Madeleine Roux - Casa Das Fúrias - 03 - Tumba Dos Antigos
Madeleine Roux - Casa Das Fúrias - 03 - Tumba Dos Antigos
Madeleine Roux - Casa Das Fúrias - 03 - Tumba Dos Antigos
1. Rosto
2. Créditos
3. Dedicatória
4. Epigrafe 1
5. Epigrafe 2
6. Prólogo
7. Capítulo Um
8. Capítulo Dois
9. Capítulo Três
10. Capítulo Quatro
11. Capítulo Cinco
12. Capítulo Seis
13. Capítulo Sete
14. Capítulo Oito
15. Capítulo Nove
16. Capítulo Dez
17. Capítulo Onze
18. Capítulo Doze
19. Capítulo Treze
20. Capítulo Catorze
21. Capítulo Quinze
22. Capítulo Dezesseis
23. Capítulo Dezessete
24. Capítulo Dezoito
25. Capítulo Dezenove
26. Capítulo Vinte
27. Capítulo Vinte e um
28. Capítulo Vinte e dois
29. Capítulo Vinte e três
30. Capítulo Vinte e quatro
31. Capítulo Vinte e cinco
32. Capítulo Vinte e seis
33. Capítulo Vinte e sete
34. Capítulo Vinte e oito
35. Capítulo Vinte e nove
36. Capítulo Trinta
37. Capítulo Trinta e um
38. Epílogo
39. Agradecimentos
40. Créditos das imagens
41. Sua opinião é muito importante
Landmarks
1. Cover
TÍTULO ORIGINAL Tomb of Ancients © 2019 by HarperCollins Publishers. Publicado com a autorização da HarperCollins Children’s Books, uma divisão da
HarperCollins Publishers.
© 2019 VR Editora S.A.
Plataforma21 é o selo jovem da VR Editora DIREÇÃO EDITORIAL Marco Garcia EDIÇÃO Thaíse Costa
Macêdo EDITORA-ASSISTENTE Natália Chagas Máximo PREPARAÇÃO Isadora Prospero REVISÃO
Raquel Nakasone e Juliana Bormio de Sousa DIAGRAMAÇÃO Pamella Destefi ILUSTRAÇÕES © 2019 by
Iris Compiet CAPA E TIPOGRAFIA Erin Fitzsimmons e Catherine San Juan ILUSTRAÇÃO DE CAPA
Carolina Marando Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)
Roux, Madeleine Tumba dos antigos [livro eletrônico] / Madeleine Roux ; tradução Guilherme Miranda. - São
Paulo: Plataforma21, 2020. - (Casa das fúrias; 3) 5 Mb; ePub Título original: Tomb of ancients ISBN 978-65-
5008-031-0
1. Ficção juvenil 2. Suspense - Ficção I. Título II. Série.
20-32832 CDD-028.5
Estava ficando cada vez menos evidente onde eu terminava e ele começava. Os
sonhos do meu pai haviam se tornado meus e, como seu coração sombrio, eram
sempre terríveis e perturbadores. Eu temia dormir, mas pegava no sono facilmente,
uma letargia profunda e repleta de sonhos que me consumia assim que encostava a
cabeça no travesseiro. Por vezes, nesses sonhos, eu vagava pelo passado – o meu e
o dele –, assistindo a tudo como uma observadora, alguém de fora julgando minhas
escolhas e as dele.
Naquela noite, porém, eu explorava um corredor aparentemente infinito, alto e
arqueado como uma catedral, com as paredes e os pisos feitos de um vidro negro e
cintilante. E, embora não houvesse nenhuma explicação para aquilo, eu sabia que
aquele lugar, assim como minha presença ali, era real. Embora vagasse por ele no
sonho, parecia tão sólido e verdadeiro quanto os ossos em meu corpo e o sangue em
minhas veias. Um espaço real e verídico, escondido em algum lugar, uma igreja de
luz estelar e mistério, com um segredo imenso se agitando feito as câmaras
determinadas e sangrentas de um coração.
Quando entrei naquele corredor, andei com os passos do meu pai, a presença de
sua alma em meu corpo e sua voz nunca longe de meus pensamentos, como se ele
estivesse ali ao meu lado, sorrindo, com uma pergunta nos lábios.
Está perdida, criança?
Eu não me sentia perdida naquele sonho – naquele estranho corredor infinito.
Havia algo no fim do corredor esperando por mim, uma resposta ou talvez um final.
Segui em sua direção, determinada e trêmula, pois nenhum final vem facilmente e
nenhuma resposta é dada sem um preço.
≥apítulo Um
Londres
Outono de 1810
Na noite do baile, eu olhei para o alpendre, coberto por dezenas de aranhas mortas
e, por instinto, levara a mão à porta atrás de mim. Não havia dúvidas sobre o
significado daquilo: alguém mal-intencionado estava vigiando a casa, observando-a
– e nos observando – atentamente, e tinham deixado um cartão de visitas. Não o
tipo de cartão gentil e delicado como o que eu tinha deixado algumas semanas antes
com a minha meia-irmã havia muito perdida. Não, não era uma apresentação
simpática, mas um alerta. Eu me perguntei se tinha alguma relação com Mary.
Quando chegamos a Londres, ela usara seus poderes de fae das trevas para esconder
nossa presença e a casa. Era uma precaução devido ao meu medo de que nunca
escapássemos incólumes da Casa Coldthistle. Muitos acontecimentos sombrios
haviam se passado lá e, sempre prestativa, ela concordara em usar o mais leve
escudo que conseguia fazer, uma espécie de miragem que nos camuflaria na
vizinhança como duas habitantes nativas e desinteressantes.
Mas, depois de semanas de quietude absoluta, eu lhe disse que a proteção não era
mais necessária. Como estava enganada.
Empurrando algumas aranhas mortas com os pés, ergui os olhos para o perímetro
do gramado cercado por portões, procurando algo nefasto que não devesse estar ali.
Mas a névoa era densa, e todos que permaneciam na rua até aquela hora estavam
escondidos por pesados casacos pretos ou dentro de carruagens, que na névoa
pareciam puxadas por absolutamente nada. Por fantasmas. Voltei para dentro com
passos pesados.
Londres não era nada que eu esperava.
Apesar de todo o terror e estranheza, havia certa paz na Casa Coldthistle. Eu
acordava e encontrava um silêncio quase absoluto ou o movimento baixo dos
funcionários e hóspedes despertando, e ia dormir ao som dos roncos estrondosos do
cão Bartholomew, ou com a voz de Poppy entoando antigas canções de ninar,
guiando-nos para o mundo dos sonhos.
Em Londres, nunca havia paz, um fato com o qual eu não me importava, visto
que o tráfego dos cavalos, os gritos de gatos de rua e as animadas canções dos
bêbados voltando para casa à noite eram uma companhia distrativa. O barulho me
impedia de mergulhar demais em meus medos e pensamentos – e de obedecer ao
número crescente de vozes na minha cabeça que tinham surgido assim que meu
amigo e ex-colega Chijioke redirecionara o espírito divino do meu pai para dentro
do meu corpo, salvando-me da morte.
Não – as diferenças, as mudanças, não me incomodavam até coisas mortas
começarem a aparecer na minha soleira.
A primeira aparecera na semana anterior, um pequeno pássaro poeirento enrolado
em um lenço. Mary o havia descoberto, gritando assim que abriu a porta para
buscar nossa encomenda de lenha e combustível. O pacote estava ali, mas o pássaro
jazia em cima dele, com as pernas pretas cor de carvão curvadas, as patas
deformadas terrivelmente, parte do bico faltando como se tivesse sido quebrado e
uma colher de prata empalada no peito.
A segunda surpresa veio apenas dois dias depois, enquanto entretínhamos nossos
vizinhos, o sr. Kinton e suas filhas. Estávamos nos divertindo com uma partida
amistosa de uíste, então houve uma batida na porta e Khent pediu licença para
ajudar nossa criada, Agnes, a atender. Eles se ausentaram por tempo demais, o que
me levou a também pedir licença e me juntar a eles no corredor de entrada. Outra
coisa estranha havia aparecido – desta vez, um brinquedo infantil no formato de um
cachorro preto e peludo, cuja cabeça fora arrancada e deixada junto com o corpo.
Eu e Khent trocamos um olhar que Agnes não tinha como entender.
Tive a sensação de que trocaríamos esse olhar de novo naquela noite quando
voltei para dentro da casa. Mas não foi Khent nem Agnes que encontrei, e sim
Mary, com o cabelo castanho numa trança caprichada, puxada das orelhas e
arranjada na forma de uma coroa sobre a cabeça. Ela usava um elegante vestido
branco e um xale verde sobre os ombros. Correu na minha direção, entendendo
imediatamente a palidez furiosa em meu rosto – eu tinha saído apenas para tomar
um ar, apreensiva com meu primeiro baile social na alta sociedade londrina.
– Aconteceu de novo, não? – ela perguntou, igualmente pálida.
Khent saiu das sombras perto da escadaria, vestido para o baile em um terno
preto e um capote largo que escondia suas muitas tatuagens e cicatrizes.
– O que foi dessa vez? – Sua voz baixa estremeceu de repulsa.
– Aranhas. – Meus olhos alternaram entre os dois, então fui até a escadaria e me
apoiei no corrimão. Me senti fraca de repente, quando as vozes sussurrando em
minha cabeça se ergueram como uma maré agitada. – Um pássaro com uma colher,
um cachorro morto, aranhas… Não são alertas aleatórios, são mensagens de alguém
que sabe o que estamos fazendo aqui.
– Eu não devia ter interrompido a proteção, devia estar ajudando. Talvez não
devêssemos ir ao baile – Mary disse, mordendo o lábio. – Podemos estar em perigo.
– Então estaríamos mais seguros longe desta casa – sugeri. O corredor tinha um
brilho agradável graças aos castiçais acesos desde o anoitecer, e um aroma de carne
assada e pão persistia do jantar. Agnes e nossa governanta, Silvia, conversavam na
cozinha, tendo concluído o trabalho do dia. – Vou buscar uma vassoura –
acrescentei. – Elas vão se assustar com as aranhas.
– Elas têm o direito de saber que há algo errado – Mary protestou, me seguindo
até um armário pequeno na despensa. – Alguém está tentando assustar você. Nos
assustar.
– Eu sei, e vou contar para elas, mas… sem que elas tenham que pisar em um
monte de aranhas mortas!
Minha voz saiu alta demais. Ela se encolheu e recuou em direção ao vestíbulo,
apertando o xale em volta do corpo. Vinha acontecendo com mais frequência nos
últimos tempos – meu pavio ficava cada vez mais curto, a batalha incessante para
silenciar as vozes na minha cabeça me transformando numa pessoa cruel e exaurida.
– Isso foi injusto, Mary, me desculpe. Estou apenas apreensiva. – E exausta. E
sobrecarregada. Encontrei a vassoura e a levei rapidamente para o lado de fora,
olhando ao redor em busca de sinais de vida em nossa propriedade enquanto varria
os corpinhos pretos para as sebes.
– E com razão – Khent resmungou. Durante nossas viagens e nossa mudança
subsequente para Londres, seu inglês havia melhorado tanto que agora ele tinha
apenas um resquício de sotaque. Sua ortografia ainda precisava de atenção, mas isso
estava longe de ser prioridade. – De agora em diante, vou dormir do lado de fora.
Eles não vão se sentir tão valentes e espertos quando forem pegos no flagra.
– Que absurdo – eu disse, fechando a porta de novo para fugir da névoa fria. –
Podemos revezar, não? Manter turnos de vigia de algum tipo.
– Isso quase me faz sentir falta dos Residentes – Mary sussurrou, referindo-se às
criaturas monstruosas de sombra que vagavam por nossa antiga casa. Eles
mantinham uma vigília constante, embora por vezes eu tivesse conseguido me
esquivar deles. – Tenho certeza que a sra. Haylam deve conhecer algumas magias
para nos manter mais seguros… guardas ou coisa assim.
– Não precisamos de guardas – Khent respondeu, tirando a vassoura da minha
mão e a guardando de volta no armário. – Nós temos… – Ele limpou a garganta,
olhando por cima do ombro para conferir se Agnes e Silvia não estavam perto o
suficiente para escutar. – Eu. Temos meu faro. Você fez a gentileza de me deixar
ficar nesta casa, me abrigar. Me deixe fazer algo em troca. Além disso, você está…
Ele estava me encarando de maneira tão intensa que minha pele quase coçava.
Seus olhos insólitos pulsavam com uma luz roxa, um efeito de sua condição – a
capacidade de se transformar em um chacal gigante com garras e presas afiadas.
Então me dei conta do que ele queria dizer: eu. Minhas vozes. Meu problema.
– Complete seu raciocínio, por favor.
– Não se ofenda, eyachou. Você tem a voz de um deus louco em você; isso
colocaria à prova até o fae mais poderoso.
Mary deu um passo para trás, recuando de nossa disputa, ainda apertando o xale
ao redor do corpo.
– Você sabe que odeio quando me chama assim. – Meu temperamento estava
causando mais disso também: brigas e desentendimentos. Me inflamava saber que
tanto Mary como Khent podiam ver que eu estava sofrendo. Era para eu ser a chefe
da casa, aquela que havia herdado a fortuna que bancava nossa vida nova e
reluzente em Londres, a guardiã em quem se podia confiar. Mas estava ficando
claro que meu embate oculto não era mais tão oculto.
Apertei a ponta do nariz e respirei fundo, tentando afugentar as vozes – mas era
como tentar pegar água com as mãos, e um ou outro sussurro sempre se libertava.
Eles questionam você. Como ousam questionar você?
As vozes, obviamente, raras vezes eram amigáveis.
Se eu quisesse que meus companheiros me considerassem capaz, era hora de agir
como líder. Empertiguei os ombros e olhei calmamente para cada um, cruzando as
mãos na cintura.
– Vamos ao baile hoje, para não alarmar Agnes e Silvia. À noite, Khent vai ficar
de vigia na propriedade, mas amanhã vamos discutir uma solução mais permanente.
Pela manhã, vou avisar nossas empregadas de que há algo errado e perguntar se elas
notaram alguma coisa estranha nos últimos tempos. Mary, você pode fazer a
gentileza de escrever para Chijioke? Tenho certeza de que ele pode oferecer
algumas sugestões ou falar com a sra. Haylam.
Os olhos de Mary se iluminaram com essa ideia. Eu fiquei surpresa quando ela
aceitou morar comigo em Londres em vez de voltar à Casa Coldthistle. Ela
obviamente havia tomado a decisão com certo pesar, tendo nutrido sentimentos de
afeto pelo zelador da hospedaria. Suas correspondências frequentes desde então não
me passaram despercebidas.
– Diversão agora – Khent disse, me abrindo um sorriso cheio de dentes. – E
libações!
– Uma ou duas – alertei o egípcio com delicadeza. – Devo lembrar que este não é
um dos banquetes de Seth.
Khent havia me contado todo tipo de histórias incríveis sobre reis e rainhas cujos
nomes eram tão belos como inusitados. Eu duvidava que metade delas fosse
verdadeira, mas ele as recordava com tanta convicção e tantos detalhes que eu
decidira acreditar. De todo modo, pareciam um segredo entre nós, essas antigas
histórias de grandeza que ele havia presenciado. Eu era a única pessoa que tinha a
sorte de ouvir essas narrativas cuja verdade fora perdida para o tempo e, segundo
Khent, para os ventos de areia persistentes do deserto. Eu havia tentado ler A vida
de Sethos de Terrasson com ele, mas Khent insistira que havia imprecisões demais
para suportar.
Ele bufou e piscou, depois estendeu o braço para mim.
– As festas dele eram mansas comparadas às de Ramsés. Já lhe contei da vez em
que comi dois escorpiões em um desafio de Sua Luminosidade?
Pegando o braço oferecido, saí com ele para a névoa fria.
– Prefiro pensar que não haverá nenhum escorpião para engolir no baile de lady
Thrampton.
– Víboras?
– Nenhuma – eu disse com uma risada. Alguns cadáveres de aranha permaneciam
no alpendre, mas tentei não olhar para eles. Um arrepio frio percorreu minha
espinha.
Khent fez uma careta, me ajudando a descer os degraus baixos com o vestido de
seda vermelho-escuro. Mary havia sido precavida e trazido um xale, e agora eu
estava desejando ter trazido um também.
– Estamos indo a uma celebração ou a um funeral? – Khent se queixou. –
Malditos ingleses.
Duas meninas irlandesas é que não discutiriam. Chegamos ao portão na beira do
gramado e abri um sorriso para Khent, que parecia distraído rememorando festas
mais grandiosas e extravagantes. Com seu vocabulário em inglês cada vez maior e
seu comportamento amigável, às vezes eu me esquecia que ele tinha vivido uma
eternidade e passado centenas de anos em gélido isolamento, aprisionado pelo meu
pai – o deus cruel que agora habitava minha cabeça.
Ao virarmos na alameda em direção ao nosso destino, ele me notou o encarando.
Mary riu baixo atrás de nós, mas eu a ignorei. Tive uma sensação incômoda de
estarmos sendo observados, mas a ignorei também, atribuindo-a à estranheza de
morar novamente na cidade em vez do ambiente rural afastado.
– O que foi? – ele perguntou, sorrindo. – Essa cara me deixa nervoso, huatyeh.
Dando de ombros, finalmente desviei o olhar.
– Estou apenas contente que você está livre. E aqui. Que estamos todos aqui.
A névoa densa parecia abafar e tragar nossas palavras. Aquela sensação de estar
sendo observada não me abandonou em momento nenhum e, conforme persistia,
um pavor pesado tomou conta de mim. Eu tinha chegado tão longe – tinha ido até
Londres – e criado uma nova vida para mim, que talvez sempre tivesse desejado e
imaginado, mas, mesmo assim, não estava a salvo. Mesmo agora, tão longe da Casa
Coldthistle e de seus mistérios sombrios, eu estava sendo perseguida.
Um grupo de mulheres de vestidos brancos tão cintilantes que cortavam a névoa
estava reunido nos degraus da igreja do outro lado da rua. Eu já as havia notado nas
calçadas de Mayfair. O número delas vinha crescendo e mais grupos de coristas de
música sacra vestidas de branco apareciam nas esquinas, tremendo juntas como
ovelhas nas charnecas enquanto enfrentavam o frio e a chuva para cantar ou gritar
com os transeuntes.
Não pude evitar observá-las enquanto passávamos. Talvez fosse mais elegante
pegar um faetonte para o baile, mas eu preferia caminhar, e meus companheiros
também. Khent sentia falta da escuridão e do ar frio em seu rosto, enquanto Mary
tinha sido confinada por um longo tempo e gostava do exercício. Nenhum deles
pareceu prestar atenção às coristas, mas eu sim, estreitando os olhos através da
névoa, ouvindo suas vozes agudas se erguerem mais alto que o barulho dos cascos
dos cavalos.
– O pastor os guia com amor! Entre para o rebanho, faça parte de nosso
rebanho… O pastor, você está perdido sem ele! Você está perdido! – Então elas
começaram a cantar em uníssono, uma canção pueril sobre a segurança do abraço
do pastor.
Seus braços protegem contra o vento; ele perdoa todos que pecaram…
Aquele calafrio penetrante voltou e, junto com ele, uma das vozes na minha
cabeça. Encontrei os olhos de uma das coristas enquanto ela erguia a voz para que
nos alcançasse do outro lado da rua.
Você está perdida, criança?
O som de hinos noturnos deveria trazer conforto, mas meu estômago se revirou
como se estivesse cheio de cobras. Algo estava errado, e meus instintos – ou os
instintos da alma na minha cabeça – pressentiam o perigo iminente. Comecei a
andar mais rápido, como se pudesse fugir do homem na minha mente e das
estranhas mulheres de branco, que observavam, vigilantes, enquanto
desaparecíamos na penumbra.
≥apítulo Dois
Uma aranha ainda estava grudada na barra do meu vestido feito uma continha
grotesca quando fomos anunciados no baile. Fiz uma careta ao vê-la enquanto me
abaixava em uma reverência para os anfitriões. Era uma tradição que eu detestava,
mas Khent parecia estranhamente à vontade. Talvez toda aquela pompa e
grandiosidade reacendesse uma lembrança dormente de seus tempos com a realeza
egípcia. Qualquer que fosse o caso, sua mesura não passou despercebida. Lady
Thrampton era uma viúva rica, alta e esbelta, com penetrantes olhos castanhos e um
queixo fino. Estava usando um vestido de musselina branca e um colar cravejado de
esmeraldas gordas, e se abanou mais vigorosamente quando Khent – com o cabelo
preto penteado para trás da testa larga e o queixo livre dos fios curtos que haviam
brotado como erva daninha – exibiu trejeitos eminentemente corteses.
Às vezes era fácil esquecer que ele era um fae das trevas como eu, capaz de se
transformar num chacal gigantesco e desgrenhado a qualquer momento.
Mary, porém, refletia meu nervosismo. Ela fez uma reverência trêmula, quase
deixando cair o xale. Era meu primeiro baile e meus nervos estavam à flor da pele,
uma lembrança cruel de que eu havia nascido na obscuridade e na pobreza, e que
meu nome – Louisa Ditton – não significava nada para a sofisticada aristocracia que
dançava pelo parquete.
– Srta. Louisa, fico muito contente que você e sua família… encantadora tenham
se juntado a nós nesta noite. – Com os lábios franzidos cobertos de batom, lady
Thrampton tropeçou na palavra encantadora. Ela obviamente queria dizer bizarra.
Nenhum grupo poderia ser mais dessemelhante do que nós três. – A srta. Black me
falou tão bem de você. Soube que residia em Yorkshire até recentemente?
Senti o impulso de apertar as saias, mas obriguei meus punhos a se cerrarem na
altura da cintura e tentei parecer firme.
– Sim! – Bom começo, um pouco entusiasmado demais. – Decidimos trocar a
vida no campo por algo mais animado. Atirar em aves pode se tornar maçante
depois de um tempo.
Khent pigarreou baixo.
– E você não é casada? – ela indagou, torcendo os lábios.
Mary se remexeu ao meu lado. Olhei de soslaio para ela, que não me ofereceu
nenhuma ajuda, com os olhos arregalados de pavor, como se aquela mulher rica
fosse um urso se erguendo sobre as patas traseiras, e não uma frágil viúva.
– Eu… acabei de receber uma herança. A questão do matrimônio talvez possa
esperar até eu estar mais bem estabelecida.
– Uma herança! – Agora os olhos de Lady Thrampton, lustrosos como botões de
vidro, cintilaram. – Que curioso. Você vai ter de me contar mais, minha cara, depois
de provar o ponche e desfrutar de uma dança ou duas. É muito bem-vinda na minha
casa, obviamente.
Obviamente.
Mas havia uma tensão em sua voz. Fizemos nossas reverências corteses de novo
e nos viramos para a entrada arqueada. À esquerda, um lance curto de largos
degraus de mármore descia até um saguão espetacular. Eu tinha pouca experiência
com mansões, apesar da Casa Coldthistle, mas a de lady Thrampton era assunto de
muitas fofocas entre a “elite glamorosa”. Ela gostava de chitas chamativas e
carpetes exóticos, e o saguão estava repleto de pedestais de pedra sobre os quais
repousavam vasos e estatuetas. Sua riqueza era exibida para todos, e eu estava certa
de que minha enorme herança recente era a única coisa que me permitia estar em
sua companhia.
Se conhecesse minha origem verdadeira, ela me jogaria na sarjeta feito um lenço
usado.
– Srta. Louisa Ditton, srta. Mary Ditton, e sr. Kent Ditton!
Nossos nomes foram praticamente berrados enquanto entrávamos no salão, então
a batida de uma bengala me causou um sobressalto.
– Esse paletó coça – Khent resmungou, puxando a gola. – E não gosto de como
aquela mulher fica olhando para você. Por quanto tempo devemos ficar?
– Você pareceu bem à vontade para causar uma impressão em lady Thrampton –
ironizei.
– Encantar uma pessoa ridícula e tolerar este terno não são a mesma coisa.
– Pelo menos até eu falar com Justine Black – eu respondi em voz baixa. O olhar
de lady Thrampton não era o único que eu recebia. Nossa presença sem dúvida
causaria burburinho: três estranhos discrepantes em Mayfair, chegando à alta
sociedade com poucas posses, nenhum contato, uma herança misteriosa e uma
aranha rosa na gaiola, que eu também havia herdado do meu estranho pai.
Estávamos fadados a causar falatório, e os convidados nem tentavam esconder sua
curiosidade ou, claro, seu desdém.
– Tentem se divertir – falei para os dois com um sorriso tenso. – Afinal, é quase
engraçado ver todos nos encarando porque desconfiam que sejamos pobres ou
charlatões, sendo que a verdade é muito mais terrível.
– Eles não agiriam com tanta superioridade se soubessem – Khent disse com uma
risada rouca. – Devo fazer uma demonstração?
– Não. De jeito nenhum.
Mas ele estava apenas me provocando e riu com Mary depois. Normalmente, isso
não me incomodaria, e eu poderia ter compartilhado da alegria deles, mas a voz
bestial na minha cabeça despertou, rosnando e vociferando. Meu pai não gostava de
ser ridicularizado, e seu desprazer se espalhou feito veneno em mim.
Cerrei os punhos, nauseada ao lutar contra a voz na minha cabeça. Algo tinha de
mudar. Quando entrássemos em contato com Chijioke sobre os estranhos
acontecimentos em nossa casa, eu também precisava perguntar como apagar a
influência tenebrosa que, dia a dia, tentava me dominar. Naturalmente, eu era grata
a Chijioke por ter me salvado, e entendia o desespero do momento – minha vida
escapando do corpo após um tiro e um espírito convenientemente próximo que
poderia me trazer de volta. No entanto, parecia que mais uma maldição havia
recaído sobre mim. Eu conseguia controlar bastante bem meus poderes de criança
trocada agora, mas aquilo era completamente diferente.
O fato de que não podia controlar esse ser e que ele tão claramente ansiasse por
me controlar enchia meu coração de um pavor constante.
Mas as velas cintilavam à nossa volta e casais de paletós pretos formais e
vestidos majestosos com mangas infladas e bordados refinados rodopiavam pelo
salão, belos e perfeitos como bonecas. Mary se deleitava em saber tudo sobre a
última moda em Londres, e tinha dado seu melhor para que não passássemos
vergonha. Infelizmente, ela não podia fazer nada quanto a meu cabelo preto sem
vida e minha palidez nada natural. Além do mais, meus sonhos espasmódicos
haviam me deixado com olheiras roxas sob os olhos e as bochechas descarnadas.
Não, eu não encontraria nenhum pretendente no baile, embora essas coisas
estivessem longe da minha cabeça.
– Como é a aparência da Justine mesmo? – Mary perguntou.
Khent tinha avistado uma mesa comprida com refrescos e nos guiou naquela
direção. Eu me deixei levar, correndo os olhos ligeiramente por todos os rostos que
passavam, tentando encontrar uma mulher que se assemelhasse tanto comigo quanto
com meu pai, o suposto Croydon Frost.
– Nos encontramos apenas uma vez – expliquei. – Eu a visitei sem avisar e ela
teve de sair para um compromisso. A maior parte da minha experiência com ela foi
por correspondência. Mas ela é muito bonita, alta e graciosa, com cabelo preto e
expressivos olhos castanhos.
– Foi gentil da parte dela escutar você – Mary respondeu. – Afinal, é tudo um
pouco chocante, não?
– Confuso e humilhante, você quer dizer.
– N-não! – Ela pareceu pega de surpresa. – Não podemos escolher nossos pais.
Concordei com a cabeça, distraída. Nos papéis do meu pai, eu havia descoberto
que ele tivera filhas por toda parte. Justine era uma delas – minha meia-irmã. Foi
uma das poucas, como eu, que havia sobrevivido às maquinações mortais dele. Eu
havia escrito para outros sobreviventes, mas Justine foi a única que respondeu. Sua
carta era tortuosa e desconfiada, mas deixava claro que estava disposta a tentar
travar uma amizade e saber mais sobre nosso estranho pai.
Embora sua história seja, para ser franca, grosseira e implausível, parte de
mim sabe que é verdade. Perdoe-me por dizer isto, mas fico contente, ao
menos, de que algo de bom possa resultar das más ações dele. Tanto tempo se
passou e podemos nunca ser irmãs de verdade, mas envio esta carta com afeto
e esperança de que possamos nos conhecer melhor.
Por fim, perto de uma fileira de janelas no fim do salão, avistei minha meia-irmã.
– Lá – eu disse, apontando discretamente. – Venham comigo.
Khent hesitou, olhando com desejo para uma bandeja repleta de tortas de geleia.
Sorri e peguei Mary pela mão para puxá-la comigo. Um alerta preventivo não
faria mal, considerando que eu já vira como ele comia vorazmente em casa.
– Não é educado pegar todas.
Ele entendeu a deixa e saiu em direção à comida. Enquanto eu encarava Justine,
os olhos de Mary vagavam, sua boca aberta de fascínio enquanto contemplava os
muitos vestidos e sapatos esplêndidos. O lugar não me afetava como eu teria
esperado no passado. Nenhuma parte daquela nova vida em Londres tinha sido o
que eu desejava. A herança do meu pai era para ser uma recompensa por uma vida
de dificuldades, e eu pensara desejar só o conforto de uma casa quente, comida farta
e meus amigos. Poderíamos visitar várias partes do país. Ou conhecer Paris! Mas
nada havia me trazido alegria ainda e, até aquele momento, mesmo aquele baile me
parecia um trabalho. Eu tinha vindo à procura de Justine, na esperança de
estabelecer uma amizade, algo para me ancorar em Londres.
Disse a mim mesma, enquanto atravessava a multidão quente e perfumada, que
aquilo era obra minha – que meu desespero em conhecer Justine Black não tinha
nada a ver com o espírito sedento em minha cabeça.
– Você está bem? – Mary perguntou.
Olhei para ela e soltei um resmungo baixo.
– Por que pergunta?
– Você está praticamente esmagando minha mão, Louisa. Cuidado.
Ela estava certa. Sua pobre mãozinha tinha ficado vermelha.
– Talvez eu devesse chamar Khent de volta – sussurrei, soltando-a e parando por
um momento.
A seda, a música e o som rodopiando à nossa volta eram quase estonteantes e eu
balancei, sentindo o torpor de oceano profundo que sempre precedia uma crise. Será
que o espírito do meu pai sentia que uma de suas outras filhas estava perto? O que
ele poderia querer que eu fizesse com ela?
– Não acho que Justine vá machucar você – Mary disse, prestativa. – Você falou
que ela foi simpática nas correspondências!
Suspirei e concordei com a cabeça, forçando meus olhos a se abrirem. Todas as
luzes do salão de baile pareceram fortes demais de repente.
– Não é com ela que estou preocupada, Mary.
A imagem de uma das últimas hóspedes que eu havia atendido na Casa
Coldthistle, Amelia, surgiu diante de meus olhos. Meu pai havia drenado a
existência dela para preservar a própria vida, deixando-a seca e quebradiça como
um osso branqueado. Até aquele momento, eu não havia sentido nenhuma tentação
desse tipo, mas não parecia fora da esfera de possibilidades que, junto com o
temperamento dele, eu pudesse ter recebido seus poderes terríveis.
No canto da multidão, alcançamos Justine, que estava oscilando elegantemente
ao som da música, sua saia azul brilhante balançando de um lado para o outro. Para
mim, era como olhar em um espelho bondoso e, para ela, provavelmente como
olhar em um espelho demente. Ela era extremamente bela, com as bochechas
rosadas e o queixo estreito de meu pai. Seu cabelo escuro e lustroso tinha curvas e
movimento, enquanto o meu mais lembrava fuligem velha.
– Louisa? – Seus olhos se arregalaram de surpresa, mas então ela sorriu. –
Louisa! Que bom ver você novamente!
Justine avançou, pegando minhas mãos e rodopiando comigo. A mulher ao seu
lado, mais velha e sardenta, com um batom espalhafatoso e muitos colares de ouro
cintilantes, fungou como se sentisse um cheiro podre.
– Esta é minha guardiã, a sra. Langford – Justine nos apresentou educadamente.
Eu apresentei Mary e depois me desculpei, explicando que o terceiro membro de
nosso grupo tinha sido interceptado pelas sobremesas.
– Ah, é completamente justificado – Justine disse, pegando um leque perfumado
e o apontando para o meu queixo. – Lady Thrampton tem um dos melhores
cozinheiros de Londres. Eu particularmente adoro o marzipã.
– Talvez menos marzipãs desta vez, Justine – a sra. Langford sugeriu com uma
voz arrastada, examinando primeiro eu e depois Justine de cima a baixo.
– Psiu, sra. Langford, vou comer quantos me apetecer. Agora, se nos der licença,
eu e Louisa temos muito o que conversar. Apenas fofocas extremamente
escandalosas.
Ela piscou para a guardiã, que abriu seu leque e nos deu as costas, vagando como
um fantasma na direção dos coquetéis de limão. Não lamentei a partida dela,
embora a força da companhia de Justine me desestabilizasse. Era acolhedora, claro,
mas um choque. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela pegou o braço de
Mary e o meu e nos puxou na direção oposta de sua guardiã, nos mergulhando de
volta no sufoco de convidados que riam e flertavam.
– Foi uma piada, entende, pois sou sempre perfeitamente bem-comportada, mas
realmente espero que haja certa verdade no que falei. Pelas suas cartas, me parece
que você levou uma vida assaz interessante. Tantas emoções! Sinto que não faço
nada além de trabalhar em meus bordados e frequentar chás. – Ela soltou um
suspiro dramático.
Pensei em todas as crueldades que meu pai havia dito sobre suas filhas humanas:
como eram desimportantes e como suas vidas eram fúteis e breves. Meu coração se
apertou com a lembrança, pois nada poderia estar mais distante da verdade: Justine
era gentil e vibrante, tudo que o pai negligente não fora.
– Certamente as coisas eram movimentadas em Yorkshire – Mary ironizou.
– Folgo em saber. Você precisa me contar como exatamente descobriu nossa
conexão, Louisa. Tenho um olhar afiado para subterfúgios, sabe. Tem algo que você
não está me contando sobre essa história toda, sobre nosso pai…
No começo, eu estava certa de que era apenas o calor me deixando atordoada.
Todos à nossa volta pareciam usar sedas tão brilhantes que exacerbavam a luz do
salão, fazendo minha cabeça doer. Mas estava piorando, um zumbido no fundo do
crânio foi crescendo até que eu mal conseguia escutar o que Justine dizia.
Chegamos ao canto da multidão novamente, desta vez à parede mais distante das
sobremesas. O salão rodopiou, o chão ficou mole, e tropecei por alguns passos.
Mary surgiu à minha frente no mesmo instante, me amparando. Pisquei com
força, seu cabelo castanho se turvando enquanto se misturava à cor do piso.
Muito bem, criança, você me trouxe a uma de minhas filhas.
Era disso que se tratava o zumbido – a voz do meu pai, sua influência
aumentando até apagar meus próprios pensamentos. Parecia a fúria de uma
tempestade concentrada em meu cérebro e tirou meu ar.
Consuma-a. Você consegue. Você deve. Nós vamos.
– Não – me ouvi dizer.
Meus joelhos cederam. A dor era demais – abri os olhos com força, mas descobri
que não conseguia ver nada exceto um muro carmesim. Um ódio vermelho, tão
vermelho. Senti meus dedos se curvarem como se estivessem se transformando em
garras, afiadas e ansiosas para dilacerar.
≥apítulo Três
O sono caiu sobre mim de maneira súbita e inesperada, como se tomasse conta
para me impedir de agir como um monstro. Como eu poderia estar andando e, tão
rapidamente, pegar no sono? Mas lá estava eu, mais uma vez em um grande
corredor de vidro, as paredes se enegrecendo enquanto o vermelho se apagava de
minha visão, como um pôr do sol escarlate dando lugar à noite. E as estrelas
surgiram, as mesmas que já tinha visto naquela visão. Eram deslumbrantes. O baile
e seu calor opressivo pareciam a mil quilômetros abaixo de mim, como se eu
estivesse flutuando no céu.
Com a cabeça voltada para cima, vaguei pelo caminho preto e reluzente,
observando as luzes cintilantes acima começarem a se mover e dançar. Elas se
refizeram para formar constelações, quatro desenhos distintos de estrelas
arqueando-se sobre mim. A primeira lembrava um cervo; a segunda, uma serpente;
a terceira, um cordeiro; enquanto a quarta e última constelação era
inconfundivelmente uma aranha. Quando as formas se completaram, começaram
uma espécie de batalha: o cervo empinou e colidiu com os outros, obliterando a
serpente e o cordeiro, espalhando as estrelas como contas caídas de um vestido.
Apenas a aranha permaneceu, e parecia que o cervo, cada vez maior, a pisotearia
também. Mas, logo antes do impacto, a forma da aranha mudou e se tornou uma
figura humana. Uma mulher.
A mulher ergueu uma mão e o cervo parou, depois se estilhaçou, e outras dezenas
de estrelas foram lançadas aos céus.
O firmamento se iluminou, queimando como uma lareira, centenas de
constelações diferentes pulsando com uma luz prateada. Era impossível contar todas
ou lembrar das figuras e, tão rapidamente quanto haviam surgido, elas se foram,
deixando um céu completamente preto e vítreo.
Então, uma mão pesada caiu sobre meu ombro. Meu coração se apertou.
Virei assustada, me deparando com o rosto fino, pálido e caveiroso de meu pai. O
Pai. Seus olhos ardiam vermelhos com pontinhos de ébano; seus ombros estavam
cobertos por um manto de folhas rasgadas que farfalhavam como se cheias de
sussurros. Uma névoa envolvia seu pescoço e seu torso, e todo ele cheirava à
podridão.
– Você não tem o direito de ver isso. – Sua voz estrondosa retornou, enchendo
minha cabeça a ponto de explodir. Me crispei e tentei recuar, mas ele me segurou no
lugar. – Não tem o direito de tomar isso. Vai se retirar, criança, vai se retirar da
minha cabeça.
Era alto demais – meu crânio estava prestes a rachar. Sua mão queimava meu
ombro. Eu gritei, me debati e então, em uma espiral de fumaça vermelha e prateada,
ele se foi.
– Não! Você é que vai sair da minha!
Acordei com um berro, agitando os braços enquanto me sentava. Encontrei-me
cara a cara com os olhos arregalados de Mary. Khent andava de um lado para o
outro perto da espreguiçadeira em que haviam me deitado. Estávamos longe do
baile e a sós, isolados numa biblioteca em algum lugar da mansão. Um xale fino
tinha sido colocado sobre minha cintura, e um pano frio caiu com um barulho
úmido da minha testa para meu colo.
– Por quanto tempo dormi? – sussurrei.
– Não muito – Khent respondeu. Um pouco de geleia manchava a manga de sua
camisa. Rugas de preocupação se aliviaram em sua testa quando ele veio se ajoelhar
diante de mim. – Momentos. Você está bem?
– Obviamente não – respondi.
Ele e Mary trocaram um olhar alarmado, mas fiz que não tinha importância,
pegando o pano e o apertando de leve contra minha cabeça febril.
– Não fui… inteiramente franca sobre o que está acontecendo comigo. – Desviei
meu olhar de suas expressões inquisitivas, me concentrando no xale bordado sobre
as pernas, tentando traçar as estampas coloridas com a ponta do dedo. – O espírito
dentro de mim está batendo na porta, por assim dizer, e as dobradiças estão
começando a ranger.
– Ah, Deus. – Mary inspirou, fazendo o sinal da cruz por força do hábito. –
Pensei que poderia ser algo assim. Então você ouviu a voz dele?
Fiz que sim e puxei um dos fios do xale; ele se soltou e o enrolei devagar em
volta do dedo.
– Mais do que isso. Eu sinto o desejo dele. Sinto sua necessidade de… me
controlar. Agora há pouco, acho que ele queria que eu sugasse a vida de Justine, da
mesma forma como ele fez com Amelia.
Khent praguejou baixo em sua língua nativa.
– Onde ela está? – perguntei, subitamente frenética. Apertei as mãos deles. – Meu
bom Deus, não me digam que…
– Ela está vivíssima – Khent me garantiu com um sorriso. – Preocupada e falante,
mas viva. Foi encontrar uma carruagem para nos levar para casa.
– Deveríamos mantê-la longe de mim – eu disse, abatida. – Só para garantir.
– Ela não vai gostar nada disso. Pensei que fosse desmaiar quando você caiu –
Mary acrescentou. – Mas vamos inventar alguma desculpa e, com sorte, podemos
evitar ser vistos na saída. Você tem forças para se levantar?
– Tenho certeza de que nossa anfitriã está encantada – murmurei, assentindo. –
Mais fofocas. – Soltando as mãos deles, girei as pernas para me levantar e deixei o
pano em uma bandeja ao lado da espreguiçadeira. – Queria poder contar a verdade
para ela. Toda a verdade. Esses malditos segredos não valem o trabalho, mas a
coitadinha nunca acreditaria em tudo…
– Eu não acreditaria em quê?
Nós três ficamos paralisados, depois viramos para encontrar Justine nos
observando da porta aberta. Observei a biblioteca estreita e aconchegante ao nosso
redor, as paredes cobertas até o teto com livros conservados e desempoeirados.
Justine estava segurando um pequeno decantador de vinho e deu alguns passos
destemidos para dentro da sala, erguendo o queixo.
– E não gosto de ser chamada de “coitadinha”, sou capaz de entender muitas
coisas. Então, o que são todos esses segredos estranhos e terríveis?
– Ey, agora não é o momento para…
Mas Justine interrompeu Khent, abanando a cabeça e caminhando em nossa
direção.
– Não faça isso. Não serei descartada tão facilmente. Não sou sua irmã?
– Meia-irmã – corrigi gentilmente, levantando-me.
Justine me encontrou no meio do caminho, depois foi até uma mesa decorativa ao
lado da espreguiçadeira, onde estava disposto um jogo fino de taças de brandy.
Mais tarde, os homens poderiam se retirar para aquela biblioteca e fumar um
charuto, mas Justine fez uso do jogo, pegando duas pequenas taças de cristal. Ela
serviu um pouco de vinho para nós duas e me entregou uma taça, depois brindou.
– À verdade – ela disse. – E à coragem, o que me leva a perguntar: nosso pai era
um criminoso?
Atrás de nós, Khent soltou um assobio agudo.
– De certa forma… – Tomei o vinho, na esperança de que seu ardor na garganta
realmente me inspirasse coragem. – Como posso começar?
Será que deveria começar?
Mas os imensos olhos castanhos de Justine estavam suplicantes e, quando olhei
para ela, para o que eu poderia ter sido se tivesse nascido em circunstâncias
melhores, não pude deixar de querer confiar nela. Afinal, eu não tinha vindo com o
propósito de tentar forjar uma relação de irmãs? Se essa relação era importante,
protegê-la também era. Me afastei dela, voltando para o sofá.
– É tão ruim que você não consegue nem me olhar nos olhos?
– Mary – murmurei, ignorando Justine por um momento. – Se algo der errado…
você pode protegê-la contra mim?
Com um leve aceno de cabeça, Mary cruzou o espaço para ficar entre nós.
Quando cheguei a uma distância segura, me virei e rolei a taça entre as mãos com
nervosismo. Justine se inquietou e então serviu outra taça rapidamente.
– Imagino que você acredite em Deus? – perguntei.
Seus olhos se arregalaram.
– Ah! Que pergunta inusitada. Sim, é claro que acredito.
– Isso vai dificultar as coisas.
– Valha-me Deus, como pode ser algo tão terrível? – Justine exclamou. – Então
ele não era uma pessoa de Deus?
Quase ri da pergunta.
– Ele era extremamente poderoso, como algo saído de um conto de fadas. Era
capaz de comandar animais e insetos, e imperava sobre um reino de criaturas
fantásticas. – Então olhei primeiro para Mary e depois para Khent. – Criaturas
maravilhosas. E ele conseguia mudar de forma a seu bel-prazer, tornando-se
qualquer pessoa ou coisa.
É assim que você me descreve? Que patético.
Irritada, abanei a cabeça e mandei que ele se calasse. A ameaça de outra dor de
cabeça pulsou na base do meu pescoço, e me perguntei se seria uma tentativa de me
impedir de contar a verdade à Justine. Que diferença faria agora? Ele estava preso
na minha cabeça e ela era sua filha, o que lhe dava o direito à história completa.
Justine ruminou essa informação por um longo momento, sem piscar. Ela tinha
ficado perigosamente pálida.
– Você só pode estar brincando! Como algo assim poderia ser verdade?
– Mas é, Justine. Não vim até aqui para lhe contar mentiras.
– Gostaria muito de acreditar em você, meia-irmã, mas contos de f-fadas… – ela
balbuciou, balançando a cabeça. Ficou em silêncio de novo, depois disse devagar: –
Eu… creio que minha governanta me contou histórias sobre coisas assim.
Serezinhos estranhos que corriam pelas florestas, roubando bebês e objetos
brilhantes, transformando-se em gatos ou pássaros para enganar as pessoas.
– Exatamente – eu disse. – Mas todas essas histórias absurdas para crianças são
verdadeiras. Eu sou um desses seres também. Consigo mudar minha própria
aparência. – Os detalhes sobre como não pareciam relevantes, e Justine já estava
pálida o suficiente.
– Você? Você. Então isso significa que eu posso…
– Sinto muito, mas não – interrompi. – Pelo menos, creio que não. Nosso pai
procurou suas filhas por toda parte, na esperança de que alguma de nós tivesse
herdado seus poderes, desejando nos consumir e consumir nosso dom para sustentar
sua vida por… bom, toda a eternidade, imagino. Ele foi enfraquecendo ao longo dos
anos. – Inspirando fundo, ergui as mãos. – Perdoe-me, tem muito mais. Guerras e
picuinhas. Outros seres divinos misturados nessa história.
Ela torceu um cacho preto perto da orelha e me olhou de esguelha.
– Tudo isso soa como uma piada elaborada.
– Eu sei – respondi.
– No entanto, você parece tão terrivelmente séria que me faz querer acreditar.
Peguei o xale de Mary do sofá e o devolvi para ela, depois apontei para a porta da
biblioteca.
– Não há necessidade de acreditar em mim, Justine. Você me pediu toda a
verdade e tentei te contar. Tudo que posso oferecer é o que sei. O que decidir fazer
com isso cabe a você. – Mary colocou o xale sobre o corpo, se aproximando de
mim conforme dávamos a Justine uma margem larga no caminho para a porta. –
Isto não é um truque nem uma piada. Queria que você soubesse a verdade porque é
sangue do meu sangue.
Khent se juntou a nós enquanto passávamos por Justine, que ergueu uma mão
trêmula.
– Espere – ela murmurou. – Não me deixe agora. Eu… Pode continuar? – Ela se
virou na nossa direção com aqueles enormes olhos vítreos, abrindo um sorriso
vacilante. – Por favor. Não posso prometer que vou acreditar em você, mas prometo
ouvir.
– Escutem. – Khent também ergueu a mão, mas a levou aos lábios, nos
silenciando. Seus olhos roxos se estreitaram e suas orelhas se empertigaram. Nossos
olhares se cruzaram e senti um calafrio passar entre nós. – Ewhey charou. Hur seh
eshest? Chapep.
Escutem. Nenhum som. Por que tão quieto? Estranho.
Ele só falou para mim naquela língua para ser discreto. Havia algum problema e
seus aguçados sentidos caninos o haviam captado. E ele tinha razão – o salão de
baile tinha ficado completamente silencioso. Antes, ouvia-se o burburinho constante
de conversas e risadas animadas, mas agora? Silêncio. Nenhum tilintar de taças de
ponche, nenhum som de pés dançando, nenhum quarteto de cordas animado.
– Está muito quieto – Mary murmurou, também notando o silêncio inquietante.
– Que estranho… – Justine começou.
– Não – falei para ela. – Tem algo errado. Um baile não deveria ser tão
silencioso.
Seus olhos se arregalaram de pavor. Sua voz se transformou num sussurro.
– Sra. Langford! Espero que nada tenha acontecido com ela. Precisamos
investigar.
– Eu vou averiguar – disse Khent, tirando o casaco restritivo e o deixando cair no
chão. Ele arregaçou as mangas rapidamente, revelando linhas de cicatrizes e
tatuagens desbotadas. – Vocês ficam.
Houve um estrondo súbito e um grunhido de dor na direção do salão de baile. O
arrepio na minha espinha se espalhou de maneira rápida e nada natural, então
percebi assustada que não era apenas medo dentro de mim, mas também um alerta.
Eu já havia sentido aquele frio incômodo antes, na Casa Coldthistle, quando os
Árbitros do pastor tinham começado a cair do céu.
– Acho que essa festa inglesa deprimente acabou de se tornar muito mais
interessante – Khent sussurrou, então correu porta afora e saltou para o corredor.
≥apítulo Quatro
Um gelo cortante e inclemente substituiu o sangue em minhas veias quando a casa
estremeceu, sacudindo como se atingida por um trovão. Aí já era demais. Com um
pé no corredor, virei para Mary e Justine.
– Proteja minha irmã, Mary – eu disse com firmeza. – Espero voltar em breve.
– É melhor eu ir também – Mary insistiu, soltando o xale. – Três é melhor do que
dois.
– Sem dúvida, mas Justine precisa de você agora. Vou ficar bem. Existe um
monstro à espreita dentro de mim, lembra?
Isso não pareceu tranquilizá-la, mas ela chamou Justine de volta à biblioteca e
fechou as portas. Eu me senti um pouco melhor – a capacidade de Mary de usar sua
magia como uma espécie de escudo me maravilhava em Coldthistle, e confiei que
ela manteria a inocente Justine protegida do que quer que estivesse acontecendo no
salão de baile. Meu estômago se revirou enquanto eu corria para a comoção, com
uma gama de possibilidades terríveis de violência brotando na mente. Em primeiro
lugar, é claro, estava a ideia de que aqueles alertas em nosso batente não tinham
sido ameaças gratuitas. Mesmo antes de eu sair de Coldthistle, o próprio sr.
Morningside havia me avisado que o anonimato era uma fantasia ridícula para uma
pessoa como eu.
“Você pode fingir ser capaz de escapar de tudo, garota, mas as engrenagens de
outrora têm seu próprio jeito de girar e feridas antigas e profundas têm seu próprio
jeito de se reabrir.”
Por um breve momento antes de chegar ao salão de baile, só me restava imaginar
qual ferida antiga havia se reaberto.
Mas houve pouco tempo para me preocupar enquanto corria pelos corredores
dourados de lady Thrampton; não demorei a atingir meu destino. Suas portas altas e
grandiosas estavam fechadas e alguns convidados confusos se reuniam do lado de
fora, as vozes agudas se erguendo em queixas. A noite tinha sido intoleravelmente
arruinada. Que desperdício! Claro, tudo aquilo era muito chocante para eles, cujas
mãos ricas e macias não conheciam nada mais incômodo do que um chá atrasado.
Quando me aproximei das portas, elas se abriram com uma rajada sonora. Poeira
e o buquê de uma mulher voaram na minha direção com tanta força que o ar sumiu
de meus pulmões. Os hóspedes gritaram e se espalharam por todos os lados,
abandonando sandálias, leques e copos de ponche na pressa de fugir. Mas nem
todos os convidados saíram, pois encontrei alguns remanescentes no salão de baile.
Todos vestidos de branco, estavam encostados nas paredes enquanto assistiam ao
conflito que se desdobrava no centro do salão, logo abaixo de um imenso lustre de
cristal.
Uma camada fina de pó de gesso, branco como a neve, havia caído em volta das
duas figuras que se enfrentavam. O teto tinha rachado pela força do que quer que
houvesse causado aquele barulho inicial. O frio horrendo em minhas veias tinha se
intensificado por um motivo – uma das Árbitras do pastor havia caído dos céus feito
uma âncora no parquete. A madeira onde ela havia despencado estava lascada,
quase reduzida a aparas.
– Sparrow – eu disse baixo, parando de repente.
Seu cabelo loiro estava curto e ela havia trocado o terno cinza pelo que parecia
uma antiga armadura de couro. Havia uma faixa branca limpa em torno de sua
garganta e um suporte envolvendo seu braço, resquícios de seu confronto com o Pai
na Casa Coldthistle. Apesar dos ferimentos que havia sofrido nas mãos dele, ela
parecia preparada agora. E furiosa.
– Ah! A filha pródiga está aqui. – Ela disparou na direção de Khent com uma
velocidade sobrenatural, empurrando-o para fora do caminho com o quadril. – Eu
sabia que esse vira-lata pulguento estava mentindo. Tenho certeza de que não pode
evitar; ele mal passa de um cachorro. Ele responde quando você assobia?
Eu me peguei caminhando na direção dela. Normalmente, a visão dela – alta,
dourada e imensamente forte – me faria pensar duas vezes antes de abrir confronto.
Mas a única coisa que me fazia hesitar agora era o número de espectadores
inocentes no salão.
– Eu não faria isso se fosse você – eu disse a ela. Ao lado de Sparrow, Khent se
eriçou, e não era preciso um olhar aguçado para perceber como os músculos de seus
antebraços estavam tensos sob a pele. Sua forma bestial ansiava por sair.
– Aniquilamos a espécie dele eras atrás – Sparrow disse, olhando-o com
desprezo. – Pena que deixamos escapar um.
O som que saiu da garganta de Khent deixou meus cabelos em pé. Era um
rosnado que nenhum homem seria capaz de emitir. A qualquer momento, ele
rebentaria em sua outra forma, uma criatura canina de dois metros e meio de altura
e garras afiadas. As damas nobres no canto poderiam literalmente morrer de medo.
– Não! – exclamei. – Ela quer provocar você. Quer nos provocar. Temos de ser
superiores a ela.
– Improvável – Sparrow disse, revirando os olhos azuis e brilhantes. – Um vira-
lata e uma camareira.
Ela se empertigou, deixando sua forma humana derreter como cera de vela e
revelando o fulgurante corpo dourado por baixo. Suas feições se tornaram difíceis
de distinguir, a pele e os ossos transformando-se em ouro derretido. Um braço, o
que não estava ferido, cintilou enquanto se transformava em uma lança comprida e
pontiaguda.
Pensei que ouviria exclamações de espanto dos convidados remanescentes, mas
não houve nenhuma. Cerrei os dentes; o pavor frio na minha barriga não vinha mais
apenas de Sparrow. Sua presença era assustadora, sim, mas havia outra coisa errada.
Khent também pareceu notar, olhando ao redor em todas as direções. Enquanto isso,
os homens e mulheres que esperavam perto das paredes começaram a nos cercar. O
que estaria acontecendo? Por que não tinham medo dela?
Sparrow riu diante de nossa confusão, arrogante e irritante como sempre.
– Você achou que tudo simplesmente ficaria para trás? – ela provocou, acenando
a lança dourada em que seu braço havia se tornado. – Engoliu a alma do Pai das
Trevas. O livro… todo aquele conhecimento fae patético… está dentro de você.
Não recebeu meus avisos, minha cara? Achei que as aranhas foram um belo toque,
considerando que você está a momentos de também se tornar um insetinho morto e
patético.
Ela avançou, sua pele dourada brilhando tão forte que faziam meus olhos doer.
Eu tinha de me defender. Recuei cambaleante, mas descobri que uma fileira de
convidados estava andando lentamente na minha direção. Todos os rostos tinham
expressões semelhantes de impavidez; um cavalheiro bigodudo até chegava a sorrir.
Senti o calor do corpo de Sparrow enquanto ela corria para mim, mas desviei no
último segundo, lançando-me para fora do caminho. Ela parou, girando
graciosamente enquanto asas brilhantes brotavam das costas por um instante, então
pousou em uma postura defensiva, com a lança abaixada diante do corpo. A ponta
da arma, cintilante e letal, quase havia perfurado a barriga do homem de bigode.
– Pare com isso! – gritei. – Você vai acabar matando alguém!
Sparrow riu de novo e se atirou como uma flecha na minha direção.
– É essa a intenção, minha querida!
Ela estava furiosa – mais do que de costume – e, enquanto avançava contra mim
como uma arma feita de carne e osso, ouvi os homens e mulheres ao redor
começarem a cantar. Deus, eles eram todos coristas do pastor, idênticos aos grupos
bizarros que eu havia notado se espalhando por Londres como uma urticária pálida.
O pastor guiará, o pastor provê, por ele viveremos e por ele morreremos…
Eles entoavam o cântico sem parar, baixo e retumbante, mas crescendo em
volume. Sparrow balançou a cabeça no ritmo lento, erguendo a lança como se os
conduzisse com uma batuta.
Cerrei os dentes, me obrigando a lembrar que eles podiam ter diversos motivos
para seguir o pastor. Talvez realmente estivessem perdidos e precisassem de algo
para confortar seus corações. Ou talvez Árbitros como Sparrow tivessem
encontrado um jeito de convertê-los contra sua vontade. Eu não sabia o suficiente,
então não tinha provas de que aqueles humanos mereciam ser feridos.
– Eu não vou feri-los – eu disse a Sparrow, mas ela não conteve o ataque.
Sua lança cortou o ar, tão perto que a ponta rasgou o ombro do meu vestido. O
contato me sobressaltou e caí para o lado, rolando para fugir da arma que atacou
outra vez, cravando-se fundo no chão. Sparrow teve dificuldade para tirá-la e usei
esse tempo para voltar a me levantar e me juntar a Khent no canto oposto da forma
oval que se estreitava a cada segundo. O canto era quase hipnótico, mas me
obriguei a me concentrar.
– Alguma ideia? – ele sussurrou. – Porque eles certamente vão nos ferir.
Seus braços protegem do frio, ele perdoa todos que pecaram…
– Me deixe pensar – sussurrei em resposta.
Mas sabíamos que não havia tempo para hesitar. Uma tensão familiar em meu
crânio significava que Sparrow e seu círculo de fiéis não eram nossos únicos
problemas. Assim como Khent, o Pai estava disposto a retaliar.
O canto continuou, mas um dos convidados avançou em alta velocidade, tentando
agarrar meus braços. Eu me defendi gritando e esperneando, mas Sparrow
aproveitou a oportunidade para se jogar na minha direção com a lança erguida.
– Agora – eu disse a Khent.
Ele não precisou de mais instruções. Enquanto eu me debatia contra o humano
que segurava meus braços, ouvi a camisa elegante dele se rasgar conforme sua
forma bestial emergia da pele. Isso assustou Sparrow, mas apenas por um instante,
que aproveitei obrigando a minha mente pensar em defesas possíveis. Não tinha
mais minha querida colher, mas a lembrança dela me deu uma ideia. Metal.
Armadura. Fechando os olhos com força, fiquei em silêncio, todos os pensamentos
concentrados em alterar o estado de meu vestido. O desespero do momento deve ter
ajudado, pois imediatamente senti a seda ficar pesada, e no momento seguinte a
lança de Sparrow raspou contra um peitoral. Centelhas se ergueram diante dos meus
olhos com o impacto, vermelhas e douradas, me cobrindo em um calor
resplandecente. Ouvi o homem que segurava meus braços exclamar, espantado, e
pisei no pé dele com força, não mais calçando uma sandália fina de couro, mas sim
aço.
Girando para longe dos dois, observei a multidão se dispersar para os cantos, mas
Sparrow não se deixou abalar. Ela girou a lança uma vez e a segurou diante do
peito, seus olhos cor de safira alternando entre o corpo gigantesco de Khent e minha
armadura.
– Amigos – ela gritou, erguendo o braço com a lança para reanimá-los. –
Seguidores do grandioso pastor, não temam! Arranquem o medo de seus corações
feito ervas daninhas de um jardim. Venham comigo! Com tudo que consigam
encontrar, venham comigo!
Observamos enquanto os convidados – os seguidores –, com seus trajes
drapeados e belos ternos cobertos de mantos brancos, se espalharam à procura de
facas e utensílios. Garrafas abandonadas pelos mordomos transtornados foram
pegas e quebradas, suas pontas úmidas e afiadas cintilando sob a luz do lustre.
Então eles fizeram o que Sparrow ordenou e correram até nós, substituindo seu
canto monótono por gritos.
Tarde demais, senti a presença do Pai crescer dentro de mim. Talvez fosse meu
medo, que eu nem havia tentado arrancar do coração, que permitiu a sua chegada.
Ou talvez eu tivesse ansiado por esse momento desde que sobrevivera ao tormento
de Sparrow na Casa Coldthistle. Se era minha fraqueza ou meu desejo de vingança,
não saberia dizer, mas ouvi o som de roupas pesadas se rasgando dentro de mim. A
armadura ficou apertada, pois os limites do meu corpo se expandiram rapidamente,
girando e tomando uma nova forma, até minhas pernas estarem mais fortes e
compridas e vinhas de folhas escuras se contorcerem em volta dos meus braços
enquanto meus dedos se transformavam em afiadas garras negras.
O que quer que eu tivesse me tornado fez Sparrow parar, mas seu grito de
surpresa logo se transformou em um rosnado de determinação. Ela e seus
seguidores partiram para cima de nós, uma dezena ou mais de mãos atacando de
todas as direções. Peguei uma faca cega derrubada por um dos convidados e a
transformei em uma espada, golpeando cegamente para manter os seguidores do
pastor à distância. A espada não os deteve, então imaginei a faquinha se
transformando em um escudo enorme, grande o bastante para afastar os humanos e
criar certo espaço. Nada parecia assustá-los. Eu só queria que eles recuassem, mas
algo no comando de Sparrow os deixara ensandecidos.
Ouvi o barulho de Khent lançando um dos hóspedes para longe, o corpo rolando
como se não passasse de um boneco de criança. Algumas daquelas facas e garrafas
quebradas conseguiram ferir a esmo, e o chão ao nosso redor ficou escorregadio de
sangue – parte meu, parte de Khent, mas a maioria de Sparrow.
Estendi o braço na direção dela. Minha cabeça se encheu de fumaça carmesim e
minha visão se concentrou apenas em sua figura dourada e reluzente e na lança que
apontava para mim. Sem pensar, meu braço se esticou cada vez mais, feio e
antinatural, mas útil em sua estranheza. Eu a peguei pelo pescoço, vendo o terror
súbito em seus olhos enquanto apertava a faixa que o envolvia e a pele por baixo.
Sua lança cortou minha barriga, encontrando uma brecha na armadura, mas mal
senti a dor. Outros seguidores do pastor entraram correndo no salão, mas já era
tarde demais. O Pai havia tomado conta de mim completamente, e seu desejo me
dominou como se eu não passasse de uma fantasia que ele tinha vestido. Vi com
seus olhos cruéis e bati com sua mão impiedosa, derrubando Sparrow no chão e
fazendo a casa inteira chacoalhar mais uma vez. As cadeiras e mesas perto do canto
do salão tombaram; o salão de baile todo estava em ruínas. As velas de seus
candelabros e pequenas chamas ameaçaram se espalhar. Um convidado lançado por
Khent voou por cima da minha cabeça. Raízes da largura de um homem se
ergueram da terra, como no pavilhão quando nos unimos contra o Pai. Agora,
aqueles tentáculos negros estavam do meu lado. Do nosso lado.
– O teto! – Khent grunhiu entre os dentes afiados. – Mahar!
Olhe.
Khent pulou para trás, cortando caminho pela multidão de convidados, e tive o
bom senso de acompanhá-lo. Olhei para o teto: o enorme tremor e a vibração da
casa rachavam o gesso ornamentado. O lustre balançava, rangendo perigosamente
nos suportes frouxos. O empurrão final de que precisava veio quando Mary e
Justine abriram as portas do salão. Seus rostos se encheram de choque e pavor, mas
Mary deu um passo à frente, protegendo Justine quando os parafusos do lustre
cederam e seus enfeites dourados e prateados caíram, respingando cera de vela
sobre nós. Uma reverberação tênue cercou as duas meninas – a magia do escudo de
Mary, que surgiu como uma onda de seus braços.
Quis desviar os olhos, mas o Pai não permitiu. Khent se crispou ao meu lado
quando o lustre se estilhaçou em cima de Sparrow, em meio às raízes e lascas de
madeira. Ela soltou um grito baixo e espantado, seguido por um silêncio longo e
arrepiante. Observei uma vela derreter no piso destroçado e toquei minha barriga –
que tinha começado a doer muito. Minha mão voltou encharcada de sangue.
Finalmente, senti a influência do Pai diminuir e desviei o olhar, entendendo
enfim o que eu havia feito. Sparrow tinha nos atacado, sim, mas agora ela estava
gravemente ferida. Não, pensei com um calafrio: estava morta. Havia outros corpos
também, e meu estômago se revirou à visão. Minhas pernas ficaram bambas e
cambaleei para trás até me recostar na mesa do bufê – antes bela e festiva, agora
coberta de sangue. Arfando, arrisquei um olhar para meu reflexo em uma bandeja
de prata. O que vi tirou meu ar – olhos vermelhos fumegantes, um rosto de caveira
chamuscada, uma coroa de galhadas tortuosas…
Um monstro. Um monstro. Então meu próprio rosto começou a surgir, a fera que
eu havia me tornado desaparecendo até o reflexo exibir apenas uma menina
assustada, com o rosto manchado de sangue e uma faca de jantar cega na mão
trêmula.
≥apítulo ≥inco
Quando acordei, estava diante de oito olhinhos curiosos e uma patinha curva,
erguida como se fosse me despertar a sacudidas. Uma aranha. Minha aranha. Minha
aranha tocando meu rosto. Sua pata tocou meu nariz e gritei, recuando na cama
freneticamente até me chocar contra Khent. Ele gritou ao acordar, lançando as mãos
em todas as direções contra uma ameaça imaginária.
As blasfêmias que saíram de sua boca eram criativas até para ele.
– Desculpa! Ah! Desculpa! – Mary disparou, aparentemente do nada. Foi um
caos. Enquanto meu coração se acalmava, me dei conta de que ela tinha vindo do
corredor e, pela chaleira aninhada cuidadosamente em suas mãos, tinha ido buscar
nosso café da manhã.
A aranha me observava, imóvel, com a pata peluda ainda erguida.
– Achei que ela estava tão sufocada ali dentro – Mary balbuciou, cobrindo a boca
com as duas mãos. – Talvez tenha sido um descuido abrir a gaiola…
A picada não cicatrizada na minha mão começou a coçar. Coloquei a outra mão
sobre ela.
– Não, você estava certa em lhe dar essa liberdade. Ela não é uma aranha, afinal.
Mary me encarou, deixando a chaleira de lado, depois vi seus olhos passarem
lentamente para Khent atrás de mim.
Levantei e me ajoelhei em frente à cama, com o rosto na altura da aranha. Ela
não tentou mais me tocar, mas eu conseguia sentir a inteligência escondida ali.
– Foi como ter uma palavra na ponta da língua por meses e meses, mas eu a
reconheço agora – eu disse a eles, ignorando seus olhares tensos. – O nome dela não
é Mab, mas Mãe. A alma de um deus antigo não pode ser morta, certo? Mas pode
ser escondida. O Pai a aprisionou nessa forma quando conseguiu o livro dos faes
das trevas. Eu a vi quando morri, e a vi hoje em meus sonhos.
Mary veio se ajoelhar perto de mim, examinando a criatura tão de perto quanto
eu, e Khent fez o mesmo no beliche. Como devia ser estranho para a Mãe ver os
três a encarando tão atentamente. Mas ela pareceu não se incomodar, avançando
para encostar a patinha estranhamente macia na mão que havia picado.
– Sim, você me mordeu – eu disse, lembrando de como a aranha havia saltado do
ombro do meu pai para me picar quando ele ainda estava tentando se passar por um
humano na Casa Coldthistle. – Estava tentando me alertar, não é?
A aranha dançou para trás e para a frente, ainda tocando minha mão.
– Que extraordinário – Mary sussurrou. – E que terrível ficar preso nessa forma
por tanto tempo.
Khent interveio também, mas seus pensamentos estavam no Pai, e suas palavras
foram tão incisivas que cortariam aço. Fiquei grata que Mary não conseguisse
entendê-lo.
– Mas como desfazer isso? – pensei alto.
– Deve estar no fundo da sua mente em algum lugar, não? Se o Pai a colocou no
corpo dessa criatura, então essa memória simplesmente precisa ser encontrada –
Mary disse. Ela se apoiou nos tornozelos e sugou os lábios. – Arre, tenho certeza
que é mais fácil falar do que fazer.
Eu me levantei e revirei o baú que Khent tinha trazido de nossa casa, desesperada
para encontrar tinta e pergaminho. Lembranças vagas do sonho remanesciam na
minha mente, e eu precisava anotá-las antes que desaparecessem. Encontrei uma
folha de papel dobrada e um pedaço de carvão velho de desenhar. Teriam de servir.
– Ela disse algo sobre a maldição naquele pesadelo – eu contei enquanto
escrevia. – Ele a prendeu com feitiço e sálvia, sangue e tinta, vinho e água. Só me
resta torcer para que o mesmo tipo de ritual possa desfazer isso tudo.
– Brilhante – Mary murmurou. – O que isso significa?
– Talvez Dalton ou Fathon saibam – arrisquei, sentindo-me desesperançada.
Parecia improvável que o Pai revelasse de bom grado o meio de reverter seu feitiço.
Sempre que eu descobria algo de que ele desgostava, sua raiva ressurgia, e tentar
ajudar a Mãe sem dúvida o deixaria furioso. Minhas mãos tremeram com essa ideia.
Ele estava com sede de mais violência, e eu temia voltar a ser o instrumento de sua
vontade.
– Talvez eu saiba o quê?
Dalton nos observava do batente – ou talvez observar fosse a palavra errada,
considerando a faixa de tecido que cobria seus olhos machucados. Mas sua atenção
estava fixada em nossa direção, e ele bebia tranquilamente de uma xícara lascada,
vestido num terno matinal branco, remendado.
– Talvez soe um pouco maluco…
– Então estou definitivamente interessado – ele disse com um sorriso.
– Essa criatura foi recuperada do Pai. Ela tem a alma de uma antiga deusa fae
aprisionada dentro dela. A Mãe, a bem dizer. A contraparte do Pai. Tudo isso me
veio em um sonho, mas tenho apenas algumas pistas.
– Que são?
Recitei o trecho da fala da Mãe que lembrava e encontrei outras lembranças ao
fazer isso.
– É muito parecido com o que a sra. Haylam usa em sua vinculação de sombras,
ao fazer um homem de sombras ou preservar uma pessoa dessa forma. Chijioke
conseguia transferir uma alma humana inteira para uma ave pequena! Será que pode
ser uma magia semelhante?
– Isso só me deixa mais certa de que devo escrever para ele imediatamente –
Mary disse, se levantando. – Pode me ajudar com isso, Dalton?
– Fathom pode lhe emprestar Wings, nossa coruja. Ele é muito mais rápido do
que os correios.
Com isso, Mary nos abriu um sorriso acanhado e saiu do quarto. Eu não tinha
dúvidas de que ela estava muito ansiosa para escrever para Chijioke e fazer com
que ele recebesse a carta com uma pressa mágica.
– E acho que você pode estar no caminho certo, Louisa – Dalton acrescentou, se
juntando a nós perto da aranha. Seu chá tinha um cheiro forte de bergamota e
lavanda, e o aroma fez meu estômago roncar. – Será difícil encontrar alguém com
mesmo uma fração do poder da sra. Haylam na cidade, mas talvez eu conheça uma
pessoa na região. Precisamos levar os cavalos a St. Albans de qualquer maneira, e
será no caminho. Aliás, o que é isso?
Ele havia pegado da minha mão o pequeno pedaço de pergaminho com as
anotações rabiscadas. Ao virá-lo, encontrou a carta que Henry havia me dado
séculos antes, destinada à livraria que havia obtido os diários de Bennu. Eu tinha
prometido entregá-la quando chegasse a Londres e, por raiva, nunca me dera ao
trabalho de fazer isso.
– Esse pode ser um bom lugar para conseguir ajuda – ele disse, passando o
polegar no endereço. – Faz muito tempo que não converso com um vinculador de
sombras, mas os rapazes da Cadwallader’s são perfeitos para começar.
1248, Constantinopla
Eu tinha me esquecido dos ventos fortes e cortantes de areia que varrem a
cidade no auge do verão. O lugar onde nasci era temperado, nunca quente
nem frio demais, e todo o meu ser está derretendo sob a implacável umidade.
Mas Henry adora. Ele adora tudo, me parece, ou mascara sua indiferença com
um entusiasmo ilimitado tão indistinguível do entusiasmo verdadeiro que é
impossível não acreditar.
Ele está quase insano devido a uma nova obsessão. O livro que Ara carrega
(ela o chama de Elbion Negro, o que certamente tem a intenção de me ofender,
mas me recuso a morder a isca) é tudo de que Henry consegue falar agora. Eu
o escuto sussurrar sobre o livro durante o sono. Ela diz que ele veio das
profundezas do oceano e que seus poderes não podem ser estudados nem
entendidos. Enquanto eles dormiam ontem à noite, tentei lê-lo, mas a capa
queimou meus dedos e as marcas se recusam a sumir. Ara ainda não notou os
curativos, mas sem dúvida há de me questionar quando notar.
Por causa da fixação de Henry, viemos parar em Constantinopla. Eu
adoraria esse lugar se não fosse tão insuportavelmente quente. Ara nos faz
cobrir o rosto com finos xales pretos que envolvem nossa cabeça e se prendem
a nossas túnicas. Ela nos diz que vai ser mais fácil fazer perguntas se
estivermos escondidos dessa forma, vestidos como os outros cidadãos, nossos
cintos pesados com contas e metais, nossos olhos o único indício de nosso
estado de espírito. Tomamos um chá forte e ácido à sombra da Basílica de
Santa Sofia, e só consegui suportar um ou dois goles. Como alguém consegue
beber algo escaldante em um dia já árido eu não consigo entender. Não,
ignorei o chá, preferindo olhar para Henry, admirando-o enquanto ele
contemplava o esplendor sobre nós.
Acho que a melhor maneira de amar algo é através dos olhos de outra
pessoa. Ele vê coisas que não enxergo, ama as coisas com tanto afeto que
sinto o eco dessa paixão e dor no meu peito. Sei que Ara me pegou encarando,
e suportei seus risinhos com um bom humor que não sinto. Henry pode adorar
esta cidade, mas sou um estranho aqui, e sinto o agitar de deuses antigos e
desconhecidos que me apavoram. Queria estar com meu irmão e minha irmã.
Sinto falta deles constantemente e fico acordado à noite temendo o que dirão
quando eu voltar. Sparrow me implorou para não partir, mas eu tinha uma
desculpa, claro. A missão. O escritor misterioso deve ser encontrado, e os
rumores de suas idas e vindas eram tão erráticos que até esse desvio poderia
ser perdoado. O que me leva de volta aos livros.
Os livros. Existem mais deles agora, mais do que apenas os nossos e a coisa
escondida na sacola de Ara. Enquanto os dois bebiam seus chás, Ara
repreendeu Henry por nos trazer nessa busca vã.
– Quantas vezes devo lhe dizer? – ela ralhou com ele. – Os livros aparecem
quando querem. Tire essa ideia de nossa cabeça, Henry. Não haverá respostas
ao fim de sua busca.
Ela falou com muita autoridade. Notei isso e, naturalmente, Henry também.
Ele a fitou por um longo momento, os olhos refletindo os ladrilhos cintilantes
ao nosso lado enquanto o vapor subia continuamente de sua xícara.
– Como você sabe? Como pode ter tanta certeza?
Ara puxou as mangas com nervosismo, e não pude deixar de notar as
marcas em seus braços. Ela não era uma mulher velha, mas algo a havia
abatido tanto que rugas fundas já estavam entalhadas em sua testa e seu
queixo, enquanto mechas cinzentas se espalhavam por seu cabelo escuro. Mas
era uma mulher bonita, majestosa em suas pregas de linho cor de trigo.
– Só quero proteger você da decepção – ela disse, com um ar distante. – Há
segredos neste mundo sepultados muito tempo atrás e é melhor que sejam
esquecidos.
Ela estendeu a mão açoitada pelo sol sobre a mesa e tocou o punho de
Henry. Desviei os olhos, envergonhado pelo gesto maternal e sentindo como se
estivesse invadindo um momento ao qual não pertencia.
Então Henry puxou a mão de volta, erguendo os olhos maravilhado para a
obra-prima que nos oferecia sombra. O templo se erguia tão alto que não
conseguíamos ver onde terminava.
– Nada vai me impedir de falar com esse tal Faraday. Já marquei a reunião
e, além do mais, são apenas algumas perguntas. Que mal há nisso?
Ara não teve tempo para responder, pois a mochila de Henry havia se
aberto e uma bola inquieta de pelo saltara para as pedras empoeiradas da
rua. Henry deu um grito de alegria e pegou o filhote, colocando-o no colo com
uma palmadinha carinhosa.
– Não acredito que você insiste em trazer essa coisa – Ara murmurou,
voltando a puxar as mangas.
– Essa coisa é essencial para qualquer aventureiro – Henry respondeu com
um riso, erguendo a bolinha amarronzada de pelo e beijando seu focinho
preto. Ele deu uma patada em seu queixo e soltou rosnados brincalhões. –
Afinal, o que é um homem sem seu cão? Enfim, esse rapazinho consegue sentir
as verdadeiras emoções de uma pessoa. Ele será de extrema importância esta
noite.
– Que bobagem – eu disse, ecoando o descontentamento de Ara. Talvez
fosse a única coisa em que concordávamos; eu sempre havia preferido gatos.
Até essa aventura, só sabia que Henry tinha pássaros, mas, ao que parecia,
seus interesses tinham se expandido.
– Diga-me, Bartholomew, Spicer está irritado comigo sem motivo agora?
O filhotinho soltou um uivo breve e agudo, dando patadas no ar.
Henry soltou um riso agudo, abraçando o animal junto ao peito.
– Viu? Ele é perfeito.
Assim como você, pensei, quando não é insuportável.
– Bah, ele vai ficar enorme – murmurei, cruzando os braços e cozinhando
no calor. – Eu é que não vou limpar a sujeira dele.
– Vai demorar séculos para isso – Henry corrigiu, seu conhecimento de
todas as coisas mágicas e faes incontestável. Bom, talvez contestáveis apenas
por Ara. – Ele vai caber na minha bolsa por anos ainda, depois vou encontrar
um lugar onde possa crescer. Agora, terminem seu chá, quero explorar o
templo antes de escurecer.
1248, Constantinopla
– Vocês não sabem onde comer, meus amigos. Vocês não sabem! Baki vai
mostrar a vocês. Baki conhece todas as baias e açougues desde Galata até o
porto. Aquela casa de chá perto do templo serve mijo. O que você tinha na
cabeça, Senhor das Trevas?
Meu grego, muito melhor do que o de Henry, estava se revelando útil ao
tratar com Baki. Eu o conhecia apenas tangencialmente através de Finch, que
falara muito bem do homem. Baki ocupava quase o beco inteiro à nossa frente,
sua barriga imensa aparecendo sob um colete bordado e a túnica curta. Sua
cabeça e seus ombros estavam cobertos por um xale de listras fantásticas que
mal conseguia esconder seus chifres e orelhas pontudas.
– Não estamos aqui pela comida – eu disse a ele, bufando.
– Mas vamos lembrar de experimentar a rabada – Henry brincou.
Baki roncou de tanto rir, batendo no estômago e piscando para nós. Seus
olhos eram de cores diferentes, um azul e um amarelo, como um gato.
– Muito bem, meus amigos. Eu particularmente não compartilho de carne
de vaca, mas Baki vai olhar para o outro lado se tiverem essa inclinação.
Talvez possamos discutir a busca de seu amigo pelo escritor com um pudim de
mel amanhã. Existem boatos de uma grande batalha em Henge, e Baki está
sempre disposto a falar de batalha!
Só mesmo Henry para fazer amizade com outro sobreterreno antes de mim.
A passagem estreita que descemos era iluminada pelos lampiões das casas
acima de nós. Eu desconhecia o nome do bairro, algum lugar ao sudoeste do
coliseu e das mansões e jardins dos ricos. Os muros tinham sido pintados um
dia, mas estavam negligenciados havia muito tempo. Olhos de ratos brilhavam
de todas as fendas enquanto moscas se reuniam sobre pilhas de refugo e ossos
podres, seus enxames densos o bastante para sufocar uma pessoa.
Dentro da bolsa de Henry, o filhotinho de cão do inferno soltou um ganido.
Eu sentia o mesmo que ele. Deixamos Baki ir à frente enquanto Ara assumia a
retaguarda. Seus resmungos indistintos se juntaram às lamúrias do cão.
– Não estou gostando nada disso – eu a ouvi dizer. Era uma frase que já
devia ter proferido umas vinte vezes naquele dia.
– Tente impedi-lo para ver o que acontece – respondi. – Você sabe como ele
fica quando coloca uma ideia na cabeça.
– Eu? – Ara riu, embora seu riso nunca soasse inocente ou alegre. – Tente
você. Você sabe que ele o venera.
Revirei os olhos, observando Baki tirar um varal molhado do caminho. A
escuridão era densa e pastosa, as paredes se cerrando cada vez mais enquanto
seguíamos um trajeto que apenas Baki conhecia. Repeti a mim mesmo que
podíamos confiar nele. Finch era boa em julgar o caráter das pessoas e Baki
era um dos nossos. Sob seu xale, perto da cintura, dava para ver um rabinho
mal escondido balançando sob o tecido. Ele era um Re’em, forte como uma
manada de touros, com chifres e dentes que poderiam estraçalhar carne.
Talvez apenas Golias e Nefilins fossem mais fortes, ou o que quer que fosse
Ara, mas ela não era um dos nossos.
– Estamos perto, meus amigos. Apenas sussurros agora, e apenas se
estritamente necessário.
O silêncio me permitiu ouvir o arrastar de patas de ratos invisíveis e uma
ou outra voz grave emudecida pelo gesso e pelo tijolo. Fomos entrando mais
fundo, como se nos embrenhássemos por uma selva e não pelas ruas de uma
cidade. O que eu não teria dado para estar de volta naquela casa de chá
medíocre, tomando uma bebida à base de ervas e me queixando do calor. Eu
não tinha estômago para essas aventuras tenebrosas, mas Henry, fosse por
causa de sua natureza sombria ou sua curiosidade, não se cansava delas.
Um dia eu aprenderia a dizer não para ele. Um dia…
– E você tem certeza de que esse tal Faraday pode nos ajudar? – Henry
sussurrou. – Estou gastando muitas moedas com você, amigo, espero que não
seja em vão.
– Eu levaria vocês até ele em troca apenas desse cachorrinho – Baki
respondeu, suas orelhas pontudas se eriçando sob o xale. Sob a túnica, seu
rabo balançou mais.
– Rá. Improvável. Esse animal vale mais do que qualquer informação que
você ou esse estranho possam ter. Além disso – Henry acrescentou –, me
apeguei a ele.
– Claro, claro. Agora, amigos, fiquem em silêncio, chegamos.>
Murmurei uma oração de agradecimento ao pastor, me aproximando de
Henry e Baki enquanto Re’em, alto e redondo, se aproximou de uma porta
escondida atrás de uma cortina velha de aniagem. Ele abriu a coberta e deu
algumas batidas em uma ordem estranha, depois esperou. Algo roçou meu
cotovelo e levei um susto, quase pulando nos braços de Henry de pavor.
– Fique calmo – ele sussurrou. – É apenas um camundongo.
– Camundongos não são frios e úmidos.
A porta se abriu, revelando uma choupana de pé-direito baixo. Uma mulher
corcunda nos esperava ali, com cabelos e olhos brancos e um traje todo preto.
Ninguém a chamaria de agradável aos olhos; sua boca era nada mais do que
um corte sobre o queixo.
– Ah, Guardiã Branca, você está radiante hoje – Baki elogiou.
Guardiã Branca. Isso fazia sentido. Mas o restante? Henry e eu trocamos
um olhar. Ela estendeu um braço torto de dentro do manto negro, a pele
branca e enrugada coberta por marcas desbotadas de tinta. Afagando a
bochecha de Baki, bufou um riso seco.
– Do que precisa, meu rapaz? – ela perguntou em grego. – Imagino que esta
não seja uma visita social. Que decepção. Você nunca vem me ver a menos que
precise de algo.
Baki encolheu os ombros e bateu no estômago.
– Você e eu vamos botar a conversa em dia enquanto esses outros tratam
com Faraday, que tal? Talvez você ainda tenha um resto de janta no fogão…
Os olhos da velha se estreitaram e ela se voltou para nós com uma careta
perversa.
– O mestre? Ah, não. Ah, não, não, não. Vocês não o verão. Não hoje. Ele
está de péssimo humor e não dá para saber se vai atirá-los pelo telhado ou
servir-lhes chá. Ele não é o mesmo desde que voltou do sal.
– Por favor, senhora – Henry pleiteou, jogando charme. Ele se apoiou
languidamente no batente, abriu seu sorriso mais juvenil e tirou o cabelo
escuro da frente dos olhos antes de baixar o capuz para que ela pudesse vê-lo
completamente. – Percorremos um caminho tão longo. Seria uma pena se
fosse tudo em vão.
Ele olhou para dentro da choupana atrás dela. A vela que ela trazia
iluminava uma série de marcas estranhas nas paredes de gesso. Eu não sabia
o significado delas, mas meu estômago se revirou só de olhar. Todas as
estrelas e os caracteres rústicos eram desenhados em sangue.
– Não temo o que há aí dentro – Henry lhe assegurou. – E não seremos um
incômodo para seu mestre. Desejamos apenas fazer algumas perguntas.
A Guardiã Branca o encarou por um longo tempo, depois voltou seu olhar
para mim e finalmente para Ara, que se inquietava e murmurava de tédio
enquanto a decisão era tomada. Então, acenou uma vez com a cabeça e Baki
segurou a cortina de tecido enquanto entrávamos.
A choupana tinha um cheiro opressivo de incenso, um aroma silvestre e roxo
que só podia ter um objetivo: esconder o verdadeiro odor do lugar, o fedor de
ossos velhos e deterioração humana. O sangue nas paredes era fresco, embora
marcas secas espreitassem por baixo dos símbolos mais novos, aplicados
recentemente. Eles cintilavam à luz de velas, exalando um cheiro de moeda
úmida que apertava o nó em minhas tripas.
Confesso que quis fugir. Henry seguiu a velha quase saltitante, mas eu não
conseguia compartilhar do seu entusiasmo. Havia algo muito errado naquele
lugar – eu sentia isso no fundo do meu ser, e não era apenas minha aversão
sobreterrena aos hábitos do povo de Henry.
Aquele era um lugar de perdição.
Não havia quase nada na choupana, apenas um assador para cozinhar e
algumas almofadas granuladas. O chão estava coberto de areia e manchas
secas de sangue, e todos tivemos de nos abaixar para não bater a cabeça no
teto. A Guardiã Branca nos guiou por uma passagem no fundo da casa, cuja
escadaria de argila construída no chão talvez precedesse o bairro ou até a
própria cidade. O ar deveria ter ficado mais frio enquanto descíamos;
contudo, logo me vi tirando o capuz, enfrentando um calor abafado que se
tornava quase intolerável.
– Por que é tão quente? – murmurei.
Foi então que notei que Baki havia ficado para trás. Com aquela altura,
talvez nem coubesse na passagem, mas sua ausência me encheu de
inquietação. Ele conhecia aquelas pessoas melhor do que nós. Por que teria
ficado do lado de fora?
Por fim, a Guardiã Branca parou. Logo à frente, havia o arco largo de um
batente, esculpido na rocha pálida sob a cidade, e uma cortina diáfana
balançando de um lado para o outro diante dele. A luz de cem ou mais velas
brilhava do outro lado. Algo suave fez cócegas em meu pé quando caiu sobre
minha sandália. Eu a peguei e a virei em frente à cortina iluminada. Era uma
pena comprida, marrom e pontiaguda.
– Que peculiar – sussurrei.
– O mestre está aí dentro – a Guardiã Branca nos disse com a voz rouca. –
Não testem a paciência dele.
Então ela se foi, deixando-nos com o mau cheiro e o calor daquele covil
profano. Olhei para Henry, mas seus olhos estavam arregalados de um prazer
infantil e ele avançou em direção à cortina. Nem se quisesse eu poderia
impedi-lo de puxar o tecido. Até Ara parecia fascinada, parando ao lado dele
e prendendo a respiração. Dentro da bolsa de Henry, o filhote soltou um uivo
baixo e entristecido.
Esse uivo assustou a criatura. Ela tinha construído uma espécie de pequena
cidadela para si, uma igreja sinistra de velas e palha. O piso era coberto de
penas como as que eu havia encontrado. Ela tinha grandes asas fulvas com
garras curvas nas pontas. E era uma espécie de homem, de constituição
magra e musculosa, usando a túnica rasgada e ensanguentada de um
adversário muito maior. Correntes grossas de contas pretas pendiam de seu
pescoço, e sua pele brilhava com fissuras, rachaduras irregulares na carne,
das quais brotava uma luz vermelho-dourada.
Doía olhar para ele e meu estômago se apertou.
– Šulmu, Gallû – Henry disse, dando um passo para dentro do covil da
criatura e fazendo uma reverência. Saudações, Demônio. Ele soava
definitivamente animado. – Faraday, presumo? Embora, pelo visto, não me
pareça correto. Mais provavelmente Faraz’ai, o nome perdido no tempo. Ou
Furcalor ou Focalor… Vamos ficar com este. Focalor, Grande Duque, o
Abandonador, Líder das Trinta Legiões e, o que é mais importante, morto até
onde eu saiba. Como chegou até aqui e o que sabe sobre os livros, sobre a
vinculação?
Faraday – ou Focalor, como Henry o havia chamado – se virou para nos
encarar completamente. Seu rosto poderia ser incrivelmente belo não fossem
as rachaduras de luz se abrindo em formas estranhas. Ele abriu as asas largas
de grifo e estendeu as mãos para nós, com lágrimas escorrendo pelas
bochechas. Faltavam dois dedos em sua mão direita; a outra havia perdido o
mindinho.
A voz de Focalor era como a fumaça de um cachimbo, forte e inebriante, a
voz de um cantor jovem, mas triste, uma voz feita para cantos fúnebres.
– Ah, sim, Senhor das Trevas, eu fui até as planícies brancas. Fui até o sal
para encontrar um Vinculador, e a jornada tirou tudo de mim.
Quatro, então cinco dias se passaram sem sinal da coruja Wings. Havia poucas
distrações no abrigo de Deptford e não nos restava nada além de lamber nossas
feridas e esperar. Niles havia decidido se juntar a nós, visto que estava sem emprego
agora que a Cadwallader’s havia pegado fogo, e concordamos em levá-lo conosco
até a Casa Coldthistle. De lá, ele continuaria até Derridon a fim de encontrar o
irmão.
Em circunstâncias normais, uma demora dessas não seria inquietante, mas Dalton
havia nos assegurado que a coruja já estaria de volta com uma resposta àquela
altura, se houvesse uma a ser enviada.
– Arre, Louisa, há algo terrivelmente errado.
Teoricamente, eu e Mary estávamos jogando uíste, mas toda a atenção dela estava
em tirar do bolso o peixe esculpido em madeira por Chijioke e brincar com ele,
pensando que eu não sabia o que ela estava fazendo embaixo da mesa. A tensão no
porão era sufocante. Fathom tinha medo de que seríamos seguidos e encontrados
outra vez, por isso passávamos a maior parte do tempo no subsolo.
– Você acha que eles podem estar nos ignorando de propósito? – perguntei a
Mary. – Talvez estejam bravos conosco por termos partido.
Eu tinha ganhado a última vaza e era a vez de Mary, mas ela não percebeu.
Balançou a cabeça, olhando desatenta para suas cartas.
– Chijioke me escreveu durante todo o verão. Eu saberia se ele estivesse bravo.
– O que acha que vamos encontrar lá? – perguntei. Eu tinha lhe contado pouco
sobre o diário de Dalton, mas o que havia lido até o momento parecia promissor.
Talvez o sr. Morningside tivesse descoberto uma maneira de invocar os
Vinculadores a partir das experiências de Focalor. Eles vinham seguindo os
caprichos do sr. Morningside ao buscar a origem dos estranhos livros e, agora que
eu tinha encontrado um Vinculador, sabia que eles detinham um grande poder,
suficiente até para tirar o Pai do meu espírito sem me matar.
– Sofro só em especular – ela murmurou. – Meu coração dói sempre que me
permito imaginar…
Eu a observei formar um par, então estendi o braço para pegar uma carta da pilha,
inspirando entre dentes quando a borda da carta raspou a marca inflamada na palma
da minha mão. Mary havia me contado o que exatamente havia acontecido de sua
perspectiva durante o ritual. Aos seus olhos, eu não tinha ido a lugar algum –
simplesmente ficara ajoelhada nos tapetes com a estranha. Então, de repente, havia
começado a gritar, me jogando no chão, rolando e debatendo os braços. Ela não
havia entendido por que eu tivera uma reação tão bizarra a um pouco de sálvia
sendo queimada. E eu estava falando em uma língua terrível, ela disse, mal parecia
minha voz, gritando coisas que não faziam sentido para ela nem para ninguém na
sala. Eram palavras tenebrosas, perversas – disso não havia dúvida.
Ficou pior quando a estranha pegou minha mão e começou a pôr tinta nela com a
agulha de osso. A mulher falava na mesma língua aterrorizante e seus olhos tinham
se revirado para trás, o branco cintilando enquanto gravava minha pele cegamente.
Virei a mão e observei as letras escuras que permaneciam ali. Pareciam mudar
cada vez que eu olhava, escrevendo numa língua tenebrosa e perversa. Embora eu
soubesse graças ao Vinculador que a marca significava “disposta”, ela parecia
terrivelmente sinistra.
– Ainda dói? – Mary perguntou gentilmente. – Posso buscar mais bálsamo.
– A dor está diminuindo – eu disse. – Bem que eu queria que a marca diminuísse
também.
– Pelo menos funcionou. Mas não faço ideia do que pensar da Mãe.
Eu sentia a mesma confusão. Fathom e Dalton haviam arranjado roupas mais
mundanas para ela se disfarçar e lhe dado um véu preto de viúva para esconder o
cabelo, a pele e os olhos incomuns quando não estávamos escondidos no abrigo. Ela
era reservada na maior parte do tempo – lia vorazmente, estudava todas as
bugigangas que encontrava ali e passava longas horas nos observando, como se
tentasse memorizar todos os nossos gestos. Todos os insetos errantes que se
infiltravam no porão voavam na sua direção, zumbindo aos seus pés como pequenos
servos disponíveis.
– Louisa…
Mary me observava enquanto mordia os lábios, as bochechas coradas em um tom
rosa-escuro.
– Sim?
– Louisa, acho que deveríamos ir o quanto antes para a Casa Coldthistle. Sei que
o ataque contra a Cadwallader’s abalou você, e sei que teme uma armadilha, mas
não acho que devamos esperar mais. A espera está me enlouquecendo – ela
acrescentou, espalhando as cartas sobre a mesa.
– Eu concordo – respondi, para sua surpresa. E frustração.
– Sério? Então por que a demora? Deveríamos encontrar uma carruagem
adequada imediatamente…
– Não fomos porque tenho medo – revelei a ela, interrompendo seu planejamento
animado. – Agora que sei como é encontrar um Vinculador, não tenho certeza se
conseguiria sobreviver novamente. Foi tão terrível tirar uma maldição de outra
pessoa que só me resta crer que seria muito mais difícil desfazer uma magia feita
em mim. Tenho medo do que vai me custar. Tenho medo de que não serei forte o
suficiente para suportar da próxima vez.
Ela franziu a testa e assentiu, depois colocou a mão sobre a minha mão boa e deu
um tapinha leve.
– Já vi você fazer coisas extraordinárias, Louisa. E você não está sozinha. Eu
fiquei com você em vez de voltar para Yorkshire por um motivo. Você precisa da
minha ajuda, e da de Khent também. Somos todos mais fortes juntos, e mais fracos
quando estamos sozinhos.
Tentei sorrir, mas minhas dúvidas continuaram. Ela não sabia como era viver
dessa forma – como era ter medo da própria mente. Mary podia ter presenciado o
ritual de longe, mas não tinha visto o Vinculador face a face e suportado seu teste.
– Vamos encontrar uma maneira de consertar isso, eu prometo, e nossas chances
só vão melhorar se também tivermos Chijioke ao nosso lado. E Poppy! – Ela deu
um riso breve. – E, embora você não confie neles, acredito sinceramente que o sr.
Morningside e a sra. Haylam vão ajudar se puderem. Talvez, com a ajuda deles, não
seja tão ruim dessa vez.
Suspirei, colocando as cartas na mesa.
– Talvez você tenha razão. Talvez não saber seja uma prisão mais do que um
escudo.
Estava decidido. Eu só precisava convencer Dalton, mas isso se provou mais
difícil do que eu imaginara. Ele estava relutante a ir sem saber a situação na Casa
Coldthistle, mas tínhamos esperado tempo suficiente, e apelei a seu carinho por
Henry, que era mais profundo do que eu havia imaginado. Nesse aspecto, o diário se
mostrou uma ferramenta útil.
– Por que me deu isto? – perguntei enquanto ele tomava chá sozinho naquela
tarde. Erguendo o diário, num gesto um tanto infantil, o acenei na cara dele. – De
que adianta tudo isso se não permitir que o sr. Morningside me ajude? Se a Mãe não
tivesse feito nada, eu poderia ter desmembrado aquelas pessoas na loja uma a uma.
O tempo de esperar chegou ao fim.
Ele me olhou por cima da xícara por um longo tempo, relanceou para minha mão
que cicatrizava e então fechou os olhos, sugando os lábios.
– Eu sei – ele disse. – Mas tenho medo.
– Eu também tenho medo – confessei. – Mas isso não é mais o bastante.
Fathom assumiu a tarefa de organizar nossa fuga de Londres, embora ela não
gostasse de sair do abrigo nem para preparar as carruagens. Decidimos partir
naquela noite, usando a cobertura da escuridão para chegar a St. Albans e então
trocar de carruagem, viajando para o nordeste rumo a Malton. Dalton nos assegurou
que conseguiria um transporte mais rápido em St. Albans, encurtando o trajeto
normalmente longo para North Yorkshire com uma ajudinha de um homem santo e
seus cavalos ainda mais santos.
Tudo isso foi explicado à Mãe, que absorveu as informações em silêncio, aquele
sorriso beatífico permanente crescendo um pouco ao se dar conta de que estávamos
de fato nos dirigindo à Casa Coldthistle.
– Bom – ela respondeu. – Eu gostaria de ver onde o Pai foi derrotado.
Eu não disse nada, só olhei para o lado para esconder minha frustração. Ele
definitivamente não parecia derrotado.
≥apítulo Treze
Ouvi a lança atingir seu alvo antes mesmo de ver. O uivo ensurdecedor da fera
poderia ter sido escutado até em Londres. Isso, mais do que a maneira como ela se
debatia – sua cabeça marrom e desgrenhada sacudindo, suas patas grossas e curtas
cedendo –, cortou meu coração. A tarasca deu dois últimos saltos vacilantes, com
pele e escamas manchadas de lama, antes de mergulhar à frente, as mandíbulas se
enchendo de pedra e terra conforme cavava uma vala na estrada. Khent a havia
atingido no olho esquerdo, mas o dardo tinha cortado fundo e apenas uma ponta
saía da ruína ensanguentada de sua órbita.
Fathom freou os cavalos com um grito de alegria e ergui a cabeça até ver Niles e
Dalton darem meia-volta, aproximando sua carruagem da nossa pelo lado oposto.
Apertei meu peito para confirmar se ainda respirava. Parecia que um raio puro
corria pela minha pele. Então me encontrei no ar, erguida da capota, enquanto
Khent me girava para cima e para baixo antes de jogar a cabeça para trás e soltar
um uivo de alívio.
– A-rá! Viu isso? Eu poderia ter derrotado o rei-deus quando quisesse! Quando
quisesse! Espero que ele esteja vendo isso da Terra dos Dois Campos!
– Foi um arremesso muito bom – admiti a contragosto, para não inflar seu ego
ainda mais, rindo quando ele começou a bater no peito. Ele se sentou rapidamente,
quase desabando, e pousou a cabeça nos joelhos enquanto inspirava profunda e
ruidosamente. – Conseguimos – murmurei. A chuva havia colado meu cabelo ao
rosto e eu o afastava inutilmente. – Tivemos muita sorte.
– E aquilo – ele ergueu a cabeça, os olhos roxos dançando enquanto dois dedos
imitavam pernas escalando uma parede – foi corajoso.
– Ou imprudente – ri baixo. – Mas imagino que seja difícil saber a diferença.
A porta sob nós abriu uma fresta e Mary se inclinou para fora, tentando encontrar
nossos rostos.
– Que extraordinário! Você viu, Louisa? O cuspe atravessou tudo! Chegou até o
chão!
Dalton saltou de sua carruagem e se recostou nela, passando as duas mãos pelo
cabelo ruivo.
– Meu Deus, temos sorte de estar vivos. Isso não é um bom sinal. Se o pastor está
desesperado o bastante para invocar a tarasca de Nerluc, temo que seja capaz de
qualquer coisa.
– Mais retaliação por Sparrow, creio eu.
Khent se inclinou na beira da carruagem e ergueu a voz.
– Rá. Roeh vai ter de se esforçar mais. Estamos nos revelando difíceis de matar.
– Eu não o incentivaria – Dalton retrucou com uma careta. – Porque ele vai se
esforçar mais. – Ele olhou na direção da tarasca e estremeceu. A criatura estava
soltando seu último suspiro, grunhindo enquanto se esparramava na terra e arfava,
rolando sobre o dorso escamado. – Deveríamos seguir em frente. Não gosto da ideia
de estar nas estradas ao anoitecer e… que diabos?
Sem que nos déssemos conta, a Mãe havia saído em silêncio da carruagem e
começado a andar na direção da tarasca. Ela tirou o véu negro da frente dos olhos,
subindo o monte de pedra e lama erguido contra o rosto da criatura com passos
lentos e graves. Eu a ouvi cantarolar algo baixo e funéreo, uma canção de luto.
Ajoelhando-se, apoiou as mãos roxo-escuras sobre seu focinho peludo.
– Louisa, realmente deveríamos…
– Shhh – interrompi Dalton, erguendo a mão e observando enquanto a imensa
criatura, imóvel, desgrenhada e coberta de sangue, começava a se desfazer
gradualmente, cintilando ao transformar-se em milhares de borboletas cor-de-rosa.
Pensei ouvir a tarasca soltar um grunhido surdo enquanto desaparecia, como se
tivesse apenas cochilado e se metamorfoseado durante seu descanso pacífico.
As borboletas se espalharam pelo céu, camuflando-se perfeitamente nos tons
rosados dos limites do horizonte. A chuva começou a enfraquecer, deixando para
trás a umidade fresca da grama alta e dos arbustos, flores silvestres balançando suas
pétalas pesadas pela chuva ao longo da sebe. A Mãe voltou com a cabeça erguida.
– Todas as criaturas merecem misericórdia – ela murmurou, passando entre nós.
Antes de entrar na carruagem, me entregou algo: uma faca de jantar cega e
ensanguentada. Então, assumiu seu assento, rígida e majestosa como uma rainha.
Seus olhos encontraram os meus, cintilando com lágrimas não derramadas. – Todas
as criaturas. Até aquelas que nos perseguem.
Meu coração foi ficando pesado de pavor enquanto subíamos a última colina antes
da Casa Coldthistle. Eu lembrava tão claramente da minha primeira visita àquele
lugar que quase conseguia sentir o cheiro de fezes de pássaros e da fuligem da
fogueira nas roupas da sra. Haylam. E Lee. Lee estava lá. Eu havia pensado nele
com frequência quando o verão começara e eu ainda era recém-chegada a Londres,
mas então a vida da cidade me consumira, os meses desapareceram enquanto eu
preparava a casa e, antes mesmo que eu pudesse aproveitar os dias mais quentes, o
outono chegara. O caos vertiginoso da última quinzena o havia tirado
completamente dos meus pensamentos. Me perguntei como o encontraria, e se ele
me cumprimentaria calorosamente ou como uma amiga esquecida. Eu não teria
como culpá-lo; devia ter-lhe escrito. Devia tê-lo guardado mais carinhosamente em
meus pensamentos. Devia ter feito muitas coisas melhor.
A colher havia se tornado uma faca. Fiquei refletindo sobre isso, incomodada
com o simbolismo, apreensiva em saber que o monstro em meu espírito poderia sair
do controle a qualquer momento e me transformar em seu instrumento relutante de
destruição.
Eu pensava que teria sentimentos mais conflitantes sobre nosso retorno, mas
agora – molhada, exausta e atribulada – estava ansiosa por uma refeição quente e
um teto sobre nossa cabeça. Que hospitalidade nos aguardava, porém, ainda era um
mistério.
≥apítulo Quinze
1248, Constantinopla
Eu nunca imaginei que um dia teria pena de um demônio, muito menos de um
tão antigo e poderoso quanto Focalor, mas a criatura praticamente implorava
minha compaixão. Ele se encolhia em sua catedral de velas, as asas marrons
semienvoltas ao redor do corpo enquanto erguia as mãos feridas perto da
barriga.
– Você pode entender minha impaciência – Henry disse, um tanto ríspido. –
Percorremos um caminho muito longo e você não está colaborando em nada.
O demônio se agachou, erguendo os olhos para ele e mostrando os dentes.
– Olhe para mim, Senhor das Trevas. Veja o que me aconteceu no sal.
– O sal? – Henry revirou os olhos e murmurou para si mesmo. – Do que ele
está falando?
– Seja bondoso, Henry – interrompi. – Ele está meio insano.
– Não – Ara disse. – O sal. Há um lago de sal, enorme, ao leste. Tuz Gölü.
O demônio sibilou ao ouvir esse nome.
– Não se aproximem do sal. Vocês não voltarão ou voltarão despedaçados.
Henry abriu a bolsa nas costas e tirou o filhotinho acastanhado de dentro
dela, erguendo-o na direção de Focalor, que o observou com olhos nervosos e
estreitados.
– Ela está certa? Você aprendeu mais sobre os livros em Tuz Gölü?
Retraindo-se, o demônio escondeu-se completamente dentro das asas.
– N-não. Não, não há nada lá além de desolação. Desolação e dor. Não há
respostas. Não há nada. É tudo em vão. Tudo sem propósito.
Sua voz era abafada, mas ainda podíamos ouvi-lo.
Henry aproximou a boca da orelha do cachorro e murmurou:
– Ele está mentindo? Há mentiras no coração dele?
O cachorrinho deu um rosnado grave e depois latiu. Henry afagou sua
cabeça com carinho e o colocou embaixo do braço, suspirando.
– Sei que você não quer servir a mim nem a ninguém, Focalor, mas torne
isto mais fácil para você. Conte-nos toda a verdade. Conte-me o que encontrou
em Tuz Gölü. Conte-me.
Sua paciência estava se esgotando. Era raro sua raiva vir à tona, pois,
como em muitas situações na vida, até nas tribulações, ele mantinha um ar de
galhofa. Eu o tinha visto rir dos insultos mais graves, das críticas mais ácidas,
de fracassos, de erros e de tudo mais. Mas um rubor vermelho surgia em suas
bochechas agora, pontinhos prateados se destacavam em seus olhos, e sua
raiva era tal que o feitiço que ele usava para ocultar sua verdadeira natureza
vacilou e seus pés se contorceram para trás. Tirei o filhote de suas mãos, com
medo de que esmagasse o coitadinho até a morte em sua fúria.
– Você não gostaria de me fazer implorar – Henry acrescentou em um
sussurro baixo, quase triste. – Sei que não gostaria disso nem um pouco.
Ele apontou para Ara, que se virou e lhe deu a bolsa bordada e pesada que
continha o Elbion Negro. As asas do demônio começaram a tremer, mas ainda
assim ele não conseguiu dizer nada coerente, murmurando repetidas vezes
sobre os perigos do sal.
– Areias brancas nas minhas feridas, areias brancas nas minhas feridas,
areias brancas…
– Talvez se lhe déssemos mais tempo – sugeri, observando Henry tirar o
livro preto da bolsa e passar uma mão tenra sobre o símbolo na capa. – Ou
talvez devêssemos ouvir seu alerta. Gosto dos meus dedos onde estão.
– Detesto concordar com o sobreterreno – Ara sussurrou –, mas aqui
estamos nós. Falei para não bisbilhotar os livros. Olhe o que isso fez com esse
pobre miserável.
– Suas opiniões foram anotadas e descartadas – Henry respondeu com a
testa franzida, aninhando o livro em um braço para abri-lo. Para mim,
pareceu que a escolha de página foi aleatória, mas eu conhecia Henry bem.
Seus dedos perpassaram fileiras de texto, palavras que eu não conseguia e
jamais conseguiria decifrar. Não era uma língua feita para mim. Segurei o cão
junto ao peito, tentando acalmar sua agitação e seu choramingo. – Eu o
comando – Henry declamou, erguendo a outra mão para o demônio. Seus
dedos estavam firmes, seu braço imóvel, seus olhos de súbito completamente
negros. – Servo rebelde e relutante, eu o comando agora: você me dará sua
verdade e me servirá como guia.
As asas fulvas envolvendo o demônio tremeram por um longo momento,
seus balbucios se calando enquanto a voz de Henry ecoava pela caverna oca.
As chamas das velas dançaram em seus pavios, ameaçando se apagar. Ara
fechou os olhos e pressionou os lábios com força. Um sussurro baixo veio do
demônio, mas Henry o ignorou e só repetiu suas exigências, cada vez mais alto
e furioso.
Em seguida, tão rapidamente quanto uma corda se rompendo sob tensão, as
asas se abriram e o demônio surgiu, mas mudou rapidamente diante de nossos
olhos. As fendas em sua pele se alargaram, não mais brilhando douradas, mas
soltando uma fumaça preta. Ele se tornou um ser de sombras e olhos
vermelhos, ainda alado, mas crescendo até seus chifres recém-brotados quase
tocarem o teto. O filhotinho estremeceu e ganiu, debatendo-se até eu abraçá-
lo. Henry não hesitou, mas o demônio de fumaça e olhos avançou contra nós,
exalando o cheiro inconfundível de enxofre.
– Você me dará sua verdade e me servirá como guia! – Henry esbravejou.
Mas o demônio havia se desfeito; tinha se tornado desafio puro.
– Ai akkani, halaqu. Napasu-akka.
– Henry. Henry. Maskim xul… – Eu nunca tinha ouvido Aralu Ilusha com
medo, mas o tremor na sua voz era claro enquanto alertava Henry, e recuei
devagar. A criatura não poderia estar menos interessada em mim. Tinha olhos
apenas para ele.
– Você me servirá como guia – Henry gritou de novo, ignorando-nos. Sua
mão estendida estava prestes a tocar a fumaça, e prendi o ar, observando
enquanto a nuvem negra como carvão se aproximava…
– Arratu-akka! Mâzu, mâzu, MÂZU.
Era uma voz diretamente do inferno, tão cruel e sombria quanto a própria
criatura. Senti-me prestes a vomitar e caí de joelhos, fechando os olhos e
mergulhando em oração. Balancei para trás e para a frente com o cachorro
nos braços; lágrimas quentes escorriam por meu rosto e caíam em seu pelo.
Ele se aninhou contra mim, o único ponto de conforto enquanto a voz de
pesadelos entrava em meus pulmões como ar envenenado, denso como cinzas.
Toda a caverna e a choupana acima estremeciam, e me preparei para um
desabamento.
– Sucumba, então, demônio. Proclamo-o tudo que é baixo, tudo que é
homem.
Um sussurro baixo atravessou o aposento e abri os olhos, observando a
mão que tocava o Elbion Negro vibrar com um poder vermelho luminoso. O
poder disparou pelo braço de Henry enquanto seus dedos desapareciam na
fumaça do corpo do demônio.
O grito de angústia de Focalor se extinguiu, contido à medida que ele se
encolhia como vapor saído de um caldeirão e sendo sugado de volta para
dentro num instante. Quando a névoa se desfez, tudo que restou foi um homem
pálido e trêmulo, deitado de lado como um recém-nascido, vestindo uma tanga
larga sobre a cintura. Ele chorava trêmulo e desviei os olhos no mesmo
instante. Era sufocante. Pensei que nem Ara nem Henry haviam me notado
recuando em direção às escadas, mas, um momento depois, ouvi Henry fechar
o livro e surgir ao meu lado.
– Isso foi cruel – sussurrei, percebendo que minhas lágrimas não haviam
ralentado. – Você foi longe demais.
Henry deu de ombros, impassível.
– Ele é um demônio, Spicer. Isso não é da sua conta. Ele deve fazer o que
ordeno.
Quando olhei para ele de novo, algo estava diferente. Ele tinha o mesmo ar
charmoso, despreocupado e irônico de sempre, presunçoso por sua suposta
vitória, mas um brilho escuro em seu olhar me perturbou profundamente.
Havia uma ausência de luz e compaixão ali, apenas uma escuridão vazia.
– Essa não é a questão, Henry. Como você nunca consegue ver qual é a
questão?
Meu primeiro pensamento foi que o sr. Morningside estava se referindo ao diário
de Dalton, que o queria destruído, mas obviamente não poderia ser tão simples.
– Você não faz ideia do que está pedindo – Dalton disse, balançando a cabeça e
passando por mim até ficar cara a cara com Henry. Eles eram da mesma altura e de
constituição parecida, embora fossem diferentes em praticamente todos os outros
aspectos. Com o cabelo escuro do sr. Morningside e a tez ruiva de Dalton, eram
como gelo e fogo.
– Pelo contrário, sei muito bem o que estou pedindo. – O sr. Morningside deu a
volta languidamente por ele, roçando o ombro do outro. Dalton se crispou com a
proximidade. – O que mais quer que eu faça? O pastor ficou completamente insano.
Tínhamos um belo acordo em vigor. É uma pena que ele tivesse de arruiná-lo.
– Louisa me contou que você está reunindo um exército maldito de almas, Henry.
Talvez isso o tenha arruinado, não?
– Toda essa discussão é mesmo necessária? – A sra. Haylam apertou a testa, indo
até a janela atrás de nós e pousando o candelabro. – Dalton trará o livro branco e
cuidará para que seja destruído, ou partirá, levando a pobre, pobre Louisa consigo.
Ela falou com tanta determinação que todos ficamos em silêncio por um
momento. Eu mal podia acreditar no que estava escutando. Claro, estava
completamente em conformidade com os truques habituais do sr. Morningside, mas
até para ele parecia algo extremo.
– Destruir o livro? – murmurei. – Isso é sequer possível?
– Sim – o sr. Morningside respondeu. – Dalton também sabe disso.
Esperei Dalton dizer alguma coisa, enquanto esfregava as mãos na saia com
nervosismo.
– E depois? Se o livro se for, o que acontecerá?
– Os sobreterrenos como eu, o pastor… – Ele engasgou um pouco com as
palavras e fechou os olhos. – Deixaremos de existir.
– Ah – eu disse, lembrando de parte do diário. – O livro é o que dá poder a todos
vocês. O pai consumiu nosso livro, e é por isso que nós, faes das trevas, ainda
estamos aqui.
– Precisamente. – O sr. Morningside pareceu lúgubre de repente, como se
finalmente percebesse a gravidade do que estava pedindo. – O que você prefere que
eu faça, Spicer? O pastor está descontrolado. Você viu mais alguém fundando cultos
em Londres? Ele nos quer mortos.
Dalton soltou um resmungo.
– Não, ele os quer contidos.
– Ele nos quer mortos. – O sr. Morningside avançou para cima dele, apontando
um dedo em sua cara com escárnio. – Você vive há muito tempo e parece infeliz
assim. Sempre odiou o jogo, então agora está convidado a se retirar dele. Destrua o
livro e ajude a garota.
Ninguém se moveu. Por um momento, fiquei convencida de que Dalton fosse dar
um soco nele. Seu corpo inteiro havia ficado imóvel demais, paralisado de fúria,
suas bochechas rubras. Se os olhos estivessem visíveis e inteiros, estariam
disparando chamas. Um tremor começou em sua perna direita, mas ele se conteve e,
devagar, com cuidado, deu um passo para trás. O sr. Morningside baixou a mão e
esperou, tendo apresentado seus termos.
Eu e a Mãe observamos o sobreterreno dar passos exauridos rumo à porta, onde
parou e apoiou uma mão no batente, afastando-se dos Residentes que se reuniam ali
para observar.
– Você não precisava tornar isso pessoal, Henry – ele sussurrou.
– Precisava – o sr. Morningside respondeu, ajeitando a gravata. – Porque você fez
questão que eu tornasse pessoal.
Voltar para meus antigos aposentos na Casa Coldthistle resultou em uma onda
surpreendente de conforto. Minha pequena cama; minha velha mesa bamba de
cabeceira; o espelho comprido onde eu havia me visto pela primeira vez com o
vestido simples e o avental que se tornariam minha roupa cotidiana… Parecia
possível retomar aquela antiga vida, acordar toda manhã e cuidar dos meus
afazeres, limpar o sangue dos carpetes, ajudar Chijioke a colocar cadáveres na
carroça, alimentar os cavalos e passar manteiga nos bolinhos dos hóspedes – tudo
ali, quase alcançável, uma existência que girava no tempo feito uma bailarina numa
caixinha de música.
Minha vida, mas não. Um futuro, um caminho, mas não. Parei ao pé da cama e
toquei os lençóis com cuidado, como se fosse tudo uma miragem que pudesse
tremular e se dissipar ao mais leve toque. Por um breve momento, eu havia
conhecido a estabilidade e a rotina que a maioria das jovens da minha posição
desejavam – um trabalho que garantia que eu comesse, que tivesse um teto sobre a
minha cabeça, e que me permitia guardar um pouco de dinheiro, para talvez um dia
ser gasto em um dote irrisório.
Essa era outra Louisa. Fui até o espelho e alisei meu cabelo. Estava emaranhado
por nossa corrida maníaca até a casa, e meu vestido, rasgado e coberto de lama,
precisava ser trocado. Olhando no fundo dos meus olhos escuros, me perguntei –
não pela primeira vez – se, assim como os hóspedes amaldiçoados da Casa
Coldthistle, eu também tinha sido atraída ali por uma promessa sombria. Eles
acabavam encontrando a morte, mas eu parecia destinada a outra coisa.
– A morte será sua promessa se não abrir os olhos, menina.
Observei pelo espelho uma névoa acinzentada se elevar do chão e encher o
quarto, subindo por meus tornozelos e então meus joelhos. Não havia nada no
reflexo, mas virei em direção à voz e levei um susto ao deparar com o peito do Pai.
Ele assomava sobre mim com uma imagem instável, metade a forma humana
falsa de Croydon Frost, a outra metade sua aparência real. Um crânio de cervo
horripilante se projetava da pele humana, o osso trespassando a carne. Seu terno
estava em farrapos, transformando-se nos trapos pretos e nas folhas que
compunham os mantos do Pai. Tufos de cabelo humano pendiam das galhadas
distorcidas que se sobressaíam de seu crânio exposto.
Ele cheirava à morte, mas isso não era nenhuma surpresa.
Recuei contra o espelho, cerrando os dentes.
– Perto agora – ele rosnou, os olhos como dois carvões vermelhos
incandescentes. – Tão perto agora… minhas cinzas, meu corpo, a árvore que brotou
de meus restos terrenos…
– Isto não é um sonho – murmurei. – Nem um pesadelo. Como pode ser?
Estupidamente, tentei encostar nele para ter certeza de que era real e não uma
ilusão. Minha mão se afundou em seu peito como se ele fosse feito de fumaça
colorida. Mas, quando tentei puxá-la, não cedeu – a imagem me manteve ali, suas
mãos segurando meu punho.
– Uma marca de Vinculador. – Ele a fitou, hipnotizado pelas letras agora ilegíveis
na minha palma. Então seus olhos carmesins se voltaram para os meus. – Você
libertou a Mãe. Sobreviveu a um Vinculador. É mais forte do que eu pensava, filha.
Filha. Agora eu não era menina ou tola ou criança, mas filha.
– Me solte – sussurrei. – E vá embora. Sou sim mais forte do que você imagina, e
meus amigos estão comigo.
– Amigos? – Ele riu, mas era como o grasnado de um corvo na escuridão. – Que
necessidade você tem de amigos quando meu espírito fica mais poderoso? Vá. Vá
até a árvore. Entalhe a casca, tome a seiva, e não haverá amanhecer para o pastor e
sua laia.
Não. A palavra estava ali, na ponta da língua, mas, por mais que eu me esforçasse
em dizê-la, meus lábios se mantiveram fechados. Senti os contornos da palavra se
turvarem e meu equilíbrio estremeceu enquanto pontos vermelhos dançavam em
minha visão. O véu carmesim estava caindo novamente, a influência do Pai era
forte demais para que eu resistisse. Tinha sido um erro vir. Eu não havia
considerado que estar próximo de sua forma física estimularia de alguma forma seu
poder sobre mim. Meu embate foi valente, mas breve, pois não havia como
enfrentar as gavinhas que se cravavam, firmes e dolorosas, em meu cérebro.
O mundo passou como se imaginado. Nada parecia real. Senti meus pés me
levarem para fora do quarto e escada abaixo, depois descerem novamente e virarem
para a cozinha. A porta para o lado de fora estava barricada e seria barulhento
demais abrir sem que me notassem. Então me apoiei nas mãos e nos joelhos e,
como um rato em seu túnel, engatinhei pelo buraco que Bartholomew havia cavado
sob a casa, um projeto que devia ter começado meses antes junto com todos os
outros buracos que havia feito no quintal. Raízes e terra raspavam minhas
bochechas, mas eu estava cega a elas, embora não insensível. A terra fria sob
minhas mãos era escorregadia, fragrante de grama e argila. Insetos, livres em seu
habitat noturno, rastejavam sobre minhas mãos e tornozelos, subindo por minhas
costas e entrando em meu cabelo, fazendo cócegas em minha nuca com suas
patinhas horrendas.
Não, não, não. Eu não podia sair, não com os Árbitros do pastor prestes a descer
a qualquer momento. E, se descessem, temia mais por eles do que por mim – o Pai
me controlava agora e sua fúria contra eles seria terrível. Minhas mãos arranharam
e arranharam, levando-me pelo túnel enlameado, até que, por fim, senti uma rajada
de vento contra o rosto e o caminho se curvou para cima. Saí do buraco, respirando
com dificuldade. Eu devia estar um verdadeiro terror, coberta de sujeira e insetos,
meus olhos arregalados e cegos, todos os meus passos guiados pela fera na minha
cabeça.
A árvore não estava longe. Eu conseguia senti-la – o Pai a sentia – e apertei o
passo, então corri na direção dela, avançando diretamente rumo ao limite leste da
propriedade. Certamente alguém na casa me notaria e ajudaria. Ou seriam alertados
da minha presença apenas quando o Pai triunfasse e travasse guerra, me usando
como seu instrumento?
Por favor, implorei o máximo que pude em minha cabeça. Por favor. Deixe-me
trilhar meu próprio caminho. Como pode ser tão insensível com sua própria filha?
Mas ele estava em silêncio, impiedoso, e me crispei ao sentir subitamente os
galhos mais baixos da árvore tocarem meu rosto. Impossível. Como poderia ter
crescido tão rápido? Era apenas um broto quando eu parti na primavera, mas agora
minhas mãos encontravam o tronco de uma árvore adulta, dotada de crescimento
rápido pelas cinzas do Pai.
– Ele deveria ter mandado derrubar essa coisa amaldiçoada – consegui sussurrar.
Silêncio, filha. Entalhe a casca. Entalhe.
Eu tinha apenas minhas mãos, por isso ele me forçou a usar as unhas. Lascas de
madeira inclemente se cravaram em minhas palmas macias enquanto eu a raspava
como uma fera ensandecida, sentindo gotículas escorrendo pelas bochechas – não
do orvalho frio das folhas, mas das lágrimas quentes e constantes. A dor era
inimaginável conforme a marca em minha mão pulsava em chamas.
Entalhei e entalhei, arranhando com dedos que estariam em carne viva quando a
manhã chegasse. Se a manhã chegasse. Meu medo redobrou no momento em que a
dor cessou e um torpor se espalhou pelos dedos até as mãos e punhos. Sangue
encharcava as mangas do meu vestido arruinado. O Pai estava irredutível e eu me
encontrava impotente à sombra da árvore nascida de sua morte.
Uma névoa se ergueu ao meu redor e senti a viscosidade da seiva escorrer contra
a pele. O choque do aroma vegetal intenso quase me fez retomar o controle, mas
logo a sensação se foi e a seiva cobrindo minhas mãos parecia apenas fortalecer seu
controle sobre mim. Recuei cambaleante da árvore e, tremendo, me curvei para
lamber os dedos.
Já conseguia ouvir o sangue latejar nos ouvidos como tambores de guerra. O
pastor e seu povo não veriam outro dia nascer.
≥apítulo Vinte
De manhã, fui convidada a tomar café com o sr. Morningside, embora a Mãe se
recusasse a ficar longe de mim. Ele deixou que ela se juntasse a nós na sala de estar
perto do vestíbulo principal – o lugar onde ele havia me ensinado pela primeira vez
a transformar uma colher em qualquer coisa que meu coração desejasse –, mas
antes escutei o final de uma discussão entre ele e Dalton. Esperando atrás das portas
francesas, era impossível não bisbilhotar, e levei um dedo aos lábios para que a Mãe
não dissesse nada.
– Fizemos um pacto – Henry estava dizendo. Sua voz era mortífera, fria. – E
você o quebrou! No momento que mais importava, você o quebrou.
– Porque você mentiu. – Dalton, por sua vez, estava impassível.
– É ISSO O QUE EU FAÇO!
A casa estremeceu.
A voz de Dalton soou mais perto; ele estava prestes a sair da sala de estar. Recuei
para fingir que tínhamos acabado de descer a escadaria em vez de estar paradas ali
ouvindo a briga entre eles.
– Eu sei – Dalton disse, abrindo as portas, mas com a cabeça voltada para dentro.
– Para meu eterno pesar, eu sei. E gostaria… e gostaria… que você fosse mais do
que isso. É isto que um homem é: mais do que suas partes, mais do que sua história
e seu destino o condenaram a ser.
Dalton não dirigiu nenhuma palavra para nós ao sair, virando abruptamente para
subir a escada dois degraus por vez. Hesitei um momento, ouvindo seus passos se
distanciarem, então atravessei as portas na ponta dos pés e encontrei o sr.
Morningside apertando a beira da mesa do café da manhã, de costas para nós.
– Um pacto ao café da manhã – ele exultou depois que Mary havia nos trazido
uma refeição leve de queijo, pão fresco e a carne seca de caça disponível. Ela tinha
retomado sua função na casa quase imediatamente, como uma distração, talvez, ou
um hábito. – Sitiados e, ainda assim, quase civilizados. Você acha que as pessoas
comiam tão bem enquanto o cavalo era trazido em Troia?
– Receio que não me importo – respondi, exausta. A presença da Mãe havia
ajudado, mas tinha sido quase impossível dormir acorrentada a uma cama. – Se
quiser fazer um trato, Dalton deveria estar aqui também.
Estávamos sentados a uma das mesas pequenas ao lado do pianoforte, não longe
das janelas que davam para o oeste. Era o cômodo da casa mais distante da
propriedade do pastor, provavelmente uma escolha intencional. Não havia nenhum
sinal de atividade na cerca, mas isso só me deixou mais apreensiva. Tudo parecia
indicar a calmaria antes da tempestade, e meus pés se agitaram sob a mesa, alertas e
ansiosos.
– Ele já concordou em recuperar o livro – ele disse, colocando açúcar em seu chá
e o mexendo com pequenos círculos ágeis. Estava praticamente cantando de alegria.
– Sua demonstração ontem à noite terminou de convencê-lo. Ele veio até mim hoje
de manhã e fez sua oferta.
Meu apetite não era o que eu esperava. A Mãe também não comeu, mas segurava
sua xícara como se apenas pelo prazer de fazer isso. Tomei um pouco do meu chá,
sem interesse pela carne curtida.
– Então Dalton encontrará o livro e depois partiremos para Constantinopla?
Como faremos essa jornada? – perguntei.
O sr. Morningside engasgou com seu bolinho.
– Louisa, sua malandrinha, o que a faz perguntar isso?
Ah. Então Dalton havia deixado de fora o pequeno detalhe do diário. Eu me
obriguei a tomar um gole do chá e parecer despreocupada, mas minhas mãos
tremiam. Eu queria esconder dele pelo maior tempo possível que estava em posse
do diário. Era bem provável que o sr. Morningside tentasse manipular esse fato a
seu favor, e eu queria ter alguma cartinha na manga, por via das dúvidas. Afinal, ele
havia me dito que eu era parte do jogo, e eu precisava agir com isso em mente.
Fugir apenas a leva até a beira do tabuleiro, não a remove como uma peça.
– A entrada, o lugar onde os livros podem ser destruídos… É bem para o leste,
numa planície de sal. Dalton me contou sobre isso, sobre a viagem que ele, você e a
sra. Haylam fizeram quando eram muito mais jovens, pouco depois… – Lancei um
olhar receoso para a Mãe, mas ela não parecia incomodada. – Pouco depois da
Cisão.
– Ah, então é Dalton o malandrinho, afinal. Não importa. Sim e não, Louisa,
existe uma entrada no lago Tuz, mas há muitas, muitas entradas. Conheço uma bem
mais próxima, na verdade. Se partisse agora em um cavalo, estaria lá pela manhã.
Assenti e franzi a testa, fingindo confusão. Mas o que ele disse fazia sentido.
Quando encontrei o Vinculador na Cadwallader’s, tinha sido em um espaço que era
em lugar nenhum; talvez esse lugar aonde Henry queria nos levar fosse semelhante,
um destino entre mundos, escondido em algum lugar das sombras.
– Ele também me disse que havia charadas – continuei. – Como parte de nosso
acordo, quero que me dê as respostas.
– Claro – o sr. Morningside disse. – Cara Louisa, não há por que agir com tanta
astúcia. É meu maior desejo que você entre na Tumba dos Antigos com segurança e
cumpra nosso trato.
Com isso, não pude esconder meu interesse. Apoiei a xícara na mesa e me
inclinei um pouco para a frente enquanto ele passava mais manteiga em seu bolinho
com displicência.
– Então o senhor já esteve lá – eu disse, repetindo o nome que ele deu ao lugar. –
Na Tumba dos Antigos.
– Dentro? Não. Não, infelizmente há certas limitações que me impedem de entrar
– ele disse. O suspiro de frustração que deu em seguida parecia sincero, mas, claro,
ele era um ator muito talentoso. – Você, porém, não deve ter dificuldades para se
infiltrar, desde que siga minhas instruções e use sua astúcia. Posso ajudá-la apenas
até certo ponto, Louisa, pois não sei o que a espera lá dentro.
– Mas os livros podem ser destruídos lá?
Ao meu lado, a Mãe se crispou. Eu era um livro agora, com o conhecimento do
Pai enterrado em minha cabeça, e isso significava que também poderia ser destruída
lá.
– Sim, é onde os livros são criados, isso sei com certeza – Henry disse, e pude
ver que estava escolhendo as palavras com cuidado. Ele tirou um farelo do paletó e
me abriu um de seus sorrisos largos e charmosos. Um cacho preto rebelde caiu
sobre seus olhos amarelos. – Mas não devemos discutir isso em voz alta em muitos
detalhes; é um lugar protegido, e não quero invocar seus guardiões. Escreverei as
instruções para você, para que não sejamos descobertos.
Estremeci ao pensar em alguém sendo cortado no meio pela fúria de um
escorpião monstruoso.
– Se o senhor insiste.
O sr. Morningside me observou por sobre a xícara, talvez adivinhando que eu
sabia mais do que revelava. Mas não disse mais nada sobre o assunto e tomou seu
chá excessivamente doce.
– Então está fechado.
– Eu não diria isso. Como posso saber que o senhor cumprirá sua parte do
acordo? Estou colocando minha vida em risco para destruir aquele livro e você pode
simplesmente se recusar a fazer o combinado quando eu voltar. Não, creio que deve
remover o espírito do Pai de mim agora, antes que eu resolva seus problemas. – Eu
me recostei na poltrona confortável, desfrutando de seu incômodo breve, mas
visível.
Ele puxou a parte de baixo do paletó e me olhou de esguelha.
– Vamos colocar por escrito, obviamente, e sempre honro meus contratos.
– Não é suficiente. – Bati um dedo na toalha de mesa, olhando em seus olhos. –
Se eu retornar da Tumba dos Antigos e o senhor não remover a influência do Pai
sobre mim, deve haver alguma penalidade.
– Por exemplo? – Ele se agachou para tirar pena e tinta de uma bolsa de couro.
Tendo chegado à sala de estar depois dele, eu não fazia ideia de que havia trazido
seus utensílios, à espera apenas desse momento.
– Por exemplo… – Hesitei, mas a resposta me ocorreu prontamente. – A escritura
da Casa Coldthistle e tudo que há dentro dela. Incluindo o Elbion Negro.
– Não seja ridícula – ele bufou, alisando o pergaminho perto de seu café da
manhã. – Isso está longe de ser justo, Louisa. Seja razoável.
– Razoável? Um livro em troca de um livro, essa é a definição de justo, e a casa
pela minha vida, que posso facilmente perder na tumba. Esses são meus termos,
Morningside. Sinta-se livre para recusar e encontrar outra forma de se desfazer do
livro branco.
Eu detestava a sensação de seus olhos cravados nos meus e o fato de que queria
constantemente me afastar deles. Mas era um teste e eu estava determinada a passar.
Ele tinha, claro, inclinado os termos do acordo a seu favor – mas, se aquilo era um
jogo, eu não seria manipulada facilmente. Por fim, ele se recostou, molhando a pena
e levando-a ao papel.
– Exatamente como eu disse – acrescentei. – Não quero que escape dessa com
algum ardil. Se não remover o espírito do Pai de mim quando eu voltar, depois de
ter destruído o livro branco, a escritura da Casa Coldthistle e o Elbion Negro serão
meus. E aviso que vou reler esse contrato uma dezena de vezes se for preciso.
– Você está aprendendo – ele murmurou. – Não sei se devo ficar aliviado ou
irritado.
– Não me provoque. – Com isso, ele ergueu os olhos do papel. Continuei: – Sei
por que está me fazendo esperar, por que deseja que a influência do Pai se mantenha
pelo maior tempo possível. Você precisa dela para se defender do pastor.
– Uma observação astuta. – Mas ele estava sendo sarcástico e revirou os olhos
antes de escrever o restante do contrato. Consegui ver que incluía uma cláusula
sobre a parte de Dalton, que eu estudaria também. – Sei que nunca lhe ocorreria que
eu tivesse intenções menos que perversas, mas minha intuição é que você vai querer
essa força profana para sobreviver à tumba. Tudo que viu, tudo a que sobreviveu,
não será nada comparado ao que ela exigirá de você.
Dedos cortados. Corpo cortado. Fissuras na pele sangrando luz dourada.
Insanidade.
Engoli em seco, receosa, e voltei a atenção para a Mãe.
– E você não sabe nada sobre esse lugar? A Tumba dos Antigos?
Seus olhos ficaram suaves e ela inclinou a cabeça para o lado. As longas tranças
cor-de-rosa estavam desfeitas; os fios compridos tinham sido penteados sobre um
ombro. Ela levou as mãos ao cabelo desgrenhado e começou a fazer uma trança
distraidamente.
– Meu coração diz que o conheço, que anseio por ele, como uma criança recém-
saída do ventre anseia por ser envolta em panos. Eu o conheço e, no entanto, não
conheço; não tenho lembranças dele, mas ouvir estas palavras pronunciadas: Tumba
dos Antigos… – Ela balançou a cabeça e soltou o cabelo. – Nunca pensei em
estudar essas coisas. Nunca desejei voltar ao lugar onde nos originamos.
O sr. Morningside escreveu rapidamente a última linha e soprou a página, depois
a entregou para mim, voltando a pegar seu chá. Seus olhos estavam distantes. Frios.
– Torço para que nunca o veja, nunca chegue perto dele…
As linhas com que eu mais me importava haviam sido copiadas corretamente, e
coloquei minha assinatura ao lado da dele, sem perceber que ele havia parado a
frase no meio. Então ouvi Chijioke escancarar a porta e entrar ofegante.
– Eles estão aqui – ele gritou, com a mão junto ao peito. – Os sobreterrenos. Eles
vieram!
– Que senso de oportunidade incrível – o sr. Morningside se queixou, levantando-
se. Ele pegou o contrato e o enrolou com cuidado, guardando-o em sua bolsa de
couro. – Precisaremos de toda a sua fúria, Louisa. Dê a eles o seu pior. Temos que
atraí-los aqui em grandes números e dar a Dalton tempo para recuperar o livro
branco. E depois? Depois será sua vez de ver a Tumba dos Antigos.
≥apítulo Vinte e um
Todo o meu corpo ficou paralisado de medo. Não tirei os olhos da cobra, à espera
que ela atacasse. A Mãe apertou minha mão com mais força, depois relaxou.
Malatriss estreitou os olhos como se me visse pela primeira vez.
– Corações dispostos. Corações imortais… – Ela estendeu as seis mãos douradas
para nós. – Corações sábios. Vocês passaram pelo primeiro teste, mas outros as
aguardam lá dentro. Terei um interesse pessoal em ver como se sairá, pequena. A
porta está aberta para vocês; resta apenas atravessar.
Um vento forte e frio soprou pelas ruínas; um instante depois, houve um bater de
asas. Malatriss tinha começado a descer a rampa, mas não estávamos mais a sós no
castelo. Eu me virei, apertando as alças da bolsa para protegê-la ao descobrir que o
pastor e Finch tinham vindo, comprovando as suspeitas de Khent de que nossa
ausência havia sido notada.
– Atravesse aquela porta se quiser, criança – o pastor disse, mancando com a
bengala em minha direção, seus olhos cegos me encontrando facilmente. – Mas esse
livro você não levará consigo.
Finch avançou para cima de mim, seu corpo dourado se desfazendo enquanto
retomava sua forma humana. Mas não me alcançou, pois Khent se colocou entre
nós, com os lábios se curvando em um rosnado.
– Louisa, por favor – Finch implorou; seus enormes olhos castanhos estavam
úmidos de lágrimas, me buscando por sobre o ombro de Khent. – Você não sabe o
que está fazendo. Fomos amigos em algum momento e, embora sejamos diferentes,
você sempre foi gentil comigo. Causaria a morte de todos nós?
– Há coisas que você não sabe – eu disse. – Desculpe, mas é tarde demais. Não
serei persuadida.
– Como nos encontraram? – Dalton avançou até o lado de Khent e comecei a
recuar, sabendo que em breve poderia ter de correr, e rápido.
– Ah, irmão, consigo sentir você. Sempre consigo. Você pode ter virado as costas
para nós, mas isso não significa que nosso laço tenha se quebrado – Finch
respondeu, balançando a cabeleira escura e desviando os olhos, repugnado. – Eu
sabia que você tinha mudado, mas roubar o livro? Trabalhar para ele?
Culpa e dúvida despontaram em minha mente, mas não por muito tempo. Senti
uma pontada aguda de dor na testa e arfei, quase desabando. Às vezes conseguia
sentir a influência do Pai crescendo gradualmente, mas agora ela vinha com a
rapidez de uma tempestade de verão. Ele havia sentido a proximidade do pastor e
arranhava minha mente até que eu mal conseguia ouvir uma palavra sendo dita à
minha frente.
Deixe que eu o enfrente, deixe-me despedaçá-lo com dentes e garras.
As mãos da Mãe pousaram em meus ombros, me afastando da discussão.
Cambaleamos em direção à rampa, conforme fragmentos dos gritos irrompiam
através da névoa sangrenta que enchia minha mente.
– Não faço isso por mim – Dalton dizia. – Mas por todos. Vocês os encurralaram,
toda a sua hoste contra meia dúzia de crianças. Isso não é uma guerra, é um
massacre. Henry liberou aquelas aves, gastando sua força. O que mais você quer?
– Viver, irmão! E punir você por matar minha irmã.
Mas aquilo fui eu.
Mais discussões, mais risos tenebrosos nos recessos corrompidos da minha
mente. O chão se inclinou e deixei a Mãe me guiar, me equilibrando enquanto
descíamos a rampa.
– Não vou permitir que ela o leve! – Finch estava aos berros agora, toda
aparência de civilidade abandonada, e ouvi um estrépito de aço ensurdecedor. –
Você se afastou de nós, irmão. Você se reduziu. Não sentirei prazer em derrotar
você, mas vou derrotar você. Louisa! Louisa, por favor! Ela está indo embora…
Pouparemos seus amigos, Louisa, se você nos escutar. Escute a razão!
Eles são fracos sozinhos. Vamos pôr um fim nisso, filha, vamos nos vingar.
Rangi os dentes. Não. Não agora. Não quando estávamos tão perto…
– Khent – consegui sussurrar. – A lua…
– Estou vendo. Vá, eyachou, vá! Não deixaremos que eles avancem.
Apoiei meu peso contra a Mãe, silvando. Era errado partir, abandoná-los assim,
deixar que outros lutassem minhas batalhas. No entanto, eu temia o que aconteceria
se ficasse, se o Pai saísse e me usasse em sua vingança ancestral. Pisquei com força,
concentrando-me na presença da Mãe, na esperança de que, se ficasse perto dela, a
influência dele se enfraqueceria. E enfraqueceu, mas apenas um pouco, e tive tempo
de abrir os olhos e ver a Mãe e Khent me observando com a mesma preocupação.
Como eu poderia partir? Cem possibilidades passaram diante dos meus olhos,
nenhuma encorajadora. E se, ao sairmos da tumba, encontrássemos Khent morto? E
se eu pudesse ter barganhado por misericórdia e encontrado uma maneira de salvar
todos nós? E aqueles que sangravam e morriam por nós na Casa Coldthistle – e se
tudo que fizeram fosse em vão?
– Vá – Khent repetiu, apertando meu ombro – e leve a minha coragem junto com
você.
Dalton flamejou dourado atrás dele, empunhando um bastão com lâminas
cintilantes nas duas pontas. Ele ardia como fogo e, através das chamas, consegui ver
o pastor avançando em nossa direção, a bondade de seu rosto substituída pela fúria.
Enquanto Khent dava as costas para mim, vi as primeiras ondulações reverberando
sob seus braços, um punhado de pelos cinza brotando em sua nuca enquanto ele
absorvia o poder da lua e partia em nossa defesa. Malatriss estava quase à porta. Era
hora de ir, hora de carregar o peso do livro rampa abaixo para a tumba além dela.
Mesmo com a Mãe ali, minha pele estava arrepiada de frio. Estávamos entrando
em uma tumba, afinal, e um sussurro apavorado me lembrou que apenas os mortos
tinham permissão de visitar esses lugares. Corações dispostos. Corações sábios.
Corações imortais.
Por Deus, eu não me sentia mais tão imortal.
Atônita e aliviada, atravessei a porta para dentro do meu sonho. Não, não era um
sonho desta vez, mas o lugar em si. Outra esfera. Eu tinha visto a esfera de um
Vinculador, mas esta era completamente diferente, não apenas um vazio e sombras
imperscrutáveis. Uma visão incrível, tão sobrenatural que um reles mortal jamais
poderia contemplá-la, e parei de repente, erguendo os olhos para o corredor de vidro
infindável de estrelas e noite, em um túnel sem paredes, mas com constelações
infinitas girando lentamente ao seu redor. Mas eu estava lá. Não uma reles mortal,
talvez, mas uma portadora relutante de um deus, e que ainda se sentia como uma
criada.
– Eu… eu já estive aqui antes – sussurrei.
Malatriss continuou a atravessar o corredor em seu ritmo inabalavelmente
lânguido.
– Muitos sonham com o Salão de Deuses e Vidro. Poucos o veem com os
próprios olhos.
– Quantos já estiveram aqui? – murmurei. Finalmente parecíamos ter encontrado
algo que surpreendia a Mãe. Ela também lançava os olhos em todas as direções,
estendendo a mão em busca de uma divisória murada que não existia, embora seus
dedos encostassem em algo sólido, ainda que não pudesse ser visto.
– Akantha, o Buscador, Rômulo, o Fundador, Miigwan, Herevardo, Valens,
Nochtli, a Espinhada, Ying Yue, Owain… – Malatriss havia cruzado o segundo e o
terceiro par de braços atrás das costas novamente e gesticulava para nós com a mão
direita. A cobra em volta do seu pescoço parecia estar dormindo. – Agora seus
nomes serão acrescentados a essa lista.
– E quantos saíram da tumba com vida? – perguntei. O corredor era infinito, mas
Malatriss nos guiou adiante, enquanto mais constelações surgiam acima e abaixo.
– Ah – ela respondeu tranquilamente. – Nenhum.
Seguimos cinco passos atrás de Malatriss. Eu já estava exausta de carregar o livro
branco – era mais pesado do que eu podia imaginar e minhas costas doíam. A Mãe
caminhava ao meu lado, com seu véu removido havia muito, e tocou meu ombro.
– Quer que eu carregue? – ela perguntou.
– Não, acho que eu devo carregar… essa confusão lastimável é culpa minha – eu
disse. – Você acha que era isso que o sr. Morningside queria? Nos aprisionar aqui
para sempre?
Ela mordeu os lábios e pensou, depois olhou para Malatriss à nossa frente.
– Certamente tornaria a vida dele mais fácil, não? Se destruirmos o livro, isso
resolve o problema do pastor e, se nunca sairmos deste lugar, ele terá toda a
Inglaterra só para si. – Pensei nas instruções, a palavra escorpião se destacando em
minha mente como se tivesse sido escrita com fogo.
– Ele me deu a resposta errada para um dos enigmas, Mãe. Acho que não sabia
de verdade aonde estava nos enviando. Deve ter desconfiado que seria aqui que
encontraríamos nosso fim.
Meu coração se apertou. Eu nunca havia confiado nele realmente, mas tinha
esperado que meus termos fossem justos o suficiente para convencê-lo a agir com
dignidade. Mas até isso era pedir demais. Eu o tinha ajudado contra o pastor, contra
o Pai, e a troco de quê? Agora ele havia nos aprisionado na Tumba dos Antigos, um
lugar ao qual ninguém havia sobrevivido. Será que ele sabia disso também?
– Temos de sair daqui – murmurei. – Nem que seja para jogar isso na cara
horrenda dele.
– O Senhor das Trevas foi generoso com você antes, não? Talvez haja mais aqui
do que conseguimos ver.
O otimismo dela só aprofundou meu desespero. A Mãe era antiga e sábia, mas eu
conhecia o sr. Morningside havia tempo suficiente para entender que suas
motivações eram sempre egoístas. Ele havia levado Dalton e a sra. Haylam à
entrada da tumba, disposto a submetê-los aos piores perigos para colocar seu plano
em prática. Se era assim que tratava seus amigos, o que não estaria disposto a fazer
comigo?
O corredor seguia e seguia em frente, mas eu não conseguia me concentrar em
sua beleza. O pânico explodiu em meu peito. Olhei para trás, mas não havia porta.
Coragem. Havia testes por vir, e a promessa de morte a enfrentar, mas eu precisava
encontrar uma maneira de transformar esse nó de pânico em determinação. Eu era
uma criança trocada, afinal, um feito que devia ser impossível. Acima de tudo,
queria ver Mary, Khent, Chijioke, Lee e Poppy novamente. E queria respostas,
respostas verdadeiras, do sr. Morningside. E eu teria as respostas que buscava,
independentemente do que precisasse suportar.
Por um momento, me senti o próprio sr. Morningside.
Então notei uma inclinação suave no piso, uma descida que se tornava mais
íngreme conforme seguíamos. O Salão de Deuses e Vidro era notavelmente
desprovido de odores. Nem mesmo o pó tocava o lugar.
– Onde estamos? – perguntei a Malatriss. – Certamente não é Yorkshire.
Ouvi o riso em sua voz enquanto entrávamos cada vez mais na tumba.
– Estamos em lugar nenhum, suspensos no tempo. Não há descrição que eu possa
oferecer sobre onde estamos. Simplesmente estamos aqui.
– Mas é possível retornar? – insisti. – Se passarmos em seus testes, digo.
– É possível. Difícil, mas possível.
O corredor se curvava e recurvava, sempre descendo. Acima, abaixo e ao nosso
redor, as constelações começaram a se apagar, o túnel se tornou um preto sólido e,
então, um após o outro, apareceram tijolos amarelos em relevo. Um carpete se
estendeu sob nossos pés, estreito e azul, percorrendo um piso da mesma alvenaria
ornamentada. Ao contrário do anterior, este lugar exalava muitos odores. Eu
conhecia bem esse cheiro, o aroma reconfortante de pergaminho, tinta velha e couro
me fazendo lembrar da Cadwallader’s. Livros. Claro. Tínhamos entrado em uma
espécie de livraria, embora ela não tivesse fim. Em vez de volumes nas prateleiras
que forravam as paredes, havia inumeráveis vitrines.
Diminuí o passo e virei à direita, aproximando-me de uma das vitrines. Não, não
era uma vitrine, mas um sarcófago. Um corpo flutuava dentro dele, com os olhos
cerrados, parecendo adormecido. Era uma bela mulher de pele negra com cabelo
longo e asas emplumadas no lugar de braços. A vitrine seguinte continha um
homem tão largo e musculoso que parecia prestes a estourar os confins de vidro
cintilante.
Alisei o vidro, mas a figura dentro dele não despertou.
– O que são eles? – murmurei. A Mãe olhou para a minha mão e então para o
homem sepultado que eu apontava, seus oito olhos se enchendo de lágrimas.
– Deuses – ela respondeu por Malatriss. – Deuses antigos. Aqueles que vieram
antes e foram obrigados a se render.
– Alguns ainda estão para existir – Malatriss acrescentou. – Muitos decidiram
voltar aqui para dormir.
– Foi… foi aqui que eu nasci. – A Mãe caminhou até uma tumba vazia, passando
as mãos sobre ela. Havia outras vitrines como aquela, abandonadas ou esperando
ser ocupadas. – Tenho lembranças desse lugar. Sonhei com ele também.
– É por isso que eu conseguia vê-lo – eu disse. – Porque o Pai se lembrava dele. –
A biblioteca, retangular, mas com um pé-direito tão alto que simplesmente
mergulhava nas trevas, se estendia talvez infinitamente. O lugar, como ela havia
dito, existia fora do tempo. Eu me sentia compelida a sussurrar, como se tivesse
medo de perturbar o sono de tantos sonhadores. A mãe começou a chorar e fui até
ela, ignorando a dor de carregar o livro para confortá-la com um braço em volta da
cintura.
– Desculpe – eu disse a ela. – Eu não devia tê-la trazido para cá.
– Não – ela respondeu, sorrindo por trás das lágrimas. – É bom vê-lo novamente.
– Quando estiverem satisfeitas, podem se apresentar ao Vinculador – Malatriss
anunciou, mantendo-se de lado e acariciando a cobra. – O tempo não significa nada
aqui, e não tenho pressa para vê-las morrer. Se chegaram tão longe, merecem
contemplar o esplendor da tumba.
Então o contemplei, vagando pela linha infinita de caixões e observando a
variedade de deuses e deusas dentro deles, todos diferentes, exceto por uma
expressão vaga e pacífica. A Mãe permaneceu recostada contra sua própria vitrine
vazia e minha curiosidade logo se desfez quando topei com algo frágil no chão.
Ossos. Eu havia pisado em um esqueleto, cujo braço virou pó sob meu pé.
– Mas… pensei que era preciso ser imortal para entrar aqui – sussurrei, recuando
horrorizada. Não era minha intenção profanar os mortos, e as órbitas vazias do
crânio caído me olhavam acusadoramente. – Ter conhecido a morte e retornado…
– Há muitas maneiras de experimentar a morte – Malatriss respondeu. – Vocês
são os primeiros seres realmente imortais a entrar na tumba.
Os ossos haviam me abalado, e cambaleei de volta até a Mãe, erguendo a bolsa
mais alto nos ombros antes de me virar para Malatriss.
– Mãe, sei que está emocionada, mas devo me apressar. Meus amigos estão em
perigo.
– Claro – ela assentiu, pressionando a testa no sarcófago de vidro. – Claro.
Vamos ver esse Vinculador.
Voltei até Malatriss com um nó na garganta. Agora precisaria de toda a minha
coragem. Já havia encontrado um Vinculador, e todos os centímetros do meu ser se
crispavam ao pensar em ver outro. A criatura não me trouxera nada além de dor e
tormento; no entanto, também havia nos trazido a Mãe de volta. E meu propósito na
tumba não era admirar todos os deuses que haviam existido e viriam a existir, mas
destruir o livro branco e ter direito ao ritual que arrancaria o Pai de mim para
sempre.
– Diga-me então – falei para Malatriss, com grande trepidação, mas também
grande urgência, pois o tempo podia não fazer diferença naquele lugar, mas
definitivamente fazia em Yorkshire. Vi seus olhos felinos brilharem de entusiasmo.
– Diga-me o que vem agora. Vim para destruir o livro branco e depois partir deste
lugar.
– O Vinculador virá – ela sussurrou, abrindo-me seu sorriso demoníaco. – A
desvinculação terá início. Você lhe pedirá uma dádiva, ele tirará duas. Você lhe
pedirá dois favores, ele exigirá três. Escolha suas palavras com cuidado, pequena.
Nada neste lugar é gratuito.
≥apítulo Vinte e cinco
No passado, delinquente como eu sempre era em minha antiga escola, Pitney, eu
saía da cama às escondidas para usufruir do prazer da solidão noturna. Estar em um
internato era aturar uma barulheira constante. Mesmo quando as velas estavam
apagadas e tínhamos sido mandadas para a cama, alguém roncava ou tossia a noite
toda e eu, com meu sono leve, passava mais uma vigília conturbada contando os
dias até as aulas terminarem e recebermos um breve repouso. Não que alguém fosse
me visitar ou que me deixassem sair – meus avós não queriam nada comigo,
pensando que eu era uma ave com a asa quebrada que nunca se curou. Essa asa
machucada, obviamente, era minha natureza do contra, meus estranhos olhos negros
e meu hábito incômodo de falar o que me vinha à cabeça.
Ainda assim, quando chegavam esses dias, eu podia passar todas as minhas horas
livres escondida no alto de uma árvore com um livro e depois atirar pedras em
esquilos com minha amiga Jenny. Sua família também nunca a visitava nem a
chamava para casa, pois seu pai gastava todo o dinheiro da família no jogo e sua
mãe vivia de cama por alguma doença real ou imaginada.
Então, desesperada por esses dias mais plácidos, mas sabendo que demorariam,
eu passava na ponta dos pés pelas professoras que dormiam à porta, atravessava os
carpetes desgastados, descia um lance de escada e seguia pelo lado esquerdo da
galeria do segundo andar até a biblioteca. Ninguém pensava em vigiá-la, pois as
sentinelas adormecidas na frente do dormitório eram consideradas proteção
suficiente. Os pisos de madeira da biblioteca eram gélidos sob meus pés. Francine
Musgrove – que, na época, eu considerava a pior pessoa da Inglaterra – havia
roubado minhas meias e as escondido em um penico. Nada, nem mesmo me
aquecer, valia o preço de enfiar a mão no balde de mijo de outra pessoa.
Porém, o silêncio e os livros – os queridos, queridos livros – expulsavam o
tormento do frio. Eu encontrava um canto perto da janela e lia sob o luar, mantendo-
me acordada com beliscões para não ser pega dormindo ali quando chegasse a
manhã.
Agora eu estava mais uma vez em uma biblioteca escura, e me senti
estranhamente igual – com frio, sozinha, delinquente, colocando-me
conscientemente onde não deveria estar.
Por Deus, pensei, cegada por um momento quando todas as luzes na Tumba dos
Antigos se apagaram, o que Jenny pensaria de mim agora? Meus maiores
adversários não eram mais Francine Musgrove e sua tendência a roubar minhas
roupas de baixo; meus adversários eram deuses, criaturas de mitos antigos, espíritos
vingativos e o ser indubitavelmente perverso que estava descendo do teto.
Estremeci, percebendo que ele estivera pairando na escuridão aquele tempo todo,
observando-nos. À espera.
Nem mesmo Francine Musgrove merecia ser confrontada por aquilo.
Instintivamente, peguei a mão da Mãe. Ela observou o Vinculador descer até nós
com os olhos estreitados. Os finos e arroxeados fios de seus braços estavam
arrepiados, e ela sussurrava algo, uma oração, em uma língua muito mais antiga do
que o inglês. A língua verdadeira dos faes das trevas.
Aquele Vinculador não se parecia nada com o último. Na realidade, era difícil
considerá-lo como uma criatura única, pois era acima de tudo um conjunto de
braços, cada um pendurado na ponta de um fio cintilante. Não precisei me
aproximar para saber que aqueles fios eram vivos, mais tendões do que barbantes.
As mãos nas extremidades daqueles braços, talvez trinta ao todo, seguravam penas
e potes de tinta, mata-borrões e sacos de areia, cera, tições e vários frascos cheios
de líquidos coloridos, a maioria densa demais para ser tinta. Uma mão balançava
um par de dados, um cubo vermelho e outro preto, cada lado estampado e entalhado
com símbolos estranhos.
E, do centro daquele conjunto pálido e carnoso, pendia uma cabeça enorme,
unida a um torso branco e definhado. O Vinculador não tinha pernas e parecia não
ter sexo; era bulboso e liso, da cor e da textura de um ovo. Seu corpo estranho e
circular, flutuando em meio aos braços destacados, lhe dava uma vaga aparência de
inseto com muitas pernas, mas desafiava até mesmo essa comparação, pois o
“corpo” era pelo menos do tamanho de uma carroça.
A única semelhança que ele tinha com o outro Vinculador eram as narinas finas e
a boca oscilante, que vibrava e balançava enquanto ele flutuava sobre nós.
– Essa traz duas de minhas criações. – Sua voz me lembrava a de um operário
que bebia em uma travessa perto de minha casa de infância: pujante, anasalada,
alegre. Só que depois o homem esfaqueou a esposa em uma fúria embriagada, então
talvez não fosse tão alegre assim.
– O livro branco – eu disse, encontrando a voz no peito palpitante de terror. –
Eu… quero que ele seja destruído. – Tirei a bolsa dos ombros e a coloquei no chão.
Malatriss surgiu das sombras e a pegou, levando-a para perto do Vinculador.
O rosto do Vinculador se inclinou na direção do meu, tão perto que fiquei sem ar.
Fechei os olhos, então me forcei a abri-los lentamente. Sua boca aberta mascava,
bochechando saliva, enquanto me examinava a pouquíssimos centímetros.
– Uma marca sobre a mão dessa – ele sussurrou. – A marca de um Vinculador.
– Sim. Eu… eu já encontrei um dos oito, o que vincula almas.
– Então essa encontrou o Seis. Eu sou o Sete. – Ele foi se afastando de mim
gradualmente, um de seus braços se abaixando sobre o tendão para tirar o livro
branco da bolsa. Em seguida, voltou a olhar para mim. – E quanto ao livro dentro
dessa? O que será feito dele?
Torcendo as mãos, ergui os olhos para a Mãe, que respondeu com um leve aceno.
– É você que o carrega, Louisa, ele é seu para fazer o que desejar. Eu não seria eu
mesma se lhe impusesse minha vontade.
– Mas é parte de você também – eu disse. – É o único motivo por que me deram
a alma do Pai, para impedir que o livro dos faes das trevas se perdesse. – Sete tinha
pegado o livro branco e começado a folheá-lo, uma mão desencarnada segurando a
lombada enquanto a outra virava as páginas. Limpei a garganta. – Malatriss disse
que eu deveria escolher meus pedidos com cuidado. Então farei isso. Quero apenas
que o livro branco seja destruído e depois gostaríamos muito de partir.
Sete riu, me fazendo lembrar de um bêbado novamente enquanto balançava,
trombando em vários de seus braços.
– Partir. Sim, bom. Partir. Então essa terá o que pede, mas apenas depois que eu
receber o que me é devido.
Duas dádivas. Eu não tinha dúvidas de que o preço seria alto, e me preparei para
escutá-lo, pensando na pilha de ossos se desintegrando no canto.
– Equilíbrio ou caos, equilíbrio ou caos? – A mão pálida que segurava os dados
começou a chacoalhá-los, e engoli em seco, embora não fizesse ideia de qual
resultado deveria querer. Todos os outros braços ficaram imóveis enquanto ele
atirava os dados, então os dois cubos pequeninos pousaram bem na minha frente,
mantidos no ar por uma força invisível. Ambos mostravam símbolos pequeninos de
balança. Equilíbrio. – O livro branco será desfeito. – A mão que folheava o livro se
afastou, e outra, que segurava uma pena preta, assumiu seu lugar e começou a riscar
as palavras. Conforme cada palavra era riscada, desaparecia do pergaminho. –
História se torna memória. Memória se torna rumor. Rumor se torna lenda. A lenda
se desfaz.
Foi inesperadamente doloroso ver o livro branco ser desfeito. A cada palavra que
desaparecia, eu pensava em um sobreterreno sumindo com ela. Suas vidas, suas
essências, apagadas do mundo. E pensei em Dalton, que eu havia passado a admirar,
e no anseio triste em sua voz quando ele insistiu para que eu destruísse o livro.
“Não haverá ninguém para culpar quando eu me for.” Talvez não fosse verdade.
Talvez houvesse alguém bem óbvio para culpar: eu.
Ou o sr. Morningside; afinal, era a pedido dele que eu tinha vindo. Meu coração
se encheu de pesar e meus olhos de lágrimas. A escolha não podia ser desfeita, mas
me perguntei se eu poderia ter sido forte o bastante para viver sob a influência do
Pai, fugir para longe, para o alto de uma montanha, para as profundezas de um
deserto, e encontrar uma maneira de silenciar sua voz. Agora me restava confiar no
Diabo do mundo para remover o Diabo de dentro de mim, e todos os seus erros e
mentiras me diziam que eu havia me enganado ao escolher um lado.
Perscrutei a escuridão. Em algum lugar, esperava uma vitrine vazia que logo
abrigaria o pastor. Será que outra logo abrigaria o Pai? O Pai, que estava
estranhamente passivo enquanto o livro branco era apagado. Talvez, por fim, eu
tivesse feito algo para merecer sua aprovação.
Sete fechou os olhos pretos e redondos, quieto e pensativo, com a boca
entreaberta enquanto balançava para trás e para a frente. Olhei para Malatriss depois
de minutos de estranho silêncio. Será que o Vinculador havia… pegado no sono?
– O que acontece agora? – perguntei, limpando a garganta.
– A desvinculação levará tempo, então o Vinculador deverá escolher seus
sacrifícios.
Sacrifícios. Tínhamos percorrido a estrada sinuosa a favor de um sacrifício. Não
que eu estivesse desmedidamente surpresa – uma resposta errada a um enigma
levava um dedo. Aquele não era um lugar de conversas leves e ameaças vazias.
– Sacrifícios? – A Mãe perguntou. Ela parecia sentir a mesma apreensão que eu.
Malatriss atravessou o único círculo de luz que restava na tumba, estendendo a
mão para tocar minha bochecha. Eu me encolhi e ela riu baixo.
– O que acha que o Vinculador usa para fazer os livros? Ar e desejos? Nochtli, a
Espinhada, deu a própria pele para encadernar seu livro, embora ele agora resida em
carne viva. – Malatriss obviamente sentiu um grande prazer com minha expressão
horrorizada. Seu riso se estendeu em uma gargalhada, e ela observou sua cobra de
estimação com a cabeça inclinada, acariciando a criatura. – Ela encontrou o portal
na embocadura de três rios e trouxe seu belo pássaro para cá. Disposta, sábia, ela
experimentou a morte na doença, mas um xamã a curou antes que ela chegasse à
noite verdadeira. Nochtli trouxe seu belo pássaro para dentro da tumba e, quando o
Vinculador exigiu que o matasse, ela se recusou.
– Que cruel – sussurrei. – Por que o pássaro? O que ele poderia fazer?
O Vinculador continuou seu trabalho e sua contemplação.
Malatriss ergueu os olhos para a cobra, zombeteira.
– Era um pássaro verdadeiramente terrível. Pude ver que não gostava de Nira.
Contive as coisas desagradáveis que quis dizer a respeito disso – se a guardiã
conseguia olhar dentro dos corações e adivinhar sua disposição, talvez também
conseguisse reconhecer minha aversão a seu animal.
O Vinculador trabalhava mais rapidamente agora – as páginas voavam e as
palavras desapareciam tão rapidamente que a pena parecia não passar de um borrão
turvo. Esperamos que Sete tomasse sua decisão e cada momento me enchia de uma
ansiedade maior. Minhas mãos estavam ensopadas de suor. Eu mal conseguia ficar
parada, sabendo que um pronunciamento impossível estava prestes a ser feito.
Esfreguei o rosto e suspirei, querendo que todo aquele suplício acabasse logo,
querendo ao menos saber o que precisava fazer para escapar da Tumba dos Antigos.
– Tudo isso por causa de um livro idiota – eu disse.
Malatriss ergueu a cabeça, fazendo uma careta.
– Os Vinculadores fazem o mundo, os Vinculadores fazem os livros, os livros
fazem os deuses.
– Isso não faria dos Vinculadores deuses? – murmurei. A Mãe tocou minha mão.
Ela estava certa: eu estava provocando demais a criatura e sendo tola de tanta
frustração e impaciência.
– Não, isso faz deles Vinculadores, e de você praticamente insignificante.
Sete despertou. Seus olhos pretos imperscrutáveis se voltaram para nós, vítreos e
momentaneamente cegos. Então ele pareceu nos encontrar, nos ver, e peguei a mão
da Mãe novamente. Ela aproximou a cabeça da minha, seu cabelo rosa-claro
tocando meu ombro.
– Não se esqueça – ela me disse. – Coragem.
A voz do Vinculador ressoou pelo corredor, ecoando nas sombras ao nosso redor.
A marca na minha mão ardia sem trégua. Disposta. Mas eu estaria mesmo? Olhei
para os olhos de algo maior do que um deus e torci para que ele soubesse o que eu
queria: misericórdia e a chance de rever meus amigos fora daquela tumba. Eu não
tinha feito o suficiente? Mas será que uma criatura como aquela se importaria?
– O livro dessa será encadernado novamente – Sete proclamou, apontando para
mim. – Exigirei a reencadernação do livro dos faes das trevas, Filha das Árvores, e
o revincularei com a sua essência.
≥apítulo Vinte e seis
O Pai não gostou nada disso. Pois seu espírito sabia, assim como eu, assim como
a Mãe, que o remover era remover a única coisa que me mantinha viva. Então algo
mudou, assim como minha compreensão. O Pai não estava mais furioso, mas
entusiasmado. Extasiado. Esse ritual o tiraria de mim e, sem meu corpo para contê-
lo, lhe daria a chance de ser completamente livre. Ressuscitado. Quem quer que
ganhasse, eu perdia. O Vinculador havia me dado uma sentença de morte e, por um
momento doloroso, eu não consegui respirar.
Dentro da minha mente, o Pai sorriu. Então começaram os gritos.
Meus gritos. A primeira vez que o Pai dominara minha vontade foi gradual, o
rastejar lento de um pensamento negativo se contorcendo em algo mais perigoso.
Um espinho que se tornava uma farpa que se tornava uma faca. O gotejar, gotejar,
gotejar da confusão de não saber se um pensamento era meu ou dele. Primeiro,
deixei de tomar meu chá com creme e açúcar, até começar a preferir um chá forte de
ervas que só podia ser encontrado em uma loja do bairro. Depois, cada árvore
começou a ter seu próprio perfume único e fascinante, e os insetos, se eu lhes
cravasse um olhar, recuavam, deixando-me em paz.
Isso quando tudo era ainda controlável. Quando eu não me sentia uma cativa,
mas como se aturasse um parente estranho que veio para ficar.
Desnecessário dizer que foi piorando.
Um único pensamento sobreviveu ao calor que agora explodia em meu crânio: eu
tinha feito a coisa certa, pois tudo que pudesse fazer para arrancar esse monstro da
minha mente era, realmente, o que devia ser feito.
Senti meus joelhos baterem no chão e, em algum lugar, ao longe, ouvi um grito
da Mãe. Essa era a resposta às exigências do Vinculador, embora não fosse a minha.
O Pai havia esperado, deixando-me ficar à vontade, deixando que eu baixasse a
guarda – e agora atacava, com toda a sua fúria contida, não apenas vermelho diante
dos meus olhos, mas lantejoulas pretas e carmesins, um som constante de tambores
de guerra latejando em minha cabeça, cada vez mais alto, até eu ter certeza de que
meus olhos explodiriam e meus dentes cortariam minha língua.
Assim veio a sua ira. Eu usava um broche antigamente, dado a mim pelo sr.
Morningside. Eu sou a ira, dizia. Mas eu nunca tinha sido assim – a última tentativa
desesperada de vida de um deus encurralado pela morte. Seria isso que Khent e
Dalton enfrentavam lá na porta? Será que o pastor sentiu que seu fim estava
próximo e encontrou poder e dor terríveis em sua morte iminente?
Todas as palavras do livro dentro de mim foram sussurradas ao mesmo tempo
pelo Vinculador e, embora meus olhos não fossem mais meus, senti o ardor dos
meus dedos se alongando em garras, a tensão da minha pele, das minhas pernas, dos
meus braços, da minha coluna, enquanto o cervo perverso dos pesadelos do Pai
irrompia através de mim. Até Malatriss gritou algo obsceno e assustado, em uma
língua perdida, a língua que eu havia usado no ritual da estranha na Cadwallader’s e
que agora estava gravada na palma da minha mão.
– Não sussurre sua língua anciã diante de mim, guardiã. Os deuses podem dormir
em sua tumba, mas você nunca despertou um para desafiá-lo.
Era a voz do Pai através dos meus lábios conforme ele se expandia feito fumaça.
As mãos quentes da Mãe pousaram em meu braço, mas o Pai a lançou para longe,
na escuridão. Gritei, mas fui silenciada no mesmo instante. Ele havia me empurrado
para o fundo do mar e, embora eu pressentisse uma luz lá no alto, e por mais que
me debatesse e esperneasse, não conseguia me aproximar da superfície, afogando-
me em sua fúria de sangue negro e sentindo o gosto amargo da vingança na língua.
Era tudo por que ele ansiava, sangue e vingança; seu espírito era insensível às
súplicas da Mãe por compreensão. Por paciência.
– Você deseja tirar de mim esta carne e, antes, eu teria desejado isso – ele bradou,
apontando as garras afiadas do seu braço, do meu braço, para Malatriss. Ele
acabaria fazendo com que todos fôssemos mortos. – Ela se provou um tanto útil,
mas posso assumir muitas formas. Vocês podem desfazer o livro branco, mas nunca
me desfarão. Sou o Pai Sombrio das Árvores, o Visitante Noturno, o Cervo no Céu.
Vou levar o livro dentro de mim para fora deste lugar e não serei impedido.
A Mãe não apelava mais a ele, mas a Malatriss. Por quanto tempo eles aturariam
tamanha insubordinação? O Pai devia estar louco para achar que poderia derrotar
aqueles que o haviam criado. Eu havia lido o diário de Dalton, o que significava que
ele também o tinha lido. Apenas um louco subestimaria tantos alertas, tanta
violência. Mas, claro, ele era completa e irremediavelmente louco.
– Agora eu entendo – o Vinculador disse, imperturbado. Intrigado. – Essa não é
um, mas dois. Isso também, como todas as coisas, pode ser desfeito.
O Pai bradou, sem se deixar abalar, e partiu para cima de Malatriss. Ela sibilou,
assim como sua cobra, e a serpente branca atacou rápido, sendo lançada para o lado
com um contragolpe rápido do Pai. Então Malatriss descruzou todos os braços,
rápida como um raio, desviando de cada ataque das garras até que, por fim,
conseguiu enganchar o Pai pelo braço. Uma, depois duas, depois três mãos
golpearam, jogando o Pai – e a mim – com força no chão.
– Dois serão um – Sete disse, mais sombrio agora. O pânico e a dor do Pai
encheram minha cabeça e tiveram vazão pelos meus gritos; lágrimas se derramavam
por meu rosto enquanto Malatriss apertava com força, estalando os ossos. – Dois
serão um e de um sairá o livro. Um livro novo. Um novo começo para os filhos dos
faes.
Então estávamos flutuando, erguidos no ar por quatro das mãos pálidas do
Vinculador. Meu braço latejava, quente de agonia, mas aos poucos meus
pensamentos e sentimentos foram voltando a ser meus. Quando senti o Pai
novamente, era como se existisse um muro fino entre nós e ele usasse o restante de
suas forças para bater contra a barreira.
– Não! Por favor! – A Mãe se ajoelhou sob nós, erguendo as mãos. – Isso vai
matá-la! Se tirar o espírito dele, ela morrerá!
– ENTÃO QUE MORRA. – Malatriss se voltou para ela, brandindo as seis mãos
fortes.
A primeira vez que morri foi rápida. Esta era uma tortura lenta, o arrancar de uma
crosta recente ainda colada à pele. O Pai não queria partir, e se enfurnou dentro de
mim, cada uma de suas garras cravadas sendo removidas com precisão, mas sem
piedade.
Comecei a sentir frio, primeiro nos pés, depois nas mãos. A gelidez se espalhou
rápido, como a primeira geada se precipitando para matar as últimas tenazes flores
silvestres do outono. Assim também meu espírito se aferrava ao Pai, resistente à
geada, mas não invencível. Ouvi seus gritos como se fossem meus e, por um breve
instante, senti pena de nós em igual medida. Ele me havia feito sofrer em vida,
agora me fazia sofrer na morte, mas senti sua dor igual à minha e não a desejei a
ninguém.
Frio. Tanto frio. Um fôlego de ar prateado saiu de meus lábios, cristalizando-se
em gelo, e o vi dançar na direção do rosto branco e liso do Vinculador.
Seria meu último suspiro? Não pensei que seria tão gelado.
– Equilíbrio. – Sete não cessou sua tortura, arrancando o espírito do Pai de dentro
de mim continuamente até ele se tornar algo concreto, uma versão de sua forma,
com crânio, galhadas, manto e tudo. Ele flutuou para longe de mim, indefeso,
observando seu antigo lar e estendendo as mãos em minha direção. – Um favor,
dois sacrifícios. Equilíbrio, disseram os dados, e equilíbrio há de ser. Um livro é
desfeito, outro reencadernado. Uma criatura desfeita, outra renascida. Duas almas
de novo em um corpo. A Mãe substitui o Pai.
Espere, tentei dizer, mas nada aconteceu. Minha voz se perdeu em algum lugar,
girando ali nas trevas, aprisionada na alma do Pai. Espere, não, isso não está certo.
Eu não sabia exatamente o que o Vinculador queria dizer, mas como poderia ser
benévolo se tudo que eu conhecia daquele lugar era dor?
Era tarde demais. Sete havia tomado sua decisão. Vi o brilho de compreensão nos
oito olhos da Mãe, seus braços ainda estendidos em súplica e oração, então ela
também foi alçada no ar conosco, segurada pelas mãos impossivelmente fortes do
Vinculador.
Os gritos do Pai eram infindáveis, mas não olhei para ele. Eu só encarava a Mãe,
torcendo para que ela conseguisse ver em meus olhos moribundos que não era isso
o que eu queria, que nada disso era equilíbrio. Que nada disso era justo.
Então o espírito do Pai se esvaiu, tornando-se lentamente fumaça, que foi colhida
em um dos jarros do Vinculador, misturando-se ao líquido retinto ali dentro. Uma
pena foi mergulhada no vasilhame e um livro em branco foi trazido do vazio
obscuro acima de nós. Ao menos, pensei, desamparada e dolorida, a pele da Mãe
não seria usada para produzir a nova capa, pois ele já estava encadernado em um
couro liso e claro. De quem era, eu nunca viria a saber, mas vi o começo da
vinculação, da escrita – o espírito do Pai, seu conhecimento do livro dos faes das
trevas, reescrito com a própria essência dele.
Uma das mãos finas e pálidas do Vinculador envolveu o pescoço da Mãe e
começou a apertar. Eu estava paralisada, moribunda e, em breve, ela também
estaria. Estendia os braços para mim, seus lábios retorcidos em um sorriso triste e
perdido. Vi suas lágrimas desaparecerem no vazio à nossa volta e ouvi Malatriss rir
com satisfação em algum lugar lá embaixo.
– Coragem, Louisa, filha – ela sussurrou. – Seus pés estão no caminho. Eu irei
com você.
≥apítulo Vinte e sete
Uma corruíra caiu do ninho uma vez perto da janela do meu dormitório em Pitney.
Eu e Jenny ficamos pensando nela, esquecendo-nos de nossos exercícios
obrigatórios. Nenhuma de nós gostava de ficar correndo no pátio para manter o
rubor nas bochechas; em vez disso, nos escondemos atrás de um carvalho grosso e
discutimos o que fazer com o passarinho aturdido.
– Podíamos bater na cabeça dele e colocar o corpinho na cama de Francine –
Jenny sugeriu.
Era criativo, mas cruel. Para o passarinho, obviamente. Francine que se danasse.
– Não sei se consigo matá-lo.
– O ninho é alto demais. Podemos cair e quebrar a perna tentando colocá-lo de
volta lá.
Jenny era sensata e criativa. Era parte do motivo por que eu gostava dela e por
que tínhamos nos tornado amigas rapidamente. Talvez também tivéssemos ficado
amigas porque éramos as duas únicas meninas em Pitney que passariam um tempo
considerando colocar pássaros mortos nas roupas de cama de uma rival. Francine e
o resto nunca cogitariam algo tão vulgar, mas elas não haviam crescido em bairros
pobres e sujos de merda. Suas famílias distantes ainda as queriam de alguma forma,
e elas simplesmente esperavam o retorno deles para assumir uma vaga de
governanta ou para ser oferecidas como noivas a algum rapaz rico.
– Se o deixarmos, uma raposa o pegará – Jenny acrescentou.
– Mas não é isso que aconteceria se nunca o tivéssemos encontrado? – perguntei.
Soltei o galho que poderia ter sido usado como ferramenta de execução. A corruíra
se contorceu, esperneando as patinhas desamparadamente. – Nunca notamos o
passarinho. A raposa vem. A raposa o come. Se não conseguirmos decidir nada
produtivo, acho que deveríamos deixar a natureza seguir seu rumo.
Jenny não apresentou nenhuma alternativa convincente, por isso deixamos o
pássaro atrás da árvore e retomamos nossa caminhada vigorosa. No dia seguinte,
sozinha, olhei atrás do carvalho. Não restava nada além de um tufo de penas. A
raposa havia encontrado sua refeição ou a ave havia se recuperado e saído
saltitando. Acho que sempre soube a resposta, mas disse a mim mesma que a
corruíra havia escapado ilesa.
A corruíra caída diante de mim hoje não teve essa sorte. A raposa havia
encontrado aquele pássaro e eu só podia me perguntar se restaria algo dele depois.
Eu me ajoelhei junto ao pastor, surpresa com seu tamanho. Ele não era um
homem grande, mas, na morte, pareceu encolher ainda mais; seus braços eram
muito curtos e suas flanelas largas o faziam parecer infantil. Deplorável. Sangue
escuro escorria de seus lábios. Khent ficou um pouco longe, talvez ciente de que
não fora convidado à conversa – ou talvez não confiasse que nossa batalha havia
realmente terminado.
– Você é a raposa – murmurei, observando enquanto seus olhos leitosos me
encontravam – ou a corruíra?
– Eu a acolhi uma vez, garota, e essa é minha recompensa? – ele perguntou,
engasgado. Tossiu com força e tirei o lenço de seu bolso, segurando-o junto aos
seus lábios manchados. – Cortesia? Agora? Jamais entenderei.
– Você assassinou meu povo – eu disse. As palavras saíram facilmente, como se
eu tivesse praticado. Pestanejei, olhando um pouco à direita dele. Tive um
pressentimento quente e ávido, talvez o que uma mãe sente quando sabe que é a
hora do bebê nascer. – Você era a raposa. Nós éramos passarinhos atordoados.
Agora não somos nada além de um tufo de penas.
Ele balançou a cabeça devagar.
– Você não está falando coisa com coisa, menina. Está louca. Você nos matou,
nos matou porque é louca.
O calor dentro de mim se espalhou, para cima e para fora, mas não era
perturbador – muito pelo contrário. Eu não sabia o que estava acontecendo, por que
eu conseguia sentir tanto ao ver a morte de Dalton e não sentir nada por aquele
velho enfraquecido expirando no chão. Seu quepe cinza e desgastado havia caído da
cabeça calva e jazia na lama.
– Eu sou a raposa agora, mas, quando devorar você e os seus, não restará nada.
Nem uma pena. Nem um pé. Nem um vestígio de você na terra ou no ar.
– Olhe só – ele suspirou, tossindo no pano que eu segurava em sua boca. –
Falando tantas loucuras quanto seu pai. Esse é o seu problema: tem tanto do pai em
seu interior, mocinha. Está a um passo de um caminho do qual não há – tosse –
volta.
O sorriso que abri para ele era triste, mas talvez hesitante também. Tirei o lenço e
o deixei junto a sua cabeça. O sangue nele havia formado o desenho de uma folha
caída.
– Meu pai se foi de vez – eu disse a ele. – Nosso livro foi reescrito. Nossa
história começa de novo. O Pai não é nada. Trago algo diferente comigo. Sabe de
uma coisa? – Observei sua sobrancelha se franzir, seus olhos se enchendo de pavor
ainda que cobertos pela cegueira. – A Mãe me contou que o que você e Henry
fizeram destruiu o Pai. Que ver tantos de seus filhos morrerem reduziu o coração
dele a cinzas. Mas atravessei o fogo com ela na Tumba dos Antigos e o fogo não
nos partiu, não nos reduziu a cinzas; atravessamos o fogo e ele nos forjou
novamente.
Ele recostou a cabeça contra o quepe, mas sua boca continuou aberta.
– Eu deveria ter pedido perdão pelo que fizemos. Deveria ter feito as pazes.
Nunca… nunca pensei que acabaria dessa forma. Que Deus me ajude. Que Deus
ajude Henry.
– A chance de perdão passou há muito tempo – eu disse, observando suas
pálpebras tremularem e se fecharem. Esperei, pensando se deveria dizer a oração
que a Mãe tinha me oferecido por meio de seu espírito. Mas mudei de ideia e me
levantei. Finch, porém, havia tentado ser gentil comigo no passado e poderia ter
sido um amigo caso as coisas fossem diferentes. Eu não nutria nenhuma
animosidade contra ele em meu peito, e ele parecia quase frágil, caído no chão. Já
havia partido, provavelmente antes mesmo que eu tivesse saído da tumba.
Eu me ajoelhei e cruzei seus braços, depois fechei seus olhos com um toque
suave, falei as palavras e o observei se dissolver em asas e alçar voo mais uma vez.
Khent esperava por mim apoiado na porta do castelo, curvado de fadiga por seus
ferimentos, ainda mais porque agora carregava o corpo da Mãe nos ombros. Juntos,
deixamos as ruínas para trás, caminhando em silêncio pela colina relvada até a
estrada, onde a carruagem e os cavalos esperavam para nos levar à Casa Coldthistle.
Levaria tempo, eu sabia, para que esse novo desejo sombrio em mim se
acomodasse. Mas não era nada como a influência do Pai, incômoda e externa; essa
nova voz, essa nova perspectiva, parecia entrelaçada naturalmente comigo, como se
sempre tivesse estado lá, um fogo dormente esperando para ser atiçado. O espírito
da Mãe havia mudado ao se tornar meu e, por um breve momento, considerei que –
assim como o Pai – ela realmente estava, em algum sentido, quebrada. Isso me fez
hesitar, mas logo me acostumei com a ideia. Subi com Khent na cabine do cocheiro,
sentindo o vento frio e rigoroso bater contra meu rosto enquanto ele nos guiava de
volta, e concluí que, sim, a Mãe estava quebrada.
E eu também estava. Todos nós estávamos. A morte a havia mudado. Sua paz
havia se transformado em paixão e, agora, cabia a mim carregar esse ardor. Se fosse
para sair da tumba inalteradas, por que sequer entrar? Nossa história era a única que
havia sobrevivido. Eu tinha olhado para o rosto de nosso criador e não encontrado
nada além de desprezo, então soube que não poderia deixar meu povo, meus
amigos, olharem para meu próprio rosto e ver o mesmo.
Eu jogaria o jogo sórdido de vidas e perdas do Vinculador, mas mudaria – tinha
de mudar – as regras. A Mãe me ensinou isso. Meus queridos, queridos amigos
também.
– Como se sente? – Khent perguntou, sua voz perdida em meio ao estrondo dos
cascos e o uivo do vento.
Tirei a bolsa das costas e a coloquei sobre o colo enquanto remoíamos o terreno,
apressando-nos de volta para a mansão.
– Só… oca.
– Oca? Eu estava falando do seu braço, mas muito bem. Sim, oca. Não tem
problema, estar oco. O vazio pode ser enchido de esperança. Ou tristeza.
– Tristeza. Esperança. – Refleti sobre essas palavras, então sorri contra o frio
revigorante. – Em vez disso, escolho determinação.
≥apítulo Vinte e nove
1247, Desconhecido
Existem coisas que é melhor não serem ditas nos momentos após a derrota. O
coração é mais fraco nessas horas, quando uma vaga sensação de
consequência se torna real. Se torna vida. Henry havia me pedido para tentar
mais uma vez, para me juntar a eles em sua viagem para o Oriente, seguindo
as caravanas cor de jade ao longo da Rota da Seda. Há rumores – e sempre
haverá rumores – de uma mulher em Si-ngan que ouviu o último enigma.
Mas não irei para o leste. Não irei a lugar nenhum. Não consigo ver Ara
enfaixar o olho mais uma vez enquanto Henry escreve anotações obsessivas e
insiste, primeiro consigo mesmo, depois conosco, que essa jornada acabou de
começar. Quando me recusei, ele me chamou de covarde, mas dessa vez não
me magoou.
Henry, se o tempo ou a circunstância ou algum golpe insensato da sorte
trouxer esse diário à sua posse, quero que saiba uma coisa. Existe, de fato,
mais uma charada, e é assim:
O que é uma árvore que precisa do sol, mas se curva e cresce longe dele? O
que é uma flor que anseia a chuva, mas apenas floresce no deserto?
Você pode fugir até o fim do mundo, Henry, buscar em todos os cantos
empoeirados, perguntar a cada mercador que passar, e correr atrás de todos
os rumores em vão, mas não encontrará o que busca. As respostas a suas
perguntas não estão em uma tumba escondida ou em um livro antigo e,
embora minha visão se turve à medida que me afasto de Roeh e do meu povo,
a sua se extinguiu há muito tempo.
Sua charada não está no fim de uma longa estrada. A charada esteve diante
de você todo esse tempo. Por que viver? Por que seguir em frente? Por que
escolher a criação no lugar da destruição? Fico contente em deixar o cão com
você, porque talvez, caro amigo, você um dia veja a resposta nos olhos dele.
Por que decidir seguir em frente? Porque o incondicional é eterno. Você foi
feito para ser eterno, e te amo por isso. Se ao menos você se amasse com o
mesmo ânimo sincero.
Enquanto você viaja para o leste, sigo para o oeste. Acho que vou procurar
poetas e sentar-me na presença deles e ouvir suas rimas tristes, sempre
pensando nas críticas cortantes que você lhes faria. Um dia Roeh me
convocará de volta ao serviço, e atenderei ao chamado, lamentando, vezes e
mais vezes, que o pedido não tenha vindo de você.
Não mais em polvorosa, mas em silêncio, a casa parecia destroçada contra os
campos. Nenhuma janela permanecia intacta, e a torre leste, a mais próxima da
divisa com a propriedade do pastor, havia desmoronado. Quando a carruagem parou
e desci no gramado, finalmente senti quanto meu corpo havia sofrido. Eu tinha
hematomas em lugares onde nunca tivera antes. Meu braço vacilava entre pontadas
ardidas e dormência.
Khent tirou o corpo da Mãe da traseira e a carregou ao meu lado enquanto
voltávamos para o campo de batalha. Cadáveres cobriam o chão, mas não eram dos
nossos amigos. Me perguntei se eles ficariam ali até apodrecer e pensei, com uma
resignação exaurida, que caberia a mim cuidar de todos eles. Faria bem a todos ver
um espetáculo de borboletas depois de tanto sangue.
– Eles voltaram! – Poppy, que repousava no chão com Bartholomew, se levantou
de um salto e correu até nós. – Mas você está ferida, Louisa, e a moça roxa também.
Não vi sinal de Niles nem Giles – nem do sr. Morningside e da sra. Haylam,
aliás.
– Ah, minha nossa! – Mary, Lee e Chijioke saíram da cozinha com o grito de
Poppy. Eles correram e ajudaram Khent a deitar a Mãe em um trecho de grama não
manchada sob o toldo da cozinha. Os olhos de Mary se voltaram para a bolsa em
minhas costas.
– É o nosso livro – eu disse a ela. – O pastor se foi e o livro branco foi destruído.
– Sim, todos caíram do céu no momento em que aconteceu – Chijioke disse. Suas
mãos estavam queimadas pela boca do fuzil; sua camisa, manchada de fuligem. –
Não acredito que você fez isso, que… que isso podia sequer ser feito.
– Eu vi o lugar onde os livros são criados – expliquei. – Houve… complicações.
Para destruir o livro, o nosso precisou ser refeito, portanto meu espírito teve de ser
removido, portanto…
– Outra alma foi necessária – Chijioke completou. Essa era sua especialidade,
afinal, e ele assentiu, suspirando. – Não deve ter sido fácil.
– Fácil?! – Mary exclamou. – Olhe o braço dela! Precisamos levar você para
dentro, e Khent também. Podemos cuidar de todos os seus ferimentos e lhe arranjar
algo para comer. Giles foi gravemente ferido. Ele está no andar de cima com
Fathom e o irmão. Espero que sobreviva.
– Daqui a pouco – eu disse. – Mas tem alguma coisa que eu possa usar para
imobilizar o braço? Dói deixá-lo assim.
Chijioke fez um afago no ombro de Mary e correu para a cozinha. Ele voltou
logo em seguida com dois panos brancos da despensa e ergueu meu braço com
cautela, apoiando-o contra meu peito antes de enrolá-lo nos panos, que então passou
na diagonal sobre o ombro para imobilizar o braço.
– Obrigada. Onde está o sr. Morningside?
– Atrás da casa – Lee disse, apontando. Ele estava mais ereto agora que o
problema dos sobreterrenos havia sido resolvido. – Ele levou a sra. Haylam para
trás da casa.
– Venha comigo e me mostre – eu disse.
Não havia pressa para lidar com o corpo da Mãe, e eu sabia que Mary e Chijioke
cuidariam bem dos ferimentos de Khent. Encontrar Morningside era minha tarefa
mais urgente, e os olhos de Lee se arregalaram de surpresa com a sugestão, mas ele
concordou e seguiu ao meu lado enquanto desviávamos dos buracos no chão e dos
sobreterrenos caídos. Assobiei para Bartholomew e bati na coxa com a mão boa.
Ele ergueu a cabeça, depois soltou um longo suspiro canino e trotou para nos
acompanhar.
– Por que ele? – Lee perguntou, estendendo a mão para acariciar a cabeça do
cachorro.
– Você verá – eu disse. – Mas primeiro tenho de lhe perguntar uma coisa.
Caminhamos devagar, pois estávamos exaustos do combate. Seus dedos e
antebraços exibiam as marcas de um boxeador e, com sua nova força estranha e
antinatural, eu poderia facilmente imaginar como ele tinha procurado ser útil na
última fase da batalha. Tanta coisa havia mudado desde nossos flertes receosos na
biblioteca.
– Algo mudou em você – Lee comentou. – Mas imagino que qualquer pessoa
mudaria depois do que você deve ter visto.
– Não é apenas isso – admiti. A caminhada não era longa, mas não tive pressa.
Ao rodearmos a casa, vi que o sr. Morningside realmente estava no gramado norte,
terminando de construir uma pira, sem o paletó e em mangas de camisa. Vê-lo
fazendo um serviço braçal era como ver um ouriço dançando gavota. – O Pai se foi.
A Mãe está com meu espírito agora. Ainda estou descobrindo o que isso quer dizer,
e sei que você não estava lá para ver o que eu me tornava quando o pai assumia o
controle. Era feio e violento… selvagem de uma maneira que me assustava.
– Mary me contou sobre isso – Lee respondeu. – Eu não conseguia entender por
que você faria um trato com o sr. Morningside de novo, mas ela disse que precisava
ser feito.
– Ela disse a verdade. Precisava ser feito. – Parei de novo, observando o sr.
Morningside levantar o corpo inerte da sra. Haylam e depositá-lo com cuidado
sobre a madeira empilhada. Ela havia dado tudo de si para proteger a casa. Assim
como os outros. Era um milagre que ela e Giles fossem as únicas perdas. – Sabe, já
vi um fazendeiro queimar o próprio campo. Nunca entendi por que até agora. Ele
estava limpando as coisas inúteis para que plantas novas e melhores pudessem
crescer. É assim que me sinto agora, Lee. O Pai era um inferno desenfreado, mas a
Mãe é muito diferente. É uma chama que quero atear. Um fogo que consigo
controlar.
Lee me fitou sem piscar.
– Então… você está feliz?
– Eu não diria feliz. – Abri um sorriso tênue e apontei a cabeça para a pira. – A
sra. Haylam morreu, mas você ainda está aqui. A magia dela não é necessária para
manter você?
Ele coçou o queixo diante da pergunta; alguns fios tinham começado a crescer
ali.
– Chijioke acha que devo estar mais atrelado ao livro do que a ela. Não me sinto
nem um pouco diferente agora que ela está morta.
– Que bom – eu disse baixo, pensativa. – Isso é bom. Porque o livro negro é meu
agora, então você não corre nenhum risco de desaparecer.
≥apítulo Trinta
O sr. Morningside tinha acabado de acender a lenha embaixo da pira quando eu,
Lee e Bartholomew chegamos à clareira.
Ele recuou do crepitar quando o fogo se acendeu, se espalhou e subiu em uma
labareda. As chamas saltaram para o alto, consumindo a madeira úmida, que
fumegou e emitiu um pilar de fumaça preta para o alto, como se fazendo sinal para
um exército distante. Com os braços cruzados, observei o fogo se aproximar do
corpo inerte da sra. Haylam. Sem o diário de Dalton, eu talvez nunca soubesse
quanto tempo eles passaram juntos ou como suas vidas eram entrelaçadas. Não
pude deixar de pensar no que ela havia me dito quando a batalha contra os
sobreterrenos transcorria ao nosso redor – que deveria ter sido mais firme com ele,
como se fosse sua mãe e não uma seguidora devota.
Talvez, em certo sentido, ela tivesse sido a guardiã dele. E, agora, com todos os
seus antigos amigos mortos, ele estava à deriva. Desancorado.
Não chegamos de maneira furtiva, e ele virou o tronco, talvez esperando
encontrar apenas os empregados da casa. Todo o seu comportamento mudou ao me
ver ali com o livro dos faes das trevas ainda nas costas. Ele deixou os braços caírem
e franziu a testa, depois sorriu, depois franziu a testa de novo enquanto eu avançava.
– Sinto muito pela sra. Haylam, pela sua amiga – eu disse.
– Eu também. Ela foi uma companheira leal até o fim, e uma parte tão importante
da minha vida que sua morte me parecia impossível. – O sr. Morningside voltou-se
para as chamas outra vez. – Mas você voltou e a batalha findou, o que significa…
Ele ergueu as sobrancelhas com expectativa.
– Sim – eu disse. – O livro branco não existe mais.
– Então… acabou – ele disse, olhando para a floresta. – Acabou.
– Sinto muito pela sua amiga. Pelos seus amigos – continuei. – Ou, melhor, sinto
muito que os tenha perdido dessa forma. Que eles tenham tentado ajudá-lo,
acreditado no senhor, enquanto o senhor só os estava usando esse tempo todo. E
sinto muito pela casa. Sei que será difícil perdê-la.
– Perdê-la? – ele repetiu. Foi só então que o sr. Morningside notou a presença de
Lee. Ele se afastou da pira e se aproximou de nós, examinando-o com mais
interesse, com um brilho nos olhos dourados. – Minha cara Louisa, você nem me
deu a chance de cumprir minha parte do acordo. Será mais difícil, claro, sem a sra.
Haylam, mas não impossível.
– Claro. O contrato está com ele? – perguntei, depois continuei antes que ele
pudesse responder. – Não é preciso. Lembro das palavras exatas. Você removeria o
espírito do pai de mim. Você. Se isso não se cumprisse, a Casa Coldthistle e o
Elbion Negro seriam meus.
Em sua ansiedade para responder, ele sorriu, depois curvou um dedo sobre o
queixo e hesitou.
– Tenho certeza de que você está se coçando para explicar sua lógica.
– O senhor não pode remover o que já se foi – eu disse, avançando para cima
dele. Ele pareceu espantado, verdadeiramente espantado, e talvez só então se desse
conta de como era improvável que eu tivesse sequer retornado. Engolindo em seco,
também notou Bartholomew. Sua boca se abriu e se fechou algumas vezes, mas ele
não disse nada. Era melhor assim, pois eu ainda não estava interessada no que ele
tinha a dizer. Ele era mais perigoso quando entornava palavras melosas nos ouvidos
dos outros. – A Mãe está morta. Todos os sobreterrenos estão mortos. E eu estaria
morta também se não fosse a sorte e uma estranha coincidência. Era isso que você
queria, não? Séculos de planejamento e maquinação movendo todos nós, as peças
de seu joguinho, com promessas e mentiras. Agora que chegamos ao fim de seu
jogo, responda uma charada para mim, Diabo.
Seu lábio se curvou com desdém, e ele voltou o olhar para a pira como se
quisesse me envergonhar por fazer escândalo na frente dos mortos.
– Vá em frente.
– Braços a abraçar, mas nenhuma mão. Beliscos a dar, mas nenhum dedo. Veneno
a atacar, mas nenhuma agulha. – Apoiei a mão de leve sobre a cabeça peluda de
Bartholomew e o acariciei. – O que eu sou?
Se meus olhos fossem capazes de perfurar seu crânio, aposto que teria visto todas
as engrenagens girando, todos os seus cálculos rápidos enquanto refletia sobre a
resposta. Se ele fosse uma chaleira, o vapor teria vazado de suas orelhas,
subitamente esquentando demais. O sr. Morningside mexeu os pés e voltou a cruzar
os braços, erguendo o queixo com um ar imperioso que me fez lembrar de Malatriss
no mesmo instante. Isso também não ajudou muito.
– Um escorpião – ele disse.
– Mentiroso ou inepto, mal sei se ainda importa. – Cutuquei o enorme cachorro
peludo ao meu lado, estalando os dedos na direção do sr. Morningside. – Vá,
Bartholomew. Ele está falando a verdade? Realmente acha que é essa a resposta?
Ou torceu secretamente para que eu perdesse um dedo por seu erro, que falhasse ou
morresse e me tornasse um problema a menos para resolver?
– Não é verdade, Louisa. Se eu lhe disse algo errado, não foi intencional. Tudo
que eu mais queria era que você tivesse êxito!
Bartholomew ergueu os olhos perscrutadores de filhote para mim. No instante
seguinte, o sr. Morningside bufou e cambaleou para trás, os olhos se arregalando de
espanto quando o cachorro saltou para a frente. Ele derrubou o sr. Morningside,
surpreendendo a todos nós, depois subiu em cima de seu corpo, o pelo mais duro ao
longo da espinha se arrepiando e ficando rígido. Seus lábios recuaram, mostrando
os dentes do tamanho de dedos, e seus olhos, normalmente tão doces, haviam ficado
ferinos e cheios de propósito.
– Louisa… – ouvi Lee murmurar.
– Observe.
Era agora que eu saberia. O esquema do sr. Morningside seria revelado: seu plano
para acabar comigo e com a Mãe, incluindo a possibilidade improvável, mas
definitivamente não indesejada de que Dalton e todos os outros sobreterrenos
fossem eliminados. O que quer que acontecesse, haveria menos para ele enfrentar.
Vi o sr. Morningside empurrar de leve os ombros do cachorro, uma pequena lamúria
escapando de seus lábios antes de Bartholomew avançar e… não fazer nada. O
cachorro não rosnou nem o lambeu – pareceu ficar apenas confuso. Talvez isso
significasse que não havia nem mentira nem verdade. Que nem o sr. Morningside
sabia o que esperar da minha jornada à tumba.
– Satisfeita? – ele resmungou, levantando-se com dificuldade e tirando os pelos
da calça. – Falei para você o que sabia e você fez o que não pude. Agora faça um
favor a um velho tolo e descreva como foi tudo.
– Foi… foi… beleza e depois tristeza, assombro e depois dor. – Passei a mão no
cabelo desgrenhado, frustrada, e me crispei; até esse movimento afligia o outro
braço na tipoia. Eu estaria errada sobre ele? Ele teria me enviado por ignorância e
não por maldade? No fim, isso importava menos do que saber que ele havia
esperado até o último momento para sacrificar seus queridos pássaros, muito depois
de seus amigos e empregados terem agido para defender a casa. – Você não tem
ideia do que me pediu, do que aquele lugar era. Não havia respostas lá, apenas dor.
Vi onde os deuses nascem e repousam. Conheci um Vinculador e ele arrancou
metade da minha alma, depois usou uma inocente para sanar o que foi ferido.
Sobrevivi apenas graças ao que Dalton me contou, ao que li no diário dele.
Virei para o outro lado, sentindo lágrimas despontarem nos olhos. Mas então veio
a voz dentro de mim, a voz da Mãe, gentilmente a princípio e depois com uma
insistência que não podia ser ignorada.
– Desculpe, Louisa. – O sr. Morningside ficou em silêncio por um momento e
imaginei que estivesse contemplando as chamas. – Não tenho ideia de como você
aguentou ler sobre nós. Toda a história foi bastante bizantina, para ser honesto.
Nossas espécies nunca deveriam se misturar, por motivos óbvios. Embora eu
suponha que tenha de ser honesto, hein? Você me tem em desvantagem, sabendo,
como sabe agora, dos meus segredos íntimos.
Me impressionou como era fútil e triste que ele se preocupasse com essas coisas
em um dia em que tantas vidas haviam se perdido.
– Você descobrirá que sou a última alma que pode julgar – eu lhe assegurei. –
Consigo… ver com muita naturalidade como alguém poderia se apaixonar
perdidamente por Dalton. Ele era muito sincero. Nada além de acolhedor.
– Ah, sim – ele riu baixo. – Dalton Spicer era sem dúvida acolhedor. Me acolheu
bem em sua cova.
Eu me virei e vi que ele não estava olhando para as chamas, mas para mim.
– Somos todos escravos da nossa melhor natureza.
– Não – o sr. Morningside disse, seco. – Nem todos nós, Louisa.
– Será? – Era hora de tomar o que me era devido, de seguir em frente, de sepultar
a Mãe e encontrar um lugar para começar de novo. Eu tinha uma ideia de como
fazer isso, claro. Ou talvez a Mãe tivesse. – Então, nesse caso, não ficará surpreso
quando eu pedir a casa e o livro. Você não removeu o espírito do Pai de dentro de
mim, portanto quero o que me foi prometido.
Lee ajeitou os pés, desconfortável, e Bartholomew se aproximou dele e aninhou-
se junto ao seu quadril.
O sr. Morningside sorriu de novo, mas não havia humor em seu olhar.
– Você não pode estar falando sério, Louisa. Fui eu quem a mandou para aquele
lugar, então, essencialmente, fui eu o responsável por…
– Eu pareço estar a fim de negociar? – A frase saiu como um sussurro letal,
tirando habilmente o sorriso de seu rosto. – Recomendo sinceramente não assumir
responsabilidade total pelo que aconteceu na tumba. Nem você, que vê todos os fins
e se planeja para todas as possibilidades, poderia ter se preparado para o que
aprendi ou o que suportei. E duvido que teria sobrevivido. Já estou me sentindo
bastante irritável e você ouvirá agora até onde vai minha misericórdia.
Ele me encarou, fumegando, com os punhos cerrados ao lado do corpo.
– Louisa…
Um acesso de tosse chamou minha atenção, e me virei brevemente para ver que
era Poppy. Havíamos atraído uma plateia; o restante dos funcionários da casa, assim
como Khent e Fathom, haviam se juntado para nos observar de uma distância
segura. Voltei-me para o sr. Morningside.
– Você abandonará este lugar e ele será demolido – eu disse, apontando para a
casa. – Não a quero. Ninguém deveria querê-la. Quanto ao livro… – Virando-me
para Lee, suavizei o tom, pois ele era inocente em tudo aquilo. – Lee, gostaria de
continuar vivendo?
– Eu… creio que sim. Sim, eu gostaria de continuar vivendo, ainda que seja uma
nova e estranha existência.
– Então fique com seu livro – eu disse a Morningside. – Mas arranque uma
página, que será de Lee. O que ele fizer com ela, aonde a levar, será da conta dele.
Se o poder do livro sustentou tantos Residentes ao longo dos anos, uma página deve
se provar mais do que suficiente.
Entrelacei o braço no de Lee e o guiei para longe da pira. A madeira tinha
começado a queimar fortemente, ateando fogo no vestido manchado da sra. Haylam
e nas faixas que eu havia amarrado em seus braços e pernas. A fumaça preta se
afunilou no ar, formando uma nuvem que pairou pesada sobre a Casa Coldthistle.
– E eu? – O sr. Morningside gritou atrás de mim. Sua voz era rouca e
desesperada. – O que será de mim?
– Você? – Lancei um único olhar de esguelha por sobre o ombro. – Jamais quero
vê-lo novamente.
≥apítulo Trinta e um
Sepultamos o corpo da Mãe ao pôr do sol, em uma caverna escavada sob a casa.
Torci para que, quando a mansão fosse derrubada, as raízes e os galhos dela se
espalhassem pela fundação e se tornassem algo belo em um lugar de tanta dor.
Deixei o diário para o sr. Morningside na frente da porta verde no vestíbulo, que
marcava a entrada para seu domínio subterrâneo. Dentro da capa, eu havia inscrito a
última mensagem de Dalton para ele.
Diga a ele que eu estava errado. Ele pode ser mais do que é. Ainda há tempo.
– O que você vai fazer agora?
Lee havia terminado de arrumar suas coisas, que couberam perfeitamente na
maleta que ele havia trazido quando chegou à Casa Coldthistle com o tio. Era o dia
seguinte à batalha e estávamos do lado de fora no ar de fim de outono. Chijioke e
Fathom colocavam o corpo de Giles, enrolado com firmeza em um lençol, na
carroça que levaria Niles de volta a Derridon. O coveiro não havia sobrevivido à
noite, e um clima sombrio e quieto havia caído sobre a casa. Ninguém falava mais
alto que um sussurro. Nenhuma refeição foi servida. Encontrávamos chá e comida
por conta própria e comíamos em silêncio, pois ninguém sabia bem o que dizer.
– Pensei em voltar para casa – Lee disse, sentando-se no degrau de pedra cinza.
O colar de colher tinha sido enfiado dentro da camisa, e ele usava um casaco
elegante que havia guardado de sua viagem inicial a Yorkshire. – As coisas serão
muito diferentes lá, agora que sou, bem, o que sou. No entanto… – Ele olhou ao
longe e respirou fundo. – Agora que sei que não fui a causa da morte do meu
guardião, pode ser mais fácil ficar em paz. Ah, não sei. Estou nessa forma estranha
há tanto tempo que será difícil ficar apenas entre humanos normais novamente. Não
faço ideia se ainda consigo herdar algo, mas gostaria muito de rever minha família.
– Não será fácil – eu disse a ele. – Nunca encontrei meu lugar em Londres.
Quando se viu tudo que vimos, a vida mundana começa a perder o brilho. Espero
que você se dê melhor do que eu e que sua família o aceite como é.
Família. A palavra realmente tinha seu apelo. Olhei ao redor para os amigos e
ex-colegas reunidos, agora usando xales e casacos de viagem. Ninguém queria ficar
muito tempo mais na Casa Coldthistle agora que ela estava vazia e ainda mais
sombria, com as janelas quebradas e os torreões tortos e carbonizados. Nenhum
Residente espreitava mais os corredores. Nenhum pássaro cantou quando chegou a
aurora.
– Você é mais do que bem-vindo a nos acompanhar – eu disse a ele. Eu havia
tomado um banho e colocado um vestido preto simples, um dos meus antigos
uniformes, mas escolhi manter a bolsa com o livro refeito perto de mim a todo
momento. Parecia um talismã ou, talvez, uma responsabilidade. – É uma viagem
longa para o norte, mas há paradas ao longo do caminho. Pode ser uma jornada
agradável, sabe, se feita com amigos.
Lee assentiu, balançando os cachos loiros, e me abriu um sorriso bem-humorado.
– O correio encontrará você se eu tentar escrever? Talvez, quando eu estiver farto
da minha família, possa ver como é o seu mundo.
– Sempre haverá lugar para você – eu disse, apertando sua mão. – E, quanto ao
correio… Bom, por que não anota seu endereço e vejo o que se pode fazer?
Rindo baixo, Lee remexeu na mala e pegou um pergaminho. Lá dentro, entrevi
um papel amarelado, enrolado – a página do Livro negro. Ele precisaria tê-la
consigo sempre, mas, ao menos, ela lhe permitiria alguma sensação de liberdade.
– Aqui. – Ele se levantou e me entregou o pergaminho. – Eles parecem prontos
para partir agora. Pensei em ir com Niles até Derridon e, de lá, encontrar meu
caminho para casa.
Apertamos as mãos, então ele me puxou num abraço, tomando cuidado com meu
braço. Mas eu sabia que não seria a última vez que nos veríamos. Eu queria que ele
voltasse para casa, pois eu nunca havia imaginado que isso poderia acontecer
novamente, mas ele era uma criatura de sombras e magia agora e, um dia, precisaria
de um lugar onde isso não fosse espantoso. Parada no degrau, observei enquanto ele
se despedia dos outros, depois entrava na carroça com Niles. Os dois se viraram na
cabine do cocheiro e acenaram, e meu peito se apertou um pouco de perda ou pesar
enquanto saíam ruidosamente pela estradinha, encaminhando-se para casas
diferentes, ambos envoltos em tristeza.
– E você? – Segui o sulco das rodas deixado no cascalho, traçando-o até Fathom,
que observava a carroça desaparecer com uma mão protegendo os olhos, logo
abaixo do tricórnio elegante. – Vai nos acompanhar ou assumir o abrigo em
Deptford? – perguntei.
– Nenhum dos dois. – Fathom balançou a cabeça, cutucando pensativamente um
curativo na mão. De todos nós, ela parecia ter escapado com menos ferimentos da
batalha, o que era uma façanha e tanto para uma humana. – Vou partir, acho. Para
algum lugar distante. Há memórias demais em Deptford. Feridas demais. Tenho
uma amiga em Massachusetts, Lucy, que deveria procurar. Ela vai me aturar por um
tempo, ao menos. – Ela riu baixo e bateu de leve no meu ombro bom. – Venha
conhecer os Estados Unidos, Louisa. Há muitos absurdos assustadores lá, e não
estou falando apenas de política.
Ela havia pegado um cavalo dos estábulos e montou nele com a facilidade da
prática.
– Sinto muito pelo que aconteceu com Dalton – eu disse, desviando os olhos. –
Ele falou com carinho de você no fim.
Fathom deu mais uma risada indecorosa e acenou com o chapéu, virando o
cavalo na direção da estrada.
– É claro que falou. O ruivo doido sempre teve uma queda por mim. E ele era um
dos raros homens bons. Os bons não duram muito neste mundo e ele durou mais do
que a maioria. Vivendo naquele abrigo, vi muitos irem e virem, mas Dalton sempre
estava lá, sempre confiável. Não seria o mesmo agora que ele está em sua própria
aventura.
Com isso, ela se foi, levantando poeira enquanto saía do terreno e virava ao sul,
rumo à distante cidade de Londres.
E havia, claro, a questão iminente sobre o destino de Poppy, Mary e Chijioke.
Bartholomew seguiria a menininha aonde quer que fosse e, junto com Khent, eles
aguardavam com expectativa perto das duas últimas carruagens – uma cravada de
furos pela tarasca, a outra o faetonte leve e veloz que Niles e Dalton haviam trazido
de St. Albans.
– Vocês vão partir – eu disse, com certa surpresa. Enquanto eu me despedia de
Lee e Fathom, Mary havia trazido várias malas estofadas, incluindo uma cheia de
pratarias e bugigangas, sem dúvida para vender. Eu havia considerado que eles
poderiam vir comigo, mas, depois de tantas famílias rompidas, não me permiti
acreditar de verdade. – Pensei que… – Eu não fazia ideia nem de como começar. –
Na última primavera, quando negociei para que seus contratos fossem quebrados…
Bom, pensei que vocês todos quisessem ficar.
– Queríamos. Naquela época. – Chijioke pegou a mão de Mary e ergueu uma das
malas. – Não há mais nada para nós aqui, e o sr. Morningside… Bom, quase fez
com que fôssemos mortos, e posso não morrer de amores pelos sobreterrenos, mas
aquilo foi feio. Se ele pensou que podia nos fazer lutar as batalhas dele e cumprir
sua vontade para sempre, realmente tinha uma visão distorcida das coisas. Não
quero ficar mais nem um minuto aqui e vê-lo colocar você ou Mary em perigo
novamente.
– E você está certa – Mary acrescentou com um sorriso acanhado. – Por mais
difícil que tudo tenha sido, achamos que é melhor ficar juntos. Como uma família,
sabe. Estamos todos ansiosos para nos afastar desse lugar.
Poppy concordou, então pareceu mudar de ideia, olhando para a casa atrás de si.
Franziu a testa e avançou para mim, puxando minha saia com força.
– Bartholomew vem também! Ou ele vem junto ou eu não vou.
O cachorro concordou com um uivo.
– Claro – eu disse, lançando um olhar de esguelha para Khent. – Caninos são
bem-vindos nesta família.
Khent revirou os olhos, pegando duas malas e levando-as para a carruagem
maior.
– Sou muito mais limpinho do que esse bicho. E muito mais bem-comportado
também.
– Mas é isso que vocês querem? – perguntei de novo, olhando para cada um. –
Será um caminho longo para o norte e não faço ideia do que encontraremos na
Primeira Cidade. Nunca pensei que isso aconteceria assim.
– Nem nós cinco – Mary disse com um suspiro.
– Seis – Poppy insistiu, pegando Bartholomew pela orelha.
Isso pareceu encerrar a história. Iríamos todos juntos para o norte e
encontraríamos o que houvesse para ser encontrado ao longo do caminho até a
Primeira Cidade. Havia espaço suficiente para todos nas carruagens e Chijioke
conhecia bem a região – e eu não esperava deparar com nenhuma emboscada na
estrada agora que não existiam mais sobreterrenos. Poppy arrastou uma mala
grande demais para ela na direção da carruagem, e Bartholomew saiu correndo
atrás, pegando a outra ponta com a boca e trotando junto com ela. Enquanto as
últimas preparações eram feitas, me peguei voltando os olhos para a casa.
O lugar tinha me parecido mais agourento na primeira vez que pousei os olhos
sobre ele. Agora estava meramente vazio, devastado, o lar frio de um único homem
– um homem que nos observava como uma sombra fugidia de uma janela lá do alto.
Ao me voltar para ele, pensei sobre seus olhos tristes, cheios de confusão e traição.
Seus funcionários lhe haviam servido fielmente até o fim, mas a lealdade tinha
limites. Talvez, pensei, ele entenderia um dia por que vivia agora em infâmia e
abandono, tendo encontrado o que queria e descoberto que não era o bastante.
– Você acha que ele vai tentar alguma coisa? – Khent perguntou, me
sobressaltando.
Ele colocou a mão nas minhas costas, da mesma forma que fizera da outra vez
para me dar coragem.
– Não – eu disse com sinceridade, observando o Diabo me dar as costas para
assombrar outros cômodos vazios. – Não, não acho.
Voltamos para as carruagens e encontramos os outros discutindo sobre quem
viajaria para onde. Bartholomew já havia assumido um lugar no veículo mais leve,
talvez desejando sentir o vento em seu rosto. A escolha de Poppy, então, foi tomada
por ela, e Chijioke a ajudou a se acomodar perto do cão.
– Aonde você acha que ele vai quando a casa não existir mais? – perguntei a
Chijioke. Ele soube imediatamente a quem eu me referia.
– Aonde todos os diabos vão – ele respondeu, encolhendo os ombros. – Aonde
for mais necessário e menos esperado. Venha – ele disse, estendendo as mãos para
mim. – Deixe-me ajudá-la com isso.
Ele estava se referindo à bolsa em meus ombros. Eu a tirei com cuidado, me
crispando quando ela raspou meu braço, depois o detive e me abaixei para retirar o
livro, que não pesava mais do que um volume normal. Era maior, porém, e muito
mais fantástico, com uma capa verde brilhante com vinhas roxas e um cervo e uma
aranha estampados no centro.
Passei a mão sobre o couro com um arrepio, sabendo que era a pele de um pobre
aventureiro. Uma voz vibrou para mim de dentro das páginas, grave, aliviada e
masculina – o Pai. Mas não soava como nenhuma memória que eu tinha dele. Soava
como um animal intacto, um homem refeito.
Liberto da agonia da fúria… por fim.
Os outros me observavam paralisados. Olhei para eles reunidos ali: Mary com
seu cabelo castanho e desgrenhado e suas sardas graciosas; Chijioke ainda
esperando para pegar a bolsa com as mãos estendidas, a pele negra dos antebraços
com curativos reforçados pela batalha; Poppy com seu cachorro querido, ambos
debruçados para fora do faetonte, a menininha com a marca no rosto torcendo uma
trança com expectativa; e Khent recostado na carruagem, os imperscrutáveis olhos
cor de lavanda, seu sorriso gentil enquanto esperava e eu me tardava.
– Coragem – ele fez com a boca.
Eu assenti.
– Somos criaturas de trevas e curiosidade, mas existe o bem neste livro, e a
bondade é poderosa. Sempre foi, mas foi esquecida. – Eu não sabia se as palavras
eram minhas ou da Mãe, mas elas saíam livremente e com uma confiança que eu
nunca havia sentido antes. – Este livro, o nosso livro, vai ajudar o mundo a se
lembrar. E a bondade… a bondade nem sempre significa paz. Não significa
fraqueza. A bondade que há neste livro e em nós nos guiará para o norte, e além, em
nossas vidas. – Respirei fundo e deixei Chijioke pegar a bolsa e o livro, vendo-o em
seus braços com lágrimas cobrindo os olhos. – Eles tentaram nos eliminar. Essa foi
a era deles, de anjos e sombras e demônios. Agora vem a nossa chance, a nossa era,
a era da nossa fúria.
– Viva! – Chijioke gritou, piscando para mim. – Agora diga tudo isso de novo
quando chegarmos ao bar. Isso exige um brinde, hein, mocinha?
– Sim – eu disse com uma gargalhada. – Prometo não esquecer nenhuma palavra.
Então o livro foi colocado na carruagem, Mary veio me pegar pelo braço e
subimos os últimos degraus juntas.
Mas, depois que subi a escada, parei na porta aberta da carruagem, olhando para
a Casa Coldthistle uma última vez, pensando – talvez até com esperança – que veria
seu antigo dono uma última vez. No último andar do torreão leste, dois olhos
amarelos reluziram. Mas eles se foram assim que surgiram, um par de cortinas se
fechando com firmeza, como se para dizer que a peça havia terminado, como se
para dizer chega – como se para encerrar o lugar para sempre, uma tumba solitária e
esquecida.
Epílogo
Aru Shah é uma Pândava. Ela ainda estava tentando se acostumar com
esse lance ‒ de ser tipo uma semideusa guerreira ‒ quando o Outromundo
mergulhou num pânico completo por causa do sumiço de uma arma
celestial. Ao que parece, alguém roubou o arco e flecha de Kamadeva, o
deus do amor. E, em vez de o artefato ser usado para unir casais por aí, ele
tem transformado as pessoas em Sem-Coração, ou seja, zumbis.
Sabe o que torna a situação ainda pior? Aru e Mini, sua irmã de alma,
foram responsabilizadas pelo crime. Agora, as duas terão dez dias para
recuperar o arco e flecha e provar a sua inocência. Caso falhem nesse
desafio, as irmãs Pândavas serão expulsas do Outromundo. Para sempre.
Nesta aventura, elas contarão com a ajuda de Brynne (uma garota muito
forte) e Aiden (o misterioso vizinho de Aru). Juntos, o grupo enfrentará
demônios e um reino cheio de serpentes... além de descobrir que o inimigo
não é exatamente como imaginavam.
O segundo volume da Saga Pândava tem todo o humor, a ação e a
imaginação que fizeram de Aru Shah e o fim dos tempos um sucesso. Bem,
já que melhor é impossível... abra já seu livro e aproveite esta nova
aventura!
"O que mais atrai neste livro é a complexidade de seus personagens que,
apesar de sua divindade ou semidivindade, têm uma essência muito
humana. Os fãs ficarão encantados e clamando por mais." KIRKUS ‒
Starred Review
"Aru Shah e a canção da morte acompanha o ritmo vertiginoso do seu
antecessor. E escancara a porta para o Outromundo." ‒ HYPABLE
"Os fãs da saga ficarão entusiasmados em voltar a mergulhar neste
universo rico e cheio de camadas." ‒ BOOKLIST
Juliet Young sempre escreveu cartas para sua mãe. Mesmo depois da
morte dela, continua escrevendo – e as deixa no cemitério. É a única coisa
que tem ajudado a jovem a não se perder de si mesma. Já Declan Murphy
é o típico rebelde. O cara da escola de quem sempre desconfiam que fará
algo errado, ou até ilegal. O que poucos sabem é que, apesar da aparência
durona, ele se sente perdido. Enquanto cumpre pena prestando serviço
comunitário no cemitério local, vive assombrado por fantasmas do
passado. Um dia, Declan encontra uma carta anônima em um túmulo e
reconhece a dor presente nela. Assim, começa a se corresponder com uma
desconhecida... exceto por um detalhe: Juliet e Declan não são completos
desconhecidos um do outro. Eles estudam na mesma escola, porém são tão
diferentes que sempre se repeliram. E agora, sem saber, trocam os
segredos mais íntimos. Mas, aos poucos, a vida real começa a interferir no
universo particular das confidências. E isso pode separá-los ou uni-los
para sempre. Entre cartas, e-mails e relatos, Brigid Kemmerer constrói
uma trama intensa, repleta de descobertas e narrada sob o ponto de vista
dos dois personagens. Uma história de amor moderna de arrebatar o
coração.