Bilhete - Marici Salomão
Bilhete - Marici Salomão
Bilhete - Marici Salomão
BILHETE
Estreou em... com patrocínio do Centro Cultural Banco do Brasil (2002). Temporadas
no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (2002) e no Centro Cultural
São Paulo (2003).
FICHA TÉCNICA
Texto: Marici Salomão
Direção: Celso Frateschi
Elenco:
mato adentro.
MULHER É. Me embrenhando é uma boa expressão. (PAUSA) Vou ver uma pessoa.
VELHA A senhora é missionária?
MULHER Não, só vou visitar uma amiga.
VELHA Só? Ela vale tão pouco assim?
MULHER Modo de dizer.
VELHA E ela mora longe?
MULHER Na próxima parada.
VELHA Uh, a próxima parada... Uma eternidade. O trem leva horas até a próxima
parada. Veja bem, aqui você tem o fim do mundo, mas lá na frente vai
encontrar os precipícios. Cuidado!
MULHER Como assim, cuidado?
VELHA Faz tempo que ela está doente?
MULHER Quem?
VELHA Sua amiga.
MULHER Como sabe?
VELHA (RINDO) Para uma moça bonita deixar a cidade grande para escarafunchar
nessas barranqueiras, só mesmo em caso de vida ou morte.
MULHER Não é um caso de vida ou morte. Ela é muito nova.
VELHA E daí? Gente nova vive morrendo, a torto e a direito. E o mundo esquece
rapidinho, de velho ou jovem, tanto faz. O mundo só não se esquece das
crianças quando morrem. Ou já se esquecem?
MULHER Eu não sei. Nunca pensei nisso.
VELHA Pois não é porque é sua amiga... Ô filha, nada de ilusões. Por aqui, doença
quando vem é grave, remédio quando tem é pouco. Médico, então, não tem...
E lá na frente vai ser um pouco pior, porque não tem nada, nada.... Além dessa
sua amiga. (FAZ GESTO DE DESPREZO COM A MÃO,
LEMBRANDOSE DE NOVA COISA) E dizer que houve um tempo
juro
para você
que as pessoas brigavam pra vir pra estas bandas. É, sim! Muita
gente esperou que o governo cumprisse o prometido.
MULHER O prometido?
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daqui, não é?
MULHER Eu não estava pensando nada. (PAUSA) Mas quer dizer, a senhora nunca
pensou em sair daqui? Conhecer outros lugares?
VELHA E pra quê? Tudo tão igual. E eu já conheço tudo, cada pedaço de terra, cada
porquinho vindo à luz são tão lindos, não me escapa um batente de porta,
uma cor de cabelo. Pfff!! Nada muda muito. (PAUSA. TOM) Vou confessar
uma coisa: eu mesma... Como a gente chama o trabalho de contar as pessoas
de um lugar?
MULHER Recenseamento?
VELHA É. Eu mesma faço isso aqui. De casa em casa, pessoa a pessoa, todos os anos.
Da ponta do meu lápis, não escapa um habitante. Faço um risquinho pra cada
um. Depois vou contando. Levo três dias, entre a contagem e a recontagem.
MULHER Deve dar um trabalhão.
VELHA É pouca gente.
MULHER Mesmo assim. A senhora é paga pra fazer isso?
VELHA Que nada.
MULHER Mas devia. Se distrai, pelo menos?
VELHA Isso não. No começo até que sim, não tinha mesmo o que fazer por aqui. É, eu
não tinha o que fazer, depois não tinha nem o que querer. Essas coisas
acontecem. (LENTAMENTE, OLHANDO NOS OLHOS DE MULHER)
Um dia a gente tem um monte de sonhos, depois não tem mais nada. (PAUSA
CURTA) De repente, comecei a dar importância a tudo o que não tinha
importância. Então pensei: recenseamento. Ninguém mesmo fazia isso por aqui.
(RI.) Engordei uns vinte quilos. Parava num casebre, era bolo de fubá feito com
leite de cabra; no outro, me enchia de queijo branco de Minas com goiabada.
A vida parecia até boa só por se poder comer. Mas depois de uns anos tudo
não passava de obrigação. Logo virou chateação. Hoje é só hábito. (TOM) E
assombro também.
MULHER Assombro?
VELHA Ah, esquece.
MULHER Esquece o quê?
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MULHER Cabongo?
VELHA Exatamente.
MULHER Isso é um absurdo.
VELHA Não acredita?
MULHER E o contrário não ocorre? Dos velhos morrerem antes das crianças, das
crianças morrerem junto com os velhos, ah, sei lá?
VELHA Filha, é sempre o novo que empurra o velho. Você acha que o sol gosta de se
pôr? Hem, acha? Não, não gosta.
MULHER Sim, mas espera aí!
VELHA (SEM LIGAR PARA A INTERRUPÇÃO) Mas em 12 horas, coitado, ele fica
velho e a lua, que é nova na primeira hora da noite, empurra o sol e, por justiça,
vive. Mas depois é a vez da lua ficar velha e não querer ceder seu lugar...
MULHER Mas...
VELHA Mas o sol...
MULHER Isso é ciência!
VELHA ... já refeito no leite novo das nuvens, volta a nascer, com vigor, empurrando
aquela que já é a velha lua.
MULHER No caso dos seres humanos...
VELHA É a mesma coisa.
MULHER São duas coisas totalmente diferentes. Uma coisa é a poesia, isso que a senhora
diz a respeito do sol e da lua. E que é só muito bonito. Mas no caso dos seres
humanos logicamente que a ciência não se daria ao trabalho... A ciência não
prova nada, nada!
VELHA (RINDO) A ciência! Uh, a ciência não sabe... Não de tudo, filha. Estou falando
de uma outra coisa.
MULHER Lendas!? Misticismo, crendice popular.
VELHA (COM GRAVIDADE) Já vi que a senhora ainda não sabe das coisas.
JOVEM Isso tudo é coincidência.
VELHA Coincidência nada!
(PAUSA)
MULHER E a senhora conta direito todos os anos? Não esquece de ninguém?
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VELHA Mas é claro! Como é que ia fazer mal se é a única coisa que eu faço por aqui?
Estou velha de corpo, não de cuca! Sou capaz de pôr no papel todos os
palavrões que gosto de dizer quando fico irritada.
MULHER Me desculpe, não quero irritar a senhora. (INCOMODADA, OLHA
COMPRIDO PARA A PLATAFORMA) É, está bem atrasado.
VELHA Filha, me ouça.
MULHER (SEM VONTADE) Sim?
VELHA O que estou dizendo só tem uma explicação: é coisa do diabo.
MULHER (RINDO) Diabo? Fique tranqüila, diabo não existe.
VELHA Como, não existe? O diabo odeia as imperfeições! Então aqui, onde nem deus
nem os anjos põem os pés, pra dividir força, o diabo reina, o diabo como gosta
e pode. (LUZ TREMULA. AMBAS SE ASSUSTAM, CADA UMA A SUA
MANEIRA) É tocar no assunto e ele tenta castigar a gente. (VOZ ALTA,
PARA DISFARÇAR A IMINÊNCIA, POR ELA SENTIDA, DO PERIGO)
Mas me conte do seu marido!
MULHER Não sou casada.
VELHA (CONFIDENCIALMENTE) Vamos mudar de assunto. Qualquer coisa.
(ALTO) Me fale dessa sua amiga.
MULHER O que a senhora quer saber?
VELHA Como é que ela foi parar naquele lugar?
MULHER Como assim?
VELHA Não vivia bem na cidade grande?
MULHER Cansou da vida que levava.
VELHA Mas por quê?
MULHER Porque cansou. Essas coisas acontecem, não acontecem? Um dia se quer tudo,
outro dia não se quer mais nada. Tinha, sim, tudo o que queria: um bom
emprego, namorado, bons móveis num apartamento pequeno, mas próprio... E
um dia desapareceu.
VELHA Como assim, desapareceu?
MULHER Basta um só pensamento diferente um dia, e você abandona tudo. O emprego,
a família, os amigos
até o gato de estimação, de repente, você dá pra uma
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vizinha. Fiquei anos sem ter notícias dela. Mas há três dias, recebi uma carta.
Não era uma carta, mas um bilhete, dizendo onde foi morar e que tinha ficado
doente. (PAUSA) Não sei porque se lembrou de mim e pediu minha ajuda. Eu
não podia recusar essa ajuda.
VELHA E qual a doença dela? Difteria, febre amarela, hanseníase?
MULHER Hepatite.
VELHA Aaaah, é grave.
MULHER Não fale assim.
VELHA Mas é muito grave!
MULHER Ela vai sair dessa.
VELHA Vai, sim, desta pra melhor.
MULHER A senhora está sendo indelicada.
VELHA Realista! Pra viver aqui a gente tem que ser realista. Você sabe, essa hora, já
está morta.
MULHER É minha amiga!
VELHA Os amigos morrem.
MULHER (TOCADA) Não dou o direito da senhora falar assim.
VELHA Filha, só estou tirando suas ilusões, não suas verdades. Só quando ficar
velhinha vai entender.
MULHER Não preciso ficar velhinha para entender o que eu quiser entender.
VELHA Me desculpe. Eu não quero irritar a senhora. (PAUSA) Mas só preste atenção
numa coisa, conselho bom é aquele que é seguido: pense bem antes de partir.
MULHER Eu já estou partindo.
VELHA Isto é o paraíso perto da barranca onde está sua amiga. Lá não tem luz elétrica,
nem rede de esgoto. Água, só da lagoa. (ZOMBETEIRA) Ah, já sei, a senhora
quer viver que nem índio, não é? Inseto à noite anda em revoada, é horrível!
MULHER A senhora já foi lá? Como é que sabe, se nunca saiu daqui?
VELHA Ouvi dizer. Gente que passou por esta estrada de ferro, horrorizada, de volta
pra qualquer lugar do mundo, menos pra lá. Ninguém quer ir pra lá.
(COMEÇA A RIR)
MULHER O que foi agora? Alguma piada?
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Senhora! Senhora!
VELHA Estou aqui.
MULHER Haaa!!!
VELHA Se assustou?
MULHER Não, é que sua voz tão perto de mim.
VELHA Não estou perto. É que no escuro a gente se confunde. Alto, baixo, perto,
longe, dá no mesmo.
MULHER Demora pra voltar?
VELHA Agora sim, estou pertinho da senhora, me dê a mão. Isso. Vem. Vamos sentar,
enquanto ela não vem. Não há um dia em que a luz não apague. Quando isso
acontece, ficamos olhando as estrelas. Ai, como é bom. Vênus, por exemplo,
olhe só para Vênus!
MULHER Eu não quero olhar para Vênus, obrigada.
VELHA Vênus não é uma estrela, mas...
MULHER (SUBITAMENTE) Cadê minha maleta?
VELHA ... um planeta tão cheio de luz.
MULHER Não estou encontrando.
VELHA Estou falando de Vênus e você preocupada com uma maletinha?
MULHER Não consigo achar..
VELHA Claro, está escuro.
MULHER Cadê minha maleta?
VELHA Está comigo!
MULHER Me dê!
VELHA Estou tomando conta dela e da senhora.
MULHER Não precisa! Onde é que está?
VELHA Não sou digna de segurar sua maleta?
MULHER Não é isso. Onde é que está?
VELHA Está aqui.
MULHER (SECA) Obrigada.
(PAUSA)
VELHA Você tem muitos planos para a sua vida?
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MULHER Torço para que a luz volte logo e o meu trem chegue correndo. Está tudo tão
escuro que não vejo minha própria mão.
VELHA E o que é que você vê?
(PAUSA)
(VOLTA A LUZ)
MULHER Ah, que alívio.
VELHA Eu não disse que voltava?
MULHER Que alívio.
VELHA Está chorando?
MULHER (ENXUGANDO OS OLHOS.) Não.
VELHA Tome. (ESTENDE UM LENCINHO DE PAPEL TIRADO DO BOLSO DO
CASACO DE MULHER, QUE VESTIU NO ESCURO. MULHER NÃO
ACEITA O LENÇO, MAS PERCEBE QUE O CASACO NÃO ESTÁ
COM ELA. SEM OLHAR PARA A VELHA.)
MULHER Agora isso.
VELHA O que?
MULHER O meu casaco.
VELHA Ah, senti frio. Está frio, não está?
MULHER (SENTINDOSE FRACA, LEVANTASE. TENTA IR ATÉ A
PLATAFORMA. TITUBEIA) Não, não está.
VELHA Eu ia avisar, mas você... tão nervosa.
MULHER Eu não....
VELHA (GRANDILOQÜENTE) Mas eu vou devolver. Estou vendo que não gostou...
Um casaco bonito desses. Eu também não ia querer emprestar.
MULHER Não precisa.
VELHA Não está certo.
MULHER Fique com ele.
VELHA Como?
MULHER Fique com ele.
VELHA (EMOCIONADA) Filha, eu nunca ganhei um presente tão bonito antes.
MULHER Não me chame de filha.
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VELHA Não.
MULHER Se uma pessoa a mais ficar na cidade onde a regra dos números não muda,
(FALANDO COMO A VELHA) “não muda!”, a senhora não morre. Não
morre!
VELHA Eu não quero morrer.
MULHER Uma grande bobagem. E acho melhor a senhora ir embora, porque está
esfriando. Muito obrigada pela companhia.
VELHA Quer que eu me vá?
MULHER Adeus.
VELHA Quer que eu saia da minha própria cidade?
MULHER Deste pedacinho, quero sim.
VELHA (SUBITAMENTE ABRAÇA MULHER) Não posso deixar você.
MULHER (DESESPERADA) Me larga!
VELHA Eu quero cuidar de você.
MULHER Me larga!
VELHA Eu posso fazer tudo.
MULHER Não pode.
VELHA Por que não posso?
MULHER Porque já está morta!
(NESSE MOMENTO, VÊ PROFUNDAMENTE A VELHA, COM SEU
LIVRO, SEU CASACO, SUA MALA NA MÃO – TALVEZ SEU
CHAPÉU, TAMBÉM.)
VELHA (VAI ATÉ O FUNDO DOS OLHOS DE MULHER.) Eu não estou morta, eu
vejo os meus olhos jovens quando olho para os seus.
MULHER (TITUBEANTE, COBRE OS OLHOS COM AS MÃOS) Não, não vê. Não
vê, não sabe, não escuta, porque está morta. Morta, morta, morta, morta,
morta...
VELHA “Esquecerse de si, realizar grandes coisas... Esquecerse de si, realizar grandes
coisas... Esquecerse de si...
MULHER Esquecerse, realizar, atingir a generosidade, ultrapassar a vulgaridade na
qual...”
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FIM