Metodologia e RI-V4-P3
Metodologia e RI-V4-P3
Metodologia e RI-V4-P3
Internacionais: Debates
Contemporâneos
Vol. IV
Revisão de texto
Beatriz Ostwald Luz Vilardo
Editoração do miolo
SBNigri Artes e Textos Ltda.
Editoração de capa
Flávia da Matta Design
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forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer
sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora.
1. Relações internacionais – Metodologia. I. Siqueira, Isabel Rocha de. II. Costa, Vítor
de Souza. III. Série.
CDD: 327.101
Prefácio...............................................................................................................7
Isabel Rocha de Siqueira e Vítor de Souza Costa
PARTE I
METODOLOGIAS
PARTE II
MÉTODOS
Entende-se que a discussão crítica sobre metodologia ainda tem papel secundá-
rio na produção científica e que o pensamento produzido sobre o tema advém quase
que exclusivamente da Europa e dos Estados Unidos. Nesse contexto, a produção des-
te quarto volume da série Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contempo-
râneos, cobrindo uma agenda plural e de relevância local, escrito em português, visa
contribuir não só para a discussão metateórica a respeito do tema, mas também para
a consolidação da academia brasileira como um polo de produção de conhecimento
crítico sobre metodologia. A proposta é que o livro ofereça uma visão transdisciplinar
de metodologias/abordagens com o propósito de oferecer portas de entrada para de-
bates atuais e, consequentemente, para contribuições originais de pesquisadoras/es de
diferentes instituições de pesquisa brasileiras. Este volume conta, ainda, com contri-
buições específicas não só em metodologia, mas também em métodos, além de incluir
dois ensaios de produção discente no campo das RI como exemplares do trabalho que
o LabMet vem fomentando e dos diálogos que visa construir.
Dado o caráter transdisciplinar das RI, procura-se também estabelecer e apri-
morar os diálogos com outros campos de estudo como a comunicação, a antropolo-
gia, a filosofia, a sociologia, letras, entre outros. Em específico, os capítulos a seguir
apresentam:
a) material para que as/os leitoras/es possam ter uma compreensão dos
principais dilemas e compromissos filosóficos das metodologias/aborda-
gens em questão, inclusive quanto às práticas mais centrais da academia
– leitura e escrita;
b) um exemplo de aplicação das variadas metodologias; e
c) uma lista de leituras recomendadas para quem quiser se aprofundar em
cada abordagem.
Mais informações, incluindo materiais dos cursos oferecidos, em http://www.
iri.puc-rio.br/pesquisa/laboratorio-de-metodologia/.
Introdução
cortes empreendidos na área da educação superior, mas também com todas/os as/
os estudantes e professoras/es cuja paixão por pesquisa e ensino foi posta à prova
pela desvalorização desses trabalhos.
Este cenário, porém, apenas reforçou nosso ânimo, no LabMet, para demo-
cratizar o acesso a tudo que organizamos e produzimos, para travar nosso diálogo
dentro e fora da PUC-Rio e da universidade de modo geral e para buscar sempre
novas formas de incidir sobre as questões prementes em nossa sociedade.
No volume I desta série (2018), apresentamos nossa proposta como um de-
bate acerca de inter/trans/indisciplinaridade nas relações internacionais (RI). No
volume II (2019), nosso desejo foi o de enfatizar a pesquisa como prática e essa
prática como inescapavelmente política. No volume III (2020), fizemos coro à
criatividade de pesquisadoras/es que têm buscado um olhar mais generoso, mais
plural e inclusivo não somente para suas pesquisas, mas para as próprias práticas
de pesquisar, escrever e comunicar. Neste volume IV da série, trazemos propostas
metodológicas muito diversas entre si, mas que têm em comum o objetivo de bus-
car caminhos para tornar possível a pesquisa fazendo uso de métodos e técnicas
historicamente bem conhecidos, mas aplicados aqui a objetos de pesquisa mais
contemporâneos.
Seguimos incluindo discussões sobre métodos, além de metodologias, algo
que esperamos manter para os demais volumes. Aqui, vale repetir o que dissemos
no último volume.
Há muita confusão no uso desses dois termos, por isso é importante esclare-
cer: entendemos metodologia como uma preocupação epistemológica e ontologi-
camente fundamentada com a lógica da pesquisa, seus processos e sua estrutura.
É através da metodologia que garantimos que os métodos, como técnicas instru-
mentais de coleta e análise de dados, estejam alinhados com nossas visões de
mundo, isto é, nossa ontologia e nossa epistemologia. Alguns métodos se prestam
a conversar e se alinhavar com diversas visões de mundo – entrevistas, por exem-
plo, podem acompanhar quase qualquer abordagem, no sentido de que, em geral,
se adequam a distintas ontologias e epistemologias. É importante notar, também,
que diversos métodos podem ser tratados como metodologia e vice-versa, a nosso
ver, dependendo do conteúdo filosófico que carregam. Exemplos são a análise de
discurso e a etnografia, que são ora chamadas de método, ora de metodologia.
Crucial, pode-se entender, é que a pesquisa/dora faça o trabalho completo de es-
clarecer como entende seu papel no mundo (ontologia); sua forma de acessar esse
mundo (epistemologia) e, portanto, de produzir conhecimento; sua maneira de
Introdução – Sobre metodologias, métodos e tempos difíceis 11
organizar a estratégia para esse “acesso” de forma a não contradizer sua ontolo-
gia e epistemologia (metodologia); e o “acesso” em si (método). Por isso, quando
falamos em método, de maneira geral, trata-se de ferramentas de coleta e análise,
ou seja, instrumentos que por si só, carecem da reflexão filosófica aportada pela
metodologia para encontrar seu melhor uso, inclusive em termos éticos – dimen-
são não menos importante da pesquisa (ver Jackson, 2011; Ackerly, Stern e True,
2006). Note-se que uso aqui “acesso” com aspas, porque o termo pode ser ele
mesmo contraditório a depender da abordagem filosófica de quem fala (de como
ou em que grau a pesquisadora se relaciona com a elaboração de conhecimento
como construção) (ver Hacking, 2000).
Além disso, é com muita alegria que neste volume voltamos a trazer contri-
buições discentes como exemplos muito ricos de todos esses aspectos que procu-
ramos mobilizar na forma como pensamos metodologia e pesquisa.
O cerne da proposta
O Laboratório de Metodologia, vinculado ao IRI/PUC-Rio, surgiu em 2015 com o
intuito de contribuir com o debate metodológico na disciplina de RI dentro e fora
do Instituto, alimentando e estudando a fundo a transdisciplinaridade. O objetivo
maior do LabMet é contribuir para o esforço corrente nas RI em favor do desenvol-
vimento de uma compreensão não disciplinante de método. Isto passa por avançar
na reflexão crítica sobre o que podemos chamar de formas instrumentais (centra-
das exclusivamente na operacionalização de pesquisa) e apolíticas (desatentas ao
impacto sociopolítico de escolhas metodológicas) de discutir método e metodologia
nas ciências sociais e nas RI. Ademais, em caráter mais propositivo, a série de livros
busca incentivar a abertura de um espaço para o desenvolvimento de pesquisas
pautadas pela busca por inovação, experimentação e criatividade, em contraste ao
desenvolvimento de pesquisas informadas por critérios rígidos e predefinidos de
qualidade acadêmica.
Entende-se que a discussão crítica sobre metodologia ainda tem papel secundário
na produção científica em RI no Brasil e que o pensamento produzido sobre o tema
advém quase que exclusivamente da Europa e dos Estados Unidos. Nesse contexto,
a produção de uma série de livros sobre metodologia, cobrindo uma agenda plural
e de relevância local, escrito em português, visa contribuir não só para a discussão
metateórica do tema, mas também para a consolidação da academia brasileira como
um polo de produção de conhecimento crítico sobre metodologia. Assim, a proposta
é que os livros ofereçam uma visão transdisciplinar de metodologias/abordagens
com o propósito de oferecer portas de entrada para debates atuais e, consequente-
mente, para contribuições originais de pesquisadoras/es de diferentes instituições
de pesquisa brasileiras e colaboradoras do Sul Global.
12 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. III
Organização do livro
Na primeira parte do livro, podemos ler sobre três metodologias: a etnogra-
fia digital; a metodologia quantitativa, amplamente falando; e a tectologia.
No primeiro capítulo, Letícia Cesarino, Silvia Walz e Tatiana Balistieri discu-
tem a pesquisa etnográfica em ambientes digitais, a partir de desafios epistemoló-
gicos e éticos. O capítulo recupera as características usuais da pesquisa etnográ-
fica antes de percorrer algumas propostas para pensar como essa pesquisa pode
ser realizada em ambientes digitais, fazendo questão de frisar que a etnografia
online não é mais, nem menos que a etnografia offline. As autoras apontam para
modelos, conceitos e manuais que podem apoiar a pesquisa, propondo que cada
pesquisa adapte seus procedimentos, retendo, porém, certos princípios caros à
etnografia, tais como o cuidado e o consentimento informado.
O segundo capítulo, de Moema Guedes, trata da metodologia quantitativa
e seu lugar nas ciências sociais do Brasil, partindo justamente do pressuposto
que essa metodologia deve ser entendida como plural, uma vez que é composta
por diversas técnicas possíveis de pesquisa. A autora oferece alguns conjuntos de
exemplos de pesquisa que mobilizam essa diversidade, olhando para estudos po-
pulacionais, indicadores sociais e surveys. Guedes também mostra alguns pontos
de convergência entre as análises quali e quanti, para, por fim, indicar que a teoria
deve ser sempre o fio condutor da pesquisa e que o fundamental é promover o
diálogo entre a perspectiva teórica e sua implementação na pesquisa.
O terceiro capítulo, na primeira parte do livro, é de autoria de Gabriel Tupi-
nambá e trata da tectologia, partindo das contribuições de Alexander Bogdanov,
do começo do século XX. Entendida a princípio como uma “ciência universal
das organizações”, o capítulo quer justamente elaborar uma proposta metodoló-
gica que faça justiça ao que o autor entende ser a importância contemporânea da
tectologia. Tupinambá está preocupado com a prática política em um “ecossis-
tema heterogêneo”, pelo que o político se situa na “correlação entre os modos de
composição de um dado sistema organizado, as suas formas de interação com o
mundo e aquilo que se torna inteligível da realidade a partir dessa dinâmica”. O
capítulo promove um diálogo entre diversas correntes materialistas, do materia-
lismo histórico das contribuições marxistas às ontologias relacionais mais con-
temporâneas na filosofia.
Na segunda parte do livro, temos discussões acerca da pesquisa etnográfica
com documentos, como um método ou uma estratégia de pesquisa.
Introdução – Sobre metodologias, métodos e tempos difíceis 13
***
14 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. III
Com mais este livro, o LabMet segue na busca por contribuir para uma prá-
tica acadêmica criativa, teoricamente robusta e, ao mesmo tempo, com profundo
cuidado ético, todos princípios sem os quais nenhuma pesquisa pode ser con-
siderada eficaz. Esperamos seguir dialogando com as diferentes áreas e os mais
diversos espaços, dentro e fora da universidade.
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JACKSON, P.T. The Conduct of Inquiry in International Relations. New York: Routledge,
2011.
HACKING, I. Social Construction of What? Massachusetts: Harvard University Press,
2000.
PARTE I
Metodologias
Capítulo 1
Etnografia na ou da internet?
Desafios epistemológicos e éticos
do método etnográfico na era da
plataformização*
Letícia Cesarino
Silvia Walz
Tatiana Balistieri
antes já não era fácil, hoje parece impossível construir um modelo de etnografia
online. Ao longo deste capítulo, citamos alguns modelos, conceitos e manuais aos
quais as/os leitoras/es podem recorrer para pensarem o melhor desenho de pes-
quisa para seus projetos etnográficos específicos.
Por outro lado, como sugeriu o filósofo da ciência Thomas Kuhn (2017), mo-
mentos de crise epistêmica pedem um retorno aos fundamentos. Neste sentido,
sugerimos a fertilidade de revisitarmos princípios básicos do método etnográfi-
co e das práticas de conhecimento da antropologia para que cada pesquisadora
possa, a partir deles, desenvolver as devidas adaptações a seu projeto específico.
Assim, a primeira seção recupera princípios metodológicos e epistemológicos
históricos da etnografia para ilustrar alguns dos desafios e formas de adaptação a
contextos de pesquisa digitais. A segunda abre aspectos centrais da “caixa-preta”
da Web 2.0 para evidenciar o caráter ciberneticamente ativo do ambiente no qual
se faz etnografia digital hoje e sugere a importância de ter como horizonte da
pesquisa um aprendizado reflexivo que chamaremos aqui de apercepção ciberné-
tica. A terceira seção conclui apontando alguns dos desafios (e oportunidades) de
novas articulações entre etnografia e outras metodologias, qualitativas e compu-
tacionais; formas digitalizadas de coleta e organização de dados; e implementação
de princípios éticos na pesquisa e escrita etnográfica.
(2012), toda realidade é igualmente mediada, ainda que possamos ter naturaliza-
do muitas dessas mediações. Por outro lado, a etnografia digital tampouco é mais
que etnografia: ela se desenvolve, em última instância, de acordo com os mesmos
princípios básicos do método, ética e epistemologia antropológicos. Esses princí-
pios são gerais e compatíveis com qualquer estudo, sobre praticamente qualquer
tema, sendo, portanto, adaptáveis a novos contextos sociotécnicos como os que
vêm emergindo hoje, por mais nebulosos que possam parecer. Esta seção recupe-
ra alguns desses fundamentos, a partir do histórico de sistematização do método
a partir da Primeira Guerra, para pensarmos sua adaptação a ambientes e sujeitos
digitalmente mediados.
Recursividade e contingência
Karen O’Reilly definiu o método etnográfico como um tipo de pesquisa
“iterativa-indutiva”, ou seja, “cujo design evolui ao longo do estudo”. Seus proce-
dimentos incluem
Possibilidades etnográficas
Como na etnografia pré-digital, hoje cada projeto de pesquisa deve montar
sua própria composição de possibilidades etnográficas, de acordo com interesses,
questões, relações com os interlocutores e condições concretas para realização da
pesquisa. Leitão e Gomes (2017) delinearam algumas dessas possibilidades com
base em uma analogia útil entre ambientes digitais e cidades.
Uma primeira seria o que as autoras chamam de perambulação. Assim como
o flâneur que percorre de forma errante as ruas movimentadas e barulhentas das
grandes cidades, a etnógrafa pode perambular por multidões virtuais. Aqui, as
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relações são mais impessoais e efêmeras e a etnógrafa pode se deixar levar por in-
terações e postagens de usuários desconhecidos e/ou anônimos, fluxos de hashta-
gs, eventos virais, ou orientar-se de forma mais ativa por mecanismos de busca.
Plataformas com uma expectativa maior de publicidade e impessoalidade
como o Twitter, Instagram ou YouTube costumam ser mais propensas a esse tipo
de incursão etnográfica. Mas tudo depende do contexto – mesmo aplicativos de
mensagens como o WhatsApp oferecem recursos para formação de grandes gru-
pos públicos ou, no caso do Telegram, canais abertos com número ilimitado de
participantes. Não raro, esse tipo de pesquisa pode levar a um trânsito por múlti-
plos ambientes, visto que o atual modelo da plataformização produz ecossistemas
digitais já pré-conectados de modo a permitir o fluxo de dados entre eles (Zuboff,
2021). Assim, padrões observados em uma plataforma como o WhatsApp, que é
experimentada pelos usuários como sendo um ambiente fechado, podem na rea-
lidade ser influenciados pela ecologia mais ampla na qual o app se insere, pela via
das APIs (ver nota 2), links e pelos encaminhamentos e demais comportamentos
de postagem dos próprios usuários.
A segunda abordagem, a do acompanhamento, segue o padrão mais pessoa-
lizado da “convergência identitária” (Ramos, 2015), segundo o qual o perfil online
do indivíduo deve corresponder à sua identidade civil no mundo offline. Aqui,
a “etnógrafa-stalker” (Leitão e Gomes, 2017) segue as interações sociais de con-
juntos de sujeitos específicos que podem inclusive transbordar para encontros
offline, como no caso do Tinder ou de encontros de grupo e eventos agendados
via Facebook. Nesses casos, a diferença entre o que é público e o que é privado vai
ficando mais nebulosa, inclusive na mesma plataforma – por exemplo, na diferen-
ça entre grupos abertos e fechados no Facebook. Nesses casos, a etnógrafa deve
avaliar, por exemplo, se é apropriado que o perfil utilizado durante a pesquisa se
apresente de forma aberta enquanto tal e que os sujeitos sejam informados das
suas intenções. Essa abordagem converge com a proposta de Daniel Miller et al.
(2019) de uma antropologia digital que tenha como diferencial a abordagem et-
nográfica de sujeitos particulares também no mundo offline, para entender não
apenas como as mídias sociais mudaram o mundo, mas, nos seus termos, “como
o mundo mudou as mídias sociais”.
Por fim, as autoras pontuam a etnografia por imersão em ambientes virtu-
ais que têm uma densidade de sociabilidade própria mais próxima à do mundo
offline. É o caso das plataformas de jogos imersivos e de mundos virtuais como
o Second Life (Boellstroff et al., 2012). Nesses casos, a etnógrafa pode passar por
Capítulo 1 – Etnografia na ou da internet? 29
aparece para mim e para os meus interlocutores, e como? Quem são meus inter-
locutores? Em que medida sua agência é humana ou algorítmica, individual ou
coletiva? Suas ideias e comportamentos são espontâneos ou fabricados, originais
ou imitações? Não necessariamente essas respostas serão sempre possíveis, pois,
em ambientes cibernéticos, prevalecem causalidades nãolineares – coemergentes,
circulares, recursivas, recíprocas – que confundem essas próprias categorias. As-
sim, a etnógrafa nem sempre deve buscar resolver as contradições e ambiguidades
geradas pelos processos de desintermediação, mas trabalhar através delas, obser-
vando como esse aparato vem reintermediando as visões de mundo e sociabilida-
des das pessoas de novas formas.
No que resta deste capítulo, concluímos apontando brevemente três outros
conjuntos de desafios que a plataformização coloca para a etnografia digital con-
temporânea: a articulação com outros métodos; formas de coleta e organização de
dados; e procedimentos e implicações éticas.
Interfaces emergentes
Articulações multimetodológicas
Os primeiros antropólogos a irem a campo – os etnógrafos “de varanda” – se
valiam tanto de métodos qualitativos, como entrevistas com informantes privi-
legiados, quanto de métodos quantitativos, como surveys e genealogias6. Mesmo
após Malinowski consolidar o cânone etnográfico em torno da observação parti-
cipante, essas outras técnicas, como a análise de redes sociais (pré-digitais), con-
tinuaram sendo acionadas de forma complementar durante o trabalho de campo
(Feldman-Bianco, 1987). Essa vocação multimetodológica da antropologia se re-
nova no contexto da etnografia digital contemporânea, em que se abrem novas
possibilidades de articulação com métodos e técnicas de outras áreas do conhe-
cimento dentro e fora das ciências humanas, inclusive de ordem computacional
(Nascimento, 2020).
No campo das metodologias qualitativas (Poupart et al., 2014), a entrevis-
ta e suas variações, como os grupos focais7, provavelmente permanecem sendo a
complementação mais comum à observação participante. Há muitas discussões
aprofundadas sobre as nuances e possibilidades desse método nas ciências sociais
(Bourdieu, 2007). No contexto da pesquisa etnográfica, entrevistas servem prin-
cipalmente para aprofundar a coleta de informações ou estreitar relações com in-
terlocutores de campo selecionados. Podem também cumprir funções adicionais,
34 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
1 Este termo é utilizado pelo próprio setor tech para designar uma internet cada vez
mais integrada por meio das Application Programming Interfaces (APIs), que permi-
tiram a interoperabilidade e fluxo de dados entre diferentes sistemas. Mais detalhes
sobre o processo de plataformização, que ganhou força com a crise fiscal de 2008,
podem ser encontrados em D’Andrea (2020).
2 No contexto brasileiro, cf. por exemplo os trabalhos reunidos ou revisados em Ra-
mos e Freitas (2017), Batista e Souza (2020), Segata e Rifiotis (2021).
3 O conceito de affordance, que pode ser traduzido por “propiciação” (Velho, 2001),
foi desenvolvido na psicologia ecológica para identificar propriedades do ambiente
que não são fixas, mas que emergem na interação com um agente específico. Um
ambiente como a água, por exemplo, tem a affordance de andabilidade para cer-
tos insetos e répteis, mas não para um organismo humano. Boyd (2011) e outros
transpuseram o conceito para o campo das novas mídias (Bucher e Helmond, 2017).
Exemplos de affordances digitais incluem desde as mais gerais como binarismo, frac-
talidade e copiabilidade, até as mais específicas a dispositivos e interfaces como por-
tabilidade, editabilidade, multimedialidade, escalabilidade, buscabilidade etc.
4 Com efeito, boa parte dos saberes que embasam o design das plataformas e suas ar-
quiteturas de escolha deriva de modelos animais: do behaviorismo skinneriano dos
“ratinhos” ao comportamento de enxame ou bando (swarming) de insetos, pássaros
e peixes (Zuboff, 2021).
5 A influência difere do comando explícito pois busca atuar indiretamente e de forma
sutil, no controle do ambiente no qual o sujeito toma suas decisões. Um exemplo co-
mum no marketing é a arquitetura de escolha: o design ou distribuição de palavras
42 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
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Capítulo 2
Algumas contribuições da
metodologia quantitativa para
a construção de questões de
pesquisa: complexificando o debate
Moema de Castro Guedes
Este capítulo tem como objetivo traçar um breve panorama de algumas con-
tribuições dos estudos quantitativos na construção de problemas de pesquisa no
campo das ciências sociais. No contexto brasileiro, estas abordagens não gozam
do mesmo prestígio de outros países, o que torna esta mirada particularmente
relevante. Para tanto, o texto se divide em três partes: uma primeira na qual dis-
cutimos o método em ciências sociais; na segunda, traçamos eixos a partir dos
quais podem ser pensadas as diversas contribuições da metodologia quantitativa
a alguns debates das ciências sociais; na terceira e última seção, destacamos ques-
tões comuns às abordagens quantitativas e qualitativas que apontam convergência
e complementariedade.
As questões aqui expostas se articulam à minha trajetória como pesquisado-
ra no campo dos estudos de gênero, que privilegiou algumas técnicas de pesquisa
quantitativas nas abordagens com as quais trabalho. Além do trânsito entre as
ciências sociais, em particular a sociologia, e a demografia ao longo de minha
formação entre a graduação e o pós-doutorado, as reflexões propostas têm rela-
ção direta com diálogos e inquietações expressas por orientandos e alunos nas
disciplinas de metodologia de pesquisa que ofereci nos últimos anos em diversas
universidades.
que elegem na construção da parte empírica de seus trabalhos. Isso inclusive cria
um fosso entre os textos inspiradores lidos na formação e o processo inicial de
escrita, onde a teoria instrumentaliza pouco a parte empírica e muitos trabalhos
apenas reforçam o que a literatura consagrada já apontava anteriormente.
Este não é um questionamento trivial, uma vez que a escolha de determinada
técnica de pesquisa, ao mesmo tempo que abre possibilidades analíticas, implica,
também, em invisibilizações que devem ser sinalizadas. Teoria e metodologia não
poderiam ser apartadas e a segunda tratada como dimensão menos relevante1. A
natureza da relação entre ambas nunca se caracteriza por um encaixe perfeito em
ciências sociais. Para quê ir a campo ou se debruçar sobre um arsenal documental
apenas para reforçar o que o autor consagrado já havia destacado? No “chão da
fábrica” dos processos de pesquisa, a natureza da pergunta demanda determinada
técnica de pesquisa e, como bem salienta Becker (1997), convém construir um
inventário das conclusões, levando o leitor pela mão nos sucessivos estágios de
conceituação de um problema e mostrando as escolhas metodológicas que se fi-
zeram ao longo do percurso.
Esta seria uma parte da questão. A outra se relaciona ao fato de que as ciên-
cias sociais brasileiras foram marcadas historicamente pela aposta na dicotomia
entre metodologias de pesquisa quantitativas e qualitativas. Esta perspectiva
que insiste na oposição e afastamento entre estas abordagens perde de vista a
natureza complementar destes estudos. Exemplos de pesquisas que realizaram
este diálogo, exercício ainda escasso em nossa literatura, refletem o quão fecun-
dos podem ser os dados e achados destas empreitadas. Algumas referências se
destacam nesta direção.
Pager (2006) destaca, em seu trabalho sobre a discriminação racial, a neces-
sidade de uma abordagem complementar entre técnicas de pesquisa quantitativas
e qualitativas e o quanto este campo de estudos se nutriu de um investimento
tanto nos métodos, quanto no conteúdo. Configurado como um tema central por
ser um mecanismo poderoso, subjacente a muitos padrões históricos e contempo-
râneos de desigualdade, o avanço na compreensão dos mecanismos discrimina-
tórios teria se apresentado bastante desafiador por ser evasivo e de difícil mensu-
ração. Um dos principais achados sugeridos pelo estudo foi que a ampla maioria
das pessoas reconhece viver em uma sociedade racista. Contudo, poucos se reco-
nhecem como racistas. Neste cenário complexo, a autora demonstra o quanto as
lacunas deixadas por determinada técnica de pesquisa puderam ser cobertas por
outras, quando se privilegiou um olhar conjugado entre distintas metodologias. O
50 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
pesquisa que a conformam e o que permitem ver são registradas como “apêndice”
dentro de um corpo mais amplo das ciências sociais com o qual praticamente não
dialogam2. Vejamos alguns exemplos.
Estudos populacionais
Os estudos populacionais, que partem de estatísticas oficiais como Censos
Demográficos ou Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se configuraram historicamente como
fonte importante de diversas análises. Nestas, destaca-se o mapeamento de di-
versos processos de mudança social em termos de tendência, temporalidade e
magnitude nos diferentes segmentos de nossa sociedade. O conhecimento de sé-
ries históricas e tendências de determinada variável permite contextualizar fenô-
menos, bem como comparar magnitudes entre distintas esferas geográficas. Com
isso, é possível estabelecer uma sociologia comparativa que pensa a articulação
entre fenômenos, atenta não apenas à descrição de dados, padrões e tendências,
mas aos processos históricos que os explicam ao longo do tempo. Não há como
ler a taxa de homicídio de Seropédica, no estado do Rio de Janeiro, por exemplo,
sem conhecer qual foi seu patamar histórico ou como são as taxas de municípios
com características semelhantes. Nesse sentido, trabalhar com os dados desta fon-
te privilegiada (secretarias de segurança pública em diferentes níveis) se configura
como conhecimento imprescindível.
Como discutir a categoria “trabalho” e novas formas de empregabilidade na
sociedade brasileira sem conhecer minimamente as taxas de desemprego ou a
distribuição da mãodeobra em diferentes segmentos do mercado de trabalho? O
modo como estes dados são captados também varia dependendo do instituto de
pesquisa, o que frequentemente resulta em patamares distintos. O desemprego
mapeado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconô-
micos (DIEESE), por exemplo, é constantemente mais alto que o do IBGE, porque
aquele capta o chamado desemprego por desalento, quando o indivíduo não se
encontra em condições de procurar na semana de referência ou desistiu de tentar,
mas efetivamente gostaria de estar empregado. Conhecer estas diferenças concei-
tuais é importante no processo da análise que se pretende construir.
Dialogar com este panorama que os dados fornecem a nível macro pode
ser relevante a título de contextualização de determinada questão de pesquisa,
ainda que a abordagem escolhida seja a qualitativa. Para tanto, não se faz neces-
sário debruçar-se sobre as estatísticas, mas utilizar-se dos autores que realizaram
52 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
pesquisas nesta direção. Uma simples citação pode ajudar, sem que seja necessário
se tornar um exímio usuário dos dados estatísticos. O tipo de informação que é
coletado e o modo como se constroem estes dados já são em si dimensão impor-
tante de análise da relação do Estado com diferentes grupos e segmentos sociais.
Como destaca Bourdieu (1996), mais do que descrever a realidade social, os
institutos de estatística nacionais prescrevem modelos através de categorias que
não apenas classificam certa população, mas hierarquizam valores e práticas de
determinada sociedade. A sociologia das estatísticas revela uma história impor-
tante, como por exemplo, as demandas do movimento LGBTQIA+ para que as
famílias homoafetivas sejam contabilizadas nas pesquisas. No caso do IBGE, este
importante avanço passa a vigorar a partir do Censo Demográfico de 2010. Nesse
sentido, o conceito de família historicamente utilizado silenciou e invisibilizou
modelos não heteronormativos ou consanguíneos, reforçando o sentido do que
seja família em sua acepção mais tradicional (Fonseca, 1995). Nesse sentido, estas
instituições constroem a própria realidade social.
Em razão disso, há disputas políticas em torno do modo como determinado
conceito capta a realidade social. O acesso a estas informações e os embates que a
envolvem são centrais na construção de qualquer cenário que se queira analisar. A
situação atualmente atravessada por nosso instituto de estatística, o IBGE, reflete
estes tensionamentos. Temos em curso no Brasil um processo de apagão estatístico
que nos impede de visualizar com clareza os efeitos da crise prolongada que se agu-
diza ao longo da pandemia de Covid-19. A não realização do Censo Demográfico
que deveria ter ido a campo em 2020, e segue sem perspectivas, é o exemplo mais
dramático de uma realidade que não se quer visibilizada. A inexistência de estatís-
ticas confiáveis e atualizadas atrapalha o mapeamento dos retrocessos em curso.
Indicadores sociais
Os indicadores sociais, por outro lado, assumem papel importante no deline-
amento de políticas públicas. Estas seriam geralmente analisadas por estatísticos
e economistas, que têm uma visão frequentemente pouco crítica do processo de
construção do dado ou dos embates políticos que resultam em recortes por vezes
arbitrários na interpretação da sociedade. Outra questão desafiadora é que não há
como um gestor minimamente sério construir determinada política sem que seja
feito um diagnóstico inicial através de uma primeira mensuração. A caracteriza-
ção da realidade no momento anterior à política é condição para a estruturação
de indicadores a partir dos quais se desenham as metas, as populações-alvo e as
Capítulo 2 – Algumas contribuições da metodologia quantitativa para a construção de questões de pesquisa 53
Surveys
Nas seções anteriores falamos de dados produzidos pelos órgãos específicos,
particularmente institutos de estatística. Mas o próprio pesquisador pode pro-
duzir seus dados quantitativos indo a campo e aplicando questionários pensados
conceitualmente a partir de suas demandas através dos chamados surveys. Pouco
comuns no Brasil em função de seu alto custo operacional, eles tiveram importân-
cia fundamental para alguns campos de pesquisa. Caracterizam-se pela pesquisa
com uso de questionários, estruturados por perguntas majoritariamente fechadas,
mas também podendo ser compostos de algumas abertas5. Em termos de grupo
ao qual o questionário é aplicado, duas estratégias distintas são utilizadas. Podem
ser aplicados a toda a população que se deseja estudar, de forma censitária (estra-
tégia mais utilizada quando se trata de grupo pequeno) ou aplicada a um grupo
ou amostra (probabilística ou não). Esta segunda estratégia representa diminui-
ção de tempo de realização e de custo da pesquisa e é utilizada para populações
maiores6. O censo demográfico brasileiro, por exemplo, tem dois questionários.
Um primeiro, menor, aplicado a toda a população com perguntas básicas; um se-
gundo, mais amplo, com perguntas mais específicas, aplicado de modo amostral.
Neste segundo caso, é desejável que a amostra seja representativa da popu-
lação para a qual se deseja expandir os resultados encontrados (Utts, 1999). Este
mecanismo envolve abordagens complexas e todo um campo de análise, que dis-
cutem os diversos tipos de amostra e suas aplicabilidades, algo que extrapola os
objetivos do presente texto. Podemos apontar em linhas gerais que as estratégias
que asseguram a representatividade de uma amostra quase sempre se relacionam
a princípios de aleatoriedade ou sorteio dos indivíduos que a compõem e a forma
como são selecionados. Dependendo do que se pesquisa e da heterogeneidade do
que será mensurado, diferentes estratégias amostrais podem ser utilizadas.
Capítulo 2 – Algumas contribuições da metodologia quantitativa para a construção de questões de pesquisa 55
estatísticos sem nos darmos conta. Em uma ampla gama de escolhas usamos va-
riáveis que julgamos relevantes para maximizar as chances de sucesso. Isso vale
desde onde investir o dinheiro ao trajeto escolhido até o trabalho. Também nas
pesquisas acadêmicas elegemos dimensões que privilegiamos por achar que elas
sintetizam bem o objeto estudado. A descrição exaustiva frequentemente eviden-
cia uma falta de foco.
Um princípio constante nas pesquisas é como os indivíduos ou grupos pes-
quisados nos ajudam a pensar o todo do qual fazem parte. Ou, dito de outra for-
ma: o que deles representa dinâmicas mais amplas e o que neles é particular?
Ainda que não parta de uma ideia de amostragem probabilística, esta relação en-
tre grupo pesquisado e universo mais amplo para o qual os dados pretendem ser
expandidos é crucial em qualquer análise.
Independente de falarmos em uma abordagem quantitativa ou qualitativa,
algumas questões se colocam. A primeira é como os indivíduos foram seleciona-
dos. Escolher apenas aqueles que estão disponíveis ou os que desejam falar não
é indicado em nenhuma das estratégias. A ideia de sorteio ou de uma escolha
aleatória, presente na abordagem probabilística, é interessante. O todo tende a
ser melhor representado quando a seleção capta também os não disponíveis ou
quem escolheu não falar. Por esta razão, o recenseador do censo demográfico, por
exemplo, deve voltar ao domicílio das pessoas que não foram encontradas em casa
por diversas vezes, se necessário for. Este grupo não pode ser substituído por seus
vizinhos disponíveis no momento. Por outro lado, quanto mais heterogêneo é um
grupo, mais aspectos têm que ser levados em conta nos indivíduos que comporão
o grupo de análise ou amostra.
No cenário de pandemia por Covid-19, muitas estratégias de pesquisa esti-
veram inviabilizadas e se disseminou de modo banalizado e sem critérios meto-
dológicos o uso de questionários enviados em diversas plataformas para fins de
pesquisa acadêmica. Para além do escasso conhecimento do processo de estru-
turação das perguntas, conceitos utilizados e tipo de dado que pode ser extraído
desta técnica de pesquisa, nos deparamos com um problema mais sério: o viés de
autosseleção.
Ao compor o grupo de análise partindo apenas dos indivíduos que respon-
deram e devolveram o questionário, criamos um perigoso critério invisível e co-
mum: o desejo de participar da pesquisa. Isto sugere que havia uma forte opinião
favorável ou contrária aos temas abordados e/ou interesse em relação ao que era
investigado que fez os entrevistados quererem compor a amostra. Mas um grupo
Capítulo 2 – Algumas contribuições da metodologia quantitativa para a construção de questões de pesquisa 57
***
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Capítulo 3
ideias e a filosofia de Donna Haraway e, com isso, uma nova maneira de atuali-
zar o marxismo sob condições contemporâneas. Por um outro caminho, os desa-
fios de pensar a composição estratégica de frentes políticas heterogêneas entre si,
questões que a fragmentação do mundo social coloca para a política de esquerda
(Tupinambá e Paraná, 2021) – cada vez mais confrontada com o problema de
não poder contar com estruturas prévias, como fábricas, sindicatos ou certas con-
dições de vida comuns, para acumular forças –, também levaram ao reconheci-
mento de que há em Bogdanov as bases para uma outra visão da prática política,
que considera organizações políticas individuais como parte de um ecossistema
heterogêneo (Nunes, 2021).
Mas o que é a tectologia? E como o “ponto de vista organizacional” que esse
projeto propõe poderia contribuir para os problemas filosóficos e políticos que
enfrentamos hoje? Nas próximas seções, iremos apresentar o modo como Bogda-
nov definiu essa perspectiva teórica, compará-la ao materialismo histórico, con-
siderar algumas das relações entre a abordagem tectológica e teorias posteriores
que seriam supostamente contrárias ao marxismo, como as ontologias relacio-
nais, e – por fim – propor uma reconstrução das categorias básicas da tectologia
que nos permitirá expandir seu alcance, esclarecer sua pertinência geral e, em
especial, sua contribuição para a metodologia de pesquisa social.
Nosso objetivo final com essa apresentação é demonstrar que a tectologia
não apenas permanece um projeto atual, como pode inclusive ser retomado e
continuado a partir das ferramentas filosóficas, políticas e formais elaboradas
após a morte de Bogdanov. Defenderemos que o “ponto de vista organizacio-
nal”, proposto pelo pensador soviético, dialoga com a epistemologia situada
feminista, que inaugurou uma metodologia de pesquisa focada nas relações
de interdependência entre humanos e nãohumanos, assim como retém ideias
da corrente “neorracionalista” da filosofia contemporânea, que se preocupa
com as condições materiais da cognição. Mas, para além dessas ressonâncias,
a tectologia é capaz de integrá-las num outro dispositivo analítico bastante
inovador, que sempre parte da correlação entre os modos de composição de
um dado sistema organizado, as suas formas de interação com o mundo e
aquilo que se torna inteligível da realidade a partir dessa dinâmica. Em suma,
a tectologia nos permite discernir quais “diferenças fazem diferença” sob de-
terminadas condições organizacionais – um ponto de vista que, ainda atento
às situações singulares, trata as organizações– e não os “organizados” – como
“órgãos” sensíveis ao mundo social.
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 63
O capítulo, por vezes de leitura densa, será acompanhado, ao fim, de uma lis-
ta com os seus principais argumentos e algumas orientações que podemos extrair
da tectologia para a metodologia de pesquisa em ciências sociais.
porque Bogdanov foi acusado por Lenin de abdicar de uma ancoragem real e
absoluta para o conhecimento. Isto porque, na tectologia, resistência e atividade
são conceitos relativos a uma dada situação: do ponto de vista de um dado sistema
A, podemos dizer que forças externas B resistem às suas ações, atrapalham sua
manutenção ou expansão – mas do ponto de vista contrário, que toma o ambiente
externo B como um sistema e a organização A como uma caixa-preta alheia, é
essa organização A que resiste às ações do ambiente. Claramente inspirado pelos
trabalhos recém-publicados de Einstein8, Bogdanov tomava cuidado, assim, para
que a tectologia não generalizasse leis e padrões que variam quando mudamos o
sistema de coordenadas a partir do qual definimos o que é ativo e o que é passi-
vo em uma dada interação. Ora, uma vez que o ponto de vista do trabalho – na
acepção especificamente política de uma atividade humana direcionada a um fim,
que toma a natureza como meio a ser transformado – já assume de saída que o
componente humano é o elemento ativo e a natureza é o passivo, esse não poderia
ser tomado como um conceito primitivo da tectologia, posto que, por exemplo,
do ponto de vista de um ecossistema em evolução, o trabalho humano pode ser
melhor compreendido como uma resistência contra a reprodução ativa das de-
mais formas de vida.
Isso significa que o conceito de trabalho desaparece ou perde relevância na
tectologia? Claro que não. Ao invés de descartar essa categoria, o ponto de vista
organizacional visa recaracterizar o trabalho, que deixa de ser pensado como um
tipo de processo sempre centrado sobre o esforço físico humano para emergir
como um tipo particular de interação entre diferentes sistemas organizacionais
– do corpo humano, da cooperação entre trabalhadores, dos instrumentos uti-
lizados e da matéria a ser transformada. Uma vantagem dessa redescrição é que,
uma vez adotada a perspectiva organizacional, podemos considerar a resistência
do mundo à transformação humana 1) em sua dimensão ergonômica – qual a me-
lhor forma de trabalhadores negociarem com as restrições que o mundo impõe às
nossas atividades?; 2) praxiológica – de que forma concreta e real a transformação
do mundo se dá, e como afeta todos os sistemas que interagem no trabalho?; e –
principalmente – 3) em sua dimensão epistemológica. Isto é, quando a diferença
entre atividade e resistência é pensada relacionalmente, ganhamos ferramentas
para mudar de perspectiva e considerar o que resiste aos objetivos do trabalhador
como a forma de atividade de outra organização – dos instrumentos de trabalho,
do coletivo de trabalhadores ou da matéria a ser trabalhada. Em outras palavras,
na medida em que a resistência do mundo ao trabalho é tratada como o indício
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 69
da ação de outro sistema, o trabalho emerge como uma forma de conhecer o real a
partir de suas resistências9.
O “ponto de vista do trabalho” seria aquele que utiliza as resistências do
mundo aos nossos esforços para descobrir a diferença entre a aparência e o real,
expandindo assim nosso acesso às determinações intrínsecas do mundo através
da negociação situada com as resistências apresentadas pela natureza, pela socie-
dade e pelas ideias. Apesar de preservar todas as características cruciais da catego-
ria de trabalho para o marxismo, essa visão implica uma mudança de abordagem
notável em relação ao materialismo histórico usual – não apenas por admitir que
existam formas de resistência a atividades organizacionais que não podem ser ca-
racterizadas como trabalho, como também por descrevê-lo de maneira relacional,
como um tipo de interação entre pelo menos dois sistemas10.
A tectologia, portanto, trata a organização como um ponto de vista– e não um
método geral ou um objeto particular – e enfatiza a relatividade entre a atividade
e a resistência, uma vez que, dependendo de qual perspectiva adotamos, o que é
ativo e o que o resiste à atividade se altera. Mas não só isso. A “ciência universal
das organizações” também propõe uma teoria mereológica – uma compreensão
das relações possíveis entre partes e todos organizacionais – que é extremamente
sofisticada e até mesmo contraintuitiva, pois estende a relatividade da atividade/
resistência à própria noção de parte e todo:
relevante, abaixo da qual duas partes são indiscerníveis entre si – não é essencial-
mente teórica, não diz respeito exclusivamente aos nossos critérios de análise, mas
também às propriedades intrínsecas da organização sendo analisada. A interação
entre teoria e um sistema aparece aqui, na verdade, como um caso particular da
interação entre duas organizações quaisquer e a diferença entre partes e todo nas
organizações relacionadas se define a partir dessa interação, sejam dois sistemas
“materiais” ou um sistema material e o outro sua representação idealizada.
Por exemplo, no ato de cortar madeira para fazer lenha, as partes relevantes
tanto do trabalhador, quanto do machado e do bloco de madeira sendo cortado
são determinadas pela interação em questão. É claro que podemos falar do DNA
do trabalhador, mas uma parte tão microscópica não faz diferença, enquanto tal,
para a interação entre os sistemas, mesmo que faça diferença para nós. As “partes
eficazes” do trabalhador, do ponto de vista da situação, da atividade e da resistên-
cia, seriam talvez os membros do corpo, como braços, pernas ou torso. Do mesmo
modo, a estrutura atômica da madeira, e às vezes até mesmo o tipo de madeira, faz
menos diferença para o lenhador preocupado em efetuar o corte do que a forma
e o tamanho do bloco a ser cortado, fator que determina a quantidade de pedaços
que poderá produzir ali. O que conta como parte e como todo, em cada organi-
zação em jogo, depende de sua interação e é possível que a análise teórica seja
uma dessas organizações, mas o princípio de relatividade mereológica se preserva
independentemente disso, sendo antes uma característica de como as diferenças
relevantes aparecem para as organizações que interagem.
É por isso que, como afirmamos anteriormente, uma vez barrada a possibi-
lidade da desorganização total, a tectologia não apenas pensa toda organização
como uma mistura – parcialmente organizada e desorganizada –, mas também
pensa toda situação como composta de múltiplas organizações: mesmo no caso
de que existisse apenas um sistema, as diferentes interações possíveis entre seu
todo e suas partes já seriam suficientes para sermos obrigados a considerá-lo
como múltiplo11.
Outra maneira de compreender esse princípio é dizer que a tectologia é uma
perspectiva sensível às escalas organizacionais: a diferenciação das partes e todos
não acontece apenas em termos temporais, como num processo de individuação
que vai distinguindo o interior do exterior de um sistema, mas também reconhece
lógicas diferentes de funcionamento em escalas distintas e não necessariamen-
te compatíveis entre si, dependendo da resolução12– isto é, da escala específica
que determina as partes relevantes – em jogo em uma dada interação. A ideia de
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 71
etnografia de conexões de Anna Tsing, assim como pontes importantes com teo-
rias contemporâneas da mídia (ver Wark, 2020).
Para Wark, Bogdanov funciona como uma espécie de elo perdido que nos
permite tanto perceber a porosidade do marxismo e do movimento operário às
preocupações de diversas correntes da filosofia política contemporânea, quanto
reconhecer a vocação revolucionária de práticas e teorias que não necessariamen-
te se consideram parte dessa tradição. É importante frisar que contribui também
para esse processo de recuperação o reconhecimento de Bogdanov, por historia-
dores da ciência, como um notável precursor da teoria dos sistemas de Bertalanffy
e da cibernética de Norbert Wiener, Gregory Bateson e W. Ross Ashby. Trata-se de
um adendo importante, pois a cibernética teve uma influência notável na filosofia
de Gilles Deleuze (Shaw, 2015), filósofo que continua a informar – seja com seus
conceitos ou suas próprias referências – a gramática conceitual dos ditos “novos
materialismos”14, aos quais Wark visa conectar o projeto da tectologia. Dessa ma-
neira, a continuidade entre a proposta de Bogdanov e certo campo de questões
contemporâneas seria estabelecida tanto pelos temas e abordagens comuns, quan-
to por partilharem de uma linhagem intelectual e científica.
No entanto, essa estratégia geral de recuperação de Bogdanov como um alia-
do e precursor também tem seus limites. Seja do ponto de vista político, seja do
ponto de vista científico, a tectologia é absorvida de forma essencialmente ex-
trínseca e seletiva. Se, por um lado, torna-se possível desativar alguns conflitos
inócuos entre o materialismo histórico e novas abordagens conceituais – o que
não é pouca coisa – por outro, a tectologia só comparece como um exemplo que
confirmaria a tese de uma ressonância entre o marxismo e os novos materialis-
mos, nunca chegando a contribuir ativamente para uma nova forma de pensar ou
como ponto de vista a partir do qual poderíamos reconstruir conceitos da filosofia
contemporânea, como fizemos com a categoria de trabalho no materialismo his-
tórico, por exemplo. A mesma coisa ocorre na relação entre tectologia, teoria dos
sistemas e cibernética: por mais que, como aponta George Gorelik (1987), a ciên-
cia da organização de Bogdanov tivesse premissas até mais sofisticadas do que a
teoria dos sistemas de Bertalanffy – por exemplo, ao partir da relação constitutiva
entre sistema e meio ambiente, ou apresentar uma teoria mereológica que já fosse
sensível às escalas15– quando tratamos Bogdanov apenas como um antecedente
intelectual de teorias mais recentes deixamos de lado suas contribuições singula-
res e a possibilidade de que a tectologia nos leve a novas questões.
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 73
portanto, razão suficiente para retornarmos a ela, não apenas como um elo que
conecta o materialismo histórico a projetos mais recentes, mas como uma posição
legítima – e ainda por ser propriamente compreendida – no cenário filosófico
contemporâneo.
desavença interna talvez tenha mais capacidade de botar tudo a perder do que um
governo autoritário.
Comparemos essa situação com o caso do coletivo de artistas periféricas,
onde a manutenção do tempo e de um local para reuniões, bem como a organi-
zação de atividades e intervenções estéticas, são extremamente custosas. Afinal,
para se reunirem, elas precisam avaliar quanto dinheiro podem investir em alugar
um espaço, balancear o tempo das reuniões com o tempo e o cansaço do trabalho,
os compromissos da maternidade e pressões sociais de todos os tipos. Mesmo que
esse coletivo supostamente tivesse uma teoria menos elaborada do que o pequeno
grupo de estudos sobre as origens sistêmicas da dominação no capitalismo – das
relações entre lutas de classe, racismo e opressão de gênero etc.–, essa organização
ainda assim seria muito mais sensível a alguns aspectos dessa estrutura social:
basta perceber que a presença de um carro de polícia em uma de suas interven-
ções apresentaria uma resistência ameaçadora para esse coletivo – faria diferença
mesmo que nada de terrível acontecesse –, enquanto para a organização dos es-
tudantes d’O Capital, talvez apenas o ruído da sirene, que atrapalha a conversa,
fosse relevante.
Comparemos, agora, ambas as organizações mencionadas com o Banco
Central. Tanto o grupo de estudos quanto o coletivo de artistas percebem sinais
de ambientes extremamente localizados – e suas visadas globais, que situam essas
organizações em sistemas mais vastos, existem quase que praticamente na “cabe-
ça” dos participantes, como sistemas de representações. No caso do Banco Cen-
tral, por outro lado, flutuações no câmbio internacional, guerras em outros países,
índices de desemprego nacional e mesmo o modo como um presidente emprega
mero fraseado em comentário na mídia podem fazer diferença, obrigar o Banco
a reagir dessa ou daquela maneira, mesmo que nenhum dos economistas e mem-
bros da instituição tenha uma boa teoria sobre o funcionamento de seu mundo
social. Isso não quer dizer que o Banco veja tudo, pelo contrário: ao mesmo tempo
em que essas diferenças mais “globais” afetam a instituição, as relações pessoais,
raciais e de gênero – mais presentes nas outras organizações que consideramos –,
podem ser aplainadas pela estrutura hierárquica e pela presença excessiva de ho-
mens brancos de uma mesma classe social, cuja reprodução material é tão assegu-
rada que quase nenhuma perturbação em suas vidas poderia ameaçar a existência
do Banco.
Esses exemplos são simples – o que nos ajuda a navegar com mais clareza a
abordagem tectológica – mas nada nos impediria de estender nossa análise para
82 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
organizações mais complexas, nos perguntando como o mundo aparece para tri-
bos indígenas, movimentos sociais, empresas e organizações internacionais com
sedes por todo o globo. Há, por exemplo, uma questão importante na epistemo-
logia situada de inspiração antropológica: como pensar a crise climática sem,
portanto, monopolizar as ações a partir da visão de mundo ocidental, intima-
mente ligada ao movimento de extração e destruição ambiental que nos trouxe a
essa situação? Quando comparamos as diferentes cosmologias – os modos como
o mundo se constitui para diferentes povos ou agrupamentos humanos –, esse
problema se torna quase insolúvel, afinal, como poderíamos transitar entre esses
diferentes mundos a não ser pela tradução e pela equivocação? No entanto, do
ponto de vista tectológico, outra abordagem é possível: podemos pensar essa cos-
tura entre “mundos” a partir das interações específicas que estão sendo propostas.
É possível que o movimento indígena e um movimento social totalmente alheio
a essa cosmovisão interajam entre si, e com o sistema político-econômico que
insiste na política de combustíveis fósseis, de tal maneira que as “diferenças que
fazem diferença” que surjam desse processo sejam surpreendentes para todas as
partes envolvidas, preservando com certa indiferença o pano de fundo equívoco
que separa esses sistemas em interação.
O que queremos demonstrar com essas comparações é o modo como a com-
posição de uma organização afeta seus modos de interação com o ambiente e, com
isso, o que pode se tornar inteligível para ela, tanto no mundo quanto em si mes-
ma. Note que essa formulação integra tanto algumas inovações fundamentais dos
ditos “novos materialismos” – posições situadas diferentes, por conta do modo
como se diferenciam concretamente, produzem novos sentidos e formas de inteli-
gibilidade – quanto inovações derivadas do neorracionalismo – mais interessado
na explicação materialista das condições de possibilidade da síntese transcenden-
tal da cognição.
Ao mesmo tempo que permite essa imbricação, a abordagem tectológica evi-
ta dois impasses que – apesar de caricaturados aqui – não deixam de estar presen-
tes nesses dois projetos filosóficos. Primeiramente, a tectologia preserva a teoria
da epistemologia situada, mas evita que se derive daí – por exemplo, na “captura
de elite”34 dessa posição – qualquer concepção essencialista de lugar de fala. Por
mais que Latour, Stegers ou Haraway sejam explicitamente avessos a qualquer
essencialismo, a possibilidade de substituir a forma de vida pelo seu representan-
te – por exemplo, confundindo a aliança entre uma universidade e uma aldeia
indígena com o convite para que uma pessoa participe de um seminário temático
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 83
O tópos tectológico
Iniciamos esse capítulo introduzindo a problemática política e científica que
levou Bogdanov à tectologia e seu “ponto de vista organizacional”. Reconstruímos
alguns de seus princípios gerais e acompanhamos, com McKenzie Wark, como o
materialismo histórico, entendido por essa perspectiva, se torna compatível com
outras abordagens materialistas mais recentes, como a de Donna Haraway. Em se-
guida, apontamos alguns limites da “gramática” da ontologia relacional – que Wark
preserva como pano de fundo de sua comparação – sugerindo que uma teoria que
toma a diferença como categoria indecomponível não é capaz de, ao mesmo tempo,
preservar os ganhos da teoria do saber situado e abordar algumas outras questões
cruciais para a tectologia. Vimos também que, pela mesma razão, a cibernética não
é realmente uma candidata para absorver e formalizar a tectologia, pois uma con-
cepção diferencial de informação não dá conta de explicar as condições prévias que
determinam quais diferenças podem “fazer diferença” em um dado contexto – o que
chamamos de resolução relevante em uma dada situação. Finalmente, começamos
a construir alguns conceitos interconectados – a ideia de que a composição de um
sistema condiciona como este pode interagir, e, portanto, que tipo de informação
suas resistências podem tornar inteligíveis – pontos que nos ajudaram a entender o
que é singular no modo como a tectologia investiga a estrutura das organizações.
Nesta seção, tentaremos propor um passo a mais nessa reconstrução concei-
tual. Iremos, primeiramente, sugerir uma via formal mais afim à tectologia do que
a teoria dos sistemas complexos e a cibernética – a chamada teoria matemática das
categorias. E, munidos de algumas intuições básicas desse campo, apontaremos
brevemente como é possível utilizar esse formalismo para expandir o alcance e a
precisão teórica da tectologia.
A teoria das categorias (TC) é uma área da matemática que nasceu nos anos
1940, com os trabalhos de Saunders Mac Lane e Samuel Eilenberg (Spivak, 2014,
p.4). Naquele momento, os dois matemáticos buscavam elaborar ferramentas que
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 87
Assim como um avião voando a uma certa altitude nos dá uma visão
de diferentes lugares no planeta, um conceito metamatemático nos dá
uma perspectiva sobre uma variedade de objetos matemáticos específi-
cos. Quanto mais alto é o voo, maior a porção do território que vemos
e menor o nível de detalhe de cada lugar singular que conseguimos
ver. Analogamente, quanto maior a generalidade do conceito, maior o
conjunto de objetos matemáticos que ele consegue subsumir e menor
o nível de profundidade matemática dos insights que podemos gerar
a partir dele. A escolha de uma altura ideal para iluminar um dado
fenômeno é uma questão crucial e nada trivial: o mais alto nem sempre
é o melhor. (...) A importância do ponto de vista correto, tanto na ma-
temática quanto em outras áreas, é enorme. Coisas que são invisíveis ou
difíceis de ver de uma perspectiva podem se tornar claras e naturais de
outra. Mais especificamente, duas teorias conectadas por uma “ponte”
da teoria dos tópos correspondem a diferentes lugares na Terra a serem
observados de um avião. A equivalência de Morita entre eles nos dá a
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 89
que, por mais que sejam indiferentes do ponto de vista das resoluções situadas,
podem ainda assim ser mobilizadas como determinações relevantes na hora de
experimentar o que há de comum entre organizações radicalmente heterogêneas
entre si50.
***
Algumas orientações:
9. Isso não significa, no entanto, que toda pesquisa deve ser coletiva
– mesmo uma pesquisadora individual está sempre organizada, e de
diferentes maneiras ao mesmo tempo: na universidade, na sua família,
em possíveis inserções políticas e grupos de afinidade. Isso nos leva
também a considerar que toda experiência é filtrada por certas formas
organizacionais prévias, que os pesquisadores precisam estar atentos,
pois podem levá-los a confundir aquilo que faz diferença para sua po-
sição com o que é geral ou universal.
1 O livro era considerado por Lenin “o melhor” manual de economia política marxista
da época (Lenin, 1964).
2 Vemos, assim, que existem graus de metaforização na tectologia: uma técnica ou
forma organizacional inventada em um contexto pode ser transferida para outro
e ser capaz de tornar novos aspectos dessa nova prática saliente, outros não. Uma
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 95
teoria da metáfora similar – derivada da teoria dos modelos – pode ser encontrada
em Rosen, 2015.
3 Um bom mapa da heterogeneidade de formas de trabalho no mundo contemporâ-
neo pode ser encontrado em Van der Linden, 2013.
4 Um exemplo anacrônico, porém ilustrativo, é o modo como, ao longo do século XX,
intelectuais de esquerda primeiro adotaram a metáfora do trabalho como modelo
de sua própria prática – a despeito da evidente distância que permanecia entre eles
e o proletariado – para, em seguida, à luz do fracasso dessa aliança, propor a mesma
operação com sinal invertido: no pós-guerra, é a lógica do texto e da elaboração
simbólica que deveria ser generalizável, a ponto de redescrever o circuito econômico
e do trabalho através de um estruturalismo vulgar.
5 Note que dizer que o trabalho não oferece um esquema organizacional geral não é o
mesmo que dizer que o trabalho deixou de existir. Bogdanov inaugura uma crítica
da crise da sociedade do trabalho que não implica a tese de que o trabalho foi, por-
tanto, superado como fundamento do valor, distinguindo conceitualmente o traba-
lho como forma de síntese organizacional e como medida da magnitude do valor.
6 Essa definição de universalidade é corrente na teoria matemática das categorias, a
qual retornaremos mais à frente.
7 Um argumento similar é feito no início da seção sobre o “transcendental” em Ba-
diou, 2006.
8 Bogdanov cita um então recém-publicado trabalho de Einstein em seu “Ensaios de
tectologia”, mas a relação entre eles é mais profunda, dado que ambos foram influen-
ciados por leituras muito particulares que fizeram das obras de Ernst Mach.
9 Há uma ressonância interessante entre Jacques Lacan – que diz que “o real é o im-
passe da formalização” – e Bogdanov, que define o real pela resistência a um sistema
organizado. Com a diferença de que o segundo substitui a metafísica da alteridade
radical pela possibilidade de mudarmos de ponto de vista e entendermos essa resis-
tência como atividade de um outro sistema.
10 Essa abordagem interativa do conceito de trabalho facilita aproximações com o uso
do conceito nas ciências naturais. Um autor que tenta uma generalização similar do
conceito é Terrence Deacon, em Deacon, 2011.
11 A leitura mais spinozista da tectologia, proposta por Rodrigo Nunes em Neither
Vertical nor Horizontal, esbarra nesse ponto: admite que as partes de organizações
são sensíveis a escalas, mas não parece levar a cabo o argumento de que, se assim
é, então não existe um todo auto-organizado, automovente análogo à substância de
Espinosa – já que mesmo o universo em sua totalidade estaria sujeito a múltiplas
sínteses, dependendo do modo como fossem repartidas as partes organizadas.
12 Oferecemos uma introdução informal ao conceito de resolução na apresentação
Distância, escala, resolução, disponível em: https://www.academia.edu/45575088/
Dist%C3%A2ncia_escala_resolu%C3%A7%C3%A3o.Acesso em: 23 set. 2021. Uma
apresentação baseada na física pode ser encontrada em Nottale, 2019 e uma descri-
ção pura e formal do conceito pode ser encontrada em Picado, 2011.
13 A expressão “a difference that makes a difference” é de Gregory Bateson e é utilizada
muitas vezes como um slogan condensado que explicaria o conceito moderno de
96 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
co – que não pode assumir uma resolução absoluta para as escalas – e a história dos
processos reais – que nunca parte de um pano de fundo indeterminado e virtual,
mas de outras organizações que funcionam como o “pré-individual” relativamente à
individuação em questão. Ver, também, Voss, 2019, p.279-299.
24 O problema da eficácia é um dos pontos de interseção entre as epistemologias fe-
ministas materiais-semióticas, as propostas de uma ontologia relacional e a tradição
pragmática. Stengers discute o conceito em “A proposição cosmopolítica”, em diálo-
go com François Julien, e Bruno Latour transforma a questão em um problema de
“felicidade” de formas de enunciação em Latour, 2019.
25 “The brand of holist ecological philosophy that emphasizes that ‘everything is connec-
ted to everything’, will not help us here. Rather, everything is connected to something,
which is connected to something else” (Haraway, 2016b).
26 “[C]hamamos de mundo (com letra inicial em minúscula) cada modo particular
como as séries de existentes expressam a multiplicidade eco-ontológica constitutiva
da existência. Os mundos são, portanto, as maneiras próprias a cada cosmologia de
admitir os seres que integram seu coletivo e de os dispor em relação uns aos outros
nessa série de existentes particular” (de Castro Costa, 2019, p.55).
27 “Meu ponto é que a Terra é tanto uma questão de tradução quanto a nossa lingua-
gem, e tanto quanto o capital (como Chakrabarty mostrou em Provincializando a
Europa). Não é correto pensar que existem, por um lado, coisas unívocas, como a
Terra, os planetas, o clima etc., e do outro, coisas equívocas, como linguagens, siste-
mas de parentesco, ideias filosóficas etc. Não é correto colocar a equivocação apenas
do lado da representação, enquanto a realidade seria sempre (ou pelo menos a prin-
cípio) unívoca. A Terra só existe em tradução, isto é, porque está sendo traduzida,
enquanto multiplicidade; ela só existe no momento mesmo que o sistema-Terra da
IPCC se transforma na Terra-floresta de Davi Kopenawa – assim permitindo ambas
a se definirem como tendências nessa dinâmica divergente. Mas também precisa ser
notado que tradução não significa ficar analisando como dois sistemas representa-
cionais se relacionam a um fundamento comum (ou, digamos, como dividem o es-
paço semântico); consiste antes em redefinir cada um desses sistemas através dessas
transformações que operam um no outro, sem a mediação de um terceiro termo, do
modo como os mitos de Lévi-Strauss traduzem um ao outro sem a mediação de uma
terceira bússola”(Maniglier, 2020, p. 72-73).
28 Alyne Costa e Ádamo da Veiga elaboram essa abordagem, em que – restritos pela
ontologia relacional – buscam conceitos para pensar o que é comum entre mundos
partindo da teoria deleuziana do acontecimento ou encontro e de metáforas de tra-
dução e intertextualidade em Costa; Da Veiga, [S.l.], p. 277-303.
29 Novamente, o “neorracionalismo” não é um movimento consistente ou homogê-
neo, mas designa vagamente os pontos em comum entre trabalhos como o de Ray
Brassier, Reza Negarestani e Peter Wolfendale, entre outros. O livro, atualmente no
prelo, The Revenge of Reason (2022), de Wolfendale, promete organizar melhor suas
premissas. Tomamos como referência ou “manifesto” do programa – ainda que não
seja totalmente representativo da posição, e nem mesmo da posição atual do seu
autor – o texto de Negarestani, 2020.
Capítulo 3 – Uma introdução contemporânea à tectologia 99
30 “A filosofia começa com uma tese universal sobre a igualdade das mentes de que
qualquer um ou qualquer coisa que satisfaça as condições básicas de sua possibili-
dade deve ser visto e tratado como um igual no sentido mais abrangente o possível.
Mas à medida que a filosofia se torna mais madura, ela deve perceber que existe de
fato uma verdade significativa na acusação de que se trataria de um projeto ociden-
tal, por mais distorcida que possa ser a acusação. A igualdade das mentes, como uma
tese sobre o que é verdade e justo, é uma tese universal e necessária em sua verdade e
aplicabilidade. Isso não significa, no entanto, que seja concretamente universal para
nós. É algo que deve ser alcançado e concretamente instituído. A condição para a
igualdade das mentes é o reconhecimento e realização é a luta e a campanha cons-
tante contra os sistemas atuais de exploração” (Negarestani, 2018, p. 405).
31 Um sobrevoo da recuperação da teoria hegeliana da razão através de diferentes
interpretações do “espaço das razões” de Sellars pode ser encontrado em deVries,
2015. Ver também Sellars, 1962, p. 35-78.
32 Uma tentativa interessante de mapear os “realismos” contemporâneos – mas um
tanto alheia às nossas questões – pode ser encontrada em Garcia, 2018, p. 41-56.
33 Talvez por isso a situação apareça de forma invertida nos textos: Haraway, Stengers,
Latour e Maniglier constantemente tentando entender o que seria o “comum” sob
condições de relacionalidade radical, e Brassier e outros tentando encontrar um lu-
gar para a fenomenologia objetiva da teoria do valor de Marx em seu racionalismo
comprometido com a centralidade de uma teoria da cognição.
34 “Eu acho que é menos sobre as ideias centrais da epistemologia situada e mais sobre
as normas prevalentes que as convertem em práticas. O chamado para “ouvir aos
mais afetados” ou “centralizar os mais marginalizados” é ubíquo em muitos círcu-
los acadêmicos e ativistas. Mas nunca caiu bem para mim. Na minha experiência,
quando as pessoas dizem que elas precisam “ouvir os mais afetados”, não é porque
pretendem fazer reuniões por Skype com campos de refugiados ou colaborar com
pessoas em situação de rua. Ao invés, esse chamado significa um manejo da autori-
dade conversacional e dos bens de atenção em vista daqueles que melhor encaixam
nas categorias sociais associadas a essas opressões – independentemente de se eles
sabem ou não alguma coisa, ou de se realmente sofreram pessoalmente essa opres-
são ou não” (Táiwo, 2021).
35 Em sua tese de doutorado, Representing Complexity: The Material Construction of
World Politics, Nick Srnicek se aproxima bastante de nossa discussão do que dife-
rentes formas organizacionais são capazes de ver, propondo o conceito de “agrega-
dos cognitivos” [cognitive assemblages]. No entanto, tanto sua dependência da teoria
ator-rede quanto sua leitura de Marx excessivamente centrada no papel social das
tecnologias, o impedem de reconhecer que a transformação no alcance cognitivo de
uma organização não depende apenas do tipo de máquinas, poder computacional
e conhecimentos técnicos que ela mobiliza, mas do modo como as relações – sejam
elas entre humanos, nãohumanos, técnicas ou interpessoais – se estruturam: o pro-
blema que Srnicek evita não é o de considerar quais entidades estão em jogo, mas de
que forma os “agregados cognitivos” as compõem.
36 Podemos notar, assim, que o problema do mapeamento cognitivo, elaborado por
Fredric Jameson, encontra uma interpretação intrínseca à política: mapear cogni-
100 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
Referências bibliográficas
ASHBY, R. Introdução à cibernética. São Paulo: Perspectiva, 1970.
BADIOU, A. Logics of Worlds. Continuum Press, 2006.
BERTALANFFY, L. An Outline of General System Theory. British J. Philos. Sc. I, p. 134-
165, 1950.
BOGDANOV, A. Curso popular de economia política. São Paulo: Edições Caramurú, 1935.
102 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
que “os antropólogos têm pretendido bem mais do que ouvir e analisar as inter-
pretações produzidas pelos sujeitos e grupos que estudam, mas entender os con-
textos – social e simbólico – da sua produção” (p. 293), a tensão entre a pesquisa
de campo e a pesquisa de gabinete foi sendo diluída, de modo que sua relação não
é mais de oposição, mas de complementaridade.
Para além disso, com a ampliação ao longo do século XX do escopo de ob-
jetos da pesquisa antropológica, temas tradicionalmente investigados pela socio-
logia e pela ciência política passaram a ser do interesse de antropólogas e antro-
pólogos, tais como a administração pública, a organização estatal, os organismos
de regulação internacional, as eleições e os partidos políticos, as redes de coope-
ração humanitária, dentre muitos outros. Ao investigar tais temáticas, também
nos defrontamos com a documentação enquanto uma prática de conhecimento
“nativa” (Ferreira e Lowenkron, 2020). Nesses contextos, estar atento aos modos
de produção e desenvolver ferramentas teórico-metodológicas para a leitura dos
documentos produzidos pelos interlocutores torna-se uma atividade fundamen-
tal do trabalho de campo antropológico e da investigação etnográfica, já que esses
papéis são a materialização de um conjunto de procedimentos burocráticos esta-
tais (Riles, 2006). Em outras palavras, a “papelada” que durante muito tempo foi
negligenciada por antropólogos e pelos próprios agentes de Estado converte-se
um artefato etnográfico (Ferreira, 2013), a partir do qual é possível rastrear uma
série de práticas e técnicas de gestão, bem como outros fenômenos sociais.
Mais recentemente, com o recrudescimento da pandemia de Covid-19 e a
necessidade de distanciamento/isolamento para conter a disseminação do vírus
e o avanço da doença, muitos cientistas sociais – em especial os antropólogos e
aqueles que fazem pesquisa de campo – se viram impossibilitados de compartilhar
o dia a dia com seus interlocutores, um elemento que é visto como central nessa
condução clássica das etnografias. A continuidade dos projetos e as alternativas
para a realização de trabalho de campo parecem ser alguns dos pontos centrais
nas atuais discussões travadas entre pesquisadores tanto no Brasil quanto no âm-
bito internacional. Eventos, minicursos, oficinas, podcasts, vídeo aulas, webnars
e até mesmo um amplo catálogo bibliográfico organizado por Deborah Lupton
intitulado Doing Fieldwork in a Pandemic (2020) multiplicaram-se e foram am-
plamente compartilhados em diferentes plataformas ao longo dos últimos meses.
Nesses diversos registros são apresentadas novas sugestões para que as pessoas
possam contornar as dificuldades colocadas pela pandemia e/ou reinventar suas
formas de estar em campo e conduzir suas pesquisas.
Capítulo 4 – A pesquisa etnográfica com documentos 111
produz registros que classificam e/ou ordenam uma determinada pessoa, obje-
to, situação e/ou fenômeno.
Passemos agora para os desafios metodológicos de pesquisar os ou com os
documentos. Vianna (2014) descreve como a junção em uma mesma expressão
dos termos “etnografia” e “documentos” causa estranhamento entre antropó-
logos. De acordo com a autora, essa postura de desconfiança tem a ver com
antigas ficções e idealizações acerca do “trabalho de campo” na antropologia e
o suposto “acesso ao que é real e verdadeiro” que ele promove. Nesse sentido,
a confiabilidade dos dados permanece como um primeiro desafio para aqueles
que pretendem trabalhar com os documentos. A crítica feita é de que não é
possível saber se o que está registrado é verdade e/ou se corresponde ao que de
fato aconteceu em um determinado contexto. Logo, quaisquer análises e/ou abs-
trações feitas a partir desse material poderiam ser consideradas fraudulentas,
errôneas ou insustentáveis.
Um desdobramento dessa primeira dificuldade em lidar com a pesquisa do-
cumental diz respeito ao que a autora chama do “acesso mediado” em relação
ao que está documentado. Isto é, na medida em que o pesquisador só pode ler/
observar o que foi registrado por outra pessoa, os dados contidos nos documentos
serão sempre, de certa forma, enviesados a partir da perspectiva da figura do do-
cumentador. Em consequência, aquilo e/ou aquele que foi “documentado” nunca
poderá ser diretamente questionado, visto ou ouvido pelo pesquisador. Assim, a
crença de que só é possível fazer uma pesquisa etnográfica “estando lá” ainda ser-
ve de sustentação à ideia de que não é concebível realizar uma pesquisa científica
confiável a partir de uma etnografia dos documentos.
Além da confiabilidade e do acesso mediado ao material, Vianna (2014)
aponta também o problema das “lacunas” e “silêncios” que permeiam os docu-
mentos e que neles parecem se destacar mais intensamente. Em diversas ocasi-
ões, não encontramos nos documentos os dados e as informações que julgamos
fundamentais para o avanço do projeto. Esse terceiro desafio da pesquisa com
documentos torna-se ainda mais patente quando formulamos perguntas cujas
respostas não podem ser encontradas no que está registrado no material coletado.
Contornar essa sensação de falta ou de ocultamento com a finalidade de
pensar em estratégias para superar essa suposta “incompletude” dos papéis é, por
vezes, muito difícil. Porém, esses são passos necessários para levar a cabo um
projeto de pesquisa envolvendo documentos. Como escreve Vianna, “é no dese-
nho sinuoso da produção de suas faltas e parcialidades que devemos procurar sua
Capítulo 4 – A pesquisa etnográfica com documentos 113
riqueza específica, sua força como constructo e como agente social, como marcas
que nos indicam os mundos de onde emergem, mas também os novos mundos
que fazem existir” (2014, p. 47).
Levando isso em consideração, uma das maiores potencialidades da pes-
quisa com documentos reside em sua capacidade de produzir a realidade e con-
solidar certas percepções e/ou interpretações de dados fenômenos sociais (Frei-
re, 2022) por meio do próprio ato de documentação. Além dessa preocupação
mais ampla com as propriedades sociais dos documentos e registros oficiais, é
importante também destacar o lugar ocupado por esses papéis no funciona-
mento da administração estatal e desenho de políticas públicas. No vocabulá-
rio latouriano, não devemos tomar esses registros como meros intermediários
– isto é, elementos que fazem circular significados sem transformá-los –, mas
sim como mediadores, ou seja, como instrumentos que “transformam, tradu-
zem, distorcem e modificam o significado ou os elementos que supostamente
veiculam” (Latour, 2012, p. 65).
Assim, de modo a colocar sob interrogação a premissa de que um documen-
to deve ser apenas um “espelho da realidade” ou sua pura representação, conside-
ramos que, ao invés de descrever ou refletir a realidade, os documentos possuem
a função de produzir, dar materialidade e estabilizar a realidade ao classificar in-
divíduos em determinadas categorias, atestar determinados aspectos, comprovar
certas experiências, certificar diferentes interpretações etc. Como sugerido em
outro artigo de um dos autores(Freire, 2016), os documentos operam situacional
e contextualmente como objetos performativos, uma vez que dentre suas proprie-
dades está a aptidão para concretizar e sedimentar “versões” e “verdades” sobre
algo ou alguém.
Em suma, como descreveu Evans (2014), documentos podem ser ao mes-
motempo uma tecnologia de persuasão e uma tecnologia de materialização. Tecno-
logia de persuasão porque permitem produzir visualizações e narrativas convin-
centes sobre o que quer que eles descrevam e tecnologia de materialização porque
tornam dadas ideias rastreáveis e localizadas, bem como, no caso específico pes-
quisado pelo autor, permitem antever os resultados de um determinado projeto
de intervenção urbana. A seguir, apresentaremos um exemplo de como a pesquisa
etnográfica com documentos pode ser mobilizada para discutir simultaneamente
questões de regulação internacional e de reconhecimento social por meio do en-
trelaçamento do fazer científico com os marcadores sociais da diferença, especial-
mente pelas categorias de sexo/gênero e nacionalidade.
114 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
A título de sumarização
1. A etnografia dos e/ou com documentos não pode ser encarada como uma
espécie de bote salva-vidas de pesquisas interrompidas pela pandemia de
Covid-19. Fazer uma etnografia de documentos implica investigar como,
para quê e por quem esses documentos são produzidos e mobilizados nos
mais diferentes contextos. Isto é, ela demanda que possamos acompanhar
as situações nas quais esses papéis são confeccionados, acionados e arqui-
vados. No entanto, o acúmulo teórico e metodológico nesse campo nos ofe-
rece algumas pistas valiosas sobre as possibilidades e os caminhos para a
pesquisa antropológica em tempos de isolamento social. Assim, a pesquisa
com documentos pode nos auxiliar na realização de propostas investigativas
como as de mapeamento das controvérsias de Bruno Latour (2000) ou as de
disputas pelo enquadramento da realidade de Luc Boltanski e Laurent Théve-
not (1991). Por si só, essas já são propostas de tipos de pesquisa que valem a
pena ser feitas, mas também contribui enormemente para contextualizar e/
ou refinar outras questões abordadas em outras investigações sociais.
2. O que pode ser entendido como um documento? Argumentamos que um
conjunto de materiais formado por diferentes tipos de registros, tais como
decretos, projetos de lei, reportagens, artigos científicos, entrevistas, decla-
rações, laudos, informes etc., funcionam como documentos. Sem ignorar as
especificidades de cada um, todos eles funcionam como artefatos de docu-
mentação, uma vez que eles produzem registros escritos, visuais e/ou sonoros
que podem ser posteriormente arquivados, acessados e mobilizados das mais
variadas formas para os mais distintos fins. Por mais que eles tenham pesos
e poderes diferentes – afinal, um decreto oficial assinado por um governa-
dor não é a mesma coisa que uma entrevista concedida em um programa de
televisão, assim como um artigo acadêmico não é a mesma coisa que uma
reportagem ou um editorial –, todos concorrem na produção de uma espécie
de “visão pública” e percepção sobre o ordenamento social que conforma um
determinado assunto ou fenômeno que estejamos interessados em investigar.
3. É preciso estar atento aos modos de relação entre os documentos e a rea-
lidade. Para as ciências sociais, a ideia de que a “realidade” resulta de uma
construção social é um lugar-comum. Pontuamos há muito tempo que as
categorias empregadas para compreender e dar sentido ao que nos cerca
dependem do estabelecimento de convenções sociais e acordos coletivos.
Aliás, a fabricação social da realidade torna-se ainda mais realçada quando
118 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
1 Para uma versão ampliada do debate histórico sobre a utilização dos documentos na
pesquisaantropológica, ver Freire, 2022.
2 Outro “movimento migratório” das pesquisas antropológicas no contexto mais res-
trito da pandemia deCovid-19 foi em direção ao campo da etnografia digital. Para
uma abordagem mais ampla sobrepesquisas etnográficas no universo online, ver o
texto de Cesarino, Walz e Balistieri nesse volume.
Capítulo 4 – A pesquisa etnográfica com documentos 119
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120 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
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HULL, Matthew. Documents and Bureaucracy. Annual Review of Anthropology,v. 41, p.
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HULL, Matthew. Government of Paper: The Materiality of Bureaucracy in Urban Pakistan.
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Capítulo 4 – A pesquisa etnográfica com documentos 121
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péis numa Delegacia de Defesa da Mulher (DDM). Horizontes Antropológicos, v. 22,
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mas. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, UNICAMP,São Paulo, 2018.
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diferentes formas de narrar que enredam um crime em série. Dissertação de Mestrado em
Antropologia Social, UNICAMP, São Paulo, 2018.
VIANNA, Adriana (Org.). O fazer e o desfazer dos direitos: experiências etnográficas sobre
política, administração e moralidades. Rio de Janeiro: E-papers, 2013.
PARTE III
Ensaios
Capítulo 5
* Gostaria de agradecer à Bárbara Motta, Vítor Costa e Isabel de Siqueira pelos comentários carinhosos e constru-
tivos em versões anteriores deste esforço de destacar a interdisciplinaridade do campo das Relações Internacionais.
126 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
Teoria da prática
Popularizada nas RI através da virada prática, a praxiologia, ou teoria da
prática, traz diferentes vantagens, ferramentas e conceitos que avançam com o
campo ao mesmo tempo em que o distancia do embate entre objetivismo e em-
pirismo. Como coloca Bueger (2013, p.384), a teoria da prática e seu vocabulário
nos permite um melhor diálogo interparadigmático; uma melhor conceituação
da mudança social de curto prazo; uma maior aproximação das atividades co-
tidianas de quem fala, escreve e faz política; encontrar uma conceituação mais
adequada da dinâmica agência-estrutura; uma melhor conceituação de zonas cin-
zentas ontológicas; reavaliar o papel das coisas e objetos; ou mesmo desenvolver
formas de análise que ressoem em outras comunidades para além da acadêmica.
Ainda, como coloca Rocha de Siqueira (2019, p.96), a teoria da prática é uma lente
Capítulo 5 – Não se nasce, torna-se militar 127
O (sub)campo militar
O trabalho de Bourdieu alcança o campo das relações internacionais tardia-
mente, talvez parte como consequência de indiferença, mas também parte pela
forma como seu trabalho “desestabiliza muitas tradições de pesquisa influentes,
sejam ‘convencionais’ ou ‘construtivistas’. Ele às vezes é citado, mas a referência
tende a ser superficial. Além disso, poucos respondem positivamente a provoca-
ções como as que Bourdieu faz em ‘Vive la crise, por uma heterodoxia nas ciên-
cias sociais’” (Bigo, 2011, p.226, tradução nossa). A escolha pelo aparato teórico e
de ferramentas bourdiesianos se justifica então pela forma relacional de tratar as
práticas, pois fornece uma maneira de combinar pesquisa empírica com reflexivi-
dade política e filosófica para superar tensões entre o objetivismo e o subjetivismo
(Bigo, 2011, p. 233; Leander, 2011, p. 294; Rocha de Siqueira; 2019, p. 104). Desta
forma, neste capítulo, o utilizamos para perceber outras nuances da identidade
militar brasileira e seu processo de inculcação nos indivíduos4.
Ao buscar resolver o problema da interiorização da exterioridade e da ex-
teriorização da interioridade, Bourdieu propõe uma articulação dialética do ator
social e da estrutura social recuperando a ideia escolástica de habitus. Ao reestru-
turá-lo de forma a ratificá-lo como uma noção mediadora dentro do embate entre
objetivismo e fenomenologia, define-o como um
[s]istema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a
funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio que gera e es-
trutura as práticas e as representações que podem ser objetivamente “regulamen-
tadas” e “reguladas” sem que por isso sejam o produto de obediência a regras,
objetivamente adaptadas a um fim, sem que se tenha a necessidade de projeção
consciente deste fim ou do domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao
mesmo tempo, coletivamente orquestradas sem serem o produto da ação organi-
zadora de um maestro (Bourdieu, 1983b, p.60).
Em outras palavras, podemos entender por habitus o conhecimento implí-
cito inscrito nos corpos dos indivíduos. Nesse sentido, “[é] uma prática advinda
do conhecimento interno do campo e da histerese do comportamento quanto
130 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
Habitus e campo, então, existem apenas em relação ao outro, um não pode ser
usado independentemente do outro (Bigo, 2011, p. 239). Sendo sempre relacional,
Quando nos valemos dessa noção para pensar as Forças Armadas no Brasil,
se considerarmos a assertiva de Soares (2006) de que as Forças Armadas funcio-
nam como um estado dentro do Estado, podemos percebê-lo como um campo
social. Isto é, como Bourdieu (2019) define, como um espaço relativamente autô-
nomo, com regras, disposições e capitais próprios, “cuja estrutura se assemelha à
de outros campos sociais, delineando (quando interiorizado) a visão de mundo
e o senso prático de seus participantes” (Rosa, 2007, p. 117). É como se existisse
uma fronteira mágica que mantém as distâncias entre aqueles eleitos para partici-
parem do campo militar brasileiro e aqueles excluídos.
Retomando a ideia de que os indivíduos nascem com a predisposição para a
sociabilidade e dependem de uma porta de entrada para se tornarem membro de
uma sociedade, é necessário ressaltar que esse processo ocorre em duas fases ao
longo da vida: (i) a socialização primária e a (ii) a socialização secundária (Rosa,
2007; Setton, 2002). Na primeira fase, o indivíduo tem seu primeiro contato com
o universo simbólico do campo onde se encontra, sendo envolto por um sistema
de referências iniciais que devem ser interiorizadas. Nesse processo a realidade
objetiva vivenciada se modifica, sendo ressignificada de acordo com a posição do
indivíduo na estrutura social, formando o habitus primário do mesmo e servindo
de referência inicial para a interiorização de outros sistemas de referências que
surgirão no decorrer de sua vida (Rosa, 2007, p.151-152).
A segunda fase envolve, por sua vez, a interiorização de campos sociais es-
pecíficos, como escola, universidade, local de trabalho, que estão presentes na
vida do indivíduo por diferentes variáveis. Nesse movimento, há uma tentativa de
inserir um habitus secundário sobre o habitus primário. Mas há uma resistência
por parte do primeiro em se permanecer como única matriz geradora das prá-
ticas do sujeito, o que Löic Wacquant (2005 apud Rosa, 2007, p.152) chama de
“inércia do habitus”. A fim de evitar essa inércia em novos campos, é preciso que
ocorra uma ação pedagógica capaz de imbuir nos novos participantes do espaço
a dinâmica cultural em vigor, a doxa. Para Rosa (2007), no caso da socialização
militar, em que um indivíduo se transforma em militar, ocorre uma socialização
132 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
a um sistema de ensino (SE)” (Rosa, 2007, p.41, grifos no original). Nesse sentido,
a eficácia de uma ação pedagógica, que deve ocorrer em um espaço demarcado,
implica a existência de agentes investidos de e autoridade pedagógica neste local,
cuja posição lhe fornece o poder de transmitir, impor e controlar a inculcação por
meio de um trabalho pedagógico. Este último, por sua vez, deve ser entendido
como um trabalho de inculcação que deve se estender o suficiente para produzir
uma disposição durável, ou seja, um habitus, capaz de permanecer após fim da
ação pedagógica. Ao se tornar efetivamente um gerador de disposições, o habitus
resultante dessa ação pedagógica funciona como um reprodutor da ordem domi-
nante e, assim, a mantém operando. A preservação desse habitus, no entanto, só é
possível através de sua reprodução contínua, o que ocorre através do “fechamen-
to” da instituição, que favorece fortemente a manutenção e o reforço deste habitus
durante a carreira do militar6.
Uma vez bem demarcada a fronteira entre o mundo militar e os outros mun-
dos, podemos perceber que no interior daquele há uma demarcação fundamental
e clara que determina as posições ocupadas pelos que comandam e pelos que
obedecem (Rosa, 2007, p.134). O fundamento dessa estratificação e diferenciação
é possível em virtude da hierarquia, que é alimentada pela disciplina. Fica claro
até aqui a importância que estas possuem em todo o campo militar. Para a organi-
zação militar, não só a brasileira, elas são princípios organizativos, valorados e que
estão presentes na própria definição constitucional das Forças Armadas7.
Finalmente, militar?
O processo inicial de socialização que ocorre nas três Academias brasileiras,
Academia da Força Aérea (AFA), Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN)
e Escola Naval (EN), são similares em diversos aspectos e atividades. Todas as
atividades possuem significados práticos e simbólicos – são como estratégias de
socialização (Rosa, 2007, p.153) – e objetivam imprimir no novo cadete ou aspi-
rante o conjunto de valores, normas e padrões de comportamento necessários à
manutenção da identidade e da integridade da instituição, que são ideais mascu-
linos desde a origem do militar moderno.
Sendo a hierarquia, através da disciplina, a base sobre a qual o mundo militar
se ordena, é a partir dela que se espelham as relações sociais e a visão de mundo
dos militares. Isto é, é a partir e através dela que se explicitam os sinais de respeito,
honras, cerimonial, continências, ordens e comandos, tudo isso executado pelos
membros das Forças, cada qual em sua posição no interior da organização. Esse
134 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
sistema hierárquico militar, apesar de ser um princípio que dá sentido à ação co-
letiva da instituição, também segmenta seus membros, criando um antagonismo
entre dominantes e dominados e uma divisão do trabalho no campo, que tende a
colocar à margem determinadas categorias sociais – os dominados – que encon-
tram maiores dificuldades em acumular capital simbólico. As posições que então
estruturam o campo militar são demarcadas com base no princípio da hierarquia
militar. Toda a estrutura sinaliza para uma organização em formato piramidal, em
que a base é maior que o topo (Leirner, 1997; Rosa, 2007).
No entanto, esta estrutura piramidal não opera como um monólito simples e
permite segmentação escalonada nos corpos das três forças. A hierarquia das Forças
Armadas consiste em um sistema que, dentro da própria pirâmide, a hierarquia é
quantitativa e a classificação entre as posições de mesma colocação na hierarquia
começa já nas Academias, sendo um processo que acompanha, a partir de então,
toda a trajetória do militar (Rosa, 2007). São diversas as possibilidades ao longo da
carreira, que dependerão do desempenho do militar e das opções profissionais que
surgirem nesse trajeto. A posição do militar no campo militar decorre, assim, de
uma dupla chave de classificação disposta, simultaneamente, pelo tempo de serviço
na instituição e pelo mérito acumulado em sua classe (Leirner, 1997).
Mais ainda,apossibilidade de acumulação de distinções não é livre e indeter-
minada. Existem determinadas patentes que são privativas a certas posições no
campo, o que implica não só um engessamento de se mover em um espectro entre
todas as classificações na hierarquia, mas também na (im)possibilidade de aquisi-
ção dos capitais nesse campo, pois este segue uma lógica baseada na hierarquia e
nos requisitos para ascensão. Nesse sentido, em um espectro indo do mais militar
ao menos militar, sendo o primeiro grupo a classe dominante, que detém todos os
meios de jogar o jogo, acumular todos os tipos de capitais e, portanto, definir as
regras do campo, temos:
Instituído
Diplomas de cursos
militares
Interiorizado
Aptidão física, ação e
voz de comando,
liderança,
apresentação
CAPITAL
Objetivado
CULTURAL "Brevês",
medalhas e
condecorações
CAPITAL ECONÔMICO
Soldo maior,
gratificações,
CAPITAL MILITAR transferências
Posto, graduação, força
física, formação
operacional e intelectual,
experiência de combate,
missões no exterior, CAPITAL SOCIAL
vivência nacional Promoções, indicações
para certas funções,
transferências, cursos
Nesse sentido, fica claro que é a classe dominante, mais militar, aquela que
possui a maior possibilidade de acumular mais capitais e a que consegue se mo-
vimentar na cadeia de comando como deseja, “para cima”. Mais ainda, levando-
-se em conta a própria hierarquia da instituição e o “espectro” de mais ou menos
militares que se verifica, temos a definição de um grupo que é mais propício a
acumular mais facilmente estes capitais e, assim, chegar nos maiores postos, “os
mais militares”: os homens, oficiais, que podem alcançar o Estado-Maior, da es-
pecificidade de combatente e que são militares de carreira. Isto é, aqueles que
frequentam as academias militares e se especializam nas Armas-fim das respec-
tivas Forças. São os indivíduos deste grupo que podem, ao subir na hierarquia,
destarte, influenciar as regras do jogo, as estratégias e os objetos de luta do campo,
que têm o poder de manipular a doxa e inculcar em todos os membros o habitus
que melhor lhes serve.
O processo de socialização total, então, jamais se completa, pois os conteú-
dos interiorizados se juntam a outras realidades interiorizadas devido à presença
do indivíduo em múltiplos campos; por mais que o alto escalão militar deseje, o
habitus primário e outros habitus secundários irão coexistir com o habitus militar.
Por isso há a necessidade da manutenção da realidade subjetiva, da conservação
do habitus militar por meio de processos que não são diferentes daqueles que
136 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
ocorrem na socialização inicial (Rosa, 2007, p. 154). O ser militar, assim, não de-
pende somente dos conteúdos impostos durante o curso de formação, de oficial
ou não, mas depende também da convivência contínua no campo militar e docon-
tato com outros militares, como Piero Leirner (1997) coloca, afinal “só é possível o
indivíduo manter sua autoidentificação como pessoa de importância em um meio
que confirma esta identidade” (p.154).
Em todo esse processo de formação militar se objetiva construir e impri-
mir uma forma de pensamento e ação que são características da profissão mi-
litar. Tal como em Rosa (2007, p.165), todos esses comportamentos definem o
espírito militar, apresentado por Celso Castro (1990). Podemos compreender,
assim, que o espírito militar é um tipo específico de subjetividade, construído a
partir de outras subjetividades. Ele atua como um pano de fundo cultural com-
partilhado pelos militares. O autor entende que esse espírito abrange aspectos
relativos às chaves de poder/distinção, hierarquia/disciplina e honra/tradição,
formando os elementos constitutivos para a manutenção do sistema de posições
no campo militar e das relações que servem de base para o que nós entendemos
aqui como habitus militar.
Os rituais, a rotina regrada, a homogeneização, a frequência do contato, o
respeito, a hierarquia, a pressão, a coesão, o companheirismo, o planejamento, os
símbolos, as gírias, as preocupações compartilhadas, a oposição entre os civis, a
coletividade, entre outros, são todos elementos que estão presentes neste espírito
de corpo que é aprendido e incorporado por todos os militares. São as escolhas
das especializações – espírito das Armas – que irão diferenciar os indivíduos que
frequentam as Academias, mas essas características supracitadas estarão sempre
presentes em seus comportamentos e visões de mundo (Castro, 1990).
A dinâmica de um campo tende a ser gerida pelo grupo dominante de forma
a conservá-la, e isso implica uma lógica socializadora que imprima essa dinâmica
nos novos membros do campo. Assim, “aspectos relativos à hierarquia, à discipli-
na, à honra e à tradição [assumidos aqui como pilares do campo militar] devem
ser devidamente incorporados para, num segundo momento, comporem a matriz
geradora das práticas consideradas legítimas nesse espaço de possíveis” (Rosa,
2007, p.171). Nesse sentido, todos esses aspectos – desde o espírito militar, a hie-
rarquia, disciplina, honra e tradição – são incorporados e delimitam, assim, como
cada indivíduo, de acordo com sua posição, transforma as disposições socais
(campo) em estruturas mentais (habitus), gerando uma matriz única de referên-
cia que servirá de guia em suas práticas exteriorizadas no cotidiano (Rosa, 2007).
Capítulo 5 – Não se nasce, torna-se militar 137
Todo este quadro não seria possível caso abordagens tradicionais fossem uti-
lizadas para perceber a construção da identidade militar brasileira e sua perma-
nência e força no país, pois elementos e nuances importantes seriam diminuídos
ou mesmo excluídos. Os diferentes ritos de passagens, hinos, trotes, as tão bem
marcadas rotinas e linguagem corporal, os posicionamentos e falas constantemen-
te reiterados e uníssonos, todos estes elementos que marcam e diferenciam o indi-
víduo militar são elementos que são inculcados ao longo do processo de entrada
neste campo e que ao mesmo tempo em que o representa, também o constrói.
Nesse sentido, marginalizá-los em uma análise que visa perceber o campo militar
e seus membros, resultaria em uma análise pobre e/ou enviesada, deixando de
entender as Forças Armadas Brasileiras como um ator que desenvolve diferentes
nuances ao longo do tempo, todas estas que refletem os membros que a forma.
critica aqueles que subordinam ou simplesmente ignoram as visões dos atores so-
ciais, evitando a pesquisa empírica, bem como aqueles que afirmam que qualquer
discurso tem o mesmo peso de legitimidade e autoridade” (Bigo, 2011, p.228, tradu-
ção nossa).
5 Ainda podemos entender campo como uma rede com limites que, por sua vez,
criam efeitos e, sobretudo, delimitam a atuação das forças centrípetas e centrífugas
na circulação de poder/lutas dentro do campo. Estes limites, todavia, estão quase
sempre em um processo de mudança de fluxo; assim, ao longo do tempo, os campos
podem se fundir ou diferenciar. Nesse sentido, longe de construir monólitos imu-
táveis, o campo e seus limites possuem espaço para luta e mudança. O movimento
que as pessoas realizam de um campo para outro faz com que capitais, práticas e
desenvolvimentos transitem entre eles, alterando, assim, suas dinâmicas e lutas. O
contexto em que se analisa/estuda algum campo, bem como o contexto do próprio
campo devem, então, ser levados em conta pois influenciam as práticas, os limites e
a permanência do campo (Leander, 2011; Bigo, 2011).
6 Vale ressaltar aqui a importância que os atores e os agentes ganham a partir desta
metodologia de análise. Novamente, é uma quebra com muitas tradições das RI, nas
quais os indivíduos desaparecem das análises pois somente a estrutura e/ouo discur-
so são relevantes. Ainda, rompe com o pressuposto de que os atores são, em grande
parte das vezes, estados antropomorfizados e⁄ou instituições, pois uma abordagem
praxiológica considera pessoas reais identificáveis e instituições, com nomes, uma
posição, um passado e uma identidade, como agente, escolha que depende intei-
ramente do campo que se está analisando (Leander, 2011, p.298). Neste sentido, o
que a sociologia de Bourdieu oferece é uma linguagem para estudar qual papel estes
atores desempenham nas RI e como estes papéis podem, ou não, se modificar.
7 “[A] hierarquia, além de ser um princípio geral, norteia toda a vida da instituição
militar, reunindo, de maneira singular, um princípio dado na lei e uma conduta a
ela associada. Ela é o princípio primeiro de divisão social de tarefas, papéis e status
dentro do Exército, determinando as condutas e estruturando as relações de co-
mando-obediência, sistematizando a ação e a elaboração do conhecimento militar e
mapeando o modo como as relações de poder devem estruturar-se” (Leirner, 1997,
p.52-53).
8 Devemos destacar que o corpo e todos os seus usos possuem grande importância
no campo militar, tendo em vista seu caráter performático; afinal a guerra ainda tem
o elemento humano como fator de decisão dos conflitos. Nesse sentido, apesar de
a socialização ocorrer de forma diferente de acordo com a posição na hierarquia, a
dimensão corporal do habitus, em todas elas, condiciona o corpo do agente militar
a assumir gestos, verbalizações e movimentações que muitas vezes escapam ao con-
trole do próprio indivíduo, sendo exteriorizado de forma inconsciente. A continên-
cia, a tensão constante do corpo, a fala somente autorizada, o uso e o alinhamento
corporal com farda, são inculcações que ensinadas através de ações pedagógicas
140 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
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Capítulo 6
* Gostaria de agradecer a Pablo Fontes, Vítor Costa e Isabel de Siqueira pelos comentários construtivos em
versões anteriores deste ensaio.
144 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
forma, foca nas diversas práticas sociais e culturais do (re)fazer da história, não
marcando um início, meio ou fim para o seu (re)pensar.
Nesse sentido, utilizo dois tipos de obras, uma literária e uma acadêmica,
que relatam o contato do Ocidente com o “Congo”. Entendo que essa separação
reitera um regime de saber/poder em que a ciência, com seus métodos e hipó-
teses, tem mais credibilidade do que uma obra infanto-juvenil, com desenhos e
diálogos (Inayatullah, 2001). Mesmo assim, uso esses dois “diferentes” meios de
acessar as narrativas, porque os considero emblemáticos para o entendimento do
“problema do Congo” segundo o Ocidente ao longo do tempo.
Por “narrativas”, compreendo que, ao contar uma história de uma forma es-
pecífica, selecionam-se eventos e gêneros literários, categorizam-se ações e orga-
nizam-se o desdobramento e as percepções de fatos. É preciso ressaltar, também,
que as narrativas se baseiam em suposições sobre quem (não) pode ser o narrador
e, portanto, sobre quem (não) pode falar de certos temas/eventos e sobre/para al-
guém, isto é, alguns grupos seguem invisibilizados. Dessa forma, uma abordagem
a partir do conceito de narrativas, como neste ensaio3, propõe um foco na relação
entre linguagem e a vida social, isto é, na criação de histórias, contos, mito e fábu-
las que fabricam “mundos” fictícios, personagens, regras e morais a partir de um
determinado roteiro (Said, 1990; Moulin, 2016; Oliveira, 2020).
Em primeiro lugar, o álbum “Tintin au Congo” de 19314 (“Tintim na África”, na
versão brasileira) é um expoente na continuidade da narrativa de superioridade do
Ocidente que conta a história de um jornalista-mirim belga em uma missão inter-
nacional para visitar o “Coração das Trevas”, como é chamado o imaginário sobre o
“Congo selvagem” de Conrad. Nesse caso, entendo a preservação da narrativa-base
das RI no gênero de aventura, que enaltece o Estado vestfaliano como ator central do
Sistema Internacional (consolidado na passagem para o contrato social) e inferioriza
o “Congo”, apontando-o em um estado de natureza hobbesiano (Fernández, 2019).
Já o livro “The Trouble with the Congo” de Séverine Autesserre engaja com
uma discussão mais recente sobre o “Congo”, desestabilizando a visão ocidental,
enquanto problematiza a presença estrangeira da Missão das Nações Unidas para
a República Democrática do Congo (MONUC). Para essa autora, o “problema do
Congo” segundo o Ocidente não condiz com sua experiência no terreno, porque se
origina nas próprias narrativas da ONU. Entretanto, vejo que seu argumento acaba
se oficializando e reiterando a lógica de “solução de problemas” que a autora critica.
Nesse sentido, o restante deste trabalho está dividido em duas seções, para
além das considerações finais, que se dedicam a analisar o discurso dessas duas
Capítulo 6 – Em busca do desorientalizar das narrativas 145
Tintim no “Congo”
Assim, enquadramentos e narrativas não causam ação. Em vez disso,
eles tornam a ação possível (...). Essas ações, por sua vez, reproduzem
e reforçam tanto as práticas dominantes quanto os significados, incor-
porados em enquadramentos e narrativas, sobre os quais se baseiam.
Com o tempo, as narrativas e as práticas que eles autorizam passam a
ser tidas como naturais, garantidas e as únicas concebíveis (Autesserre,
2012, p. 6, tradução nossa5).
práticas” da ONU, mesmo com algum ajuste19, para reiterar as narrativas de su-
perioridade dos valores ocidentais. Isso não significa dizer, entretanto, que Au-
tesserre não tenha se engajado criticamente com o modelo de peacebuilding, mas
ressalta o potencial da continuação de narrativas orientalistas por trás desses mo-
vimentos críticos.
Este ensaio não busca, assim, negar os desafios da realidade congolesa ou
isentar-se de pensar que formas de enfrentamento das múltiplas violências e de-
sigualdades, centrais na narrativa do peacebuilding, podem e devem ser pensadas
criticamente. Tratar do orientalismo, como nesta reflexão, significa mais do que
um foco “contemplativo e textual” (nas ideias por trás dessas narrativas), mas tam-
bém sua transformação em práticas de administração, economia e até no âmbito
militar (Said, 1990, p. 217). Frente a essa materialidade, sinalizo sua perpetuação
nas narrativas orientalistas sobre as Operações de Paz da ONU como a MONUC.
A proposta desta reflexão é, portanto, investigar a (re)produção do imaginá-
rio “problemático” atribuído à RDC e à intervenção estrangeira, seja no colonia-
lismo ou em um contexto pós-colonial, como “solução”. Como afirma Richmond
(2001), uma genealogia da resolução de conflitos também perpassa por uma ge-
nealogia das RI e seu ordenamento vigente. Nesse sentido, compreendo que toda
abordagem crítica deve também repensar o “problema do internacional”, uma vez
que pode revalidar a lógica vestfaliana das teorias mainstream.
1 É importante apontar, entretanto, que neste ensaio não se objetiva apresentar uma
discussão aprofundada sobre todas as ingerências ocidentais no Congo – ver Dunn
(2003) e Nzongola-Ntalaja (2007) –, nem abordar os debates normativos das Opera-
ções de Paz da ONU ao longo do tempo – ver Kenkel (2013).
2 A atual República Democrática do Congo (RDC) possui diversos nomes como
“Kongo” antes da colonização, como uma propriedade privada do rei Leopoldo II da
Bélgica, denominado “Estado Livre do Congo” (1885-1908), e colonizado pela Co-
roa da Bélgica, “Congo Belga” (1908-1960). Enquanto independente, há a República
do Congo-Leopoldville (1960-1971), Zaire (1971-1997) e República Democrática
do Congo (1997-). Mais do que refletir sobre o que existe de fato nesse território, o
160 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
foco deste ensaio é refletir sobre os discursos que (re)criam “Congos” problemáticos
aos olhos do Ocidente.
3 Cumpre ressaltar que esse tipo de interpretação já é consolidada em algumas pers-
pectivas feministas na tentativa de chamar atenção para a história de vida das mu-
lheres, por exemplo (Ackerly, Stern e True, 2006; Wibben, 2011; Enloe, 2016). As-
sim, este ensaio busca contribuir para uma discussão existente, porém marginaliza-
da, nas RI, ampliando seu escopo analítico ao trazer reflexões pós-coloniais sobre
a imposição do ideal vestfaliano para o “Congo” enquanto assume a “Europa” e a
“Bélgica” como personagens-modelos, bem como a intervenção estrangeira, seja
pelo colonialismo ou pelas intervenções humanitárias e militares, como a “solução”
para as disfuncionalidades do “Congo problemático”.
4 É importante notar que há quatro versões do álbum. A primeira, de 1930, foi envia-
da semanalmente nos veículos de comunicação e remodelada para uma versão em
álbum pela Éditions du Petit Vingtième em 1931. Já as versões coloridas de 1946 e
1975 contam com edições na história, diminuindo-a (Tambascia, 2004).
5 No original: “Thus, frames and narratives do not cause action. Instead, they make
action possible (…). These actions in turn reproduce and reinforce both the dominant
practices and the meanings, embodied in frames and narratives, upon which they are
predicated. Over time, the narratives and the practices they authorize come to be taken
as natural, granted, and the only conceivable ones” (Autesserre, 2012, p. 6).
6 O escritor assina seus trabalhos com o nome Hergé, uma correspondência à pronún-
cia das suas iniciais em francês na ordem inversa.
7 Apesar de a história manter vários elementos racistas, cumpre apontar como um
exemplo de mudança o momento da “aventura” de Tintim em que ele substitui um
padre europeu em uma aula para crianças congolesas. Vale ressaltar que, em cenas
anteriores, ele foi salvo por esse personagem, logo, sua aceitação para lecionar uma
aula (o que atrapalharia seus objetivos individuais na trama) pode ser entendida
como um pagamento entre “amigos” pela ajuda oferecida. Nos primeiros álbuns, a
lição se baseava na apresentação da “Pátria Belga” para os alunos, o que aponta forte
imaginário colonial de Hergé. Já nos álbuns “revisados”, essa aula é alterada para um
conteúdo de matemática. Ver Hergé (1931; 1960[1946]).
8 O furo jornalístico é uma expressão frequentemente utilizada no campo do jornalis-
mo que se refere a uma notícia obtida com exclusividade antes dos demais veículos
midiáticos (Traquina, 2005). Entendo que esse é o objetivo da viagem de Tintim,
porque ele se recusa a trabalhar com outros correspondentes internacionais ao che-
gar ao “Congo” (Hergé, 1931; 1960[1946]).
9 Para uma discussão sobre Stanley e suas “aventuras” na consolidação do poderio
belga no Congo, ver Hochschild, 1999.
10 Entendo, com base em Mills (1997), esse tipo de mito fundador da Europa a partir
da noção de contrato racial que, diferente da abstração e idealização do contrato
social, é real e concreto. Para além de desigualdades econômicas, o autor demonstra
Capítulo 6 – Em busca do desorientalizar das narrativas 161
como essa narrativa institui a desigualdade racial, uma vez que é um pacto entre
brancos para governar os nãobrancos que perdura no ordenamento global vigente.
Assim, o contrato racial normatiza e racializa espaços como “civis” ou “selvagens”,
estabelecendo uma dicotomia entre “pessoas” e “subpessoas” a partir da raça/etnia
por meio de violência física e condicionamento ideológico enquanto alega ignorân-
cia/cegueira das hierarquias produzidas.Dessa forma, adoto a grafia “social e racial”
não compreendendo esses contratos como sinônimos, mas para ressaltar como na
narrativa oficial(izada) do contrato social há um intrínseco elemento racial.
11 No original: “Approaches to ending conflict tend to be presented as ways of doing good,
but what they are doing more specifically is trying to provide continuity for an inter-
national system and an order that has proven to not be self-sustaining without the
exploitation of coercive practices and that therefore lacks sustainability and continuity
by itself” (Richmond, 2001, p. 336).
12 Cabe destacar “Peaceland”(2014) e “The Frontlines of Peace” (2021) como outras
obras de Autesserre. A opção por trabalhar somente com o livro “The Trouble with
the Congo”neste ensaio se dá pelo argumento de a autora adotar, mesmo que não
como o objeto central do argumento, um foco no debate narrativo sobre o “Congo”.
13 A “virada local” nas Operações de Paz pode ser entendida como um conjunto de
críticas ao modelo liberal de peacebuilding(top-down) emergente no pós-Guerra Fria
(1945-1989) que chama atenção para a participação mais ativa da população local.
Isso significa trazer uma voz dos locais (bottom-up) para a discussão de construção
e consolidação da paz. Jabri (2013, p. 5) oferece uma tipologia desse tipo de críti-
ca, dividindo-a em três grupos. O primeiro decide adotar somente as perspectivas
locais no projeto de peacebuilding, entendidas como mais autênticas, já o segundo
foca em um modelo “híbrido” que considera um meio-termo entre as agências do
“internacional” e do “local”, isto é, um modelo que negocia as visões bottom-up e
top-down. O terceiro, por fim, tem um enfoque em práticas de “resiliência” que cons-
trói capacidades e produz agência no terreno e no local.
14 Com base em Vrasti (2017, p. 275 apud Oliveira, 2020), compreendo que esse tipo de
abordagem vem ganhando popularidade nas RI com o objetivo de melhor “traduzir”
a realidade do campo e da experiência pessoal do pesquisador em trabalhos aca-
dêmicos. Cumpre ressaltar neste ensaio, todavia, o perigo de essencializar o objeto
de estudo em algumas abordagens etnográficas, porque podem cair nas práticas de
busca da “verdade” presentes nas vertentes convencionais das RI.
15 Holthaus (2020) propõe uma produtiva discussão sobre o “prestígio” recebido por
(meta)teóricos que adotam um enfoque na prática ao terem, de fato, alguma vivên-
cia no campo que estudam. Esse tipo de acadêmico pode ser intitulado “scholar-
-practitioners”, ressaltando que sua presença e influência desafiam questões dico-
tômicas entre a teoria e a prática. De acordo com Holthaus (2020, p. 6, tradução
livre), “todos eles são diplomados em ciências sociais, publicam em periódicos que
discutem política internacional e possuem considerável conhecimento interno devi-
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Sobre os autores e organizadores
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166 Metodologia e Relações Internacionais: Debates Contemporâneos – Vol. IV
Lucas Freire é cientista social pela UERJ, mestre e doutor em antropologia pelo
Museu Nacional (UFRJ). Atualmente é professor substituto no Departamento de
Antropologia da UFSC e pesquisador do PNPD-CAPES no PPHPBC/CPDOC/
FGV. É também coordenador do Laboratório de Antropologia Contemporânea
(LAC/CPDOC). Pesquisa saúde, direitos, Estado, políticas públicas, litígios e bu-
rocracias.