A Articulação Do Texto Argumentativo Oral: Iara Bemquerer Costa
A Articulação Do Texto Argumentativo Oral: Iara Bemquerer Costa
A Articulação Do Texto Argumentativo Oral: Iara Bemquerer Costa
ARGUMENTATIVO ORAL
Introdução
E
m trabalho anterior (Costa e Godoy, 1997) analisamos um pequeno conjunto
de textos argumentativos recolhidos de entrevistas orais não planejadas, a
partir dos quais fizemos uma caracterização preliminar das formas de
construção argumentativa encontradas. Os resultados daquele estudo serviram de
ponto de partida para a análise de um corpus mais amplo, que ora apresentamos. O
estudo da argumentação no texto oral não planejado é particularmente interessante,
pois pode revelar as matrizes mais elementares da organização argumentativa do
discurso. Sua análise pode ajudar no reconhecimento das características nucleares
desse gênero discursivo, que também estarão presentes, em maior ou menor grau,
nos discursos argumentativos produzidos em contextos institucionalizados, em que
a argumentação se faz mediante o uso de técnicas mais elaboradas.
Há, certamente, entre as duas situações, diferenças significativas, uma vez
que os discursos políticos ou jurídicos sofreram, ao longo do tempo, um processo
histórico de elaboração da sua forma, que resultou na fixação de técnicas
argumentativas mais elaboradas, usadas de forma recorrente no interior das
instituições em que tais discursos são produzidos, especialmente quando os falantes
produzem seus enunciados a partir de lugares institucionais bem definidos. 1 De
Revista Letras, Curitiba, n. 57, p. 195-209. jan./jun. 2002. Editora da UFPR 221
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2 Sobre a questão dos usos discursivos em instâncias públicas e privadas, ver Geraldi (1996),
p. 39-45.
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Texto 1
E - Que que você acha (hes) da religião hoje, (hes) não igreja,
né? religião mesmo e coisa, e até de surgimento de várias
congregações?
F - É um baita de um comércio, né? E um comércio que... eu acho
3 Nas citações de dados extraídos do Banco de Dados Varsul, mantivemos as seguintes nota-
ções usadas nas transcrições originais, conforme KNIES e COSTA (1996):
1) Os participantes das entrevistas foram identificados como E, entrevistador, F, falante e 1,
interveniente;
2) Foram mantidas entre parênteses as observações do transcritor sobre informações não
lingüísticas relevantes para a compreensão do fluxo da conversação, entre as quais des-
tacamos: (est) estímulo do entrevistador mediante a produção de sons que geralmente
não constituem palavras e são reveladores de atenção e concordância em relação ao que
o falante afirma; (hes) hesitação; (risos E, F, I ou risos geral) risos de um ou todos os
participantes da situação; (inint), trecho ininteligível, cuja transcrição não pôde ser feita;
ruídos que interferem no fluxo da entrevista, como campainha, telefone, latidos;
3) Usamos a transcrição de primeira linha do Banco de Dados, que contém a sintaxe real do
falante, mas não traz informações fonéticas nem a concordância nominal e verbal efeti-
vamente usadas;
4) A pontuação adotada aproxima-se, na medida do possível, da escrita.
5) As entrevistas são identificadas, no final, mediante os mesmos recursos usados na sua
identificação no Banco de Dados: a indicação do Estado do Paraná (PR), da cidade de
Curitiba (CTB), do número da entrevista e das linhas correspondentes ao trecho citado
no arquivo eletrônico.
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que servem para reforçar seu ponto de vista: E surge uma ali, já se compra um...
um terreno lá em cima, já faz outra; dali a pouco vem a sacolinha, então eles
querem dinheiro. Na organização argumentativa do texto, esses exemplos, por
sua relação com a formulação da tese, têm o caráter de ilustrações. Segundo
Perelman e Tyteka (1996, p. 407):
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As técnicas argumentativas
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Texto 2
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né? aquela coisa toda, né? Tem toda uma escala lá pra subir, né?
E - Sei.
F - Então hoje tem uma equipe que chefia, mas é a mesma coisa.
Só que o equipamento é cem por cento outro quase.
E - É, porque hoje acredito que seja tudo informatizado.
F - É, exatamente. Nesses últimos dois anos assim a gente teve
uma mudança radical. Tudo informatizado. Para você ter uma
idéia, em setenta e nove éramos em mil e duzendos aproxima...
aproximadamente. Hoje somos em seiscentos e poucos. Metade
e continua produzindo a mesma coisa, talvez até mais. Então...
E - E, mau para esse pessoal que sai, né?
F - É, com o neoliberalismo agora, né? eles vão buscar muitas
idéias lá fora. Esse negócio da aldeia global. As refinarias lá
fora, na Europa, na França, principalmente na França. Espanha
eles estiveram também. Foram visitar e foram... e agora estão
vindo com esse negócio de redução mesmo de custo. Então a
redução é em cima do pessoal, através da informatização. Você
(inint) os instrumentos, automatiza, né? Então a idéia é essa
mesmo. Aí muda todo o conceito, né? porque ela, a Petrobrás
tinha um conceito de estatal, tinha muito do objetivo social, né?
Então era aquele cabidão mesmo, né? Você ia empregado, ia
empregado. Hoje ela vai ter que se reestruturar, competir no
mercado. Por exemplo, nós aqui em Araucária, uma refinaria de
vinte e quatro mil metros cúbicos por dia, né? que processa, que
refina, refinamento: uma empresa assim lá fora tem mais ou
menos isso aí, seiscentos e poucos funcionários e não mil e
duzentos, né? Então ela vai ter que se adequar porque com o
tempo as refinarias vão ficar independentes, né? vão privatizar,
vão ser privatizadas.
E - E eles já falam de privatização?
F - Já, eles estão falando de parceria, né? falando em parceiros
lá. Na verdade, vai ser isso mesmo, uma privatização branca.
E - É, uma privatização branca, bem isso.
F - Então é engraçado você num país de terceiro mundo assim e
ver todo esse papo, todo esse discurso, né? da qualidade e de
não sei quê e... menor preço, menos custo a qualquer preço, né?
Investe no pessoal, mas investe menos, né? só aquele pessoal
que realmente, que vai dar certo, que vai dar bom resultado, né?
Porque antes... como eu te disse, né?, com esse lado social você
tinha gente perdida lá dentro, né?, tudo que é tipo, né? E... enfim
vai. Mas eu particularmente, quando eu comecei a fazer Letras
foi justamente... procurei uma matéria da área humana, né? para
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Nesse texto, o falante não apresenta logo de início seu ponto de vista sobre
a necessidade de modernização da empresa. Essa tese só é formulada após a
apresentação do exemplo: Para você ter uma idéia, em setenta e nove éramos em
mil e duzentos aproxima... aproximadamente. Hoje somos em seiscentos e poucos.
Metade e continua produzindo a mesma coisa, talvez até mais. Esse exemplo é
primeiramente relacionado com uma série de informações particulares que permitem
contextualizá-lo e possibilitam ao falante passar da apresentação do exemplo à
formulação de sua tese: as visitas dos dirigentes à França e à Espanha, a eleição das
refinarias desses lugares como modelos, a comparação entre um conceito antigo e
um novo de empresa estatal. A partir dessa contextualização, o falante apresenta
sua tese: Hoje ela vai ter que se reestruturar, competir no mercado. Uma vez
explicitada a tese, o mesmo exemplo apresentado antes é retomado, com o acréscimo
dos índices de produtividade, mencionados de forma vaga anteriormente, e a
indicação de uma característica que facilita sua aproximação com a tese formulada:
a comparação entre os índices de produtividade atuais da refinaria e os índices
observados nos modelos estrangeiros - Por exemplo, nós aqui em Araucária, uma
refinaria de vinte e quatro mil metros cúbicos por dia, né? que processa, que refina,
refinamento: uma empresa assim lá fora tem mais ou menos isso aí, seiscentos e
poucos funcionários e não mil e duzentos, né? Essa retomada do mesmo exemplo,
de forma mais detalhada e acrescida de sua comparação com o modelo, permite ao
falante prosseguir sua argumentação com a retomada da tese apoiada em uma relação
de causalidade. Ele não só reafirma a necessidade de reestruturação da estatal, como
relaciona essa reestruturação a um projeto de privatização, apresentado com o estatuto
de fato inevitável: Então ela vai ter que se adequar porque com o tempo as refinarias
vão ficar independentes, né? Vão privatizar, vão ser privatizadas.
A argumentação do falante, neste caso, tem como acordo um conjunto de
valores relacionados à modernização, produtividade e competitividade da empresa.
Esses valores estão relacionados a um fato apresentado como irreversível: a
globalização da economia. Notamos que ele constrói sua argumentação assumindo
claramente o ponto de vista de um dirigente, co-responsável pelo desempenho da
empresa. Quando fala da redução do quadro de funcionários observada na refinaria,
ele se apresenta como administrador, preocupado em aumentar os índices de
produtividade da empresa, não como um funcionário em defesa das condições de
trabalho de seus pares: a Petrobrás tinha um conceito de estatal, tinha muito do
objetivo social, né? Então era aquele cabidão mesmo, né? Você ia empregando,
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ia empregando.
O exame do conjunto de textos selecionados fornece uma resposta à
q u e s t ã o proposta inicialmente: quais os recursos argumentativos mais
prontamente acessíveis na argumentação mais elementar, produzida em instâncias
privadas, sem planejamento prévio? Os textos indicam que os falantes buscam
na sua experiência pessoal algum fato que possa se relacionar a sua opinião
sobre o tema proposto, e certamente, sobre os temas que surgem naturalmente
na conversação informal. Para os falantes, na conversa informal, a simples
associação entre uma generalização e algum fato do seu conhecimento é
suficiente para que se considere a tese suficientemente sustentada por evidências
empíricas. Se, seguindo a esteira de Bakhtin, formos buscar a gênese do texto
argumentativo em sua forma mais simples, o comentário informal emitido em uma
instância privada, encontraremos um modelo que tem, essencialmente, dois
c o m p o n e n t e s na sua organização argumentativa: a f o r m u l a ç ã o de uma
generalização e sua relação com um ou mais fatos particulares, que a exemplificam
e ilustram.
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E - O senhor acha que essas escolas que tem aqui, elas são
suficientes ou precisaria ter mais, digamos assim?
F - Olha, eu acho que, principalmente pra segundo grau, precisaria
mais uma aqui na nossa região, porque muita gente se desloca
daqui. (PRCTB05 - Linhas 469 - 474)
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chega, planta, vai lá, poda, tá. Nós vamos de... cada trinta dias
nós passamos em cada escola, né? Então daí você não... não tem
como você orientar. E a direção do colégio não ajuda. A
secretária, orientadora, que ganham pra isso não fazem. Então
como é que você vai poder conservar um jardim? (est) Então
tem às vezes que... em... em um ano você tem que reformular
duas vezes um jardim. (PRCTB01 - Linhas 1468 - 1684)
Evidentemente, não temos nos textos unicamente o uso de então para fazer
a ligação de partes de cada argumento entre si e para marcar a introdução de novos
argumentos ao longo da construção textual. Mas ao examinarmos os textos fica
evidente que essa é a marca usada de forma mais recorrente com essa função. As
análises quantitativas feitas por Tavares (1999) e Pretto (2000) demonstram que
nos textos argumentativos a função retroativo-propulsora é exercida majoritariamente
pelo então, enquanto nos textos narrativos é o (d)aío articulador preferido para a
mesma função.
Os textos mostram o uso de outros articuladores, que assinalam relações
lógico-semânticas entre as proposições: porque, mas, quer dizer, por exemplo, tanto
é que, em função de que etc. Mas o papel que esses elementos desempenham na
construção textual é muito diferente daquele exercido pelo então (e minoritariamente
pelo (d)aí). Esses articuladores, usados reiteradamente ao longo do texto oral
assinalam-lhe o ritmo, têm uma função delimitadora, equivalente, de certa maneira
à pontuação e paragrafação na escrita. A o inserir um então no texto, o falante sinaliza
sua progressão argumentativa.
A análise feita demonstrou que o texto argumentativo oral não planejado
apresenta padrões bem definidos, tanto no que diz respeito a sua organização
argumentativa quanto à articulação textual. Seria interessante, em trabalhos
posteriores, fazer comparações entre as características observadas e as marcas
correspondentes em textos escritos usados em instâncias diversas, para uma melhor
compreensão do processo histórico de elaboração do gênero argumentativo.
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RESUMO
ABSTRACT
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REFERÊNCIAS
KNIES, C. B.; COSTA, I. B. Banco de dados lingüísticos VARSUL - manual do usuário. UFRGS/
UFSC/UFPR/PUC-RS, 1996.
PÊCHEUX, M. Análise automática do discurso (AAD-69) In: GADET, F.; HAK, T. Por uma
análise automática do discurso. Campinas: Ed. da Unicamp, 1993.
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