1034-Texto Do Artigo-3754-1-10-20160528

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DIZERES DO

TERREIRO AO
BABALORIXÁ
AJALÁ DERÉ

Marialda Jovita
Silveira 1

(Olõguni)

B
om dia a todos e a todas
presentes a esta Festa. Pe-
ço agô aos meus mais-ve-
lhos, cumprimento autori- [1] Profesora do Departamento
de Letras e Artes – DLA,
dades religiosas, civis e universitárias. Universidade Estadual de
Santa Cruz – UESC, pesquis
Saúdo aos professores, pesquisadores, adora do Núcleo de Estudos
Afro-Baianos- Regionais –
gente do santo, artistas, poetas, escri- Kàwé. E-mail:
tores e amigos desta Casa. <[email protected]>.

[134] Revista KÀWÉ, Ilhéus, n. 7, 2014, p. 134-139.


Foto 98: acervo Kàwé

Permita-me Katulembá Ajalá te, falar sobre um certo babalori- paços e constrói outros substan-
Deré, dirigir-me a você na con- xá, aquele agora indeterminado, tivos amalgamados ao seu fa-
dição de Babalorixá, para falar de sem-nome e sem-lugar, que pro- zer. Professor, poeta, contista,
sua pessoa e daquilo que cons- fessa a sua fé e canta os seus san- pesquisador. Este é você. O ou-
trói as nossas representações so- tos em algum rincão escondido tro, é aquele que sem rosto, sem
bre os seus saberes e os seus faze- perto ou longínquo de nós. Um, substantivos e sem positivas ad-
res. Mas, permita-me, igualmen- assumindo lugares, conquista es- jetivações, exerce a sua condição

Revista KÀWÉ, Ilhéus, n. 7, 2014, p. 134-139. [135]


apenas dentro dos quintais que intelectual, homem da palavra Você para nós é bruxo sim,
guardam os seus deuses, seus se- e mágico dos discursos? porque compreende os desa-
gredos e a sua crença. Entretan- Eu gostaria de hoje, entre- tinos, interpreta os caminhos,
to, os dois, no meu entendimen- tanto, não cantar essa relativi- engana os desenganos, exor-
to, inscrevem em nossa socieda- zação posta em você, mas lhe ciza as desalegrias, dá grande-
de uma apropriação transgressora, amalgamar ao babalorixá sem- za ao espaço da paz, potencia-
a de ser babalorixá, a de assumir a -nome, e lhe igualar à condição liza a inteireza da fé, ritualiza a
religião dos pobres e não coinci- de bruxo e feiticeiro. existência. É feiticeiro porque
dentemente de negros; a de reu- Aqui eu falo do lugar que estando no lugar de quem não
nir desapropriados dos bens cul- escolheu, deu número à famí-
turais considerados legítimos; a
de aglutinar os recortados da ge-
Muito obrigada por lia, aceitou ser médico ferido –
aquele que precisou passar pe-
ografia dos bens materiais, ou
apenas operar a transgressão de
habitar o que somos e la experiência da dor para po-
der tratá-la. É feiticeiro porque
constituir família com os que
ainda acreditam que santo come,
nos presentear com a luta para afastar as doenças do
corpo e da alma, busca integrar
mineral é vivo e que folha fala.
Entendo que a sociedade
sua existência. Neste a sombra à luz, sabe o segredo
das plantas e dos bichos, desa-
outorga dois movimentos pa- dia de 70 anos, neste fia os destinos, empresta os ou-
ra essa apropriação transgressora vidos, aceita a ignorância. Você
de ser babalorixá: a que conce- espaço sagrado, nesta é bruxo e feiticeiro porque zela
de a você, Ruy do Carmo Pó- pela ancestralidade, cuida dos
voas, uma legitimidade da sua Casa do branco, neste filhos sem esquecer as mães, su-
prática religiosa e a outra, aque- as Marias, a do Carmo e a de
la que desautoriza o pai de santo Ilê da Paz. Okolofé Nazaré, a sua Mariinha da Na-
sem-nome e sem-rosto, tornan- tividade. É feiticeiro e bruxo
do-o bruxo, malfazejo e feiti- ocupo como sua filha e filha porque exerce em si a discipli-
ceiro. Quer dizer, a sua condi- de santo, a Iyá Ologbohun des- na extremada, consegue o ges-
ção de homem de muitos luga- ta Casa e pessoa que se inseriu e to mais preciso no ritual, guar-
res e de muitos atributos, relati- vive o cotidiano do Ilê Axé Ijexá da a tradição sem desconhecer
viza aquilo que está absolutiza- Orixá Olufon. Para nós, povo as suas reelaborações, cuida da
do no outro babalorixá. O que de santo, filhos seus, moradores palavra sem esquecer o silêncio,
é esta casa cheia senão o reco- dessa Casa, ser bruxo e ser fei- admira Santo Antonio porque
nhecimento dessa legitimidade ticeiro é sua condição por exce- ele faz parte de seus guardados
autorizada? O que é essa casa lência para ser pessoa e para ser preciosos, narra os mitos nagôs,
cheia senão a relativização dos babalorixá. Essa definição, na- sem deixar de ficar admirado
atributos do sem-nome, agora turalmente, os verbetes de di- com as vozes das Escrituras Sa-
encobertos por sua condição de cionários não trazem. gradas.

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Quando você exerce Você também é bruxo e igual-
mente feiticeiro, quando a pala-
-se poeta ou contista, intelec-
tual ou pesquisador, você di-
a sua condição de vra impetuosa, não permite répli-
cas, mas também não evoca má-
vide com ele igual paradigma,
crenças comuns. A de professar
babalorixá, dá nome goas. É bruxo e feiticeiro quan-
do é abelha que dispara o ferrão
a liturgia que, longe de inspirar
dor ou sacrifício, exalta e reves-
ao babalorixá sem- nos que mexem com os seus fi-
lhos. Você é feiticeiro quando vi-
te o espaço de cor, som e movi-
mento. A de ser íntimo dos en-
nome, dá identidade ve a África sem nela sonhar pisar. cantados, sem ultrapassar os li-
Canta a universalidade de sua al- mites e as fronteiras da força di-
ao sem-rosto, traduz a deia sem desejar ir à Europa. En- vina; a de acreditar na divini-
tende o seu filho doutor e fica ex- zação do homem e na humani-
fala silenciosa dos que tasiado com a sua filha que não zação das divindades, pois nós
frequentou a escola. não nos tornamos santos; já
estão no sacerdócio São essas bruxarias e feitiça- somos divinos, buscando inte-
rias que certamente fazem vo- grar a sombra aos caminhos da
da periferia, nas cê reconhecer que Itabuna lhe luz, sem recalques e sem nega-

zonas sombrias das deu morada. Mas, se Itabuna


lhe deu acolhida, lhe deu ami-
ção.
Vocês dois, Ajalá Deré e o

cidades, nas roças e gos e família, como você cos-


tuma reiterar agradecido, vo-
babalorixá sem-nome, repar-
tem, antes que essas coisas vi-
nos esconderijos que cê também lançou sobre ela, a
sua cidade adotiva, uma luta
rassem moda na academia, a
crença na natureza multifacetá-
lhe foram concedidos incessante contra o preconcei-
to de toda ordem. Contribuiu
ria da identidade. Vocês acre-
ditam que aqui somos uma epi-
como único lugar para tirar o candomblé do espa-
ço da invisibilidade e da folclo-
fania de eus, em que se bus-
ca, na expressão de Maffesoli,2
de professar a fé, a rização, deu, portanto, às pes-
soas em geral a possibilidade
uma pluralização da pessoa, um
excedente do ser. Vocês sabem
louvação aos ancestrais de viverem a sua humanidade. que o papel do duplo, daquilo
Apresenta-lhes com o seu tra- que chamamos orixás em nós e
e aos seus deuses de balho um caminho para reco- donos das nossas cabeças, são
nhecerem a sua alteridade. expressões das nossas possibili-
“contrabando”, para Há coisas ainda que, ao meu
ver, permitiriam aproximar o
usar um termo de babalorixá Ruy Póvoas àque- [2] MAFFESOLI, Michel. No fundo
le outro sem-rosto e sem-no- das aparências. Trad. De Berta H
Augras me. Independente de assumir-
Gurovitz. Petrópolis: Vozes, 1996.
p 315.

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pessoas ouvirão com simpatia e nos
perdoarão, de modo que ninguém
fique ressentido para sempre [...]."
Um espaço em que se “passarmos
por momentos difíceis e por necessi-
dades sérias, as pessoas não nos pe-
dirão fiança antes de decidirem se
nos ajudarão." E raramente, di-
rão que não é o seu dever ajudar-
-nos nem recusarão o apoio só por-
que não há um contrato entre nós
que as obrigue a fazê-lo.” Enfim,
uma comunidade em que respei-
Foto 99: acervo Ilê Axé Ijexá
tamos, em lugar de tolerar.
Por isso mesmo, ambos, vo-
dades de sermos múltiplos e ao ajudarão a ficar de pé outra vez. cê e o outro babalorixá, são im-
mesmo tempo únicos em nossa Ninguém vai rir de nós, nem ri- pelidos a perseguir uma cotidia-
complexidade. dicularizar a nossa falta de jeito e nidade sob a égide da ética, es-
Em ambos, você e o outro sa- alegrar-se com a nossa desgraça”. ta construída longe da vigilância
cerdote, a vontade presente da Uma comunidade em que “se de um papado ou de um poder
comunidade sonhada, aquela dermos um mau passo, ainda po- central. A ética, tomando a ex-
sobre a qual Baunman3 declara: demos dar explicações e pedir des- pressão de Maffesoli, como um
“uma comunidade em que se tro- culpas, arrepender-se se necessá- querer-viver-obstinado4 do co-
peçarmos e cairmos, os outros nos rio; uma comunidade em que “as munitarismo. Vocês acreditam,
cada um à sua maneira, que
aquilo que não sabemos rituali-
zar, tratar e gerir, acaba sempre
por ressurgir, e de modo tanto
mais violento quanto tenha sido

[3] BAUMAN, Zygmunt.


Comunidade: a busca por
segurança no mundo atual.
Trad. Plínio Dentzein. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editores,
2003. p. 8.
[4] MAFFESOLI, Michel. A sombra
de Dionísio: contribuição
a uma sociologia da orgia.
Trad. Rogério de Almeida. São
Foto 100: acervo Ilê Axé Ijexá Paulo: Zouk, 2005.

[138] Revista KÀWÉ, Ilhéus, n. 7, 2014, p. 134-139.


dos nossos, dos seus encantados,
seus gatos e cães, suas folhas e
árvores, dos seus filhos e filhas,
suas equedes, seus ogãs, seus
alabês, seus egbomis, seus iaôs,
seus abiãs. Falo também em no-
me daqueles filhos já ialorixás e
babalorixás que multiplicam es-
ta Casa Ijexá em outros ilês.
E como última palavra, lhe
digo que você é bruxo e feiticei-
ro por tudo que eu disse e mais
ainda, porque na idade que ho-
Foto 101: acervo Marialda
je você completa, tem a força no
corpo para puxar o xirê e dan-
duro e longamente negado. Por às expressões pejorativas e aos çar até o amanhecer, e depois
esta razão é que vocês negam os que estão sendo cotidianamen- nos dizer, zombeteiro, “viram,
demônios personificados, e vê- te desrespeitados pelo funda- eu ainda dou um caldinho!”.
em que os nossos demônios e mentalismo de algumas expres- Muito obrigada por habitar
os nossos pecados são outros: a sões religiosas. o que somos e nos presentear
fome a violência, a incomunica- Maffesoli nos diz que nunca com a sua existência. Neste dia
ção e a morte da pluralidade. se falou tanto em comunicação e de 70 anos, neste espaço sagra-
Quando você exerce a sua nunca se organizou tanto as soli- do, nesta Casa do branco, neste
condição de babalorixá, dá dões como hoje.6 Por isso eu creio Ilê da Paz. Okolofé.
nome ao babalorixá sem-no- que esta Festa que exalta os seus
me, dá identidade ao sem-ros- setenta anos é uma ilha do bem,
to, traduz a fala silenciosa dos nos moldes do que proclama Ed-
que estão no sacerdócio da pe- gar Morin7, e, em sendo assim, é
[5] AUGRAS, Monique. O duplo e
riferia, nas zonas sombrias das lugar de festejar a sua existência e a metamorfose: a identidade
cidades, nas roças e nos escon- a existência dos demais sacerdotes mítica em comunidades
nagô. Petrópolis. Vozes, 1992.
derijos que lhe foram concedi- de tradição afro-brasileira. p. ?.
dos como único lugar de pro- Aqui eu termino, falando em [6] MAFFESOLI, Michel. A
fessar a fé, a louvação aos ances- nome da invenção da vida que sombra de Dionísio:
contribuição a uma sociologia
trais e aos seus deuses de “con- engana a morte, do abraço ami- da orgia. Trad. Rogério de
trabando”, para usar um ter- go, da força da palavra; em no- Almeida. São Paulo: Zouk,
2005.
mo de Augras.5 Através da sua me do nosso axé, do nosso pre- [7] MORIN, Edgar. Mis demônios.
fala você dá voz àqueles expos- ceito, do nosso respeito e do Trad. De Manuel S. Crespo.
tos aos muxoxos, aos soslaios, nosso segredo. Falo em nome Barcelona: Kairós, 1995.

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