amor. Só se sentia bem
reforçando a natureza aditiva da sociedade em que vive se algo fosse mal nas relações amorosas.
mos. As letras da maioria das canções de amor que escuta
mos nos animam a não sermos autônomos “Não posso vi “Eu não sei se o que trago no peito
ver sem você”; “Minha vida sem você é um inferno”; é ciúme, despeito
“Choro dia e noite quando você não está ao meu lado”... A amizade ou horror.
lista de Tangos e Boleros é infinita.
O co-dependente afetivo alimenta o processo de Eu só sinto que quando a vejo
adição pelo escândalo, necessita do melodrama, que sus- Me dá um desejo
lenta o gozo da busca, da conquista, os relatos que publicitam De morte e de dor. ”
Iodas as etapas de uma co-dependência e, por último, que
sustenta o gozo masoquista da inevitável perda. Os seus contemporâneos mais íntimos depuseram que
Todos esses momentos, inclusive o da perda, funcio o poeta procurava o atrito com a mulher amada mesmo no
nam como doses que mantêm o co-dependente nos simu auge do romance. Ele. necessitava morbidamente de que
lacros de vitalidade, que toda adição ilusoriamente provo ela se sentisse traída, e que logo o traísse. Conta que o
ca, o que na Espanha chamam de “subidón “. Nesse surpreenderam com uma mulher que tinha enfiado o cano
122 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 123
tio revólver engatilhado na boca de Lupicínio, que, em vez plicado com a vida; não experimenta essa energia dentro
de defender-se ou pedir clemência, tinha os olhos brilhan da relação porque a mantém a uma muito baixa intensida
tes de orgulho e as feições dominadas por um fulgor de de.
felicidade. “Eu preciso ter um caos dentro de mim para dar A intimidade supõe compartir informação sobre si
â luz uma estrela”, costumava dizer. Toda uma definição mesmo ante alguém que nos escuta sem julgar-nos .O adito
de co-dependência afetiva. à evitação, por medo de manter contatos íntimos, tenta não
Quando Lupicínio não podia brigar com a amada, ser conhecido pelo outro. Tem medo de ser usado, absor
brigava consigo próprio. vido, controlado ou manipulado se compartilha o que é
“Eu preciso esquecer a mulher com o outro. Não fala o que deseja ou o de que necessita,
Que m efaz tanto mal mas demanda, sob ameaça de abandono, que o outro o
E ele Co coração) adivinhe .
Insiste em dizer que lhe quer...
Toda a vida eu e meu coração 5.5 As pessoas co-dependentes são aquelas que bus
Ele dizendo que sim cam sua autodefinição fora de si mesmas, no outro ideali
Eu gritando que não” zado, nas verdades da ciência, nas crenças de uma religio
sidade institucionalizada, na família, nos filhos, no trabalho.
Lupicínio era, no fundo, um adito à evitação, temia Muitas vezes, quando se trata de ajudar os dem ais
conscientemente a intimidade e inconscientemente o aban encontramo-nos por detrás das aparências, com processos
dono. Ecos da infância que repercutem na vida adulta. Uma intensos de co-dependência. Na maioria dos casos, quando
criança abandonada que teme, como adulto, repetir a dor e as pessoas se ocupam quase obsessivamente em salvar os
prefere fugir do com prom isso de um relacionam ento outros, não fazem mais que expressar sua própria enfermi
íntimo.Uma criança que não teve contato com outro ser dade da alma. Sua enfermidade de co-dependência e con
humano que tivesse aliviado sua dor, que tivesse mostrado trole, o que lhes permitirá evitar a larga luta por definir-se
a ele que uma relação pode aliviar uma experiência de a si mesmas, estar de posse de seu próprio poder e identi
abandono. dade e realizar sua autonomia.
Um dos objetivos do adito à evitação é o de manter a Sempre que vemos processos de adição e vínculos
Imensidade do relacionamento dentro do mínimo nível pos aditivos de qualquer tipo, devemos destacar a presença de
sível, porque percebe a intensidade do relacionamento como personalidades co-dependentes.
multo humilhante, terrorífica. Geralmente, evita a intimida O co-dependente se caracteriza, em geral, por colo
de centrando sua atenção, de modo adictivo, sobre alguma car toda sua atenção nas ações ou atitudes de outra(s)
coisa fora da relação (a música, no caso de Lupicínio). A pessoa(s) e sente a necessidade falaz de controlar-lhe tudo
Intensidade do enfoque aditivo fora da relação proporciona (ansiedade); sua energia e ânimo sobe ou baixa conforme
HO evltativo uma sensação de energia, de encontrar-se im o que diga ou faça a outra(s) pessoa(s). Os co-dependentes
124 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 125
lêin uma visão distorcida e idealizada da realidade. Seus mentos aditivos no múltiplo de uma estrutura aditiva que
processos de pensamento se tornam confusos e enfermos. simula preencher o vazio interior.
Por via de regra, estão tão centrados em imaginar, que a Só duas pessoas preenchidas podem se relacionar.
realidade parece não existir. Ser autônomo é estar preenchido.
Outra característica da co-dependência é a de man Relacionar-se significa amar, relacionar-se signifi
ter-se sempre no passado ou no futuro. Ausentes de si ca compartilhar. Mas antes de poder compartilhar, é preci
mesmos. A rejeição a conhecer-se é parte da estrutura so ter. E antes de poder amar é preciso estar cheio de
aditiva. Têm muito baixa auto-estima. Sempre fracassam amor.
em suas mais queridas ilusões. O mundo real nunca pode Duas sementes não podem se relacionar, elas estão
afetar a fantasia. As relações são sempre fracassadas e a fechadas. Duas flores podem se relacionar, elas estão aber
vida feita unicamente de ilusões. tas, podem mandar suas fragâncias uma à outra, podem
As pessoas co-dependentes também se caracterizam dançar no mesmo sol e no mesmo vento, podem dialogar,
por ser falsas, centradas em si mesmas, “sentem-se a últi podem sussurrar. Mas isso não é possível para duas se
ma bolachinha do pacote”. Estão bloqueadas em seus senti mentes. As sementes são totalmente fechadas sem janelas.
mentos, isoladas, temerosas, confusas, enfim, cegas a sua Como podem se relacionar, ser autônomas...
doença. Curiosa complexidade a da autonomia. Um indivíduo
O c o -d e p e n d e n te é d o e n te , cu lp a b iliz a d o r e fechado, isolado do outro, não realiza sua autonomia, fica
disfuncional. alienado. Porém, um excesso de vínculo com o outro, um
Minha experiência pessoal, convivendo e trabalhan vínculo idealizado com o outro, uma relação com o outro
do com alguns co-dependentes, me permite dizer que nin sem movimento próprio, aditiva, também conduz à aliena
guém realiza sua autonomia sem ajuda. Ninguém sai sozi ção. A autonomia é um vínculo com o outro em que am
nho de uma estrutura de co-dependência, de qualquer tipo bos têm movimento próprio.
do prisão efetiva. Como diría Freud todo co-dependente
precisa de sua Gradiva, de outro que o ajude a encontrar
sua reserva de afetividade, seus modos próprios de reali
zar sua autonomia, conseguir seu próprio movimento. Ir da
adição para o amor. Criar um “entre-nós” de recíprocos
movimentos autônomos. Como as pedras que sustentam,
alé hoje, a cidade sagrada dos Incas.
As relações sãs se relizam com pessoas autônomas,
que vivem sua liberdade.
As pessoas co-dependentes estão vazias, têm um va
zio Interior que as impede de amar. Tentam preencher
a«Ne vazio com os “subidones”, com doses maciças de ele
126 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 127
A carnavalização, como lugar epistemológico, seria sem Penso, ao contrário do discurso lingüístico oficial, do
pre e tão-somente o lugar onde se possam detectar os dogmatismo de certos politicólogos e das obras legíveis do
sinais do novo. Seria sempre o ponto de chegada do novo marxismo - economicista, que o político e o poder apre
que vem vindo. Fora desta atitude de boas vindas aos jo sentam-se também como uma dimensão simbólica.
gos, que vão se determinando pelos antagonismos sociais Eis-nos diante da natureza política da linguagem. Ela
c o infinito das significações, tudo o que se diz em respeito precisa ser explorada numa reflexão semiológica do políti
da fórmula da carnavalização epistemológica é somente a co. Parece-me que, desta forma, o político e as relações de
expressão do novo. poder que o formam deixam de ser consideradas desde
Lembro agora a manchete que sintetiza uma entrevis uma perspectiva de mera exterioridade face aos discursos.
ta dada por Lefort à “Folha de São Paulo”. “Se a democracia Acrescentarei que é impossível, a meu ver, trabalhar
não se amplia, ela não se conserva.” Para isso precisa-se as dimensões infinitas do simbólico, fugindo de uma refle
de um saber que se autocrítica pelos sinais do novo, no xão sobre o próprio poder das significações e a presença
jogo de suas próprias ambigüidades e com exercício do marcante do político nas linguagens.
conflito. As dimensões simbólicas do político precisam ser tra
Quando Robson me falou de Bakhtin, senti que, pro tadas como as dimensões políticas do simbólico. Sem essa
curando uma ordem carnavalista de significação, podería inversão, a ciência política terá um casamento fracassado
propor junto aos epistemólogos inconformados um lugar com a semiologia. Via de regra, defronto-me com tímidas
simbólico que podería reestabelecer os vínculos do saber incursões dos cientistas políticos tentando mostrar como os
com a microfísica das significações abertas e polifônicas. condicionamentos políticos, as relações de força, os anta
Dessa forma estaríamos exercitando a visão carnavalizada gonismos salpicam, poluem, ou se espalham no campo
do conhecimento. simbólico. Nessa direção, a violência real das condições de
dominação seriam acalmadas por um processo de substitui
ção dessa violência por uma violência simbólica. Isso não
seria para mim mais que uma forma (hoje ultrapassada) de
6.3 Não existem palavras inocentes. O espaço social pensar a ideologia como discurso. Não é o mesmo que
onde elas são produzidas é condição da instauração das esmiuçar os condicionamentos políticos e sociais das lin
relações simbólicas de poder. A dimensão política da soci guagens, que procuram detalhadamente seus componentes
edade é também um jogo de significações. Isso supõe que políticos e o põder que eles têm na formação do imaginá
a linguagem seja simultaneamente um suporte e um instru rio instituído. Em outra oportunidade, entrarei em maiores
mento de relações moleculares de poder. Mas também um detalhes. Agora prefiro trazer à tona as ambigüidades, os
espaço de poder nela mesma. antagonismos e as tensões que alicerçam a ordem política
A sociedade como realidade simbólica é indivisível e o poder das significações. Pelo menos podemos reco
tlUM funções políticas e dos efeitos de poder das significa nhecer um mundo de práticas significativas descontínuas,
ções, cruzadas e freqüentemente contrastadas. Tais práticas às
1.32 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 133
vezes se justapõem para ignorar-se, excluir-se ou tentar tivo apresentando-o como dimensão conotativa. Fica, dessa
reprimir-se umas às outras. maneira, retirada da discussão a questão do poder desse
Aclarando o que precede: o poder das significações imaginário. Lamentavelmente faltou aos lingüistas um olhar
se constrói em torno de um sórdida luta entre vozes, dis político.
cursos e acontecimentos significativos, autoritários ou de Todo o anterior foi posto para dizer a você que situ
mocráticos. arei a proposta bakhtiana da carnavalização discursiva como
Foucault, começando sua famosa aula inaugural no uma possibilidade nova para a instituição das vozes demo
“College de France”, lembrou que, no momento em que cráticas do “lugar da fala”. Precisamente o que desejo pôr
algum de nós começa a falar, seu discurso se encontra há no papel é uma gama de considerações em aberto sobre as
muito tempo precedido por uma voz sem nome. São as condições de possibilidades de um imaginário significativo
significações anteriores que deslizam sub-repticiamente em carnavalizado. Penso que a volúpia significativa, que con
novas significações. Trata-se de vestígios escondidos que forma e molda nosso espaço social e tudo o que nele é
estão subjacentes aos discursos que manifestam nossas sig significado, contém doses excessivas de autoritarismo. Es
nificações. Existe antes de qualquer enunciação um fazer tou-me referindo principalmente aos dispositivos discursivos,
histórico, determinado por um além das mensagens. É o aos edifícios teóricos, às idéias - força, às normas de
labirinto das significações na história; que é também um enunciação, às opiniões “pré-vistas”... que configuram o
além das consciências. Antes de estar nas consciências dos lado oficial de nossa cultura.
sujeitos, as condições de produção das significações estão Em um livro mais ou menos recente, Bourdieu chama
na história como dispositivo de enunciação e poder. a atenção para a questão da língua legítima; sua produção
Eu gostaria que você concordasse comigo no fato de e reprodução encontram-se ligadas ao processo de consti
que é impossível refletir sobre a textura política e o poder tuição do Estado. Esse, como condensador coercitivo do
das significações sem abrir-nos para as vozes que em si lugar da fala, cria as condições de constituição de uma
lêncio preparam a aparição dos discursos. As práticas máquina lingüística unificada. É a cultura (a linguagem ofi
discursivas teriam, então, um lugar de poder - uma atmos cial). Trata-se da linguagem que circula obrigatoriamente
fera de significados não pronunciados que comandam o nas ocasiões e nos espaços oficiais, (escolas, administração
que é dito ou pode ser decifrado do que é dito. pública, meios de informação) além do imaginário que,
Quando, nos diferentes fragmentos que compõem este funcionando como um tônico sedante, transforma essa lin
livro, faço referência ao imaginário instituído é precisa guagem em um emaranhado de enunciações censuradas.
mente para nomear “o lugar” onde proliferam índefínida- Temos, portanto, um complexo repertório de rela
mentc as significações que vão sendo ditas. Unicamente ções e significações estandardizadas que, como um rio que
relacionando a ordem imaginária e simbólica - ou se você deságua em si mesmo, legitima como cultura um patrimônio
prefere o lugar da fala com o que é falado - é que podere- ' significativo altamente intolerante. A língua legítima cons
Itios penetrar no escorregadio terreno das significações. trói a cultura oficial desde uma situação de extrema Intole
A lingüística clássica trabalhou o imaginário significa rância. Então, as significações aparecem com uma política
136 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 137
cios mecanismos instituintes do “Estado de Direito”. Essa tentar estabelecê-lo, preservá-lo e logo ampliá-lo. Não se
expressão conota principalmente a necessidade de fazer poderia tentar a implementação de tal princípio sem pres
reinar a lei, de fazer do cumprimento das leis a mola pro supor que o saber e o poder não são mais apropfiáveis por
pulsora da democracia. Dessa maneira, na concepção jurí- alguém. Eles se tornam, em certo sentido, práticas vazias.
dico-liberal da democracia, a ordem política fica reduzida à Aclarando a idéia do lugar vazio, eu diria que o prin
administração legal do poder do Estado. Contrariamente, a cípio da politizaçâo democrática do social pressupõe - di
versão carnavalizada da democracia se abrirá para o espa ante da necessidade de garantir o desenvolvimento do cón-
ço de criação do direito. Enquanto a concepção jurídico- flito - que toda autoridade pessoal tenha que sér posta de
liberal da dem ocracia mostra os direitos instituídos, a lado. Pensar a verdade e o poder como lugares vazios é
carnavalização inventa, ou melhor, mostra a possibilidade uma maneira de combater ou contrabalançar o perigo sèrh-
de inventá-los permanentemente. pre constante de um congelamento autoritário das opini
Situando o pensamento carnavalizado como a pre ões, dos discursos e das crenças. O lugar vazio seria o
sença do novo no imaginário instituído, ele se nos apresen lugar de uma ordem imaginária, de uma ordem simbólica e
ta como um “plus” de significação (manifesto simultanea de uma ordem de relações de poder sem petrificações
mente na ordem imaginária e na ordem simbólica) que nem hierarquias.
permite a reivindicação da autonomia dos sujeitos em to O lugar vazio seria, enfim, um lugar simbólico, onde
dos os fragmentos (setores) da vida social. o conflito permitiria o devir do novo e a ocupação tempo
Por certo, para o estabelecimento de uma ordem de rária dos espaços de autoridade. Ninguém possuiria autori
significações democráticas, precisa-se contar com cabeças dade como qualidade, nem poderia situar-se como locador
(as nossas) que não castrem nossas pulsões à autonomia. permanente. Todos os que porventura viessem a ocupar
Nesse ponto o pensamento democrático e o carnavalizado ditos lugares estariam em trânsito, exercitando-os. O lugar
tornam-se aliados. vazio poderia também ser visto como a arte de inventar
Para sair de um pensamento autoritariamente impos novos espaços. O lugar vazio seria, no fundo, um lugar
to, penso que é preciso uma mutação política que, culti carnavalizado.
vando a polifonia discursiva, se revele contra a ficção de Pode-se dizer que, numa ordem de significações au
uma sociedade ordenada e orgânica. toritárias, o princípio de hierarquização da sociedade per
A metáfora do carnaval pode ajudar a entender que mite a vigência de linguagens que estereotipam os hábitos,
não há mais uma autoridade incontestável, fiadora do po impondo critérios de distinção social. Existe um conjunto
der e do saber; ou se você prefere, na democracia não se de discursos sociais que permite classificar hierarquicamente
pocle mais aceitar o princípio de um suposto possuidor do os sujeitos sociais. No mesmo ponto de hierarquia social,
sentido da lei, do sentido último do poder e do conheci os indivíduos se exprimem no meio de gestos, estilos de
mento social. De alguma maneira estamos diante de um vida, modismos expressivos, formas de lazer ou outros ti
princípio de politizaçâo do social que é baseado no dile- pos de condutas padronizadas como inseparáveis de seu
imi, no conflito e no debate na sociedade. O problema é estamento social. Trata-se de processos de rotulação que
138 Luis Alberto Warat 139
A ciência jurídica e seus dois maridos
cumprem a ampla função de classificar socialmente os ou cotidiana. Dessa forma é que se pode combinar represen
tros e a nós mesmos.
tação com a democracia de base.
Assim, o mundo fica autoritariamente dividido em Falar de democracia, para o mundo de hoje, implica
vulgares e refinados, pelo apelo a uma ampla gama de apelar para o novo. A democracia para este momento pre
conceitos unificadores. cisa inventar novos estilos de convergência entre os pro
Na universidade, convivi com muitos adeptos de uma cessos de participação social e os forçosos mecanismos de
prática de rotulação filosófica impiedosa; esses filósofos, delegação de poder, de que necessitam para impulsionar a
os que estavam fora da ortodoxia teórica que reconheciam dinâmica do todo social.
como boa, eram, por esse motivo, classificados como vul Em termos bakhtianos, a questão democrática passa
gares e desclassificados academicamente por simples. através dos m ecanism os pelos quais podem tornar-se
Mas é preciso ver que, quando estamos em busca.de escritíveis (abertos) os centros de decisão. Passa por uma
uma sociedade aberta, à procura de linguagens democráti concepção sem preconceitos (amoral) da democracia.
cas, devemos tentar preservar-nos das práticas de rotulação.
Em outras palavras, devemos preservar-nos dós modos de
produção das distinções sociais. Por certo, cultivando as 6.5 A e scrita (a litera tu ra ) carn av alizad a e
ambigüidades, torna-se bastante improvável classificar hie carnavalizadora pode ser apresentada cautelosa e proviso
rarquicamente os homens. riamente com a seguinte série de palavras: neo-romantis-
Na vida universitária, resulta bastante recomendável mo, polifonia, intertextualidade, sincretismo, diálogo, mo
a extinção de práticas de classificação hierarquizantes. Elas vimento, existência; espontâneo, imprevisto e vivenciado.
o fe re c e m a seg u ran ça de p rin cíp io s a b so lu to s de A rigor, nessa simples caracterização, estou queren
inteligibilidade, mas cancelam os riscos da decifração. Sem do entronizar o enfoque carnavalesco como uma compre
esse risco, o pensamento fica autoritário. ensão existencial das relações sociais e da ordem simbólica
Tentando condenar as idéias partilhadas neste frag e imaginária que as envolve, compromete e realiza, assim
mento, direi a vocês que a democracia como acontecer como uma compreensão vivencial de nós mesmos. É a
político contraria a idéia de uma história já fixada. A demo escrita que resgata o espontâneo da vida e se revela con
cracia nesse sentido, é uma subversão a toda pretensão de tra os moldes de uma racionalidade pré-existente que quer
dominação do futuro. Ela é uma tentativa de desfazer a entronizar as verdades nos valores conservadores de um
transcendência do poder, anulando sua eficácia imaginária saber armado, pré-fabricado; de um saber preocupado em
e simbólica. não misturar as sujeiras acadêmicas com as penúrias dos
A grande questão democrática é como obter o con simples e com as angústias, os impulsos e prazeres do
trole social e coletivo da prática política. Para isso, a parti
cotidiano. ;
cipação não pode ser pensada só como representação na A literatura carnavalizada apresenta como componente
esfera da governabilidade. A participação deve ser situada decisivo o contato direto com a vida e não com a razão.
no bairro, na Escola, na Igreja e no lazer; enfim, na vida' Diria que ela realiza o homem e o mundo simbolicamente,
Mo Luis Alberto Warat 141
A ciência jurídica e seus dois maridos
exultando o “eu” existencial, isso é, não racionalizado. A carnavalidade, portanto, está empenhada em exal
Trata-se de uma técnica de significação, de um lugar tar as formas de saber, menosprezadas pela cultura oficial,
da fala que aproxima a compreensão às vivências; que como maneira de sabotar os sabotadores.
constrói espelhos para decifrar - através de práticas comu A carnavalidade está diretamente relacionada com a
nitárias de significação - um cotidiano encoberto por ver coroação de um estar arlequinamente na vida: como
dades, por uma razão ideal. Um cotidiano assim determina Vadinho, como os cronópios de Cortázar ou como Quincas
do fica impedido de descobrir a positividade do imprevis Berro D’água. Por outro lado, traduz a descoroação do
to, do fantástico, do mágico e do que não pode levar as pierrotismo na vida, da afetividade perfeitamente planeja
marcas da coerência.
da de Teodoro, da finitude estática dos “famas”, como tam
Existe na articulação carnavalizada dos discursos um bém da desentronização das contemplações burocráticas
elemento dinâmico - e num certo sentido irracionalista - de Joaquim Soares da Cunha6.
qu e servirá para e x o rc iz a r um d ia-a-d ia sem Enfim, é a coroação de um espaço dialético de com
imprevisibilidade e sem espontaneidade. p reensão participante e a d escen tralização da razão
É uma franca revolta contra o paradigma da distinção, contemplativa.
do dever e do método, tão caracterizador das funções Um ponto característico do romantismo é o de ser
totalizantes das ciên cias sociais do nosso sécu lo, a uma narrativa de libertação da literatura (não da mulher)
carnavalização instaura um clima compreensivo para - lem que lhe devolve sua perdida posição de privilégio.
brando algumas coisas do romantismo - recuperar a espon A partir do século de Descartes, a literatura começa a
taneidade e neutralizar a suprema racionalidade dos qua ser excluída do sistema dominante de saberes. Os discur
dros de referência que, antecedendo-a, amarram a vida. A sos portadores de objetividade e de verdade deslizam a
cosmovisâo carnavalesca abala ou enfrenta aqueles princí literatura para uma posição secundária.
pios, crenças ou mecanismos que colocam a razão acima A literatura foi então percebida como um discurso
da vida.
carente de seriedade. Dessa forma, negada como discurso
Entendendo sua primitiva incidência sobre as matri sério de patrulhamento das verdades para restaurar a certe
zes estéticas, eu diria que o viés carnavalizador exercita às za racional. Como resultado dessa patrulha metódica, a lite
avessas uma técnica de sabotagem, conspirando contra as ratura passa a ser vista como o lugar do faz-de-conta. Ela é
formas nobres de expressão (estéticas, filosóficas e cientí mostrada negativamente como o discurso do encantamento
ficas) ligadas às classes totalitárias do saber (a direita do e do sentimento. Na escala dos saberes dominantes, a lite
saber, da qual falarei).
ratura foi aceita como discurso oposto à razão. Na filosofia
Navegando contra a corrente, a carnavalização do romanticismo está implicada uma proposta para libertar
revitaliza, extraindo do subúrbio cultural as manifestações
populares expressas pela espontaneidade do cotidiano e
da praça pública. São as vozes negras, das quais também ^ Como se sabe, Joaquim foi incapaz de ingressar em uma “troup” de
logo falarei. saltimbancos, mas levava a sua filha para assistir, no circo, a jogos
arlequinos alheios.
M 2 Luis Alberto Waraf A ciência jurídica e seus dois maridos 143
Como foi dito por Marilena Chauí, a sexualidade é o os sinais do novo pela transgressão, no paradoxo, mostran
domínio privilegiado das regras, do controle social e da do o grotesco que existe por trás das aparências sublimes
repressão. A questão da relação entre indivíduo e socieda da cultura autoritária. Não pode existir um espaço de con
de remete com bastante força à relação entre sexualidade trovérsia carnavalizada - como cosmovisão substitutiva dos
e cultura. oprimidos - a não ser uma inversão do que é oficialmente
Parecería, pelo menos pelo que acaba de ser dito, disposto como sublime. Para recobrar-nos das amputações
que descontextualizando as representações constituídas a de uma montagem autoritária da história, precisamos pe
partir de uma sexualidade disciplinada, jogando contra ela, gar tais montagens revelando o grotesco de sua nudez.
poderá ser enriquecido seu questionamento. A presença do grotesco no espaço e nos discursos
Acredito que, dessa forma, apelando para uma sexu permite (com o absurdo no teatro ocidental e o “sainete”
alidade do imprevisto, aparece um domínio simbólico que no teatro argentino) explorar as deformações da instituição
adora, pelo avesso, a cultura repressiva, abrindo as com autoritária da história. O monstruoso e disforme (oficial)
portas para o novo. É assim que a carnavalização surge das relações humanas reprimidas pode ser reeditado atra
como a expressão de um jogo contra a ordem que inibe, vés do grotesco como superação, como paradoxo. A de
imobiliza e poda. Enfrentamos uma perturbação da ordem núncia nunca pode ser a história denunciada.
repressora que substitui por um brincar erótico os cacoetes No viés carnavalesco, a simultaneidade da tragédia e
dos saberes nobres. da comédia propicia o pirandelliano encontro com o senti
Trata-se de uma hostilização dos ritos da ordem, pro mento do contrário; sentimento que facilita a consciência
vocados pelo rodízio dos papéis simbólicos, a profanação da subversão. É uma desmistificação dos medos, das simu
lúdica do que é culturalmente posto como sublime e a lações e angústias que permitem aos seres, alienados por
exaltação daquilo que é degradado como grotesco no polí seus problemas, suprir pela paródia a ausência do diálogo
tico oficial. Ora, não se trata de fundir sob um mesmo cotidiano. É o reencontro de um vôo.
alento o grotesco e o sublime, ou de juntar o bufo e o No cotidiano reprimido, a exposição de nossos pro
terror. Ei-nos diante de um jogo que vira o mundo de cabe blemas não é ouvida, porque os outros se encontram na
ça, contragolpeia sobre seus centros reguladores de poder, mesma encruzilhada. No fundo, a paródia recupera um co
tle medo e de hierarquização. tidiano carente onde as emoções e os desejos se evaporam
Os papéis se trocam, tudo fica carnavalescamente deixando no alambique da existência um cheiro insuportá
Invertido, para dar passo, sem pompas acadêmicas, aos vel.
falos da vida e às pulsões vitais. x Por isso precisamos da paródia, da carnavalização da
Há no modo carnavalesco de esperar o inesperado praça pública, porque elas, frente à vida, reivindicam, atra
umn súbita inversão lúdica da percepção rotineira e cientí vés do imaginário grotesco, a impunidade do bufão diante
fica da realidade. É como se o mundo se apresentasse fora dos valores estabelecidos. Um jogo de pantomimas, depois
dos eixos. Uma busca erótica, ludicamente aguçada. de tantas mortes e sepulturas. Um enfrentamento proveni
Pode-se dizer que as vozes carnavalescas concebem ente de todo o prazer experimentado na demolição e nas
14(> Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 147
ruínas de uma cultura da morte. Um jogo que precisa muito Carnavalizar é, de certo modo, um embalo que ataca
mais das arlequinadas circenses que das regras do método. a voz das convicções autoritárias, acostumadas a ser ex
Pela pantomima pode conquistar-se para a esfera pública a p ressão da loucura organizada. É essa loucura que
afetividade marginal: essa falsa loucura dos cronópios que encarnaram grandes possuídos, como Hitler, Stalin e os
podem repolitizar o espaço público, saindo pela manhã minúsculos Galtieres da vida.
pelados ao balcão, para gritar com os braços abertos: Bom A carnavalização é uma febre que nos aguarda para a
dia, sol7. construção de uma nova afetividade. É uma coragem para
Porque não é através da empolgada objetivação de não engolir mais as idéias velhas. O velho não reproduz
um discurso político que se desprivatiza a sociedade. Ela nada, nem o mundo que quer preservar. Ferozmente, o
se publiciza quando vira “Locus Nascendi" da afetividade velho contamina o novo de morte.
marginal. É preciso ter o espírito desarmado (carnavalizado)
A visão carnavalesca do mundo nos revela a grande para poder incorporar o novo.
za arlequinal do cotidiano, que assume o primado crítico A carnavalização é uma prática da linguagem que
frente aos labirintos obscuros e às situações de estancamento considera a nudez como significação para corroer com sa
a que chegam os intelectuais burocratizados, tendo respos nha demolidora o eclipse dos nossos desejos. Ela nos pro
tas feitas para todos os dilemas. põe, como jogos infantis deslocados, um modo escritível
Pela via da carnavalização, podemos dar asas a uma de ter coragem para perseguir as mudanças que perturbem
busca erótica, lúdica, m ágica, p o ética e fundamentalmente a solid ez d e meu m undo. Porque o que interessa é o que
política. Nessa via, a revelação do autoritarismo servirá para me sacode enquanto vivo. Tudo mais é papo furado.
perseguir, aprendendo o que é a vida, a democracia. O resultado é um conjunto de verdades em trânsito
O espaço político que assim se desenha é um proce que nos ajudarão a entender que a vida, antes que um
dimento lúdico que permite perseguir os sinais do novo e problema a ser resolvido, é um desejo a ser vivido.
escapar (marginal e maliciosamente) à paz das intoxica
ções ideológicas. A carnavalização é uma tentativa de fuga
dos discursos ideológicos pela reconciliação dos corpos 6.7 Sala de aula. Sala de jogos. Jogos de palavras que
com os desejos. nos situam no ponto mágico e fantástico da experiência do
A carnavalização é uma maneira lúdica de contar a aprender carnavalesco. Território que permite desenvolver
vida. Um espaço para preencher. Um mundo para criar o charme de uma prática onde sumariamente foram conde
juntando o político ao erótico, e o corpo às significações. nados e executados os servos, os pontífices e os guardas-
Na carnavalização, não pode existir um discurso longe dos noturnos da propriedade científica. Um lugar onde a gente
corpos sem o cheiro dos desejos. possa exp erim entar-se, arrasando com os povoados
oniricamente grotescos de um saber -que^tem por lei da
tribo a auto-afirmação econômica, a acumulação de dólares
e a realização profissional confundida com a direção práti
^ Hmui Imagem devo a Carlos Roggia.
148 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 149
tos que desorganizam pesadelos, mostrando apenas por sentir que, detrás das máscaras sublimes, se escondem muitas
instantes o homem nu. É a expressão lúdica que põe em farsas que transformam a angústia e o medo em alimento.
comunicação o mundo do inconsciente com o palco das Parodiá-las é bom; desperta o homem.
narrativas. Assim, precisamos desertar o gosto pela significação
A sala de aula como espaço lúdico permite a experi carnavalizada, para derrubar a onipotência do sóbrio, lógi
mentação do desejo, assim como as manifestações de afei co e conotadamente objetivo mundo acadêmico.
ção. É um aprender com paixão, pronto para repelir como A carnavalização tem necessidade de fazer emergir o
uma imoralidade a autoridade do professor togado, no processo criativo, político, intertextual do desejo enquanto
fundo insignificante, procurando reduzir à obediência o jogo percepção emancipadora de uma cultura que tem a sua
do aprender. neurose declarada.
A didática carnavalizada visa substituir pelo jogo a Minha estratégia de ensino visa estimular o impulso
compulsão neurótica pelas verdades, a versão fóbica à lúdico para travar batalha com um dourado horizonte de
mobilidade; o apego à certeza do já enxergado, as atitudes mediocridade, com uma universidade concebida como um
altaneiras e etiquetadas, as lições repetindo-se. Tudo como espaço consagrado ao repouso do pensamento e com uma
efeito de um ensino socialmente bem estabelecido. O jogo América Latina onde a prática do direito torna-se, no dia-a-
substituindo o tédio e a dominação. dia, uma ilicitude descontrolada e ingovernável. O espaço
O ensino tradicional não deixa de ser um doentio público transformado no espaço das ilicitudes. A América
sistema de rotulação. Através dele, as pessoas são padroni Latina, dói-me reconhecer, está à procura da ética perdida.
zadas em nome de uma realidade que se busca reduzir Os jornais de hoje reproduzem a fala de um chefe de
pela classificação. O aluno padrão é aquele que não escuta Estado que, elogiando Napoleão, afirma que, na guerra e
as moções do desejo e se deixa consumir pela ordem e na luta pelo poder, o único erro é perder. (Jornal Zero
por seus efeitos de poder. Hora - 28/9/84 - Porto Alegre). Cada um por si e o Estado
O aprendizado carnavalizado, entretanto, é um espa contra todos. Para que exista democracia, é preciso apren
ço de brinquedos, como parte de um tempo concedido der a perder.
para a afetividade, para o desejo. O desejo é a erotização
da razão. Jogos simbólicos que roubaram para o prazer o
tempo que a escola monopoliza para transformar o saber 6.9 Não vacilo em afirmar que o ato lúdico, como o
dos que recém iniciam a vida em convencionais e letárgi poético, estimula a afetividade permitindo uma grande apo
cos registros profissionais. logia da diferença. É o momento de recuperação dos dese
Um dia de aula, um seminário devem ser como um jos.
tlla de infância: uma alegria vivida. Existe, no espaço lúdico, uma ausência de sujeição
Os que vivem o dia-a-dia do direito, os que vivem o que pode motivar-nos para aprender a negar os processos
UMTiHt-terra das universidades, os que vivem as duras bo- pelos quais nos tornamos iguais aos outros. O ensino tradi
lílfi du governamentabilidade latino-americana necessitam cional tem uma enorme capacidade de traçar indiferenças.
152 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 153
Nunca pude esquecer o sonho de Kaspar Hauser: no q u alq u er p o ssib ilid a d e de re sso n â n cia p ú b lica da
deserto, um guia cego orienta uma caravana melhor do que afetividade. Não podemos render-nos cedo demais. Preci
uma bússola, ele os conduz pela afetividade. Talvez Barthes samos lembrar que os pequenos policiamentos fazem gran
haja tido esse mesmo sonho. des prisões. Provocam o acordar de Tanatos.
Para mexer-nos politicamente, precisamos também
borboletas na barriga (calafrios apaixonados).
6.10 No esforço de inserir os pontos de vista da Enfim, uma grande marginalidade afetiva. Só os mar
carnavalização no contexto de uma crítica ao ensino estabi ginais renascem.
lizado como estabilizador, devemos reconhecer a presença Os traço s g erais em que se ap óia a d id ática
do jogo como valor de ampliação das significações. O apren carnavalizada (com capacidade de exaltação dos desejos)
der é antes de tudo uma questão dé linguagem, enquanto permite mostrá-la como um espaço de teatralização. A trans
captura o encanto de um imaginário que nos acaricia. Para formação da aula em palco a converte numa forma de
que um sujeito aprenda a viver, as palavras devem seduzir percepção das pessoas em sua relação com o mundo.
(capturar o corpo). A linguagem é a pele do imaginário. Teatros, jogos e terapia estão intimamente entrelaça
Aprender é evitá-lo carente, tornar sua pele afetiva. É isso dos. Tanto no teatro como nos jogos são os corpos que
o que está me acontecendo com este livro. Ele me faz significam. É a estética do corpo que me captura para a
aprender. Meu corpo mudou, cobriu-me de uma lingua linguagem.
gem encantada, pela descoberta cativante do corpo gratifi O teatro não pode existir sem o diálogo dos corpos,
cado pela linguagem. portanto, em sua relação com a vida, o teatro é uma forma
Jogo e poética inauguram um tipo de conhecimento mais primordial que a escritura.
carnal que seduz (captura) o cotidiano do aprender, pode A tarefa do teatro como didática é a de constituir -
vivificar o homem, estimulando-o para a montagem de um correlacionando pelo jogo corpos e significações - a situa
espaço público refuncionalizado em suas tarefas propria ção primária onde o prazer e o conflito podem vir à luz: o
mente políticas. “locus nascendi” dos desejos e ações. Por sua vez, este
Precisamos torpedear o eletrizado espaço público teatro para a espontaneidade é o “locus nascendi” da didá
autorítário-burocrático e suas tarefas políticas amarradas. tica carnavalizada.
A tarefa política no espaço público autoritário-buro- Existe, no saber acad êm ico, um teatro rígido,
cráfico é um episódio hipnótico. Crepuscular. Insignifican dogmático onde o produto criativo aparece em sua forma
te. Não é mais que uma forma. Um fetiche colorido. final e irrevogável. É o teatro da criatividade morta. É o
Assim sendo, as tarefas políticas desse espaço públi dramaturgo que perturba a situação primária de sua
co limitam-se à regulamentação da sociedade civil, diluin criatividade, para privar o momento presente de qualquer
do não somente a livre manifestação da opinião pública e manifestação própria de criatividade viva. Os protagonistas
simtiiTando as diferentes instâncias em que a sociedade se são privados de sua espontaneidade. Eles foram converti
manifesta politicamente, mas dissolvendo também toda e dos em receptáculos de acontecimentos criativos ligados
I5 á Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 155
por um momento que já morreu. samos ter a paciência dos ourives para tentar permanecer
O momento presente existe como ato mecânico de sempre no inesperado e para conviver com os desejos que
um ontem ressurgido. enfrentam com força a razão que os queira explicar. É duro
Um teatro sem espontaneidade, um saber que repro saldar essa conta. Demoraremos. Não se caminha por pas
duz a verdade. Uma sala de aula clássica é uma coisa do so ligeiro por onde passou a morte. Essa “Dama da Alba”
passado. Uma realidade vencida. que permanece em carne viva / que fica também como as
A aula como um espaço cênico permite desenvolver roupas da ciência / vestida toda de branco / a roupa com
nossa tendência a não dispor de qualquer sistema de sig que melhor nos engana...
nos certos. É uma aula apaixonada. Para Barthes, nenhum
sujeito apaixonado dispõe de signos certos.
Minha visão do teatro e dos jogos, ou se você prefe 6.11 Não há dúvida de que as histerias argentina e
re, da aula teatral, foi moldando-se na luta, no despeito brasileira estão povoadas de mortes míticas. Entre nós é
profundo e no medo frente a uma cultura que funciona comum a coroação e o consumo dos mortos que retornam
como o lugar de novos tormentos. para podar a espontaneidade política e manter os vivos no
Minha visão do teatro e do jogo é marginal na medida imobilismo. Vivemos imersos em realidades que apresen
em que se projeta sobre a vida, para que ela não possa tam arranjos bastante surrealistas. Na Argentina, Gardel cada
resvalar indiferente sobre nós como a chuva sobre as está dia canta melhor, Perón governa desde o céu e o cadáver
tuas. de Eva Perón viveu uma travessia comparável à de Quincas
Estou falando do teatro da espontaneidade como de Berrro D’água. No Brasil, presenciamos a disputa do cadá
uma configuração de papéis que incitarão o homem a ex ver de Getúlio, entre os que querem entronizá-lo como
pandir sua criatividade e seus desejos. socialista-mor ou reentronizá-lo como trabalhista histórico.
Uma didática dos desejos que preste uma homena Trata-se versões míticas que não expressam a simbiose
gem ao imaginário. carnavalesca da vida e da morte. Conservam a forma, mas
Paradoxo pedagógico: para um ensino que procura não o sentido da vida carnavalesca dos mortos. Eles são
compreender a vida e os desejos, uma aula que manifesta fantasmas que não se enterram para impedir que a história
certas desconfianças para com o saber, mas que desenvol avance e que vivamos o presente. A simbiose carnavalesca
ve a imaginação poética e reconstitui os “interiores do sig entre a morte e a vida realiza-se sempre como uma crítica
no”, como o lugar para o reencontro do corpo com a signi surrealista do social e como subversão do instituído. Na
ficação. cosmovisão carnavalesca, o retorno mítico da morte tem
Porque a vida precisa que os corpos e as significa muito a ver com as vozes que sustentam - abastecidas pe
ções se mesclem na sua existência até o infinito. las representações folclóricas e primitivas - a resposta sim
O certo é que devemos mudar. Trocar, na aula, o bólica e imaginária, a falsa legalidade da cultura autoritária.
iiiilorilarismo pela democracia. Tanatos por Eros, a morte A incorporação carnavalizada da morte na vida cotidiana
pela vida. Não é fácil. A mudança fará cair lágrimas. Preci representa a ressurreição da memória para a vida. Tra/.en-
156 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 157
clo certos mortos a praça pública, consegue-se enterrar os des todas de manifestação da ideologia como o superego
mortos que encarnam nossas significações sublimadas. Tra da cultura.
ta-se de mortos que voltam para tecer a memória democrá Ao carnavalizar a morte, no momento em que Thanatos
tica, desimpedir e desentupir todas as liberdades, e provo é tomado por Eros, produz-se a substituição felliniana do
car-nos o apetite pelo novo. medo pela esperança como processo com vida, como uto
Note-se que, na cosmovisão carnavalesca, os mortos pia democrática. É a desqualificação do “establishment”
retornam potiticamente para fazer falar o lado reprimido da moral, uma ausência dialética maliciosa que realiza a catarse
história. Sempre achei que no carnaval, a morte é uma do autoritarismo e exorciza a consciência do imobilismo.
ressurreição dos desejos. Compraz-me vê-la caravalescamente Estou acordando agora ainda sob os efeitos de uma
como uma superação da própria morte. É isso importante noite bem burlada e a ressaca de uma cachaça bem toma
para que ela possa mostrar-se com o um momento de da. Sinto que as vozes do “papo delírio” que tive com um
redescoberta do cotidiano e como um lugar para a sua amigo pernambucano ontem (onde conseguimos juntar po
transformação. É Eros apropriando-se do lugar de Thanatos, lítica, carnavalização, a negra maré do militarismo latino-
invadindo a cultura é uma voz que garante a sua normali americano e o inverno gaúcho) pesarão muito na escrita
dade. Thanatos fala como guardião das instituições. desta manhã.
Quantas vezes se fala “corpus” social? Quantas vezes P assan d o a lim po as v o zes, as d e sco b e rta s e
nos detemos a pensar que “corpus” significa, curiosamen desencontros da noite, acho que o culto carnavalesco da
te, corpo morto? morte pode surgir sem que o tema carnaval esteja necessa
Revelação, busca, rebelião e ressurreição. Palavras riamente presente. A vivência dos mortos, como forma de
que expressam a inversão carnavalesca da morte com su carnavalizar o espaço público, é muito mais do que o car
peração de uma cultura que, acreditando suprimir nosso naval. Pode ser também um jogo de guerra. Nele podem se
impulso de morte, transforma-se numa cultura de proibi misturar - a partir de uma inversão do grotesco e do subli
ções prepotentes. Numa cultura que excedendo-se nas proi me - utopia e realidade, amor e ódio, festa e violência,
bições, gera sua autodestruição. Certamente é a ausência sonhos e pesadelos, para desafiar as múltiplas formas em
dos desejos que define a história do homem como a histó que a morte se faz presente na cultura. Desde que desper
ria de sua repressão. tei esta manhã, estou pensando nas mães da Praça de Maio.
Vemos Thanatos como a não-erotização do corpo, Despossuídas do tom franco, livre e desrespeitoso que en
podemos sentir como a cultura se constitui, matando e su contramos na literatura carnavalesca e no carnaval, elas
primindo desejos. Claro que, às vezes, a morte adquire as carnavalizaram a militarização do estado e da sociedade
formas da sublimação. É a morte dos desejos pela ficção de argentina. Foi o gesto aglutinador que transformou os cadá
sua realização. No fundo, falar da ideologia é uma maneira veres sem nome do estado de terror em heróis vivos tlíl
metafórica de falar de Thanatos. A ideologia, nesse caso, praça pública. A esperança pela vida ligou-se ao processo
seria o discurso da consciência repressora. Castigos, cul de quebra da lógica do terror. Elas quebraram a ntecftnlctl
pas, punições, proibições, sublimações, medos: modalida da sociedade do desaparecimento, repolitizaram OS destl*
IS 8 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 159
parecidos. Foi um gesto utópico cie rebelião e afetividade Uma vez mais a oposição loucura-sanidade. Como se sabe,
que serviu, através de um mecanismo de inversão de as mães da Praça de Maio foram apresentadas medievalmente
posilividades e negatividades - de uma paródia do instituí pelos militares como a encarnação dos demônios e como
do, para mostrar o que era imundo e baixo como algo as vozes do anticrisso. As chamaram “as loucas da Praça de
elevado e luminoso - para indicar o caráter grotesco de Maio”. Daí a importância de recuperar as vozes como a
racionalidade canibal. A ordem semiocida que sustenta o fórmula solidária de resistência.
eslado de terror precisa da morte como lugar vazio. Precisa Agora que o horror acabou, os argentinos estão ten
improvisar cemitérios secretos para cadáveres sem nome. tando conformar-se, pedindo resultados judiciais, a maioria
Ü o dever ser do estado pretoriano-burocrático-terrorista. dos cadáveres estão enterrados sem o nome dos culpados.
A militarização dos sistemas políticos latino-america Teremos um debate morno. A coisa julgada, sem um deba
nos precisa do medo e da morte para salvaguardar sua te público, não é uma forma suficiente para superar a mor
legitimidade. Por isso trazem para o cotidiano a morte sem te pela vida. Estou convencido de que a coisa julgada é
nome. Transformam as sociedades disciplinarias em socie uma maneira de tornar o estado genocida quase esquecido.
dades do desaparecimento. Somem as pessoas e o espaço Todos nós sabemos que os procedimentos dos estados
político. Fica a prepotência. genocidas não deixam marcas. As provas também desapa
É de se notar que os mortos que não têm nome pas recem. É uma lição aprendida da máfia. Al Capone teve
sam a ter mil nomes porque são a ameaça à consciência que ser condenado por não pagar impostos, e alguns pou
dos vivos. As mortes precisam ser longamente vividas como cos responsáveis pelas mortes, glorificadas pelas mães de
uma voz do medo. Estamos diante de uma angústia e de Maio, serão condenados por exagerado cumprimento do
uma tentativa de perda da dignidade total: a magia do ter dever.
ror. Ela realiza-se por uma permanente perda da realidade. É significativo, nas sociedades autoritárias, que estas
Uma vez sob a bota, o medo substitui a vontade de com fiqu em sa tisfe ita s com o ca stig o do d e lito . Elas
preender. Assim, habituamo-nos com o intolerável e nos despreocupam-se da responsabilidade dos culpados. Eu não
esquecemos uns dos outros. As botas governando nos fa desejo isso para a América Latina.
zem viver como gente sem identidade. Sobrevivemos en
terrados como sombras irreconhecíveis. Neste jogo de hor
ror, a praça pública, como lugar da carnavalizaçâo da mor 6.12 A visão carnavalesca do mundo provoca alguma
te, forma-se uma inversão de representações c quebra de mudança na história? Apesar dela, os bolsões de autoritarismo
limites. - não continuam? A carnavalizaçâo serve para demonstrar os
Tentou-se corroer o sentido de emergência das mães aparelhos do poder autoritário? Quais são as mudanças da
de maio na praça pública. O militarismo argentino tentou dogmática jurídica e das pesquisas no Direito, depois desle
substituir sua dignidade pela loucura. Os ideólogos da livro?
militarização esforçam-se em mostrar como grotesco e de- No fundo, perguntas que impedem que se quebre o
lltaute o que havia de sublime em seu comportamento. sistema de referência do passado e do presente epislêmieo.
160 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 161
Minha linguagem faz parte de minha versão do mundo. Diría que a carnavalização pode ser embrionariamente
Isso é fundamental. A linguagem carnavalizada é já uma detectada como a didática dos desejos. Pessoalmente re
carnavalização do mundo. Não existe distância entre lin corro a uma versão livre da tese da carnavalização para
guagem e mundo. As falas sobre o mundo fazem parte do transpô-la para a sala de aula, como leitura pedagógica do
mundo. Negá-lo é ideológico. Eu pratiquei uma opção mundo. Ao carnavalizar a aula, ter-se-á esmagadora sensa
carnavalizada para o ensino do direito. Assim como os ção de estar presente na vida. Sairemos dela leves. Tere
Beatles para a música inglesa. De minha parte, tento erotizar mos espantado os lugares pré-montados e negado a pala
o ensino do Direito, subvertendo aos poucos algumas ca vra autoritária.
beças, instigando-as a perseguir os sinais do novo. Do meu A didática carnavalizada é uma excelente possibilida
ponto de vista, quando o homem fica sensibilizado para de para destruir a relação mestré-discípulo. O mestre fora
detectar os sinais do novo, é porque sua prática já mudou. do lugar é grande atitude carnavalizadora do ensino. Num
Vale observar aqui que o discurso carnavalizado, como cons contexto de ensino carnavalizado, o lugar do discípulo não
ciência da alteridade e da diferença, realiza-se sempre como é mais o lugar do outro. Seu lugar é sua práxis.
lugar pedagógico. Carnavalizando aprendemos, por exem Uma didática carnavalizada que se preze precisa per
plo, a não nos desligarmos nunca do que está acontecendo. seguir o novo pedagógico e apresentar-se também como
Aprendemos também a não ter objetivos rígidos. um processo de recepção crítica do próprio cotidiano do
Através dos sentidos carnavalizados, não se faz ape ensino e do saber. Funcionaria como se fosse uma sociolo
nas a crítica do “status quo” cultural. O mais importante é a gia política do saber e de sua pedagogia.
reconciliação do homem com seus desejos. Carnavalizando O projeto de ensino carnavalizado visa sobretudo a
o processo discursivo, o homem pode descobrir ludicamente uma inversão das múltiplas formas do imaginário reificado.
passagens para desejar seus próprios desejos. Uns dias atrás Trata-se de construir - juntando reflexões e alegoria - uma
assisti em Buenos Aires, ao filme “Zelling”, de Woody Allen, pedagogia democrática. Ousada tarefa que precisa de ex
onde o herói mal-amado, perseguido e reprimido, conver perimentações extremamente criativas, discussões sem cen
tia-se em um pierrô-camaleão, metamorfoseando-se nos sores, um levantamento da história pedagógica e uma .rup
desejos e nos corpos dos outros. Ele não sabia quais eram tura completa com os padrões educacionais estabelecidos.
seus desejos. Queria agradar e se perdeu, devorado por Um desafio formidável que se executa procurando verda
sua própria negatividade. Faltou-lhe aprender como reali des laterais (aquelas que se vêem com o rabinho do olho,
zar a experiência de sua liberdade. Zeling era um homem sem os enfrentamentos frontais das verdades disciplinadas
que não sabia - colocando os outros em seu lugar - sobrevi pela ciência). Seria como o mergulho no mundo mágico
ver â morte. das crianças, para recuperar o sentido dos rabiscos da in
Transformados em sujeitos das instituições, em sujei- fância sobre as marcas mortuárias das verdades dos experi
los das proibições, todos nós nos colocamos no lugar de entes e as descrições adultas. São as idéias de Benjamim
Zeling e reprimimos nossos desejos até desaparecerem, sobre a cultura das crianças. O mergulho nesse mundo
devorados. mágico desemboca, como o próprio Benjamim diz, numa
1 62 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 163
percepção lúdica, nova e corajosa do cotidiano. Em nome da verdade, convertem-se os desejos que
costumam despertar, nas artes e ná vida, em questões cien
tíficas. A carnavalização inverte o processo convertendo as
6.13 Atualmente, ingressar no mundo das universida questões científicas em sabores impostergáveis.
des é adquirir um profundo estado de morte: os mestres
empenham-se para que os estudantes compactuem com o
“establishment” cultural, os professores fazem-nos mirar para 6.14 Termino de assistir, omissamente, a um simpósio
a cultura adulta, isso é, para a vida que já passou; falta-lhes internacional sobre Teoria do Direito. Uma vez mais pude
o sentido “Zen” da qualidade. É uma desilusão. Em troca, conferir o “modus operandi” da direita acadêmica e da
busco os pontos de referência para uma didática que tente direita do saber (que não deve ser confundida com o saber
mirar para os que ainda não experimentaram nada, porque de direita).
são os que nasceram depois os que nos permitirão enten Na direita do saber, o lugar do mestre é um lugar
der o mundo que virá. Quanto menos moral tenha um ho blindado, inacessível para os que não falam como ele. Ges
mem, mais coragem terá para detectar os sinais do novo. A tos muito delicados, palavras ponderadas, ou sequer, uma
ética é o medo de não pertencer mais ao sistema. Olhar aristocrática maneira de desprezar e fazer sentir que não se
para trás é converter-se em sal. A experiência adulta des ouve o pensamento que quer viver revoltado no cotidiano:
valoriza a plenitude da vida inexperiente. Transmitindo forma o homem que sobra (Lefort).
experiências, adquirimos uma grande covardia, perdemos O mesmo mal-estar de dez anos atrás volta a minha
a coragem de simplesmente ir. A ética e as verdades ensi memória. Sinto que o mundo oficial da Filosofia do Direito
nadas na escola nos escravizam àquilo que é eternamente segue sendo o melhor modelo de uma prática acadêmica
ontem. que funciona como um “freezer” do saber: verdades bem
Clarice Lispector tem uma forte imagem que fala de conservadas, tecnologicamente guardadas, para que pos
uma mulher que se sentia, pela cultura, um tripé estável. sam atravessar o tempo sem deteriorar.
Ela era uma mulher de três pernas. Estava imóvel, mas É um mal-estar que Enrique Zuleta chama de “ciência
segura. Ela sabia que somente com duas pernas é que satisfeita”. Um saber disposto a realizar o ideal de progres
pode caminhar, mas tinha o medo de não ter mais as garan so indefinido dos estamentos lógicos de seu discurso e
tias de pertencer a uma cultura, de sentir as duas pernas “maldisposto” para reinstalar como vozes do saber.
que andam, sem mais a terceira que prende. A terceira E n co n tro -m e d ian te do resu ltad o de uma
perna é a morte dos nossos desejos. Ora, para ter coragem “epistemologia satisfeita” que toma todos os cuidados para
de perder a perna que sobra, nosso cotidiano precisa fun que a ciência não entre na vida. Para isso precisa-se con
cionar de forma parecida à comuma lúdica das crianças. servar o lugar do mestre como um território cordial de
Cortázar confessou uma vez que se sentia satisfeito porque intimidação e de policiamento contido e invisível.
soube viver. Ele sempre deu valor para apreender a vida Zuleta lembra uma frase de um cientista político so
da criança que ocupou todo o tempo dentro de si. bre sua ciência empírica que gostaria de projetar para o
164 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 165
pensamento jus-filosófico: estão tocando a lira, enquanto que podemos trair os códigos das ciências. Esse é o sentido
Roma arde, mas não sabem que estão tocando lira nem que da literatura como prática sem sujeições que dava Barthes
Roma arde. Imagem muito parecida que guardo de um de e que nós devemos recuperar para as aulas universitárias*
meus velhos mestres que, anos atrás, continuava montando se desejamos que elas sirvam para esquivar a grande im
no quadro-negro seus brinquedos lógicos, enquanto lá fora, postura autoritária da linguagem: o congelamento das sig
na rua, os pára-policiais e seus carros faziam ouvir as pri nificações.
meiras sirenes de um militarismo que nos empapou de Com o que termino de escrever, começo a compre
violência. O mestre seguia imperturbável em seu espaço ender a impossibilidade de carnavalizar um simpósio aca
lúdico. Acredito que, durante todos estes anos, a lógica o dêmico sem romper completamente os padrões estabeleci
salvou de ter medo. É absurdo pensar que agora a lógica o dos. É absurdo pensar num congresso de cronópios. É
devolva à vida. Para ele, sempre será melhor não ouvir. como se Galtieri trocasse pelo samba a marcha prussiana
Penso novamente em Zeling, sua histérica necessida de uma parada militar.
de de assimilação que o levou muito perto de Hitler. Tal
vez os que se desesperam, por assimilar a vida às teorias
da ciência, terminem perto de um nazismo da ciência. 6.15 Carnavalizar as ciências sociais é deslocar uma
Não estou discutindo o valor operacional da lógica e herança, subverter o ideal de uma ciência rigorosa e objeti
sim certas formas de comportamento acadêmico revelados va, estabelecer o earáter imaginário das verdades e com
em seu nome. Molesta-me o fascismo de uma ciência into preender que, através do “gênero” científico, nunca pode
lerante com os que ficam insatisfeitos com suas conquistas. rá efetivar-se a crítica à sociedade e reconciliar-se o ho
Daí que a didática carnavalizada é uma fuga dos grilhões mem com seus desejos. O programa metodológico das Ci
das reconstruções racionais: claramente, uma ruptura em ências Sociais nada tem a ver com a missão da crítica e a
busca dos fantasmas do pensamento racional. realização do desejo.
A didática carnavalizada pretende mostrar ludicamente A crítica tem, por vocação, incluir-se no mundo, cons
a utopia, o sonho e os desejos como o duplo da verdade. O truindo uma zona intermediária entre as instituições e a
que está em jogo então? A aula, como transgressão dos fantasia. Ela é sempre uma construção utópica da realida
limites do saber e mergulho na vida. A carnavalização en de. Nunca é uma explicação sistêmica.
quanto reflexão cognitiva, tenta reconstruir as condições Penso que o gênero que melhor realiza é a ficção
de possibilidade de uma significação sempre equívoca. comprometida. As verdades propostas pelas Ciências Soci
O que eu chamo de “direita do saber” é precisamen ais não deixam de ser um tipo de ficção, mas que permite
te a imposição de um conhecimento que ordena uma con a elaboração de discursos enamorados da morte que ser
formidade com o real, nega a possibilidade das utopias e vem para a manipulação ou então para a mutilação dos
nos sujeita a uma resignada adequação entre as palavras e desejos. É uma ficção inútil.
as coisas. Não se libertam os atores sociais (os desejos) apenas
É através das ficções, brincando com as significações, com os esquemas da lógica da ciência. A construção de
166 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 167
discursos marginais (que não dependem de um cabedal de literatura perde seu rigor, encontra muitas vezes sua ampli
crenças autoritárias) - demanda uma hipersensibilidade muito tude; consegue transmitir um estado de espírito mágico
diferente da contida sensibilidade dos sistemas científicos. frente à realidade. Por isso aposto na carnavalização como
Os paradigmas da ciência explicam, mas não mudam a uma projeção da arte para uma compreensão do ato de
cabeça da gente. Para isso precisamos desviar-nos das fic- compreender. Assim também a escola (carnavalizada) cum
ções científicas, carnavalizando-as com a utopia literária. prirá sua grande missão: despertar o homem.
Ora, se com os esquemas do método e da ciência
nem sequer podemos assegurar-nos que o mundo exterior
existe, que podemos esperar quanto ao problema que se 6.16 l 2 de dezembro de 1984- Quero registrar d
refere ao homem, seus medos e suas paixões? momentos comoventes que vivi em Buenos Aires.
CarnavaÜzando a Epistemologia, reconheceremos que O primeiro: dez anos depois volto a participar, na
as verdades propostas pelas ciências sociais são: explica Faculdade de Direito de Buenos Aires, de uma experiência
ções assustadas/respostas omissas/conceitos mutilados que pedagógica: um encontro, uma sensibilidade para mudar o
provocam práticas mutiladoras/ montagens insensíveis/ mundo. Uma experiência gratificante: a plenitude de um
questões sem desejos/ hipóteses deserotizadas/ convicções instante. “A partir da pedagogia” eu me inventei docente,
sem futuro. percebendo minhas fraquezas, descobrindo os pontos ne
Estou cada vez mais convencido de que a enorme gros do modelo pedagógico que inicialmente havia assina
tarefa de reconhecer e superar nossa condição de sujeito lado. Como muitos, havia endeusado a Gioja sem perceber
constituído de medo, na descomumal tarefa de superação o ritual de distanciamento que engoli, copiando o mestre
de nossa condição de indivíduos descidadanizados, na per grupalmente endeusado. Saio da reunião impulsionado a
manente necessidade de clarificar nosso passado, para evi botar no papel algo do que o encontro me provoca, me
tar futuras cegueiras, consiste em harmonizar as idéias com contagia, me leva a pensar, mexendo com meus tabus.
os desejos, rompendo o muro da ciência. A pedagogia é o Penso que a sala de aula, virando espaço de jogos e
lugar desse equilíbrio. aventuras lúdicas, abre para os adultos a possibilidade de
As hipóteses científicas sobre o medo não incitam a aprender a serem sensíveis, de adquirir a vocação do pre
superar o que o medo paralisou. Só se supera vida vital sente, permitindo aos jogadores se conectarem pelos sen
mente e não com educados e metódicos desejos. timentos. Assim, a animação lúdica é uma porta para a
Precisamos conhecer a ciência fora da ciência. Os redescoberta da paixão pela vida, uma incitação para cair
grandes da literatura, já dizia Rabelais, são a consciência da no instante e procurar nele as experiências, (como se diria
ciência. É a literatura que dá resposta ao interrogante em espanhol “cumbres”) , o relax energético de um orgas-
nietzschiano do sentido da ciência. A estética é o espaço mo em plena luz. Os orgasmos “cumbres” precisam ser
onde se pode responder as grandes questões das relações habitualmente atingidos para iluminar as inevitáveis roti
entre a ciência e a moral. nas, desarmar nossos pequenos momentos ocos, e quebrar
Na viagem ao fundo da condição humana, quando a nossa tendência à sedentariedade dos corpos e dos afetos:
168 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 169
o paraíso penetra pelo corpo e pelos desejos satisfeitos. nos nus. Então temos uma didática do distanciamento onde
Quero falar em plural do orgasmo para livrar-me da idéia professores e alunos, longe de se desnudarem, afastam-se
de uma máxima sensação que nos tentaria levar à morte. cada dia mais, preenchendo, com verdades, as distâncias.
Trata-se dos vários modos em que se pode multiplicar a Impressiona-me lembrar os muros cordiais impostos
plenitude da percepção de um instante. no grupo Gioja. Era um afeto ao mestre construído de dis
Gostaria de designar esse tipo de orgasmo como uma tâncias, de complexas e atuais senhas e contra-senhas. A
sensação de eternidade, uma serena loucura. Um senti relação com Gioja nunca foi direta - todos eram ajudantes
mento de algo sem limites, oceânico, para dizê-lo de algu de algum lugar-tenentê. Isso marcou uma das grandes dife
ma maneira. O ato extremo do imaginário do amor: a mais renças que nos separavam. “Ser ajudante de” era uma das
serena imagem do rosto amado. marcas que estereotipavam no grupo e que hoje ainda muitos
O orgasmo cósmico é uma vivência lúdica que de- de nós levam. Todos, talvez para encurtar distâncias, tentá-
sentope a mente, esvazia-a de negatividade, fazendo-nos vamos identificar-nos com Gioja, imitá-lo em tudo. Por isso,
sentir bem. talvez, o grupo foi tão pouco criativo. Sê-lo era atraiçoar o
A tendência é pensar que, depois de um instante de mestre, abolir realmente as distâncias.
máxima plenitude resta unicamente um aniquilamento opor O segundo: Termino de assistir à proposta cênica,
tuno. Não podería existir nada depois do êxtase.- a rotina fundamentalmente lúdica, de Angel Pavlovsky. No momento
vira náusea. em que me deleitava com “A Grande Pavlovsky”, não po
Porém a plenitude não pode ser a negação da cora dia deixar de sentir a necessidade de experimentar, numa
gem. Se fugazmente fluímos um mistral, tenderemos, ape sala de aula, a forma singular em que ele se teatralizava.
sar dos ferimentos, por algum tempo, a um cotidiano colo Seria um modo de arquivar convencionalismos e explorar
rido, a uma ressaca ainda encantada, vestígios fortes do as possibilidades didáticas com que nos brinda o jogo da
doce despertar dos desejos, dos corpos. Depois de um ambigüidade. Assim, teríamos uma desenfadada, irreverente
orgasmo cósmico, pode manter-se o deslumbramento que e aloucada proposta pedagógica que precisa contar com a
permite uma relação livre com os acontecimentos, com a cumplicidade dos alunos. Eles seriam co-estrelas de um
vida. divertimento que desafia permanentemente a imaginação,
Precisamos dar-nos conta da importância de uma di dissolve preconceitos e convida a exteriorizar afetos sem
dática do orgasmo. Precisamos praticar uma pedagogia do inibições. Inclusive propõe a produção coletiva de um or
potenciamento para aprender antes de mais nada a sentir- gasmo, incitando o público para que reproduza seu modo
nos bem. de gemer nesse instante. Uma exclamação que recorre à
A sala de aula deve ser um espaço para crescer, para sala como um sinal do que precisamos fazer, para aliviar o
excitar-nos perspectivamente, para a descoberta da impor espaço social de tantos desejos reprimidos. Coro de vozes
tância de animar-se a viver. Muitas vezes a voracidade que sintetizam a proposta: entrar em calor, soltar o corpo e
intelectual substitui o medo do encontro com os outros, o os afetos para se comunicar com os outros. Um diálogo
medo de pensar sobre nós mesmos, o horror de enxergarmo- para transformar nosso “eu” numa festa com o mundo. Uma
170 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 171
forma de esvaziar a mente pelo orgasmo, de se animar a como lugar reservado das verdades, dos argumentos com
viver sem ter voracidade pelas verdades, pela razão e dono, e o lugar da Grande Pavlovsky. Este é um lugar de
empanturrilhados conceitos unívocos. O orgasmo nos lim festa que suprime as distâncias e as hierarquias. É o
pa de tudo isso. Todos nós precisamos, para nossa saúde cronópio assumido como diva marginal, de um estrelato
mental, de um espaço de loucura. Um bom docente como carnavalizado. Nesse lugar, o docente simplesmente se sente
A Grande Pavlovsky deve propor a seus alunos: partici o destaque de uma escola de samba. É o divismo democrá
pem da minha loucura. Não existe nenhuma reformulação tico do carnaval. Não existe coisa mais difícil que repre
pedagógica, se não se guarda algo do espaço institucional, sentar-se a si mesmo. É o resultado de uma profunda expe
para que possamos ser co-protagonistas de uma loucura, riência interior. O divismo resultante contagia a saúde men
para que possamos pôr em cena uma ilusão. Ninguém tal. A universidade precisa de professores que ensinem a
pode-se educar sem fantasias. Ninguém pode-se educar seus alunos sua experiência interior. Docentes que se mos
através das distâncias emocionais que a ciência provoca trem providos das fantasias que a quietude mata nos ou
numa sala de aula. A neutralidade científica não potencializa tros. A proposta, presumivelmente, seria um jogo sem re
afetivamente o aluno, toma onipotente o docente. A Gran fúgios. Uma fervente intimidade que nos coloca diante do
de Pavlovsky é uma diva. Nunca oculta no palco sua ne cerne de uma revolução pedagógica: o ensino sem distân
cessidade de ser estrela. Porém mostra, também, uma for cias, violentamente contra a prática educatica dominada
ma positiva de exercitar seu estrelato, pede cumplicidade, pela representação da verdade. A procura da verdade não
propõe um narcisismo debochado. Curiosamente todos se seria o forte desta pedagogia, é o medo, o que procura
identificam no deboche e compreendem que, para receber para arrancá-lo da base dos processos tranqüilizadores. Pre
afeto, é preciso saber pedi-lo. É um narcisismo que saco cisamos fazer com que as lágrimas riam como elogios à
de, que emociona. fantasia.
Diante de nós está um homem muito diminuto que A didática lúdica representando-a como um novo elo
precisa se afirmar como mulher e que implora - simulando gio à loucura. A didática tradicional funciona como o coa
brincar - ser profundamente amado por todos. dor invertido de Cortázar que faz beber a água do macarrão
Pode um docente ser uma Grande Pavlovsky? como se fora a verdadeira comida. Isso porque a razão,
Inclino-me pelo sim. É um estrelato que possui uma que orgulha o ocidente, quebra a cara contra uma realidade
especial qualidade: mostra-se tão nu que termina conver- que não se deixa aliciar pelas frias armas da lógica e da
lendo-se numa fonte de energia. Um docente pode ser, ciência. Nesse ponto precisamos a ruptura de todos os la
para meu gosto, um divino cálido. Eu sou uma Grande ços razoáveis, apelando ao inesperado, fazendo aposta no
Pavlovsky e sei que sou um grande docente, um docente jogo de todas as idéias, juntando os corpos, vencendo a
diferente. Todos gostam de meu estrelato: mobiliza, con todos os estratagemas do medo, tentando que a ficção e a
voca, desinibe. Vendo a Pavlovsky, identifiquei-me como realidade não distingam seus limites. Somente assim não
docente. engoliremos água coada por macarrão.
Existe uma grande diferença entre o lugar do mestre, Aleluia, já é hora de que em cada coisa reconheça-
172 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 173
mos nossa loucura, permitindo advertir o reverso, inverter insurgerência contra a história ficcional conivente com os
no fundo do ser uma imagem insípida e triste do mundo, hábitos consagrados do pensamento e os comportamentos
de uma vida fechada sobre si mesma. O louco é sempre dominantes dos homens socialmente estabelecidos.
um navegante de dupla mão. Um argonauta ambivalente, A literatura carnavalizada é uma linguagem que pro
possuidor de infinitas máscaras para debochar do instituí cura a posse do homem como pessoa, do homem vivendo
do, substituindo a razão dos grandes sábios pela razão e sentindo-se viver.
proteiforme do desejo. A loucura tem vocação de meta Profundamente imoral dentro da escala de valores
morfose. Daí que o louco que consegue ser assimilado na acadêmicos, a literatura carnavalizada visa, rejeitando a es
vida instituída pode contagiar-nos, ludicamente, com seu trutura do pensamento prevalecente, à reconciliação do
ardor. É importante reparar que, para que a loucura seja homem com suas paixões.
eficiente na universidade, ela deve ser instituída. Sem a Pois bem, sedenta de ser, enamorada do impulso vi
institucionalização do câmbio, nada muda. Um louco solto tal, tentando estar de bem com a vida, a carnavalização
não faz verão. embebe o homem com um grande conforto. Ela dá, mais
Para sair desse fragmento quero apropriar-me, altera que uma rebelião, a possibilidade de estar de bem com o
do de um momento do espetáculo de Pavlovsky: mundo, eliminando as angústias. Impedindo, pelo riso, o
A mim me encanta a gente que fica dormindo em extravio, as exigências que consomem a vida. O desgarro
minhas aulas, porque é sinal de que nelas encontraram a que nos estrutura, formando nossa vontade de sossego.
paz. Acompanhando o entendimento cortaziano da litera
tura como uma empresa de cumplicidade verbal, para ima
ginar a realidade, proponho com a carnavalização um es
6.17 Certamente que não estou fazendo a apologia paço de apreensão coletivo, lúdico, erótico e marginal.
da literatura do “sujet assujeti”. Não podemos deixar de Uma sutil demolição das regras do jogo através do desen
perceber que existem formas cortazianas puras, e sobretu volvimento de formas poéticas que permitam uma grande
do letárgicas, de utilização da literatura. Elas dão continui virada. O desvio para desintegrar os padrões de uma soci
dade ao fio de um discurso que não cessa de entrelaçar a edade onde tudo funciona como se as coisas estivessem
lin gu agem p o é tica aos p ro to co lo s do racion alism o determinadas de antemão.
cientificista. Trata-se de uma literatura que pensa, como a É a prática de um espaço de vigília, expressado pe
ciência, o lugar do sentido como objeto. las potências da imaginação. Isso é a carnavalização: um
A dúvida justifica-se. A literatura não escapa às possi impulso de substituição da ficção científica por uma ficção
bilidades de juntar-se à ciência (e outras versões racionalistas cúmplice. Dessa maneira surgem recursos de apreciação
do mundo), ao construir uma sociedade objetivada, uma que permitirão ao homem aventurar-se por conta própria,
sociedade de desejos empacados e ações mutiladas. Bem tentar cair fora dos desejos mortos, do fim pré-anunciado
ou mal, a carnavalização como gênero poético (como gê no início.
nero das arte s) co n seg u e afirm ar um p rin cíp io de Na literatura carnavalizada, sempre se ensina nada;
174 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 175
surgem presenças, testemunhos, cumplicidades que podem - lançar para fora de si, como algo estranho, o que conhe
servir para aprender - nos atritos das paixões com a espe cer. Ao contrário, do ponto de vista do entendimento
rança marginal - como o corpo pode penetrar o significado carnavalizado, as representações coletivas podem ser asse
para fru í-lo com o coisa viva, im prevista e tam bém guradas pelos homens que participam uns dos outros. Sem
provocativa. um discurso que apele à totalidade de cada um de nós, é
À luz de tudo isso, diría que a carnavalização literá difícil dar o pulo, encontrar o medo ou o amor, a terra e
ria, como lugar de significação louco e imprevisível, é algo suas paixões. A ciência raramente sacode.
assim como a vida, na medida em que despreza as boas Terem os que ser um pouco com o a heroína de
maneiras da cultura aconceitual. “Montenegro” - o belo filme de um talentoso iuguslavo -
No mundo das ilusões conceituais, foi-se eliminando que precisou descobrir, na marginalidade febril e carnava
progressivamente a cosmovisão mágica, fantástica, substi lesca de uma boate turca de Estolcomo, a importância da
tuindo-a pelas articulações que ilustram o método científi- imprevisibilidade dos desejos e envenenou com doces os
co-epistemológico. O interlúdio mágico encontra sua saída responsáveis por seu letargo. Na morte daqueles que sim
na marginalidade. Ali o mago vencido sobrevive como posta bolizam o lugar de seu luto encontrou a ressurreição. No
de marginalidade. Ali o mago vencido sobrevive como posta confronto com a marginalidade, detectou os sinais do dese
de certezas perdidas e a urgência metafísica de posse na jo, do prazer que unicamente dá o imprevisível. Entendeu
vida. que a vida perde seu sentido se nos preocupamos por não
Não obstante o trajeto da razão platônico-carteziana ser nada mais que um passado inalterável e perfectível.
no ocidente, é das “vozes negras” (ainda não branqueadas Estratégia efetiva, erótica, sensual e paradisíaca do corpo
pelas ilusões do racionalismo) que podemos tentar uma que entende que o desejo vive do imprevisível. Ele nunca
saída, o exame de consciência de uma sociedade que apo será dado, se não diluirmos os preconceitos confrontando-
drece eticamente e deixa-se no letargo. Uma sociedade os com a marginalidade.
cheia de desejos burocratizados, carente de paixões e de Faz algum tempo renunciando as trilhas do fenôme
emoções fortes. no cognitivo puro, penso que unicamente os desejos ensi
Do ponto de vista da cosmovisão carnavalizada do nam, que é através das emoções e não das instituições que
mundo, de uma mentalidade carnavalesca, as vozes bran vamos aprender o fio da melodia que precisa correr por
cas (vozes castradas) valem enquanto suporte das ilusões nosso sangue. Essa é uma capacidade que precisa ser ex
em torno da captura do real. Uma fascinação e um hipno traída da produção marginal da vida. Vozes e formas pri
tismo pela linguagem objetivada que anestesia as possibili mordiais que conformam aquele subsolo de que falava
dades de sentir uma íntima participação na vida. A Dostoiévski. Para o atormentado poeta russo, a tomada da
carnavalização é o discurso que se frui. consciência frente ao confllito e à pluralidade está marcada
pelas vozes marginais da sociedade. A partir delas, con
Do ponto de vista do entendimento científico do real, frontando-nos dialeticamente com elas, é que poderemos
conhecer é, em geral, objetivar. Objetivar é - arrisca Cortázar revelar-nos contra a arrogante atitude de que a razão e a
176 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 177
ciência podem tudo. pela participação, pela irrupção em outros seres. Porque o
Com seu romance “Memória do Subsolo”, Dostoiévski que Dostoiévski consegue expressar é a transposição poé
recupera, de seu exilio gelado, seu lugar nas letras russas, tica da angústia pessoal na ansiedade de ser outro.
desprezando - através da exaltação de um primitivismo Para m elh o rar essa a n sie d a d e, p recisam o s
disparatado e irreverente - as idéias claras e nítidas, no despreocupar-nos com a coerência e a unidade e situar-
fundo, as boas maneiras da cultura européia. É o romance nos nos interesses dos hábitos consagrados. Isso permite -
da consciência do cronópio moscovita. É uma maneira de recuperando os significados desclassificados nos quadros
recuperar o desejo na marginalidade. Vadinho não deixa acadêmicos - manifestar o desejo do novo para o desenro
de ser a versão tropical de um personagem de Dostoiévski. lar dos conflitos.
Com as vozes do subsolo procura-se uma cumplici A marginalidade é para a semiologia a possiblidade
dade contra o conformismo bem-ajustado, ressaltando-se de reencontrar a linguagem do estado nascente. Nesse es
que a intimidade do homem pouco tem a ver com a lógica paço, rejeita-se o predomínio da racionalidade científica.
e nada com a espontânea cultura científica. Dissolvem-se discretamente os padrões assertivos através
A voz do subsolo é a exposição do homem-carne do desenvolvimento de formas poéticas que vão nos reve
contra os muros do dever cartesianamente erguidos (muros lar o sentido da experiência como coisa viva.
edificados pelas ciências positivas para a paz dos reba E essa sutil demolição do poeta russo que se expan
nhos). de nã grande literatura que sobrevêm - Proust, Kafka,
Em suma, com este romance (chave metafísica da Cortázar, como Picasso, Bunuel, Chagai que não buscaram
poética de Dostoiévski), tentou-se reivindicar o livre arbí o significado, encontraram-no. Mais do que como um sim
trio, nos níveis inconscientes da natureza do homem e so ples conhecimento, como a ânsia de ser cada vez mais.
bretudo a experiência desejante. Mais que aprender a dis A marginalidade permite atravessar fronteiras e bur
tinguir o erro da verdade, importa saber distinguir o dever lar as alfândegas impostas pelas palavras que abrigam ver
do desejo, a vida da morte. dades.
Quando Bakhtin propôs a carnavalização, opondo A carnavalização como um discurso epistemológico
Tolstói a Dostoiévski, estava também tentando contrapor a marginal não aponta para uma posse da realidade. É um
poética, como um fenômeno cognitivo puro, à poética como território de significações que não tem necessidade de ex
fenômeno de encantamento promordial primitivo. Isso e as plicar. Imagens caçadoras: um diálogo se instala entre o
formas simbólicas anteriores à hegemonia racional e que homem e a vida. Situação diferente à da ciência, na medida
logo subjazem como vozes negras em seu famigerado im em que as vozes carnavalizadas não perdem tempo em
pério. Assim, a carnavalização significa o prosseguimento corroborar seu conhecimento. Espaço lúcido onde as ver
das formas primordiais em outro plano. É por isso que a dades ficam sempre fora de seu lugar.
carnavalização consegue expressar a rebelião individual Tendo consciência do subsolo, empreendendo cor-
contra o determinismo científico. Expressa simplesmente a po-a-corpo com as vozes negras, desprezando o mundo
tomada de consciência frente ao conflito e à pluralidade pronto-hiperordenado e acabado, as significações carnava
178 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 179
lescas repõem as relações primordiais com a vida, invadin o desejo na razão fechada, levou Eros ao encontro de
do o mundo enquanto marginalidade. Thanatos.
A partir da versão carnavalesca do mundo, dentro da A Epistemologia da Complexidade, de Edgar Morin,
cultura marginal, a ficção científica e a literatura ficam d e te cto u os m esm os p ro b lem as do paradigm a da
indiferenciadas e bem dispostas para os atos de leitura modernidade constatados pela epistemologia carnavalizada,
plural. Todo seu encanto repousa num desvio mágico dos tan to que co n tra p õ e razão fech a d a (lo g ic ism o e
elementos básicos a partir dos quais a ciência pinta - com transcedentalizações característicos da modernidade) e ra
palavras sem cor - a sociedade morta: “mais ou menos zão aberta (sensibilidade e subjetivismo).
homens, mais ou menos frutas”. A epistemologia da complexidade percebeu a desor
É o espaço público burguês estruturado como nature dem inserida no meio da lógica científica. Ao duvidar do
za morta. Privatizando o homem, ocultando-o a domicílio. objetivismo e do rigorismo científico, o pensamento com
plexo inseriu o homem no processo de conhecimento, é a
d o b le hermenêutica de que fala Morin, e a necessidade de
autoconhecer-se a que me refiro.
6.18 20 de novembro do último ano do milênio. Pas Morin, através da percepção da complexidade do so
saram-se muitos anos, termino de reler este capítulo da cial, admite a incapacidade do homem para perceper a
carnavalização, ficando óbvio para mim, a relação da totalidade do real, a realidade somente se nos apresenta
carnavalização com a teoria da complexidade de Morin. em partes; não existe uma verdade absoluta, mas muitas
Quando eu escrevia sobre a carnavalização, há quin verdades que dialogam entre si, algumas coincidem, outras
ze anos, já sentia muito forte dentro de mim a necessidade são incompatíveis. Ignorar essas partes do real, porque não
de inscrever a teoria na vida, ou a vida na teoria, se prefe servem para nossa idéia pronta e etiquetada do mundo, é
rirem. As teorias sociológicas e políticas, a filosofia e a não compreender a complexidade da sociedade e não com
filosfia do direito, sempre foram um pensamento ordena preender-se como parte dessa complexidade.
do, e s tá tic o , e co n se q ü e n te m e n te , sem vida. As
transcendentalizações características da ciência moderna são
o h a b itat de Thanatos.
A carnavalização propôs a intertextualidade dos dis
cu rso s, relativ izan d o o seu cará te r d o g m ático . A
carnavalização desde seu princípio foi uma proposta de
quebra com o autoritarismo das verdades científicas, ela
sempre foi um caminho para a democracia.
A carnavalização desordenou o racionalismo da ciên
cia moderna, valorizando a subjetividade humana ao trocar
a posição do observador pela do participante. Inscrevendo
180 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 181
regados de poesia. Um monte de detalhes esquecidos, dis Duas culturas, duas cidades, dois tempos. Jogo do
solvidos pela insônia de Thanatos e de Pan, mas que per tempo. Enfim a escrita atemporal. O lugar do desejo. O
maneceram amorosamente guardados na história de alguns jogo do poder contra a liberdade. Warat tropical? Luís, rei
corpos amigos: é o fim do exílio de mim mesmo. Recome do Prata? Previsivelmente um corpo que carnavaliza o tango
ço a entender que durar não é melhor que arder. e “tangifica” o carnaval. Um corpo que necessita mitificar o
Meus heróis estão morrendo neste livro: Kelsen, tempo, simulando que não passa, para sobreviver.
Barthes, Cortázar, Gioja, o direito. Estão ficando adormeci Ser jovem é não ter pressa. Envelhecer é não saber
dos no solo, fora de mim. Depois deste texto que me faz viver ao máximo o momento, prolongando-o.
envelhecer para a juventude, uma criança crescida será
meu último pai. Meu último eu. O anti-herói que não pre
cisa provar nada a ninguém, que necessita unicamente de 7.3 Quando se fala de intertextualidade, poucos lem
sejar a vida, ir para o sonho. bram o amor. Porém os melhores intertextos são as vozes
Eu já aprendi bastante o que outros pensaram. Agora da amada do escritor. O lugar do amado e o lugar da fala
preciso seguir o caminho de meus desejos, sem trilhas. O que quase ninguém reconhece, que se apresentam disfar
caminho do imprevisível. Quero arriscar-me no acaso, sem çados de gesto de carinho, de indignações domésticas que
bússolas que me guiem. Só contando como única bagagem os intelectuais prisioneiros de certas doenças laborais igno
minha decisão de chegar lá. ram: arrogância dos divos, carregada de incríveis intuições
Apago os passivos espelhos do hábito. Fico desarma sobre as ironias disfarçadas da adulação que sustentam a
do na difícil tarefa de viver sem saber para onde voltar. vida acadêmica dos discursos consagrados nas -selvas das
Não quero confinar-me no que vivi. Minha vida é a história verdades universitárias.
de meus preconceitos. Não quero ter um eu encontrável Quantas vezes a voz do amor perde seu tempo, seus
ou estável. É difícil perder-se. desejos para tornar sensatos os elogios interessados que
aplaudem sem ler.
É no amor que se cruzam honestamente os discursos.
7.2 A ciência jurídica e seus dois maridos é um livro Um intertexto sem citações eruditas, de idéias que vivem
escrito com duas penas. Talvez tenha sido escrito à procu sem ser enganadas por uma aparência acadêmica.
ra de minha dupla viuvez. Custou-me descobrir a intensidade desta forma de
Provavelmente estou escrevendo-o para dar-me conta amor. Demorei um pouco em descobrir como amar um
da necessidade de um ambivalente réquiem de duas cultu desejo que se intertextualizou profundamente.
ras: das cadências do tango e do samba, que me atraves
sam e me fazem dançar com a malícia e os requebrados
das cabrochas e seus malandros. Mas também com a poli 7.4 25 de dezembro de 1984- Eu sou um mágico, um
dez e o desgarro sensual de um “malevo” melancólico. ilusionista, um vendedor de sonhos, de ilusões e fantasias,
Tudo isso sem ter o mínimo ouvido musical. Quando eu entro numa sala de aula, proponho, imediata-
184 A ciência jurídica e seus dois maridos 185
Luis Alberto Warat
mente, a substituição do giz por uma cartola. Dela sairão espaço de ambivalências. Na ambivalência do discurso é
mil verdades transformadas em borboletas. Eu sou uma abe que se constitui a ilusão. Na imprecisão significactiva é que
lha vampiro, uma abelha da ilusão que suga verdades, os está o “locus nascendi” dela, o estímulo das paixões.
fragmentos de múltiplos saberes, as palavras que me acari Eu sou um jogador do ambíguo; esse é meu segredo
ciam - para construir os favos em que desejo pôr o mel. pedagógico.
Com meu comportamento docente procuro a utopia, falsifi A teoria é a arquibancada da vida. Meu circo não tem
co a possibilidade de construção de um mundo, de/e pelo arquibancadas como condição de um desejo de derrota,
desejo. Ministro sempre uma lição de amor, provoco e tem o prazer de viver as ruínas de uma falsa claridade
teatralizo um território de carências. Quando invado uma assumida diante do mundo, quebrando a continuidade das
sala de aula se amalgamam ludicamente todas as ausências instituições morais. Porque a não razão do desejo deve
afetivas. O aprendizado é sempre um jogo de carências. revelar a inconsistência do mundo razonável., A ilusão da
De diferentes maneiras, sempre me preocupo em verdade deve morrer para dar passo a um novo mundo
amoroso fundado numa ilusão que a razão logocêntrica cha
expor à crítica a vontade de verdade, a partir da vontade
do desejo, como bom alquimista que sou, transformo o mará loucura.
espaço de uma sala de aula em um circo mágico. Assim é O meu ensino é pura utopia.
que executo a função pedagógica da loucura. Apelando à utopia, abrem-se os obstáculos para o
desenvolvimentos das paixões brilhantes. Dessa forma vive-
Isso me converte inexoravelmente em um Judeu er
rante. E no devir que a loucura pedagógica - como erótica se a crítica à sociedade e ao seu saber.
marginal - adquire seu sentido pleno. O circo não pode A cultura judeu-cristã precisa da morte da ilusão. Um
parar nunca, deter-se é não levar mais alegria para lugar comunista é menos perigoso que um ilusionista. O cresci
algum. Para ter alegria, é preciso sempre sentir o circo mento da produção exige dissolver as possibilidades histó
voltando. ricas do sonho e da fantasia. Reivindiquemos o direito à
Eu me sinto um circo mágico, talvez um circo mam ilusão e à preguiça. Vivamos a magia de Macumaíma. De
bembe, um circo com muitos cachorros vira-latas e ne tectemos os sinais do novo longe do trabalho, na mais valia
nhum animal domesticado. Sinto-me num circo safado, mar das paixões. Compreendamos que a democracia conquista
ginal, onde é preciso ter também a ilusão do próprio circo da é também uma ilusão mágica.
O carnaval é um grande circo fantástico, um convite
e o encanto de uma mentira bem sustentada. Necessito
que, em meu circo, os palhaços também riam para eles onde se trata de estimular coletivamente a atração apaixo
mesmos. nada como uma chamada a todos que estão impacientes
É preciso que a sala de aula vire magia para que por gozar e sonhar.
possam desenvolver-se numerosas fantasias novas. Nesse Quando, há quinze anos, compus com Entelmam
ponto é que o público de um circo mambembe se sentirá “Derecho al Derecho”, via-me como a mago de Bergman
necessitando de enfeites e enigmas para vender o sonho
participando do circo de Moscou. A grandeza de uma ilu
são depende de quem a recebe. Para isso é preciso de um do amor. Hoje já aprendi que o maior enigma está na exu
186 Luis Alberto Warat 187
A ciência jurídica e seus dois maridos
berância de um corpo mostrando-se nu. Encontro-me então se com as crenças instituídas, porém, para detectar os si
à procura de uma pedagogia do imaginário, tentando jogar nais do novo, é preciso contradizer alguém, desmentir as
com uma lógica da ilusão, para pôr o desejo no coração da crenças arraigadas inventando um novo sonho, cultivando
história. Desse modo, tentarei inventar o professor ilusio as ambigüidades. O professor ilusionista, com seus gestos,
nista que buscará, com sua carga de borboletas e balões efetua também a crítica ao projeto epistemológico, ressal
coloridos, o constante deslocamento dos limites impostos tando a positividade do desejo, das paixões e as utopias
pela economia institucional. O professor ilusionista é um como experiência de vida. Carnavalizando as verdades, o
permanente sonho transgressor: estimula um oceano de docente da ilusão provocará a emergência metafísica da
desejos insatisfeitos para que transbordem as cadências de alegria, como antídoto de uma ilusão autoritária: a verdade
produção racionalizada. das ciências. O professor ilusionista vende sempre, na
Enfim, o ilusionismo pedagógico reivindica a dimen medida do possível, ilusões democráticas, nunca se coloca
são transgressora do desejo frente ao processo de acumula como dono de alguma delas. A espistemologia clássica é a
ção capitalista. Assim como existe a mais valia do trabalho, negação da carnavalização, rejeita a dimensão imaginária
existe o desejo impago, insatisfeito, reprimido, alimentan das verdades e pretende resolver as questões que ela colo
do o capital. O mérito do professor ilusionista é o de ali ca no âmbito exclusivo da autocrítica do conhecimento.
mentar as possibilidades do desejo como transformador da Mas não existe a possibilidade de entender as questões das
realidade. Dessa forma poderemos entender que a produ verdades, o porquê das paixões e as ilusões que as supor
ção de um mundo objetivo não pode ser executada isolan tam. O professor ilusionista nos fará compreender que pre
do-a do prazer. cisamos acreditar nas verdades (ilusões) que promovem a
O professor ilusionista é um grande amoral que tran vida, e que elas surgem porque precisamos acreditar nelas.
sa amorosamente o saber, impedindo que as verdades su As verdades não têm condições de produção. Têm
bordinem os desejos. Nesse ponto, ele assume como um condições de ilusão.
grande arlequim disposto a defasar as instâncias culturais Assim, a verdade epistêmica é substituída pela ver
repressoras, evitando assim o prognóstico freudiano da ci dade ardente como o mais violento dissolvente do sonho
vilização: o rosto de Pierrot simbolizando o futuro do pro da certeza, a univocidade e a moral sem componentes ma
gresso como o processo de sua repressão. Vendendo so léficos. Gomo professor ilusionista, não quero ser um san
nhos, poderemos entender que as ciências sociais em seu to, prefiro ser um arlequim. Não aceito ser escravo dos
conjunto nunca fizeram nada pela felicidade e satisfação preconceitos, prefiro a amoralidade do novo. É impossível
das paixões. Fourrier estava certo: precisamos acabar com perceber o novo desde um costume, desde a “mores” soci
os desejos e a sexualidade socialmente útil e cientifica almente instalada. O novo é sempre amoral.
mente regrada; precisamos abolir a crueldade dos sistemas Situando-se na perspectiva dos sujeitos éticos (que
morais e da verdade para poder vislumbrar as possibilida tornaram preconceitos os juízos morais), chegam os ;)
des de um mundo erótico. pessismista conclusão de que o homem sempre percebe o
Os picaretas das ciências incertas evitam freqüentar- novo desde o velho. A percepção amoral do novo talvez
188 Luis Alberto Warat
A ciência jurídica e seus dois maridos 189
seja uma utopia, porém o valor pedagógico de uma ilusão verdade como uma “demarche” moral. Na ilusão, negam-se
está na sua capacidade de nos mostrar o limite de nossos as possibilidades do saber como prolongamento da moral,
mergulhos. como demonstração do cansaço de viver. A moral e as
Resumindo tudo: o professor ilusionista nos convida ciências sociais clássicas são extremamente preconceituosas
a uma fuga muito sadia, já que nos propõe pensar nos em relação à vida e sonham com um mundo melhor, longe
saberes e suas verdades sem estar na dependência de seus da história.
preconceitos, crenças e pressupostos. Os professores tra Quando eu falo da ilusão, refiro-me à necessidade de
dicionais estão incapacitados para a crítica, apenas fazem a sonhar, à vontade de viver sem a vacuidade dos valores
propaganda de um sistema de verdades, ou de algum siste supremos e as certezas epistemológicas. As fantasias auto
ma de moral. Suas aulas são preconceitos sobre preconcei ritárias, baseando-se em valores e crenças superiores, fun
tos, uma triste orgia de escravos. O professor ilusionista, dam sempre a metafísica dos escravos. Postulando o ser da
sentindo à Nietzsche, nega-se a fazer o papel da erudição. verdade, reserva-se para alguns homens um lugar superi
Para ele, a vontade de viver deve estar sempre acima da or, introduz-se no espaço social a servidão epistêmica, a
vontade das verdades. Como professor ilusionista, eu colo tirania dos analíticos. Obviamente existem ilusões negati
co a vontade de viver como fundamento das condições de vas: uma delas é a certeza do valor em si, do saber e suas
possibilidades do conhecimento. De outra forma a ciência verdades. Precisamos, então, mergulhar nos desejos, am
será sempre o empobrecimento da vida, uma crença de pliando os limites. Apelando à didática do imaginário, pro
escravos. Um saber sobre o homem que não expanda sua cura-se reinventar a vida, procurar uma extremada revira
vontade de viver é um conhecimento inútil. volta nas crenças e valores que posssibilitarão a continui
Na vida universitária, nota-se a voracidade desenfre dade na cultura platônico-cristã, entre as ciências, a filoso
ada pelo conhecimento. Assim, ninguém vive os instantes fia e a moral. Para enxergar uma utopia, preciso olhar
de seu aprendizado até o limite. Não se desbrava o presen dentro de mim e iniciar uma dura viagem procurando a
te. A qualidade está no presente. Os desejos e as paixões sabedoria: um estado de espírito além do bem e do mal.
também. O erotismo é um ato de multiplicação da qualida Um corpo sem angústias e esgotamentos; um corpo preo
de e a capacidade de perceber o plural dela. O erotismo é cupado em crescer superando os limites na utopia. É preci
o desejo esvaziado de moral, é o desejo pré-racional, é o so que a vida vença a moral recebida. Nesse triunfo, o
desejo novo na qualidade. Na universidade falta a vontade homem poderá elevar-se acima das servidões sociais, O
de sentir. Cumpre-se, então, a profecia de Nietzsche: à homem poderá amar-se.
vontade da verdade fica presa a vontade da morte, atraída Precisamos aprender na utopia que o novo tem o
pela vontade ilimitada de conhecimento. Precisa-se parar o direito de ser a superação do conhecido, da moral. O novo
conhecimento, a moral, para perceber o mundo, para per tem sempre o direito de transgredir as normas, linflm, o
ceber a qualidade nova. O professor ilusionista, para recu professor ilusionista, sentindo Nietzsche, exalta os valores
perar a vontade de viver, apela à criatividade de valores e dionisíacos: a embriaguez e o entusiasmo infinito.
desejos, deprecia o ideal ascético da pureza e a procura da
190 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 191
7.5 30 de outubro de 1999, meu último aniversário razão crítica que não transcende o mundo para transformar-
do milênio.Volto a escrever neste dia, ao revisar este capí se e tentar transformá-lo, além de mostrar um espírito ima
tulo, esta carta aberta a mim mesmo, que decidi tornar turo, é sempre agressiva. A agressividde não rima com
pública, como esta agora, faz mais de quinze anos. sensibilidade, ainda que o ouvido esteja tentando acreditar
Descubro, agora, que aquela criança amadurecida, na concordância sonora dos dois termos. O problema é
continua insatisfeita e adormecida. Resulta muito fácil re como deixar de ser agressivo, falar é fácil, o difícil é adqui
solver os medos no discurso,essa velha armadura com que rir os registros corporais adequados.
nos escondemos quase sempre da vida. Não me orgulho mais de ser um transgressor perdido
Os discursos mitomanos que as pessoas constroem na floresta da vida.
para si mesmas não deixam de ser pobres alfândegas fan A transgressão é um amor tomado pelo amor. Quan
tasiadas de si mesmas. Uma zona franca demais, onde tran do o amor é tomado pelo amor converte-se em adição,
sita impunemente todo tipo de aditos e chantagistas. Dis converte-se em uma paixão tomada pela paixão.
cursos íntimos que terminam, como este texto, sendo ouvi Todos os meus desejos discursivos de outubro de
dos por todos, para que o único e real destinatário, nossa 1984 foram adiados, realizados ilusoriamente em um plu
criança insatisfeita, não os escute. Dever de maestro idiota ral de discursos.
que pretende ensinar a todo o mundo, m enos a ele mes Sempre fui solidário com o discurso dos outros, nun
mo. Ele, como o pior de seus alunos, não se escuta, porque ca com o corpo do outro; faltou-me a sensibilidade solidá
fala demais. Os medos se vencem no silêncio de nossa ria.
sensibilidade interior no silêncio de nossa reserva de sen Agora quero matar o Warat, cuidar unicamente de
sibilidade, a parte mais nobre de nossa reserva salvagem. Luís e de Alberto, essas duas crianças de meu imaginário
Há p o u ca s tard es, fazen d o um e x e r c íc io de que há muito pouco tempo deixaram de ficar adormecidas
neurolingüística com um grupo de juizes, eles descobriram e tentam juntar-se para produzir o novo em mim. Para
que sua criança insatisfeita, quando pequena havia sido produzir juntas a diferença em mim.
muito tímida, como uma forma de refugiar-se do mundo, Luís sempre foi uma criança insatisfeita que gostava
que temiam enfrentar. Descobriram que, inconscientem en de brincar fingindo.ser um cronópio, era um fama mitomano
te, por isso escolheram ser juizes; agora não pulavam car que se mentia dizendo-se cronópio. Alberto sempre foi
naval porque o cargo os impedia, puderam pensar que minha reserva salvagem, que uma única mulher no mundo,
deixaram de ter medo de enfrentar a vida... Agora, enfren- até agora, atingiu; despertou-me, apresentando-me como
tam-na decidindo a vida dos outros. Personagens de um parceiro de Luís.
filme emprestado. Eu sempre fui um mágico, um ilusionista de bengala,
Sem p re me sen ti o rg u lh o so de m in h a atitude que usava um tripé para negar-se a andar com suas própias
transgressora diante do mundo, foi minha m aior adição, fui pernas: Warat foi minha bengala, meu tripé.
um adito da agressividade para que minha criança insatis
feita se reencontre com suas frustrações e as reproduza.Uma Quando falo de Warat, falo de um personagem que
192 Luis Alberto Warat A ciência jurídica e seus dois maridos 193
ras provocam o encanto e a surpresa de enxergar quem é São 23 horas e 30 minutos. Vou deitar-me. Não adi
ou pode ser você. anta esperar.
Minhas máscaras podem ser a matéria-prima das suas.
A mentira criadora. As máscaras, porém, também são um
abre-alas para os enigmas que nos fazem entrar na cultura
e movimentam a lucidez de nossa consciência.
É a palavra como isca para a pesca milagrosa. Você
pode pôr em carne viva minhas lembranças, mentiras, me
dos, ansiedades e desesperos. Minha história transformada
em palavras pode funcionar como um espaço para o reco
nhecimento (e as sucessivas aproximações) das várias in
terrogações abusivamente negligenciadas sobre o poder,
seus arredores do saber e as práticas pedagógicas instala
das como garantia.
Minhas lembranças e emoções empregadas para de
nunciar que as funções vitais das universidades são a de
mascarar a censura oficial, fingindo verdades e negligenci
ando afetos.
Como superar isso, sem criar novos simulacros? Um
passarinho pode querer ter asas de águia.
Entretanto não podemos esquecer que a consciência
se constitui pela luta contra a desordem insuperável dos
enigmas, contra os limites da razão (garantidos pelos enig
mas que asseguram a desordem das idéias). Vamos à luta.
Continuação...