21 179 1 PB
21 179 1 PB
21 179 1 PB
2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
Resumo: Este artigo constitui uma leitura histórica dos primeiros anos da década de 1970,
vistos, principalmente, a partir de periódicos de circulação regional no Piauí, delimitando
como objetivo central lançar um olhar a respeito das transformações subjetivas ocorridas na
cidade de Teresina. Tendo em vista o impulso modernizador sofrido pela cidade durante o
Governo Militar, pretendemos aqui extravasar a perspectiva de análise comumente adotada
pelos historiadores que estudam o período, e discutir de maneira pormenorizada questões
relativas às mudanças no comportamento de uma parcela da juventude da cidade – expressa
nos novos usos do corpo e da sexualidade, e a consequente ressignificação das identidades de
gênero, bem como em novas maneiras de consumir bens artístico-culturais – filmes de
cinema, produções musicais, etc. Nesse sentido, emergem uma série de discursos díspares que
confrontam os valores arraigados de uma cidade que, embora capital do Estado, guarda uma
forte marca de provincianismo, com as enunciações de uma geração disposta a confrontar as
normas sociais estabelecidas – dentre as quais ganha destaque a presença de hippies em
Teresina. Dessa maneira, o texto procura apontar tais elementos como constituintes das
condições históricas para a emergência da pós-modernidade piauiense, ocorrida tardiamente
nos anos 1970.
Abstract: This article is a historical reading of the early years of the 1970s, seen mainly from
periodic regional circulation in Piauí, delimiting central objective cast a glance about the
subjective transformations that occurred in the city of Teresina. Given the momentum
modernizing the city suffered during the military government, we intend here to vent analysis
perspective commonly adopted by historians studying the period and discuss in detail issues
relating to changes in the behavior of a portion of the youth of the city - expressed new uses in
the body and sexuality, and the consequent redefinition of gender identities, as well as new
ways to consume goods artistic and cultural - feature films, musical productions, etc.. In this
sense, emerge a series of disparate discourses that confront the entrenched values of a city
that, although the state capital, a strong umbrella brand of parochialism, with the utterances of
a generation willing to confront the prevailing social norms - among which stands out the
presence of hippies in Teresina. Thus, the text seeks to point out such elements as constituents
of the historical conditions for the emergence of postmodernity in Piauí, which occurred late
in 1970.
1
Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí. (CNPq/Lattes). E-mail:
[email protected]
2
Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor permanente do Programa de Pós-
Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí. E-mail: [email protected]
279
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
Torquato Neto
Em sua primeira edição do ano de 1970, a revista Veja trazia opiniões de especialistas
de diversas áreas sobre as perspectivas para a nova década. Tratava-se de projeções, leituras
do momento vivido, expressas em discursos que, segundo os expositores, seriam levados a
cargo em diversos campos de atuação. O astrólogo Joe Ramath previa que, até 1980, o Brasil
“daria as cartas no mundo”. João Paulo dos Reis Velloso, à época ministro do Planejamento,
apostava em um crescimento no PIB nacional de 7%, no mesmo tom em que anunciava uma
política governamental de impacto na educação e na agricultura, uma inflação menor e um
novo salto nas importações. Não menos otimista era a opinião de Alfredo Buzaid, então
Ministro da Justiça: o Brasil dos anos 70 seria um país democrático, tendo a política uma
importância fundamental na nova década, pois além das eleições para renovação do congresso
e das assembléias legislativas, em treze Estados da Federação aconteceria a escolha de 1522
prefeitos e 1904 vereadores. Seria, além disso, o momento em que os deputados estaduais se
reuniriam para escolher os governadores de 22 Estados (VEJA, 07 jan. 1970).
Tais conjecturas, no âmbito político-econômico, apareciam como lastro para outras,
estimulando opiniões e perspectivas em campos como a religião, a ciência, o comportamento,
a sexualidade e as artes em geral. Na mesma toada em que a publicação anunciava um
“extraordinário renascimento religioso”, porém contando que, “no fim da década os católicos
poderão receber suas bênçãos de um papa não-italiano, vestido de terno e gravata” (Ibid., p.
05), apontava perspectivas menos arrojadas em descobertas e avanços médicos. José M. R.
Delgado e Norman Shumway, a respeito do transplante de cérebro, denotavam que
determinados assuntos, antes restritos, por conta dos valores arraigados pela família e pela
Igreja, mesmo ganhando nova projeção, permaneciam envoltos em cuidados, tanto de ordem
ética quanto científica. A opinião do primeiro, segundo o qual transplantar cérebros, além de
ousado e perigoso, “poderá ser até mesmo criminoso”, encontrava eco na do segundo, quando
defendia a necessidade de “pensar no lado humano, na personalidade” do paciente (Ibid.).
Leituras efetuadas sobre esta década nascente mostram significativas transformações
em relação aos anos anteriores. No campo do pensamento, Décio de Almeida Prado previa
280
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
RIO DE JANEIRO – Não sei se o Ano Nôvo já chegou aí pelo Recife. Aqui
no Rio de Janeiro êle se instalou há poucos dias. E foi um foguetório danado.
Uma mocinha que olhava para o tempo, surpreendeu-se com a chegada
consumada de 1970 e deu um abraço no namorado. E seus olhos pediam.
[...]
Para os incrédulos, posso afirmar porque testemunhei: estamos em pleno
1970. Ninguém me contou. Eu vi. Posso mesmo dizer sem mêdo de errar que
meu relógio marcava zero hora, no dia 31, quando de repente 1969 passou
inelutavelmente para trás. Como os maridos enganados, foi 1969 o último a
saber. Quando pensava que ainda se encontrava em vigor – com o espírito
permanente, de decretos que pensam jamais serem revogados – viu-se
afastado pela juventude do ano novo (JORNAL DO PIAUÍ, 13 jan. 1970).
281
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
3
A tomada dos acontecimentos políticos no Brasil de 1964 como “revolução” tem lugar na imprensa da época,
sendo possível destacar expressões como aquelas presentes em um número especial da revista O Cruzeiro. Ver:
O CRUZEIRO – EXTRA. Edição histórica da revolução. São Paulo, 10 abr. 1964.
282
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
O consumo de produtos vindos de fora pode ser expresso naquilo que se começa a
observar nas práticas citadinas de então. Se, em novembro de 1970, o Jornal do Piauí
noticiava que a Coca-Cola teria uma fábrica em Teresina (JORNAL DO PIAUÍ, 26 nov.
1970), em abril de 1971, esta ganhava destaque, novamente, no mesmo jornal, com a
anunciação de que sua chegada definitiva no cotidiano da cidade faria com que estivesse “em
breve [...] tomando conta total do Piauí” (JORNAL DO PIAUÍ, 30 mar. 1971).
Ao observar tal consumo de produtos enlatados, é possível perceber que este, também,
se dá no campo das produções artísticas. O cinema ganha destaque no cotidiano da cidade,
283
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
através das principais salas de exibição disponíveis. Tendo como seu principal público as
parcelas mais jovens da população, mas também agradando pessoas de outras faixas etárias,
algumas opiniões expressas denotam a diversidade no gosto cinematográfico dos
frequentadores:
Enquanto o Cine Royal, localizado à Rua Coelho Rodrigues, no centro da cidade, era o
espaço de exibição de longa-metragens “de melhor qualidade”, como O Corcunda de Notre-
284
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
Dame, protagonizado por Anthony Quin e Gina Lolobrigida, O valente príncipe Donegal,
com Chantal Renaud e Danielle Quimet, ou Simplesmente Maria, com Rodolfo Salerno e
Mariela Trejos; as salas do Cine Rex e do Cine São Raimundo, localizados, respectivamente,
na Praça Pedro II, no Centro, e no bairro Piçarra, exibiam os filmes que já haviam sido
exibidos no primeiro estabelecimento. Em geral, no entanto, priorizava clássicos de gêneros
como terror, faroeste, o cinema pornográfico e a pornochanchada nacional. Destacam-se, nos
anúncios de jornais, filmes em cartaz, como Só matando, Pra quem fica, tchau e Trovões na
fronteira (O ESTADO, 13 jul. 1972). Tal distinção aponta, também, relação entre a condição
social e os interesses do público de cada uma delas. Com ingressos a preços menores, as salas
do Rex e do São Raimundo atraíam um público mais diversificado, enquanto o Royal
mantinha um padrão de frequentadores com características sociais mais elitizadas.
No campo musical, as experiências na cidade de Teresina apontavam influências
diversas. A divulgação de discos amplificava-se com a inauguração de estabelecimento de
vendas, como a Beta Discos (JORNAL DO PIAUÍ, 07 set. 1971). A Tropicália, inventada na
década anterior, através de produções artísticas em diversos campos, 4 apontava, no âmbito
musical, as figuras de Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Tom Zé
como referências nas quais se inspirariam os produtores de uma “música popular piauiense”.
Enquanto, a nível nacional, os debates travados entre emepebistas e tropicalistas
levariam a uma discussão a posteriori sobre a existência ou não de uma “linha evolutiva” na
Música Popular Brasileira,5 o Piauí vivia o momento em que suas expressões musicais
tomavam corpo em figuras da juventude. Nesse contexto, Lenna Rios aparece como cantora
de futuro promissor no meio o que viria a se confirmar, futuramente, em sua repercussão, a
nível nacional. A cantora figura em publicações piauienses do início dos anos 1970, onde se
noticia, em algumas delas, sua direção artística por Torquato Pereira de Araújo Neto
(JORNAL DO PIAUÍ, 30 maio 1971). O início de carreira de Lenna, no entanto, deu-se na
4
A leitura da Tropicália enquanto uma invenção, partindo de diversas frentes artísticas, como a música de Gil,
Caetano e Torquato Neto, as artes plásticas de Hélio Oiticica e Lígia Clark e o teatro de José Celso Martinez
Correia, encontram-se presentes na discussão travada por Edwar de Alencar Castelo Branco. Ver: CASTELO
BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da Tropicália. São Paulo:
Annablume, 2005.
5
A discussão sobre a existência de uma “linha evolutiva” na Música Popular Brasileira parte das afirmações
presentes na obra Verdade tropical de Caetano Veloso, onde este buscou dispor as diversas produções do campo
musical brasileiro em um enquadramento lógico de evolução. Tal conceito é debatido, no campo acadêmico,
levando, inclusive, ao trabalho que, a propósito da obra musical de Raul Seixas, pôs em questão tal conceito.
Para ampliar o debate, ver: NERY, Emília Saraiva. Devires da música popular brasileira: as aventuras de Raul
Seixas e as tensões culturais no Brasil dos anos 1970. 2008. 183 p. Dissertação (Mestrado em História do Brasi)
– Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina.
285
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
TODAS as sextas-feiras, a boate Pujol vai ter a voz de Lenna Rios, num
show onde “seria capaz de brincar com as pessoas, dizer qualquer negócio”.
Com a direção musical de Marcus Vinícius, Lenna terá o acompanhamento
de Piau (guitarra e arranjador), Luis Roberto (bateria), Sérgio Magrão
(baixo) e Jimmy (tubadora). Piauiense é muito confundida por baiana: “dou
o maior dez pra Bahia, mas o negócio é que sou do Piauí”, Lenna passou três
meses do último verão no Norte, apresentando um show que a espantou
muito, porque “lá não são bem aceitas as músicas do meu repertório,
Caetano, Gil e tal, lá eles curtem mais Jerry Adriani, Paulo Sérgio, e assim
mesmo eu não poderia ter sido melhor aceita.” (O ESTADO, 02 ago. 1972)
286
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
287
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
Se figuras religiosas e vultos das ciências e das armas perdiam espaços como
referências juvenis, o texto aponta, de maneira subliminar, a responsabilidade da família pela
reversão de tal tendência, e pela manutenção da ordem e a conservação dos exemplos sociais
mais tradicionais. O que se observa, no entanto, é também um questionamento acerca dos
rumos da instituição familiar, no contexto das transformações culturais já expostas. Sua
função social, vista sob o enfoque do discurso cristão, deveria ser a de “atuar sobre outras
famílias e, dêste modo contribuírem para a situação adequada da instituição familiar no
mundo moderno”, esforços estes empreendidos no sentido de “zelar pela constituição de
novas famílias em bases mais sadias e cristãs” (JORNAL DO PIAUÍ, 05 dez. 1970).
Em contrapartida, parcelas de jovens caminhavam no sentido de uma mutação de
valores, que proporcionaria sua aproximação com outras formas de viver e sentir o tempo, os
espaços, os relacionamentos e a sexualidade. A moda, masculina e feminina, dá espaço pra
novas leituras do corpo, agindo como uma enunciação de práticas inovadoras em seu uso. Se a
teologia cristã viria a criar, ao longo de séculos, um estereótipo cultural profundamente
estabelecido (PORTER, 1992, p. 310), as modificações nas estruturas mentais proporcionadas
pelos meios de comunicação agiriam como rupturas em ideais tradicionais de ser, pensar e,
inclusive, vestir. No tocante às roupas femininas, na década de 1970, é possível observar,
mesmo a nível internacional, a proibição de determinadas peças de roupa em lugares públicos,
de natureza religiosa. Na Basílica de São Pedro, em Roma, as mulheres trajando minissaias
possuíam o mesmo trato restritivo dado às máquinas fotográficas, conversas ou risos
(JORNAL DO PIAUÍ, 29 abr. 1970). Em Recife, a moda das tangas nas praias ganha nota em
jornais regionais, que divide seu texto entre opiniões que ressaltam que “o biquíni ‘já era’”
com outras que afirmam serem as tangas “um fator de promiscuidade”, chegando, enfim, a
citar a opinião de um pastor evangélico, que declara que “a tanga só é bonita na mulher dos
outros” (O ESTADO, 17 set. 1972).
Tais fatores de transformação nos modos de se vestir denotam mudanças relacionadas
à sexualidade feminina. No cenário posterior à década de 1960, peças de roupas, como
minissaias, “promoveriam uma erotização dos corpos que teriam reflexos em diferentes
âmbitos do social” (CASTELO BRANCO, 2006, p. 02). O grau de erotismo feminino do
mundo pós-60 ganhava destaque em figuras-referência do campo cultural de então, e que
serviram de modelo de valores pros jovens, em processo ebulitivo de subjetivação de sua
sexualidade. Enquanto figuras de cinema, como a atriz italiana Monica Vietti, lançava à
imprensa frases como “preciso de um homem e não de um marido” (O ESTADO, 07 jan.
288
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
1973), a cantora norte-americana Joan Baez se declarava bissexual, e afirmava ter vivido com
uma mulher “o mais lindo romance [...]” da vida (O ESTADO, 16 mar. 1973). Por sua vez, a
também norte-americana Raquel Welch, destaque das telas hollywoodianas, demonstrava
conviver bem com a idéia de ser uma mulher divorciada, e sexualmente livre: “Eu agora não
quero mais ninguém para sempre. Tenho a hora que quero, uso e depois mando embora” (O
ESTADO, 21 jan. 1973).
Em nível local, Teresina convivia, simultaneamente, com os valores tradicionais
arraigados e a ruptura nas concepções de sexualidade pertinentes ao mundo que se
transformava. Nesse sentido, pode-se notar a importância da virgindade feminina como
elemento delineador de seu caráter:
289
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
6
O termo hippie é utilizado aqui seguindo a prática do discurso da imprensa teresinense à época, que assim
homogeneizava jovens praticantes de ações pouco ortodoxas na cidade, independente da pretensa vinculação
ideológica de tais jovens – que passaram pela cidade, em grande parte, em levas distintas e não organizadas.
290
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
E essa gente que nada faz, que nada diz, que deixará de real na vida prática?
(JORNAL DO PIAUÍ, 29 maio 1971).
Tais discursos, inclusive ao pôr em questão o valor nominativo dado aos vários grupos
marginalizados da cidade, dão a ler a reação de uma parcela da sociedade a práticas de
comportamento divergentes da ordem instituída. Os hippies, associados, em geral, a posturas
condenáveis, apareciam em notícias jornalísticas da época, em sua maioria, protagonizando
ações ligadas à promiscuidade sexual, a pequenos crimes e contravenções. Um exemplo disso
é, em outubro de 1972, a notícia veiculada pelo jornal O Estado de que um grupo, formado
por argentinos e brasileiros, se encontravam em Teresina, acompanhado de quatro moças,
pertencentes, segundo a publicação, “à alta sociedade teresinense”. As moças, “levadas pelo
desejo de aventuras”, se preparavam para empreender, com o grupo, uma “viagem ‘de
curtição’ pelo Brasil afora”, quando sua presença ao lado dos hippies foi levada ao
conhecimento policial, que deteve os rapazes (O ESTADO, 27 out. 1972).
O fato denota o grau de fascínio exercido pelos praticantes de modelos alternativos de
vida em alguns jovens de Teresina. Mesmo para os pertencentes a grupos de formação mais
conservadora, as vivências múltiplas experimentadas por algumas pessoas, ao se tornarem
próximas de seu contexto espaço-temporal, exercem modificações em sua constituição
identitária, desreferencializando sua concepção de sujeito, e formatando-lhes “uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis” (HALL, 1999, p. 13). A
contrapelo da perspectiva enunciada nos discursos pregados por esta parcela da sociedade
teresinense, é possível captar uma leitura distinta da cidade, efetuada pela hippie Theresa,
quando, em agosto de 1972, ela e seu grupo haviam sido expulsos da cidade:
291
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
Theresa, paulista de 18 anos, ao denotar sua insatisfação com uma cidade na qual seu
modo de viver foi visto com hostilidade, leva a refletir sobre as posições micrológicas da
política e dos comportamentos sociais no Brasil pós-1960. O interesse de grupos, como os
hippies, manifestados textualmente nas matérias jornalísticas de perspectivas diversas, aponta
para a ideia de que as lutas engendradas no Brasil, durante o período da Ditadura Civil-
Militar, ultrapassam as barreiras da política instituída, ou dos partidos clandestinos,
formatando-se, também, e principalmente, nas vivências cotidianas, onde as posições de
tradição e transgressão ganhavam corpo. Assim, como afirma Castelo Branco, “a Ditadura
Militar não é uma entidade acima da sociedade brasileira e repressora do conjunto da nação.
Ela na verdade é desejada e está entranhada de tal maneira nas pessoas que elas reproduzem
com naturalidade a repressão em escala micro” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 94).
Uma vez que, tendo em vista o deslumbramento causado pelas maravilhas
tecnológicas, no Brasil da década de 1960, é possível atribuir a elas as condições para a
emergência da pós-modernidade brasileira (Cf. CASTELO BRANCO, 2005), é possível,
também, levando em conta que tais elementos, que possibilitam novas condições de existência
na sociedade aportam com atraso, porém de maneira efetiva, no Piauí, na década de 1970,
creditar a essa década as condições emergenciais para a pós-modernidade piauiense. Pensar
as instituições sociais para além do viés político-partidário, diluindo tal perspectiva a conta-
gotas, leva à compreensão do período sob a ótica de comportamentos e artimanhas juvenis,
que surgem na perspectiva micropolítica. Cartografar os sentimentos e desejos em mutação,
numa cidade dividida entre o provincianismo urbano e a onda modernizadora dos primeiros
anos da referida década significa, para além de repensar um período específico, revisionar
mesmo a maneira de se escrever a História.
Referências
Fontes hemerográficas
292
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
CRAVEIRO, Paulo Fernando. A chegada. Jornal do Piauí, Teresina, p. 04, 13 jan. 1970.
D. ANDRADE. A respeito da família. Jornal do Piauí, Teresina, p. 05, 05 dez. 1970.
ENTREVISTA – Os anos 70: a transformação. Veja, São Paulo, 7 jan 1970. p. 03-06.
HIPPIE diz que teresinense é quadrado. O Estado, Teresina, p. 07, 10 ago. 1972.
HIPPIE! O que é isso? Jornal do Piauí, Teresina, p. 08, 29 maio 1971.
HIPPIES iam levar moças de Teresina. O Estado, Teresina, p. 08, 27 out. 1972.
JÁ funcionando a Beta Discos. Jornal do Piauí, Teresina, p. 08, 07 set. 1971.
JOAN Baez se diz bissexual. O Estado, Teresina, p. 06, 16 mar. 1973.
JODISA apresenta. O Estado, Teresina, p. 01, 13 jul. 1972.
LENNA Rios, a nova voz da noite no Pujol. O Estado, Teresina, p. 13, 02 ago. 1972.
LOBÃO, Paulo. Opinião de Moda. Jornal do Piauí, Teresina, 22 maio 1970. Coluna
Reflexos da Vida, p. 05.
PIAUÍ inteiro vai ver televisão. Jornal do Piauí, Teresina, p.01, 21 mar. 1970b.
O DIA mais triste da juventude: a morte trágica de um estudante. Manchete, Rio de Janeiro,
ano XV, n. 834, 13 abr. 1968. p. 04-13.
O MUNDO em Manchete. Manchete, Rio de Janeiro, ano XIV, n. 778, 18 mar. 1967. p. 149.
OS ideais da juventude. Jornal do Piauí, Teresina, p. 06, 10 out. 1970.
PRECISO de um homem e não de um marido! O Estado, Teresina, p. 09, 07 jan. 1973.
TANGA causa controvérsia. O Estado, Teresina, p. 04, 17 set. 1972.
Fonte oral
Bibliografia
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Quem é frouxo não se mete: violência e
masculinidade como elementos constitutivos da imagem do nordestino. Disponível em:
http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/artigos/segunda_remessa/froxo_nao_se_mete.
pdf Acesso em: 03 jan. 2011.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a
invenção da Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005.
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Ele é o homem, eu sou apenas uma mulher: corpo,
gênero e sexualidade entre as vanguardas tropicalistas. In: VII Seminário Fazendo Gênero.
Anais. Florianópolis: UFSC, 2006. p. 01-07.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria
Manuela Galhardo. São Paulo: Difel, 2002.
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:
Vozes, 1994.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Porto Alegre: DP&A,
1999. p. 13.
PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 291-326.
SANTANA, Márcia Castelo Branco. Discursos, desejos e tramas: o comportamento
feminino em Teresina nos anos 70 do século XX. 2008. 152 p. Dissertação (Mestrado em
História do Brasil) – Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí,
Teresina.
293
Vozes, Pretérito & Devir Ano I, Vol. I, Num.2 (2013)
Artigos ISSN: 2317-1979
VILHENA FILHO, Paulo Henrique Gonçalves de. A experiência alternativa d’O Estado
Interessante no contexto marginal da década de 70. 1999. 125 p. Dissertação (Mestrado
em Comunicação e Cultura) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.
294