VALADÃO, Bruno. de Sangue Se Desenho o Atlântico - Terra em Transe e As Imagens Dialéticas

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Escola de Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura

Bruno Fabri Carneiro Valadão

De sangue se desenha o Atlântico


Terra em transe e as imagens dialéticas

Rio de Janeiro
2017
2

Universidade Federal do Rio de Janeiro


Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Escola de Comunicação
Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura

Bruno Fabri Carneiro Valadão

De sangue se desenha o Atlântico


Terra em transe e as imagens dialéticas

Dissertação apresentada ao Programa de pós-graduação em Comunicação e


Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Comunicação e
Cultura.

Linha de pesquisa: Tecnologias da comunicação e estéticas.

Orientador: Prof. Dr. Maurício Lissovsky

Rio de Janeiro
Março de 2017
3

CIP - Catalogação na Publicação

Fabri Carneiro Valadão, Bruno


F124s De sangue se desenha o Atlântico: "Terra em
transe" e as imagens dialeeticas / Bruno Fabri
Carneiro Valadão. -- Rio de Janeiro, 2017.
125 f.

Orientador: Maurício Lissovsky.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Escola da Comunicação, Programa de
Pós-Graduação em Comunicação, 2017.

1. Imagem dialética. 2. Fome. 3. Cinema. 4.


Modernidade. 5. Poesia moderna. I. Lissovsky,
Maurício, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os


dados fornecidos pelo(a) autor(a).
4

Para João, meu pai,


com saudade.
5

Soneto antigo

Esse estoque de amor que acumulei


Ninguém veio comprar a um preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito às traças


Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos


Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás


Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.

Mário Faustino
6

Obrigado!
Celebrar, homenagear, agradecer. Não é nada fácil lançar mão de uma justa medida de
gratidão para cada um: amigo, parente, colega ou professor que, de acordo com as suas
possibilidades, me agraciaram com seus dons, direta ou indiretamente (pouco importa),
para o resultado final desta dissertação. Aqui vão alguns que gostaria de mencionar
especialmente:

ao meu pai, João, que se foi cedo demais, em 2012, mas que viveu do jeito que quis e isso
me consola: ele nunca quis viver a vida dos outros. Inventou sua própria maneira de viver,
a única e verdadeira herança que me deixou; esta dissertação é resultado direto desse
legado;

a minha mãe, Mirian, e minha irmã, Tainá, que aguentam meus disparates e minhas
ideias fixas, desde que esta flor da moita surgiu no mundo;

às minhas tias Lia, Maria e Luzia pelo suporte material e pelo carinho incondicional;

a minha amiga especial, Duda: na verdade fada madrinha, cuja varinha toca todos os
corações;

a minha amiga, Clarissa, que – com muito carinho e rigor – me desviou da minha
errância característica algumas vezes (na verdade muitas) aqui no Rio;

aos amigos Fernanda e Vladimir: professores incríveis e o mais belo casal de Icaraí!

ao meu ex-chefe Oséias (livreiro e editor de livros), que me apresentou ao texto “O


narrador” em 2005. Desde então sou regido por Saturno;

a minha ex-professora, Regina Mota, que apresentou Di/Glauber (filme ainda censurado
pela justiça) em minha graduação na UFMG, o que despertou minha vocação
glauberiana;

aos meus amigos e amigas de sempre: Prof. Dr. Pablo Gobira (que revisou este trabalho),
Ian, Carina, Marco Túlio, Joyce, Renato e Lorena, além de Pierre e do João, os quais
conheci no Rio.

às minhas e aos meus colegas de turma: Thaís, Mili, Daniel, Bruna, Louise, Tatiana, Ana
Beatriz e os demais integrantes do grupo de WhatsApp “Afectus15” pelos incríveis
momentos festivos pós-aula;

aos professores e professoras da ECO com quem tive contato em disciplinas, nos
corredores do palácio universitário e na qualificação do presente trabalho, em especial a
Giuseppe Cocco e Márcio Tavares d’Amaral, nosso Heráclito!

a professora Cristina Teixeira Vieira de Melo que gentilmente aceitou o convite para fazer
parte de minha banca;

a CAPES que me agraciou com uma bolsa sem a qual este trabalho não teria logrado o
devido êxito.

***

E especialmente ao meu orientador, Maurício Lissovsky: eslavo na forma, carioca no


conteúdo. Verdadeiro fenômeno que apaga os limites entre o rigor, a disciplina, a
inteligência, o humor e a generosidade. Um cara que desperta em mim enorme admiração.
7

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Maurício Lissovsky (orientador)


PPGCOM – ECO/UFRJ

Prof. Dr. Marcio Tavares d’Amaral


PPGCOM – ECO/UFRJ

Profa. Dra. Cristina Teixeira Vieira de Melo


PPGCOM – CAC/UFPE

Rio de Janeiro, 9 de março de 2017


8
9

VALADÃO, Bruno Fabri Carneiro. De sangue se desenha o Atlântico: Terra em transe e as


imagens dialéticas. Dissertação de mestrado em Comunicação e Cultura (Tecnologias da
comunicação e estéticas). Rio de Janeiro: ECO/UFRJ, 2017. (125 fls.).

Resumo: Entendemos que Terra em transe (1967) continua sendo uma “aporia” dentro da
cinematografia nacional e mundial. Seus recursos expressivos – extremamente precários
materialmente – são riquíssimos em termos poéticos e filosóficos; eles transpõem a gramática
cinematográfica, enveredando para uma “arte épica” (aqui entendido como uma modalidade
de arte que busca nos signos ancestrais o seu substrato). É tarefa desta dissertação “jogar luz”
sobre as sombras criadas por este verdadeiro “acontecimento cinematográfico”. Surgem daí as
imagens dialéticas (conceito de Walter Benjamin) que, ao contrário do que o termo pode
representar, não resultam em “imagens-síntese” de qualquer espécie, como no cinema
eisensteiniano. Trata-se de uma dialética “pela metade”, “suspensa”, “imóvel” que rompe com
a tradição do pensamento dialético. São imagens em movimento que tendem à imobilidade,
revelando correspondências impensáveis na vida social (especialmente no contexto brasileiro
e latino-americano), através da palavra poética, combinada ao gesto dos atores e à mise-en-
scène de Glauber Rocha. Para isso, evocamos alguns outros campos do conhecimento, como a
filosofia, a literatura e a antropologia, para nos ajudar a dar conta deste fenômeno
cinematográfico, singular em todos os sentidos. Nosso trabalho é sobretudo um convite a
repensar a filmografia daquele que é considerado o nosso maior cineasta de forma mais rica
expressivamente, multidisciplinar e "rizomática".

Palavras-chave: imagem dialética, fome, cinema, modernidade, poesia moderna, multidão,


violência, acontecimento.
10

Abstract: We understand that Terra em transe (1967) remains an “aporia” within national
and world cinematography. Its expressive resources – extremely materially precarious – are
rich in poetic and philosophical terms. They transpose cinematographic grammar, moving
towards an “epic art” (here understood as an art modality that searches the ancestral signs for
its substratum). It is the task of this dissertation to “play light” on the shadows created by this
true “cinematographic event”. Dialectical images (Walter Benjamin's concept) arise, which,
contrary to what the term may represent, do not result in "synthesis-images" of any kind, as in
the eisensteinian cinema. It is dialectic “in the middle”, “suspended”, “immobile” that breaks
with the tradition of dialectical thinking. They are moving images that tend to immobility,
revealing unthinkable correspondences in social life (especially in the Brazilian and Latin
American context), through the poetic word, combined with the gesture of the actors and
the mise-en-scène of Glauber Rocha. To do so, we have evoked some other fields of
knowledge, such as philosophy, literature and anthropology, to account for this cinematic
phenomenon, singular in every way. Our work is above all an invitation to rethink the
filmography of the one who is considered our greatest filmmaker in a richer, expressive,
multidisciplinary and “rhizomatic” way.

Keywords: dialectical image, hunger, cinema, modernity, modern poetry, multitude, violence,
happening.
11

Índice
Apresentação ................................................................................................... 13

I. Introdução ao pensamento descolonizador de Glauber Rocha .................... 18

I.1. Da fome: imagens (em movimento) de um pensamento ..................................... 19

I.1.1. A “ideologia xamânica” de Glauber ................................................................................ 25

II. Sonho, transe, despertar. As imagens dialéticas ........................................ 34

II.1. Do sonho: a razão dominadora .......................................................................... 35

II.2. Entre o sonho e o despertar: um intermezzo benjaminiano .............................. 36

II.2.1. Imagens de sonho ........................................................................................................ 36

Breve excurso: a modernidade como transitoriedade ............................................................. 41

II.2.2. Dialética suspensa ............................................................................................. 43

II.2.3. Despertar ...................................................................................................................... 49

III. Desenho do Transe e seus traços .............................................................. 56

III.1. Desgoverno das imagens .................................................................................. 57

III.1.1. As astúcias do Transe .................................................................................................. 58

IV. “Gladiador defunto mas intacto...” – Glauber Rocha e o procedimento


poético ............................................................................................................. 67

IV.1. Glauber e a literatura ......................................................................................... 68

IV.1.1. Na poesia popular ....................................................................................................... 70

IV.1.2. Na poesia moderna ..................................................................................................... 79

V. “... (Tanta violência, mas tanta ternura)” – poesia e flânerie ......................... 86


12

V.1. A multidão intérieur ............................................................................................ 87

V.1.1. Uma breve genealogia da flânerie: do “Homem da multidão” a Paulo Martins ............... 90

V.2. Paulo Martins e a multidão (ou a lira e a metralhadora) .................................. 101

Considerações finais ..................................................................................... 109

Referências .................................................................................................... 112

Anexos ........................................................................................................... 116

Eztetyka da fome .................................................................................................... 117

Eztetyka do sonho ..................................................................................................... 121


13

Apresentação

Figura 1: Mapa do Atlântico Sul que por volta do século XVII se chamava Oceanus Æthiopicus.

Falamos do fundo daquilo que não sabemos, do fundo do nosso próprio


subdesenvolvimento.

Gilles Deleuze
14

1. (Nota pessoal)

Minha “jornada” com Glauber Rocha dentro da universidade começou com a experiência
como mestrando em Estudos Literários na Faculdade de Letras da UFMG, entre 2009 e 2011.
Lá, muitas ideias que hoje tomam formas mais maduras, começaram a surgir de maneira
embrionária nos corredores e nas salas desta instituição. Queria, inicialmente, trabalhar com o
monumental romance Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa, criando
conexões com ideias e imagens glauberianas, principalmente com o não menos monumental
Deus e o diabo na terra do sol (1964). Uma das ideias derivadas de tal empresa era ligar
Grande Sertão... com algumas “teses” do manifesto “Estética da fome”, de 1965. Mas o
cotejamento entre os “olhares” literários e cinematográficos me encheram de dúvidas e se
chocaram com os meus ainda severos limites, no que toca principalmente ao meu repertório
intelectual à época. Não se trabalha com obras tão complexas como estas sem um estofo que
nos salve de uma possível e provável queda. Pouco depois, veio o desejo de mudar
completamente o objeto: conduzido pelas leituras de Walter Benjamin e outros filósofos e
estudiosos da literatura, quis trabalhar com a chamada “poesia moderna”, ou a poesia feita a
partir de Baudelaire. O entusiasmo foi proporcional à minha decepção que se seguiu.

Tive a ideia de mais uma vez fazer um “entrecruzamento” entre cinema e literatura: dessa vez,
já imerso em Terra em transe e na poesia “moderna”, de altíssimo quilate, de Paulo Martins.
Quis alçá-lo à condição de um autêntico poeta moderno. Mas a ideia enfrentou todo tipo de
resistência dentro do programa de pós-graduação em Estudos Literários, culminando numa
mal fadada banca de qualificação, que rejeitou o meu projeto. Faltava pouco para terminar o
curso de mestrado e a pressão pela apresentação da dissertação me encurralou, fazendo com
que desistisse de minhas ambições intelectuais, ainda impossíveis, devido aos meus próprios
limites nessa época.

O resultado foi um longo distanciamento do mundo acadêmico e um certo enfado em relação


a alguns ritos que francamente me irritavam. Mas o gosto continuado pelas mais variadas
leituras, a descoberta da filosofia (principalmente via Benjamin e Deleuze), e ao aguçamento
do meu olhar, ganho com mais de dez anos de trabalho com o audiovisual, me conduziram
naturalmente a retomar o “Projeto Terra em transe e a poesia moderna”, mas dessa vez sob
um outro ambiente acadêmico, que me proporcionasse a liberdade necessária para o bom
desenvolvimento das ideias. Tive a sorte de encontrar este ambiente e esta liberdade que tanto
15

desejava. O resultado pode até não estar à altura de minha ambição e da liberdade concedida e
a confiança depositada em mim pelo meu orientador, Maurício Lissovsky, mas completo dois
anos (redondos!) como discente da ECO-Pós com uma sensação não só de dever cumprido,
mas de plena satisfação com o que encontrei na Escola de Comunicação, apesar dos reveses
que fizeram a UFRJ ficar praticamente fechada no primeiro semestre de 2015 e dos fantasmas
produzidos pelas convulsões políticas que me acertaram em cheio. Posso dizer que
reencontrei o meu lugar no meio acadêmico e meu desejo de prosseguir nas investigações e na
docência.

2.

Em 2017, quando Terra em transe faz cinquenta anos – tomando-se como base a liberação da
fita pela Censura Federal em 1967 –, muitos apontam o terceiro longa-metragem de Glauber
Rocha como “atual”, haja vista os “transes” políticos que nos assolam desde as chamadas
“jornadas de junho” de 2013. Mas ater a importância deste grande acontecimento
cinematográfico às nossas contradições políticas que insistem em se repetir, é ainda pouco
(como se isso não bastasse!).

Por entender que o longa-metragem de 1967 vai além de uma “radiografia” de nossos
desencontros enquanto um povo “em formação”, adotei o ensaio como forma e como método
de abordagem do filme. (Claro, dentro dos limites de um trabalho acadêmico). O ensaio
permite uma maior liberdade de movimentos no que concerne à “multidisciplinaridade” que é
a principal marca que tentei imprimir nos capítulos que se seguem. E também permite que
nos aproximemos do que eu chamo de um “grau zero” de Terra em transe, ou seja, toma-lo
como um fenômeno altamente complexo sob uma abordagem holística e não apenas como um
objeto cinematográfico per se. Em suma: busco uma outra via de “interpretação” do terceiro
longa-metragem de Glauber Rocha. (Interpretação não é exatamente a palavra apropriada,
pois também se tentou aqui erigir algum conhecimento original).

Entendo que escrever sobre Terra em transe é escrever sobre cinema; mas é também escrever
sobre política, sobre literatura, sobre filosofia e até mesmo sobre antropologia. Mas, sobretudo,
é escrever sobre nossa ancestralidade e nossas pulsões. E esta dissertação tentará atar os fios
soltos destes saberes para um entendimento diverso, que ajude – modestamente, dentro de
nossos limites – na direção de uma renovação dos estudos sobre Glauber Rocha, sobre o
16

cinema moderno e suas ainda pouco exploradas – e surpreendentes – interfaces com o


“universo social”.

3.

A presente dissertação está dividida em cinco capítulos com tamanhos diferentes e sob uma
forma de divisão que tentará deixar clara os dois principais movimentos que buscaremos
promover. Quais sejam? Os dois últimos capítulos serão o esteio que sustentará as
“especulações” dos dois primeiros capítulos. O capítulo III (“Desenho do Transe e seus
traços”) será o capítulo que buscará ser o “fiel da balança”. A seguir, descrevo os capítulos da
dissertação.

O capítulo I (“Introdução ao pensamento descolonizador de Glauber Rocha”) busca trazer


para o presente as ricas discussões promovidas pelos filmes e pelos escritos de Glauber,
principalmente em seus manifestos (“Estética da fome” de 1965 e “Estética do sonho” de
1971). O gesto de trazer para o presente essas ideias é uma forma de “dar o tom” do que
queremos discutir mais a frente. A atualização discurso glauberiano é fundamental para a
nossa análise do filme de 1967 que se pretende chegar ao tão desejado “grau zero”. E para
concretizarmos essa atualização, buscamos fazer correspondências entre a fome como
“expressão cultural” e as ideias do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro no que toca em
temas como “colonização”, “cultura” e o problemático protagonismo do Ocidente (entendido
aqui como a esfera intelectual e cultural do eixo Estados Unidos – Europa Ocidental). Além de
um possível novo “ordenamento filosófico” promovido pelo cineasta e pelo antropólogo que
anunciam uma radical desconstrução da ontologia ocidental: uma inversão nos papéis entre
“metrópole” e “colônia”, ordem estrutural que insiste em ser sustentada no nosso século. E
mais do que isso: a afinidade capital entre Glauber e Viveiros de Castro faz surgir a busca pelo
mito como um “estudo das pulsões” da modernidade. E para estudar essas pulsões, é
necessário “construir” portais de acesso a elas: as imagens dialéticas.

Dessa forma, no capítulo II (“Sonho, transe, despertar: as imagens dialéticas”) começará


fazendo uma comparação entre o que Glauber e Walter Benjamin entendem por “sonho”,
para logo a seguir discutirmos mais a fundo o conceito de “imagem dialética”, tanto, que
Terra em transe perderá, no decorrer de algumas páginas, o seu protagonismo. A intenção é
trazer este conceito de forma sólida de maneira a usá-lo adequadamente num contexto em
17

que ela é pouco usada: no campo cinematográfico. Tentaremos estabelecer como se configura
esta “imagem em movimento que tende à imobilidade”, nos dando acesso a um universo de
signos ancestrais. Mas primeiramente, discutiremos a aguda crítica de Glauber em relação à
história que ele chamou de “razão dominadora” em “Estética do sonho”: uma abordagem que
não permite um estudo das civilizações e dos povos tendo como instrumental único a razão
histórica.

O capítulo III (“Desenho do Transe e seus traços”) é o capítulo em que se tenta desconstruir a
ideia de história enquanto Ideia no contexto do filme. Como dito acima, a razão histórica não
é o único motor do desenvolvimento humanístico, muito pelo contrário. A razão não visa a
felicidade e o bem-estar de povos e indivíduos: a prova patente disso é o transe que ela –
intermitentemente – provoca. Aqui, a palavra “Transe” ganha um significado diferente ao
ganhar um “T” maiúsculo, diferentemente do “transe” que Glauber promove em seus filmes e
em seus textos. O Transe é o sintoma do historicismo e que não visa a um “bem supremo”,
como os historiadores e filósofos idealistas apregoam. A prova disso – no contexto do filme de
1967 – é a inevitabilidade do golpe e a figura algo “inalcançável” de Porfírio Diaz.

4.

No capítulo IV (“‘Gladiador defunto mas intacto...’ – Glauber Rocha e o procedimento


poético”) tentarei dar uma visada geral sobre a poética de Glauber e suas facetas:
primeiramente na poesia oral do Nordeste que foi o substrato de seus dois filmes “sobre o
sertão”, para, em seguida, buscar as influências poéticas de Glauber na poesia dita “moderna”,
flagrantemente Lautréamont, cujo “realismo do vômito” ele adaptou ao poeta-político Paulo
Martins.

Assim, o capítulo V (“‘[...] Tanta violência, mas tanta ternura’ – poesia e flânerie”) será
dedicado à análise da poesia de Paulo Martins, que carrega uma trágica carga política
promovida pela sua flânerie. Aqui, o flâneur é o último estágio da resistência política contra as
forças arrasadoras do Transe. Todos os monólogos de Paulo Martins serão “deslocados” de
seu contexto e lidos como poesia, de forma a dar sustentação às imagens dialéticas que
aparecem em profusão.

Eis a conformação de nosso trabalho, que agora ofereço ao livre escrutínio de todas e de todos.
18

I. Introdução ao pensamento descolonizador de


Glauber Rocha

O destino visado é duplo (...) aproximar-se do ideal de uma antropologia enquanto exercício de
descolonização permanente do pensamento e propor um outro modo de criação de conceitos
que não o “filosófico”, no sentido histórico-acadêmico do termo.

Eduardo Viveiros de Castro

Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.
O cinema novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo,
todas as fraquezas consequentes de sua existência.

Glauber Rocha
19

As “imagens do pensamento” de Glauber Rocha foram fartamente projetadas em cinemas mundo


a fora: nelas, a crítica ao pensamento “erudito” (ou “acadêmico”) dos países do Hemisfério Norte
é bastante clara. Mas a “novidade glauberiana” teve o seu alcance limitado, “desarmado” pelas
ideologias dominantes: criou-se em volta dela um isolamento crítico e cultural, mascarado de
“exotismo”, “paternalismo” e quejandos por parte da intelligentsia ocidental (e do “raquitismo”
nacional-popular). Nossa proposição para o presente capítulo é reatualizar – através
principalmente das conquistas recentes da antropologia brasileira – o arco do pensamento de
Glauber entre os anos 1960 e o início dos anos 1970, que tem nas suas extremidades os
manifestos “Estética da fome” (1965) e “Estética do sonho” (1971), e entre eles, Terra em transe,
que é a síntese da “expressão cultural da fome”. Uma “bomba” pronta para ser detonada no cerne
da metafísica ocidental (“fons et origo de toda espécie de colonialismo”, para Eduardo Viveiros de
Castro); e um caminho sem volta para o aparecimento das verdadeiras imagens: as imagens
dialéticas, que nos conecta diretamente aos signos míticos para produzir novos possíveis.

I.1. Da fome: as imagens (em movimento) de um pensamento


Eis um campo minado: não é nada fácil traçar os meandros do pensamento de qualquer
indivíduo, ainda mais se o cidadão em questão foi um notável cineasta, amplamente
reconhecido como um expoente de sua arte. Some-se a isso, o fato dele ter sido um sertanejo –
nascido em 1939 na cidade de Vitória da Conquista (BA) –, oriundo que foi de um extrato
cultural completamente diverso das metrópoles nacionais e internacionais. Só que a “despeito”
(ou seria mesmo em “proveito”?) disso, possuía uma outra e ainda mais notável capacidade: a
de uma sofisticada interlocução com a mais fina intelectualidade de sua época no Brasil, na
América Latina, na Europa e nos Estados Unidos. E de como ele conseguiu formar não apenas
uma filmografia extremamente consistente, mas também um “corpus” de pensamento tão
original quanto ainda pouco compreendido e disseminado em nossos dias. (Ao menos fora de
certos círculos acadêmicos e artísticos dedicados ao seu estudo).

Nos jogamos nesta difícil tarefa como um iniciante na arte da asa-delta: o sentimento é o
misto de uma hesitação apavorante com um fascínio potencialmente suicida pouco antes de
trepar numa daquelas asas de lona e tubos de metal; mas agora não tem mais volta: é saltar da
pedra. Salto iniciado, o terror que toma conta de todas as fibras do corpo vai, aos poucos,
dando lugar a uma satisfação não menos intensa. O medo causado pela visão do abismo é
substituído pelo prazer de se ter sob os olhos uma paisagem móvel e magnífica. Ao controlar
os voleios da asa, dá para se ter a maior mobilidade possível de perspectivas em relação ao mar
azul infinito, ao aglomerado urbano fincado sobre um estreito platô à beira da praia e às
rochas que formam os morros quase verticais. O pensamento de Glauber Rocha é como se
fosse essa paisagem: belo, selvagem (sem jamais perder o pé sobre a planície cosmopolita),
mas sobretudo, grandioso; porém telúrico e escarpado.
20

Um pensamento radical, mas em seu sentido original: o de ir na raiz das questões que o
confrontam, e ciente da necessidade de uma perigosa verticalidade nessa jornada, que nos
obriga a abrir mão de certos preceitos (e preconceitos) arraigados em nossa sensibilidade
“ocidental”. Por isso o espanto – e um certo desconforto intelectual – causados até hoje pelos
manifestos1 “Estética da fome”, de 1965, e “Estética do sonho”, de 19712, que dão as diretrizes
gerais do Cinema novo e, sobretudo, do pensamento projetado pelas imagens de Glauber.
(Preferimos “imagens” ao invés de “cinematografia” ou mesmo “obra” por obra mesmo desse
exercício de pensamento). Tal “espanto” ou “desconforto” deriva de várias maneiras: tudo não
passaria de imagens herméticas, exóticas, malfeitas, calcadas num discurso “datado”,
ultrapassado, sem lastro no presente. Um vácuo aparentemente intransponível, mascarado
pelos mais diversos adjetivos que nos afastam de um rico filão de pensamento artístico e
filosófico, ao mesmo tempo universal3 e “autóctone”.

Esse vácuo “mascarado” é exatamente aquilo que separa a originalidade glauberiana do


pensamento dito “paternalista”, “bem intencionado”, das camadas mais altas da cultura
ocidental. A “Estética da fome” inaugura – em forma de protesto – uma filosofia e uma atitude
artísticas profundamente inovadoras (e assim continuam nos dias de hoje, salientemos aqui).
Ela enuncia a incapacidade de sermos compreendidos, por nossas próprias debilidades
intelectuais, marcadas pelo “ranço colonialista” de alguns de nossos pensadores e por vícios de
ordem ideológica, que tornam a nossa fome (a real e a metafórica ou conceitual)
incompreensível para nós mesmos. E do outro lado, a intelligentsia internacional que vê as
nossas manifestações artísticas marcadas pela fome4 – aqui entendida como uma categoria
ética e estética heterodoxa, como veremos mais a frente –, como mais uma estranha e
pitoresca manifestação terceiro-mundista: um “apêndice” de mundo irremediavelmente
primitivo, subdesenvolvido.

1
Posteriormente, Glauber Rocha publicou em livro estes manifestos com sua grafia característica: “Eztetyka” da
fome e do sonho em seu livro Revolução do cinema novo. São Paulo: CosacNaify, 2004. A primeira edição da
obra foi lançada em 1981. Todas as citações destes manifestos foram extraídos da edição de 2004; mas, em anexo,
reproduzimos as “Eztetykas” integralmente nas páginas finais do presente trabalho para uma imersão mais
aprofundada por parte do leitor ainda não iniciado.
2
Além, é claro, de tantos outros textos e falas de Glauber: mas ambos os manifestos representam o substrato
desse pensamento e delimitam – de maneira precisa – uma época e um estilo de pensar filosófica e artística do
cineasta baiano.
3
No sentido de “acolhedor”.
4
A palavra “fome” possui em Glauber um caráter polissêmico, o que se depreende facilmente ao lermos o seu
manifesto de 1965. Mas para efeitos de nosso trabalho, vamos abrir mão dessa polissemia para ganharmos em
clareza de exposição: quando a palavra fome surgir em itálico, estaremos nos referindo a ela de maneira
conceitual. Assim sendo, a fome é a expressão cultural da fome.
21

O que chamamos aqui de “novidade glauberiana” – como toda novidade, potencialmente


perigosa para o nosso pensamento tão bem assentado – produz uma natural repulsa, dentro e
fora de nossas fronteiras. E, nos últimos vinte e cinco anos, ela parece ter sido relegada a se
tornar um pensamento que não serve para mais nada dentro do contexto dito “pós-moderno”,
“neoliberal” e termos congêneres (pelo menos até 2008, com o início do “desmascaramento”
do neoliberalismo). A globalização e sua única descendência culturalmente aceitável, o
“multiculturalismo”, criam (ou criavam), constantemente, fantasmagorias “coloridas” que
abortam na fonte, formas de pensar que não envolvam uma falsa ideia de “comunidade
global”, que, como tal, anula as diferenças ao torná-las palatáveis a um amplo público5.
Neutraliza-se as diferenças em sua mais fina superfície, exibindo-as, de forma a falsamente
equalizá-las e, de tal maneira, que só “caímos na real” agora, na ressaca “pós-2008” com suas
consequências crescentes e preocupantes. O multiculturalismo – como era de se esperar – não
deixou nada em seu lugar. Do “pitoresco” (que o pensamento de Glauber suscitava nos anos
1960) ao niilismo cinza do contexto “pós-multiculturalista”6, já vão mais de cinquenta anos...

O resultado (ao menos parcial) é a volta dos muros, muito mais vergonhosos do que aquele
que cortava Berlim. Tanto muros já prontos (como o que isola o povo palestino dentro de seu
próprio território) quanto muros em “planejamento”, como aquele que poderá isolar o
território estadunidense do resto do continente americano (tirante o Canadá), além dos
muros imaginários que rasgam, crescentemente, o tecido (ou melhor: a colcha de retalhos)
social mundo afora. É o mundo em “compartimentos” – como nos diz Frantz Fanon7 – assim
como o mundo colonial que pensávamos haver deixado para trás, mas que na verdade nunca
deixou de sê-lo: ele apenas foi mascarado por ideologias precárias ancoradas na economia de
mercado. Mas hoje, a globalização, ou melhor, o Império8, prescinde de qualquer adorno
ideológico para a fruição das massas, e dos “intelectuais colonizados”, tidos como “os gênios

5
Um dos exemplos mais espetaculares desse engodo, foram as campanhas publicitárias da marca de roupas
italiana Benetton que teve seu apogeu na última década do século passado e que era alvo de intensos debates pró
e contra: o “United Colors of Benetton” foi um dos maiores lemas do multiculturalismo massificador. Não deixa
de ser desolador que um dos maiores expoentes culturais dos últimos vinte e cinco anos tenha sido uma
campanha publicitária de alcance mundial.
6
Não nos parece inapropriado falar em “pós-multiculturalismo”, haja vista o ressurgimento, ainda que aos
poucos, de velhos fantasmas, aproveitando-se da falência acachapante do neoliberalismo global desde 2008.
Fantasmas estes que remontam ao período Entre-Guerras. É a farsa da farsa da farsa de uma tragédia que move a
história, não de maneira “progressiva”, mas como um ciclo infernal, ou melhor, como se fosse um LP arranhado.
7
FANON, Frantz. Los condenados de la tierra. Buenos Aires: Fondo de cultura económica, 2015, p. 36.
8
Eis o Império único, total, multidimensional, sem um “fora”, sem alternativas de natureza ideológica e de
existência mesmo: esta ideia de mundo globalizado totalizante foi problematizado por Michael Hardt e Antonio
Negri já na virada dos séculos XX e XXI. Ver: Empire. Cambridge: Harvard University Press, 2000.
22

da raça” de cada país “emancipado” (que para Fanon são peças fundamentais do maquinário
colonialista).

Por isso, os compartimentos coloniais em nada foram alterados. A divisão social atual no
Brasil, por exemplo, obedece fidedignamente à compartimentalização criada pelo
colonialismo português, só que com “máscaras” diferentes (e não há nenhuma novidade
nisso), continuando século XX adentro pelas até então “novas” forças colonialistas, que
dividiam o mundo entre países “desenvolvidos” (colonizadores) e países “em
desenvolvimento” (colonizados). “O mundo colonizado é um mundo maniqueísta”9, sempre
dividido em dois setores, o setor dos colonos e outro dos colonizados; dos opressores e dos
oprimidos; das zonas norte e sul, oeste e leste. Um mundo, uma realidade esmagadora, que
constantemente produz medo, ódio, ressentimento e violência, que explode “periodicamente”
nas subjetividades e nas comunidades10.

Por isso, a atualidade da fome e suas expressões culturais que surgem como maneiras de
desmontar o mecanismo da objetividade ocidental que a tudo classifica e separa desde o
surgimento da modernidade – que no campo do pensamento se condensou primeiramente
em Descartes –. Por isso a contundência algo radical já nas primeiras linhas da “Estética” de
1965. Primeiro ela caracteriza a estreiteza com que o interlocutor ocidental11 tem em relação
às expressões latino-americanas em geral. Seu interesse selecionador, de forma a tudo
classificar de acordo com moldes já estabelecidos previamente (a miséria “não como sintoma
trágico, mas como dado formal em seu campo de interesse”) e que é incapaz de tomar
conhecimento – por menor que seja – da fome latina.

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das


discussões sobre América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a
cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também,
caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina
lamenta a suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa
miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de

9
Tradução nossa para “El mundo colonial es un mundo maniqueo.” (FANON: 2015, p. 35).
10
“En sus músculos, el colonizado siempre está en actitud de expectativa. No puede decirse que esté inquieto, que
esté aterrorizado. En realidad, siempre está presto a abandonar su papel de presa y asumir el de cazador. El
colonizado es un perseguido que sueña permanentemente con transformarse en perseguidor.” (FANON: 2015,
pp. 46-47).
11
A palavra “ocidental”, do modo que é aqui usado, busca identificar aquele estrato privilegiado da cultura, que
(ainda) habita, principalmente, no eixo Estados Unidos – Europa Ocidental. Como eles, somos ocidentais; mas,
inegavelmente, “todos somos ocidentais, mas alguns (eles) são mais ocidentais que outros (nós)”, mal
parafraseando George Orwell.
23

interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o
homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.12

Mas a ignorância também parte do latino: porém, uma ignorância que nasce da sua
precariedade. Por conta de sua miséria ele é incapaz de se intelectualizar (ou de se
“proletarizar”, por assim dizer, como nos países desenvolvidos), pois suas necessidades são tão
urgentes e fatais que ele – paradoxalmente – acaba faltando consigo mesmo. Disso já tratou
muito bem, mas de maneira diversa, Gilles Deleuze no segundo tomo de seu estudo sobre
cinema. Nos filmes de Glauber Rocha, o filósofo francês entreviu um “povo que falta”
(inspirado em Franz Kafka13), que precisa ser inventado de alguma maneira; um povo (ou
multidão) por vir: essa tarefa será assumida em Terra em transe pelo poeta-político Paulo
Martins, mas de forma enviesada, trágica, aberrante, como demonstraremos nos capítulos
subsequentes (principalmente no quinto capítulo). Deleuze nos diz que:

Resumindo, se houvesse um cinema político moderno, seria sobre tal base: o povo já
não existe, ou não existe ainda… o povo falta. (...) É necessário que a arte,
particularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não dirigir-se mais a
um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo.14

A “base” para um “cinema político moderno”, que também parece faltar (ao menos em termos
deleuzeanos), teria como uma das inspirações, dado pelo próprio filósofo, a obra de Glauber.
E se assim entendeu Deleuze, o cinema político moderno se assenta sobre outros alicerces que
fogem ao pensamento artístico consagrado (seja ele clássico, moderno, contemporâneo, ou de
qualquer outra categoria conhecida), tendendo para uma outra via de pensamento que ainda
não existe ou que foi simplesmente negligenciada, como foi o caso em Glauber. O cinema
político moderno falta, pois seu povo precisa ser inventado. E, necessariamente, inventado a
cada filme. Daí, podemos sugerir que o arcabouço das “motivações” necessárias para a
construção desse verdadeiro cinema político moderno, que inventa povos, venha dos mitos. É
neles que a fome busca, o tempo todo, as suas forças produtivas. As imagens de Glauber
projetam os mitos intermitentemente através da tensão entre a palavra, o gesto dos

12
ROCHA: 2004, p. 63. (Grifos nossos).
13
Especialmente do conto “Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos”. In: KAFKA, Franz. Um artista da
fome/A construção. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 37-59.
14
Tradução nossa para: “Bref, s’il y avait un cinéma politique moderne, ce serait sur la base : le peuple n’existe
plus, ou pas encore… le peuple manque. (…) Il faut que l’art, particulièrement l’art cinématographique, participe
à cette tache : non pas s’adresser à un peuple supposé, déjà là, mais contribuer à l’invention d’un peuple.” In:
DELEUZE, Gilles. L’image-temps (Cinéma 2). Paris: Minuit, 1994, pp. 282-283.
24

personagens e de sua mise-en-scène; eis o “portal” do mito como um “estudo das pulsões” de
nossa época e não simplesmente como a recuperação do “arcaico” como forma de redenção
ou remissão15. A imagem em movimento tende – sempre – à imobilidade para se ter acesso aos
mitos, tal como um umbral que nos liga a outros mundos. E – atrelado a isso – uma
possibilidade real de mudança (nos mais diversos sentidos), usando do transe como uma
arena onde os mitos se contorcem, se dobram e se tornam fluidos, como que “regidos” pelo
deus Dioniso. Mais a frente, o filósofo francês complementa:

O que restaria? O maior cinema “de agitação” que jamais foi feito: essa agitação não
decorre mais de uma tomada de consciência, mas consiste em fazer colocar tudo em
transe, o povo e seus senhores, e a própria câmera, em levar tudo à aberração, tanto
para fazer comunicar as violências quanto para fazer os assuntos privados entrar no
político e reciprocamente (“Terra em transe”). Eis o aspecto tão particular que a
crítica do mito assume em Rocha: não é analisar o mito para descobrir seu sentido
ou estrutura arcaica, mas sim referir o mito arcaico ao estado das pulsões numa
sociedade inteiramente atual: a fome, a sede, a sexualidade, a potência, a morte, a
adoração.16

Terra em transe é, de acordo com seu próprio autor, o filme mais emblemático da fome17. E,
sem dúvida, é o ponto de amadurecimento intelectual que levou Glauber a buscar o
aprofundamento de suas pesquisas em torno das expressões da fome, o que o conduziu à
“Estética do sonho” e muitos de seus filmes rodados na década de 1970 fora do Brasil. Terra
em transe é um filme de transição dentro de sua cinematografia. Dito isto, é necessário nos
aprofundarmos mais nas relações entre palavras, imagens, transe, fome e mitos para
chegarmos ao sonho como um amadurecimento que tangenciaria uma forma de pensar mais
sistemática.

Para isso, vamos dissertar um pouco sobre a “ideologia” que move todo esse sistema...

15
Ivana Bentes em seu ensaio “O devorador de mitos”, nos diz que “Num ato de paroxismo Glauber começa a
construir uma esquerda mítica e mística, com seus próprios mitos”. Entendemos o uso da palavra “esquerda”
pela professora e pesquisadora num sentido figurado, pois o mítico (e o místico) em Glauber não se encaixa em
categorizações políticas corriqueiras. In: ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. (Org. Ivana Bentes). São Paulo:
Companhia das Letras, 1997, p. 27.
16
Tradução nossa para: “Que reste-t-il alors ? Le plus grand cinéma ‘d’agitation’ ne découle plus d’une prise de
conscience, mais consiste à tout mettre en transe, le peuple et ses maîtres, et la camera même, tout pousser à
l’aberration, pour faire communiquer les violences autant que pour faire passer l’affaire privée dans le politique,
et l’affaire politique dans le privée (‘Terre en transes’). D’où l’aspect très particulier que prend la critique du
mythe chez Rocha : il ne s’agit pas d’analyser le mythe pour en découvrir le sens ou la structure archaïque, mais
de rapporter le mythe archaïque à l’état des pulsions dans une société parfaitement actuelle, la faim, la soif, la
sexualité, la puissance, la mort, l’adoration”. In: DELEUZE: 1994, p. 285.
17
“Terra em transe, 1966, um manifesto prático da estética da fome, sofreu no Brasil críticas intolerantes da
direita e dos grupos sectários da esquerda.” (ROCHA, 2004, p. 248).
25

I.1.1. A “ideologia xamânica” de Glauber

À distância, em termos históricos, podemos depreender que Glauber não se encaixava em


nenhuma ideologia convencional. O uso seguido, por ele, de palavras-chave ligadas
tradicionalmente à esquerda marxista-leninista (tais como “dialética”, “consciência de classe”,
“ideologia”, “razão”, “história”, “reificação”, “racionalidade” e tantas outras) são por ele
usadas em contextos pouco ortodoxos, para dizer o mínimo. De maneira muito marcante, ele
“atormentava” o jargão clássico das esquerdas de forma a colocar em transe essas ideias. Fazia
os conceitos “delirarem” usando de uma prolixidade muito própria. Tanto em seus escritos
quanto em suas falas públicas, Glauber exibia um inquestionável talento para se fazer
desentender. Mas que fique claro: o sentido desse “desentendimento” é, em última estância,
político. Tratava-se de uma estratégia para fugir das dicotomias e do rol de alternativas pré-
determinadas de tal ou qual ponto do curto espectro ideológico ocidental: ele queria fazer
delirar as ideias através do desmonte a que ele submetia conceitos, palavras, e mesmo do logos,
para uma posterior renovação sobre um “território” completamente diferente do pensamento,
digamos, mais “acadêmico” (ou “academicista”).

Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo


subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do
primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias
heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo
condicionamento colonialista.18

Uma das tarefas do presente trabalho é o de nunca “fulanizar” este ou aquele, isto ou aquilo
no que concerne a pensadores e filosofias (cada qual um mundo rico em si e para si mesmo,
eventualmente inspirando-nos), mas, ainda que brevemente, problematizar a cultura
ocidental e suas doutrinas (inclusos os famosos “-ismos”) através do desentendimento
proposto pela fome. Uma crítica da cultura não pode prescindir de discutir o termo
“colonialismo” (ainda em que pese ser um termo mal visto nos dias atuais, principalmente nas
análises sob o guarda-chuva do “pós-” seja lá o que for) em muitas de suas variações. No nosso
caso, no que concerne ao pensamento artístico e filosófico. O “desentendimento glauberiano”
guarda correspondências com a superação de uma questão tipicamente antropológica: a da
dicotomia (mais uma...) “cultura versus natureza”, posta em questão por diversos

18
ROCHA, 2004, p. 63.
26

antropólogos dos principais centros de pesquisas do mundo, em especial, por um dos


renovadores da disciplina: Eduardo Viveiros de Castro.

O termo “correspondência”, usado por nós, tem o mesmo sentido do conceito criado por
Walter Benjamin: tratam-se de interligações – de tipo transversal – que ligam mundos e/ou
realidades parcial ou completamente distintas entre si no tempo e no espaço, revelando
afinidades antes impensáveis.

A esta altura, não pode haver dúvidas de que o pensamento de Glauber Rocha é –
inequivocamente – radicalmente descolonizador: a fome é a teoria (filosófico-política) e a
prática (artístico-cinematográfica) que busca estancar a cadeia infernal de dualidades da
modernidade, assim como a antropologia, disciplina que – como todas as outras – tem como
um dos seus “a priori históricos”, o colonialismo.

Se estamos todos mais ou menos de acordo para dizer que antropologia, embora o
colonialismo constitua um dos seus a priori históricos, está hoje encerrando seu ciclo
cármico, é preciso então aceitar que chegou a hora de radicalizar o processo de
reconstrução da disciplina, levando-o a seu termo. A antropologia está pronta para
assumir integralmente sua verdadeira missão, a de ser a teoria-prática da
descolonização permanente do pensamento.19

Ora, tanto a antropologia quanto o cinema tem o colonialismo como uma de suas “pedras
fundamentais”: o gesto “interventor” de Viveiros de Castro em seu campo de trabalho guarda
uma ampla semelhança com o desentendimento glauberiano proporcionado pela fome no
cinema. Mas – nos parece – o cinema se recusa a começar a encerrar o seu próprio “ciclo
cármico”, que abriria espaço para uma possível série de cinemas políticos modernos (e
contemporâneos) autênticos, os quais Deleuze se referiu em A imagem-tempo; ou o está
fazendo de uma maneira tão lenta que mal nos apercebemos. O cinema como “teoria-prática
da descolonização permanente do pensamento” é justamente o cinema que coloca tudo em
transe: o filme de 1967 é a prova de que o a priori colonizador pode ser anulado (ou ao menos
ter a sua influência drasticamente reduzida) das imagens, contrariando algumas teorias
“pessimistas”, as quais rezam que o aparato cinematográfico seria, em si mesmo, um

19
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: CosacNaify; n-1, 2015, p. 20.
27

instrumento ideológico “burguês” em sua essência, reduzindo ainda mais o potencial fílmico
do pensamento (ou do potencial filosófico do cinema)20.

Mas eis que a “perfectibilidade”21 do cinema “entra em jogo”, no sentido de que sua cadeia de
produção é tão complexa, que ela não permite um “fechamento” de possibilidades de natureza
ideológica desse tipo, tornando o cinema uma arte que possui uma maleabilidade tal que,
apesar de caro, por si só impede mais esta “camisa de força ideológica”. Não que Glauber
tivesse o cinema como uma profissão de fé22 (haja vista ser uma arte cheia das mais diversas
armadilhas – econômicas, políticas, artísticas, filosóficas – e ele, como poucos, era cônscio de
tal questão), mas a possibilidade de a tudo fazer delirar tinha o aparato cinematográfico como
uma “caixa de ferramentas” perfeita para a projeção de um tal pensamento descolonizador.
Assim sendo, não havia ideologia possível de se aderir a um sujeito como ele – pelo menos
uma ideologia que coubesse nos pequenos compartimentos do pensamento ocidental, bem
assentado, no sentido “canônico”. Mas se houvesse, ela viria a título de provocação, ou se
localizaria fora do “curto espectro ideológico” da tradição (como já mencionado antes): ela
seria justamente uma ideologia de tipo “xamânica” ou uma “ideologia de xamãs”23.

Os xamãs são indivíduos “remanescentes” de uma época mítica em que os seres “se
interpenetravam”, onde a diferenciação entre as espécies ainda era algo “nebuloso”, como
uma bruma sobre um pântano. O mito – segundo o pensamento ameríndio amazônico – era
um meio pré-subjetivo e pré-objetivo, antes que tudo se diferenciasse, como numa “Babel de
espécies”. Por serem remanescentes de um tempo mítico, em que todas as espécies

20
Ver o clássico artigo publicado por Jean-Louis Baudry na revista francesa Cinétique (edições 7 e 8, publicados
em 1970): Cinema: os efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. In: XAVIER, Ismail (Org.). A
experiência do cinema. São Paulo: Graal, 1983, pp. 383-400.
21
O que Benjamin chama de “perfectibilidade” de uma obra de arte vai na contramão de seu “valor de culto” (sua
raridade, sua “aura”: objeto inalcançável, longínquo, por mais próximo que pareça ser) em favor de seu “valor de
exposição” que as massas “exigem”, pois elas querem se ver – cada vez mais – retratadas nas novas formas de
expressão tecnológicas; pois, no entender do pensador berlinense, a “linha de produção” cinematográfica é
perfeitamente apropriável pelo seu público em grande escala. E o próprio dispositivo cinematográfico necessita
desse gigantesco mecenas, haja vista o seu custo exorbitante (pelo menos à época). Assim, as massas são o
“mecenas” do cinema, e como tais – de forma semelhante principalmente ao Renascimento – querem se ver
como protagonistas nos novíssimos produtos artísticos. Mas as grandes forças econômicas escondem com o
finíssimo véu da linguagem dita “clássica”, de efeito “neutralizante”, o cinema como resultado de uma cadeia
produtiva e criador de múltiplas linguagens, que nunca existiram a priori. Ver: BENJAMIN, Walter. A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter et al. Benjamin e a obra de arte. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2012, pp. 9-40.
22
“Não acredito no cinema mas não posso viver sem o cinema. Acho que devemos fazer revolução (...) não
credito nada à palavra arte neste país subdesenvolvido. Precisamos quebrar tudo. Do contrário, me suicido.”
(ROCHA, apud BENTES: 1997, p. 25).
23
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A
inconstância da alma selvagem. São Paulo: CosacNaify, 2006, p. 357.
28

conseguiam “se comunicar”, os xamãs são verdadeiros “diplomatas interespecíficos”: eles


ainda são capazes de “conversar” com outras espécies e espíritos (e mesmo com defuntos) que
façam parte de uma cadeia de predação. E é exatamente este livre acesso à “cadeia de predação”
que conforma a “política” dos xamãs, delineando algo análogo a uma ideologia (entendido
aqui como um ordenamento de ideias e/ou pensamentos). A política dos xamãs subverte a
dicotomia cultura versus natureza criando outra coisa: “A condição original comum aos
humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade”24 (definição possível de um
conceito tão belo quanto terrivelmente radical: o “multinaturalismo”). As formas das coisas e
as diferentes conformações e funções dos corpos das mais diversas espécies, seriam como
“roupas” que envolvem a humanidade de cada bicho, planta ou mesmo de objetos inanimados.

A ideologia dos xamãs – por ter origem num meio pré-subjetivo e pré-objetivo – é composto
por uma forma de conhecimento inteiramente outra em relação ao que estamos acostumados.
Nossas ações sob a ordem moderna – como pensadores, acadêmicos, artistas, cientistas – é a
de objetificar tal ou qual fenômeno que nos é apresentado 25 . Isolamos, separamos e
classificamos o fenômeno de forma a torná-lo um dado que corrobora ou derruba alguma
teoria ou obra. Ou seja, retiramos do fenômeno todo e qualquer rastro de subjetividade, de
forma a deixá-lo “oco” como como um número numa planilha, como uma informação que
apoia alguma conclusão de maneira racional: “conhecer é objetivar”26. A “epistemologia” dos
xamãs busca o exato oposto e vai além. Para ela, é necessário tomar para si o ponto de vista do
fenômeno. Ou seja: o xamã assume os mais diferentes pontos de vista em sua política
interespecífica (ou transespecífica)27. “O xamanismo é um modo de agir que implica um
modo de conhecer, ou antes, um certo ideal de conhecimento” 28 . Enquanto que na
modernidade ocidental o Outro é uma coisa (um isso), algo abstrato, entre os xamãs, o “ideal”
é o do conhecimento tomado do ponto de vista daquilo que está sendo conhecido. O Outro
não é uma coisa, é também humano. E dependendo do caso, mais humanos do que nós: “a

24
VIVEIROS DE CASTRO: 2006, p. 355.
25
Assim como na nossa dissertação. Resta-nos nos debatermos dentro desta camisa de força; ou, usando de
termos mais amenos, de marcar a diferença dentro dos termos e procedimentos acadêmicos. Não deixa de ser um
desafio criativo de alto grau, como nos mostra tantos filósofos e pensadores de outros campos.
26
VIVEIROS DE CASTRO: 2006, p. 358.
27
“Aceitar a oportunidade e a relevância desta tarefa de ‘penser autrement’ (Foucault) o pensamento – de pensar
‘outramente’, pensar outra mente, pensar com outras mentes...” (VIVEIROS DE CASTRO: 2015, p. 25).
28
VIVEIROS DE CASTRO: 2006, p. 358. (Grifos nossos).
29

experiência pessoal, própria ou alheia, é mais decisiva que qualquer dogma cosmológico
substantivo”29.

O que não se presta à subjetivação é – de acordo com a epistemologia xamânica – inválida


como forma de conhecimento. Só se conhece algo quando “este algo” é personificado através
de intencionalidades das mais variadas. Mesmo os objetos e instrumentos “inanimados” são
intencionalidades “congeladas” e materializadas. “Os artefatos possuem esta ontologia
interessantemente ambígua: são objetos, mas apontam necessariamente para um sujeito, pois
são como ações congeladas, encarnações materiais de uma intencionalidade não-material”30.

A atitude política dos xamãs – de acordo com Viveiros de Castro – começa com uma “arte
política” (no sentido da política como arte) para desembocar numa “arte política” (uma
política que surge da arte)31,

Pois a boa interpretação xamânica é aquela que consegue ver cada evento como
sendo, em verdade, uma ação, uma expressão de estados ou predicados
intencionais de algum agente (...) O sucesso interpretativo é diretamente
proporcional à ordem de intencionalidade que se consegue se atribuir ao objeto ou
noema.32

Portanto, a boa política xamânica é – em termos mais sumários – aquela que emerge da arte
que modifica o campo da política (de certa forma, a arte ressoando, numa mesma vibração, na
política), na qual a ação, sob os auspícios da intencionalidade, é sempre o item
epistemologicamente mais importante dos fenômenos, cuja carga de subjetiva é máxima.

Daqui dá para se apreender a política, a epistemologia e a ideologia xamânicas como uma


“teoria-prática da descolonização permanente do pensamento”: nada é fixo, não existem
categorizações objetivas, mas se constitui como um rico corpus de pensamento através da
intencionalidade intensiva sobre os fenômenos estudados; suas categorias de pensamento são
exclusivamente “intencionais”. “Um certo ideal de conhecimento” acima de tudo, se
transportamos a ideologia xamânica para nos ajudar a abrir caminhos, imersos que estamos

29
VIVEIROS DE CASTRO: 2006, p. 353.
30
VIVEIROS DE CASTRO: 2006, p. 361.
31
Bem diferente, chamamos a atenção para isso, da “estetização da política” – de que nos fala Benjamin em seu
ensaio sobre a reprodutibilidade técnica – que é o fascismo. Ela não é uma construção ativa (é, ao contrário,
reativa), e é uma das faces do l’art pour l’art, ou seja, da arte enquanto mercadoria (e para alguns, um arremedo
de religião) e não arte enquanto ação derivada da intencionalidade.
32
VIVEIROS DE CASTRO: 2006, p. 359.
30

na modernidade. Uma política (que nasce da arte enquanto ação), uma epistemologia e uma
ideologia que podem ter um efeito devastador sobre a metafísica ocidental (fonte e origem de
todo tipo de colonialismo, segundo o antropólogo brasileiro), pois esta é anulada como que
num átimo, se a colocarmos em prática em nosso meio, por assim dizer. A cadeia de
consequências da “ideologia xamânica” destrói o “maniqueísmo colonialista”, suas dualidades
e compartimentações. Eis a possibilidade de uma “ideologia diferencial” em meio à
indiferença moderna.

Fazendo um paralelo com a fome, as correspondências com o pensamento ameríndio


amazônico nos parecem claras. Sua recepção, ora sob a égide do primitivo (ou da “nostalgia
do primitivo” ocidental), ora sob um “humanitarismo”, cuja “lucidez latina” (ou trocando em
miúdos, da lucidez de Glauber, pois é ele quem inventa esse “povo latino” nas “Eztetykas”), o
“ocidental” não tem condições de compreender, sob um desabusado paternalismo, que a tudo
anula sob uma imensa e insuportável carga de “boas intenções”, demonstram o eminente
perigo que vem a reboque das ideias que compõem a fome. E perigo é justamente o fantasma
que acompanha o perspectivismo 33 dentro das ciências sociais: o risco de se ver tudo
subvertido de maneira irreversível, uma “revolução copernicana” dentro da antropologia e da
sociologia. E isso é uma violência – uma violência simbólica em altíssimo grau – mas mesmo
assim uma violência contra o pensamento estabelecido.

Bruno Latour nos fala num artigo sobre as duas “perspectivas sobre o perspectivismo”: a de
Descola e a de Viveiros de Castro. O perspectivismo de Descola – sendo quase que
“criminosamente” sucinto – obedece a uma série de quatro tipos, e, numa delas, se encaixaria
o perspectivismo do antropólogo brasileiro, minorando sua potencia “explosiva”; mas eis que
Latour nos conta que Viveiros de Castro radicaliza contra essa tentativa de compartimentação
do seu pensamento, criado, saliente-se aqui, em “parceria” com pensadores de várias tribos da
Amazônia:

O perspectivismo, do seu ponto de vista, não deveria ser considerado como uma
simples categoria dentro da tipologia de Descola, mas antes uma bomba, com o
potencial de explodir toda a implícita filosofia tão dominante na maior parte das
interpretações dos etnógrafos sobre seus materiais. Se há uma abordagem que é

33
Os dois grandes expoentes do perspectivismo ameríndio amazônico são o francês Philipe Descola e Eduardo
Viveiros de Castro. Ambos possuem “perspectivas diferentes” sobre o perspectivismo. O sistema de Descola é
mais complexo e científico (num sentido mais clássico), porém inovador. Já Viveiros de Castro abre mão
completamente das sistematizações, concentrando seus esforços nos pontos de vista de quem e do que estuda. De
certa forma, Descola representa um “perigo” bem menor para as ciências sociais.
31

totalmente antiperspectivista é a noção mesma de tipo dentro de uma categoria, uma


ideia que só pode ocorrer àqueles a quem Viveiros de Castro chamou de
“antropólogos republicanos”34.

Seja lá o que signifique ser um “antropólogo republicano”, isso certamente tem a ver com a
domesticação que o pensamento tipificador impinge aos fenômenos estudados, no caso, o
pensamento amazônico. Nessa esteira, Latour continua a descrever a indignação do
antropólogo brasileiro, pois “o perspectivismo virou algo como uma moda nos círculos
amazônicos, mas essa moda oculta um conceito muito mais incômodo, que é o de
‘multinaturalismo’”35. Está posta em jogo a “lucidez latina” de Viveiros de Castro. E tal como
em Glauber, sua “bomba” é insistentemente desarmada.

Mas o que Viveiros de Castro criticou foi que Descola arrisca tornar a transformação
de um tipo de pensamento para outro “demasiadamente leve”, como se a bomba que
ele, Viveiros de Castro, queria colocar na filosofia ocidental tivesse sido desarmada. Se
nós permitíssemos ao nosso pensamento se conectar à alternativa lógica ameríndia,
toda a noção dos ideais kantianos, tão difusa nas ciências sociais, teria que ser
descartada.

A essa crítica, Descola respondeu que ele não estava interessado no pensamento
ocidental, mas no pensamento dos outros; Viveiros de Castro replicou que a sua
maneira de estar “interessado” é que era o problema36.

O maior ponto de convergência entre Glauber e Viveiros de Castro nos parece ser exatamente
este: o que importa não é um eventual interesse ou desinteresse do europeu/ocidental em
relação ao pensamento produzido no Brasil e na América Latina, mas a forma como eles se
interessam. Nos parece que este embate (disputatio) entre Descola e Viveiros de Castro,
narrado por Latour, condensa – de forma bastante sofisticada – o que nos anos 1960 e 1970,
Glauber buscou demonstrar ao Velho Mundo (ou ao mundo civilizado): o pensamento “feito
no Brasil” (e não apenas “pensamento brasileiro”, coisa que novamente nos remete ao
colonialismo) é o que falta se impor. Mas ele se impõe através da violência. É por isso que o
“multinaturalismo” e a fome foram e continuam sendo desarmados de maneira constante37.
Ambos os conceitos são conceitos “selvagens”, na direção de serem não-metafísicos (no

34
LATOUR, Bruno. Perspectivismo: “tipo” ou “bomba”? In: Primeiros Estudos, num. 1. São Paulo: FFLCH/USP,
2011, pp. 173-178. (Grifos nossos).
35
LATOUR: 2011, p. 176.
36
LATOUR: 2011, pp. 176-177. (Grifos nossos).
37
“Pois trata-se, sem dúvida, de “filosofia” – quer nos regozijemos, quer nos inquietemos...” (VIVEIROS DE
CASTRO: 2015, p. 31).
32

sentido clássico) e de possuírem perspectivas móveis; e notavelmente bem formulados, já


longe da Pensée sauvage de que nos fala Lévi-Strauss: pensamentos assistemáticos, de um
corpus de povos e tribos estudados pelo eminente decano da antropologia. E selvagens
também no sentido de francamente agressivos. Latour comenta que enquanto Descola se
pautava pela nobreza dos gestos e pela voz mansa, Viveiros de Castro falava por meio de
“aforismos”, em tom intervencionista e crítico, como “uma blitzkrieg”. Usando-se de
metáforas militares, a intenção era a de promover o que se chama de “terra arrasada”.

Quando Glauber fala que “Para o observador europeu, os processos de criação artística do
mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do
primitivismo” (grifo nosso), ele estava criticando a imobilidade de perspectivas deste “grande
observador” ensimesmado. E esta percepção aguçada do mundo de seu tempo, tendo as
nossas “debilidades” como fontes criadoras de novos possíveis, em comunicação direta com o
cerne da mais alta cultura, é próprio do que podemos atribuir à uma “ideologia xamânica”: o
cineasta baiano pode não ser um diplomata interespecífico, mas assim como eles, promove
uma tal comunicação pré-objetiva e pré-subjetiva que, a despeito da incompreensão algo
“institucional” à sua época, deixou claro um pensamento de altíssimo calibre filosófico, cheio
de intencionalidades e artisticamente ativo. Intelectuais e artistas, em geral, descordavam dele,
mas sempre estavam dispostos a ouvi-lo. Ele soube comunicar-se, tal como um xamã, com as
mais diferentes “espécies de pensamento” e de pensadores (Godard, Pasolini, Rouch, John
Ford, Buñuel, Rossellini, Scorcese e tantos outros para ficarmos apenas entre os cineastas),
além de sociólogos, psicanalistas, políticos, filósofos e outras “espécies”, mesmo depois de sua
morte. Glauber se colocou de maneira original nas políticas criadas pelo e para o cinema (ele
foi um dos artífices da Embrafilme, primeira tentativa de se fomentar um cinema brasileiro
não só industrial, mas também com vistas a construção de um “branding” – usando-se do
jargão do meio cinematográfico atual – para o nosso cinema), a partir de seu lugar, falando
várias línguas europeias, sem abrir mão do forte sotaque. E aqui dentro, reafirmando sua
condição de sertanejo.

***

A bomba de Glauber na verdade não foi desarmada. Ela repousa em algum canto perdido no
lodaçal moderno, prestes a explodir. O século XXI e as contradições insuperáveis que vieram a
reboque, vão tratar de explodi-la mais cedo ou mais tarde. E, por uma questão de perspectiva,
33

será a barbárie (ou o fim do mundo) para alguns, enquanto que para outros será o nascimento
de um novo mundo, certamente não-dualista, inventando para o pensamento novos e
desafiadores caminhos.
34

II. Sonho, transe, despertar. As imagens dialéticas

Sim, a gravitação abandonou, abandona e abandonará, como ela chocou, choca e chocará, uns
contra os outros, velhos planetas, velhas estrelas, velhos defuntos, enfim, caminhando de
maneira lúgubre em um velho cemitério, e, então, os falecidos brilham como um fogo de artifício,
e chamas resplandecem para iluminar o mundo.

Louis-Auguste Blanqui

Uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente político como
também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento
humano rumo à sua integração cósmica.

Glauber Rocha
35

Como folhas translúcidas sobrepostas em um velho retroprojetor que ilumina uma parede branca,
o moderno e o ancestral insistem em se transpor mutuamente, tanto na vida social quanto nas
imagens técnicas. O agora, sempre rico em signos que se dão a ver tão silenciosamente, aponta,
com absoluta urgência, para um futuro que tem a potência do despertar para Walter Benjamin. E
sinaliza também para o rompimento com o que Glauber Rocha chamou de “razão dominadora”.

II.1. Do sonho: a razão dominadora


Em janeiro de 1971, às portas de uma década marcada pelo início do crescente
enfraquecimento das utopias políticas que está, em nossos dias, atingindo seu ponto mais
culminante, Glauber Rocha lança um manifesto de altíssimo teor revolucionário nos Estados
Unidos, mais exatamente na Universidade de Colúmbia (Nova York), em forma de
comunicação. Trata-se de “Estética do sonho”38, texto emblemático por inaugurar uma nova
fase da carreira de Glauber: a partida para o exílio, dando início a uma trajetória errante
geograficamente, com filmes rodados na Europa e na África, mas – ao mesmo tempo –
também consistente em termos artisticamente formais e políticos. Glauber Rocha só voltaria a
filmar um longa-metragem no Brasil em 1978 com A idade da Terra (finalizado em 1980).

Se em 1965, Glauber Rocha abordou a (im)possibilidade de compreensão (pela burguesia


culta ocidental) da situação do pobre (o colonizado, o terceiro-mundista, etc.) via uma esfera,
digamos, racional, na outra estética, a “Do sonho”, o que vemos é uma renúncia formal à
razão (ao menos a “boa” razão burguesa – a da “boa consciência” – mas vai além disso, como
veremos em diversos momentos mais à frente). Aqui estamos diante de um intelectual de
vanguarda que anuncia que a pobreza não é “racionalizável”. A arte revolucionária depois do
fracasso das grandes jornadas da década de 1960, tem que lidar com um entrecruzamento
perverso: por um lado a razão – de raiz burguesa, por isso paternalista – que oprime e
esteriliza; por outro, um “misticismo” obscurantista entre as massas que é resultado direto
desta racionalidade “aplicada” aos pobres, não importando a frequência no espectro político
dos sujeitos a ela submetidos.

A existência descontínua desta arte revolucionária no Terceiro Mundo se deve


fundamentalmente às repressões do racionalismo.

Os sistemas culturais atuantes, de direita e de esquerda estão presos a uma razão


conservadora. O fracasso das esquerdas no Brasil é resultado deste vício conservador.
A direita pensa segundo a razão da ordem e do desenvolvimento. A tecnologia é
ideal medíocre de um poder que não tem outra ideologia senão o domínio do
homem pelo consumo. As respostas da esquerda, exemplifico outra vez o Brasil,

38
Mais tarde grafado pelo próprio autor como “Eztetyka do sonho”. Ver ROCHA: 2004, p. 248.
36

foram paternalistas em relação ao tema central dos conflitos políticos: as massas


pobres39

Esta incapacidade estrutural da razão para lidar com a pobreza é o que explicaria o fracasso
das revoluções mundo afora, pois ela mesma paralisa os agentes revolucionários no âmago
mesmo das ideias: “O Povo é o mito da burguesia. A razão do povo se converte na razão da
burguesia sobre o povo.”40 É justamente aqui que a revolução aparece como uma “mágica
dentro da razão”. As revoluções surgem da “imprevisibilidade histórica” que aparecem no
vácuo que a razão deixa para trás em sua marcha cega. Glauber cunhou como “mágica” as
possibilidades revolucionárias situadas neste “cadinho da imprevisibilidade histórica”. Mais à
frente, ele nomeia de maneira mais burilada o que ele entende como essa racionalidade, por
natureza estéril. Eis a “razão dominadora”.

II.2. Entre o sonho e o despertar: um intermezzo benjaminiano


II.2.1. Imagens de sonho

O que se chama neste capítulo – inspirado no Glauber de 1971 – de “cadinho da


imprevisibilidade histórica”, resultado do vácuo deixado pela razão dominadora em plena
marcha, guarda certas semelhanças com a construção gradual e cuidadosa de uma concepção
de imagem dialética que Didi-Huberman vai apresentar pela primeira vez no livro O que
vemos, o que nos olha41. A alegoria do “turbilhão” que perturba o curso normal de um rio,
inspirado pelo livro42 do Trauerspiel43 alemão, indica uma afinidade fundamental em direção
ao ponto que queremos chegar neste momento: o que Glauber Rocha e Walter Benjamin
entendiam por “sonho” e “despertar”. Para o filósofo das imagens francês, o turbilhão que
perturba o leito do rio é a própria origem, entendida como devir. Neste choque do devir, “(...)
seu poder de morfogênese e de ‘novidade’ sempre inacabada, (é) sempre aberta, como diz tão

39
ROCHA: 2004, p. 249.
40
ROCHA: 2004, p. 250.
41
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: 34, 2014, a partir do capítulo 8: “A
imagem crítica”, pp. 169-199 da edição brasileira.
42
Drama barroco alemão ou Drama trágico alemão, dependendo da tradução em português utilizada. O primeiro
título nos parece ser mais fiel, mas o segundo provém de uma tradução mais nova, amealhando novas leituras e
um aprofundamento do entendimento do texto benjaminiano, vertido para a nossa língua. Portanto, a tradução
utilizada por nós é BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
43
O termo Trauerspiel é, numa tradução direta, “jogo do luto” ou “jogo lutuoso”.
37

bem Walter Benjamin. E nesse conjunto de imagens em ‘via de nascer’, Benjamin não vê ainda
senão ritmos e conflitos: ou seja uma verdadeira dialética em obra”44.

Uma das conclusões provisórias que se pode extrair, é a de que a “dialética em obra” é a
essência da estética do sonho. Mas essa dialética não visa uma síntese. A “imprevisibilidade
histórica” habita a zona dos devires que a razão dominadora ignora. O “sonho”, para Glauber,
é a possibilidade de “redenção” de um confronto nesta zona da imprevisibilidade entre os
“revolucionários irracionais” (artistas que se aproximam da “anti-razão revolucionária”) e a
“cultura popular” (que passa ao largo do que se entende por folk; trata-se de uma resistência
intelectual/cultural de matrizes não-europeias atuantes contra uma “racionalidade paternalista”
burguesa e socialista-burocrática dos países do Norte). “O encontro dos revolucionários
desligados da razão burguesa com as estruturas mais significativas desta cultura popular será a
primeira configuração de um novo signo revolucionário”45.

Do encontro entre os revolucionários irracionais e a cultura popular surgem as “verdadeiras


imagens”46 presentes já em Terra em transe. De certa forma, o filme de 1967 é o grande
precursor da “Estética do sonho”, pois se entendemos o “sonho” que na acepção glauberiana
faz “enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda”47,
então podemos inferir que o manifesto de 1971 é também resultado de uma reformulação
crítica da primeira fase da cinematografia de seu autor, na qual Terra em transe foi, senão o
maior expoente (e esta é a nossa opinião), ao menos o seu ponto mais radical em termos
político e esteticamente revolucionários.

O onírico em Glauber é o antídoto contra uma realidade insuportável ditada pela razão
dominadora. É necessário dormirmos para não nos tornarmos cativos dela. Mas em Benjamin,
o sonho possui um caráter completamente diverso: torna-se imperioso despertar para fazer
desaparecer a “fantasmagoria” da vida cotidiana. Fantasmagoria esta presente em “imagens de
sonho”48: da rua, do intérieur49 burguês, das relações sociais, dos objetos, que incidem na

44
DIDI-HUBERMAN: 2014, p. 171.
45
ROCHA: 2004, p. 251. (Grifos nossos).
46
Ou seja, as imagens dialéticas.
47
ROCHA: 2004, p. 251.
48
Imagens essas que dão lugar – num contexto iminentemente revolucionário – às “imagens do desejo” no
encontro entre as “imagens ancestrais” e os novos materiais e processos técnicos. Mas como nos lembra Susan
Buck-Morss, “(...) uma imagem de sonho ainda não é uma imagem dialética, e desejo ainda não é conhecimento”.
A discussão sobre as “imagens do desejo” terão lugar ainda na presente sessão mais a frente. In: BUCK-MORSS,
38

própria concepção de sujeito, agora “privatizado”50. As imagens de sonho são projeções das
mercadorias. “O homem privado que, em seu escritório, presta contas à realidade, deseja ser
sustentado em suas ilusões pelo seu intérieur” 51.

Em sua estrutura mais superficial, a imagem de sonho possui dois “extremos”52: a utopia e o
cinismo. Dizendo de maneira sumária, as imagens da publicidade e de outros meios
expressivos de hoje exibem de maneira abertamente nua estes extremos. Benjamin foi buscar
nas gravuras de J.J. Grandville53 os artifícios que serviram de alicerce material e discursivo
para as imagens de sonho.

A falsa ilusão de emancipação dos sujeitos, efeito “fantasmático” das imagens de sonho, é na
verdade o “véu de Maya” que escamoteia a real emancipação: a da mercadoria como discurso,
tão poderoso quanto imperceptível. Ela se entranha de tal forma nos sujeitos que a separação
consuma-se definitivamente. Separação do sujeito de si mesmo e a aguda deterioração de sua
relação com os semelhantes. “A entronização da mercadoria e o esplendor das distrações que a
rodeiam, eis o tema secreto da arte de Grandville”54.

Grandville foi o artista que, segundo Benjamin, “modernizou” o Universo ao introduzir, em


seus desenhos, “pontes de ferro entre planetas”, o que revelou a “autoridade” da moda tanto
no cosmos quanto nos objetos e também ao introduzir o inorgânico nos corpos desenhados
(tanto celestiais quanto “vivos”), revelando seus extremos e fazendo entrever a “caduquice”
precoce da modernidade através mesmo da moda: ela própria faz “prescrever”55 o valor do rito

Susan. A dialética do olhar. Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG;
Chapecó: Argos, 2002.
49
Ou simplesmente “interior”. Mas tanto agora como em todo o decorrer desta dissertação, usaremos este termo
em francês. Nossa intenção em manter tal palavra nesta língua é a de salientar a representação de alguns dos
modos de vida sob o capitalismo avançado (a partir do século XIX) em sua dimensão morbidamente privada. No
texto benjaminiano, o termo intérieur proporciona um relevo preponderante que gostaríamos de continuar a
reproduzir aqui.
50
Termo aqui utilizado de maneira um tanto diversa em relação à imprensa e à opinião pública contemporâneas,
de saída, insuficiente para o debate ao qual nos propomos no presente trabalho.
51
BENJAMIN, Walter. Passagens. (Org. Willi Bolle). Belo Horizonte; São Paulo: Editora UFMG; Imprensa
Oficial, 2007, p. 59.
52
Os fenômenos devem ser analisados a exaustão até desvelarem seus extremos. Tal ideia foi retirada do livro
sobre o Trauerspiel alemão. Mas esta breve pincelada já nos parece suficiente para o que queremos demonstrar
por agora.
53
Pseudônimo de Jean Ignace Isidore Gérard (1803-1847), artista e caricaturista francês, contemporâneo de
Charles Baudelaire, Honoré de Balzac, Alexandre Dumas, Stendhal, Victor Hugo, Constantin Guys, etc. Ver
figuras 2 a 6 ao final deste capítulo.
54
BENJAMIN: 2007, pp. 57-58.
55
O uso do verbo “prescrever” aqui é usado em sua modalidade intransitiva, que possui o sentido de algo caduco,
relegado ao desuso; diferentemente da sua modalidade transitiva direta usada na citação a seguir. Esse “jogo
39

em que as mercadorias são diuturnamente glorificadas. “A moda prescreve o ritual segundo o


qual o fetiche, que é a mercadoria, deseja ser adorado. Grandville estende a autoridade da
moda sobre os objetos de uso diário tanto quanto sobre o cosmos (...) Ele acopla o corpo vivo
ao inorgânico. Face ao vivo, ela faz valer os direitos do cadáver”56.

Em ambos os exposés (apresentações) para O trabalho das passagens (Das Passagen-Werk)57,


tanto o de 193558 como o de 193959, – “trabalho” que nada mais é do que um enorme conjunto
de notas e materiais para um grande livro nunca escrito sobre a cidade de Paris, o grande
avatar do capitalismo em seu ponto mais avançado no século XIX, de modo a ser descrita
como a “capital do século XIX” por seu autor em alguns de seus escritos – tem na obra de
Grandville, um gravurista hoje praticamente esquecido, o exemplo mais didático do
monumental descompasso entre técnica e vida social que marcou a primeira metade do século
XIX como em nenhuma outra época, antes ou depois60. Curioso é que Grandville morreu
pouco antes da Revolução de 1848, época em que o uso dos novos materiais (sobretudo o
ferro) foi, gradualmente, passando por inovações técnico-conceituais, tanto na construção de
edificações, quanto no avanço e aperfeiçoamento dos meios de transporte de massa.

Portanto é notável, nesses e em outros escritos benjaminianos, a separação entre a evolução da


técnica e dos novos materiais e a insistente e crescente imposição das relações sociais
burguesas que se tornaram agudas na sociedade como um todo a partir de 1830, com o
coroamento de Luís Felipe I e que “conformaram” o uso da técnica para fins nefastos, estética
e socialmente. Num período de mais ou menos vinte anos, Luís Felipe aprofundou de maneira

verbal”, surgiu aqui de maneira involuntária a partir mesmo da leitura da tradução portuguesa publicada no
Brasil pela editora Autêntica. Tal jogo – que para nós parece pertinente, haja vista que “o que é prescrito para um
determinado contexto na modernidade prescreve-se rapidamente” – surgiu no decorrer da escrita da presente
dissertação e nada tem a ver com as verdadeiras intenções de Walter Benjamin muito menos com as de seu
tradutor para o português europeu.
56
BENJAMIN: 2007, p. 58. (Grifo nosso).
57
Publicado no Brasil apenas sob o título de Passagens em 2006 (ano de sua primeira edição pela Editora UFMG),
que contou com a organização do professor de língua e literatura alemã da USP, Willi Bolle.
58
“Paris, a capital do século XIX”, escrito em alemão.
59
“Paris, capital do século XIX”, escrito em francês para o Instituto de pesquisa social (à época exilado em Nova
York) sob influência das críticas de Theodor Adorno (cujo teor aparece em carta escrita em agosto de 1935, no
qual o rigor filosófico e filológico nos parece desproporcional) ao exposé de 1935 que será objeto de uma
brevíssima discussão logo a frente, ao tratarmos de maneira mais direta da imagem dialética. A exclusão da
preposição “a” de “Paris, a capital...” foi também uma imposição adorniana. Ver: ADORNO Theodor;
BENJAMIN, Walter. Correspondência 1928-1940 – Adorno-Benjamin. São Paulo: Editora Unesp: 2011, pp.
175-192.
60
“Um fato empírico incontestável causou uma profunda impressão em Benjamin: consistentemente, cada vez
que as inovações modernas apareciam na história, assumiam a forma de restituições históricas. Novas formas
‘citavam’ as velhas, fora de contexto” (BUCK-MORSS: 2002, p. 145).
40

radical a consolidação dos ideais liberais desta classe, que remontam às suas reivindicações
colocadas no palco das lutas ainda nas jornadas revolucionárias que se desenrolaram entre
1789 e a ascensão napoleônica.

Esta separação entre a vida em sociedade (sob o domínio do liberalismo burguês) e o


aperfeiçoamento da técnica direcionado para a melhoria da vida social, escamotearam por
muito tempo algumas possibilidades radicalmente inovadoras a ponto de Benjamin
considerar como um lapso estratégico por parte de Napoleão Bonaparte não ter percebido –
“inspirado” nas inovações tecnológicas – uma nova “natureza funcional do Estado”61 para o
devido domínio político da burguesia durante o Império. Este lapso, notado (na verdade, para
nós, “inventado”) por Walter Benjamin, deflagrou um “curto-circuito” entre a técnica e a vida
social e política que até hoje não foi debelado.

É deste curto-circuito que nascem as imagens de sonho: o “princípio formal do estilo


helênico” 62 da construção em ferro nesta época, por exemplo, obedecia a padrões que
remontavam ao Período Clássico da Grécia. Ou seja, para o pensador alemão, “a construção
desempenha o papel do subconsciente”63. Neste caso, o subconsciente da classe burguesa que
reivindicava para si a Antiguidade como herança cultural, projetada em imagens de sonho
materializadas em ferro e em outros materiais maleáveis que reproduziam o antigo como
presença, mas que na verdade exibiam de forma sumamente constrangedora o “sempre igual”.

Luís Felipe não foi – nem de longe – o que se poderia definir como um “estadista”. Sua estreita
visão de mundo não ultrapassava os limites do intérieur burguês. Sob o seu reinado, a vida
privada dominou todos os aspectos da vida francesa, num período de tempo que percorre os
anos entre as revoluções de 1830 e 1848; época marcada por uma forte censura e – nada
coincidentemente – pela ascensão da publicidade, pelo surgimento da grande imprensa e pelo
aparecimento de algumas outras modalidades de entretenimento como os “panoramas” e a
chamada “literatura panorâmica” que insuflou o surgimento dos primeiros “suplementos
literários”.

61
BENJAMIN: 2007, p. 40.
62
BENJAMIN: 2007, p. 40. Walter Benjamin atribuía a criação deste princípio formal ao teórico da arquitetura
alemão Karl Boetticher (1806-1889).
63
GIEDION apud BENJAMIN: 2007, p. 40.
41

Um período em que as relações interpessoais eram ditadas pela superficialidade e pelo


esgarçamento crescente dos vínculos entre as pessoas64 e a vida política era marcada pelo
patrimonialismo, ou seja, pela corrupção: palco perfeito para o surgimento da mercadoria
como prática, discurso e produção. A mercadoria desempenhou, a partir de então, duas
funções: se consolidou definitivamente como mediadora das relações e – ao mesmo tempo –
se tornava objeto das aspirações humanas. A aparência das mercadorias projetam as
fulgurantes imagens de sonho.

Breve excurso. A modernidade como transitoriedade

As passagens de Paris, grandes centros comerciais – e longínquos precursores dos


atuais shopping centers –, surgiram e se popularizaram no período compreendido
mais ou menos entre 1820 e 1835. Eles foram o protótipo do espírito “encarnado de
fora para dentro” da técnica; no caso das passagens, da construção em ferro e vidro.
Seu surgimento atendia uma demanda do crescimento da indústria têxtil que
buscava escoar sua produção através de grandes centros de compras 65 . A
arquitetura das passagens supria essa necessidade e ia além com grandes
vantagens para os comerciantes: grandes arcadas de ferro sustentavam tetos de
vidro que emulavam o ambiente urbano, já que deixavam a luz do sol penetrar, mas
sem as “desvantagens” próprias da natureza, como a chuva ou o vento por exemplo.

As passagens são signo da transitoriedade, mas que buscavam, em suas formas


inspiradas em antigas construções, algo de perene. Se por um lado, as passagens
eram um espaço de convivência fugaz, dedicado ao consumo, de outro a aparência
delas tentava resgatar algo de “eterno” ao imitar as formas antigas através do vidro e
do ferro principalmente.

No campo da arquitetura, o ferro e o aço manufaturados desenvolvidos para os


trilhos das estradas de ferro, seria, finalmente combinados ao vidro, para a
construção dos arranha-céus modernos. Mas as passagens, as primeiras

64
É no final deste período, já no entorno da Revolução de 1848, que surge O vermelho e o negro, romance de
Stendhal, cujo personagem principal, Julien Sorel, tornou-se “noviço” para galgar lugar nos grandes salões
franceses e lá tomar para si, a sua parte no butim da vida privatizada. Chega a ser vulgar dizer que tais relações
sociais perduram – através de novas e ainda mais diversas facetas – na vida social contemporânea.
65
“A primeira condição para o seu aparecimento (o aparecimento das passagens) é a conjuntura favorável do
comércio têxtil” (BENJAMIN: 2007, p. 39).
42

construções de ferro e vidro pareciam, ao invés, igrejas cristãs, com seus


imensos tetos de vidro, “pareciam cópias de bazares orientais”66.

Com seus longos e fechados corredores, as passagens eram como que imiscuídas
pelo “espírito” intérieur. Como se os grandes salões de festa e as casas burguesas
se emancipassem ao se tornarem espaço público através das passagens. Com
diversas dessas enormes construções que emulavam verdadeiras ruas, espalhadas
por boa parte de Paris, as passagens foram paulatinamente privatizando o espaço
urbano, assim como o comportamento dos cidadãos.

Da mesma forma que as passagens são signo da transitoriedade, a transitoriedade é


signo da modernidade, ao menos da modernidade em seu estágio ainda, digamos,
“pré-revolucionário”. Ela possui esse espírito deletério da moda, a “senhora Morte”. A
modernidade, como moda, é o “naco do inorgânico” que reafirma constantemente
seu mórbido espaço na vida social, e cujo passado imediatamente anterior
prescreve-se muito rapidamente. Dessa forma, uma das facetas mais evidentes da
“condição moderna” é a do esquecimento imediato do passado mais recente.
Charles Baudelaire foi o primeiro artista a perceber tal situação – aparentemente
desesperadora para um poeta com fortes pretensões a pertencer ao panteão dos
eternos. Mas o engenho de Baudelaire foi descobrir no novo a morte, como atesta o
longo poema “A viagem”, o último da seção “A morte” de As flores do mal. E dessa
forma, Baudelaire “eterniza-se”, sendo o primeiro grande artista a denunciar a
caduquice sempre precoce da modernidade. Nas últimas estrofes lemos o seguinte:

Ó Morte, velho capitão, é tempo! Às velas!


Este país enfara, ó Morte! Para frente!
Se o mar e o céu recobre o luto das procelas,
Em nossos corações brilha uma chama ardente!

Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!


Queremos, tal o cérebro nos arde em fogo,
Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?
Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!67

Baudelaire não era nenhum revolucionário. Quando muito, era apenas um revoltado:
segundo Benjamin, ele era impulsionado pela “metafísica do provocador 68 e

66
BUCK-MORSS: 2002, p.146.
67
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. (Trad. Ivan Junqueira). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 423.
43

frequentava a boemia parisiense de sua época, um “caldo” múltiplo que abrigava


desde os “conspiradores profissionais” até figuras como Napoleão III que tramou seu
Golpe de Estado de 1851 em tabernas durante as noites de Paris 69 . Mas ao
equiparar o novo com a morte, Baudelaire não apenas encontrou a sua própria
forma de eternizar-se na fugacidade da modernidade como materializou, talvez
involuntariamente, um procedimento poético que nos obriga – de maneira violenta –
a encarar o novo com “outros olhos”. O novo – transmutado poeticamente em morte
– ressurge com a potência de um novo limiar a ser explorado. É neste momento que
as imagens de sonho dão lugar às “imagens de desejo” e uma outra face da
modernidade é subitamente revelada, nos afastando definitivamente da
“inorganicidade” da moda. A morte agora não é mais o signo da anodinia da moda,
mas o significado de algo ainda ignorado e que pode parecer ser qualquer coisa,
exceto evocar uma paralisia completa.

II.2.2. Dialética “suspensa”

Com o decorrer do século XIX, principalmente a partir de sua segunda metade, o embate
entre a “expressividade moderna” (representada pelos novos materiais e pelas novas técnicas a
eles associados) e o “imaginário da antiguidade” (basicamente o imaginário eminentemente
conservador que a classe burguesa tem de si mesma) começou a ficar mais equilibrado. O
conservadorismo da “sensibilidade” burguesa teve de recuar sob a enorme e inevitável pressão
da evolução técnica. O estilo Jugendstil70 – por conta de seu exagero e artificialidade – é o
primeiro grande passo para o divórcio entre a técnica e as formas estéticas inspiradas na
antiguidade, pois ele atingiu o ápice da convivência conflituosa entre ambas.

O Jugendstil é também o apogeu do conservadorismo estético ainda dominante e o grande


marco da ruptura entre o “construtor e o decorador, entre a École Polytechnique e a École de

68
Tal condição aproximava o poeta dos chamados “conspiradores profissionais”, pois para ambos, a revolta e
apenas ela, é o motor de todas as ações políticas. São célebres as frases de Baudelaire em que ele diz que “De toda
a política só compreendo uma coisa: a revolta (...) Todos temos no sangue espírito republicano, tal como temos a
sífilis nos ossos; estamos infectados de democracia e sífilis” (BAUDELAIRE apud BENJAMIN: 2015, p. 15).
69
De acordo com Walter Benjamin in Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, e com Karl
Marx in: O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
70
Estilo arquitetônico, também aplicado ao design, que faz uso excessivo de formas clássicas, cuja aparência é
flagrantemente artificial: uma espécie de “rococó moderno”. O Jugendstil foi predominante na Alemanha da
segunda metade do século XIX. (Ver figuras 11 a 15 ao final do presente capítulo).
44

Beaux-Arts”71. A engenharia começa a se sobrepor sobre as “belas-artes” que aos poucos


começam a perder seu lugar sagrado na “ordem estética” diante de um novo século que se
anuncia. Dessa forma, desvelada a artificialidade das formas, a sobreposição entre as imagens
modernas e antigas como que se “transmutam”. Não mais o subconsciente estético da
burguesia se sobrepõe ao imaginário (ou consciência do) coletivo, mas diante do realmente
novo, o imaginário coletivo descoloniza-se e busca, para além da Antiguidade, ligada
sobretudo ao helenismo, imagens ainda mais “ancestrais” que servem como aporte de signos
para produzir o que haveria de realmente novo, para formar uma visão do que pode vir a ser a
“pós-história” (as possibilidades do porvir no fluxo do devir histórico). As ferrovias e os novos
meios de transporte, a fotografia – principalmente a partir de Nadar72 – e tantos outros
engenhos que revelam uma sensibilidade estética inteiramente nova, destituída das falsidades
de uma “nova” Antiguidade fornecem um terreno fértil para uma nova “consciência do
coletivo”73.

E essa consciência coletiva é abastecida por imagens que – de acordo com Benjamin – vem das
“imagens de desejo” que remontam a uma “sociedade sem classes”74. Nossas imagens de
desejo são depositárias desses signos ancestrais que persistem em estar entre nós e que
remontam a uma “história primeva”. A história primeva nada tem a ver com a Antiguidade:
ela é anterior ao seu advento. Ou melhor: ela habita uma outra dimensão histórica marcada
pelo devir e não pela cronologia linear. Trata-se do “mundo arcaico dos símbolos da
mitologia”75, arcabouço de imagens que enriquecem a consciência do coletivo. “Estas imagens
são imagens do desejo e nelas o coletivo procura tanto superar quanto transfigurar as
imperfeições do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção”76.

71
BENJAMIN: 2007, p. 40.
72
Gaspard-Félix Tournachon ou simplesmente Félix Nadar (1820-1910) foi o primeiro fotografo a explorar de
maneira radical as possibilidades criativas do dispositivo fotográfico para além do simplesmente figurativo
(principalmente através da manipulação das objetivas). Em sua época, os fotógrafos, por motivos estéticos,
digamos, “preguiçosos”, ou mesmo mercadológicos, se limitavam apenas a “tomar o lugar” dos pintores-
retratistas ao produzirem uma verdadeira indústria do retrato fotográfico. Nadar, munido de sua câmera, tirava
fotos a bordo de balões, nas galerias de esgotos de Paris e em outras situações até então inimagináveis. Mas
também era retratista como não poderia deixar de ser em seu tempo: retratou Baudelaire e tantas outras grandes
figuras da França de sua época.
73
BENJAMIN: 2007, p. 41.
74
BENJAMIN: 2007, p. 48.
75
BENJAMIN, 2007, p. 505.
76
BENJAMIN: 2007, p. 41.
45

Tanto as imagens do desejo quanto o seu desdobramento posterior – as imagens dialéticas –


foram alvos de duras críticas de Theodor Adorno. O filósofo, imbuído de um rigor
intransigente em carta enviada a Benjamin dos Estados Unidos em agosto de 1935, executou
uma crítica, de certa forma, bastante “curiosa” para nós, leitores de Walter Benjamin. Ele
associou, por exemplo, a consciência do coletivo a Jung77, persona non grata pelos intelectuais
judeus, pois este foi injustamente – e por bastante tempo – associado ao nazismo. Sua crítica
ataca diretamente o que ele chamou de “psicologismo burguês” contido nas formulações
como as da consciência do coletivo; a “imagem da sociedade sem classes” 78 seria
completamente “adialética”.

Reproduzimos a seguir um considerável trecho da carta para oferecer ao leitor um panorama


da crítica de Adorno que cobre toda a nossa abordagem das ideias benjaminianas até aqui.
Como dito acima, consideramos a carta excessivamente rigorosa, mas ao mesmo tempo
esclarecedora em vários pontos. Outra citação, que servirá de contraponto a Adorno, será o
comentário de Susan Buck-Morss sobre os mesmos temas mais a frente.

De acordo com sua concepção imanente da imagem dialética (com a qual, para
empregar um termo positivo, eu contrastaria com seu conceito anterior de modelo),
você constrói a relação entre o mais velho e o mais novo, a qual já era central no
primeiro esboço, em termos de uma referencia utópica à “sociedade sem classes”. O
arcaico torna-se com isso uma adição complementar ao novo, em vez de ser ele
próprio “o mais novo”, e portanto é desdialetizado. Ao mesmo tempo, porém, e de
modo igualmente adialético, a imagem da ausência de classes remonta ao mito na
medida em que é conjurada simplesmente a partir da arkhéi, em vez de tornar-se
propriamente transparente como fantasmagoria do inferno. Assim, a categoria na
qual o arcaico se funde ao moderno me parece bem menos uma época de ouro do
que uma catástrofe. Notei certa vez que o passado recente sempre se apresenta como
se destruído por catástrofes. Hic et nunc, diria eu: mas isso como história primeva. E
nesse ponto percebo estar de acordo com a passagem mais audaz de seu livro sobre o
drama barroco79.

“Desdialetizado”, “adialético” são temos que “enquadram” a imagem dialética de forma a


excluí-la do rol do pensamento dialético. E isso vindo de um dos maiores reformuladores
desta “tradição” no século XX, que tem em G.W.F. Hegel o seu grande messias. Isso nos
parece mais do que suficiente para tirar tal conceito benjaminiano do das confusões em que o

77
“(...) Daí então ser invocada a consciência coletiva, mas receio que na presente versão (o exposé de 1935) esse
conceito não se distinga de Jung” (ADORNO & BENJAMIN: 2012, p. 179).
78
ADORNO & BENJAMIN: 2012, p. 179
79
ADORNO & BENJAMIN: 2012, pp. 178-179.
46

próprio termo nos oferece. A imagem dialética não visa uma síntese, portanto ela não é uma
dialética stricto sensu.

Em outros pontos dessa extensa carta, Adorno faz também referencias a Freud, cuja
importância foi crucial para Benjamin em vários de seus escritos, principalmente o Freud de
Além do princípio do prazer (1920), leitura fundamental para a construção de textos como
“Sobre alguns temas em Baudelaire”, “O narrador”, “Experiência e pobreza” e tantos outros
escritos, direta ou indiretamente. Ao falar em Freud, Adorno automaticamente “exclui” Jung
de forma a encurralá-lo, desclassifica-lo. Mas devemos sempre lembrar que este rigor
filosófico recai sobre o texto de um livre-pensador (ou um “homem de letras” como já disse
Hannah Arendt certa feita) e não de um filósofo de “cepa” mais clássica em termos de
formação e estilo. Desta forma, a “ranhetice”80 característica de Adorno viu no exposé de 1935
vários elementos para aflorar-se. Mas se essa crítica algo mal-humorada não foi útil a
Benjamin (e é o que nos aparece claramente), é útil ao leitor que vê várias de suas dúvidas
encontradas no texto benjaminiano sendo expostas de forma até ostensiva nessa troca de
cartas. Lacunas essas que – na verdade – existiam tão somente por causa da a-sistematização
dos materiais (os konvoluts) na década de 1930, mas que hoje, graças à organização editorial
do Passagen-Werk em vários países e línguas, eles dão apoio consistente a essas ideias
aparentemente extravagantes apresentadas no exposé.

Susan Buck-Morss entende que esta crítica de Adorno fora injusta, haja vista o extenso
material já escrito pelo próprio Benjamin à época (mas que jamais foi sistematizado como
sonhado pelo filósofo berlinense e que demorou décadas para receber uma primeira reunião
em livro) e que esclareceria – sem maiores dificuldades – várias inconsistências apontadas por
Adorno.

Tendo em vista o elusivo vocabulário da exposé, não surpreende que Adorno não se
convencesse. No entanto, o material do Passagen-Werk apoia a pretensão de
Benjamin. As imagens do século XIX como Inferno figuram profusamente (...) Seus
desacordos (de Adorno em relação ao exposé), na realidade limitavam-se à avaliação
do desejo utópico coletivo (e daí ao grau em que a cultura de massas podia ser
redimida). Benjamin afirmava seu desejo como um momento transitório em um
processo cultural81.

80
Ranhetice que atingiu seu ápice nos aforismos que compõem Minima moralia (1951) que muitas das vezes
beiram o engraçado. Parte de tal livro parece ter sido escrito pelos humoristas do Monty Python, dado um certo
quê de “nonsense” de algumas de suas proposições.
81
BUCK-MORSS: 2002, p.157.
47

Os problemas apontados por Adorno no exposé, descritas de forma detalhada e


“filosoficamente correta”, dão-nos a impressão de que o filósofo frankfurtiano possuía uma
profunda resistência ou mesmo uma renitente incapacidade em conseguir enxergar na cultura
de massas algo que fomentasse qualquer tipo de emancipação coletiva. E a emancipação
coletiva das massas sempre foi a substância, ou melhor, o resultado proporcionado pelas
imagens dialéticas. É desse olhar, imbuído de uma consciência partilhada, que projeta na
realidade material de seu tempo os elementos das imagens de sonho compostas por signos
ancestrais, ou seja, daquilo que é intermitente e despido de temporalidade (e que nada tem a
ver com a antiguidade ou com um psicologismo vulgar) é que surge a “dialética em suspensão”
(ou o que chamamos de dialética “suspensa”): as imagens dialéticas “em ato”.

Apesar do contraponto de Susan Buck-Morss, demonstrando em poucas linhas que Theodor


Adorno não estava – e parecia nem querer estar – preparado para admitir a faceta “redentora”
da cultura de massas, ele nos oferece indiretamente uma aporia. Qual seja: como reconhecer e,
principalmente, como conceber uma imagem dialética; como criar e apreender esta dialética
suspensa? Tarefa nada fácil, pois sua ocorrência é rara e depende de um enorme esforço (a
intentio82) daquele que se propõe a ver as “verdadeiras imagens”. Por isso, propomos a
seguinte analogia: a da vida social como um universo com suas dobras. E quando falamos em
dobras logo nos lembramos das mônadas. E se apreendermos as imagens dialéticas como
mônadas temos uma bela pista para entendermos a sua recorrência em nossa realidade.

Maurício Lissovsky nos diz que “O conceito de mônada é, sem dúvida, a melhor expressão do
sentido que atribui ao fragmento”83; neste sentido cada fragmento uma liga-se a outras
realidades, sociais ou não. Seu isolamento, sua opacidade, a despeito de tornar incomunicáveis
os mais diversos aspectos da vida social, estabelece uma outra natureza de comunicação: as
das “afinidades secretas” entre os mais diversos mundos. Uma “história” eminentemente
“descontínua” – representada pelas dialéticas em suspensão – que se redime com o
“contingente”, aquela “sobra” de que nos fala Hegel em suas Lições sobre a filosofia da história
e que deve ser “dialetizada” até o seu completo desaparecimento.

82
Ou apenas “intenção”, mas tomado aqui de maneira forte, poética e politicamente.
83
LISSOVSKY: 1995, p. 92.
48

Dessa forma, a mônada possui as características de um “acontecimento”84. Para Lissovsky,


“Nas teses ‘Sobre o conceito de história’ (...) aquilo que pode ser uma mônada é um
acontecimento (...) De que modo aproximam-se mônada e acontecimento? Em outras palavras,
como pensar aqui o acontecimento?”85 Aqui, ele mesmo responde usando-se da ideia do “salto
do tigre”:

No salto do tigre sobre a presa do acontecimento é imobilizado, “cristaliza-se


enquanto mônada”: uma “configuração saturada de tensões”. Ao contrário do
procedimento historicista “aditivo”, que acumula a “massa de fatos” com a qual
preenche um tempo “vazio e homogêneo” – e que apenas passa –, Benjamin
persegue no “objeto histórico” a mônada, reconhecendo “nessa estrutura (...) o sinal
de uma imobilização messiânica dos acontecimentos86.

Temos assim não uma historiografia de natureza “perfectiva” no sentido de uma série de
sínteses que terá como destino inexorável o “bem absoluto”, mas uma história “forjada” pela
imagem, que em muito se distancia do historicismo, aproximando-se do devir. No contexto
benjaminiano, os termos “história” e “historicismo” são problematizados até o seu quase
desaparecimento: a imagem dialética como acontecimento é um marco deste estado de coisas.
Para François Zourabichvili, “O acontecimento, portanto, põe em crise a ideia de história. O
que acontece, enquanto acontece e rompe com o passado, não pertence à história e não poderia
ser explicado por ela”87. O trecho em destaque poderia perfeitamente figurar em algum escrito
de Walter Benjamin.

A imagem dialética é uma mônada que, tal como um acontecimento, tem a sua possibilidade
de criação ligada diretamente à iniciativa humana. A imagem dialética é multidimensional:
interliga, através de imagens arcaicas, elementos apartados entre si no tempo, no espaço, na
cultura, na política e em outros campos da vida. Uma visada “positivista”, unidimensional,
não consegue conceber essas afinidades multidimensionais da realidade mais imanente. É por
isso que a imagem dialética é – na verdade – uma dialética suspensa e imóvel. A possibilidade
de síntese de uma imagem dialética é o seu completo desaparecimento e faz valer a famigerada

84
Para François Zourabichvili (2004, p. 7), “de um lado, ele (o acontecimento) é o duplo diferenciante das
significações; de outro, das coisas. Daí a aplicação do par virtual-atual (e, em menor medida, do par problema-
solução) ao conceito de acontecimento. Daí também os dois caminhos aos quais leva o primado conferido ao
acontecimento: teoria do signo e do sentido, teoria do devir”.
85
LISSOVSKY: 1995, p.93.
86
LISSOVSKY: 1995, p.93.
87
ZOURABICHVILI, François. Deleuze: uma filosofia do acontecimento. São Paulo: 34, 2016, p. 48. (Grifos
nossos).
49

“teologia da teleologia”. A dialética em suspensão é a imagem de um universo social


multidimensional que revela as mais impensáveis afinidades.

E é disso que estamos falando ao falarmos de Terra em transe e da obra de seu autor, Glauber
Rocha.

II.2.3. Despertar

Consequência imediata da suspensão da dialética pelas imagens é o despertar para o universo


social, que surge “emoldurado”, assim como acontece na obra teatral de Bertolt Brecht, com
sua prolífica obra, tão rica em peças e personagens que promovem uma constante tensão entre
o texto, música e “gesto teatral” (que para nós também é imagem) encenado pelos atores. Em
“Que é o teatro épico: um estudo sobre Brecht” (1931), Benjamin dá as pistas do que seria um
teatro que engaja o espectador na entrevisão das imagens dialéticas: isto é o que ele aqui
nomeia por “épico”, pois trata-se de uma arte que se despoja das imagens e dos gestos do
imaginário dominante de qualquer época. E o mais interessante: o teatro épico está em
perfeita consonância com o que há de mais avançado no mundo da técnica de seu tempo: “As
formas do teatro épico correspondem às novas formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está
situado no ponto mais alto da técnica”88. Ou seja, o teatro épico (que também pode ser lido
aqui como uma “arte épica”) supera o curto-circuito entre o atual estado-da-arte da técnica e
um certo “imaginário reacionário” (entre as imagens e procedimentos modernos e antigos),
promovendo a sobreposição realmente produtiva: entre a realidade material da modernidade
e as imagens de sonho.

“A condição descoberta pelo teatro épico é a dialética em estado de repouso (...) podemos
dizer que no teatro épico a matriz da dialética não é a sequência contraditória das palavras e
ações, mas o próprio gesto (dos atores)”89. Poderíamos estender esta fórmula não só para o
teatro épico, como para todas as vanguardas artísticas a partir do modernismo e, em especial
para nós, para o cinema. Certa feita, já foi dito que o cinema é uma técnica e uma arte
estritamente modernista (assim como a fotografia). Por isso, falar em “cinema épico” é quase

88
BENJAMIN, Walter. Que é teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte
e política. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 83.
89
BENJAMIN: 1985, p. 89.
50

incorrer num grosseiro pleonasmo se aprofundarmos o nível da discussão. É certo que as


imagens técnicas sofreram e sofrem deturpações que tentam inscrever nelas todos os tipos de
emulações de outras “belas-artes” (inclusive ao se tentar incluir o cinema entre elas, como o
“primo-pobre” das belas-artes, a “sétima arte”, que vem depois de outras seis, as quais não nos
ocorre enumerar quais são aqui). Desde Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, e no campo teatral,
Vsevolod Meyerhold, as artes – através da montagem dialética – buscam cumprir a tarefa de
se despirem do que há de mais deletério na tradição ao tentarem promover a emancipação do
coletivo através do imaginário. Mas a montagem dialética estava a serviço de um certo
“intelectualismo” (exceto, talvez, Vertov) que se “sobre-determinava” ao potencial épico da
visão do espectador sobre o que era projetado e encenado. O cinema intelectual de Eisenstein
fluía no espaço-tempo numa sequencia, não de cenas, mas da mise-en-scène de teses, antíteses
e sínteses que tinham propósitos muito fechados, sem espaço para muitas interpretações por
parte do espectador, pois eram filmes “sintéticos”. E se o teatro épico é um teatro (ou uma
arte) “cheio de especialistas, do mesmo modo que um estádio esportivo está cheio de
especialistas”90, cabe aqui dizer – sem nenhum juízo de valor – que o cinema de montagem
dialético-intelectual da Rússia pós-revolucionária estava a serviço de ideologias (comunista,
socialista, leninista, marxista, etc.). E a figura do espectador-especialista não deveria ter sido
bem vista neste contexto.

Mas ainda é um tanto descabida qualquer tentativa de comparar a o cinema de montagem


russo à Hollywood em termos de cooptação ideológica. Apesar de fechado em seus propósitos,
o cinema russo produzido até pouco depois da morte de Lênin, apelava para o repertório
político e estético do espectador e para uma linguagem absolutamente avessa aos ditames
estéticos ocidentais e liberais. Pode-se, isso sim, comparar o chamado “realismo soviético”
(que, sob Stálin, afetou toda uma gama de manifestações artísticas e que era o exato oposto
das vanguardas soviéticas da época de Lênin) com o cinema norte-americano no sentido de
promoverem o “anestesiamento” das massas; claro, com as exceções de praxe, que no caso de
Hollywood foram muitas e bastante marcantes, como muitos de nós conhecemos bem.

Mas fazer uma investigação mais detida sobre os cinemas sem a sobre-determinação, seja de
qual ideologia for, para fazer aflorar sua natureza imanentemente épica, ou seja, o cinema da
“dialética em estado de repouso” em que o trabalho do espectador é, se não o de um

90
BENJAMIN: 1985, p. 81.
51

especialista, o daquele imbuído da intentio que subverte e anula quaisquer ideologias é uma
tarefa extensa demais. Trata-se de um trabalho minucioso e excessivamente longo para o
escopo de uma dissertação. Mas podemos sinalizar que o chamado “cinema moderno” que
teve seu apogeu na década de 1960, marcado pelos mais variados “cinemas novos” (e dentre os
principais, o brasileiro) é nesse particular, um cinema cujos meios expressivos já haviam
conquistado certa maturidade, o que permitia uma menor “instrumentalização” do
dispositivo cinematográfico, a serviço do constante despertar dos espectadores. Godard,
Pasolini, Resnais, Hirzsman, Glauber e tantos outros foram artífices de uma cinematografia
que desafiava todas as sínteses em nome de um outro movimento que era da ordem do devir e
não da ciência histórica.

Glauber Rocha reivindicava para si a autoria de uma arte épica. Ele dizia que seus filmes eram
os únicos filmes realmente épicos no contexto do Cinema novo. E visto o que acaba de ser por
nós discorrido, trata-se de uma afirmação da maior importância. Não por acaso, Glauber
tinha como influência autores e diretores de teatro: além de Brecht, Oswald de Andrade,
Meyerhold, Augusto Boal, dentre outros. É flagrante o intenso trabalho com o texto e com o
gesto teatral de seus personagens que nos remetem a “outras paragens” que não exatamente a
do nosso tempo e espaço mais imediato e unidimensional.

Neste trabalho de investigação poética e política do universo social brasileiro e latino-


americano, Glauber entreviu estruturas na vida social, na história e na política de nosso país e
de nosso subcontinente que em muito escapa à compreensão (imediata ou não) através de um
repertório filosófico e artístico importados do que ainda era chamado de “Primeiro Mundo”.
Seu intento – amplamente conhecido – era o de fazer cada vez mais cinema, ao menos o que
entendia por um verdadeiro cinema. Seu rompimento com Jean-Luc Godard, em 1969, foi
ocasionado por uma veleidade do cineasta franco-suíço que queria “acabar com o cinema”
(talvez uma formulação infeliz, haja vista que o que ele mais fez dali por diante foi justamente
cinema...).

Glauber acreditava – afora as suas reservas, a sua “descrença” como foi dito numa nota do
capítulo anterior – no cinema como a redenção das massas ao afirmar que o Brasil necessitava
de pelo menos “trezentos cineastas para fazerem seiscentos filmes por ano” em resposta a
Godard. Esta urgência – que não encontrou eco em Godard e em nenhum outro cineasta
brasileiro ou estrangeiro – era resultado da consciência desta incompreensão generalizada em
52

relação às massas famintas, expressa por seus manifestos, mas que, ao mesmo tempo, o
lançava “no coração do seu tempo”, promovendo um cinema em que o gesto e o texto de sua
mise-en-scène cravavam uma mônada sobre o universo do social. Ou, usando uma outra figura
de linguagem, um freio de emergência de um trem desgovernado, que aqui chamamos de
“Transe” (agora com um “T” maiúsculo). E é sobre o Transe (ou sobre o que entendemos aqui
por “desenho do Transe”) que vamos discorrer agora.
53
54
55
56

III. Desenho do Transe e seus traços

Eu procuro me aniquilar como homem em função de um destino histórico.

Glauber Rocha

O saber histórico jorra de fontes inexauríveis, sempre de novo e cada vez mais; o que é
estrangeiro e desconexo entre si se aglomera; a memória abre todas as suas portas e,
no entanto, ainda não está suficientemente aberta.

Friedrich Nietzsche
57

A “razão dominadora” afeta diretamente as paixões dos sujeitos/personagens, conformando-os de tal


forma, que o que se chama neste capítulo de “desenho do Transe” – uma entidade autônoma – se
impõe: os corpos “se desencarnam” dando lugar a traços barrocos que conformam a trama da
estória: um “vagão solto” em direção ao desconhecido. Como dar fim à errância deste vagão? Eis
onde a potência das imagens dialéticas se interpõe.

III.1. Desgoverno das imagens


Nelson Rodrigues, quase em tom de anedota, relatou numa crônica sua publicada no jornal O
Globo, em 1967, à época do lançamento de Terra em transe, a seguinte conversa ao telefone
com seu amigo Hélio Peregrino:

De repente, no telefone, com o Hélio Peregrino houve o berro simultâneo: –


“Genial!” (...) Terra em transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações
hediondas somos nós. Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus
lugares e uma impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera o vômito
triunfal. Os sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de
arte, para ter sentido no Brasil, precisa ser esta golfada hedionda.91

Tal acontecimento na vida do grande dramaturgo, escritor e jornalista brasileiro pode passar
desapercebido, dada a sua intempestividade costumeira da qual parecia se orgulhar, e que
fazia parte de sua persona pública (e privada) a ponto de se definir como um “reacionário”
por diversas vezes. (Muito embora suas peças e seus demais escritos desmintam cabalmente
esta auto-afirmativa). A má impressão que houvera entre os amigos quando do primeiro
contato com o filme foi logo dissipado, dando lugar a uma espécie de entusiasmo visionário: a
“ruminação” simultânea ao telefone os colocaram numa sintonia inédita, original, com a
estética e a ética glauberiana “maquinada” para a fita finalmente lançada no Brasil em 1967. O
contato de Nelson Rodrigues e Hélio Peregrino com o segundo longa-metragem de Glauber
Rocha foi, sem dúvida, da ordem do despertar.

No trecho citado acima pululam imagens díspares e cruéis: “sujeitos retorcidos em danações
hediondas”, “impressão de Manchete”, “vômito triunfal” e “golfada hedionda.” A remissão a
Os sertões é preciosa: esse “Brasil vomitado” surge como um conjunto de afinidades que unem
o filme e o livro, separados que são por um largo período de tempo. Em apenas um lance,
Nelson conseguiu revelar – no nosso entender – as qualidades do historiador ao qual Walter
Benjamin faz referencia em várias ocasiões: sua capacidade para criar correspondências e

91
RODRIGUES: 1994, p. 230.
58

imagens originais (e dialéticas em sua imobilidade) que desvendam uma realidade surreal; a
súbita consciência de um saber que pairava inconscientemente por força da razão da ciência
histórica: linear, abstrata, causal... No filme de Glauber Rocha, a luta das paixões e a
despersonalização dos sujeitos causados por esta luta, são a substância do Transe. Eis a
“danação” a que seus personagens estão sujeitados, do inicio ao fim do longa-metragem.

III.1.1. As astúcias do Transe

Algo paira sobre Eldorado. No inicio e no fim do filme, tomadas aéreas relativamente longas
sobrevoam o mar brilhante como que tomado por pedrinhas cintilantes e prismáticas que
refletem o forte sol tropical a pino; o plano vai revelando o continente tomado por morros e
por uma natureza ostensiva. A languidez do plano inicial de Terra em transe – que sob essa
perspectiva nos mostra um lugar gracioso que é sempre promessa de felicidade e de fartura – é
quebrado de forma radical pelos planos seguintes, bastante tensos, ruidosos e entrecortados. A
deflagração de um Golpe de Estado é o ato final de um drama trágico que é encenado nesse
continente. O que se segue é uma estória em flashback que explica o desfecho dramático e
mortal para o seu personagem principal – Paulo Martins – que se imola “heroicamente”.

Depois de terminados os planos aéreos, paira sobre Eldorado não mais o “olho” da câmera,
mas o “olho” do desenrolar racional da história. O olho da história observa, impoluta em sua
pureza, as lutas, as palavras e os corpos em franca decomposição espiritual e material. Os
personagens do filme de Glauber Rocha se despem (com algumas exceções) de sua
humanidade, como se fossem “encarnados” por algo que os tornam verdadeiros autômatos.
Absolutamente instáveis, os personagens são levados a extremos, guiados por uma espécie de
“jogo” dos quais não fazem ideia de quais são as regras, mas que configuram uma realidade
que os levará a um desfecho desconhecido. Tomados pelas “paixões”, os personagens entram
em transe. Eis o “desenho do Transe”.

E que desenho é esse que é traçado fazendo uso das tintas das paixões humanas? Estamos
certos de que a sua substância é a mesma da racionalidade que Glauber descreve em “Estética
do sonho”: a razão dominadora; como foi dito no início do capítulo anterior, mas em outras
palavras, é aquela mesma racionalidade que submete os povos e suas aspirações a direções
completamente díspares em relação às promessas de, com o tempo, “consertar” as mazelas da
59

vida social. Ou seja, um “tempo teleológico” em que o “supremo bem” reinará igualmente no
coração e na mente dos homens.

Tal como um fantasma, aqui surge Hegel. Apesar de o historicismo ir contra a natureza de
nossa dissertação, o filósofo prussiano nos oferece um instrumental teórico bastante
interessante e inescapável (com as ressalvas de praxe e com as torções que ofereceremos, no
devido momento, de suas concepções) que corrobora com alguns dos pontos a serem
discutidos nesta seção. A filosofia da história hegeliana é composta sobretudo pela concepção
de “Ideia”. Na verdade não se trata de um conceito original, haja vista que ela pode ser
encontrada em Espinosa sob um outro ponto de vista. O panteísmo espinosano nos ensina
que a Ideia aplicada ao espaço é Deus92. Já o historicismo de Hegel pontua que a Ideia aplicada
ao tempo (o Espírito) é que é Deus93. De certa forma, o filosofia da história hegeliana é uma
espécie muito particular de teologia: “A Ideia é a natureza da vontade de Deus e como esta
Ideia só se torna verdadeiramente ela mesma na/e através da História, a História, como
caracterizou muito bem um escritor moderno é a ‘autobiografia de Deus’”94. A razão (ou a
Ideia) associada a uma consciência plena e ciente da superação de suas paixões é a realização
do divino. Portanto, para Hegel – diferentemente de Espinosa – Deus possui uma consciência
de si. E possui Espírito aquele que é tocado pela luz da Ideia de seu tempo no mundo
(Weltgeist95), ou seja, por Deus.

Por isso, a Ideia deve ser imaculada em sua pureza, pois, se Deus é bom, a história caminha
para um bom termo sempre, numa progressão lógica e perfectiva. Cada época, cada Estado e
cada indivíduo (que Hegel concebe como pequenos Estados) contribuem progressivamente
para o supremo bem da Ideia que culminará com o “fim da história”: ou seja, a liberdade
universal. Esses sujeitos e estes Estados que corroboram para a progressão histórica da Ideia
são aqueles que possuem (ou que estão próximos de possuir) a consciência de si, ou seja, que
superaram as lutas de suas paixões.

Mas as paixões nada mais são do que a Ideia “desorganizada” subjetivamente “(...) nada
grandioso no mundo foi realizado sem paixão”96. E, de acordo com Hegel, cada sujeito possui

92
Deus sive natura (Deus, ou seja, natureza).
93
Deus sive historia (Deus, ou seja, história).
94
Da “Introdução” de Robert Hartman a HEGEL: 2008, p. 21.
95
“Le sujet ultime de l’histoire est ce que Hegel appelle l’esprit universel ou l’esprit du monde” (MARCUSE: 1968,
p. 277).
96
HEGEL: 2008, p. 69.
60

duas espécies de paixões: uma paixão “moral” e uma outra, que possui uma aspiração
“universal”. O sujeito deve superar este conflito para atingir a consciência de si com o triunfo
da paixão de caráter universal sobre a de caráter moral. Dizendo de forma muito superficial,
as “paixões” humanas estão dispostas em camadas: numa camada mais externa, a paixão
amesquinhada da moralidade e das necessidades puramente egoístas. Numa camada mais
interna – como se fosse um magma em convulsão sempre pronto para subir à tona – a paixão
universal que aspira à Ideia. Tratam-se de duas forças, uma de caráter endógeno que força o
rompimento da camada superior e outra, de caráter exógeno, que resiste às invectivas do
universalismo no âmbito da subjetividade97.

Essas lutas se dão no âmbito particular do sujeito e no âmbito de suas relações com outrem e
mesmo entre os Estados. Isso forma um amálgama intrincado: alguns, de acordo com as suas
paixões, se aproximam mais da consciência de si do que outros, e poucos – esses raríssimos:
exatamente os chamados “sujeitos históricos” – possuem a “onisciência” do Espírito. “A
vontade do indivíduo é livre quando ele pode postular de maneira absoluta e abstrata em si e
para si aquilo que deseja”98. Eles são a própria encarnação da Ideia, de seu Weltgeist. Os outros
(pessoas e Estados), em graus distintos, possuem mais ou menos “universalidade”, mas estão a
distâncias variadas da consciência de si. É dessa luta entre as subjetividades é que surge a
chamada “astúcia da razão”. A Ideia é nutrida pelas lutas entre as paixões humanas. E como a
história – para Hegel – nada mais é do que sequencias intermináveis de relações dialéticas,
com suas sínteses cada vez mais perfectíveis, a Ideia se “aproveita” dessas sínteses que brotam
das lutas, mas sem nunca se envolver nelas. Segundo Hegel, a “Ideia paga o tributo da
existência e da transitoriedade, não de si mesma, mas das paixões dos indivíduos”99. Ou seja, a
Ideia é indiferente às realizações humanas em particular. Aqui e ali elas podem ocorrer, mas o
caminho único e intergiversável da Ideia rumo à perfeição não prevê a felicidade dos
indivíduos. Estes devem trabalhar em prol do universalismo, mas não necessariamente devem
“colher os frutos” de seus esforços, deixando os seus produtos para as gerações vindouras.
Segundo Herbert Marcuse:

A soberania do Weltgeist, tal como descrita por Hegel, apresenta a face sombria de
um mundo assolado pelas forças históricas, no lugar de impor seu controle. No que

97
“O indivíduo é o que é, expressando tanto o conteúdo universal quanto o seu próprio conteúdo” (HEGEL:
1990, p. 77).
98
HEGEL: 2008, p. 74.
99
HEGEL: 2008, p. 82.
61

estas forças não são reconhecidas em sua verdadeira essência, elas levam consigo o
desespero e a destruição. A história aparece assim como um “matadouro onde são
sacrificadas a felicidade das pessoas, a soberania dos Estados e as virtudes dos
indivíduos”. Ao mesmo tempo, Hegel exalta o sacrifício da felicidade que
acompanha a história; o que ele chama de “a astúcia da Razão”: os indivíduos levam
uma vida infeliz, eles lutam e eles morrem; mas seus projetos jamais são realizados.
Seus desesperos e seus fracassos são os meios são por onde a verdade e a Razão
avançam100.

A astúcia da razão parece ser, para nós, a chave para uma inversão do conteúdo das teses
hegelianas em relação ao desenrolar da história que pode ser proporcionada pela razão
dominadora de extração glauberiana. Para Karl Marx, o nó górdio de Hegel era o seu
idealismo algo teológico. Para “secularizar” Hegel, Marx inverteu a famosa fórmula hegeliana
em que reza que a razão dota de realidade as coisas. Para Marx, as coisas é que dotam de
realidade a razão. É através do mundo material que a Ideia torna-se realidade. Porém, a razão
histórica continua a ter seu protagonismo intocado. Mas em Glauber acontece não só uma
secularização da razão, mas também uma, digamos, “troca de sinal” da marcha histórica: do
positivo para o negativo. Dessa forma, Glauber despe a razão (ou a Ideia) da capa do “supremo
bem”, revelando uma racionalidade pura, colonizada aqui e ali não só pelo há de “bem”, mas
igualmente, pelo que há de pior, de infernal e de dominador.

Na verdade, Glauber desloca radicalmente a noção de universalidade da razão e do bem


imanente à Ideia que é a pedra de toque da tradição filosófica. Tal razão não se aplicaria de
maneira “filosoficamente eficiente” a culturas de outras extrações, como as de fora do
contexto ocidental-europeu. Não só pelo estágio de desenvolvimento material de outras
culturas – ditas inferiores se tomarmos integralmente as teses de Hegel – mas também por
outros fatores de ordem antropológicos que devem ser levados em conta em igual medida.
Para Glauber, a razão como o motor do Mundo existe como tal. O que não existe é a prova
empírica cabal de que ela necessariamente molda um mundo melhor, mais complexo, plural e
pleno de recursos: a realidade nos ensina o contrário.

100
Tradução nossa para “La souveraineté du Weltgeist, telle que la décrit Hegel, présente la face d’ombre d’un
monde victime des forces historiques au lieu de leur imposer son contrôle. Tant que ces forces ne sont pas
reconnues dans leur véritable essence, elles amènent avec elles la détresse et la destruction. L’histoire apparaît
ainsi comme ‘l’abattoir où ont été immolés le bonheur des peuples, la sagesse des Etats et les vertus des individus’.
En même temps, Hegel exalte le sacrifice du bonheur qui va de pair avec l’histoire; il l’appelle ‘la ruse de la
Raison’: les individus mènent une vie malheureuse, ils peinent et ils meurent; mais bien que leurs projets ne
soient jamais réellement satisfaits, leur détresse et leur échec sont les moyens par lesquels la vérité et la Raison
avancent” (MARCUSE: 1968, p. 278).
62

Dessa forma, ressaltamos aqui, a mecânica do funcionamento da Ideia e das paixões humanas
permanecem extremamente úteis quando falamos do desenho do transe. O que muda é
justamente o seu conteúdo: primeiro, a Ideia como supremo bem de Deus, algo já sintetizado
por Marx há um século e meio e, segundo, a fé no fim da história como o equilíbrio universal,
relativizado por Glauber e por diversos outros pensadores.

Despido do bem universal, o universo social de Terra em transe é tomado pela alegoria do
“vagão que corre solto”: o personagem Paulo Martins utiliza esta imagem no intuito de tentar
dissuadir o governador Vieira da intenção de não aderir a uma luta contra o governo central
que está prestes a sofrer um Golpe de Estado. Trata-se da tentativa de organização de uma
resistência contra a marcha aparentemente irresistível dos acontecimentos políticos e sociais
que vão levar Eldorado não se sabe exatamente para onde. Mas os movimentos políticos de
Porfírio Diaz, o golpista, junto aos meios econômicos, mediáticos, políticos e militares do país
(além de sua “cinebiografia” narrada pelo próprio Paulo Martins em determinado ponto do
filme, indicando a adesão do personagem de Paulo Autran aos flancos políticos mais
oportunistas de seu tempo) indicam o pior. O script do golpe é dado ostensivamente durante
o decorrer do longa-metragem, e as imagens – através dos gestos e de palavras dos
personagens – parecem “desgovernadas”.

Esse “desgoverno das imagens” é o resultado visível das lutas das paixões sobre as quais
pairam a razão do “destino histórico” absolutamente alheio às imolações de todos os tipos: a
deterioração do ambiente político e social, a violência, a morte de pessoas completamente
alheias aos acontecimentos e o desespero existencial de alguns personagens, que muitas das
vezes servem como autômatos de forças absolutamente alheias ao entendimento delas. Tais
forças causam uma espécie de despersonalização, transformando-as em “traços” que
conformam o desenho desta realidade social. Cada traço possui uma forma, mas são despidas
da capacidade de influir em sua realidade mais imediata. A despersonalização generalizada
cria um grande ente que faz uso dos sacrifícios de suas “partes” por assim dizer, em prol de
seu próprio aperfeiçoamento como “máquina de desespero”.

De três dos principais personagens, pelos menos dois – de certa forma – mantém-se, tanto
quanto possível, a uma certa distância dos acontecimentos. Uma é Sara que é o contraponto
humanístico e, ao mesmo tempo, a companheira e amiga que tenta, o tempo todo, fazer com
que o personagem interpretado por Jardel Filho tome ciência das pequenas coisas terrenas e
63

pare de – quase que delirantemente – “aspirar ao absoluto” em cada ato seu. Sara –
interpretada por Glauce Rocha – é professora “vinda do interior” que acredita no “trabalho de
formiga” das lutas diárias por justiça social. Seu afeto por Paulo Martins é marcado também
por embates de caráter poético e mesmo político e ontológico, como no diálogo a seguir,
encenado em meio a um bosque101:

PAULO
Pois eu recuso a certeza, a lógica, o equilíbrio... Eu prefiro a loucura de Porfírio
Diaz...
SARA
Assim é tão fácil!
PAULO
Fácil? Rompendo com tudo e com todos? Sacrificando as mais fundas ambições?
SARA
O que sabe você das ambições? Eu queria me casar, ter filhos como qualquer
outra mulher! Eu fui lançada no coração do meu tempo, eu levantei nas praças
meu primeiro cartaz, eles vieram, fizeram fogo, amigos morreram e me
prenderam e me deixaram muitos dias numa cela imunda com ratos mortos, e
me deram choques elétricos, me seviciaram e me libertaram com as marcas e
mesmo assim eu levei meu segundo, terceiro e sempre cartazes e panfletos e
nunca os levei por orgulho. Era uma coisa maior, em nome da lógica dos meus
sentimentos!... E se forem a casa, os filhos, o amor as ambições normais de uma
mulher normal... De que outras ambições posso falar que não seja a de felicidade
entre pessoas solidárias e felizes?
PAULO
A fome do absoluto...
SARA
A fome.102

As duas últimas falas do diálogo nos informam bastante bem sobre as profundas diferenças
das visões de mundo de cada uma das partes do casal enamorado. O que nos parece é que
Glauber quis criar com este diálogo – em meio às imagens desgovernadas que dominam o
filme – uma interrupção no fluxo caótico do acontecimentos, como se fosse uma nota de pé de
página esclarecedora que tenta dar algum norte para um texto barrocamente complexo e
fragmentado.

Quando Paulo Martins diz ter a “fome do absoluto”, Sara o responde – de maneira chã – com
a seguinte asserção: “a fome”. De que fome cada um deles falam? A fome de Paulo fica o
tempo todo como uma incógnita. Essa “fome do absoluto” é o “amor violento” de que nos fala
Glauber na “Estética da fome”. Enquanto que Sara, sempre tomando pé da realidade fala da

101
É notável como a natureza aparece sempre de forma onipresente, constituindo-se quase como uma
personagem do filme.
102
ROCHA: 1985, p. 300.
64

fome stricto sensu, dos que estão perecendo por falta de recursos ocasionada pelo Transe em
Eldorado. Não nos custa relembrar que, no início do filme, Sara surge no jornal onde Paulo
trabalhava, levando fotografias de gente miserável como forma de denúncia e que deveria ser
urgentemente publicada pelo Aurora livre, o periódico da província de Alecrim. Foi a partir
dali que eles formaram um pacto em prol da busca de uma liderança realmente popular,
identificado pelos dois em Felipe Vieira (interpretado por José Lewgoy).

Além de Sara, Porfírio Diaz é um outro personagem que se diferencia em meio ao transe, mas
de forma bem mais radical. Ele, na verdade, aparece pontualmente no filme, apesar de que a
sua presença se faz sempre onipresente – de forma ostensiva até –, seja nas contraditórias
reminiscências de Paulo Martins, seu ex-pupilo, que não para de se referir a ele, tanto em
momentos de revolta quanto em momentos de puro saudosismo quase paternal, seja na boca e
nas ações de outros personagens que o veem ora como carrasco, ora como redentor, seja para
derrubá-lo, seja para finalmente coroá-lo... Diaz, assim como o destino histórico da
famigerada Eldorado, paira sobre o filme. Podemos dizer que o personagem Porfírio Diaz é
dotado verdadeiramente de um Weltgeist. Ele é a encarnação da inevitabilidade da progressão
lógica da história. Nada no filme o detém: ele tem plena consciência de si. Seus atos e sua
progressão rumo ao Golpe usam como meio o sofrimento alheio, sem ter sua integridade
maculada nem por um instante. Ele está sempre isolado: em sua mansão, comemorando a sua
eleição para deputado, num bosque sobre o busto de Baco (com cara de enfado), empunhando
uma cruz, proferindo um discurso conservador e popularesco, exaltando a grandeza de Deus...
Ele sempre parece estar em outro nível de existência.

DIAZ
O que não posso explicar aos meus inimigos são as razões que me levaram a
abandonar o exercício da solidão pelo sacerdócio da vida pública! Mas também,
nem Cristo pode explicar a não ser com a própria vida. Assim, eu responderia
aos meus inimigos que Cristo deu a vida pelo povo quando os exploradores do
povo quiseram que ele compactuasse com a exploração do próprio povo! Morreu,
mas não traiu! Eu morrerei sem trair, proclamando a grandeza do Homem, da
Natureza, de Deus!103

O único momento que Diaz se envolve em um embate é em uma tensa conversa com Paulo,
quando eles finalmente “acertam seus ponteiros”. Mas mesmo depois deste conflito, Diaz
continua a sua marcha sempre avante, rumo aos seus objetivos ligados ao poder. Porfírio Diaz

103
ROCHA: 1985, p. 290.
65

é o único elemento constante do desenho do Transe, composto quase que inteiramente por
imagens contraditórias e sem governo.

O terceiro entre os personagens principais da trama – e o maior deles – é exatamente Paulo


Martins. Mas ao contrário de Sara e de Diaz, ele está envolvido de maneira dramaticamente
intrincada com o Transe. Tal como um “freio de emergência” de um trem desgovernado, a
poesia e as atitudes por vezes violentas do personagem, tentam o tempo todo parar a sucessão
acelerada dos acontecimentos que levarão seu país (e a trama) a um trágico desfecho. Suas
palavras, seus gestos, apontam o tempo todo para uma imagem em still do universo social,
revelando suas dimensões revolucionárias e demonstrando as diversas ligações entre espaços e
tempos desligados entre si e que teriam a potência de frear a marcha da razão dominadora.
Seu confronto com Diaz, mencionado acima, ilustra de forma brilhante a luta entre a razão
dominadora e o desejo de despertar que imbui de forma mortal o espírito de Paulo.

Diaz encosta a pistola na cabeça de Paulo

DIAZ
Onde está a sua consciência?

Paulo afasta-se de Diaz, grita.

PAULO
Nem que você me desse todo o ouro do mundo!
DIAZ
Estamos podres pelos crimes que cometemos...
PAULO
Que você cometeu!
DIAZ
Lavei as mãos no sangue, mas no entanto fui humano!
PAULO
O sangue dos estudantes, dos camponeses, dos operários!
DIAZ
O sangue dos vermes! Lavamos nossa alma, purificamos o mundo! Diga sim!
PAULO
As nossas riquezas, as nossas carnes, as vidas, tudo. Vocês venderam tudo! As
nossas esperanças, o nosso coração, o nosso amor, tudo! Vocês venderam tudo!
DIAZ
A última chance! Diga sim!
PAULO
Uma epidemia, Diaz, uma epidemia! Eu destruo...
DIAZ
Com suas frágeis mãos?

Diaz encosta a arma no peito de Paulo. Paulo dá um tapa na cara de Diaz.


Lutam, rolam escadaria abaixo. Paulo sai correndo, Diaz fica caído, gritando.

DIAZ
66

Sozinho! Sozinho! Sozinho! Sozinho!104

A luta entre Paulo e Diaz termina com o futuro ditador gritando – numa satisfação macabra,
ou dizendo psicanaliticamente, tomado por uma espécie de “gozo” – que estava sozinho. E
sozinho ele permaneceria, pois sua alma foi lavada pelo sangue dos “vermes” – e continuará
sendo. As formas com que Paulo Martins tentará fazer com que os conflitos de Eldorado
sejam “emoldurados” tal qual um teatro épico se dará através, sobretudo, de sua poesia e de
sua forma particular de flânerie. Esses temas serão objeto dos capítulos seguintes.

104
ROCHA: 1985, pp. 310-311.
67

IV. “Gladiador defunto mas intacto...” – Glauber Rocha e o


procedimento poético

Espero que o sinhô


tenha tirado uma lição:
que assim mal dividido
esse mundo anda errado,
que a terra é do Homem,
não é de Deus nem do Diabo.

Glauber Rocha

Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim – aberto a todos os corações,
regado por todos os vinhos.
Um dia, sentei a Beleza no meu colo – Achei-a amarga. – E injuriei-a.

Arthur Rimbaud
68

O trabalho com a palavra sempre permeou a vida de Glauber Rocha através de uma prolífica obra
crítica e de inúmeras cartas para os destinatários mais diversos, além de um romance experimental e
de um livro de poemas (publicado postumamente). Mas para fins de nosso trabalho, nos interessa a
sua poética onde ela é mais sofisticada: no cinema. Aqui, a palavra poética é o suporte das imagens e
a importância dela, para a sua filmografia, é muitas das vezes ignorada ou relegada às análises de
cunho sociológico. Nos importa saber como os monólogos e os diálogos criados por Glauber
transcendem quaisquer categorias vigentes, potencializando sua obra que muitos davam por esgotada
(crítica e artisticamente) até há bem pouco tempo.

IV.1. Glauber e a literatura


De maneira um tanto arbitrária, podemos divisar três variações bastante genéricas no uso da
palavra poética na obra de Glauber Rocha. A primeira é a sua relação com a poesia popular
através da literatura de cordel: histórias narradas através de folhetos, oriundos da oralidade e
da experiência de poetas sertanejos. A segunda é o seu approach com a poesia contemporânea
– dita moderna ou modernista – que habita um outro estrato cultural, estritamente urbano e
com fortes influências das mais diversas literaturas do mundo dito “civilizado” à sua época. A
terceira, a conformação de um desejo profano através de textos que flertam com o sagrado.
Três vetores: um apontando para o coração mesmo da terra brasileira, outro abrindo-se para a
“terra” da dita “alta cultura”, e mais um outro que critica o messianismo (com o seu renitente
desprezo pela Terra) através mesmo de seu estilo consagrado, subvertendo-o. Todos
carregados de signos revolucionários (e telúricos) que ignoram classificações, principalmente
a dicotomia popular versus erudito.

Na filmografia do cineasta baiano, o que chamamos de “Tetralogia da Terra” (Deus e o diabo


na terra do sol, 1964, Terra em transe, 1967, O dragão da maldade contra o santo guerreiro,
1969, e A idade da Terra, 1980), tem como ponto de partida (talvez mesmo como uma poiésis
fílmica) a literatura. Tanto a oral, dos estados do Nordeste (representada pelos cordéis)
quanto a escrita, representada pela poesia moderna (pós-Baudelaire) e pelos textos sagrados:
todos inspirados em seus maiores expoentes, identificáveis no estilo “cantado” da narração
(Deus e o diabo...) e na fala dos personagens, através de monólogos e diálogos que são
verdadeiras peças literárias de altíssima voltagem (Terra em transe e O dragão da maldade...).
Em A idade da Terra, o tom em alguns momentos é profético, messiânico, lembrando a Bíblia
e outros textos sagrados. Os diversos “Cristos” (o “Índio”, o “Pescador”, o “Negro”, o “Dom
Sebastião”, o “Guerreiro-Ogum de Lampião”, etc.) representados no filme de 1980 em muito
nos remetem a um expediente em que o registro sacralizante é transportado para um contexto
69

profano (crítico da modernidade) – e mal comparando – mais ou menos como realizou


Friedrich Nietzsche em seu Zaratustra. Exemplos disso são algumas das falas do Cristo Índio.

A floresta iluminada pelos primeiros raios de Sol. Cristo Índio nasce no mato, surge
das plantas.

CRISTO ÍNDIO
O pássaro da eternidade não existe... Meu pai me traiu! Meu pai me traiu! O
pássaro da eternidade não existe!... Só o real é eterno.105

Num outro trecho do filme, uma conversa com o Diabo.

Interior indefinido, com sombras e transparências. O Diabo com uma caveira e


Cristo Índio com um globo terrestre em chamas.

DIABO
Hermano106, eu quero teu sangue. Se tens mucho poder transforma essas pedras e
essas árvores em pão.
CRISTO ÍNDIO (off)
Como seu prisioneiro, eu poderia fazê-lo para me livrar de você, Satanás. No
entanto, acho que não há necessidade porque os milagres sucedem a cada
segundo. Olha aí os peixes nos mares, os frutos nas árvores, as raízes na terra.
Tudo para a alimentação do homem. São milagres feitos pelo Pai a cada segundo.
DIABO
Eu já te conheço. Tens sempre um jogo escondido. Já andei te procurando há
muito tempo. E agora te procuro novamente. Está escrito que se alguém é o filho
de Deus tem exércitos de anjos para o servir. Então vai até aquele desfiladeiro e te
lança lá para que os anjos te segurem.
CRISTO ÍNDIO
Ora, Satanás, isto seria desafiar o Deus Pai. E isto eu jamais farei. Apenas sigo
seus ditames.107

O registro messiânico-crítico permeia também os demais filmes da tetralogia em diferentes


modulações. Nos dois filmes ambientados no sertão, tanto o de 1964 quanto o de 1969, isso
fica mais visível, haja vista a ojeriza que o jovem Glauber tinha do misticismo “alienante” das
religiões, inclusive aquelas de matriz africana, como vemos em Barravento (1962), seu
primeiro longa-metragem, cujo personagem principal, um “malandro” vindo de Salvador,
tenta, o tempo todo, alertar uma aldeia de pescadores na costa da Bahia sobre a sua condição
de pobreza e ignorância, arraigada pelo Candomblé.

105
ROCHA: 1985, p. 439.
106
O Diabo fala num dialeto que mistura o espanhol e o português.
107
ROCHA: 1985, p. 446.
70

Desta forma, tentamos por hora dar um panorama introdutório do procedimento literário
mais geral em Glauber Rocha para logo voltarmos a Terra em transe e à análise da poesia-
imagem de Paulo Martins. Mas não podemos continuar sem olhar mais detidamente para a
poesia de extração popular em Deus e o diabo... e O dragão da maldade... como forma de
comparação com o pioneirismo do filme de 1967 no que concerne ao apuradíssimo teor
poético moderno, que eleva as imagens em movimento a tenderem à imobilidade.

IV.1.1. Na poesia popular

A literatura de cordel é uma miríade de crônicas sobre a vida sertaneja e mitos ancestrais
cantada e contada em versos. Sua origem mais profunda se encontra na mistura entre as
tradições orais europeias e africanas que aportaram no Nordeste e dos mitos indígenas de
tribos dos estados da região. O modo de vida sertanejo, durante uma quantidade enorme de
tempo, fora contada apenas pelos folhetos de cordel, haja vista que o sertão – uma região antes
longínqua, muito mais imaginariamente do que geograficamente – demorou para ser
descoberto como um grande sítio de reserva de “preservação cultural” que ensejou toda uma
produção artística nas mais diversas áreas, da pintura modernista à poesia mais audaciosa,
como a de João Cabral de Melo Neto, e, claro, passando decisivamente pelo cinema, no
decorrer do século XX.

Foi a partir da chamada “Geração de 30”, com escritores como José Lins do Rego, Graciliano
Ramos, Rachel de Queiroz e outros, oriundos do estrato “culto” das capitais nordestinas (até
então tão “longe” do sertão quanto as capitais do sudeste), se voltaram para um verdadeiro
filão literário criando – involuntariamente – um gênero bastante controverso, o
“regionalismo”. Controverso, pois trata-se muito mais de uma pecha inventada por uma
crítica preguiçosa do que uma classificação genérica e que atingiu escritores tão díspares
quanto Érico Verissimo, Ariano Suassuna, Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Raduan
Nassar, Lúcio Cardoso e mais alguns outros.

O sertão nordestino – até a Revolta de Canudos – era um mundo a ser descoberto, tal como
narrado por Joseph Conrad sobre o mapa do continente africano. “Naquela época (nos
71

mapas) ainda havia muitos espaços em branco” 108 e com o sertão não era diferente. A
indiferenciação na cartografia sertaneja foi “preenchida” por Euclides da Cunha (ao menos o
mapa do sertão da Bahia) apenas na virada dos séculos XIX e XX. O primeiro capítulo de Os
Sertões (“A terra”) é emblemático neste sentido: o autor descreve com minúcias os acidentes
geográficos, a aridez do clima e do solo e mapeia a região para os “doutos” do Sudeste para
que houvesse, na medida do possível, um mínimo de conhecimento sobre uma terra
praticamente estrangeira. Paulista e republicano, Euclides não poderia deixar de se
impressionar com o que viu, apelando para impressões por vezes preconceituosas sobre uma
terra desconhecida.

TERRA IGNOTA
Abordando-o, compreende-se que até hoje escasseiem sobre tão grande trato de
território, que quase abarcaria a Holanda (...), notícias exatas ou pormenorizadas. As
nossas melhores cartas, enfeixando informes escassos, lá tem um claro expressivo,
um hiato, Terra Ignota, em que se aventura o rabisco de um rio problemático ou
idealização de uma corda de serras.109

Preconceito este que vai dando lugar à indignação social e política diante do massacre
desmedido do qual foi o cronista. Euclides expõe toda a sua abjeção ao final da obra.

DUAS LINHAS
É que ainda não existe um Maudsley 110 para as loucuras e os crimes das
nacionalidades...111

Antônio Conselheiro, beato e líder da resistência de Canudos, tornou-se mito nas bocas dos
poetas populares e colocou o sertão no mapa do Brasil. Assim como Lampião e seu bando de
bandidos-heróis que, com a pouca presença do Estado na região, praticaram atos de
atrocidade e heroísmo; e, como Conselheiro, viraram mitos. E esses mitos foram impressos
em cordéis que começaram a sair do espaço delimitado pelo semiárido, caindo nas mãos de
escritores, poetas, artistas plásticos e cineastas. As narrativas tinham algumas características
fundamentais, dentre elas o eterno embate do bem contra o mal, a defesa dos mais fracos e a
retransmissão de valores e saberes tradicionais de geração para geração.

108
CONRAD, Joseph. Coração das trevas. (Trad. Sérgio Flaksman) São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 16.
109
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. In: Obra completa volume II. (Org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro:
José Aguilar, 1966, p. 100.
110
Henry Maudsley foi médico psiquiatra inglês, de fins do século XIX, criador do conceito de “sociopatia” nas
esferas médica e jurídica.
111
CUNHA: 1966, p. 489.
72

Assim, a literatura de cordel é basicamente uma forma de arte ou de expressão conservadora;


de acordo com Sylvia Nemer, “Entre as peculiaridades da literatura de cordel, destacam-se a
sua ligação com a tradição e, consequentemente, seu caráter conservador” 112. Isso fica claro
quando estamos diante de uma obra como a de Ariano Suassuna, que assumidamente
rejeitava todo e qualquer tipo de “ruído” do que considerava nocivo à pureza da cultura
popular, tanto em suas peças de teatro quanto em seu romance, todos inspirados em folhetos.
Suassuna gostava de dizer que ele apenas organizava as histórias e as publicava em livro, tal e
qual a dicção sertaneja, sem maiores interferências suas.

Mas Glauber Rocha promoveu uma inversão de valores no seio mesmo da literatura de cordel
ao vertê-la para o cinema. A tradição vai dar lugar à urgência revolucionária sem modificar a
poética da oralidade e sem mudar os personagens míticos. Mas agora, a dicotomia bem versus
mal passa a se tornar problemática. As histórias ganharam um caráter épico inédito em
relação à poesia popular, através da recuperação e subversão de mitos tão caros à região, com
um intento claro de se fomentar a revolução nos aspectos artístico, social e político, usando do
mesmo substrato dos poetas populares.

A primeira – e gloriosa – tentativa nesse sentido foi Deus e o diabo na terra do sol, filme
lançado nos cinemas brasileiros um mês antes do Golpe de Estado de 1964. A radicalidade
deste filme reside em dois aspectos: num, ele muda o paradigma do que o próprio Glauber
Rocha classificou como “nordestern” 113 , gênero que gozava de grande popularidade nos
cinemas brasileiros à época, e que nada mais era do que a emulação do western norte-
americano, adaptado para o sertão, como se os vastos desertos do Oeste dos Estados Unidos
fossem análogos ao sertão brasileiro. Glauber desloca de tal forma esse gênero “abrasileirado”
a ponto de fazê-lo desaparecer depois do surgimento de sua obra-prima, rompendo de vez as
barreiras para a internacionalização de nosso cinema sem propriamente lançar ou obedecer
aos ditames de algum gênero, tornando-o inclassificável e dando os últimos traçados do que
seria a consolidação do Cinema novo.

112
NEMER, Sylvia. Glauber Rocha e a literatura de cordel: uma relação intertextual. Rio de Janeiro: Casa de Rui
Barbosa, 2007, p. 27.
113
Talvez o filme mais emblemático do nordestern seja O cangaceiro (1953), de Lima Barreto (cineasta,
homônimo do escritor carioca), produzido pela Companhia cinematográfica Vera Cruz no interior de São Paulo.
Ele conta a história de Lampião com diálogos escritos por Rachel de Queiroz. O longa-metragem ganhou o
prêmio de melhor fotografia no Festival de Cannes de 1953.
73

O outro aspecto é a forma como que Deus e o diabo... é narrado. “Deus e o diabo é uma espécie
de cordel filmado em que as imagens, de certa forma, reproduzem as falas do cantador: há um
diálogo estreito com o cordel, uma transposição de linguagens, da oral para a visual, nas quais
o mito é a repetição do passado no presente”114. Mas este “diálogo” é da ordem do épico:
durante a transposição das linguagens, a subversão de papéis e situações transformam o cordel
num instrumento de mudança, como quando do encontro de Manuel com beato Sebastião115
depois da terrível cena do gado morto.

O sertão seco, o gado morto. O vaqueiro Manuel observa o gado morto, monta em
seu cavalo e afasta-se do local.

CANTADOR (off)
Manuel e Rosa viviam no sertão
trabalhando na terra com as próprias mão.
Até que um dia, pelo sim, pelo não,
entrou na vida deles o Santo Sebastião.
Trazia a bondade nos olhos,
Jesus Cristo no coração.116

O verso “Até que um dia, pelo sim, pelo não” parece ser o indicativo da incerteza do que
estava pairando, mesmo que a presença do beato, inicialmente, trouxesse alento à revolta de
Manuel. Segui-lo o leva a uma espiral de um misticismo aberrante que culmina em violência
contra os “infiéis”, numa guerra santa em que Sebastião repete as palavras míticas de Antônio
Conselheiro, “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão!” Essa emulação do que poderia
ser um novo Conselheiro, leva os poderes locais (a Igreja e o governo) a contratarem Antônio
das Mortes, jagunço, que tem uma vasta coleção de cangaceiros mortos em seu currículo, a
ponto de achar que matou todos (no que, na verdade, estava enganado: faltava Corisco). Seu
serviço quase teve completo êxito ao matar praticamente todos os beatos, exceto Manuel e
Sebastião, que fora morto por Rosa após presenciar um ritual de sacrifício de um bebê numa
capela, em nome de Deus.

A linha tênue que separa o bem do mal termina por desaparecer. O beato era na verdade um
sádico e um assassino, e a fé que ele propagava era um engodo que levava, inevitavelmente, à
morte física e espiritual de si e dos outros. Mais uma vez, Manuel segue a sua errância com

114
NEMER: 2007, p. 24.
115
O nome do beato remete ao mito da volta do rei português Dom Sebastião, morto numa batalha no Norte da
África, e cujo reaparecimento inauguraria o Quinto Império sobre a Terra, como profetizado pelo padre Antônio
Vieira, o que fixaria o domínio de Portugal sobre o resto do mundo. Quinto, pois ele apareceria depois dos
impérios Assírio, Persa, Grego e Romano.
116
ROCHA: 1985, p. 263.
74

Rosa; ela, praticamente um anjo da guarda, alertava-o contra os perigos dessa busca frenética
por redenção, mas sem sucesso. Até que eles encontram Corisco, Dadá e seu bando.

Manuel, Rosa e o cego Júlio andam pelo sertão.

CANTADOR (off)
Da morte de Monte Santo
sobrou Manuel Vaqueiro
por piedade de Antônio
matador de cangaceiro.
Mas a estória continua,
preste mais atenção:
andou Manuel e Rosa
nas vereda do sertão.
Até que um dia,
pelo sim, pelo não,
entrou na vida deles
Corisco, diabo de Lampião.117

“Até que um dia, pelo sim, pelo não”: surge de novo, na voz do cantador, a incerteza sobre
absolutamente tudo, como uma espécie de mau agouro. Mas o cangaceiro Corisco busca
justiça na Terra (mas à maneira do banditismo social), ao contrário de Sebastião: “Tou
cumprindo minha promessa padim Ciço!... Não deixo pobre morrer de fome!”118 O monólogo
de Corisco (em que ele pressente estar na mira de Antônio das Mortes), como se ele estivesse
falando com Lampião, é uma das mise-en-scènes mais impressionantes já vistas no cinema em
nossa opinião.

Corisco em transe, dialogando com um Lampião imaginário, fazendo os dois papéis,


cangaceiro de duas cabeças.

CORISCO
Tem macaco119 por perto?
Tava esperando o sinal. Sonhei com o fim, vamos morrer hoje!
Morrer como? Tá doido?
Quando eu sonhasse num tinha mais jeito. Eu vi o fuzil do diabo dar dois tiros.
Um em cada olho. No teu, Virgulino!
Bota o teu azar pro lado! Quem é que vai acertar no meu olho?
Tou fechado com as chaves do padim Ciço.
Mas foi sinal! Vai ser hoje, quando o Sol nascer. Aqui na toca? Só se for você. Se
você me traiu eu te mato.
Eu não! Eles lá, os macaco e o Diabo. Eu vou-me embora que a hora não é minha.
É tua. Dadá, cabras, vambora!
Maria, Maria, Arvoredo, Gavião, todo mundo no papo-amarelo.120

117
ROCHA: 1985, p. 273.
118
ROCHA: 1985, p. 273.
119
“Macaco” era a forma como os cangaceiros se referiam aos soldados da polícia.
120
ROCHA: 1985, p. 275. “Papo-amarelo” era um tipo de rifle rústico.
75

Para entrar para o bando, Manuel foi rebatizado como Satanás por Corisco. O vaqueiro torna-
se cangaceiro. Agora é atrás de justiça social – através da pilhagem e assassinato de gente
abastada – que vem a possibilidade de redenção de Satanás. O grupo de cangaceiros sai pelo
sertão até o momento em que Corisco e seu bando encontram a morte nas mãos de Antônio.
O cantador narra o cerco ao cangaceiro.

CANTADOR (off)
Se entrega, Corisco!
Eu não me entrego não,
eu não sou passarinho
pra viver na prisão!
Se entrega, Corisco!
Eu não me entrego não,
não me entrego ao tenente,
não me entrego ao capitão,
eu me entrego só à morte,
de parabelo121 na mão!122

Atingidos pelos tiros de Antônio das Mortes, Dadá e os outros homens do bando são
assassinados, assim como Corisco que entoa a frase que se tornou o emblema maior do filme:
“Mais fortes são os poderes do povo!”123 antes de cair morto. Aqui, o banditismo social torna-
se – no contexto do filme – a expressão maior do desejo revolucionário que permeia todo o
longa-metragem. O seu ponto mais alto é a resistência de Corisco que, antes de morrer, instiga
esse desejo de tal forma que a imagem de sua queda parece “vibrar” para além da tela do
cinema, abrindo uma “fissura” na estória. Essa fissura – tal como um relâmpago – faz “ressoar”
por algum tempo, nos espíritos dos espectadores, um imaginário redentor que se torna
realidade mesmo que só por alguns instantes. E mais uma vez, Manuel-Satanás e Rosa
escapam do papo-amarelo de Antônio das Mortes. Em disparada, ele corre deixando ela para
trás até alcançar o mar. E o cantador arremata a estória com a profecia de Antônio
Conselheiro, mas invertida: a terra é do homem que nela vive.

CANTADOR (off)
O sertão vai virar mar
e o mar virar sertão!
Tá contada a minha estória,
verdade, imaginação,
Espero que o sinhô
tenha tirado uma lição:
que assim mal dividido

121
“Parabelo”, ou melhor, “Parabellum” é uma pistola alemã que se tornou sinônimo de revólver.
122
ROCHA: 1985, p. 283.
123
ROCHA: 1985, p. 283.
76

esse mundo anda errado,


que a terra é do Homem,
não é de Deus nem do Diabo.124

Se em Deus e o diabo... a literatura de cordel é a grande fonte de inspiração poética na


construção da narrativa, em O dragão da maldade... ela é mesclada com outros registros mais
cotidianos, principalmente vindos das grandes cidades, mudando a face desse sertão, agora
filmado em cores e marcado por uma época de grandes mudanças políticas, sociais, culturais e
econômicas, iniciadas, no Brasil, justamente no ano de lançamento do segundo longa-
metragem de Glauber. “No filme (O dragão da maldade...), o cordel atua como um horizonte
de referencia e fornece elementos para a construção da trama. Nesse caso, a trama se
caracteriza por uma profundidade psicológica inexistente na poesia popular...”125. A volta do
personagem Antônio das Mortes marca este aspecto psicológico ausente em Deus e o diabo...
Exilado na cidade grande, ele é contratado pelo Coronel da cidade de Jardim das Piranhas126
para dar fim a um outro grupo de beatos e cangaceiros que seguem Santa (uma beata), Antão
(“filho de Oxóssi”) e Coraina, um cangaceiro “extemporâneo”, cuja autenticidade Antônio
coloca logo em xeque.

ANTÔNIO
Tu é verdade ou assombração?
Diga logo, cabra da peste!
Eu de minha parte
Não acredito nessa roupa que tu veste.
CORAINA
Primeiro diga você seu nome, fantasiado.
Quem abre assim a boca fica logo condenado.
ANTÔNIO
Pois aprepare seus ouvido e ouça.
Meu nome é Antônio das Morte,
pra espanto e covardia
e desgraça de sua sorte.
Mas uma coisa eu digo:
no território brasileiro,
nem no céu nem no inferno,
tem lugar pra cangaceiro.127

A luta entre os dois termina com Coraina ferido e agonizante. Mas surge em Antônio uma
grave crise existencial, muito pela presença quase muda, mas cercada de aura, de Santa que o

124
ROCHA: 1985, p. 284.
125
NEMER: 2007, p. 22.
126
Na verdade, Milagres (BA), onde foi rodado outro clássico do Cinema novo: Os fuzis (1964) de Ruy Guerra.
127
ROCHA: 1985, p. 334.
77

impressiona a ponto dele desenvolver uma compaixão em relação ao cangaceiro. A ela, ele se
dirige com respeito, tentando entender o que aconteceu, fazendo um retrospecto de sua vida,
regida pelo mal, mas que agora, depois de uma trajetória de jagunçagem, busca paz e redenção.

Antônio das Mortes e Santa em uma paisagem seca, caatinga.

ANTÔNIO
A pergunta é uma só: de onde é que veio Coraina?
SANTA
Sete vezes seja banido o demônio do teu corpo.
ANTÔNIO
O demônio entrou tanto que não pode mais sair. Mas me responda, dona Santa.
SANTA
A manhã é pra meditação solitária.
ANTÔNIO
É disso que eu tou precisando. De meditação, pra saber sobre a vida de Coraina.
SANTA
No dia da Ressurreição meu filho Jesus me disse: no dia em que Coraina vier o
encanto se quebrará e o povo vai perder a obediência. Aí arrebenta a guerra do
Sem Fim.
ANTÔNIO
E onde foi que a senhora ouviu isso?
SANTA
Da boca de Deus. Mas não fale em nome de Deus não. Meus pais e meus avós
foram beato e morreu tudo nas suas mãos. Meus irmãos foram pro cangaço e
morreu tudo nas suas mãos. E agora esse povo aí vai morrer nas suas mãos. Se
Coraina morre, morre o resto do povo penando de fome e sede.
ANTÔNIO
Dona Santa... Eu já andei por mais de dez igreja, não tenho santo protetor. Mas
eu juro que eu só vim aqui pra saber se era verdade, se existia cangaceiro mesmo.
Mas eu não quero mais matar. E se eu matei seus pai, seus avós, seus irmão, me
perdoa dona Santa.
SANTA
Quem mata o irmão é jogado no fundo do mar. Vai embora, Antônio, e cruze os
caminhos de fogo do mundo pedindo perdão pelos crimes que você cometeu.128

Em O dragão da maldade... a voz poética é deslocada do cantador sozinho para os


personagens em seus diálogos e monólogos, revelando reminiscências, aventuras pessoais,
segredos e outros aspectos psicológicos que a distância de um contador de histórias (cantada
ou contada) não comporta.

Encosta da montanha. Antônio das Mortes e a Santa ao lado de Coraina, que está
sentado, com uma manta sobre os ombros.

CORAINA (canta)
Olha aqui, Antônio das Mortes,
olha as provas da tortura.

128
ROCHA: 1985, p. 339.
78

Eu peguei um pau-de-arara e fui,


pensando em um dia ficar rico.
Aí quando cheguei em Minas Gerais
e logo escravo me achei.
Me venderam pra serviço
pras mata do Mato Grosso.
Só os fortes se aguentavam
e os fracos se rendiam.
Veio a raiva e a saudade foi,
desandei lá pra Bahia.
Chegando em Juazeiro eu vi,
chegando em Juazeiro eu vi
um velho vendendo a filha
por cinco contos de réis.
Aí eu roubei ela e fui sertão adentro
até o confim das Alagoas.
SANTA
Quem mata o irmão é jogado no fundo do mar. Vai embora, Antônio, e cruze os
caminhos de fogo do mundo pedindo perdão pelos crimes que você cometeu.129

Por duas vezes Santa exorta Antônio das Mortes a vagar por aí, ruminando a culpa pelos seus
assassinatos. Mesmo ao se recusar a matar os beatos e os cangaceiros (fazendo com que o
Coronel contratasse o jagunço Mata-Vaca e seu bando, vindos de Minas Gerais, para executar
o assassínio) ele fica sem rumo. Antônio elimina Mata-Vaca (depois que este já havia matado
os beatos e os cangaceiros), os outros jagunços e o Coronel como forma de purgar, um
mínimo que seja, a sua vida de assassinatos, assassinando – a única coisa que parece ter
capacidade de fazer. Mas desta feita contra os poderosos e seus lacaios. Nos momentos finais
do filme, Antônio segue uma direção qualquer. Em sua mente, Santa repete várias vezes: “Aí
arrebenta a guerra do Sem Fim” por conta do assassinato de Coraina: mas não vemos o ocaso
de Antônio das Mortes na sua andança pela estrada recém-asfaltada que margeia Jardim das
Piranhas. Fim.

A estrada asfaltada denota que tudo aquilo ocorreu no momento presente, ao contrário de
Deus e o diabo... que se desenrolou num tempo mítico. Em 1964, o mito e a possibilidade de
mudança social. Em 1969, a realidade em cores e a falta de rumo.

Em 1967, a poesia moderna e a flânerie.

129
ROCHA: 1985, p. 339.
79

IV.1.2. Na poesia moderna

O monólogo de Terra em transe é muito bonito e é interessante que você queria


intitular seu filme Maldoror.

Eu li muito Os Cantos de Maldoror, infelizmente em português, porque no Brasil não


achei a edição francesa. O que me marcou nesse livro é a tortura permanente. Há um
realismo do vômito. Foi muito criticada a estrutura do filme, seu aspecto irrisório. Queria
dar mesmo esta aparência de vômito e acho que Paulo é homem que vomita até os
seus poemas e as últimas sequências do filme são um vômito contínuo. O discurso é
evidentemente inferior ao de Lautréamont, mas há nele a mesma angústia.

Glauber Rocha em entrevista a Michel Ciment para a revista francesa


Positif em 1967130

O trecho de uma entrevista – usado também como epígrafe – que abre esta subseção é muito
esclarecedora no que concerne às intenções artísticas de Glauber em relação à Terra em transe.
Certa feita, ouvimos de um eminente historiador e professor das imagens técnicas que, para
ele, o filme de 1967 era como um “teatro filmado”, sem nenhum valor puramente
cinematográfico que se sobressaísse, como se o cineasta baiano quisesse fazer uma grande
peça de teatro. E, como o teatro não despusesse dos recursos necessários para a realização da
estória, ele havia usado do aparato cinematográfico para concretizar este feito. Esta concepção,
em parte, coincide com o modo como Glauber Rocha concebe seu filme – mas por uma outra
via. O teatro (épico) estava lá, assim como nos outros filmes: reconhecidamente, Glauber era
um brechtiano ao seu modo, como expomos no capítulo anterior. Mas aqui a economia de
recursos puramente cinematográficos, do qual muitos críticos, artistas, estudiosos se
ressentem, tem uma intenção bastante clara: o “aspecto irrisório” da “estrutura do filme” está
a serviço do “realismo do vômito”.

E o que seria este “realismo do vômito”? Certamente ele não se filia a qualquer ramo dos
realismos ou neorrealismos do cinema, da literatura e de outras artes. A obra de Glauber –
não custa repetir aqui – é épica, talvez a única cinematografia inteiramente épica (em sua
acepção mais moderna) existente na história do cinema. De fato, em outros filmes, como os
outros três da “Tetralogia da Terra”, os recursos audiovisuais são muito mais apurados: a
montagem épico-eisensteiniana e a textura da fotografia nada realista, que faz do sertão uma
paisagem algo “lunar”, multiplica ao infinito o caráter mitológico e ancestral de Deus e o
diabo...; os planos-sequencia de O dragão da maldade... que abrigam várias cenas

130
ROCHA: 2004, p. 121.
80

meticulosamente encadeadas, cujo “design” só pode ser comparado a um trabalho de


ourivesaria dada a sua perfeição; e A idade da Terra que é um filme em que a as inovações
puramente estéticas se sobrepõem a todos os outros recursos expressivos, cuja montagem e
fotografia – até hoje um arcabouço de possibilidades oferecidas por este filme e que ainda são
pouco explorados por outros cineastas – compensam as grandes dificuldades que os seus 160
minutos oferecem ao espectador. O realismo do vômito são as verdadeiras imagens de Terra
em transe. A fissura que se abre na cena da morte de Corisco em Deus e o diabo... aqui se torna
uma fenda gigantesca. Um acontecimento, que como tal, projeta sua sombra e pouco deixa
transparecer o seu campo de experiências, a ponto de espantar os espectadores mais incautos.

Mas é só uma sombra... A confusão surge quando esta sombra é confundida com o
meramente negativo, como se Terra em transe fosse uma obra de caráter “niilista” ou pior,
“reacionária”. À época, os debates em torno do filme foram levados aos extremos das opiniões
mais radicais, que desclassificavam, desde já, o longa-metragem sem uma avaliação mais
detida, em todos os flancos do universo cultural e político brasileiros, motivados – muito em
parte – pela cegueira das ideologias. A inspiração na poesia em prosa de Lautréamont marca
uma radicalidade, cujo “espírito do tempo” exigia para muito além das teses sociológicas em
voga, e do apelo revolucionário aos mitos sertanejos como feito anteriormente (época pré-
Golpe, um contexto mais “fácil”, por assim dizer, em relação ao rompimento com o regime
democrático já em 1966/67): um desdobramento radical da “Estética da fome”. E a arte
poética, feita a partir de meados do século XIX (século de Os Cantos de Maldoror, de 1869),
demonstra o quanto a arte – no período moderno ou modernista, entrando pelo século XX
adentro – possui um “dispositivo” que funciona através de ciclos: “revolucionário” num
primeiro momento, dada a sua potência algo inédita, e, num segundo, “autodestrutivo” pelo
mesmo motivo; pois sua radicalidade é de tal monta que a poesia se esgota rapidamente,
“drenando” todos os recursos artísticos possíveis do poeta, a ponto dele renunciar à arte
(como fizera Arthur Rimbaud). Além disso, outros fatores da vida social sob o “capitalismo
avançado” (já no século XIX) não sustentam mais a arte poética: não há um lugar –
propriamente dito – para ela no ordenamento capitalista. O poeta é um marginal131 como
qualquer outro delinquente. Somente há lugar para o l’art pour l’art, ou seja, a arte que se
justifica por si mesma – mera mercadoria. A marginalidade que poesia agora “goza” faz com

131
“Ambos (o trapeiro e o poeta) exercem solitários a sua profissão, à hora em que os burgueses se entregam ao
sono” (BENJAMIN: 2015, p. 81).
81

que o poeta se dispa de esteticismos e alimente a arte poética com altas doses de personalismo,
insuflando ainda mais sua marginalidade (a sua “capacidade de vomitar”).

Esse dispositivo, como falamos acima, funciona por ciclos e tem como origem algumas
concepções estéticas derivadas do conceito de “vontade de potencia” de Friedrich Nietzsche,
propalada a partir da última década do século XIX: é o “esteticismo vitalista” nietzschiano,
que é marcado não mais pela beleza, mas pela sensação; a necessidade sempre reiterada por
um sempre renovado “frisson nouveau” (como sentido por Victor Hugo ao ler As flores do
mal)132; “era o esteticismo liberado de suas inibições éticas, sociais e culturais. Baudelaire, que
havia ‘sofrido tudo antecipadamente’, conhecia também as suas tentações; daí sua advertência
contra o excesso de culto à arte, o qual não só concedia vantagem aos bárbaros, como também
fazia dos artistas os piores inimigos da arte”133. Essa sensação, esse frisson nouveau, que age
como uma forte “pancada estética”, era o que os artistas buscavam, pois – tal como uma
“droga” –, diante de uma “poética-limite” como as de Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé,
Lautréamont, eles se viam inebriados por uma sensação estética tão avassaladora, que davam a
sua própria arte e a cultura como um todo por acabada: assim, o artista, ciclicamente, se
aproximava do bárbaro134, numa espécie de “roda bárbara da literatura”, que ao ser “girada”, a
tudo começava a consumir até o seu completo esgotamento. “‘Ler Rimbaud ou o Sétimo
Canto135 de Maldoror’, André Gide confessou em seus diários, ‘faz com que eu me envergonhe
de minhas obras e me deixa insatisfeito com tudo que seja mero produto da cultura’”136.

Este ciclo não é o epitáfio da arte, mas é a expressão do fazer poético na modernidade, no qual
o trabalho artístico caminha sempre para um impasse: a marginalidade que degenerará no
barbarismo ou na “conversão” para a “arte pela arte”, chancelado por aqueles que, de maneira
deliberada ou não, adotam a prática artística como um culto de caráter religioso (“Sim, na
verdade, a Literatura existe, e se você quiser, só existe Literatura, com a exclusão de tudo o

132
É o que nos informa Michael Hamburger. In: A verdade da poesia: tensões na poesia modernista desde
Baudelaire. São Paulo: CosacNaify, 2007.
133
HAMBURGER: 2007, p. 24.
134
O “bárbaro” é aqui entendido como aquele indivíduo que denega em grande parte ou mesmo recusa a arte e a
prática artística.
135
Há um erro de tradução no ensaio de Hamburger, pois só há seis cantos no livro de Lautréamont. Será que
Gide se referiria ao “Sexto Canto”? Só indo atrás do texto original para saber. Mas isso não atrapalha o escopo de
nossa argumentação.
136
HAMBURGER: 2007, p. 24.
82

mais”137). Apesar de tudo, a arte e os artistas continuaram (e continuam) a proliferar sem


parar, como bem nos diz Hamburger.

Mas a roda (da literatura) havia dado a volta completa – em 1873!138 Mas a história
da literatura não demonstra nenhuma relutância em se repetir; e isso não causa
surpresa, já que ela é feita por indivíduos cujas aspirações e loucuras não são
determinadas apenas pela história, tampouco por aquelas “tendências” literárias e
filosóficas com que os historiadores são obrigados a tratar. A mesma roda está
girando; um tanto mais lentamente, talvez, mas firme mesmo assim.139

Em Lautréamont, as seis partes e as sessenta “estrofes” de Os Cantos de Maldoror esgotaram


todo ímpeto artístico marginal do poeta. Assim como Arthur Rimbaud, Lautréamont tinha
Baudelaire e As flores do mal como referencias absolutas. E dessa forma, Lautréamont abre
Maldoror com uma espécie de advertência ao leitor que inadvertidamente abre o livro
pensando encontrar algo que não seja pura angústia e ignomínia.

(1) Praza o céu que o leitor, audacioso e tornado momentaneamente feroz como
isto que lê, encontre, sem se desorientar, seu caminho abrupto e selvagem, através
dos pântanos desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois, a não ser
que invista em sua leitura uma lógica rigorosa, e uma tensão de espírito pelo menos
igual a sua desconfiança, as emanações mortais deste livro embeberão sua alma,
assim como a água com o açúcar. Não convém que qualquer um leia as páginas
quem vêm a seguir; somente alguns saborearão este fruto amargo sem perigo. Por
conseguinte, alma tímida, antes de penetrar mais longe em tais extensões
inexploradas de terra, dirige teus calcanhares para trás e não para frente.140

Mas diferentemente do mestre, Rimbaud e Lautréamont rapidamente sucumbiram aos seus


“devires demoníacos”. Eles não tinham o “rigor do cálculo” e a força de um esgrimista que
fazia do poeta, um poeta por inteiro para o autor das Flores... Essa é uma das metáforas em
que “Baudelaire gostava de apresentar os traços marciais como artísticos”141. Ou seja, a
tenacidade no rigor das formas (rigidez da métrica em todos os poemas, rimas impecáveis) e

137
MALLARMÉ apud HAMBURGER: 2007, p. 20.
138
Ano em que Arthur Rimbaud lançou o poema em prosa Uma temporada no inferno, desistindo da literatura
dois anos depois (ao terminar a parte final das Iluminações, que esperou anos para que Paul Claudel as
descobrisse e as lançasse como se fosse uma obra póstuma, sendo que Rimbaud estava “vivinho-da-silva” na
África), tornando-se “bárbaro”. Muito se fala do “mistério de Rimbaud”, por ele ter largado a poesia tão jovem
(19 anos) para tornar-se mercador e traficante de armas na África. Mas isso é um misticismo ingênuo dos
adeptos da religião da “arte pela arte”: dentre eles, Stéphane Mallarmé, que concebia a arte poética como uma
“teodiceia” (“tudo existe para terminar num livro”), assim como Hegel entendia a história. Deus sive poesis.
139
HAMBURGER: 2007, p. 22.
140
LAUTRÉAMONT, Conde de. Os Cantos de Maldoror. (Org. e trad. Claudio Willer). São Paulo: Iluminuras,
2009, p. 73.
141
BENJAMIN: 2015, p. 70.
83

na escolha dos temas, tão originais; tudo rigorosamente planejado, o que, de fato, fez com que
o volume de poesias compostas por Baudelaire fosse maior do que as dos poetas subsequentes
(por demais jovens e “embriagados” pelas novas possibilidades da poesia); além de sua vasta
produção em prosa. Charles Baudelaire soube lidar melhor com seus devires demoníacos,
estendendo até a sua morte a sua poesia e sua prosa marginais e sem ceder aos barbarismos.
Diferentemente de Lautréamont e suas “golfadas triunfais” como diria Nelson Rodrigues.

(7) Eu fiz um pacto com a prostituição, afim de semear a desordem entre as


famílias. Recordo-me da noite que precedeu essa perigosa ligação. Vi à minha frente
um túmulo. Escutei um vagalume, do tamanho de uma casa, dizer-me “Vou te
iluminar. Lê a inscrição. Não é de mim que vem essa desordem suprema.” Uma vasta
luz cor de sangue, ante cujo aspecto meus maxilares bateram e meus braços
tombaram inertes, derramou-se pelos ares até o horizonte.142

Lautréamont morreu precocemente aos 24 anos, a mesma idade em que Castro Alves faleceu.
Mas antes ele havia renegado seus Cantos e se “relançou” no mundo da poesia como Isidore
Ducasse, seu verdadeiro nome, aderindo à uma poesia impessoal e usando das antigas formas
e temas poéticos antiquados no que seria o último ano de sua vida. De maneira análoga
aconteceu o mesmo com Rimbaud: a diferença é que o poeta de Charleville largou de vez a
literatura e foi ser mercador na África, por onde viveu seus últimos vinte anos.

Em Terra em transe, a incidência da influência de Lautréamont é mesclada com outros


discursos poéticos: uma delas é a poesia de Castro Alves, que se torna trilha incidental através
de uma música composta e tocada por Sérgio Ricardo, num momento especialmente delicado:
quando Paulo e Vieira rompem e aquele vai em busca de outras soluções para o impasse que
se estabeleceu. A música soa quase como uma ironia na construção da cena, haja vista que o
que estava em jogo era o poder.

“A praça é do povo,
como o céu é do condor.”
Já dizia o poeta,
dos escravos cantador.143

Outra clara influência é Mário Faustino, cujo poema “Balada” tem seus versos iniciais e seu
estribilho inscritos numa cartela (logo antes do começo do longo flashback que explica os

142
LAUTRÉAMONT: 2009, pp. 79-80.
143
ROCHA: 1985, p. 299.
84

acontecimentos turbulentos das cenas iniciais), na qual, ao fundo, mostra Paulo Martins
agonizando sobre as dunas, segurando sua metralhadora. É notável que as três principais
influências poéticas do filme de 1967 foram de artistas que morreram muito cedo. Faustino
morreu aos 32 anos (num acidente de avião) quando já era considerado um dos maiores
expoentes de sua geração, seguindo os passos de Ezra Pound e sua poesia épico-modernista,
que tinha a ambição impossível de englobar absolutamente tudo. Reproduzimos a seguir o
poema inteiro, pois entendemos que ele resume a tragédia de Paulo Martins.

BALADA

(Em memória de um poeta suicida)

Não conseguiu firmar o nobre pacto


Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o facto
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura)

Jogou-se contra um mar de sofrimentos


Não para por-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.


Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares – tanto amava
Teu dorso cavalgando de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo


Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não está mais comigo. Nem conTigo:
Tanta violência, mas tanta ternura.144

A construção da poesia de Paulo Martins pode ser o entrecruzamento da pura marginalidade


de Maldoror com o rigor épico-lírico de Mário Faustino e de outros poetas de mesmo quilate,

144
FAUSTINO, Mário. Poesia completa – Poesia traduzida. São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 115.
85

criando um realismo do vômito muito próprio, que não se identifica inteiramente com a
agressividade e a brutal iconoclastia de Lautréamont. O vômito de Paulo Martins é a
construção da recusa reiterada de uma síntese das tensões entre o real e o ideal, a paz e a
violência, a usurpação e a liberdade, a tortura e a solidariedade, buscando mostrar a vida
pulsante para além dos conflitos e suas possíveis resoluções (tanto para o “bem” como para o
“mal”): todas, de saída, insuficientes, que levam inevitavelmente para a manutenção de uma
tal ou qual “ordem” nos quais o transe é um de seus componentes e que age ciclicamente:
trata-se da recusa da história pelo poeta.

Entre a lira e a metralhadora: eis o resumo de todas as tensões a que Paulo Martins se vê
enredado. Essa tensão é a fenda que se abre na escritura mesma do filme, e que a ultrapassa.
86

V. “... (Tanta violência, mas tanta ternura)” – poesia e flânerie

Seja qual for a pista que o flâneur siga, todas o levarão a um crime.

Walter Benjamin

... você tem a escolha entre a transcendência e o caos...

Deleuze & Guattari

Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode
superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a
violência.

Glauber Rocha
87

A poesia e a política são como duas retas paralelas que se encontram no infinito. E é no infinito do
universo social que este encontro se dá sob a rubrica da revolução. Mas o instante revolucionário tende
a ser estático, como numa fotografia: um instantâneo que revela dimensões impensáveis; tal é a tarefa
da poesia moderna e Paulo Martins (o poeta-político), nada mais é do que um “intercessor poético”
dessa herança revolucionária que remonta a Baudelaire. Sua rara poesia – aparentemente
“inapropriada” frente aos acontecimentos que devoram Eldorado – formam imagens que aparecem e
desaparecem numa velocidade rápida demais. Tal como o flâneur, Paulo tenta imprimir um “passo de
tartaruga” à sua maneira: mas sua flânerie foge do modelo clássico de Charles Baudelaire (inspirado
em Edgar Poe) e retrabalhado posteriormente por Walter Benjamin. A flânerie de Paulo é “interior”,
introjetada em seu espírito: a última fronteira do flâneur.

V.1. A multidão intérieur


A multidão em Terra em transe surge quase como uma personagem per se, mas difusa, por
vezes multifacetada. Sua relação com o poder é mediado por Paulo Martins, que também faz
as vezes do “leão-de-chácara” do governador Vieira. A preocupação de Paulo com “as massas”
se choca com seu violento desprezo no contato direto com o povo – como uma “miragem
brutal”145 – sobre o qual só consegue lidar através da ironia e da violência explicita. Mas em
seu íntimo, pensa, sonha com uma multidão “ideal”. Uma multidão que chamamos de
“intérieur”146 no qual tenta se refugiar, como o flâneur da primeira metade do século XIX que
“mergulhava” em meio aos passantes das grandes metrópoles. Mas agora a multidão é
introjetada, “idealizada”, pois há muito ela é apenas mais uma fantasmagoria de uma série
interminável.

No longa-metragem de 1967, temos dois tipos de multidão: a “massa”, composta por


indivíduos reais, e a intérieur. A primeira, composta basicamente pelos “bestializados”,
pressupõe a impossibilidade de qualquer chance de emancipação visível. É curioso como isso
é manejado no filme: durante a campanha populista de Vieira, em que ele se cerca de toda
uma trupe de correligionários – praticamente empurrados pela turba de eleitores – ele dialoga
com uma senhora, perguntando pelas suas necessidades mais prementes. Quando a mulher
começa a falar só vemos a sua boca se mexer, sem nenhum sinal sonoro que denote uma voz,
por mais débil que seja; e com certeza não se tratou de um problema técnico, posto que o
filme é inteiramente dublado. Entendemos que este recurso de montagem usado por Glauber,
tem a clara intenção de exibir o “estado da arte” do povo naquele momento. Uma massa de

145
Cf. HAMBURGER: 2007.
146
O conceito de “intérieur”, inspirado em Benjamin, e que tentamos esboçar no capítulo II não teve o seu
sentido desviado aqui, qual seja, a vida privada no que ela tem de mais mórbido. A multidão introjetada em
Paulo é também uma “mise-en-abîme” que o remete o herói novamente à miséria existencial, pois no filme ela vai
se revelando ser mais uma outra fantasmagoria, numa cadeia sem fim.
88

gente completamente refém de sua abissal ignorância, sinalizando que a resolução das
injustiças sociais não serão resolvidas usando-se de recursos retóricos e filosóficos das classes
mais bem informadas (e intencionadas). A fome – em suas acepções que já foram discutidas
no primeiro capítulo – é o que move essa gente. E é a “voz da fome” que temos de aprender a
ouvir, por isso, o silêncio da mulher quando fala ao governador sobre suas necessidades. O
herói de Terra em transe – assim como nós – não tem a capacidade de escutar essa voz.
(Parece-nos que esta sensibilidade caberia a Sara 147 ). No diálogo que reproduzimos
anteriormente148, em que o casal principal da trama confronta seus pontos de vista em relação
ao transe, Paulo fala de uma “fome do absoluto” – enquanto manifestação cultural e política
da fome, mas de maneira indireta, nunca consciente –, enquanto Sara repete apenas “a fome”,
colocando a discussão no terreno dos possíveis naquele momento. A “consciência” da fome é
clara para Sara, mas o inconsciente dela se manifesta no poeta-político.

E é dessa voz inaudível do fome que faz surgir a multidão intérieur, o novo refúgio do poeta,
pois ele não tem mais onde se “sentir em casa”. O poeta tenta desesperadamente entender a
multidão, sua aparente tibieza, servidão e inação, mas não encontra respostas de acordo com
seus recursos intelectuais. A sua ignorância em relação à esta verdadeira aporia o empurra
para o realismo do vômito. Sua expressão poética é – indiretamente – o resultado dessa fome
“sentida mas incompreendida”149. E é a marca de uma condição marginal que acaba por
remetê-lo a um tipo de transcendência de caráter muito específico: o encontro da poesia e da
política como uma possibilidade, cujo encontro demarcaria o momento revolucionário.
Quando Paulo fala da “fome do absoluto” ele parece querer dizer sobre esse momento, em que
o asilo em sua “solidão povoada” seria suficiente para subverter o ordenamento político
vigente, “desafiada”, exteriormente, pela violência de sua poesia marginal. Ao invés de aderir à
“arte pela arte” ou se tornar um “bárbaro” por completo, ele se apega à uma metafísica de um
tipo muito próprio: a “metafísica da multidão”, a fronteira final do flâneur. Esta metafísica
degenera no realismo do vômito150.

147
Em diversos momentos, Sara lembra a figura do “anjo da história”, tal como o anjo de Klee para as teses
“Sobre o conceito de história” de Walter Benjamin.
148
No capítulo III.
149
(...) nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é
compreendida (ROCHA: 2004, p. 65).
150
Assim como o “Spleen e o Ideal” em Baudelaire. E também a “Utopia pueril e a miragem brutal”, duas
categorias criadas por Michael Hamburger, inspiradas no poeta francês, e que é um importante traço comum
89

Enquanto Paulo vai renunciando aos poucos ao mundo tridimensional – dado os reiterados
fracassos de sua atuação política – Sara vive nele intensamente: “as mulheres do cinema novo
sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de
amar com fome”151. A fome só seria extinta através de uma “violência transformadora” capaz
de fazer emanar afetos como o amor: segundo Glauber, essa violência faria surgir um “amor
brutal” tão potente quanto a própria violência. Algo como uma “fissão nuclear” cultural. A
poesia-limite de Paulo encerra esta violência, enquanto Sara busca, através dos meios que
pode, impedir desastres que a brutalidade deste amor irá, inevitavelmente, produzir.

Não fica claro em momento algum do filme qual seria a forma alternativa que Sara
encontraria para se contrapor a este “amor violento”. Mas parece-nos que é pelo desvio que
ele se materializa. O aparente retraimento da personagem frente aos episódios violentos, os
quais presencia, parece imprimir uma ética em que todo ímpeto de destruição é rechaçado.
Ela é cônscia de sua impotência diante da série de acontecimentos, ao mesmo tempo em que
tenta “remediar”, mudar o curso das coisas, mas sem tirar os olhos dos destroços materiais e
políticos, suportando todo o pesar da situação. Isto é totalmente incompatível com a “fome do
absoluto”, inteiramente destruidora, de nosso poeta-político. No momento em que os dois
rompem o relacionamento, cada um fala de si, como se o outro não tivesse a capacidade de
escutar.

PAULO
Não anuncio cantos de paz
Nem me interessam as flores do estilo.
Como por dia mil notícias amargas
Que definem o mundo em que vivo.
SARA
Não me causam os crepúsculos
A mesma dor da adolescência.
Devolvo tranquilo à paisagem
Os vômitos da experiência.
PAULO
A poesia não tem sentido... Palavras... As palavras são inúteis...

Abraçam, beijam-se.152

entre os poetas modernos. Igualmente, nosso Paulo Martins também é cindido pela própria condição de ser um
poeta na modernidade. Uma condição muito mais sui generis do que aparenta ser.
151
ROCHA: 2004, p. 66.
152
ROCHA: 1985, pp. 300-301.
90

Os versos falados pelos dois personagens pertencem a um mesmo poema, pois se na primeira
parte Paulo recita que “Como por dia mil notícias amargas / Que definem o mundo em que
vivo”; na vez de Sara, ela diz “Devolvo tranquilo à paisagem / Os vômitos da experiência.” São
versos “complementares”, mas que na mise-en-scène do filme, tomam um claro viés de
oposição em relação às visões de mundo do casal. É visível o tom de despedida, e eles de fato
se separam durante boa parte do tempo da fita.

V.1.1. Uma breve genealogia da flânerie: do “Homem da multidão” a Paulo


Martins

Entre todas as contradições que – até agora – recolhemos do personagem Paulo Martins, uma
característica constante é certa: trata-se de um sujeito que faz de tudo para diminuir o ritmo
do curso incessante dos acontecimentos. Mesmo quando apela para o governador Vieira
“deixar o vagão correr solto”, ele não quer nada além do que um freio para a estória. Eis a
característica política central do flâneur na modernidade no qual nosso herói se encaixa à sua
maneira: ele usa das palavras e do próprio corpo – mesmo que de maneira simbólica – para
impedir a capitulação do governador Vieira perante o golpe de estado. A primeira cena em
que ele aparece é justamente a que ele toma para si a metralhadora e protesta perante o
inevitável, andando à roda de Vieira, como que tentando impedir a progressão de seus passos
e de seus pensamentos, ditados a Sara, os quais resignadamente anota.

Paulo Martins chega ao terraço, toma a metralhadora de Aldo e aproxima-se de


Vieira.

PAULO
Agora temos de ir até o fim!
VIEIRA
Já disse, o sangue das massas é sagrado!
PAULO
O sangue não tem importância...
VIEIRA
É uma luta inútil, seremos esmagados.
PAULO
Se ganharmos será o começo de nossa História. Se perdemos Diaz subirá ao
poder.
VIEIRA (dirigindo-se ao capitão)
Capitão, disperse os agitadores!
PAULO
Você não pode trair... Nós...
VIEIRA
A nossa aventura terminou.
91

PAULO
Aventura? Você chama o nosso trabalho de aventura?
VIEIRA
Sara, tome nota do que vou dizer! (para o capitão) Cumpra as minhas ordens,
disperse os resistentes! (ditando para Sara) A contradição das forças que regem
nossa vida nos lançou neste impasse político tão comum àqueles que participam
ativamente do processo histórico...
PAULO
Pra que este documento? Pra que?
VIEIRA
... interessado no desenvolvimento econômico e social. Assim, sendo, consumado
nosso destino à frente das grandes decisões nacionais...
PAULO
E os discursos, os princípios, as promessas?
VIEIRA
... passamos nosso Governo ao Supremo Poder Federal, dentro do espírito da
Sagrada Constituição, certos de que resistir será talvez provocar uma guerra
fratricida entre inocentes...
PAULO
Quem são os inocentes, quem?
VIEIRA
... entrego meu caminho a Deus e espero que Deus, mais uma vez, abençoe
Eldorado com a sua Graça Divina, lançando nos corações humanos o amor que
tudo une.
PAULO
Está vendo, Sara, quem era o nosso líder? O nosso grande líder!153

Mas a flânerie como uma “pulsão” política é coisa difícil de detectar, enveredando cada vez
mais para o impossível nos dias atuais. Em verdade sua faceta política cresceu de maneira
inversamente proporcional à sua ocorrência no universo social. Seu surgimento coincide com
as primeiras passagens parisienses e as atrações que nela se concentravam: os transeuntes, as
lojas, as tabuletas, a iluminação artificial, ambiente perfeito para se andar desapercebido,
numa época em que a noite começou a ser “desfrutada” com o recém inventado lampião a gás
e sua sombra, vacilante, – que revelava coisas até então opacas, mas também criava mistérios
fantasiosos – desencadeava um pavor até então inédito em alguns espíritos, como o de Edgar
Allan Poe que proibiu o uso de lampiões em sua casa: a luz algo “dura” e intermitente,
revelava o tempo todo o “opaco do vazio”154.

O auge da flânerie se deu num período que se estende até 1848, época do começo de sua
desaparição, mas que não se deu por completo, ainda. A flânerie é um comportamento social
que foi observado por alguns escritores e cronistas da primeira metade do século XIX nas
grandes metrópoles europeias, principalmente Londres e Paris: trata-se do modo de vida do

153
ROCHA: 1985, pp. 287-289.
154
Como nos informa BENJAMIN: 2015, p. 62.
92

“marginal” ou do “marginalizado” (aquele que busca algum refúgio das formas de vida da
burguesia) que inventa a sua própria liberdade em meio à multidão anônima155: uma liberdade
tal que ele se sente em casa na rua: “Para ele (o flâneur), as tabuletas esmaltadas e brilhantes
das firmas são adornos murais tão bons ou melhores que os quadros a óleo no salão
burguês”156. Mas o senso comum tende a entender a flânerie como um passeio prazeroso,
“chique”, sem maiores intenções, sendo uma espécie de “entretenimento movente”: um
passeio num parque, num bosque, numa rua badalada, num bairro com atrações interessantes,
ou mesmo num novo shopping; um passeio que suspenda, mesmo que por alguns instantes
apenas, as nossas neuroses cotidianas. As pessoas mais cultivadas muitas das vezes gostam de
falar que vão “flanar” por aí, ao invés de apenas dizerem “passear” – ou comprar.

Definitivamente “flanar” não é o mesmo que “passear”: ao menos no que concerne ao nosso
estudo. O flâneur tornou-se um tipo da grande metrópole através da pena de Charles
Baudelaire, inspirado pelo conto “O homem da multidão” de Edgar Allan Poe. Baudelaire
delineou este personagem real como um ente da já alta modernidade parisiense no ensaio O
pintor da vida moderna (escrito em 1863) sobre o pintor e ilustrador parisiense Constantin
Guys (que é descrito no ensaio de maneira anônima, segundo seu autor, a pedido do próprio
artista, tratado por “Sr. G.”). Trata-se daquele espécime que não se reduz aos estereótipos da
ordem burguesa, tal como o dândi que “implica uma quintessência de caráter e um
entendimento sutil de todo o mecanismo moral deste mundo, mas por outro lado, o dândi
aspira à insensibilidade...”157. Mas contrariamente ao dândi, o flâneur não tende à indiferença.

A multidão é o seu domínio, como o ar é do pássaro, como a água, o do peixe. Sua


paixão e sua profissão consistem em esposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para
o observador apaixonado, constitui um grande prazer fixar domicílio no número, no
inconstante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa e, no entanto,
sentir-se em casa em toda parte; ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar
escondido do mundo, esses são alguns dos pequenos prazeres desses espíritos

155
Parte da descrição que Charles Baudelaire faz de Constantin Guys, certamente o primeiro artista visual a se
dedicar às minúcias da vida moderna, é bem ilustrativo sobre o comportamento do flâneur: “O Sr. G. tem horror
a pessoas indiferentes. Ele é dono da tão difícil arte (os espíritos refinados me compreenderão) de ser sincero sem
ridicularizar. Conceder-lhe-ia, de bom grado, o título de filósofo, ao qual ele tem direito por mais de uma razão,
se seu amor excessivo pelas coisas visíveis, tangíveis, condensadas no estado plástico, não lhe inspirassem uma
certa repugnância pelas que constituem o reino impalpável do metafísico. Reduzamo-lo, pois, como La Bruyère,
à condição de puro moralista pitoresco.” In: O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 29-
30.
156
BENJAMIN: 2015, p. 39.
157
BAUDELAIRE: 2010, p. 28.
93

independentes, apaixonados, imparciais, que a língua não pode definir senão


canhestramente.158

Baudelaire atribui ao “Sr. G.” um espírito em continuado “estado de convalescência”159, que a


tudo aspira, mesmo as coisas mais comezinhas do cotidiano da grande cidade. Sua habilidade
e rapidez no delineamento do motivo a ser desenhado ou pintado é quase como um precursor
da câmera fotográfica instantânea que demoraria ainda muitas décadas para surgir.
Constantin Guys tinha em Baudelaire um apaixonado fã, sobretudo por que ele possui essa
extrema ligeireza na percepção do acontecimento a ser pintado, combinado com os primeiros
traços a serem feitos a carvão no papel no momento mesmo em que o fato se desenrolava:
uma desenvoltura de tipo talvez até mais radical do que a simbiose entre o olhar de um
fotografo e o botão de uma câmera automática. “O Sr. G. inicia por ligeiras indicações a
carvão, que praticamente apenas definem o lugar que os objetos devem ocupar no espaço”160,
para num momento posterior fixar as tintas e terminar o seu “instantâneo”. Essa ligeireza fez
de Guys o mais notório ilustrador de periódicos entre Paris e Londres, além de “reportar”
através de seus desenhos, conflitos armados pelo mundo.

Esse perfil de Guys – como foi mencionado anteriormente – tem como ponto de partida um
conto de mistério de Edgar Poe, “O homem da multidão” no qual o narrador, em primeira
pessoa, tenta distinguir os passantes de Londres sentado a uma mesa de um café, mas de
maneira sombria: ele repara nas roupas escuras, nos “choques” e nas “reverências” entre os
cidadãos completamente ausentes de si e dos outros; “indivíduos de aparência impositiva”,
“refinados batedores de carteiras” além de dândis, militares e incontáveis outros tipos, de tal
forma, que o narrador se prostrava “com a cabeça encostada à vidraça (...) ocupado em
escrutinar a turba”161 o tempo todo. O que liga Guys ao “Homem da multidão” é essa
qualidade “escrutinadora” do flâneur que visa ao movimento incessante de imagens que
aparecem e desaparecem numa velocidade alucinante. Do “deserto” da multidão, eles tentam
salvar elementos que se perderiam para sempre, delineando um “plano”162 próprio a cada um

158
BAUDELAIRE: 2010, p. 30. Ou seja: a palavra francesa “flâneur” (“vadio”, numa tradução ligeira) não
consegue abarcar tal fenômeno em vista de sua complexidade.
159
BAUDELAIRE: 2010, p. 25.
160
BAUDELAIRE: 2010, p. 41.
161
POE, in: BAUDELAIRE: 2010, p. 97.
162
A metrópole do flâneur seria assim um “plano de composição” artístico, traçado pelos personagens de Poe e de
Baudelaire, usando-se aqui dos conceitos de Deleuze & Guattari. É um “plano” pois seleciona elementos e
94

dos dois personagens, que mostra a vida na grande cidade em processo, dando forma e
distinguindo-a do caos da individualidade atomizada na alta modernidade.

Inspirado por essa “cosmologia” da flânerie – num arco que vai de Poe aos poetas modernos –,
Walter Benjamin inventou para modernidade uma categoria estética e política. Se com Poe
temos um personagem fictício e com Baudelaire um personagem real, com Benjamin temos
uma figura artística que surge como uma crítica frontal e crescente à modernidade. Assim
temos que, tal como Guys e o “Homem da multidão”, o próprio Baudelaire é um flâneur que
produz um plano da metrópole à sua maneira e que incide no universo social de maneira
prismática. E a este plano deu o nome de As flores do mal.

Benjamin expõe toda a problemática que envolvia o fazer literário na geração de Baudelaire,
marcado pelos grandes romancistas (como Victor Hugo, Gustave Flaubert, Alexandre Dumas,
pai e filho), pela rígida censura e pelo surgimento dos suplementos literários que
multiplicaram enormemente a venda de jornais ao mesmo tempo em que a publicidade
também vivia o seu “Cristo-Jesus” impresso em papel-jornal. Essa mistura entre censura,
notícias, publicidade e literatura de má qualidade, descartável, que apelava fundamentalmente
para o sentido da visão (a famigerada “literatura panorâmica” 163 , sucedida depois pelas
“fisiologias”164) surgiu ao mesmo tempo em que os progressos técnicos na vida cotidiana
(reflexo da forte industrialização nos principais países europeus), fizessem aparecer as
gigantescas aglomerações populacionais, primeiramente em Londres, quase que acompanhada
pela capital francesa. Essas duas capitais não tinham paralelo no mundo e Paris se destacava
por ser o centro de difusão mundial de mercadorias e de novidades técnicas. Baudelaire foi
cronista de pelo menos uma “Exposição Universal” em Paris (1855), sobre o qual lançou seu
olhar crítico e desiludido em relação ao progresso em que as mercadorias seriam o “alfa e o
ômega” dessa nova ordem. Isso criou uma sociedade baseada no choque: o choque entre os
passantes numa esquina movimentada, no sensacionalismo das notícias veiculadas nos jornais

imagens em meio ao caos da metrópole, dando-lhes uma lógica. Ver: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O
que é a filosofia? São Paulo: 34, 2007, especialmente o capítulo “Percepto, Afecto e Conceito”, pp. 211-255.
163
“Panorâmica”, pois este gênero literário tinha a mesma ambição dos panoramas: dar uma visão geral e, o
máximo possível, também uma visão detalhada da metrópole. Títulos hoje completamente obscuros como O
diabo em Paris, O livro dos cento e um e Os franceses pintados por si próprios são a prova do quão transitórios
eram estes tipos de estórias veiculadas pelos suplementos literários.
164
As fisiologias “disfarçavam” o clima político da época ao apelar para fantasmagorias em relação à metrópole:
seus perigos e encantos eram “engarrafados” em tipos da cidade grande, como o militar, o mendigo, e tantos
outros, até em animais. As fisiologias – tirante suas fantasmagorias – se reduziriam às “pedras cinzentas” da
calçada e ao “pano de fundo político despótico”: “esse é o pensamento secreto político da forma de escrita que
pertenciam às fisiologias.” (BENJAMIN: 2015, p. 39).
95

e do choque diante de novas invenções técnicas que disputavam intensamente a atenção do


cidadão. O choque era (e ainda é) o princípio formal da linha de produção industrial165 que se
reflete no universo social. É sob essas condições adversas para qualquer poeta que Charles
Baudelaire criou as suas “flores doentias”, refundando a práxis poética, também baseada no
choque (ou na sensação, como foi exposto no capítulo anterior).

Na epígrafe de As flores do mal, Baudelaire abre sua obra identificando-se com este novo leitor
que vive sob o signo do choque: “Hipócrita leitor – meu igual – meu irmão”, um leitor até
então “inédito” na história da literatura, ligado aos prazeres dos sentidos imediatos, assim
como o próprio poeta. O leitor da alta modernidade é incapaz de apreciar a poesia lírica: eles
estão acostumados aos “prazeres dos sentidos e o spleen”166, assim, “diagnosticando”, por via
indireta, que a capacidade de se ter experiência167 reduziu-se drasticamente. Num contexto em
que a consciência é estimulada cada vez mais, fazendo com que a memória se esfume, nela
agora vigem apenas dois flancos em que o sujeito moderno (o poeta incluso) percorre
diariamente: o prazer e o spleen (a melancolia): trata-se de um “golpe na capacidade de
percepção”168. A poesia lírica perde sua popularidade de outrora, tornando-se mais um gênero
literário entre tantos outros, não mais uma atividade artística que habitava o seio mesmo da
vida em comum. Depois de As flores do mal, tornou-se muito difícil se fazer poesia lírica:
Baudelaire lançou um enorme desafio para as futuras gerações de artistas169.

O poeta francês evidenciava os perigos escondidos nas esquinas, umbrais, becos e na turba da
grande metrópole, os quais comparava a uma selva: “Que são os perigos da floresta e da

165
E mais tarde da montagem cinematográfica: as escolas de montagem do início do século XX podem ser
interpretadas como um adestramento do espectador ao choque. Uma “genealogia do choque” pode ser conferida
no ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: BENJAMIN, 2015, pp. 103-150.
166
BENJAMIN: 2015, p. 105.
167
“A inteligência (a consciência) é inútil para evocar o passado” (BENJAMIN: 2015, p. 108). Isto posto,
Benjamin demonstra – através das obras de Proust e Baudelaire – que consciência e memória não mais se
amalgamam: e é deste amálgama que a experiência se constitui. O cidadão moderno é desprovido de memória,
pois sua consciência é agora como uma “rígida crosta” que não permite um “acolhimento inconsciente” de
acontecimentos que criam memória para sujeito. Apenas os fatos traumáticos o suficiente, penetram a
consciência, num “investimento”, provocando um “contra-investimento” igualmente violento vindo do
inconsciente. Portanto, a experiência não pode ser reconstituída de forma espontânea. É necessário que ela venha
de forma artificial: Em busca do tempo perdido é um esforço bem sucedido neste sentido; Proust demonstra que a
experiência necessita de um “gatilho” para a sua reconstituição. É como se ela estivesse “encapsulada” em
objetos: a experiência não está mais no campo sensível da nossa consciência, e cabe ao acaso o desvelamento
dessas memórias. No caso de Em busca... a experiência está encapsulada na madeleine, que o personagem Marcel
come distraidamente, mas que desencadeia toda uma enorme e complexa busca no sentido de “adquirir ou não
uma imagem de si próprio” (BENJAMIN: 2015, p. 109).
168
BENJAMIN: 2015, p. 106.
169
As flores do mal é (falando de forma bastante esquemática) a “problematização” da recepção da poesia lírica
numa época em que a “experiência se modificou na sua estrutura” (BENJAMIN: 2015, p. 105).
96

pradaria, comparados aos choques e conflitos diários da vida civilizada? Quer o homem dê o
braço à sua vítima no boulevard, quer trespasse a sua presa em florestas desconhecidas, não é
ele o mais perfeito dos predadores?”170 Com a “superação” das fisiologias, dado o seu caráter
literário bastante fugaz, e com a invenção do lampião a gás171, o ambiente urbano logo revelou
seus perigos, pois não havia como mensurar as intenções e as ações dos indivíduos que
compunham esta multidão anônima, pelo menos até 1840. O flâneur, aquele que “esposa a
multidão”, o faz também para não deixar rastros: a partir de Baudelaire, o poeta, quase que
necessariamente, é também um flâneur (a não ser aqueles poetas que se contentam com as
velhas formas impessoais). Dito isto, o que possibilita ao poeta lírico o devido anonimato e
liberdade para escrutinar a metrópole, a saber, a ausência de rastros, é também o que torna o
amor fugidio. Amor como um firme laço social, amor como “paixão” e amor como substância
da poesia lírica. A partir do liberalismo do século XIX, as relações sociais são “emendadas” por
um fraquíssimo elo, em que os interesses coletivos só são colocados em questão quando a vida
privada reivindica seu naco na esfera pública (um dos avatares do fascismo). Num contexto
tão árido, o amor perdeu sua função social e “ética”, por assim dizer172. É desse ambiente
obscuro que surge o detetive, o “duplo” do flâneur: “Quando um flâneur se torna assim um
detetive, ‘malgré lui’, a transformação convém-lhe socialmente, porque legitima seu ócio” e
“capta coisas fugidias e com isso, sonha estar próximo do artista”173 Assim, tanto o flâneur (o
poeta lírico) como o seu duplo “socialmente útil”, o detetive, só poderão – ao final de suas
buscas – descortinar a cena de um crime.

Com o fim das fisiologias, surge um gênero literário que se tornou perene, chegando aos
nossos dias e que certamente nos ultrapassará: o romance policial. Ele tem por característica a
pretensão de “devassar” os mais ínfimos detalhes das qualidades de cada indivíduo (e não

170
BAUDELAIRE apud BENJAMIN: 2015, p. 42. Mas Baudelaire, ele mesmo, estaria “imune” ao conhecimento
da natureza humana de maneira mais aprofundada. Benjamin – para nós, em tom de anedota – pontua que “A
crença no pecado original tornou-o imune à crença do conhecimento da natureza humana” (BENJAMIN: 2015,
p. 42).
171
Com a invenção do lampião a gás, o firmamento tornou-se opaco. Sendo assim, “a Lua e as estrelas deixaram
de ser dignas de menção” (BENJAMIN: 2015, p. 53).
172
É disso que trata Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso que nada mais é do que um
inventário do amor enquanto uma “ética em declínio” que quase ninguém mais pratica, mas que sua perda causa
angústia, pois sua falta é sentida, mas não é compreendida (parafraseando Glauber). Isso faz com que o livro do
semiólogo francês se tornasse, erroneamente, o clássico do amor apenas como “paixão”; um livro consolador em
meio à aridez das relações humanas, mas que – em geral – é compreendido pelo viés do amor idealizado
propagado por alguns discursos fantasiosos da mídia. Ver: BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso
amoroso. São Paulo: Martins, 2010.
173
BENJAMIN: 2015, p. 43.
97

mais apenas “tipos humanos”) – representado por seus personagens – por conta de um
“imperativo persecutório” que move essas estórias. O medo generalizado nas grandes cidades
é o alimento deste tipo de literatura, ao mesmo tempo em que ele molda “planos possíveis”
para se entender a metrópole, mas sob a chave do individualismo, da paranoia e da violência.
Não é sem razão que o romance policial acaba por incidir na vida social ao naturalizar – aliado
à fotografia recém-inventada174 – a vigilância dos cidadãos. A fotografia passa agora a fixar os
vestígios e o romance policial, por sua vez, acaba com o “incógnito” do ser humano: “Desde
então, não se sabe até onde poderão ir os esforços de prendê-lo às suas ações e palavras”175. O
indivíduo comum agora vê-se acuado e enredado pelos poderes que tem seu alcance ilimitado
de forma artificial por conta dos efeitos fantasmáticos criados pela ficção, pelo
sensacionalismo dos jornais e pela identificação de signos indiciais pela fotografia. Não há
mais segredos imperscrutáveis, individuais: até mesmo eles foram “privatizados” e o
imperativo do controle absoluto agora habita no seio mesmo da literatura176.

Da mesma forma que podemos “espelhar” o flâneur e o detetive, podemos lançar mão do
mesmo gesto ao comparar As flores do mal e o formato geral dos romances policiais, baseado
pelo menos entre os seus primeiros “clássicos”, como Robert Louis Stevenson e o próprio
Edgar Allan Poe. O romance policial representa a “moderna cosmogonia” das grandes cidades.
A literatura de Baudelaire também deve ser vista por este prisma, apesar de não ter o menor
parentesco com o romance policial177: trata-se de um “estar-no-mundo” da modernidade que
refrata, na mesma direção, estas diferentes manifestações artísticas. “As flores do mal conhece,
sob a forma de ‘disiecta membra’, três dos seus elementos fundamentais (ligados ao romance
policial): a vítima e o lugar do crime (‘Uma mártir’), o assassino (‘O vinho do assassino’) e as

174
O daguerreotipo foi apresentado no Salão de Paris de 1840, um ano depois do incêndio que destruiu o
panorama de Louis Daguerre, o que o arruinou financeiramente.
175
BENJAMIN: 2015, p. 50.
176
Isso corrobora com a tese benjaminiana da incapacidade crescente de se criar e contar histórias próprias ao
narrador. O surgimento do romance dito “moderno” (denominação dada pelos estudiosos da área), foi o marco
inicial desta queda: o sujeito vê-se limitado à “voz” do narrador romanesco e não mais à multiplicidade de vozes
da cultura oral. Dom Quixote é o protótipo perfeito do “romance moderno” e vai além: delineou a sua forma e
ainda construiu a imagem do leitor de romances, que tende ao alheamento de si e do mundo ao seu redor. Dessa
forma, o romance policial é o paroxismo do romance moderno. Mas os russos, de forma “marginal”, sempre se
esforçaram no sentido de recuperar a cultura oral através de várias maneiras, tanto no século XIX quanto nos
dias atuais: a começar pelo “dialogismo” em sua multiplicidade de vozes independentes nos romances de Fiódor
Dostoiévski, que em nada se assemelha ao romance realista europeu do século XIX. Nos dias atuais, a romancista
Svetlana Alekseiévitch (Prêmio Nobel de literatura de 2015) recupera a tradição russa da “oralidade impressa” no
romance que passa por Nikolai Leskov, Maxim Gorki, Varlam Chalámov e vários outros. De certa forma, esses
romancistas tentam frear o declínio da experiência comunicável, contrariando o “estatuto” do romance moderno.
177
“Baudelaire leu bem demais Sade para concorrer com Poe” (BENJAMIN: 2015, p. 50).
98

massas (‘O crepúsculo da tarde’)”178. Mas o declínio da flânerie não tardou, assim como a
decadência das passagens e o desaparecimento paulatino da iluminação a gás, com a invenção
da luz elétrica. O crescente e “desesperado isolamento dos indivíduos em seus interesses
privados”179 fazia com que os cidadãos aderissem rapidamente a um tipo de uniformização de
comportamento e ações inéditos, em nome do “avanço do progresso”, sempre em linha reta. A
invenção cada vez mais acelerada de traquitanas e distrações, proporcionada pela descoberta
de novos materiais e tecnologias, prendiam os indivíduos numa “comunidade” composta
apenas por consumidores180. Eis o ancoramento inexorável da alta modernidade em que o
flâneur não tinha mais por onde fugir. A flânerie passou a ser atacada, perseguida: o seu ócio e
seu ritmo característicos tornaram-se (e continuam sendo) uma forma de resistência. O
flâneur marginalizou-se definitivamente e seu “passo lento”, a sua “falta de função”, passou a
ser uma espécie de crime, intolerável sob o capitalismo avançado. Nesse momento, o flâneur
se vê numa situação de completa desolação: a visão das já antigas tecnologias o enchem de
spleen, como a tremulante luz dos lampiões ou as velhas passagens que ainda restam; elas o
lançam numa melancolia, qual o “anjo da história”, ao observar os monturos de restos e
dejetos “que alcançam o céu”.

O declínio das passagens atormenta o flâneur, pois em seu lugar surgem formas decadentes de
comércio, no qual só as mercadorias possuem protagonismo, de tal forma que o cidadão é
também tornado mercadoria. Mas o flâneur usa da astúcia que lhe é própria para escapar à
esta situação intolerável: ele subverte o sentido das mercadorias ao aderir à elas e, por dentro,
sabotá-las. O poeta lírico deve se entregar às mercadorias, para, através de sua alma
“prostituída” (numa inversão de valores proporcionado pela alta modernidade) encontrar o
amor. O avanço do flâneur causa um vácuo a ser preenchido por “interesses privados”: de
certa forma, agora o poeta fala sob o ponto de vista da mercadoria. No contexto de Baudelaire,
o virtuosismo artístico dependia da “empatia” com ela, mas essa empatia não o desligava da
realidade social, eis a ambivalência. O horror da vida social atuava no flâneur como um feitiço.
Mas a mercadoria degenera-se através da “sagrada prostituição da alma” sob o liberalismo: o
amor, através da “poesia e da caridade” próprio das prostitutas.

178
BENJAMIN: 2015, p. 49.
179
BENJAMIN: 2015, p. 56.
180
Esse estado de ânimo geral era (e continua sendo) refletido nas roupas: tons escuros, como que enlutados,
dominam a paisagem das metrópoles: “igualdade no desencanto” através da moda, a “senhora morte”.
99

O poema “A uma passante” é a representação do amor que sempre foge ao poeta, assim como
o criminoso escapa ao detetive. Eis aqui representado a tal “natureza pulsional” de Baudelaire
que o impedia de ser um “romancista policial”, ainda em que pese sua admiração por Poe.

A UMA PASSANTE

A rua em torno era um frenético alarido.


Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.=

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.


Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz… e a noite após! – Efêmera beldade


Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!


Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!181

“A uma passante” promove um corte: das cinzas, dos restos do alto capitalismo não “surgirá
uma Fênix”, um renascimento a partir do nada ou do irrisório. A “cosmogonia moderna”
promove a fuga irremediável do objeto “amável”.

Podemos, de certa forma, comparar a cosmogonia moderna à hermenêutica gnóstica. O


mundo moderno poderia ser interpretado como um mundo marcado pelo “mal radical”: um
lugar governado exclusivamente pelo “Demiurgo”, uma entidade fundamentalmente má (que
os gnósticos atribuem ao Deus do Velho Testamento) que criou os seres humanos e a eles
impôs e impõe leis através das vozes dos profetas; os profetas modernos poderiam ser os juízes,
os defensores intransigentes do “livre mercado”, os políticos e tantos outros que governam
nossas vidas através de imposições intoleráveis e sem nenhum lastro. Para a gnose, a redenção
veio com o “Deus bom” (o Deus do Novo Testamento) – que não é feito da mesma substância
que a nossa – de formas que enviou Jesus Cristo à Terra, e com ele anjos e demônios (que para
a gnose, não representam o mal absoluto como para as outras ramificações do cristianismo)182.

181
BAUDELAIRE: 2006, pp. 319-321.
182
Sobre a relação entre a gnose e a poesia moderna, ver: WILLER, Cláudio. Um obscuro encanto: Gnose,
gnosticismo e poesia moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
100

Esse “parêntese” gnóstico é para tentar demonstrar através de um desvio pretensamente


didático, a relação entre prostituição, flânerie e amor na cosmogonia moderna que compõem
a resistência política do flâneur. Encarando-se a modernidade como uma espécie de “mal
radical”, o poeta lírico surge como um “demônio” que subverte a ordem das leis da alta
modernidade ao compreender que só se aliando à elas e – ao mesmo tempo – buscando em
seu despojos (como a prostituição) a sua ínfima possibilidade de redenção, é capaz de assumir
de vez o amor enquanto crime e promover a arte poética como a “arte do vômito”: em seu
extremo, crítico, agressivo, e por isso mesmo político.

Desta forma a flânerie – através principalmente dos poetas líricos – é o último bastião da
resistência ao capitalismo e do recrudescimento da ordem burguesa. O flâneur, desde o início
do século XX até os dias atuais, tem o seu raio de atuação muito limitado: por vezes,
circunscrito apenas pelo fazer poético e, através dele, a possibilidade de uma nova multidão se
torna possível. Ele se “divorciou” da multidão para esposá-la novamente sob uma outra forma.
Uma multidão ainda por vir, uma “comunidade que vem” (lembrando aqui de Giorgio
Agamben e seu famoso livro). Por isso, a flânerie é, desde meados do final do século XIX, com
os reiterados fracassos das revoluções subsequentes, uma atividade cujos fins políticos
possuem uma potência política pujante, mas solitária, pois agora o poeta lírico introjeta uma
multidão intérieur, que se realizará algum dia. Eis a metafísica da multidão que governa os
disparates poéticos de Paulo Martins.

A flânerie e suas mutações através do tempo alcançaram um grau especial neste personagem
fictício, que para nós é um marco – singular em toda a cinematografia mundial – dessa forma
de vida que tende ao político mais do que qualquer outra coisa. É como se com o tempo, as
camadas que compõem a flânerie (numa trajetória que começaria com o “Homem da
multidão” e que termina, ainda que provisoriamente, em Paulo Martins) fossem retiradas, ao
passo em que a modernidade se tornava mais veloz e atomizada, até chegar à sua nudez: o
desejo, mais do que manifesto, de abolição da progressão histórica, tal como Paulo tenta
desesperada e solitariamente conseguir.

Paulo Martins é – sobretudo para nós – uma figura ética e estética que tende sempre à
imobilidade e, através dela, fazer as correspondências, não só possíveis, mas necessárias.
101

V.2. Paulo Martins e a multidão (ou a lira e a metralhadora)


O herói é o verdadeiro sujeito dessa modernidade, e isso significa que viver a
modernidade exige uma constituição heroica.

Charles Baudelaire183

A constituição física do ator Jardel Filho era consideravelmente robusta, o que o tornava um
tipo intimidador. Isso servia perfeitamente ao seu personagem de maneira bastante
significativa184: seu heroísmo “por linhas tortas” é emanado através de suas palavras e de ações;
mas que na verdade, trata-se de um herói precário, como só se pode ser na modernidade. Ele
não se furta de usar da violência física em nome da “fome do absoluto”. Porém, essa violência
o lança ainda mais longe do mundo tal e qual. O herói na modernidade é aquele que se
“destaca sobre o pano de fundo dos despossuídos” 185 : assim como eles, o herói é um
desapossado, contrariamente aos heróis da antiguidade, cuja distinção era glorificante. O
herói da modernidade é um mero substituto dos antigos heróis: a glória não o espera. Na
verdade o que o aguarda seria um outro tipo de glória, ligado ao perecimento enquanto ideal.

O trabalho diário sob a alta modernidade exige um heroísmo comparável ao de um gladiador,


com a diferença que o gladiador ao menos recebia aplausos por seus feitos sangrentos da turba
de espectadores sedentos por violência. Porém, o “modo de ver” do herói na modernidade
seria mais rico, rizomático, menos rígido, apesar de inglório (ao menos em termos
historicamente convencionais). Eis aquele que se destaca da multidão: o herói que em Terra
em transe é um poeta.

A mise-en-scène do filme apela bastante para a fisicalidade do personagem, contrastando com


os seres “minguados” que formam o “povo” de Eldorado. Eis a maneira como que a realidade
dá as cartas de forma agressiva. E é com uma agressividade proporcional, que Paulo Martins

183
Apud BENJAMIN: 2015, p. 76.
184
Não custa lembrar que Glauber Rocha escreveu o personagem Paulo Martins pensando em Tom Jobim para
interpretá-lo.
185
BENJAMIN: 2015, p. 76.
102

derrama sua bile sobre aqueles que se assemelham à sua situação186 mais do que ele pode
suportar187.

Quando a beleza é superada pela realidade,


Quando perdemos nossa pureza nestes jardins de males tropicais,
Quando no meio de tantos anêmicos respiramos
O mesmo bafo de vermes em tantos poros animais,
Ou quando fugimos das ruas e dentro da nossa casa
A miséria nos acompanha em suas coisas mais fatais
Como a comida, o livro, o disco, a roupa, o prato, a pele,
O fígado de raiva arrebentando, a garganta em pânico
E um esquecimento de nós, inexplicável,
Sentimos que a morte aqui converge
Mesmo como forma de vida, agressiva.188

O ímpeto criador encontra na modernidade uma força opositora desproporcional; o heroísmo


moderno tem de lidar com o esgotamento crescente desse impulso que levará o poeta à
morte189. Como modo de subverter tal situação impossível, o suicídio se torna uma “paixão
heroica”: “uma forma de vida agressiva” – um paradoxo que chega ao extremo do nonsense,
mas que possui uma estranha e aterradora verdade: a única certeza a que o poeta-herói pode
se agarrar, tanto para ele quanto para os moribundos que o cercam: na verdade, tão
moribundos quanto ele mesmo. Mas Paulo parece nunca chegar a compreender essa ligação
de tipo inexpugnável – ele só sente. O que era para ser simplesmente renúncia, agora torna-se
paixão. Logo antes do início do flashback, Paulo Martins, agonizando sobre as dunas, diz –
num apelo imaginário a Sara – que todos o acharão um louco por morrer assim. Mas sua
determinação heroica é mais forte do que qualquer coisa. Da impossibilidade é engendrada
uma possibilidade radical.

Estou morrendo agora, nesta hora.


Estou morrendo neste tempo.
Estou correndo meu sangue e minhas lágrimas.
Ah, Sara! Todos vão dizer que sempre fui um louco,
Um anarquista que sempre...

186
A multidão é o filtro pelo qual passa a cosmovisão de Paulo em relação a Eldorado.
187
Nesta e nas páginas seguintes, analisaremos todos os monólogos de Paulo Martins, mas sem seguir a
ordenação deles no decorrer do longa-metragem. A intenção é isolar estes monólogos para os lermos como
poesia, e assim tentar aumentar, através da análise poética, a potência fílmica e imagética contida nesses versos.
188
ROCHA: 1985, p. 302.
189
Benjamin chega a mencionar que a modernidade promove um verdadeiro “pogrom” de poetas. Ver:
BENJAMIN: 2015.
103

Ah, não sei, Sara...


Onde estava há dois, três, quatro anos? Onde?
Com dom Porfírio Diaz, navegando nas manhãs.
O meu deus da juventude, dom Porfírio Diaz...190

A consciência do aniquilamento inevitável toma conta dos pensamentos de Paulo logo após a
vitória de Vieira, marcada por uma campanha de feições populistas, que revelam de maneira
sub-reptícia os acordos, os “conchavos”, os interesses alheios aos do “povo”. Esses
pensamentos prenunciam a reação que viria a seguir, por parte de Paulo, em relação àqueles
que pensa dedicar todas as suas boas intenções. Ao enfrentar uma campanha tão cheia de
revezes do ponto de vista ideológico, o poeta-político coloca em dúvida a capacidade de Vieira
e se coloca também em dúvida em relação à sua própria conduta.

Palácio de Alecrim. Paulo e Sara na varanda, escrevendo.

PAULO (off)
E vencemos! As coisas que vi naquela campanha! Uma tragédia muito maior do
que nossas próprias forças. Na calma daquela varanda onde tínhamos planejado
em festa a luta, eu, agora ao teu lado, pensava nos problemas que surgiriam e me
perguntava como responderia o governador eleito às promessas do candidato.
Sobretudo, eu perguntava a mim e aos outros como reagiríamos nós?191

O que se segue é que a sede por justiça social se transmuta em violência.

O governador Vieira chega ao local acompanhado de Paulo, Jerônimo, Aldo,


soldados e policiais. Felício adianta-se, o povo é cercado pela polícia.

FELÍCIO
É que nossas família chegou nessas terra já tem mais de vinte ano e a gente lavrou
as terra, plantou nelas e as mulher da gente pariu nessas terra. Agora a gente num
pode deixar as terra só porque apareceu uns dono num sei daonde trazendo um
papel do cartório e dizendo que as terra é dele... É isto que eu queria dizer, seu
doutor... A gente acredita no sinhô, mas se a justiça decidir que a gente deve
deixar as terra, a gente morre mas num deixa não!
PAULO
Se acalme, Felício, respeite o governador.
FELÍCIO
Doutor, o sinhô... Eu confio no sinhô, mas a gente tem que gritar...
PAULO
Gritar com o quê?
FELÍCIO
Gritar com o que sobrar da gente, com os ossos...
PAULO
Cale a boca, você e sua gente não sabe de nada!

190
ROCHA: 1985, p. 290.
191
ROCHA: 1985, p. 295.
104

FELÍCIO
Doutor Paulo, o sinhô era meu amigo, o sinhô me prometia...
PAULO
Nunca lhe prometi nada!
FELÍCIO
Eu num sou mentiroso!
PAULO
É um miserável, fraco, falador, covarde!
FELÍCIO
Doutor Paulo!

Paulo agride Felício, derruba-o no chão. O povo se agita e é contido pela polícia.

PAULO
Tá vendo como você não vale nada?
FELÍCIO
Doutor Paulo! O sinhô era meu amigo!192

No fim das contas, o compromisso de Vieira – assim como o de Diaz – é com o estabilishment
que financiou sua campanha, o que acaba por sufocar os sonhos de emancipação popular que
era a grande meta da equipe de campanha formada por Vieira, Paulo e Sara. A resposta, de
certa forma, “inconsciente” do poeta à esta tragédia é a violência, pois este é o caminho mais
curto e fácil para a morte como forma de redenção popular para ele.

A percepção precoce da realpolitik é o começo do declínio do poeta-político antes mesmo de


seu verdadeiro engajamento, confessado a Porfírio Diaz, seu “padrinho”, no palácio do futuro
ditador, quando este elegeu-se senador. A decepção de Diaz ao perceber que Paulo – tomado
por um tédio imenso – diz querer entrar na política através dos seus próprios meios, selou a
separação entre estes dois amigos que cultivavam um laço fraternal. Rompimento que lançou
Paulo em mais incertezas, o enchendo de spleen.

Vejo campos de agonia,


Velejo os mares do Não...
Na ponta da minha espada
Trago os restos da paixão
Que herdei daquelas guerras.
Umas de mais, outras de menos,
Testemunhas silenciosas
Do sangue que nos sustenta.
Convivemos com a morte.
Dentro de nós a morte se converte
Em tempo diário, em derrota
Do quanto empregamos,

192
ROCHA: 1985, p. 296.
105

Ao passo que vamos, recuamos.193

O desejo pela morte, transmutado em “forma de vida agressiva” também é extensiva à


multidão. “Era bem possível que o suicídio surgisse aos olhos de Baudelaire como o único ato
heroico que restava às ‘multitudes maladives’ das cidades em tempos de reação” 194 .
Analogamente, Paulo compartilha desta visão baudelairiana: num furor carnavalesco – onde
vozes e opiniões, das mais disparatadas entre si, são colocados de forma conflituosa num
espaço comum – é fixado em seu centro a figura do “povo”. De forma quase didática, Glauber
encenou um carnaval em que as mais diversas contradições e discursos foram colocados em
jogo, provocando um estranhamento e um histrionismo francamente irritante. Paulo olhava
aquele carnaval com um misto de ironia, raiva e ainda mais melancolia.

Qual o sentido da coerência?


Dizem que é prudente observar a História sem sofrer
Até que um dia, pela coincidência,
As massas tomem o poder...
Ando nas ruas e vejo o povo fraco, abatido,
Este povo não pode acreditar em nenhum partido.
Este povo, cuja tristeza apodreceu o sangue
Precisa da morte mais do que pode supor.
O sangue que em seu irmão estimula a dor,
O sentimento do nada que faz nascer o amor,
A morte enquanto fé e não como temor.195

A “morte enquanto fé” era o ideal que Paulo queria compartilhar com a multidão, a linha
divisória entre o messianismo de cepa mais convencional e um tipo de redenção que ele
imaginava para si e para seus “semelhantes”: sua “religião pessoal” e a única comunidade por
vir que ele consegue formular conscientemente. A fome enquanto tal é denegada por uma
intransigente ignorância de um sujeito (por demais culto) que não compreende esta potência.
Mas seria através da fome como categoria política – muito além dos instrumentais poéticos e
filosóficos mais eruditos – que se delinearia alguma outra alternativa política que efetivamente
promovesse algum tipo de emancipação. Eis o plano criado por Terra em transe que Paulo

193
ROCHA: 1985, p. 292.
194
BENJAMIN: 2015, p. 71.
195
ROCHA: 1985, p. 292.
106

ajuda a compor, mas à sua revelia. O poeta-político é o intercessor, uma espécie de


“personagem conceitual” 196 que atuaria diretamente na construção de um novo processo
político, filosófico (e mesmo artístico) que ainda não tem nome (mesmo que isso pareça
contraditório): um plano sendo tecido e retecido, que como tal, possui em seus interstícios
armadilhas que remetem quase todos os entes do filme – tanto dentro quanto fora dele – para
ainda mais longe da compreensão da fome. É preciso estar atento para não cair em armadilhas,
como Sara está sempre atenta.

Recebi o dom da voz


Destas carnes fustigadas,
Destes olhos que sugaram
Muitas léguas caminhadas
Neste esquecer os horizontes
Que outros poetas buscaram...197

Enquanto que Paulo pisa em estrelas.

Mar bravio que me envolve neste doce continente...


Posso morder a raiz das canas, a folha de fumo,
Posso beijar os deuses.
O milagre da minha pele morena-índia
A este esquecimento posso doar a minha triste voz latina,
Mais triste que revolta, muito mais...
Vomito na calle o ácido dólar,
Avançando nas praças entre niños sucios
Con sus ojos de pajaros cegos,
Vejo que de sangue se desenha o Atlântico
Sob uma constante ameaça de metais a jato,
Guerras e guerras nos países exteriores.
Posso acrescentar que na Lua um astronauta se deu por achado.
Todas as piadas são possíveis na tragédia de cada dia.
Eu, por exemplo, me dou ao vão exercício da poesia.198

196
O “personagem conceitual” é aquele ente que opera os conceitos filosóficos dentro de um “plano de imanência”
que seria uma espécie de “horizonte filosófico”. Um agente do “maquinário do pensamento” realizando
incessantemente um “moto-contínuo”, levando o pensamento a horizontes ainda não concebidos. Mas o
personagem conceitual (assim como o conceito e o plano de imanência) não se aplicam à arte in totum: em nosso
caso, ao cinema. Mas o personagem conceitual e a “figura estética” (seu correspondente no plano artístico)
podem estabelecer uma co-determinação entre a filosofia e a arte. “A figura teatral e musical de Don Juan se
torna personagem conceitual com Kierkegaard, e o personagem Zaratustra em Nietzsche já é uma figura de
música e de teatro” (DELEUZE & GUATTARI: 2007, p. 88). A arte opera por “afectos” e “perceptos”, enquanto
que a filosofia, por conceitos. Os cortes no caos que a arte e a filosofia produzem (os planos) são diferentes entre
si, mas um devém o outro em intensidades co-determinantes. Em nosso trabalho, Paulo Martins faz devir um
personagem conceitual, apesar de ser uma figura estética. Ele é um agente dos acontecimentos que vão além da
gramática cinematográfica.
197
ROCHA: 1985, p. 304.
107

Os vômitos de Paulo Martins nada mais são do que a instalação da diferença em meio ao
transe, que tende à uniformidade cinza; ou, como uma flecha lançada em linha reta em
altíssima velocidade. Terra em transe seria o que Deleuze & Guattari chamam de “logodrama”.
Assim como um filósofo pode “povoar” a filosofia com instâncias artísticas, o inverso também
pode ser feito. O personagem conceitual pode ajudar a compor um “plano de composição”
(próprio da arte). Dessa forma, Glauber Rocha seria um “gênio híbrido”: “Esses pensadores
são filósofos ‘pela metade’, mas são também bem mais que filósofos, embora não sejam
sábios”199. O artista-filósofo se instala na diferença: eis a sua superioridade. E eis também o que
deveria ser a tarefa de todo cineasta, o que Glauber Rocha sempre fez. Tal procedimento o
alçou à condição de gênio, mas também provocou revezes incontornáveis em sua vida pessoal,
política, filosófica e artística. Seu devir revolucionário – forte demais – se abateu sobre seu
corpo, levando-o à morte.

A cadeia de “impossibilidades” de Paulo Martins foi muito além da ficção. Segundo Ivana
Bentes, Glauber Rocha assinava como “Paulo Martins” em várias cartas de sua lavra. Em Terra
em transe, o personagem Paulo Martins se transmuta num heterônimo de Glauber Rocha, o
“homem histórico” de acordo com uma definição que ele fizera de si mesmo.

Não é mais possível esta festa de medalhas,


este infinito aparato de glórias,
Esta esperança dourada nos planaltos!
Não é mais possível esta festa de bandeiras
com Guerra e Cristo na mesma posição!
Assim não é possível,
a impotência da fé, a ingenuidade da fé...

A impotência e a ingenuidade ligados à fé nada mais são do que a brusca desilusão em relação
à crença na história como um meio de emancipação coletiva. A história não importa para
aqueles que nela vão figurar no futuro. Estar ou não nos “anais da história” é de um idealismo
que beira a ingenuidade, e que ouvimos a torto e a direito. A história é como qualquer outro
discurso, composto por uma linguagem que nada tem de natural ou imparcial. E a visão dos

198
ROCHA: 1985, p. 302.
199
DELEUZE & GUATTARI: 2007, p. 89.
108

restos e dos mortos pela marcha da razão, é mais do que o suficiente para levar o poeta ao
suicídio.

(...)
Não é mais possível...
Somos infinita, eternamente filhos das trevas,
da escuridão e da miséria!
Somos eternamente filhos do medo
da sangria no corpo do nosso irmão!
Nossas lutas, nossos ideais
vendidos a Deus e aos senhores
Uma passiva fraqueza típica dos indolentes!
Ah, não é possível acreditar que tudo isto seja verdade!
Até quando suportaremos?
Até quando além da fé e da esperança suportaremos?
Até quando além da paciência e do amor suportaremos?
Até quando além da inconsciência?
Até quando suportaremos?...
Até quando? Até quando? Até quando, Sara?
Sara, foi tudo para amar você...200

O poeta repete, insistentemente “Até quando...?” Eis a apoteose da morte como ideal e como
redenção possíveis para “este infeliz aparato de glórias”. Uma resposta possível a este apelo
seria “até quando morrermos”. E para despeito de Sara que insistentemente pergunta para quê
a morte do poeta irá servir, este responde: “Em nome da Beleza e da Justiça”. O poeta foi
vítima da violência de sua própria fome, forte demais.

E o resto não é silêncio. É som de metralhadora que nos ensurdece.

200
ROCHA: 1985, p. 304.
109

Considerações finais

A história, na medida em que está a serviço da vida, está a serviço de uma potência a-
histórica e, por isso, nunca, nessa subordinação, poderá e deverá tornar-se ciência
pura, como, digamos, a matemática.

Friedrich Nietzsche
110

A imagens dialéticas interligam Terra em transe, de forma direta, aos signos ancestrais que
compõem e produzem uma crítica poderosa à modernidade através da produção intelectual e
artística da fome enquanto expressão cultural. E essas imagens tomam forma através da poesia
que possui aquilo que o cineasta baiano chamou de “realismo do vômito”. Este realismo é a
exteriorização das pulsões inconscientes da fome por parte de Paulo Martins.

Ele mesmo nunca chegou a compreender esta fome; mas, tal como um personagem conceitual,
Paulo costurou, através de sua potente poesia e de suas ações, esta possibilidade de redenção
através de uma violência liberadora. Ele é um poeta que devém a produção de um plano
conceitual. Neste plano, o realismo do vômito e a violência liberadora nada mais são do que as
próprias imagens dialéticas. É através dessas analogias escatológicas que entendemos o
significado desse verdadeiro acontecimento cinematográfico.

Para além de alegorias violentas, sujas e “pobres”, o que há por trás desse confronto
promovido pelo cinema novo é de uma extrema sofisticação intelectual. Terra em transe –
assim como outros filmes de Glauber Rocha (e arriscaríamos dizer, do cinema moderno) –,
possui este “a mais” que fica sempre incógnito. Uma dificuldade que não é da ordem do
âmbito estritamente intelectual, mas que busca um outro “regime cognitivo” para
apreendermos as linguagens – tanto a cinematográfica quanto a literária ou historiográfica –
para aprendermos e apreendermos as novas possibilidades e modos de viver através de signos
que habitam o nosso meio, mas que não nos damos conta. Só através de uma intervenção, algo
violenta, como a de nosso poeta-político é que há a possibilidade de que tal “regime” passe a se
tornar “visível”.

Para nós, este trabalho foi um “tijolo” na construção de uma visão renovada sobre esta obra. E,
na prática, sem precisar dessa violência, exatamente por caracterizar o que ela tem de original
e colhermos seus frutos poéticos e políticos.

No primeiro capítulo entendemos que o que chamamos de “pensamento descolonizador de


Glauber Rocha” é, acima de tudo, uma provocação. Não podemos exigir de um artista, ainda
mais de um artista que a tudo queria subverter, a pecha de um pensador em sentido estrito.
No máximo ele aponta caminhos possíveis e sua “ideologia” é inexistente. Aquilo que
chamamos de “ideologia xamânica” é uma visão de mundo que não cabe em nenhum sistema
de pensamento (mas sem deixar de ser um pensamento mesmo assim). Era exatamente esta a
111

originalidade do cineasta baiano. Suas imagens falam por si, de diversas maneiras e este
trabalho tratou de revelar mais algumas que não estavam clarificadas o suficiente. Em seus
manifestos e nas imagens de Terra em transe, Glauber nos legou um leque gigantesco de
vetores possíveis para a construção de uma radical descolonização do pensamento.

No decorrer de nossa escrita – num patamar mais teórico – fomos percebendo que a imagem
dialética começou a ganhar designações que não pertencem ao vocabulário benjaminiano, tal
como “acontecimento” e “transversalidade”, importados do pensamento de Deleuze &
Guattari. As imagens dialéticas, por sua natureza monadológica e “interligável”, é um
acontecimento da mais alta cepa. E ela liga mundos e fenômenos distintos de maneira
transversal, ou seja, de forma encurtar distâncias através de caminhos através das dobras do
universo social e das mais diversas linguagens a que temos acesso.

E é essa transversalidade que nos liga ao mundo das pulsões míticas – fundamentalmente
críticas da modernidade – traçada pela poesia de tipo moderna de Paulo Martins.

Nós nos orgulhamos particularmente por ter ido mais a fundo na poesia e na poética de
Glauber Rocha, via seus “avatares” ou “heterônimos”: o cantador de Deus e o diabo... e Paulo
Martins, principalmente. Faltava um estudo de maior profundidade que desse conta da
habilidade poética – absolutamente estonteante – do cineasta baiano. E nessa seara,
descobrimos que Paulo é o nó que enuncia uma palavra poética potente, ao mesmo tempo
“escancarando” o mundo das pulsões míticas, criando uma crítica tão radical quanto
profunda.

Assim, o “idealismo historicista” perde a substância, sendo “desmascarada” por este


procedimento poético, político e filosófico. Vimos que o Ideal da história linear e progressista
é subvertido, revelando o seu conteúdo de forma a deixar a nu seu idealismo vazio. O Transe é
– usando-se aqui de palavras com feições nietzscheanas – contra a vida.

Terra em transe é uma reinvindicação radical da vida em meio à lama viscosa e imobilizante
da modernidade.
112

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BARRAVENTO. Direção: Glauber Rocha. Produção: Braga Neto, Rex Schindler, Roberto Pires.
São Paulo: Versátil Home Video, 2008. 2 DVD’s (80 min. DVD 1), p&b, NTSC.

DEUS e o diabo na terra do sol. Direção: Glauber Rocha. Produção: Luis Augusto Mendes. São
Paulo: Versátil Home Video, 2005. 2 DVD’s (125 min. DVD 1), p&b, NTSC.

MEMÓRIAS do subdesenvolvimento. Direção: Tomás Gutiérrez Alea. Produção: Miguel


Mendoza. Rio de Janeiro: Videofilmes, 2005. 1 DVD (97 min.), p&b, NTSC. Título original:
Memorias del subdesarrollo.

O DRAGÃO da maldade contra o santo guerreiro. Direção e produção: Glauber Rocha. São
Paulo: Versátil Home Video, 2008. 2 DVD’s (95 min. DVD 1), cor, NTSC.

O ENCOURAÇADO Potemkin. Direção: Sergei Eisenstein. São Paulo: Continental Home


Video, 2004. 1 DVD (74 min.), p&b, NTSC. Título original: Bronenosets Potymkin.

O LEÃO de sete cabeças. Direção: Glauber Rocha. Produção: Gianni Barcelloni. São Paulo:
Versátil Home Video, 2011. 1 DVD (95 min.), cor, NTSC. Título original: Der leone have sept
cabeças.

OS FUZIS. Direção: Ruy Guerra. Produção: Jarbas Barbosa e Gilberto Perrone. Rio de Janeiro:
Copacabana filmes. Visto em: https://www.youtube.com/watch?v=TcwztzyD998. 80 min., p&b.

OUTUBRO. Direção: Sergei Eisenstein. São Paulo: Continental Home Video, 2004. 1 DVD (74
min.), p&b, NTSC. Título original: Oktyabre.

TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. Produção: Zelito Vianna. São Paulo: Versátil
Home Video, 2006. 2 DVD’s. (115 min. DVD 1), p&b, NTSC.

#ForaPorfirioDiaz
116

Anexos:

Os manifestos
Eztetyka da fome (Gênova, Itália, janeiro de 1965) e
Eztetyka do sonho (Nova York, EUA, janeiro de 1971)
117

Eztetyka da fome201
Glauber Rocha

Tese apresentada durante as discussões em torno do cinema novo, por ocasião da


retrospectiva realizada na V Rassegna del Cinema Latino-Americano em Gênova,
janeiro de 1965, sob o patrocínio do Columbianum. O tema proposto pelo secretário
Aldo Viganò foi Cinema novo e cinema mundial. Contingências forçaram a
modificação: o paternalismo europeu em relação ao Terceiro Mundo foi o principal
motivo da mudança de tom.

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das discussões


sobre América Latina, prefiro situar as relações entre nossa cultura e a cultura civilizada em
termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador
europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta a suas misérias gerais, o interlocutor
estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado
formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem
civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente
mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que julgariam problemas sociais)
conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que
não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político.

Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o


interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se
apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas
porque impostas pelo condicionamento colonialista.

A América Latina permanece colônia e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é


apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas
sutis daqueles que também sobre nós armam futuros botes.

201
Extraído de ROCHA: 2004, pp. 63-67.
118

O problema internacional da América Latina é ainda um caso de mudança de colonizadores,


sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova
dependência.

Este condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência,


que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a
histeria.

A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente em nossas artes, onde o autor se castra em
exercícios formais que, todavia, não atinge a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado
da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim vemos
centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças
teatrais, filmes (que sobretudo em São Paulo provocam falências)... O mundo oficial
encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências
fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns
monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais
pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os
títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O


primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é
uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais
eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que
nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e auto-
devastador esforço no sentido de superar a impotência, e, no resultado desta operação a fórceps,
nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador: e se ele nos compreende,
então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe
inspira. Mais uma vez o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de
lágrimas ou de mudo sofrimento.

A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria
sociedade. Aí reside a trágica originalidade do cinema novo diante do cinema mundial: nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome sendo sentida não é
compreendida.
119

De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou,
excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens
roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer,
personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de
famintos que identificou o cinema novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela
crítica dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando
as imagens da sua própria miséria. Este miserabilismo do cinema novo opõe-se à tendência do
digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em
casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens,
de objetivos puramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e
nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia
indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder
a fome que está enraizado na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de
imagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem este tipo
de filme. O que fez do cinema novo um fenômeno de importância internacional foi justamente
seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito
pela literatura de 30, foi agora foi fotografado pelo cinema de 60; e se antes escrito como
denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do
miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo
Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas), ao social (Vidas secas), ao político (Deus
e o diabo), ao poético (Ganga Zumba, rei dos Palmares), ao demagógico (Cinco vezes favela),
ao experimental (Sol na lama), ao documental (Garrincha, alegria do povo), à comédia (Os
mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas realizadas outras, mas todas
compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o
período Jânio-Jango: o período das grandes crises da consciência e de rebeldia, de agitação e
revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo
ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o cinema novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o
europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro, uma vergonha nacional. Ele não
come e tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós –
que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a
razão falou mais alto – que a fome não será curado pelos planejamentos de gabinete e que os
120

remendos do tecnicólor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura
da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre
manifestação cultural da fome é a violência.

A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma
das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da
fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar
professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar o ofício sem ensinar o analfabeto. A
diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede; o cinema novo no campo
internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em 22 festivais
nacionais.

Pelo cinema novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um


faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? A mulher de Porto das
Caixas é primitiva?

Do cinema novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o
ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado; somente
conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo
horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue armas o colonizado é um
escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não
diríamos que está ligado ao velho humanismo colonizador. O amor que esta violência encerra é
tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de
contemplação mas um amor de ação e transformação.

O cinema novo por isto, não faz melodramas: as mulheres do cinema novo sempre foram seres
em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a
mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba, foge de
guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os filhos; Rosa
vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moca do padre precisa
romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O desafio rompe com o amante
porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do
amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre.
121

Já passou o tempo em que o cinema novo precisava explicar-se para existir: o cinema novo
necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à
luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O cinema novo não
pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e
cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o cinema novo é um fenômeno
dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta
disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí
haverá um germe vivo do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de
qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes
de seu tempo, aí haverá um germe do cinema novo. A definição é esta e por esta definição o
cinema novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do cinema industrial é com a
mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do cinema novo depende da
liberdade na América Latina. Para esta liberdade, o cinema novo empenha-se em nome de si
próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos
mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes no tempo de
filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia: não é um filme mas um
conjunto de filmes em evolução que dará , por fim, ao público, a consciência de sua própria
existência.

Não temos por isto maiores pontos de contato com o cinema mundial.

O cinema novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as
fraquezas consequentes de sua existência.

Eztetyka do sonho202
Glauber Rocha

No Seminário do Terceiro Mundo, realizado em Gênova, Itália, 1965, apresentei, a propósito


do cinema novo brasileiro, “A estética da fome”.

202
Extraído de ROCHA: 2004, pp. 248-251.
122

Esta comunicação situava o artista do Terceiro Mundo diante das potências colonizadoras:
apenas uma estética da violência poderia integrar um significado revolucionário em nossas
lutas de liberação.

Dizia que nossa pobreza era compreendida mas nunca sentida pelos observadores coloniais.

1968 foi o ano das rebeliões da juventude.

O maio francês aconteceu no momento em que estudantes e intelectuais brasileiros


manifestavam no Brasil seu protesto contra o regime militar de 1964.

Terra em transe, 1966, um manifesto prático da estética da fome, sofreu no Brasil críticas
intolerantes da direita da direita e dos grupos sectários da esquerda.

Entre a repressão interna e a repercussão internacional aprendi a melhor lição: o artista deve
manter sua liberdade diante de qualquer circunstância.

Somente assim estaremos livres de um tipo muito original de empobrecimento: a oficialização


que os países subdesenvolvidos costumam fazer de seus melhores artistas.

Este Congresso em Colúmbia é outra oportunidade que tenho para desenvolver algumas ideias a
respeito de arte e revolução. O tema da pobreza está ligado a isto.

As Ciências Sociais informaram estatísticas e permitem interpretações sobre a pobreza.

As conclusões dos relatórios do sistemas capitalistas encaram o homem pobre como um homem
que deve ser alimentado. E nos países socialistas observamos a permanente polêmica entre os
profetas da revolução total e os burocratas que tratam o homem como objeto a ser massificado.
A maioria dos profetas da revolução total é composta por artistas. São pessoas que têm uma
aproximação mais sensitiva e menos intelectual com as massas pobres.

Arte revolucionária foi a palavra de ordem do Terceiro Mundo nos anos 60 e continuará a ser
nesta década. Acho, porém, que a mudança de muitas condições políticas e mentais exige um
desenvolvimento contínuo dos conceitos de arte revolucionária.

Primarismo muitas vezes se confunde com os manifestos ideológicos. O pior inimigo da arte
revolucionária é sua mediocridade. Diante da evolução sutil dos conceitos reformistas da
ideologia imperialista, o artista deve oferecer respostas revolucionárias capazes de não aceitar,
123

em nenhuma hipótese, as evasivas propostas. E, o que é mais difícil, exige uma precisa
identificação do que é arte revolucionária útil ao ativismo político, do que é arte revolucionária
lançada na abertura de novas discussões do que é arte revolucionária lançada na abertura de
novas discussões do que é arte revolucionária rejeitada pela esquerda e instrumentalizada pela
direita.

No primeiro caso eu cito, como homem de cinema, o filme de Fernando Ezequiel Solanas,
argentino, La hora de los hornos. É um típico panfleto de informação, agitação e polêmica
utilizado atualmente em várias partes do mundo por ativistas políticos.

No segundo caso tenho alguns filmes do cinema novo brasileiro entre os quais meus próprios
filmes.

E por último, a obra de Jorge Luís Borges.

Esta classificação revela as contradições de uma arte expressando o próprio caso


contemporâneo. Uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente
político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno
movimento humano rumo à sua integração cósmica.

A existência descontínua desta arte revolucionária no Terceiro Mundo se deve


fundamentalmente às repressões do racionalismo.

Os sistemas culturais, de direita e de esquerda, estão presos a uma razão conservadoras. O


fracasso das esquerdas no Brasil é resultado deste vício colonizador. A direita pensa segundo a
razão da ordem e do desenvolvimento. A tecnologia é ideal medíocre de um poder que não tem
outra ideologia senão o domínio do homem pelo consumo. As respostas da esquerda, exemplifico
outra vez o Brasil, foram paternalistas em relação ao tema central dos conflitos políticos: as
massas pobres.

O Povo é o mito da burguesia.

A razão do povo se converte em razão da burguesia sobre o povo.

As variações ideológicas desta razão paternalista se identificam em monótonos ciclos de protesto


e repressão. A razão de esquerda revela herdeiro da razão revolucionária burguesa europeia. A
colonização, em tal nível, impossibilita uma ideologia revolucionária integral que teria na arte
124

sua expressão maior, porque somente a arte pode se aproximar do homem na profundidade que
o sonho desta compreensão possa permitir.

A ruptura com os racionalismos colonizadores é a única saída.

As vanguardas do pensamento não podem mais se dar ao sucesso inútil de responder à razão
opressiva com a razão revolucionária. A revolução é a anti-razão que comunica as tensões e
rebeliões do mais irracional de todos os fenômenos que é a pobreza.

Nenhuma estatística pode informar a dimensão da pobreza.

A pobreza é a carga autodestrutiva máxima de cada homem e repercute psiquicamente de tal


forma que este pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à
razão que o explora como escravo. A outra, na medida em que o pobre não pode explicar o
absurdo de sua própria pobreza, é naturalmente mística.

A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime à bala. Para ela tudo
que é irracional deve ser destruído, seja a mística religiosa, seja a mística política. A revolução
como possessão do homem que lança sua vida rumo a uma ideia, é o mais alto astral do
misticismos. As revoluções fracassam quando esta possessão não é total, quando o homem
rebelde não se libera completamente da razão repressiva, quando os signos da luta não se
produzem a um nível de emoção estimulante e reveladora, quando, ainda acionado pela razão
burguesa, método e ideologia se confundem a tal ponto que paralisam as transações da luta.

Na medida em que a desrazão planeja as revoluções a razão planeja a repressão.

As revoluções se fazem na imprevisibilidade da prática histórica que é a cabala do encontro das


forças irracionais das massas pobres. A tomada política do poder não implica o êxito
revolucionário.

Há que tocar, pela comunhão, o ponto vital da pobreza que é seu misticismo. Este misticismo é a
única linguagem que transcende ao esquema racional da opressão. A revolução é uma mágica
porque é o imprevisto dentro da razão dominadora. No máximo é vista como uma possibilidade
compreensível. Mas a revolução deve ser uma impossibilidade de compreensão para a razão
dominadora de tal forma que ela mesma se negue e se devore diante de sua impossibilidade de
compreender.
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O irracionalismo liberador é a mais forte arma do revolucionário. E a liberação, mesmo nos


encontros da violência em nome de uma comunidade fundada pelo sentido do amor ilimitado
entre homens. Este amor nada tem a ver com o humanismo tradicional, símbolo da boa
consciência dominadora.

As raízes índias e negras do povo latino-americano devem ser compreendidas como única força
desenvolvida deste continente. Nossas classes médias e burguesas são caricaturas decadentes das
sociedades colonizadoras.

A cultura popular será sempre uma manifestação relativa quando apenas inspiradora de uma
arte criada por artistas ainda sufocados pela razão burguesa.

A cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore, mas a linguagem popular de
permanente rebelião histórica.

O encontro dos revolucionários desligados da razão burguesa com as estruturas mais


significativas desta cultura popular será a primeira configuração de um novo signo
revolucionário.

O sonho é o único direito que não se pode proibir.

A “Estética da fome” era a medida da minha compreensão racional da pobreza em 1965.

Hoje recuso falar em qualquer estética. A plena vivência não pode se sujeitar a conceitos
filosóficos. Arte revolucionária deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto
que ele não mais suporte viver nesta realidade absurda.

Borges, superando esta realidade, escreveu as mais liberadoras irrealidades de nosso tempo. Sua
estética é a do sonho. Para mim é uma iluminação espiritual que contribuiu para dilatar a
minha sensibilidade afro-índia na direção dos mitos originais da minha raça. Esta raça, pobre e
aparentemente sem destino, elabora na mística colonizadora do catolicismo, que é feitiçaria da
repressão e da redenção moral dos ricos.

Não justifico nem explico meu sonho porque ele nasce de uma intimidade cada vez maior com o
tema de meus filmes, sentido natural de minha vida.

Columbia University – New York


Janeiro, 1971.

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