Camila Simões Rosa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO


LINHA DE PRÁTICAS SOCIAIS E PROCESSOS EDUCATIVOS

CAMILA SIMÕES ROSA

A INTERSECCIONALIDADE E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A


COMPREENSÃO DO ENCARCERAMENTO DE MULHERES NEGRAS

São Carlos/SP
2018
CAMILA SIMÕES ROSA

A INTERSECCIONALIDADE E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A


COMPREENSÃO DO ENCARCERAMENTO DE MULHERES NEGRAS

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação, da Universidade
Federal de São Carlos, na linha de Práticas Sociais
e Processos Educativos, como exigência para
obtenção do título de Doutora em Educação.

Universidade Federal de São Carlos


Programa de Pós-graduação em Educação
Linha Práticas Sociais e Processos Educativos

Orientadora: Profa. Dra. Elenice Maria


Cammarosano Onofre

São Carlos/SP
2018
BANCA EXAMINADORA

_______________________________________
Profa. Dra. Elenice Maria Cammarosano Onofre
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

________________________________________
Prof. Dra. Tatiane Cosentino Rodrigues
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar

_________________________________________
Prof. Dra. Thaís Fernanda Leite Madeira
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar

_________________________________________
Prof. Dra. Eva Aparecida da Silva
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP

_________________________________________
Prof. Dra. Sandra Maciel de Almeida
Universidade Federal Fluminense -UFF
Dedico esta tese às mulheres pretas presas em suas lutas diárias.
AGRADECIMENTOS
Há um provérbio africano que ensina: “Nunca se esquecem as lições aprendidas nas
dores”. É a partir dele que resisto, que me movimento e uso as dificuldades experenciadas como
inspiração a almejar atuar na academia de forma que este espaço se faça menos hostil para
mulheres negras.
A escrita desta tese não foi solitária como eu achei que seria, muitos foram o que me
acolheram, que ensinaram, inspiraram e de algum modo utilizaram suas mãos para me ajudar a
escrever um conhecimento sobre o qual eu acreditava.
Desta forma, esta etapa de agradecimento se faz a cada mão que se fez imprescindível na
construção desta tese.
Da minha mãe, Maria José, por ter mãos que acalentam, motivam, unem, educam. Do
meu pai, Carlos Alberto, por ser uma mão que ampara, tranquiliza, conforta. Vocês me fazem
acreditar que eu posso ser o que quiser; são minha fortaleza e exemplo.
Do meu irmão, Gustavo. Por ser a mão que cuida, não importa em que parte do mundo se
aventure a estar, da amizade mais sincera que eu carrego. Você me inspira.
Do meu companheiro Arthur. Por ser mão de fazer cafuné, de corrigir texto, de mostrar
quão feliz a vida é quando se tem um amor/amigo/parceiro. Em especial pela ajuda na coleta dos
dados, na leitura de cada etapa da pesquisa. Você é amor/amizade.
Da família que mantém acesa as raízes. Em especial a Vó Maria e Vô Dito, por serem
mãos da ancestralidade. Aline, Amanda e Ariane, as primas que me lembram da importância da
gargalhada e da leveza. Vocês são o cuidado que eu quero ter para sempre.
Das companheiras de Pós-graduação, Sara, Aline, Clóris, Katia e Luciana. Das mãos que
me ajudaram a não desistir frente às dificuldades de ser pesquisadora.
Dos amigos de sempre Natália P., Mariana R., Vinícius L., Karine, Natália S., Camila G.,
Camila P., Nayara e Bruno. Por serem mãos que acalentam a alma, das prosas e das risadas. Em
especial à Karine, pela ajuda na tabulação de dados.
Dos amigos de Americana, a cidade que tem me acolhido. Em especial à Natália e
Vitória, por serem mãos de mulheres que lutam.
Dos amigos de Atlanta, Cláudia, Gustavo e Allan. Das mãos que traduziam um novo
mundo nos meses que estive fora.
Das sábias mãos das professoras Tatiane Cosentino Rodrigues, Ana Cristina Juvenal da
Cruze Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Por serem fortaleza e exemplo a serem seguidos. Das
mãos cuidadosas e pacientes das Professoras Joyce King e Aisha Kareem, que em Atlanta deram
todo o suporte e ensinamento para que o intercâmbio fosse ainda mais rico. Vocês são pessoas
das quais sempre me orgulharei pela luta que travam diariamente, atravessando o desafio de ser
mulher negra acadêmica.
À CAPES, pelo auxílio-financiamento no Programa de Desenvolvimento Abdias Nascimento.
RESUMO
Trata-se de um estudo de cunho teórico e abordagem qualitativa, com aportes no feminismo
negro, que ao considerar não haver hierarquia entre as práticas de opressão vivenciadas por
mulheres, reconhece a urgência de análises e reflexões sobre o encarceramento em massa de
mulheres negras. O contexto a ser estudado, e a opção teórica em feministas negras brasileiras e
norte-americanas, alavancaram o interesse em um estudo mais aprofundado sobre um dos
conceitos deste movimento social, que orientado pela invisibilidade de pautas da mulher negra
nos debates feministas e nos debates de raça, propõe a interseccionalidade. Na etapa da pesquisa
que se dedica à compreensão deste conceito, realizou-se discussões históricas que evidenciam
que mulheres negras eram afetadas pelas discriminações interseccionais mesmo antes do conceito
ser delineado por Kimberlé Crenshaw, na década de 80. Apresentam-se ainda as discussões
teóricas do conceito a partir desta feminista norte-americana, de brasileiras e outras que
colaboraram no impulsionamento teórico da interseccionalidade enquanto sensibilidade analítica
capaz de tirar da invisibilidade grupos atravessados por diferentes práticas de opressão. Ainda
nesta discussão, encontra-se um levantamento bibliográfico no banco de teses e dissertações da
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) entre os anos de 2005 e
2015 com o descritor “interseccionalidade”. As pesquisas foram analisadas em relação à
quantidade de publicações por ano, gênero e raça dos pesquisadores, e uso da interseccionalidade
em diferentes contextos. Adentrando a discussão interseccional para o encarceramento em massa
de mulheres negras, apresenta-se um panorama das prisões femininas, análise instrumental de
indicadores do sistema prisional feminino e considerações sobre o Sistema Prisional Feminino
em uma perspectiva interseccional a partir de Angela Davis. Evidencia-se a potencialidade do
conceito interseccional na compreensão de vivências que atingem mulheres negras e outros
grupos marginalizados. Ademais, este conceito do feminismo negro surge como essencial na
discussão das opressões de gênero e raça que atingem a mulher em situação de cárcere.
Palavras-chave: Interseccionalidade. Encarceramento em Massa de Mulheres Negras. Mulheres
Negras.
ABSTRACT
This is a theoretical study with a qualitative approach, and contributions in black feminism,
which, when considering that there is no hierarchy between the practices of oppression
experienced by women, recognizes the urgency of analyzes and reflections on the mass
incarceration of black women. The context to be studied, and the theoretical option in Brazilian
and North American black feminists, have leapfrogged the interest in a more detailed study of
one of the concepts of this social movement, which guided by the invisibility of black woman
agenda in feminist debates and on the race debates, proposes intersectionality. At the stage of the
research that is dedicated to the understanding of this concept, historical discussions were
conducted evidencing that black women were affected by intersectional discrimination even
before the concept was outlined by Kimberlé Crenshaw in the 1980s. Presented here are the
theoretical discussions of the concept from this North American feminist, Brazilian woman and
others who collaborate in the theoretical impetus of intersectionality as analytical sensibility
capable of taking from invisibility groups crossed by different practices of oppression. Also, in
this discussion, there is a bibliographical survey in the thesis and dissertation bank of CAPES
(Coordination of Improvement of Higher Level Personnel) amid the years 2005 and 2015 with
the descriptor: intersectionality. The researches analysis regarded the number of publications per
year, gender and race of the researchers, and the use of intersectionality in different contexts.
Entering the intersectional discussion for the mass incarceration of black women, it presents an
overview of women's prisons, an instrumental analysis of indicators of the female prison system,
and considerations on the Women's Prison System from an intersectional perspective coming
from Angela Davis. It evidences the potentiality of the intersectional concept in the
understanding of experiences that affect black women and other marginalized groups. Moreover,
this concept of black feminism arises as essential in the discussion of the oppression of gender
and race that affect women in prison.
Keywords: Intersectionality. Mass Imprisonment of Black Women. Black Women.
RESUMEN
Se trata de un estudio de cuño teórico y abordaje cualitativo, con aportes en el feminismo negro,
que al considerar no haber jerarquía entre las prácticas de opresión vivenciadas por mujeres,
reconoce la urgencia de análisis y reflexiones sobre el encarcelamiento masivo de mujeres
negras. El contexto a ser estudiado y la opción teórica en feministas negras brasileñas y
norteamericanas, apalancar el interés en un estudio más profundo sobre uno de los conceptos de
este movimiento social, que orientado por la invisibilidad de pautas de la mujer negra en los
debates feministas y en los debates de raza, propone la interseccionalidad. En la etapa de la
investigación que se dedica a la comprensión del concepto de interseccionalidad, se realizaron
discusiones históricas que evidencian que las mujeres negras eran afectadas por las
discriminaciones interseccionales incluso antes del concepto ser delineado por Kimberlé
Crenshaw en la década de 80. Se presentan aún las discusiones teóricas del concepto a partir de
esta feminista norteamericana, brasileñas y otras que colaboraron en el impulso teórico de la
interseccionalidad como sensibilidad analítica capaz de sacar de la invisibilidad a grupos
atravesados por diferentes prácticas de opresión. En esta discusión, se encuentra levantamiento
bibliográfico en el banco de tesis y disertaciones de la CAPES (Coordinación de
Perfeccionamiento de Personal de Nivel Superior) entre los de 2005 y 2015 con el descriptor
"interseccionalidad". Las investigaciones fueron analizadas en relación a la cantidad de
publicaciones por año, género y raza de los investigadores, y uso de la interseccionalidad en
diferentes contextos. En el marco de la discusión interseccional para el encarcelamiento masivo
de mujeres negras, se presenta un panorama de las prisiones femeninas, análisis instrumental de
indicadores del sistema penitenciario femenino y consideraciones sobre el Sistema prisionero
Femenino desde una perspectiva interseccional a partir de Angela Davis. Se evidencia la
potencialidad del concepto interseccional en la comprensión de vivencias que afectan a mujeres
negras y otros grupos marginados. Además, este concepto del feminismo negro surge como
esencial en la discusión de las opresiones de género y raza que alcanzan a la mujer en situación
de cárcel.
Palavras clave: Interseccionalidad; Encarcelamiento en massa de mujeres negras; Mujeres
Negras.
Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor
em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as
estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o
genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras.
Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado
com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o
poder do amor. O amor cura.

bell hooks
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Produções por ano ....................................................................................................... 72
Gráfico 2 - Produções Tese por Gênero ........................................................................................ 76
Gráfico 3 - Produções Dissertações por Gênero ............................................................................ 76
Gráfico 4 - Docentes doutores na pós-graduação .......................................................................... 80
Gráfico 5 - Produções por grandes áreas ....................................................................................... 84
Gráfico 6 - Homicídios de mulheres por raça.............................................................................. 124
Gráfico 7 - Presas por Etnia......................................................................................................... 142
Gráfico 8 - Perfil Racial Nacional ............................................................................................... 143
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Encontros de Mulheres e Feministas Brasileiros e Latino-Americanos ...................... 34

LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Vias de intersecção Crenshaw ...................................................................................... 56
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS

GGB - Grupo Gay da Bahia


CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
DEPEN - Departamento Penitenciário
EduCárceres - Núcleo de investigação e práticas em educação nos espaços de restrição e privação
de liberdade
ENMN - Encontro Nacional de Mulheres Negras
FUNAP - Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel
GSU - Georgia State Universtiy
INFOPEN - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros
LGBTTT - Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros
MM - Movimento de Mulheres
NEAB/UFSCar - Núcleo de Estudos Afro-brasileiros/Universidade Federal de São Carlos
PAR - Participador Cátion Research
PPGE /UFSCar - Programa de Pós-Graduação em Educação/Universidade Federal de São Carlos
PROEXT - Projeto de Extensão
UFSCar - Universidade Federal de São Carlos
VCM - Violência Contra Mulher
Sumário
APRESENTAÇÃO E TRAJETÓRIA ................................................................................. 15
i) Trajetória ........................................................................................................................ 15

ii) Experiência de intercâmbio ........................................................................................... 20

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 27
O projeto de doutorado/ Divisão do estudo ....................................................................... 27

1. Feminismo Negro ......................................................................................................... 30


1.1 Breve panorama das ondas feministas no Brasil ......................................................... 30

1.2 As influências do Feminismo Negro no Brasil ............................................................ 34

2. O CONCEITO DE INTERSECCIONALIDADE ........................................................... 46


2.1 Percursoras da interseccionalidade .............................................................................. 47

2.2 Perspectivas da Interseccionalidade............................................................................. 51

3. ESTADO DO CONHECIMENTO EM INTERSECCIONALIDADE ........................... 64


3.1 O perfil das pesquisadoras e dos pesquisadores .......................................................... 72

3.2 Ações afirmativas e o status das pesquisadoras ........................................................... 78

3.3 A interseccionalidade nas pesquisas acadêmicas (2005-2015).................................... 83

3.4 As facetas das análises interseccionais ...................................................................... 123

4. INTERSECCIONALIDADE E O ENCARCERAMENTO DE MULHERES NEGRAS


........................................................................................................................................... 127
4.1 Processos históricos da punição no Brasil ................................................................. 129

4.2 Análise documental de indicadores raciais do sistema prisional feminino brasileiro134

4.3 Encarceramento em massa de mulheres negras ......................................................... 148

CONSIDERAÇÕES .......................................................................................................... 157


REFERÊNCIAS................................................................................................................. 165
ANEXOS ........................................................................................................................... 175
15

APRESENTAÇÃO E TRAJETÓRIA

i) Trajetória

Este estudo se configura a partir de fragmentos de teorias e vivências pertencentes a mim


ou não. Por ser tal e qual, teorias e vidas, não há melhor forma de iniciar o estudo senão em
narrar e refletir como vivências pessoais integraram a construção deste estudo e como a
construção deste estudo tem me integrado enquanto sujeito1.
Uma introdução em que me apresento à leitora e ao leitor que por algum motivo se dispõe
a dialogar com algumas de minhas reflexões de quem eu sou, permite clareza de historiar mais do
que uma trajetória pessoal, mas também expor o itinerário de desenvolvimento da pesquisa. Pelas
vias permitidas, transito nesta etapa por uma linguagem menos protocolar, mais poética e em
primeira pessoa, como busco fazer na jornada da vida mesmo frente à tantas imposições. Sou
mulher, negra, feminista, educadora, temerosa e sonhadora. Narrar como tomei para mim estas
identidades explica muito do que é este estudo.
Inicio contando que o que guardo da infância são, em grande medida, alegres recordações
em relação àquela época infância e adolescência. Sou filha de Maria José, mãe branca e Carlos
Alberto, pai negro, com um irmão mais velho, Gustavo, também negro. Compreendo hoje que ser
fruto de uma família inter-racial é matriz em minha construção pessoal.
Meu maior contato familiar sempre foi mais intenso com a parte materna, que é branca,
nas festividades de natal, comemoradas de modo tradicional católico com reencontro e união de
meus avós com os filhos e netos; em uma família com cinco tios e uma quantidade considerável
de primos, quase sempre os negros da festa eram eu, meu pai e meu irmão. Os conflitos raciais
não eram tão perceptíveis, embora seja inegável que estivessem presentes, quando a maior parte
do tempo era na convivência familiar que se fazia intensa.
Meus pais, ainda que com infâncias marcadas pela pobreza, ascenderam economicamente
e tinham condições financeiras para me garantir o privilégio de boa alimentação, lazer, saúde e
escolas particulares por quase todo o período de escolarização. Com experiências escolares nestes
colégios, o círculo de amigos e professores também era, em sua maioria, branco. Estas

1
Cada vez que retomava as escritas desta introdução refazia algum trecho de forma diferente, ainda que se tratasse
sobretudo de uma narração da minha trajetória. Teorizava não só o que escrevia, mas também o que vivia e o modo
de perceber o que vivi.
16

convivências fizeram com que eu não tivesse quase nenhuma referência de negritude e, além
disso, meu pai também não se “percebia” como negro. Ele me conta que somente com meu
interesse pela temática racial e com as discussões que eu levava do âmbito acadêmico para a
esfera familiar foi que ele se reconheceu como negro, compreendendo assim com mais clareza
sua posição nos lugares que vivenciava.
Antes disso, meu pai estava, assim como eu estive, vendado na percepção da atuação do
mito da democracia racial e do discurso da mestiçagem em nossas vivências – sem acesso à
convivências e conhecimentos que me permitissem identificação racial.
É processual e penso que seja também progressiva a tomada de consciência sobre minha
identidade de mulher negra. Quando analiso minha identificação tardia com minhas origens,
compreendo o conflito de ser mestiça em um país que faz uso do racismo disfarçado para manter
a exploração e opressão, “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas
tornar-se negra é uma conquista” (GONZALEZ, 1988, p. 2).
Os pensamentos da infância e adolescência eram sobre minha não escolha em ser negra e
um processo de autoenganação de que eu poderia escolher afirmar ou negar minha negritude na
sociedade. Eu vivia em espaços brancos e ainda que tenha pele escura, meu nariz é fino e meu
cabelo, crespo, quando natural forma cachos, o que me renderam elogios como: “ela é negra, mas
é tão bonita”. A questão é que meus privilégios econômicos e o meu tom de pele e traços
embranquecidos me “beneficiaram” na ilusão de que ser negra pudesse ser uma escolha.
Neste processo de falta de identificação, meus modelos eram brancos e por isso sempre
idealizei cabelos lisos. Desde os nove anos fiz uso de produtos químicos capilares que me atraíam
por qualquer ligação com a palavra “alisamento”. Não importava o que fosse nem o dano que
pudesse causar à saúde dos meus fios e do meu corpo: tioglicolato de amônio, amônia e formol
me mantiveram longe das raízes que eu temia tanto em negar.
Quando ingressei na UFSCar em 2008 o contato com o espaço, o público e a teoria
acadêmica me tiraram da minha zona de conforto. Eu já não era a única negra, existiam pessoas
que afirmavam a negritude nos meus espaços de convívio e eu era levada a problematizar algo
que estava silenciado: eu era negra?
Soa estúpido repetir esta pergunta nos meus dias de hoje, mas não o foi no final da
graduação quando tive minhas primeiras aproximações com leituras sobre raça e racismo no
contexto escolar em uma disciplina com a Profa. Dra. Roseli Rodrigues de Mello. No final da
17

aula sentei para conversar com uma das amigas mais próximas da sala, Vanessa, e rimos, em um
misto de descoberta e desespero, quando percebemos que tínhamos nos encontrados naqueles
relatos de racismo de crianças em fase escolar, algo que também havíamos vivenciados, mas que
nunca nos foi apresentado como tal.
Percebi que ser negra não era uma escolha e sim uma condição. Encontrei nessa condição
caminhos para a afirmação e para o amor-próprio. Percebia algo imutável e que não queria
mudar, e na impossibilidade eminente em se lutar contra o que se é, e no desejo latente de ser o
que eu era, ainda que com curtos passos, decidi me engajar na militância dos movimentos pelos
meus pares.
Instigada por este primeiro contato com a temática racial, realizei inscrição na disciplina,
ainda optativa para minha grade curricular, “Didática das relações étnico-raciais”, da Profa. Dra.
Sonia Stella Araújo Oliveira. A discussão central era a partir do filósofo argentino e um dos
maiores expoentes pensadores da filosofia da libertação, Enrique Dussel, sobre eurocentrismo e a
criação da categoria outro como aquela que não surge naturalmente no percurso da história de
construção das sociedades, e sim faz parte de um processo ideológico de poder.
Compreendi as teorias raciais na perspectiva de autores latino-americanos, e tive contato
com uma obra de Nilma Lino Gomes que me despertou um interesse imediato pelas discussões
sobre o significado da estética no campo das relações étnico-raciais.
Finalizei a graduação e tive meu projeto de mestrado aprovado em 2012, no
PPGE/UFSCar, na linha Práticas Sociais e Processos Educativos. O estudo materializado em
dissertação com o título “Mulheres negras e seus cabelos: um estudo sobre questões estéticas e
identitárias” trazia como objetivo compreender de que forma o cabelo marca a construção de
identidade na trajetória de vida da mulher negra. Tratou-se de uma pesquisa de campo, tendo
como instrumentos metodológicos a observação com registros em diários de campo, entrevistas e
uma roda de conversa.
O processo de mestrado é substancial no que me fundamenta como pesquisadora. A
escolha pela temática racial com foco na estética de mulheres negras poderia ser sobre mim, mas
eu não me via como uma das minhas colaboradoras de pesquisa. Foi somente com os estudos
teóricos aplicados nas falas destas mulheres que me percebi como elas, e assim compreendi que o
estudo também era uma autodescoberta.
18

Entendi o que era pesquisar sobre uma realidade social que me atingia, e me permiti um
novo modo de ver/entender e agir na sociedade – desde então, realizar pesquisa acadêmica tem
corroborado no meu processo de autotransformação e na tentativa de colaborar para as práticas
que visam a transformação da sociedade a partir da ruptura de suas desigualdades e injustiças.
Na pesquisa contei com cinco colaboradoras negras que adotavam diferentes formas de
manipulação de seus cabelos (alisado, trançado, natural); seus nomes: Irene, Dandara, Jéssica,
Monalisa e Thulany. Nos encontros realizamos entrevistas semiestruturadas para compreender as
relações que estas estabeleciam com seus cabelos desde a infância.
Além destas colaboradoras, entrevistei também Silas Dias, cabelereiro e proprietário do
salão Raízes Black Power2, um dos poucos identificados na época da pesquisa voltado
especificamente para os cuidados de cabelos crespos e cacheados na cidade de São Carlos/SP. As
vivências neste salão me permitiram compreender aquele espaço como possibilidade de cuidado,
valorização e exaltação da beleza negra. As conversas e os estudos que vinha realizando me
ensinavam sobre as diferentes histórias dos cabelos – o cabelo como símbolo de resistência e
ancestralidade.
Encorajada por estas experiências bem como pelos estudos da obra “Sem perder a raiz:
corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, de Nilma Lino Gomes (2008)3, a dissertação
de mestrado de Aline Lemos da Cunha (2005)4 serviu como inspiração teórica e metodológica, e
tantas outras leituras me inspiraram e motivaram para percorrer o processo político de transição
do cabelo alisado para o cabelo natural. O cabelo, enquanto símbolo estético que permeia
processos políticos, evidencia a ligação com histórias de luta e resistência de nós, mulheres
negras.
Os resultados da pesquisa de mestrado apresentados na dissertação defendida em 2016
desvelaram experiências do racismo que ultrapassavam as discriminações em relação à estética
da mulher negra. Os focos de discussão, estabelecidos após as entrevistas, levaram ao debate a
infância da menina negra, as relações familiares, o contexto escolar e de trabalho e também a

2
Localizado na cidade de São Carlos/SP.
3
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
4
CUNHA, Aline Lemos da. Narrativas entrelaçadas: conversando sobre leituras e lembranças de escola com
mulheres que se “encontram” em um Salão de Beleza de Cultura Afro. 2005. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2005.
19

hipersexualização de seus corpos. Aprendi sobre vivências de opressão diária e cotidiana, e


principalmente sobre enfrentamentos e lutas que são travadas por tantas mulheres negras.
Quando retomo muitas das reflexões em minha dissertação identifico lacunas que
evidenciam alienações que ainda não havia rompido na época daquela produção. Tratava-se de
meu contato inicial com discussões sobre raça, e me vi tão envolvida com as opressões de
racismo que dei pouca importância para a identidade de gênero das colaboradoras da pesquisa.
Ainda que a banca tenha me alertado isso no exame de qualificação, percebo que apenas hoje,
com as compreensões advindas do Feminismo Negro, que na pesquisa sobre estética em mulheres
negras analisei os efeitos do mito da democracia racial sem trazer os questionamentos que
lançavam as análises para além do visível: “como a mulher negra é situada no seu discurso?5”.
Hoje percebo que a pesquisa, e que o reencontro à pesquisa a que constantemente me
proponho, é fator primordial na minha construção enquanto sujeito-mulher negra-pesquisadora.
Permito-me voltar ao texto de dissertação com olhar pautado nas teorias interseccionais,
complexificando as análises realizadas.
Estava envolvida com a temática racial até porque ela estava me ensinando sobre minha
posição no mundo, e o contato com outras leituras me fazia querer entender mais, ir mais fundo,
habitar lugares de conhecimento que não considerava. A fase final de mestrado foi quando eu
assimilava os conhecimentos que defendia. Eu lia, conversava, escrevia, me via e sofria de novo
quando retomava minhas escritas: eu escrevia sobre minha identidade mesmo sem ter colocado
isto como objetivo no meu projeto de mestrado.
Passei por uma crise psicológica que acarretou na minha primeira depressão, porque
precisava defender o que de fato ainda estava assimilando. É doloroso expor algo que ainda não
está pronto em você. Eu defendi minha dissertação sobre mulheres negras, e estava tentando
entender como me defender em um mundo de homens brancos agora que podia dimensionar
minhas vulnerabilidades por ser mulher negra.
A idealização de um projeto de doutorado sobre encarceramento de mulheres negras
ocorreu no ano final do mestrado com a participação no EduCárceres (Núcleo de investigação e
práticas em educação nos espaços de restrição e privação de liberdade), coordenado pela Profa.
Dra. Elenice Maria Cammarosano Onofre.

5
Discussões realizadas por Gonzalez (1988).
20

Senti-me intrigada nas primeiras aproximações com pessoas que não só estudavam os
espaços prisionais como também eram atuantes dentro deles. A possibilidade de vivenciar os
estudos e práticas do grupo me fez pensar na premência de educadores/as se dedicarem a
diferentes espaços, principalmente aqueles marginalizados e invisibilizados nas pesquisas
acadêmicas.
Com a participação neste grupo, iniciei em 2013 uma atividade específica junto ao
PROEXT (Projeto de Extensão) “Formação de Educadores e Gestores Educacionais para atuar
nas unidades prisionais paulistas”, em parceria como a Secretaria de Estado da Educação (SEE),
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) e a Fundação Dr. Manoel Pedro Pimentel
(FUNAP). O objetivo central deste projeto foi contribuir com a formação de educadores/as que
atuam no contexto prisional com vistas a promover alguns avanços nas práticas educativas que
acontecem nesses espaços.
Dentre as metodologias adotadas para alcançar este objetivo contamos com a realização
de Encontros Regionais para discutir diversas temáticas. Em um destes encontros fui mediadora
de uma mesa redonda com a temática “Diversidade e questões étnico-raciais no contexto
prisional”, e foi o momento que marcou o início das minhas reflexões sobre a relação entre
questões étnico-raciais e contextos de privação e restrição de liberdade. A discussão e reflexão
desta mesa foram esclarecedoras e despertaram atenção do público participante, composto por
educadoras e educadores que atuavam no sistema prisional e que demonstraram grande interesse
de aprofundamento pelas questões raciais.
As palestrantes responsáveis, Profa. Dra. Maria Walburga dos Santos e Profa. Dra.
Tatiana Cosentino Rodrigues, provocavam duas questões centrais sendo a primeira sobre a
população encarcerada formada majoritariamente por negros, e a segunda sobre a carência de
estudos e pesquisas que discutiam esta realidade. A palestra foi como um gatilho para a criação
de um projeto de doutorado que fosse capaz de explorar duas questões que me envolviam: cárcere
e mulheres negras.

ii) Experiência de intercâmbio

Neste transitar pelo tempo de doutorado tive a oportunidade de experienciar outro espaço.
Desde o mestrado tive a curiosidade de sair do país e de complexificar os olhares a partir de
outras vistas. Em 2017 tive a oportunidade de ser bolsista CAPES no Programa de
21

Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento6, promovido pelo Núcleo de Estudos Afro-


Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos NEAB/UFSCar7.
Tal programa “destina-se à estruturação, ao fortalecimento e à internacionalização dos
Programas de Pesquisa e de Pós-Graduação por meio da mobilidade docente e discente
internacional”, promovendo intercâmbio acadêmico entre instituições de pesquisa e ensino
superior no Brasil e no exterior atendendo, preferencialmente, candidatos autodeclarados pretos,
pardos, indígenas e pessoas com necessidades especiais8.
Por meio deste programa vivenciei o intercâmbio entre os meses de abril a outubro de
2017, na cidade de Atlanta (EUA). A pesquisa do Programa não trazia a especificidade da
discussão do Feminismo Negro, nem mesmo de cárcere, mas propunha a ampliação de olhares a
partir das vivências acadêmicas experenciadas. Desta forma, estar na Georgia State University
(GSU) foi, de fato, traço importante em minha trajetória e, portanto, faz parte da construção desta
pesquisa.
Fui discente durante um período na disciplina Social Justice and Student Success,
ministrada pela Dra. Joyce King. A disciplina é parte de um programa maior intitulado “Social
Justice & Student Success Program”, que conta com a parceria de vários centros9.
A proposta da disciplina é o uso da Participatory Action Research (PAR) para entender o
clima de justiça social e seu impacto no sucesso dos alunos na GSU. Trata-se de uma experiência
interativa online, em larga escala, para preparar as equipes de pesquisa de estudantes e
faculdades.
Estar inserida neste programa e cursar esta disciplina trouxe ganhos para além do
conteúdo ministrado, pois permitiu reflexões sobre possibilidades de práticas educativas na
academia, buscando fazer com que este espaço seja cada vez mais inclusivo não só em relação à
parte quantitativa, mas principalmente qualitativa.

6
Estabelecido por meio de parceria entre a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão do Ministério da Educação (Secadi/MEC) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
7
O NEAB/UFSCar estabeleceu projetos conjuntos de pesquisa com as instituições Universidad Distrital Francisco
José de Caldas (Colômbia), Geogia State University (EUA) e Université Paris Ouest Nanterre La Défense (França).
8
Portaria do MEC Nº 1.129, de 17 de novembro de 2013.
9
Centro de Excelência em Ensino e Aprendizagem (CETL) da GSU, Colégio de Educação e Desenvolvimento
Humano (CEHD), Departamento de Estudos de Políticas Educativas, Alonzo Crim Center (Educação Urbana) e o
Dean’s Office-School, Southern Education Foundation (SEF)
22

O grupo de docentes era bastante heterogêneo10; Dra. King era responsável pela
disciplina, mas as aulas eram ministradas por professores e professoras de diversas áreas, o que
evidenciou que com uma temática geral podemos nos aproximar a diversas áreas de
conhecimento – compreendo como um caminho para não nos limitarmos a disciplinas específicas
para discutir as injustiças sociais e trilhar percursos para mudança.
O tema central era justiça social e sucesso do estudante – não se trata, então, de uma
disciplina voltada especificamente para a questão racial, embora esta perpasse por todo o
discurso. Tal postura metodológica se aproxima das reflexões interseccionais que são discutidas
nesta pesquisa, ao não hierarquizar as opressões, e alicerçar uma disciplina pautada nas esferas de
dominação que atingem alunos da GSU, impedindo o sucesso estudantil e a justiça social.
Quando Dra. King convida especialistas de diversas áreas, possibilitando
compartilhamento de espaço e ideias com alunos, funcionários e professores sobre o que é justiça
social bem como sucesso estudantil, revela-se a necessidade de mudarmos a visão sobre os
conteúdos que utilizados e também sobre as formas que discutimos as opressões sociais. Na
disciplina, referenciou-se inúmeras vezes, como analogia, ao caleidoscópio, para
compreendermos que para sermos mais inclusivos e termos uma educação libertadora precisamos
renovar constantemente nossos olhares.
Como proposta de trabalho, que amplia as possibilidades de discussão do papel da
universidade para justiça social, a referida disciplina discute a aplicação da pesquisa participativa
(PAR), que permite aos estudantes uma análise crítica do significado de justiça social e o sucesso
dos alunos na GSU.
Os alunos selecionarão um foco de pesquisa, realizarão um projeto piloto de
pesquisa participativa orientado a ação e você aprenderá como aplicar pesquisa
de qualidade para sua comunidade mais ampla. Os projetos de pesquisa de classe
serão conduzidos como um estudo PAR piloto com orientação de um
patrocinador da Faculdade e com o envolvimento de um “Parceiro de
Aprendizagem Comunitário”. Os projetos de pesquisa de classe serão
combinados e arquivados em formato digital como parte do Museu Vivo on-line
do curso. Este curso foi concebido para estudantes interessados em advocacia,

10
Os responsáveis da universidade e os palestrantes convidados eram: Dr. James Ainsworth (Sociologia), Dr.
Makungu Akinyela (Estudo afro-americanos), Dr. Amanda Assalone (Southern Education Foundation), Dr. Jonathan
Gayles (Estudo afro-americanos), Dr. Janice Fournillier (Estudos de políticas educacionais/ métodos de pesquisa),
Dr. Dhanfu E. Elston (Complete College America), Dr. Carmen Kynard (English Department John Jay College,
CUNY), Dr. Gholnescar “Gholdy” Muhammad (Middle/Secondary Education), Dr. Timothy Renick (Vice
Provost/Vice President for Enrollment Management & Student Success), Dr. Akinyele Umoja Chairman (African
American Studies), Dra. Angela Valenzuela (Univ. of Texas, Austin), Dra. Joyce King e Dra. Valora Richardson.
23

política, alfabetização digital, mudança organizacional e pesquisa (GSU, 2017 –


traduzido pela autora).
Enfrentando ainda o obstáculo linguístico, com o assentimento da Dra. King, apresentei
meu trabalho final em formato de vídeo11, no qual a partir de fotos, trechos de notícias, dados
estatísticos e recortes textuais desenvolvi uma linha de argumentação sobre como o
conhecimento a respeito de prisões brasileiras, ao promover o sucesso do estudante, pode
conduzir a uma sociedade mais justa.
A temática que escolhi para este projeto de pesquisa foi “The knowledge about Brazilian
prison in the promotion of social justice and student success12”. O vídeo se inicia com os
questionamentos “quem eu sou” e “por que eu estou aqui”, que se referem ao estudo de Angela
Valenzuela (2017), referencial teórico obrigatório da disciplina.
Valenzuela et al. (2017) discutem em sua obra que os aprendizes de inglês são melhor
atendidos educacionalmente quando recebem instruções da área de conteúdo culturalmente
relevantes em seu primeiro idioma. Os autores relatam uma experiência de aprendizado a partir
de práticas de manutenção e sobrevivência cultural. Neste currículo estão presentes lições sobre
migração, direitos civis, patrimônio indígena, artes culturais e história local latino-americana,
principalmente as de origem mexicana. Desenvolve-se uma prática educativa valorativa sobre
patrimônio indígena, artes culturais e dança/cerimônia asteca.
A partir desta leitura, e da aula expositiva que tivemos com os autores, busquei inserir no
vídeo reflexões sobre como o contato com o outro não altera quem somos, mas nos permite
expandir nossa visão. Esta perspectiva nos possibilita compreender autenticamente o conceito de
Ubuntu, “eu sou porque nós somos e porque nós somos, consequentemente eu sou”.
A apresentação deu sequência com uma citação de Audre Lorde (1984, p. 137): “If I didn't
define myself for myself, I would be crunched into other people's fantasies for me and eaten
alive13.” A partir desta reflexão aponta-se a importância de termos uma história sobre nós
mesmos, para que outros não a façam de forma autoritária e opressora.

11
Disponibilizado na plataforma do Youtube.
12
O conhecimento sobre prisão brasileira na promoção da justiça social e sucesso do estudante (traduzido pela
autora).
13
“Se eu não me definisse para mim mesmo, eu seria crucificado nas fantasias de outras pessoas para mim e comido
vivo” (traduzido pela autora).
24

Quando Lorde (1984) problematiza que ao permitir que outros nos definam corremos o
risco de sermos crucificados nas fantasias de alguém, surge a necessidade de reconhecermos o
que foi exaustivamente discutido na disciplina: a história por trás da história.
A necessidade de se perceber que sempre existe uma história por detrás da história que
nos é narrada surgiu a partir dos dados que trazem a GSU como a faculdade que mais gradua
estudantes negros em todos os Estados Unidos.
De 2003 a 2015, de acordo com a universidade, sua taxa de graduação para estudantes
afro-americanos aumentou de 29% para 57%. Para estudantes hispânicos, passou de 22% para
54%. Em 2014, para estudantes de baixa renda (aqueles que são elegíveis para uma doação
federal de Pell), atingiu 51% – quase o mesmo que para estudantes não-Pell. Sua taxa de
graduação para estudantes de primeira geração aumentou 32% entre 2010 e 2014. E a GSU
aumentou essas porcentagens ao mesmo tempo em que aumentou em 10% o número de
estudantes negros, hispânicos e de baixa renda (GSU, 2017).
O questionamento que permeou as discussões na disciplina se relacionava ao que estes
dados significavam de fato – se o ingresso de estudantes negros garantia, por si só, uma
universidade mais inclusiva que permitisse o sucesso de seus estudantes, ou se outras ações eram
necessárias.
O que se evidenciou ao longo dos encontros, e que se apresenta nesta pesquisa, é a
impossibilidade de se pensar em sucesso estudantil enquanto não houver comprometimento
acadêmico com a justiça social. Neste caminho, o vídeo desenvolvido para a disciplina trouxe a
impossibilidade de pensar em justiça social, quando se invisibiliza qualquer população ou grupo,
dentro os quais destacamos a população carcerária brasileira que possui taxas de aumento
constante. A participação na disciplina corroborou para situar esta pesquisa na sua importância no
campo educacional.
A segunda experiência que tive durante o intercâmbio, que favoreceu a construção desta
tese, foi o trabalho14 em parceria com a Profa. Dr. Aisha Kareem.
O contato com esta professora fez da experiência nos EUA ainda mais sólida. Para
apresentar esta militante negra que inspira a produção desta pesquisa, apresenta-se trajetória
escrita por ela mesma.

14
Anexo 1.
25

[...] Dr. Aisha Kareem se aposentou como capelão muçulmana única no


Departamento de Correções do Estado da Califórnia. Com seu falecido marido,
que Deus perdoe seus pecados, como seu principal voluntário, eles trabalharam
juntos consistentemente para responder às necessidades das “mulheres em
cadeias”, que preservaram por probabilidades insuperáveis e, pela Licença do
Criador, elas surgirão da escuridão do encarceramento, e estaremos lá para
ajudá-los. A Dr. Kareem é uma educadora de justiça social que se concentrou na
equidade para estudantes racialmente e socialmente marginalizados. Em 1985,
ela fundou e dirigiu a Academia para o Desenvolvimento Humano, uma escola
residencial de capacitação de jovens para crianças de colocação fora de casa. Dr.
Kareem continua a apoiar a reunificação de crianças e mães decorrentes do
encarceramento em massa e identifica serviços de intervenção educacional para
estudantes com desafios especiais. Ela tentou estabelecer uma supervisão
internacional e uma fonte informática para um centro de educação de primeira
fase, para mulheres e crianças, localizado na África Ocidental, através de um
distrito escolar autônomo baseado nos EUA. Atualmente, Dr. Kareem atua como
Diretora Executiva da American Muslim 360 Radio Network, o braço de
transmissão da Community Wide Shuraa Conference (CWSC) ... “um lugar para
refazer o mundo” através das diversas vozes de nossos organismos de
radiodifusão voltados para a solução. Dr. A'isha Kareem é uma mulher do
condado de San Joaquin na história e uma Comissão de NY sobre o Status da
Mulher – Nomeada para o Prêmio Mulher de Distinção 2017 (ROSA, 2017).
A partir do exposto, compreende-se melhor a apresentação que se construiu em parceria
com a Dra. Kareem e participação de Cheauvon L. Brown15.
Elaborada com Power Point, contamos como recursos: dados da população carcerária
feminina brasileira, imagens do cárcere brasileiro, recortes textuais que foram obtidos a partir das
reflexões desenvolvidas durante o doutorado e diálogos com a educação a partir de experiências
educativas no Brasil nos Centros de Ressocialização Feminino16 e no Campus17 Avançado da
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), instalado dentro do presídio do Serrotão, em Campina
Grande, na Universidade de Serrotão.

15
Cheauvon L. Brown é formada em Direito e defende a justiça restauradora, social e criminal em eventos comuns
da comunidade e do estado da Califórnia-EUA. Ela também é fundadora e diretora executiva da Golden Blessings
Ministries, Inc. e de seu “WEM” (Women's Empowerment Movement), que organiza eventos e workshops para
ajudar a curar, educar e dar voz às mulheres por seus testemunhos de violência doméstica e abuso. Cheauvon é
apaixonado por curar, restaurar e transformar a vida das mulheres em nossa sociedade (Dados fornecidos por ela para
a apresentação no Annual Muslim Chaplain Training, 2017).
16
A modalidade prisional “Centro de Ressocialização” (CR), instituída pelo Governo do Estado de São Paulo em
2000, que prevê a unidade administrada mediante parceria entre o Estado e uma ONG, consiste em si em uma prática
funcional, haja vista os resultados positivos expressos pelo baixo índice de reincidência, sete vezes e meio menor que
o do sistema prisional tradicional (Ministério da Justiça e DEPEN, 2009).
17
O Campus Avançado da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) instalado dentro do presídio do Serrotão, em
Campina Grande, foi inaugurado em 2013. Experiência inédita no Brasil, o Campus Avançado aponta a educação e a
cultura como instrumentos de ressocialização do apenado, desenvolvendo atividades acadêmicas, pedagógicas e
culturais.
26

Tais dados foram acrescidos de material fornecido pela Dr. Kareem, que continham os
números da população carcerária feminina dos Estados Unidos, recortes do CWSC Resolution on
Criminal Justice and Drug Policy Reform e reflexões a partir de fundamentos da religião
islâmica.
Com o compartilhamento de boas práticas, o objetivo da apresentação foi oferecer
melhores condições para mulheres encarceradas. A carta de agradecimento recebida do Muslim
American Chaplains Association sobre este vídeo apontou que o esforço conjunto forneceu aos
capelães melhores práticas informadas, permitindo às mulheres encarceradas uma reentrada bem-
sucedida na sociedade.
A possibilidade de discussão com uma pesquisadora norte-americana sobre o
encarceramento em massa de mulheres nos EUA e Brasil permitiu entender que não se trata de
realidades tão diferentes, e que a troca de informações é um rico caminho para a transformação
deste cenário.
Desta forma, estas duas experiências foram fundamentais para a produção desta tese, pois
permitiram o desvelamento da importância da presente pesquisa no campo educacional e também
compreensão de que diálogos entre realidades distintas é positiva na construção de conhecimento.
27

INTRODUÇÃO

O projeto de doutorado/ Divisão do estudo

O projeto inicial enviado para ingresso no doutorado trazia como objetivo desvelar quais
eram os impactos das identidades de raça e gênero na vivência de mulheres encarceradas.
Tratava-se de um estudo de campo que teria como instrumento metodológico entrevistas com
mulheres em situação de cárcere.
Na tentativa de se definir descritores para a pesquisa bibliográfica da pesquisa, utilizando
os termos “mulher”, “negra” e “prisão”, os resultados eram bastante escassos, mas estes se
tornavam mais numerosos ao se inserir como busca “mulher” e “prisão” ou “prisão” e “negros”.
Esta busca inicial evidenciou uma possível lacuna nos estudos que traziam simultaneamente
gênero e raça no sistema prisional.
Aliado a isso, na etapa inicial do doutorado com participação nas disciplinas e leituras
para fundamentação teórica do projeto, foi possível ter contato não só com os autores/as
apresentados/as pelo programa como também com outras leituras, que trouxeram o interesse de
redesenhar o projeto inicial.
Houve então aproximação com o movimento feminista negro e as leituras advindas deste
movimento que trouxeram a interseccionalidade como conceito primordial na discussão de
identidades que se sobrepõe em contextos marcados por violência. Partindo da necessidade de
maior dedicação sobre este conceito, houve a opção por uma pesquisa teórica em detrimento à
pesquisa de campo, que se apresentava no projeto inicial.
Desta forma, o que aqui se apresenta é um estudo teórico que estrutura-se em ao menos
três aspectos que se interligam: a) compreensão do conceito de interseccionalidade dentro do
movimento que o origina, o Feminismo Negro; b) levantamento bibliográfico em banco de
dissertações e teses sobre a perspectiva interseccional para se compreender a recepção do
conceito por pesquisadoras/es brasileiras/os; c) reflexões sobre o sistema prisional feminino a
partir de documentos indicadores e de pesquisas na perspectiva interseccional.
Buscou-se responder duas questões centrais:
Quais os avanços da interseccionalidade nas pesquisas brasileiras entre os anos de 2005
e 2015?
28

Quais as contribuições da perspectiva interseccional para os estudos sobre o


encarceramento de mulheres negras?
Esta tese se divide, além desta Introdução, em mais quatro capítulos e o capítulo de
considerações finais.
No primeiro capítulo, intitulado “O Feminismo Negro”, apresenta-se a trajetória histórica
do feminismo, evidenciando os processos de articulação deste movimento a partir do
reconhecimento de experiências plurais. Problematiza-se a deficiência do movimento feminista
que se funda a partir de concepções universalizantes da mulher desconsiderando outras opressões,
como raça e classe social. Ainda neste capítulo, discute-se o fortalecimento do Feminismo
Negro, enquanto movimento social protagonizado por mulheres negras que lutavam por
visibilidade às suas pautas e reivindicação de seus direitos. Desenrolam-se reflexões que
deslindam o porquê de o feminismo negro no Brasil chegar de forma tardia em relação aos
estudos dos Estados Unidos, e como se deu o intercâmbio intelectual do movimento nestes dois
contextos. O objetivo deste capítulo inicial é compreender o Feminismo Negro enquanto
movimento social que deu origem ao conceito de interseccionalidade.
Por conseguinte, no segundo capítulo apresenta-se uma conceituação teórica da
interseccionalidade, a partir de seu surgimento com mulheres negras militantes que já
denunciavam a ausência do debate racial nas pautas feministas, mas ainda não haviam feito a
conceituação do termo. Posteriormente há a conceituação da interseccionalidade a partir de
Kimberlé Crenshaw (1989; 2015), perpassando por Avtar Brah (2006), Helena Hirata (2014), e
também pelo estudo de Patrícia Mattos (2011).
A fim de compreender a recepção deste conceito nos estudos brasileiros e também em que
medida as pesquisas interseccionais vêm se preocupando com o encarceramento em massa de
mulheres negras, apresenta-se no terceiro capítulo levantamento bibliográfico com o conceito de
Interseccionalidade. Trata-se de levantamento realizado no banco de teses e dissertações da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior18 (CAPES) a partir do recorte
temporal 2005 – 2015.
A primeira parte do capítulo apresenta análises da variabilidade das publicações dentro
deste período e também sobre o perfil de raça e perfil de gênero das pesquisadoras/es.

18
O Banco de Teses da CAPES é o sistema online oficial do governo brasileiro para depósito de teses e dissertações
brasileiras, vinculado ao Ministério da Educação (MEC).
29

Posteriormente as análises se concentram no conteúdo das produções, e examina quais os


grupos/ações estudados em cada publicação. O objetivo é compreender quais as ampliações do
conceito de interseccionalidade que surge no bojo da experiência de mulheres negras e se
consolida teoricamente pelo feminismo negro. Para melhor compreensão das discussões deste
levantamento optou-se pela divisão das produções em grupos temáticos que ficaram assim
definidos: Interseccionalidade e Diversidade sexual; Interseccionalidade e Violência Contra
Mulher; Interseccionalidade e Saúde; Interseccionalidade e Práticas organizadas de militância;
Interseccionalidade e Movimentos Artísticos; Interseccionalidade e Intergeracionalidade;
Interseccionalidade e Relações de Trabalho; Interseccionalidade, Direito e Encarceramento e
Interseccionalidade e Deficiência.
No quarto capítulo, buscando responder à segunda questão deste estudo, “quais as
contribuições da perspectiva interseccional para os estudos sobre o encarceramento de mulheres
negras?”, há uma dedicação especial à interseccionalidade das opressões de gênero e raça no
sistema prisional feminino. A discussão se dá a partir da contextualização histórica da criação do
sistema criminal brasileiro como forma de garantir o controle social da população negra, gerando
a manutenção de um esquema baseado em hierarquias raciais. Posteriormente, para adentrar na
especificidade do encarceramento feminino, apresenta-se análise documental dos indicadores do
sistema prisional feminino brasileiro entre os anos de 2007 e 2014, focalizando a
presença/ausência dos perfis raciais das mulheres encarceradas. O fechamento deste capítulo
discute algumas possibilidades de análises interseccionais com base na compreensão do conceito
de interseccionalidade proporcionada por meio do levantamento bibliográfico e do levantamento
de indicadores do sistema penal.
30

1. Feminismo Negro

Os percalços de violação de direitos da mulher negra fazem parte de um passado ao qual


se compartilha o fato de ter sido uma atrocidade inaceitável, mas não se estende às discussões
sobre os efeitos desastrosos que produziu para mulheres negras. O primeiro ponto a se destacar é
que a identidade brasileira se inicia com a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos
contra mulheres negras e indígenas – a formação nacional brasileira é marcada por violência
sexual colonial (CARNEIRO, 2003).
São necessários questionamentos que problematizem mais do que a maneira como as
relações de raça e gênero se construíram, já que na verdade elas sempre o foram e apenas
permanecem sendo (GONZALES, 1984). A mulher negra que teve seu corpo associado ao
trabalho, violência e sexo no período da escravidão, ainda o tem – agora em ações específicas do
nosso contexto que precisam ser denunciadas pelas produções interseccionais.
Há de se destacar o apontado por Djamila Ribeiro (2018) de que o Feminismo Negro
surge objetivando romper a cisão de sociedade desigual; trata-se de um repensar dos projetos e
dos marcos civilizatórios. “Fora isso, é também divulgar a produção intelectual de mulheres
negras, colocando-as na condição de sujeitos e seres ativos que, historicamente, vêm pensando
em resistências e reexistências” (RIBEIRO, 2018, p. 14).
Apresenta-se neste capítulo o percurso histórico do Feminismo Negro no Brasil, e as
pontes de diálogos estabelecidas com a teoria feminista negra norte-americana, discutindo os
percursos históricos que antecederam a conceituação teórica da Interseccionalidade pela
estadunidense Kimberlé Crenshaw no final da década de 80.

1.1 Breve panorama das ondas feministas no Brasil

Organizações de mulheres negras e organizações de mulheres brancas desenvolviam suas


estratégias pelas suas reivindicações por vezes de maneira alinhada, em outras em modo de
disputa a partir dos percursos traçados por cada grupo e também pelas pautas que se avaliavam
como indispensáveis. De fato, as identidades de raça e classe geram diferenças no status social,
no estilo e qualidade de vida que prevalecem sobre a experiência que as mulheres compartilham.
A problemática que se coloca é como transcender estas diferenças. Apresenta-se, então, um breve
panorama do percurso do movimento para que se compreenda dentro da pauta feminista a
31

inserção das opressões raciais que não poderiam ser combatidas em um movimento alheio à luta
contra opressões de gênero.
Em uma visão difundida, tem-se a constituição do que posteriormente seria chamado de
feminismo, à luta pelo sufrágio no contexto da Inglaterra do século XIX. Ao se considerar o
contexto social da Inglaterra neste período é possível compreender que:
Foi a percepção da sua ‘igualdade cristã’ que levou as mulheres a se
consciencializarem da sua desigualdade civil: se como cristãs tinham ‘almas
iguais’, como cidadãs deveriam ser, tal como os homens, também detentoras de
direitos naturais e inalienáveis. Foi esse despertar de consciência cívica que
dotou as mulheres dessa geração revolucionária do estímulo e coragem
suficientes para intervirem no domínio público, desafiarem as autoridades civis e
eclesiásticas, desobedecerem ao pai, irmão ou marido, escreverem, publicarem e
expressarem publicamente e de viva voz as suas crenças e opiniões, de teor
político, civil e teológico (ABREU, 2002, p. 451).
Tanto o movimento feminista quanto o abolicionista surgem em uma tradição cultural e
corrente ideológica advinda do desenvolvimento do pensamento teológico, filosófico e
constitucional britânico, sobretudo durante o período entre a Reforma da Igreja do século XVI e a
Revolução de Independência da América, que ocorreu em 1776 (ABREU, 2002).
Foi nos movimentos anarquistas e socialistas, e nas organizações sindicais que
surgiram na Grã-Bretanha durante o século XIX que as mulheres britânicas
recuperaram a experiência de mobilização, organização e activismo público
legada pelas suas precursoras seiscentistas – as levellers –, cuja militância
política em defesa das suas crenças, ideais e liberdades no período
revolucionário de meados do século XVII foi notável (ABREU, 2002, p. 453).
Denominada “primeira onda do feminismo”, esta etapa tem como marco a luta das
mulheres a fim de conquistar o direito de participar das decisões políticas, acesso à educação e
mais igualdade no casamento. Nesta época não havia o objetivo de se discutir a divisão sexual
dos papéis de gênero; as pautas do movimento “inclusive reforçavam esses papéis, estereótipos e
tradições na medida em que utilizavam as ideias e representações das virtudes domésticas e
maternas como justificativa para suas demandas” (COSTA, 2005, p. 56).
Neste período o Brasil experenciava mudanças sociais, políticas e econômicas com o fim
do sistema monárquico e a implantação do Regime Republicano. A urbanização do país se
acarretava em uma integração da mulher ao mundo do trabalho e do interesse delas por mais
acesso a espaços tido apenas como masculinos, dentre eles, a política. O movimento brasileiro
recebeu influências de movimentos sufragistas realizados, sobretudo, na Europa e nos Estados
Unidos.
32

Há um destaque para o pioneirismo do Brasil, pois as discussões sobre a “possibilidade de


se estender o voto para as brasileiras já ocorreram no final do século XIX, durante a feitura da
carta constitucional republicana, em um momento em que o voto para as mulheres não era
concedido em lugar algum do mundo” (KARAWEJCZYK, 2014, p. 71). No Brasil o marco deste
período é o surgimento da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, em 192219. Após a
conquista ao voto, o movimento se enfraquece em vários lugares.
A segunda onda do feminismo ocorreu entre as décadas de 1960 e 1980. Neste período no
Brasil ocorriam mudanças significativas nas estruturas sociais e de produção, nas questões
políticas e nas manifestações culturais e intelectuais. A luta da sociedade era contra o regime
ditatorial. O país vivia a massificação das informações e se ajustava aos padrões de consumo. As
informações começaram a ser facilmente propagadas por meio do rádio e da televisão.
[...] a consciência feminista latino-americana foi alimentada pelas múltiplas
contradições experimentadas pelas mulheres atuantes nos movimentos
guerrilheiros ou nas organizações políticas, por aquelas que foram obrigadas a
exilar-se, que participaram do movimento estudantil, das organizações
acadêmicas politizadas e dos partidos políticos progressistas (COSTA, 2008, p.
59).
Ao mesmo tempo em que resistiam à ditadura militar, as mulheres tinham que voltar suas
atenções para a expansão do mercado de trabalho e do sistema educacional. Os debates sobre os
comportamentos afetivos e sexuais foram introduzidos pelas mulheres com o sugerir de
mudanças radicais nos modos de experienciar o corpo – o início do uso de métodos
anticoncepcionais, a intensificação das terapias psicológicas e psicanalíticas – e tais fatores
exigiram nova postura em relação ao mundo privado: lutava-se pelo combate à violência contra
mulher e pelo direito ao prazer.
Nesta etapa do movimento se afirmava que “o pessoal é político” para trazer à tona
questões que anteriormente eram vistas como problemas da vida privada.
Para o pensamento liberal, o conceito de público diz respeito ao Estado e às suas
instituições, à economia e a tudo mais identificado com o político. Já o privado
se relaciona com a vida doméstica, familiar e sexual, identificado com o pessoal,
alheio à política. Ao utilizar essa bandeira de luta, o movimento feminista chama
a atenção das mulheres sobre o caráter político da sua opressão, vivenciado de
forma isolada e individualizada no mundo do privado, identificada como
meramente pessoal (COSTA, 2008, p. 53).

19
Célia Regina Pinto (2010) narra que a liderança das sufragistas brasileiras estava por conta de Bertha Lutz,
bióloga, que estudou no exterior e voltou para o Brasil na década de 1910, iniciando a luta pelo voto.
33

Pode-se discutir esta fase do feminismo a partir das mudanças na forma de se


compreender politicamente os modos de se pensar nas esferas do mundo doméstico/privado. É
quando o feminismo se instaura em um contexto mais amplo e heterogêneo, articulando as lutas
contra as formas de opressão das mulheres na sociedade com as lutas pela redemocratização
(COSTA, 2008).
A maior parte das mulheres organizadas no interior deste movimento feminista estava
exilada do Brasil, vivendo principalmente em Paris, o que permitiu que dialogassem com o
feminismo europeu, se fortalecendo. O machismo pode ser observado como estrutural nas
relações a partir das experiências com os seus companheiros que, também exilados, eram
contrários a esta movimentação por considerar que as mulheres deveriam se dedicar somente à
luta pelo fim da ditadura (PINTO, 2010).
Na década de 1980 ocorre no Brasil a redemocratização. O eleitorado feminino passa a ser
interesse de diferentes partidos que incorporam as demandas das mulheres em suas propostas
(COSTA, 2006). Neste período vários grupos se mobilizam contra a opressão, violência e
questões trabalhistas, dentre outros.
Estes grupos organizavam-se, algumas vezes, muito próximos dos movimentos
populares de mulheres, que estavam nos bairros pobres e favelas, lutando por
educação, saneamento, habitação e saúde, fortemente influenciadas pelas
Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Este encontro foi muito
importante para os dois lados: o movimento feminista brasileiro, apesar de ter
origens na classe média intelectualizada, teve uma interface com as classes
populares, o que provocou novas percepções, discursos e ações em ambos os
lados (PINTO, 2010, p. 17).
Nesta segunda onda, gênero era discutido a partir da contraposição da categoria mulher e
homem. Apesar de garantir conquistas importantes, o movimento ainda esteve refém de uma
visão universalizante de mulher – gênero como categoria fixa, natural, binária e hierárquica – e
tinha sua luta fundamentada contra o patriarcalismo.
Inúmeros grupos dentro do movimento – negras, indígenas, lésbicas etc. – imputam suas
vozes na reivindicação da diferença dentro da diferença. Não é a negação do protagonismo que
tiveram as feministas de primeira e segunda:
[...] que tiveram nas lutas pela anistia, por creche (uma necessidade precípua das
mulheres de classes populares), na luta pela descriminalização do aborto que
penaliza, inegavelmente, as mulheres de baixa renda, que o fazem em condições
de precariedade e determinam em grande parte os índices de mortalidade
materna existentes no país; entre outras ações (CARNEIRO, 2003, p. 118).
34

Tratou-se então da possibilidade de ampliação deste movimento, na denúncia de que


ainda que lutasse contra o machismo, havia dentro do movimento práticas de racismo, classismo
e lesbofobia, dentre outras discriminações. É a pluralização do movimento, que permite
discussões hoje sobre feminismos, não mais apenas um feminismo que “em conformidade com
outros movimentos sociais progressistas da sociedade brasileira [...] esteve, também, por longo
tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres” (CARNEIRO, 2003, p.
118).

1.2 As influências do Feminismo Negro no Brasil

Um dos pontos principais que permitem marcar a diferenciação entre o movimento


feminista e movimento feminista negro são os contextos históricos a partir de onde emergiram.
Enquanto o feminismo branco reproduz a racionalidade do pensamento iluminista, o feminismo
negro emerge em um contexto de escravidão e, portanto, reproduz a racionalidade de luta e
resistência das mulheres deste contexto.
O feminismo negro se constitui enquanto impacto das teorias de gênero e raça, que levam
à inclusão da temática racial no debate feminista. É possível analisar este processo de inclusão
racial no movimento a partir de uma análise dos Encontros de Mulheres e Feministas Brasileiros
e Latino-Americanos.
Com base em pesquisa realizada por Claudia Ferreira e Claudia Bonan20, elaborou-se a
seguinte tabela:

Tabela 1 - Encontros de Mulheres e Feministas Brasileiros e Latino-Americanos

Encontros de Mulheres e Feministas Brasileiros e Latino-Americanos


Ano Tipo de Encontro Cidade, Estado

1979 I Encontro Nacional Feminista Fortaleza, CE


1980 II Encontro Nacional Feminista Rio de Janeiro, RJ
1981 III Encontro Nacional Feminista Salvador, BA
1981 I Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Bogotá, Colômbia
1982 IV Encontro Nacional Feminista Campinas, SP
1983 V Encontro Nacional Feminista Brasília, Distrito Federal
1983 II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Bosque, Peru
1984 VI Encontro Nacional Feminista São Paulo, SP
1985 VII Encontro Nacional Feminista Belo Horizonte, MG

20
As informações foram coletadas por Claudia Ferreira e Claudia Bonan (2015) e estão disponíveis em um site que
objetiva a criação de um banco de imagens eletrônico, como acervo documental e de memória fotográfica dos
movimentos de mulheres.
35

Ano Tipo de Encontro Cidade, Estado

1985 III Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Bertioga, SP


1986 VIII Encontro Nacional Feminista Nogueira, RJ
1987 XIX Encontro Nacional Feminista Garanhuns, PE
1987 IV Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Taxco, México
1987 I Encontro de Lésbicas Feministas da América Latina e do Caribe Cuernavaca, México
1988 I Encontro Nacional de Mulheres Negras Valença, RJ
1989 X Encontro Nacional Feminista Bertioga, SP
1990 V Encontro Feminista da América Latina e do Caribe San Bernardo, Argentina
1990 II Encontro de Lésbicas Feministas da América Latina e do Caribe Costa Rica
1991 XI Encontro Nacional Feminista Caldas Novas, GO
1991 II Encontro Nacional de Mulheres Negras Salvador, BA
1992 I Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe Santo Domingo, Republica
Dominicana
1992 I Encontro da Rede Feminista Latino-americana e do Caribe contra a Olinda, PE
Violência Doméstica e Sexual
1993 VI Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Costa del Sol, El Salvador
1995 I Encontro Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais São Paulo, SP
1996 I Encontro Latino-americano e do Caribe das Mulheres Trabalhadoras Fortaleza, CE
Rurais
1996 I Seminário Nacional de Lésbicas Rio de Janeiro, RJ
1996 VII Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Cartágena, Chile
1996 II Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe São José, Costa Rica
1997 XII Encontro Nacional Feminista Salvador, BA
1997 I Encontro Internacional de Parteiras da Floresta Macapá, AM
1997 II Seminário Nacional de Lésbicas Salvador, BA
1998 I Encontro Internacional de Mulheres da Floresta Amazônica Rio Branco, AC
1998 III Seminário Nacional de Lésbicas Betim, MG
1999 IV Encontro Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais Goiânia, GO
1999 VIII Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Juan Dolio, Republica
Dominicana
1999 V Encuentro de Lesbianas Feministas Latinoamericano y del Caribe Rio de Janeiro, RJ
2000 XIII Encontro Nacional Feminista João Pessoa, PB
2001 III Encontro Nacional de Mulheres Negras Belo Horizonte, MG
2001 III Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe Bogotá, Colômbia
2001 IV Seminário Nacional de Lésbicas Porto de Dunas, CE
2002 IX Encontro Feminista da América Latina e do Caribe Playa Tambor, Costa Rica

Fonte: FERREIRA; BONAN (2015).


A partir destes dados é possível vislumbrar o reflexo de uma escravidão que durou mais
de 300 anos no Brasil, ausentando as demandas de mulheres nos movimentos feministas – o I
Encontro Nacional de Mulheres Negras (ENMN) ocorreu somente em 1988, quase dez anos após
o I Encontro Nacional Feminista.
O ENMN ocorre em 1988, que:
[...] foi um ano de particular importância para as mulheres negras brasileiras,
dado o grau de mobilização e discussão que a sua temática ensejou na sociedade,
conduzindo tanto a um avanço no seu processo organizativo como indicando as
diferentes visões político-ideológicas que já atravessam o emergente Movimento
de Mulheres Negras (CARNEIRO, 1993, p. 3).
36

Houve ampla mobilização de mulheres negras em torno de suas questões específicas


consubstanciadas em diversos ENMN.
Portanto, na maioria dos estados brasileiros, desenvolveu-se algum tipo de
reflexão sobre a mulher negra e todas estas atividades convergiram para o I
Encontro Nacional de Mulheres Negras, ocorrido de 02 a 04 de dezembro de
1988 em Valença, no Estado do Rio de Janeiro, com a participação de 450
mulheres negras, representando 17 estados do país, contando ainda com a
presença de várias militantes do Movimento de Mulheres e representantes de
outros países como Estados Unidos, Equador e Canadá (idem, 1993, p. 13).
Convocou-se então mulheres atuantes em diferentes espaços, e pertencentes a diversas
cidades do Brasil, para refletir e se posicionar sobre suas experiências e as adversidades em ser
mulher negra na sociedade brasileira. O tema central eleito para o I ENMN foi “A Mulher Negra”
e os temas decorrentes partiram de questões subjetivas, como a ideologia do embranquecimento e
a estética, a assuntos históricos, políticos, sociais e econômicos (SANTOS, 2016).
O Relatório deste I EMN traz como objetivo percorrido neste evento:
a) denunciar as desigualdades sexuais, sociais e raciais existentes,
indicando as diversas visões que as mulheres negras brasileiras têm em
relação ao seu futuro; b) fazer emergir as diversas formas locais de luta e
autodeterminação face às formas de discriminação existentes; c) elaborar
um documento para uma política alternativa de desenvolvimento; d)
encaminhar uma perspectiva unitária de luta dentro da diversidade social,
cultural e política as mulheres presentes no Encontro; e) realizar
diagnóstico da mulher negra; f) discutir as formas de organização das
mulheres negras; g) elaborar propostas políticas que façam avançar a
organização das mulheres negras, colocando para o mundo a existência
do Movimento de Mulheres Negras no Brasil de forma unitária e de
diferentes vertentes políticas (ENMN, 1988).
A movimentação de mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições
resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras
de luta historicamente levantadas pelos movimentos negro e de mulheres do país enegrecendo, de
um lado, as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do conjunto das
brasileiras e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do
movimento negro (CARNEIRO, 2003).
Estas mulheres, engajadas nos movimentos de luta pela igualdade racial e sexual, foram
empurradas pela sua marginalização em ambas as arenas21 e a partir disto desenvolveram o
Feminismo Negro.

21
Do movimento feminista e do movimento negro.
37

Na busca de ampliação da plataforma de ação feminista, as mulheres negras


teceram inúmeras críticas quanto à invisibilidade de sua ação política. A
contestação mais direta refere-se à maneira secundarizada do tratamento de sua
opressão e organização, as quais estiveram e estão submetidas pelo sistema. Isto
é, seja através do discurso, seja da produção teórica, as mulheres negras
aparecem como ‘sujeitos implícitos’ (RIBEIRO, 2006, p. 803).
Compreende-se o Feminismo Negro enquanto movimento capaz de reconhecer as
diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito da identidade biológica,
permitindo espaço para vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de
outras formas de opressão além do sexismo (CANEIRO, 2003).
No Brasil, esta movimentação de reivindicação de demandas específicas dentro do
feminismo surge do pioneirismo de feministas norte-americanas quando estas incorporam o tema
das diferenças em suas abordagens, ocupando-se em discutir a presença do racismo, bem como o
entrecruzamento de gênero, raça e classe como elemento representativo das diferenças nas
experiências das mulheres.
É válido então, reflexões sobre este movimento constante de trocas e transformações entre
os movimentos negros dos Estados Unidos e Brasil, a partir do reconhecimento de que
intelectuais negras norte-americanas se dedicaram exaustivamente na compreensão do espaço
privado e oculto da consciência da mulher negra, anunciando os movimentos de resistência e luta
que permitem a elas (nós) transcenderem às violências que estão sujeitas nas intersecções das
opressões de gênero, raça e classe social.
No artigo produzido por Kia Lilly Caldwell (2000) compreende-se a política racial de
produções de conhecimento feminista no Brasil. A autora evidencia como a discussão sobre a
noção de diferença tem sido evasiva nas discussões de gênero e aponta, em contrapartida, os
avanços dos estudos feministas nos Estados Unidos, Inglaterra e no Canadá, onde “já se
reconheceu a importância da raça e das diferenças raciais na constituição do gênero e das
identidades das mulheres” (CALDWELL, 2000, p. 91).
A partir do estudo da autora, escrito em 2000, é possível traçar uma análise sobre as
produções norte-americanas entre as décadas de 70 e 2000.
As últimas três décadas foram marcadas por aumento significativo nas
produções feministas americanas, inglesas e canadenses no sentido de
desessencializar a identidade feminina. As tendências atuais dos estudos devem
vários de seus Insights a críticas feitas por mulheres brancas americanas, negras
inglesas e feministas do chamado "terceiro mundo". Nos Estados Unidos,
intelectuais feministas negras, latinas e asiáticas deram contribuições
Importantes para a compreensão dos múltiplos eixos da opressão feminina que
38

afetam as experiências de vide de mulheres não brancas naquele país


(CALDWELL, 2000, p. 93).
As ideias de mulheres afro-americanas parecem ser recebidas como inspiração para os
movimentos de luta, tanto na academia quanto fora dela. De acordo com Caldwell (2000), o
trabalho de intelectuais brancas nos Estados Unidos contribuiu para que houvesse no contexto
brasileiro compreensão sobre como a identidade de gênero feminina é construída no contexto
norte-americano e também sobre a importância de se “delimitar a análise de gênero a contextos
locais, e de fazê-la levando em conta a especificidade social, cultural e histórica das experiencias
e das identidades das mulheres” (CALDWELL, 2000, p. 93).
A falta de atenção à relação entre raça e gênero no feminismo acadêmico
brasileiro se deve em grande parte forma como se desenvolveu o campo dos
estudos sobre mulheres no país. Ao contrário do feminismo acadêmico nos
Estados Unidos e na Inglaterra, onde a discurso sobre raça aumentou nas
décadas mais recentes, as pesquisadoras feministas brasileiras têm sido muito
mais lentas na incorporação do estudo da raça aos estudos sobre mulheres e à
teoria feminista (CALDWELL, 2000, p. 93).
Dentre as feministas negras estadunidenses, é válido dar destaque para Davis (2016), que
na sua obra anuncia caminhos substanciais para as análises interseccionais, a partir da crítica à
marginalização da questão racial nos debates feministas. A autora promove o entrecruzamento
dos componentes econômico, político e ideológico do modo de produção escravista e capitalista,
permitindo compreensões sobre as teias de opressões interligadas e suas atuações na sustentação
de projetos de dominação de classe. O fato é que a discussão da autora parte de realidades
históricas concretas, e da forma como estas opressões são responsáveis pelas ideologias de
dominação e controle dos grupos dominados. Estas ideologias precisam ser contextualizadas em
suas atuações de interferência contrária na história dos diversos movimentos de luta e resistência,
como o movimento abolicionista, o movimento antiescravagista, o movimento sufragista, o
movimento de mulheres, o movimento associacionista etc.
O modelo de mulheres negras sempre trabalharem mais fora de casa do que as mulheres
brancas, foi estabelecido desde o início da escravatura (DAVIS, 2016). Havia uma exigência de
que estas mulheres fossem masculinas ao desenvolver seus trabalhos, e isso afetou
profundamente as experiências durante a escravatura, sendo que “algumas, sem dúvida, foram
quebradas e destruídas, no entanto a maioria sobreviveu e, no processo, adquiriu qualidades
consideradas tabus pela ideologia do século XIX sobre a natureza feminina” (idem, 2016, p. 15).
No período escravocrata, mulheres negras estavam sujeitas não só às práticas que também eram
39

atribuídas aos homens, como castigo e mutilações, como também a todas as formas de coação
sexual.
Mesmo após a abolição da escravatura e a ascensão do “trabalho livre”, há uma
reconfiguração das formas de opressão de classe, sexo e raça que consolida a dominação
capitalista, destinando trabalhos e ideologias específicas a grupos que de quem exerce e de quem
sofre a opressão.
O pós-abolição não é diferente e se caracteriza pelo trabalho de mulheres negras na
agricultura e no serviço doméstico, de mulheres brancas pobres em fábricas, e de mulheres
burguesas de classe média na dedicação da “nobre missão” de “ser mãe e dona de casa” – é a
mulher negra quem fica sujeita a condições de exploração extremas e perpetuadoras de práticas
de violência (como o abuso sexual por parte dos patrões).
Outra feminista negra estadunidense que merece ressalva é bell hooks22, com uma teoria
importante para a compreensão do “patriarcado capitalista de supremacia branco” que estrutura a
sociedade. A autora trabalha com o sexismo, enquanto sistema de dominação, que apesar de ser
institucionalizado nunca determinou de forma absoluta o destino de todas as mulheres nesta
sociedade. Ao analisar as motivações das mulheres brancas, muitas vezes com acesso a estudo,
privilégios materiais e uma variedade de opções de profissão e de estilo de vida é possível se
questionar quando estas mulheres dizem que “o sofrimento não pode ser medido”:
Ser oprimida significa ausência de opções. É o principal ponto de contato entre o
oprimido (a) e o opressor (a). Muitas mulheres nesta sociedade têm escolhas
(por mais inadequadas que possam ser); portanto, exploração e discriminação
são palavras que descrevem com mais precisão a sorte coletiva das mulheres nos
Estados Unidos (HOOKS, 2015, p. 197).
A autora explica que muitas mulheres não participam da resistência organizada contra o
sexismo porque o sexismo não tem o significado de absoluta falta de opções.
Elas podem saber que são discriminadas em função de sexo, mas não equiparam
isso a opressão. No capitalismo, o patriarcado é estruturado de forma que o
sexismo restrinja o comportamento das mulheres em algumas esferas, mesmo
que, em outras, haja liberdade em relação a limitações. A ausência de restrições
extremas leva muitas mulheres a ignorar as áreas em que são exploradas ou
discriminadas e pode até levá-las a imaginar que as mulheres não são oprimidas
(idem, 2015, p. 198).

22
Nascida em 25 de setembro de 1952 em Hopkinsville, nos Estados Unidos, Gloria Jean Watkins é conhecida pelo
pseudônimo bell hooks, que escrito em minúsculas reforça que suas ideias vêm em primeiro lugar, antes de seu nome
e identidade pessoal.
40

Questiona-se então, o cânone do pensamento feminista moderno que afirma que “todas as
mulheres são oprimidas”:
Essa afirmação sugere que as mulheres compartilham a mesma sina, que fatores
como classe, raça, religião, preferência sexual etc. não criam uma diversidade de
experiências que determina até que ponto o sexismo será uma força opressiva na
vida de cada mulher. O sexismo, como sistema de dominação, é
institucionalizado, mas nunca determinou de forma absoluta o destino de todas
as mulheres nesta sociedade (ibidem, 2015, p. 197).
Hooks (2015) pontua que os sentimentos que feministas compartilhavam no início do
movimento não se sustentaram. Algumas mulheres alcançaram ganhos com o movimento
feminista por igualdade no mercado de trabalho, mas o oportunismo individual prejudicou os
apelos à luta coletiva. Desta forma, o feminismo rotula mulheres que não se opunham ao
patriarcado, ao capitalismo, ao classismo e ao racismo. O lapso que se promove neste tipo de
ideologia constitui o seu viés racista e classista, pois a ideia de mulher veiculada pelo mito da
feminilidade não incluía nem as escravas do regime escravagista.
A autora evidencia que os problemas e dilemas específicos de donas de casa brancas da
classe privilegiada, apesar de serem preocupações reais e importantes, não eram a pauta das
políticas urgentes da maioria das mulheres, mais preocupadas com a sobrevivência econômica, a
discriminação étnica e racial etc. O surgimento do movimento feminista negro se marca pela
ausência da discussão sobre o impacto do sexismo sobre o estatuto social das mulheres negras.
Ao denunciar o poder patriarcal que os homens utilizavam para dominar as mulheres, as
feministas brancas não demonstraram esforços em “enfatizar que o poder patriarcal, o poder que
os homens usam para dominar as mulheres, não é apenas um privilégio das classes altas e médias
dos homens brancos, mas um privilégio de todos os homens na sociedade sem olhar a classe ou a
raça” (HOOKS, 2015, p. 64). A autora continua, afirmando que:
As feministas brancas tão focadas na disparidade no estatuto económico entre os
homens brancos/mulheres brancas, tiveram uma indicação do impacto negativo
do sexismo que elas traçavam e não deram nenhuma atenção ao facto de os
homens das classes mais baixas e pobres serem tão capazes de oprimir e
brutalizar as mulheres como qualquer outro grupo de homens na sociedade
americana. A tendência feminista de fazer sinónimo da possessão do poder
económico masculino ser opressor, fez o homem branco ser rotulado como “o”
inimigo. A rotulação do homem branco patriarca como “porco chauvinista”
proveu um conveniente bode expiatório para os homens negros sexistas. Eles
podiam juntar-se às mulheres brancas e negras para protestar contra a opressão
masculina e desviar a atenção do seu sexismo, o seu apoio ao patriarcado e a sua
exploração sexista das mulheres (HOOKS, 2015, p. 64).
41

Esse processo se insere na ideologia do “individualismo liberal”, que conforme aponta


hooks (2015), permeia o pensamento feminista e prejudica o radicalismo potencial da luta
feminista.
A usurpação do feminismo pelos burgueses para apoiar seus interesses de classe
tem sido justificada, em nível bastante grave, pela teoria do feminismo como
esta foi concebida até agora (por exemplo, a ideologia da “opressão comum”).
Qualquer movimento para resistir à cooptação da luta feminista deve começar
pela introdução de uma perspectiva feminista diferente – uma nova teoria – que
não seja informada pela ideologia do individualismo liberal (idem, 2015, p.
201).
Evidencia-se que as práticas excludentes das mulheres que dominam o discurso feminista
praticamente não permitiram a frutificação de novas teorias e análises. Há uma marginalização e
silenciamento no feminismo, de mulheres que sentem necessidade de uma estratégia diferente. É
inegável que:
[...] grupos de mulheres que se sentem excluídas do discurso e das práxis
feministas só conseguem abrir um espaço para si se criarem, antes, através de
críticas, uma consciência dos fatores que as alienam. [...] Mulheres não brancas
que se sentem afirmadas dentro da atual estrutura do movimento feminista
(embora possam formar grupos autônomos) também parecem achar que suas
definições de “linha justa”, seja na questão do feminismo negro ou em outras,
são o único discurso legítimo. Ao invés de incentivar uma diversidade de vozes,
o diálogo crítico e a polêmica, elas, assim como algumas mulheres brancas,
procuram sufocar a dissidência (HOOKS, 2015, p. 201).
Compreende-se que o Feminismo Negro surge a partir de ativistas e autoras que se
compreendem com vozes e denúncias tão legítimas quanto às denunciadas pelo feminismo
branco.
Hooks (2015) denuncia a prática de feministas brancas que agem como se as mulheres
negras não soubessem que a opressão machista existia até elas expressarem a visão feminista.
Esta prática se ancora na crença de mulheres brancas que podem proporcionar às mulheres negras
“a” análise e “o” programa de libertação.
O equívoco é por se desconsiderar que as negras e outros grupos de mulheres que vivem
diariamente em situações de opressão utilizam a experiência de vida para adquirir consciência
sobre a política patriarcal e para desenvolverem estratégias de resistência (HOOKS, 20015).
Essas mulheres negras observaram o foco feminista branco na tirania masculina
e na opressão das mulheres como se fosse uma revelação “nova” e acharam que
esse foco tinha pouco impacto na sua vida. Para elas, o fato de as mulheres
brancas de classe média e alta precisarem de uma teoria para “informá-las de
que eram oprimidas” era apenas mais uma indicação de suas condições de vida
privilegiadas (HOOKS, 2015, p. 203).
42

O que se acentua é que pessoas oprimidas sabem de sua opressão, ainda que não se
envolvam em resistência organizada ou não consigam formular por escrito a natureza de sua
opressão. Hooks (2015) auxilia a compreender o movimento de mulheres negras a partir da
limitação do feminismo ao lutar pelo fim da opressão das mulheres.
O fato de que nós, mulheres negras, não nos organizamos coletivamente, em
grande número, em torno das questões do “feminismo” (muitas de nós nem
conhecem ou usam o termo), ou de que não tivemos acesso aos mecanismos de
poder que nos permitiriam compartilhar nossas análises ou teorias sobre gênero
com o público norte-americano, não negam sua presença na nossa vida e nem
nos colocam em uma posição de dependência em relação às feministas brancas e
não brancas que falam a um público maior (HOOKS, 2015, p. 203).
Haveria então, atuação de estereótipos racistas na mente de mulheres feministas, que por
acreditarem na mulher negra enquanto supermulher, as permitem ignorar nos discursos de
vitimização da sociedade.
No Brasil, tem-se destaque Lélia Gonzalez, feminista negra importante para formulações
teóricas na especificidade do contexto que aqui se tem.
A pensadora e feminista negra Lélia Gonzalez nos dá uma perspectiva muito
interessante sobre esse tema, porque criticava a hierarquização de saberes como
produto da classificação racial da população. Ou seja, reconhecendo a equação:
quem possui o privilégio social possui o privilégio epistêmico, uma vez que o
modelo valorizado e universal de ciência é branco (RIBEIRO, 2018, p. 24).
Em seu artigo “Por um feminismo Afrolatinoamericano”, Gonzalez (1988) discute como o
sistema patriarcal-racista suprime a humanidade das mulheres negras ao lhes negar o direito de
ser sujeito de seu próprio discurso e de sua própria história.
A autora destaca o fundamental papel do feminismo em suas lutas e conquistas, que
trouxe novos questionamentos, estimulou a formação de grupos e redes e desenvolveu a busca de
uma nova forma de ser mulher.
Ao centralizar suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou
patriarcado capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão
das mulheres, o que constitui uma contribuição de crucial importância para o
encaminhamento das nossas lutas como movimento[...]. O extremismo
estabelecido pelo feminismo fez irreversível a busca de um modelo alternativo
de sociedade. Graças a sua produção teórica e a sua ação como movimento, o
mundo não foi mais o mesmo (GONZALEZ, 1988b, p. 13).
Nessas lutas evidencia-se que o feminismo trouxe contribuições fundamentais para a
discussão da discriminação pela orientação sexual, mas que o mesmo não ocorre “com outros
tipos de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial” (GONZALEZ,
1988b, p. 13).
43

Evidencia-se também a partir desta autora que o feminismo não está ileso do racismo, e
que contribui para sua reprodução e manutenção quando se pauta na mulher enquanto sujeito
universal abstrato.
Discute-se, então, que tanto o racismo quanto o feminismo
[...] partem das diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de
dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este “esquecimento” por
parte do feminismo? A resposta, na nossa opinião, está no que alguns cientistas
sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos nós, se
encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e neo-colonialista da realidade
(GONZALEZ, 1988b, p. 13).
A autora parte das categorias de infante e de sujeito-suposto-saber do pensamento
lacaniano que ajuda. A articulação desta categoria permite compreender o tema da alienação.
A primeira designa a aquele que não é sujeito do seu próprio discurso, a medida
em que é falado pelos outros. O conceito de infante se constitui a partir de uma
análise da formação psíquica da criança que, ao ser falado pelos adultos na
terceira pessoa, é, consequentemente, excluída, ignorada, colocada como ausente
apesar da sua presença; reproduz então esse discurso e fala em si em terceira
pessoa (até o momento em que aprende a trocar os pronomes pessoais)
(GONZALEZ, 1988b, p. 13-14).
Compreende-se então que mulheres negras foram definidas e classificadas por um sistema
ideológico de dominação que visa a infantilização. Situadas em uma hierarquia, apoiadas em
condições biológicas de sexo e raça, mulheres negras são omitidas de suas humanidades, pois têm
negado seus direitos de dizer seu próprio discurso e contar sua própria história (GONZALEZ,
1998b).
É desnecessário dizer que com todas essas características, nos estamos referindo
ao sistema patriarcal-racista. Consequentemente, o feminismo coerente consigo
mesmo não pode dar ênfase a dimensão racial. Se assim o fizera, estaria
contraditoriamente aceitando e reproduzindo a infantilização desse sistema, e
isto é alienação (GONZALEZ, 1998b, p. 14).
Trata-se da necessidade de o feminismo latino-americano incluir o caráter multirracial e
pluricultural das sociedades dessa região. Desta forma, “falar da opressão da mulher latino-
americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade
vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não ser brancas”
(idem, 1988b, p. 14).
Conforme salientado pela autora, a conscientização da opressão sobre a realidade histórica
para mulheres “amefricanas” do Brasil e de outros países da região, e também para as
“ameríndias” ocorre, antes de qualquer coisa, a partir da exploração racial e discriminação de
44

classe, elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia
subordinada. De acordo com Gonzalez (1988b, p. 18), “foi dentro da comunidade escravizada
que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar
uma luta plurissecular de liberação”.
Válido também destaque para Sueli Carneiro (2003) que nomeia esta ação de superação a
um feminismo excludente, de “enegrecer o feminismo”, ou seja, designar a trajetória de mulheres
negras no interior do movimento feminista brasileiro. Esta proposta advém da compreensão de
que a unicidade de uma imagem de mulher cristalizada pela identidade branca e ocidental da
formulação clássica feminista é insuficiente em termos teóricos e práticos para a sociedade
multirracial e pluricultural. É preciso politizar as desigualdades de gênero considerando as
especificidades de grupos existentes dentro do grupo das mulheres – reconhecer as
especificidades acarreta na luta por demandas específicas.
Portanto, para nós se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja
uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que
não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em
uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres, deve enfrentar
virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é
possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades
multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-
americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre
as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero
em nossas sociedades (CARNEIRO, 2003, p. 50).
Carneiro (2003) denuncia a relação de coisificação da mulher negra na sociedade como
reflexo de seu passado, quando servia às “frágeis sinhazinhas” e eram vítimas dos abusos dos
senhores de engenho – esse contexto se reflete em uma relação que não parece ter sofrido grandes
rupturas já que mulheres negras são “hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e
dondocas, ou de mulatas tipo exportação” (idem, 2003, p. 49-50).
A autora questiona a quem se refere o mito da fragilidade feminina, justificativa histórica
para a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres. Mulheres negras, que nunca foram
tratadas como frágeis, não reconhecem este mito.

Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos


como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras,
prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram
que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um
contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis
sinhazinhas e de senhores de engenho tarados (CARNEIRO, 2003, p.49).
45

Evidencia-se então que o racismo rebaixa o status dos gêneros – “o racismo superlativa os
gêneros por meio de privilégios que advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos.
Institui para os gêneros hegemônicos padrões que seriam inalcançáveis em uma competição
igualitária” (CARNEIRO, 2003, p. 3).
Os estudos na perspectiva de estudiosas negras evidenciam os limites e a fragilidade da
ação política de mulheres brancas quando não apresentam elementos de consciência sobre a
supremacia branca e as consequências disso na vida de uma mulher negra.
Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos
poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de
um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas
como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a
mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para
homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para
que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais
os anúncios de emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”
(CARNEIRO, 2003, p. 2).
Com Carneiro (2003), compreende-se o surgimento do feminismo negro a partir da
perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica que não se separa de outros
eixos de opressão exigindo, assim, análises múltiplas. Desta forma, o feminismo negro se
constrói no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas, tendo como principal
eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero.
Desta forma, o racismo é determinante na própria hierarquia de gênero.
O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população
em geral e das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de
divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres
brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de
gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista
e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão
de gênero na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2002, p. 3).
Deste modo, percebe-se que houve uma grande movimentação para que mulheres negras
no Brasil tivessem suas demandas atendidas e conseguissem se fortalecer nos debates de gênero
com a formulação do feminismo negro – esse novo olhar feminista e antirracista possibilita uma
renovação da identidade política da mulher negra (CARNEIRO, 2002). Evidencia-se também a
influência das teorias norte-americanas que se mostraram férteis para o contexto brasileiro. As
discussões sobre a marginalidade de mulheres negras vão se construindo em um intercâmbio e se
mostrando cada vez mais presentes nas pautas de gênero e raça.
46

2. O CONCEITO DE INTERSECCIONALIDADE

Na trajetória do movimento feminista, é possível perceber importantes tensionamentos


quando se problematiza que o feminismo tinha enquanto “lugar de fala” as feministas brancas e
heterossexuais. O ponto de partida é que o feminismo se consolidou enquanto movimento de
representação de apenas um ponto de vista, a saber o das mulheres brancas, heterossexuais, de
classe média e localizadas no ocidente.
Conforme apontado por Adriana Piscitelli (2008), no final da década de 1980, com as
publicações de textos críticos sobre gênero e suas constituições como referências clássicas nas
discussões contemporâneas passou-se a questionar “os pressupostos embutidos nas primeiras
formulações de gênero, as perspectivas sobre poder que estavam informando várias linhas de
análises feministas e, também, a centralidade concedida ao gênero em termos das forças sociais
que oprimem as pessoas” (PISCITELLI, 2008, p. 264).
Estes tensionamentos se converteram em produções e práticas a partir da experiência de
mulheres negras, lésbicas e do terceiro mundo que criticavam a universalidade da condição de
opressão – pauta do feminismo liberal. Tais ações promoveram alargamento no campo teórico e
político do pensamento e ativismo feminista, que se dedicou cada vez mais a outros marcadores
de desigualdade e opressão, sendo capaz de estratégias para analisar a relação entre diferentes
categorias sociais e suas intersecções. No caso do feminismo negro, as categorias centrais eram
gênero e raça.
Ina Kerner (2012) apresenta quatro modos de se estudar as relações entre racismo e sexismo
que a) estabelece semelhanças; b) estabelece diferenças; c) estabelece acoplamentos e d)
estabelece cruzamentos, entrelaçamentos ou intersecções.
O presente estudo se insere no quarto modelo de relação, e a proposta é ampliar as discussões
sobre as teorias feministas que estabelecem a intersecção. Assim como Kerner (2012), parte-se do
princípio de que:
[...] um modelo que abarque semelhanças, diferenças, ligações e intersecções
tem efeitos muito mais benéficos para a compreensão das relações entre racismo
e sexismo do que a tentativa de formular a relação em apenas uma dimensão e
reduzi‑la a um único termo como o da interseccionalidade ou da
interdependência. Por isso semelhanças, diferenças, ligações e intersecções
devem ser justapostas em vez de serem tratadas como alternativas teóricas. Por
mais que essas relações sejam formadas de maneiras distintas, que racismo e
sexismo sejam antes de tudo descritos como fenômenos separados entre si no
que diz respeito à identificação de semelhanças e diferenças, e que, por outro
47

lado, justamente suas junções estejam em primeiro plano no que tange à


classificação de ligações e intersecções, continuo partindo do pressuposto de que
cada uma dessas definições da relação corresponde a certos ganhos cognitivos
(KERNER, 2012, p. 48).
A compreensão que se tem no presente estudo é da interseccionalidade enquanto
conceito/ação germinado a partir de experiências de mulheres negras, teorizado no bojo do
feminismo negro norte-americano e que se expande permitindo uso para outros contextos e outros
grupos. Surge enquanto sensibilidade que permite olhar como diferentes esferas de opressão
colidem produzindo impactos mais ou menos violentos a partir da realidade que se problematiza.
É possível perceber um aumento em relação ao debate sobre o conceito de
interseccionalidade a partir do diálogo anglófono recente entre teóricas dos Estados Unidos e de
alguns países da Europa. De toda forma, o “levantamento histórico de seu percurso teórico, assim
como suas distintas vertentes parecem ainda ser pouco explorados em termos de análises e
teorizações sociais” (HENNING, 2015, p. 101).
Os trabalhos marcam a análise interseccional a partir principalmente de teóricas
feministas dos Estados Unidos. Não há uma coesão nos olhares teóricos, a
interseccionalidade é vista como “teoria, método, abordagem, paradigma,
conceito, preocupação heurística, ‘lente de análise social’, base de trabalho
analítico, metáfora analítica, etc.” (HENNING, 2015, p. 102).
Conforme evidenciado pelo autor, apesar do termo interseccionalidade ter sido cunhado
na década de 80, pela teórica feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw, a preocupação em
entrelaçar as distintas formas de diferenciações/desigualdades sociais é anterior.
Nesta etapa do estudo apresentam-se três percursoras na denúncia das interseções entre
gênero e raça, produzindo resultados ignorados pela sociedade e que atingem violentamente
mulheres negras.

2.1 Percursoras da interseccionalidade

Há então necessidade de se evidenciar a luta das mulheres e a elaboração de seus


percursos intelectuais durante a história – “desde muito tempo, as mulheres negras vêm lutando
para serem sujeitos políticos e produzindo discursos contra hegemônicos” (RIBEIRO, 2016, p.
19).
48

Sojourner Truth23 é uma mulher importante na saga de intelectuais negras que ainda que
não tenham produzido uma obra escrita, marcaram um período histórico na defesa pelos
interesses e lutas das mulheres negras.
Truth foi uma mulher afro-americana escravizada e que após conquistar a liberdade, em
1827, tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. Ela utilizou seu corpo24 e sua voz para
confrontar as normas sociais e construir novas maneiras de existir, desafiando discursos racistas e
sexistas que desumanizavam as mulheres negras.
A participação de Sojourner Truth resistindo à hostilidade foi importante porque permitiu
representatividade de suas irmãs negras – escravas e livres:
[...] ela trouxe um espírito lutador à campanha dos direitos das mulheres. Este
foi o contributo único e histórico de Sojourner Truth. E no caso das mulheres
brancas esquecerem que as mulheres negras não são menos mulheres que elas, a
sua presença e o seu discurso serviu de constante recordação. As mulheres
negras também iam obter os seus direitos (DAVIS, 2016, p. 51).
O discurso “Eu não sou uma mulher25”, proferido por ela na I Convenção sobre os
Direitos das Mulheres em Akron, em 1852, apresenta características que permitem compreensões
sobre o caráter contra hegemônico das mulheres negras no contexto da escravidão e que podem
ser estendidas até os dias atuais.
Sozinha, Sojouner Truth salvou o encontro de mulheres de Akron das zombarias
disruptivas promovidas por homens hostis ao evento. De todas as mulheres que
compareceram à reunião, ela foi a única capaz de responder com agressividade
aos argumentos, baseados na supremacia masculina, dos ruidosos agitadores.
Com seu inegável carisma e suas poderosas habilidades como oradora, Sojouner
Truth derrubou as alegações de que a fraqueza feminina era incompatível com o
sufrágio (DAVIS, 2016, p. 70).
Isso porque, conforme apontado por Davis (2016), seu discurso se pautou em uma lógica
irrefutável e quando “o líder incompatível dos provocadores afirmou que era ridículo que as
mulheres desejassem votar, já que não podiam sequer pular uma poça ou embarcar em uma

23
Nascida em 1797 em um cativeiro em Swartekill, Nova Iorque, Isabella Baumfree adotou o nome de Sojouner
Truth a partir de 1843 (RIBEIRO, 2017).
24
Meredith Minister (2012) relata que Sojourner Truth tinha um corpo que, além de preto e feminino, era também
incapacitado, visto que carregava marcas de um acidente de trabalho que feriu sua mão. A autora problematiza que
embora a história desta importante mulher negra tenha sido explorada extensivamente a partir das perspectivas
exclusivas de raça, feminilidade e deficiência, a erudição está apenas começando a considerar as relações entre esses
estigmas. Isso reforça que a separação desses discursos em blocos separados de opressão não identifica como essas
opressões se perpetuam e sustentam. Explorar a relação entre estes três estigmas de debilidade, feminilidade e
alteridade racial no século XIX estabelece uma base para considerar como Sojourner Truth usou seu próprio corpo
para navegar entre esses estigmas.
25
Título original: Ain’t I A Woman.
49

carruagem sem a ajuda de um homem” (DAVIS, 2016, p. 71). Truth questionou quem era esta
mulher referida e proferiu:
Muito bem crianças, onde há muita algazarra alguma coisa está fora da ordem.
Eu acho que com essa mistura de negros do Sul e mulheres do Norte, todo
mundo falando sobre direitos, o homem branco vai entrar na linha rapidinho.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o
melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em
carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor
lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus
braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum
poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto
e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para
isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari 13 filhos e vi
a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha
dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? Daí eles
falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso… [alguém da audiência
sussurra, “intelecto”). É isso querido. O que é que isso tem a ver com os direitos
das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um quarto, e o seu
está cheio, porque você me impediria de completar a minha medida? Daí aquele
homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que
o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o
seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com
isso. Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo
de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui
devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E
agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem
fazer o que elas querem. Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a velha
Sojourner não tem mais nada a dizer (TRUTH, 2002, p. 47).
O discurso, feito de improviso, foi registrado pela feminista Frances Gages26. A partir dele
se tem dados para discutir a movimentação de mulheres deste período contra uma categoria
hegemônica do ser mulher – categoria pela qual mulheres negras estavam negadas. A interseção
da raça com o gênero surge como imperativo, trazendo nova significação ao termo mulher, que
em busca da liberdade não poderia lutar apenas contra o patriarcado, mas também contra outras
opressões que estivesse sujeita, neste caso, a opressão racista.
Ribeiro (2018) apresenta um poema de Truth no qual é possível perceber a crítica desta
ativista em relação a mulheres de classe social privilegiada que estavam à frente do movimento
feminista. No poema “On woman’ dress poem” a poeta diz “é melhor vocês reformarem a si

26
Frances Gages é uma das autoras de um importante material da primeira onda do feminismo “The history of
woman sufragge” (1881).
50

mesmas em primeiro lugar”, e essa estrofe “aponta para uma possível cegueira dessas mulheres
em relação às mulheres negras no que diz respeito à perpetuação do racismo e como, naquele
momento, esse fato não era considerado relevante como pauta feminista por elas” (RIBEIRO,
2017, p. 24).
Desta forma, “o que a voz de Sojouner traz, além de inquietações e necessidades de
existir, é evidenciar que as vozes esquecidas pelo feminismo hegemônico já falavam há muito
tempo. A questão a ser formulada é: por que demoraram tanto a serem ouvidas?” (RIBEIRO,
2017, p. 24).
Há também de se destacar a importante atuação de Sarah Grimké (1792-1873) e Angelina
Grimké (1805-1879), conhecidas como as irmãs Grimké, que também ligaram a questão da
escravatura à opressão das mulheres, promovendo discussão sobre a forma como as opressões se
interseccionam.
Sarah e Angelina não estavam preocupadas, pelo menos não o exprimiram – em
questionar a desigualdade social das mulheres. A sua principal prioridade era
expor a essência desumana e imoral do sistema da escravatura e
responsabilidade especial das mulheres na sua perpetuação. Mas quando a
supremacia masculina atacou-as, perceberam que enquanto não se defendessem
como mulheres – e os direitos das mulheres em geral – ficariam para sempre
impedidas de aceder à campanha de libertação dos escravos (DAVIS, 2016, p.
37-38).
Estas irmãs estavam profundamente envolvidas no movimento de abolição. Em 1836,
com a escrita do panfleto “Um apelo às mulheres cristãs do Sul”, elas lutaram contra a
escravidão. Em 1835, uma das irmãs, Angelina, escreveu uma carta de aprovação a William
Lloyd Garrison que posteriormente publicou em seu jornal abolicionista, The Liberator.
Os textos e as leituras destas duas espantosas irmãs foram entusiasticamente
recebidos por muitas mulheres que estavam ativas no movimento feminino
antiescravatura. Mas alguns dos homens líderes na campanha abolicionista
reclamaram que a questão dos direitos das mulheres confundiria e alienaria
aqueles que estavam apenas interessados em derrotar a escravatura (DAVIS,
2016, p. 38).
A partir de Davis (2016) é possível compreender a atuação e as produções destas irmãs
como percursoras da interseccionalidade, já que além de produzirem análises extensas do status
da mulher também denunciaram a isenção dos “homens líderes na campanha abolicionista, que
reclamaram que a questão dos direitos das mulheres confundiria e alienaria aqueles que estavam
apenas interessados em derrotar a escravatura” (DAVIS, 2016, p. 38). Na sequência, um trecho
de uma de suas cartas, apresentado por Davis (2016):
51

Um dia Bonaparte repreendeu uma senhora por se ocupar com política. “Senhor”
disse ela “num país onde as mulheres são colocadas para morrer, é muito natural
que as mulheres queriam saber os motivos disso”. E queridas irmãs, num país
onde as mulheres são degradadas e brutalizadas, onde são expostas ao sangue
humano debaixo do chicote – onde são vendidas, roubado os seus salários,
tiradas dos seus maridos, saqueadas da sua virtude e da sua descendência;
certamente nesse país é muito natural que as mulheres queiram saber a razão
porque – especialmente quando esses ultrajes de sangue e horrores sem nome
são praticados violando os princípios da nossa constituição (GRIMKÉ apud
DAVIS, 2016, p. 38).
Tem-se então nesta militância das irmãs Grimke um chamado para que as mulheres se
juntassem em uma tarefa urgente, compreendendo que a sua própria opressão se sustentava e
perpetuava na continuidade da existência do sistema da escravatura.
Davis (2016) discute que a consciência destas irmãs permitiu compreender a
inseparabilidade da luta da libertação dos negros e da luta da libertação das mulheres
[...] elas nunca foram apanhadas na armadilha ideológica de que uma luta era
absolutamente mais importante do que outra. Elas reconheciam o carácter
dialético da relação entre as duas causas. Mais do que outras mulheres na
campanha contra a escravatura, as irmãs Grimke chamaram a urgência da
inclusão constante da questão dos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo que
argumentavam que as mulheres nunca alcançariam a sua liberdade
independentemente do povo negro (DAVIS, 2016, p. 39).
A partir do exposto, evidencia-se que mulheres negras denunciavam a indissociabilidade
das opressões nos seus movimentos de luta. Estes relatos permitem mais do que mostrar uma
“disfonia em relação à história dominante do feminismo, mas também a urgência por existir e a
importância de evidenciar que mulheres negras historicamente estavam produzindo insurgências
contra o modelo dominante e promovendo disputas de narrativas” (RIBEIRO, 2017, p. 24).
Válido se desestabilizar verdades acerca da história e da existência de mulheres negras.

2.2 Perspectivas da Interseccionalidade

Pretende-se então discutir a interseccionalidade enquanto ferramenta analítica cunhada


primeiramente por Kimberlé Crenshaw (1989). “Tal conceito reconhece que existe na atualidade
um complexo de estruturas de opressão (múltiplas e simultâneas), que precisam ser analisadas
como um sistema de desempoderamento” (KYRILLOS, 2017, p. 2).
52

Foi a partir de uma experiência pessoal que Kimberlé Crenshaw27 voltou suas atenções
para como ser mulher negra poderia estar situado em uma esfera que não estava sendo nem
problematizada pelo movimento feminista nem pelo movimento negro.
Durante a graduação, no grupo de estudos com outros dois colegas negros, um deles foi o
primeiro membro afro-americano aceito em uma consagrada agremiação de estudantes na
Universidade de Harvard. Ela e seus colegas questionavam sobre como seria a reação das pessoas
quando os três entrassem no espaço, que a princípio não contava com a participação de negros, e
por isso foram preparados para enfrentar possíveis discriminações.
No momento do evento, o colega que entraria na fraternidade informou à Crenshaw e ao
outro colega que eles não poderiam entrar pela porta da frente e prontamente eles responderam
que não aceitariam esta discriminação racial. O caso é que a proibição da entrada não era por
conta de serem negros, e sim porque Crenshaw era uma mulher. Os colegas decidiram que então
não teria problema e fariam suas entradas pelas portas do fundo. A autora conta então que:
[...] enquanto dávamos a volta no edifício para entrar pela porta dos fundos,
fiquei pensando que, embora tivéssemos assumido uma postura de solidariedade
contra qualquer discriminação racial, essa solidariedade simplesmente havia
desaparecido quando ficou claro que a discriminação não era racial, mas de
gênero. Nesse momento, assumi um compromisso comigo mesma de entender
esse fenômeno (CRENSHAW, 2002, p. 2).
A partir desta experiência e de encontro com inúmeras mulheres negras que já haviam
vivenciado situações similares, Crenshaw começou a se dedicar na compreensão do fenômeno
das formas de hierarquização entre gênero e raça, denominado de interseccionalidade, e como
essas discriminações operam juntas, limitando as chances de sucesso.
Crenshaw28 introduziu a teoria da interseccionalidade à teoria feminista em 1989,
tornando-se a primeira pessoa a usar essa palavra nesse contexto de feminismo. Tem-se como

27
Kimberlé Williams Crenshaw nasceu em 1959 em Canton, Ohio. Ela frequentou a faculdade em Cornell, onde
seus diplomas incluíram foco em estudos de negros, e se formou na Harvard Law School, em 1984. Ela trabalhou
para um juiz da Suprema Corte de Wisconsin após a graduação, desenvolvendo experiência em direito
constitucional. Em 1986, se tornou professora na Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em Los
Angeles. Ela permaneceu na UCLA até o presente, embora também tenha assumido compromissos adicionais na
Columbia Law School. Em 2011, fundou o Centro de Interseccionalidade e Estudos de Políticas Sociais em
Columbia, com base em sua pesquisa e suas teorias da interseccionalidade que foram avançadas em seu ensaio
germinal, “Mapeando as margens”. Ela é uma defensora dos direitos civis norte-americano e uma das principais
estudiosas da teoria crítica da raça.
28
Além de suas produções acadêmicas, Crenshaw também contribuiu para o desenvolvimento de políticas nos
Estados Unidos e no exterior. Na década de 1990 ela estava na equipe jurídica de Anita Hill, uma advogada negra e
acadêmica que acusou Clarence Thomas, da Suprema Corte, de assédio sexual. O trabalho de Crenshaw nesse caso
53

data oficial de introdução da interseccionalidade a publicação da autora em um artigo seminal de


1987 para o Foro Jurídico da Universidade de Chicago.
O artigo tentou mitigar o equívoco generalizado de que a experiência intersetorial é
apenas devido à soma do racismo e do sexismo. Embora o conceito de interseccionalidade não
fosse novo, não foi formalmente reconhecido até a teoria de Crenshaw. “Todas as mulheres são
brancas; todos os negros são homens, mas alguns de nós somos corajosos”29 – com o título de um
livro da década de 80, a autora inicia o debate com uma crítica feminista negra a partir da
consequência problemática da tendência de tratar a raça e gênero como categorias de experiência
e análise mutuamente exclusivas.
Tem-se as mulheres negras como ponto de partida e a problemática posta é que as
“concepções dominantes de discriminação nos condiciona a pensar em subordinação como
desvantagem que se alonga em um único eixo categórico”30 (CRENSHAW, 1989, p. 139).
Utilizando a interseccionalidade como categoria analítica, Crenshaw permite a
compreensão de como as especificidades levam à marginalidade de mulheres negras nos
discursos sobre direitos. “Interseccionalidade sugere que, na verdade, nem sempre lidamos com
grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobreposto” (CRENSHAW, 2002, p. 4).
Um dos pontos é que dentro dos movimentos feministas e antirracistas, gênero e raça são
vistos como problemas exclusivos. Tende-se a pensar estes problemas separadamente como se
devessem ser resolvidos um de cada vez.
Mulheres que desafiam as práticas discriminatórias defendidas por outros como
sendo práticas culturais frequentemente se encontram em posição bastante
precária. Por um lado, às vezes um grupo étnico ou racial pode facilmente
desencadear duras críticas em relação às práticas de um outro grupo diferente,
mesmo diante de abusos igualmente questionáveis dentro de sua cultura. Por
outro lado, quando as mulheres permitem que contestações às tradições culturais
patriarcais dentro de suas comunidades sejam silenciadas, elas perdem a

baseou-se em sua escrita sobre as intersecções de raça e gênero e as maneiras pelas quais o trabalho antirracista pode,
às vezes, ignorar o gênero ou agravar os problemas enfrentados pelas mulheres de cor. Crenshaw também foi
cofundadora do African American Policy Forum, em 1996, que foca na justiça social e na intersecção de gênero e
raça. Ela também atuou no Comitê Nacional da Fundação para Pesquisas sobre Violência Contra a Mulher e no
painel do Conselho Nacional de Pesquisa sobre Violência Contra a Mulher. Além dos Estados Unidos, Crenshaw
esteve envolvida na Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Racismo e em outros fóruns internacionais
sobre igualdade racial e de gênero.
29
Título orginal: All the Women Are White; All the Blacks Are Men, But Some of Us are Brave: Black Women's
Studies - Gloria T. Hull, et al, eds (The Feminist Press, 1982) - traduzido pela autora.
30
Traduzido pela autora.
54

oportunidade de transformar práticas que são prejudiciais às mulheres em geral


(CRENSHAW, 2002, p. 181).
Crenshaw (1989) destaca a importância no reconhecimento de que mulheres negras
encontram raça e sexo como fatores combinados, mas que os limites da discriminação sexual e
racial têm sido definidos, respectivamente, por mulheres brancas e a partir de experiências de
homens negros. Desta forma, mulheres negras só têm seus pontos de vistas considerados quando
suas experiências coincidem com as de um destes dois grupos, e nas práticas nas quais suas
experiências são distintas, mulheres negras podem esperar pouca proteção – que obscurece
completamente os problemas de interseccionalidade.
A interseccionalidade sugere que nem sempre se lida com grupos distintos de pessoas e
sim com grupos sobrepostos. Desta forma, a denúncia é que as subordinações interseccionais não
estão sendo analisadas nas discussões de gênero nem nas de raça, e quando problemas são
categorizados como manifestações da subordinação de gênero de mulheres ou da subordinação
racial de determinados grupos, trazem como consequência um duplo problema de superinclusão e
de subinclusão.
Superinclusão, neste caso, seria partir do pressuposto de que todos os problemas seriam
de mulheres: “a superinclusão ocorre na medida em que os aspectos que o tornam um problema
interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer tentativa de reconhecer o
papel que o racismo ou alguma outra forma de discriminação possa ter exercido em tal
circunstância” (CRENSHAW, 2002, p. 174).
[...] a superinclusão ocorre na medida em que os aspectos que o tornam um
problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer
tentativa de reconhecer o papel que o racismo ou alguma outra forma de
discriminação possa ter exercido em tal circunstância (CRENSHAW, 2002, p.
174).
Já a subinclusão é quando um grupo específico de mulheres subordinadas enfrenta um
problema por serem mulheres, mas isto não é considerado como um problema de gênero por não
atingir às mulheres do grupo dominante. “Em resumo, nas abordagens subinclusivas da
discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em
abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível” (idem, 2002, p. 176).
A autora problematiza a dificuldade de se identificar a discriminação interseccional em
contextos moldados pelas forças econômicas, culturais e sociais que colocam as mulheres em
uma posição onde acabam sendo afetadas por outros sistemas de subordinação.
55

Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos
imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito
disso é que somente o aspecto mais imediato da discriminação é percebido,
enquanto que a estrutura que coloca as mulheres na posição de ‘receber’ tal
subordinação permanece obscurecida. Como resultado, a discriminação em
questão poderia ser vista simplesmente como sexista (se existir uma estrutura
racial como pano de fundo) ou racista (se existir uma estrutura de gênero como
pano de fundo) (CRENSHAW, 2002, p. 176).
A compreensão da discriminação como um problema interseccional requer então que as
dimensões raciais ou de gênero sejam colocadas em evidência, como fatores que contribuem para
a produção da subordinação, pois somente deste modo é possível análise aprofundada e a
formulação de proposições de intervenções mais eficazes (CRENSHAW, 2002).
Existem diferentes formas de discriminação interseccional. A primeira é contra grupos
específicos, que procuram mulheres que são específicas (interseccionais); a segunda é a
discriminação múltipla ou composta, que trata da combinação entre as discriminações de gênero
e raça; e a última seria a estrutural, quando não há discriminação ativa (CRENSHAW, 2002).
A discriminação contra grupos específicos é ocasionada por conta de propagandas e
estereótipos. Ao enquadrar a mulher negra nestes estereótipos a consequência direta é no
tratamento social que a ela é dado. A discriminação múltipla ou composta é quando as mulheres
são afetadas de maneira específica por sofrerem discriminação de gênero e de raça.
Crenshaw (2002) traz o exemplo da experiência de mulheres negras em uma empresa
norte-americana, a General Motors. A empresa não tinha mulheres negras como funcionárias, e
quando estas mulheres foram reivindicar seus direitos e garantir espaço para suas participações
neste local, não acharam meio de evidenciar a discriminação mista que sofriam. Não podiam
acusar a empresa de machismo porque ela contratava mulheres, nem de racismo porque ela
contratava negros.
Questiona-se nomear o terceiro tipo de discriminação como fenômeno de discriminação,
já que ele não se volta para grupos específicos. Não há um discriminador ativo. Em muitos casos,
ela não resulta de políticas locais, mas de políticas internacionais, que têm efeito particular para
as mulheres em decorrência da sua posição na estrutura socioeconômica (CRENSHAW, 2002).
Para a autora, considerar as zonas de intersecção possibilita uma análise aprofundada e a
formulação de proposições de intervenções mais eficazes. Crenshaw trabalha com a ilustração de
vias para explicar a atuação das intersecções, como visto na figura 1.
56

Figura 1 - Vias de intersecção Crenshaw

Fonte: CRENSHAW (2002)

O esquema propõe compreender a sobreposição e o cruzamento dos sistemas de opressão,


quando dois, três ou quatro eixos se entrecruzam.
As mulheres racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões,
posicionados nessas intersecções em virtude de suas identidades específicas,
devem negociar o tráfego que flui através dos cruzamentos. Esta se torna uma
tarefa bastante perigosa quando o fluxo vem simultaneamente de várias direções.
Por vezes, os danos são causados quando o impacto vindo de uma direção lança
vítimas no caminho de outro fluxo contrário; em outras situações os danos
resultam de colisões simultâneas. Esses são os contextos em que os danos
interseccionais ocorrem as desvantagens interagem com vulnerabilidades
preexistentes, produzindo uma dimensão diferente do desemponderamento
(CRENSHAW, 2002, p. 177).
Neste sentido, é possível compreender como mulheres que se situam socialmente nas
intersecções destas vias por conta de suas identidades de classe, religião e orientação sexual,
dentre outras, vivenciam a discriminação e a vulnerabilidade de forma ainda mais intensa.
Pensando na representação das vias proposta por Crenshaw:
Cada via representa um eixo de poder e o conjunto delas forma os terrenos
sociais, políticos e econômicos. Uma avenida não exclui a outra. Pelo contrário:
elas comumente se entrecruzam. Uma mulher negra lésbica está posicionada
num ponto onde racismo, homofobia, discriminação por gênero e por classe se
encontram, podendo ser atingida pelo tráfego de qualquer uma das direções e de
todas elas ao mesmo tempo. Por isso, em muitas ocasiões é difícil dizer de onde
vem o impacto ou, até mesmo, pode ocorrer de o dano ser causado quando o
impacto vindo de uma direção projeta vítimas no caminho de outra via
(GOMES, 2015, p. 60).
57

Mulheres de comunidades racialmente marginalizadas, quando se organizam para


modificar suas condições, encontram grandes dificuldades porque ao fazer uma denúncia de uma
opressão que ocorre dentro de sua comunidade, elas são acusadas de traição por estarem
“constrangendo” sua comunidade, como se estivessem traindo os interesses de seu grupo.
Válido destacar que além de se constituir como uma perspectiva teórica, o conceito de
interseccionalidade também é um facilitador nas realizações práticas que combatem a violação
dos direitos das mulheres, pois trata “da forma como ações e políticas específicas geram
opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do
desempoderamento” (CRENSHAW, 2002, p. 177).
Piscitelli (2008) discute que esta formulação de Crenshaw retoma à ideia de patriarcado.
E que sua linguagem parece remeter aos textos da década de 1970: patriarcalismo, experiência,
subordinação – Crenshaw, em um caminho diferente das formulações feministas da segunda
onda, considera que gênero não é o único fator de discriminação e que outros itens estariam
operando em conjunto. “A autora utiliza reiteradamente termos como vulnerabilidade,
desempoderamento, o que faz sentido quando se pensa em seu objetivo” (PISCITELLI, 2008, p.
267).
Porém, uma das problematizações apontadas por Piscitelli (2008) é que Crenshaw, sob
uma perspectiva antropológica, generaliza a interseccionalidade pensando em casos de graves
violações dos direitos humanos. Tal ação pode se mostrar frágil porque funde a ideia de diferença
com a de desigualdade.
As leituras críticas sobre interseccionalidade consideram essa leitura de
Crenshaw expressiva de uma linha sistêmica, que destaca o impacto do sistema
ou a estrutura sobre a formação de identidades. Nesse sentido, problematizam
outros aspectos dessa formulação. Questionam o fato de que gênero, raça e
classe são pensados como sistemas de dominação, opressão e marginalização
que determinam identidades, exclusivamente vinculadas aos efeitos da
subordinação social e o desempoderamento (Prins, 2006). Outro problema
apontado nessa abordagem é que nela o poder é tratado como uma propriedade
que uns têm e outros não, e não como uma relação (PISCITELLI, 2008, p. 267).
Neste sentido, apresenta-se a interseccionalidade a partir de outra referência teórica, de
Avtar Brah (2006). A autora se dedica à compreensão e (re)significação dos discursos sobre a
diferença, alertando também a associação entre diferença, hierarquia e opressão e também à
igualdade e diversidade. Conforme salientado por ela, os termos “diferença”, “diversidade”,
“pluralismo” e “hibridismo” estão bastante presentes em debates atuais, e também nas discussões
58

do feminismo. Necessário considerar como esses temas ajudam a compreender a racialização do


gênero.
Independente das vezes que o conceito é exposto como vazio, a “raça” ainda
atua como um marcador aparentemente inerradicável de diferença social. O que
torna possível que essa categoria atue dessa maneira? Qual é a natureza das
diferenças sociais e culturais, e o que lhes dá força? Como, então, a diferença
“racial” se liga a diferenças e antagonismos organizados em torno a outros
marcadores como “gênero” e “classe”? Tais questões são importantes porque
podem ajudar a explicar o tenaz investimento das pessoas em noções de
identidade, comunidade e tradição (BRAH, 2006, p. 331).
Discute-se a problemática do essencialismo enquanto noção que transcenderia limites
históricos e culturais. Revisitando os debates do feminismo, a autora sugere que “os feminismos
negro e branco não devem ser vistos como categorias essencialmente fixas e em oposição, mas
antes como campos historicamente contingentes de contestação dentro de práticas discursivas e
materiais” (BRAH, 2006, p. 331). Neste mesmo caminho a argumentação se dá sobre a análise
das interconexões entre racismo, classe, gênero, sexualidade ou outros marcadores de “diferença”
que devem, então, considerar a posição dos diferentes racismos entre si.
A partir do questionamento se a irmandade (sisterhood) é global, Brah (2006) relata sua
participação em 1985 na Conferência Internacional de Mulheres em Nairobi, onde cerca de dez
mil mulheres de mais de 150 países se reuniram para discutir a subordinação universal da mulher
como “segundo sexo”. De acordo com a autora, o aspecto mais notável desta conferência era a
heterogeneidade das condições sociais:
[...] questões levantadas pelos diferentes grupos de mulheres presentes à
conferência, especialmente as do Terceiro Mundo, serviram para sublinhar o fato
de que os problemas que afetam as mulheres não podem ser analisados
isoladamente do contexto de desigualdade nacional e internacional. Nosso
gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo nossa
localização dentro de relações globais de poder. Nossa inserção nessas relações
globais de poder se realiza através de uma miríade de processos econômicos,
políticos e ideológicos (BRAH, 2006, p. 341).
Deste modo, ao considerar a inexistência de uma categoria unitária de mulher, o
feminismo deve perceber esta classe enquanto signo construído por meio de configurações
históricas e específicas das relações de gênero. “Seu fluxo semiótico assume significados
específicos em discursos de diferentes ‘feminilidades’ onde vem a simbolizar trajetórias,
circunstâncias materiais e experiências culturais históricas particulares” (BRAH, 2006, p. 341).
O foco analítico nesta discussão se coloca em uma edificação de sociedade baseada em
diferentes categorias de mulheres dentro de processos estruturais e ideológicos mais complexos.
59

A crítica, bem próxima do discutido por Crenshaw, se faz em relação às perspectivas de


movimentos feministas ocidentais que, desde a sua criação, não se atentam suficientemente aos
processos de racialização do gênero, classe e sexualidade.
Processos de racialização são, é claro, historicamente específicos, e diferentes
grupos foram racializados de maneira diferente em circunstâncias variadas, e na
base de diferentes significantes de “diferença”. Cada racismo tem uma história
particular. Surgiu no contexto de um conjunto específico de circunstâncias
econômicas, políticas e culturais, foi produzido e reproduzido através de
mecanismos específicos e assumiu diferentes formas em diferentes situações
(BRAH, 2006, p. 344).
De acordo com Brah (2006), a partir da década de 80 começam a surgir dentro do
movimento das mulheres como um todo uma ênfase na política da identidade. Neste processo
houve dificuldade na construção de uma política de solidariedade, porque ao se identificar as
especificidades de opressões particulares, e suas interconexões com outras formas de opressão,
algumas mulheres começavam a diferenciar essas especificidades em hierarquias de opressão.
Supunha-se que o mero ato de nomear-se como membro de um grupo oprimido
conferisse autoridade moral. Opressões múltiplas passaram a ser vistas não em
termos de seus padrões de articulação, mas como elementos separados que
podiam ser adicionados de maneira linear, de tal modo que, quanto mais
opressões uma mulher pudesse listar, maior sua reivindicação a ocupar uma
posição moral mais elevada (BRAH, 2006, p. 348).
Ao lançar mão do conceito de patriarcado, Brah (2006) problematiza relações patriarcais
nos casos específicos em que as mulheres ocupam posições subordinadas – “a autora propõe uma
análise macro, considerando simultaneamente subjetividade e identidade para compreender as
dinâmicas de poder na diferenciação social” (PISCITELLI, 2008, p. 268).
O que se percebe é que enquanto Crenshaw busca compreender a atuação do racismo, o
patriarcalismo e outras formas de opressão, Brah se dedica à compreensão da categoria diferença,
evidenciando a ligação desta com diferentes formas de opressão.
Outra autora que se dedica à compreensão da interseccionalidade é Helena Hirata31
(2014), que coloca em debate a relação entre raça, classe e gênero, evidenciando que são
conceitos indissociáveis. A análise é feita a partir de um ponto de vista situado, pois surge do

31
Hirata (2014) desenvolve sua pesquisa na prática do care, ou seja do cuidado, evidenciando a desvalorização deste
trabalho em sua relação com sexo, classe e raça. De acordo com a autora há duas possibilidades para esta
desvalorização. A primeira parte de teorias feministas que a associam como continuidade da desvalorização do
trabalho doméstico executado de forma não remunerada pelas mulheres. A segunda possibilidade seria a relação
entre a vulnerabilidade e falta de cidadania dos que são cuidados (idosos, portadores de deficiência) com a
vulnerabilidade dos cuidadores, que são também de uma subcategoria – mulheres negras.
60

reconhecimento da necessidade de se partir de um ponto de vista próprio à experiência da


conjunção das relações de poder de sexo, raça e classe, e não mais somente à experiência dos
lugares ocupados por mulheres.
Hirata (2014) analisa o conhecimento situado (também chamado de perspectiva parcial) a
partir dos conceitos de interseccionalidade ou consubstancialidade da teoria feminista. Estes
conceitos partem da problematizarão de que o concebido como natural e universal incorporam
somente a visão de mundo das pessoas que criaram essa ciência: homens, brancos, ocidentais e
das classes dominantes.
A autora inclui no debate o conceito consubstancialidade, desenvolvido em 1970 por
Danièle Kergoat, e discute que embora apresente diferenciações do conceito de
interseccionalidade de Crenshaw, tem em comum o fato de propor a não hierarquização das
formas de opressão.
A crítica de Kergoat ao conceito interseccionalidade é por este remeter a uma ideia de
cartografia, o que gera naturalização das categorias analíticas – a multiplicidade de categorias
mascararia as relações sociais.
Essa crítica é aprofundada na introdução do seu recente livro, Se battre disent-
elles (2012), pelos seguintes pontos: 1) a multiplicidade de pontos de entrada
(casta, religião, região, etnia, nação etc., e não apenas raça, gênero, classe) leva a
um perigo de fragmentação das práticas sociais e à dissolução da violência das
relações sociais, com o risco de contribuir à sua reprodução; 2) não é certo que
todos esses pontos remetem a relações sociais e talvez não seja o caso de colocá-
los todos num mesmo plano; 3) os teóricos da interseccionalidade continuam a
raciocinar em termos de categorias e não de relações sociais, privilegiando uma
ou outra categoria, como por exemplo a nação, a classe, a religião, o sexo, a
casta etc., sem historicizá-las e por vezes não levando em conta as dimensões
materiais da dominação (KERGOAT, 2012 apud HIRATA, 2014, p. 65).
Danièle Kergoat discute os conflitos de classe, de gênero e os raciais evidenciando a
tendência de eles serem concebidos, interpretados e enfrentados isoladamente. A autora analisa
desenvolvimentos no campo dos estudos feministas e da sociologia do trabalho que apontam para
a interdependência dessas categorias sociais, tanto no plano teórico como na prática de
movimentos sociais de mulheres e trabalhadoras.
A autora traz que o conceito de interseccionalidade não auxilia na compreensão de uma
relação de dominação móvel e historicamente determinada, já que parte das relações em posições
fixas, dividindo as mobilizações em setores, repetindo a ação pela qual o discurso dominante
naturaliza e enquadra os sujeitos em identidades previamente definidas.
61

Em seguida, um imperativo histórico: o caráter dinâmico das relações sociais é


central para a análise. Elas devem ser historicizadas, pois possuem uma estrutura
que permite sua permanência, mas também passam por transformações que
correspondem a períodos históricos e a eventos que podem acelerar seu curso.
No entanto, não se deve jamais historicizar uma relação social em detrimento de
outras. Isso significaria transformar a relação em categorias caracterizadas pela
metaestabilidade (KERGOAT, 2010, p. 100).
Destaque para o fato de que as categorias de interseccionalidade de Crenshaw e
substancialidade de Kergoat possuem semelhanças, já que estas duas teorias problematizam a
excessiva unilateralidade nos debates feministas na metade do século passado.
Assim como Hirata (2014), defende-se neste estudo o uso do conceito interseccionalidade
ao invés de consubstancialidade, porque a análise interseccional permite a compreensão da
atuação de diferentes formas de opressão para além das que se fazem presentes nas categorias de
raça, classe e gênero. Há outras identidades fundamentais que se imbricam e situam o sujeito nas
relações cotidianas de poder, como religião, orientação sexual etc. Compreende-se
interseccionalidade como “uma das formas de combater as opressões múltiplas e imbricadas, e,
portanto, como um instrumento de luta política” (HIRATA, 2014, p. 69).
Nas referências sobre autoras percursoras da interseccionalidade encontra-se, a partir de
Patrícia Mattos (2011), as autoras alemãs Nina Degele e Gabriele Winker como potencializadoras
para as pesquisas interseccionais feministas, pós-coloniais e queer.
A novidade proposta por Degele e Winker (2007, 2008 e 2009) é a formulação
de um conceito Intersektionalität (interseccionalidade) que permita articular a
relação entre agência e estrutura, contemplando, de maneira adequada, também
o nível das representações simbólicas para compreender a dinâmica da
dominação social injusta (MATTOS, 2011, p. 2).
Mattos (2011) salienta que o conceito de habitus de Pierre Bourdieu, embora tenha
conseguido com êxito relacionar agência e estrutura, não teria conseguido proporcionar uma
análise propriamente interseccional dos três níveis (das estruturas sociais, das representações
simbólicas e da identidade) juntamente com as categorias de diferenciação que naturalizam,
produzem e reproduzem as desigualdades sociais.
O que as autoras da teoria da interseccionalidade colocam como desafio é
desenvolver um conceito e métodos de pesquisa que permitam responder às
seguintes questões: como evitar a sobreposição de categorias de diferenciação,
simplificando e obscurecendo o diagnóstico a respeito da relação entre as causas
e os efeitos das desigualdades sociais? Como não confundir as causas com os
efeitos e vice-versa? Como não cair na armadilha de fazer análises “adicionais”
e sobrepostas, que não permitam que se chegue a um diagnóstico preciso sobre
as causas e os efeitos das desigualdades sociais? (MATTOS, 2011, p. 3).
62

Define-se então como categoria da abordagem interseccional a percepção das categorias


de diferenciação e a consequente produção de efeito que se dá de forma distinta, dependendo do
contexto analisado. A escolha das categorias de diferenciação nos diferentes níveis de análise
deve considerar as causas e os efeitos da opressão, “reconhecendo sempre que a especificidade
histórica e contextual distingue mecanismos que produzem, estabilizam, perpetuam e naturalizam
desigualdades sociais por diferentes divisões categoriais” (MATTOS, 2011, p. 3).
Winker e Degele (2007, 2008 e 2009) propõem que para a investigação da estrutura social
seja realizada uma redução de categorias em quatro – classe social, raça, gênero e corpo, para se
analisar como essas categorias predeterminam o acesso ao mercado de trabalho e às posições no
mercado de trabalho (MATTOS, 2011).
Os avanços destas duas autoras em relação a Pierre Bourdieu seriam a problematização
da necessidade de “desenvolver pesquisas empíricas orientadas teoricamente que permitam
perceber as mudanças reais ocorridas nas sociedades contemporâneas a partir da análise das
práticas sociais, desvelando, assim, as formas de legitimação e justificação da dominação social
injusta” (MATTOS, 2011, p. 3). Winker e Degler propõem “não só considerar os três níveis de
análise – das estruturas sociais, da identidade e das representações simbólicas, mas também as
diferentes categorias de diferenciação que, de distintas maneiras, geram e perpetuam formas de
opressão, discriminação social e estereotipação” (idem, 2011, p. 3).
Concorda-se com Mattos (2011) da necessidade de se perceber que as categorias de
diferenciação produzem efeitos distintos, dependendo do contexto analisado, bem como do nível
de análise.
Portanto, a escolha das categorias de diferenciação nos diferentes níveis de
análise deve levar em consideração esse aspecto levantado em relação às causas
e aos efeitos, reconhecendo sempre que a especificidade histórica e contextual
distingue mecanismos que produzem, estabilizam, perpetuam e naturalizam
desigualdades sociais por diferentes divisões categoriais (MATTOS, 2011, p. 7).
Evitando o “essencialismo da diferença”, não se pode desconsiderar que o contexto social
nas análises interseccionais, a análise do macro e o estudo das inter-relações são essenciais nos
estudos sobre práticas de opressão, o que traz o desafio de:
[...] visualizar as ações recíprocas de diferentes categorias nos três níveis e
colocá-las no centro da análise institucionais da implementação dessa lógica
para a construção de uma análise interseccional. Para cumprir tal desiderato, faz-
se necessário investigar os pressupostos da reprodução da força de trabalho no
nível da estrutura; o novo “espírito do capitalismo” no nível das representações
simbólicas e as novas formas de subjetivação baseadas na insegurança dos
63

agentes sociais no nível da identidade. Elas partem da suposição de que todas as


categorias de diferença têm em comum a regulação da lógica de acumulação
capitalista – sua estabilização e também desestabilização, mesmo que o
significado de cada categoria se modifique, dependo do contexto histórico
(MATTOS, 2011, p. 8-9).
Evidencia-se com este mapeamento teórico uma ausência de convergência entre os
pesquisadores interseccionais com relação à conceituação do termo e seu uso, e também em
relação à escolha das categorias geradoras de desigualdades sociais.
64

3. ESTADO DO CONHECIMENTO EM INTERSECCIONALIDADE

Sendo a interseccionalidade um conceito cunhado no bojo do feminismo negro


estadunidense e recebido por feministas negras brasileiras, mas de forma ainda pouco difundida,
esta parte da pesquisa busca compreender mais sobre o conceito a partir da sua recepção por
pesquisadores/as brasileiros. O objetivo é apresentar um estado de conhecimento para se desvelar
o que se tem produzido na perspectiva interseccional, contribuindo para a ampliação das
discussões acerca das sobreposições de opressão que afetam de sobremaneira a mulher negra a
partir de reflexões da existência e recorrência da produção de pesquisas sobre o conceito.
O estado de conhecimento em interseccionalidade se fundamenta na identificação,
registro, organização e categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção científica
de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo. Seu uso pode ser justificado,
pois ao mesmo tempo que possibilita uma visão geral do que foi ou vem sendo produzido,
[...] permite realizar uma ordenação do progresso das pesquisas e de temas
emergentes e priorizados em cada período, bem como desvendar suas
características e foco, além de identificar as contribuições e avanços encontrados
pelas/os autoras/es e de divulgar e conferir maior visibilidade as produções
existentes (MULLER, 2015, p. 166).
Conforme apontado por Muller (2015), a etapa inicial do estado de conhecimento é a
“coleta de dados e a organização do material apurado segundo critérios prévios de análise, tendo
como diretriz inicial alguns procedimentos” (MULLER, 2015, p. 170). A autora sugere como
procedimento “fichamento, levantamento de dados, agrupamento quantitativo e qualitativo de
dados, de termos, temas, áreas, criação de mapas, tabelas e gráficos para facilitar o controle,
leitura e revisão permanentes” (MULLER, 2015, p. 170), que são ações que permitem a
elaboração de uma síntese das análises realizadas com possibilidade de rever e atualizar os dados
sobre diferentes aspectos do material obtido.
Esta etapa do estudo se estabelece a partir dos seguintes procedimentos metodológicos:
levantamento dos dados no banco de teses e dissertações da CAPES com o descritor
Interseccionalidade e o recorte temporal 2005 -2015; coleta dos dados; organização dos dados em
quadro; análise descritiva dos dados e possíveis implicações.
65

A busca inicial identificou 56 registros de produções, sendo que uma destas publicações
não estava disponível em português32 e outras nove utilizavam do conceito em contextos
desconexos à discussão do presente estudo33. As 46 produções foram organizadas em uma tabela,
que apresenta dados importantes sobre cada uma das produções: título da produção; autoria; ano
de publicação; área e instituição/estado no qual a pesquisa se desenvolve. Na tabela 2 a seguir, as
marcações D e T referem-se, respectivamente, a dissertações de mestrado e teses de doutorado.

32
A dissertação de Carla Denise Grudtner (2014), produzida em Estudos Linguísticos e Literários, estava disponível
apenas em língua inglesa.
33
1. A tese “As Filhas do vento e o Céu de Suely: sujeitos femininos no cinema da retomada” aparece duplicada,
com autoria de Tania Mara Moysses em um resultado, e Sumaya Machado Lima em outro. Na tese publicada a
autoria oficial pertence a Lima (2010); 2. As teses de Elmara Pereira de Souza (2013) e Maria Carolina Santos de
Souza (2013), porque discutem interseccionalidade como conceito advindo das subjetividades em ambiente virtual;
3. As teses de Marcia de Freitas Cordeiro (2015), Gilmara dos Santos Oliveira Vergara (2015), Rocha-Ramos (2014)
e Alberico Salgueiro de Freitas Neto (2015), que trabalham a perspectiva de interseccionalidade em outra perspectiva
que não a do feminismo negro. 5. A tese de Claudia Embirussu Barreto (2015), na qual interseccionalidade é
problematizada a partir de referenciais teóricos do campo da ciência da computação.
66

Tabela 2 - Levantamento CAPES Interseccionalidade 2005 - 2015


Banco de Teses e Dissertações da CAPES - Palavra-chave: Interseccionalidade

Tipo Título Autoria Ano Área Instituição/Estado

D Um olhar interseccional sobre feminismos, Vanilda Maria de 2006 Sociologia Universidade Federal de
negritudes e lesbianidades em Goiás Oliveira Goiás/GO
D Cassandra Rios de lágrimas: uma leitura crítica Maria Isabel de 2009 Literatura Universidade Federal de
dos inter(ditos) Castro Lima Santa Catarina/SC
D Desigualdade e identidade no serviço Neville Júlio de 2010 Sociologia Universidade Federal de
doméstico: intersecções entre classe, raça e Vilasboas e Santos Goiás/GO
gênero
D Conceição do Coité em “quadrado”: retratos da Zuleide Paiva da 2010 Estudos Universidade Federal da
violência contra as mulheres (1980-1998) Silva interdisciplinares Bahia/BA
sobre mulheres,
gênero e feminismo
T As filhas de vento e o Céu de Suely: sujeitos Sumaya Machado 2010 Literatura Universidade Federal de
femininos no cinema da Retomada Lima Santa Catarina/SC
D O conceito de gênero nas políticas públicas que Leila Alcina Correia 2010 Enfermagem Universidade Federal da
orientam atenção à saúde da mulher: revisão Vaz Bustorff Paraíba/PB
integrativa da literatura
D Direitos Sexuais e políticas públicas: o Samuel Luiz de 2011 Direito Universidade Federal do
combate à discriminação para a concretização Souza Junior Pará/PA
dos Direitos Humanos de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) no
Estado do Pará
T Entre vapores e dublagens: dissidências Fernando Altair 2011 Educação Universidade Federal do
homo/eróticas nas tramas do envelhecimento Pocahy Rio Grande do Sul/RS
D Ó paí, prezada! Racismo e sexismo Carla Adriana da 2012 Estudos Universidade Federal da
institucionais tomando bonde no conjunto Silva Santos Interdisciplinares Bahia/BA
penal feminino de Salvador sobre Mulheres,
Gênero e Feminismo
67

Tipo Título Autoria Ano Área Instituição/Estado

D Interseccionalidade entre raça e surdez: a Francisco José Roma 2012 Educação Universidade de
situação de surdos (as) negros (as) em São Luís Buzar Brasília/DF
– MA
D A construção social da Saúde reprodutiva no Heloísa Helena da 2012 Saúde Coletiva Universidade do Vale do
Brasil: um olhar na perspectiva da Silva Duarte Rio dos Sinos/RS
interseccionalidade de gênero e raça
D Mulheres negras soropositivas e as Angelita Alves de 2012 Serviço Social Universidade Federal de
Interseccionalidades entre Gênero, Classe e Toledo Santa Catarina/SC
Raça/Etnia
D Violência contra as mulheres e interfaces com Terlúcia Maria da 2013 Ciências Jurídicas Universidade Federal da
o racismo: o desafio da articulação de gênero e Silva Paraíba/PB
raça
D Sobre subalternidades e enfrentamentos: André Geraldo 2013 Psicologia Universidade Federal de
sexualidade, poder e agenciamentos na Ribeiro Diniz MG/MG
experiência de mulheres prostitutas
T Interseccionalidade gênero/raça/etnia e a Lei Raquel Da Silva 2013 Psicologia Social e Universidade Federal do
Maria da Penha: discursos jurídicos brasileiros Silveira institucional Rio Grande do Sul/RS
e espanhóis e a produção de subjetividade
D Discriminação múltipla como discriminação Rodrigo da Silva 2013 Direito Centro Universitário
interseccional: o direito brasileiro e as Ritter dos Reis/RS
intersecções de raça, gênero e classe
D Conectadas uma análise de práticas de ajuda- Lara Roberta 2013 Sociologia Universidade Federal de
mútua feminina na era das Mídias Digitais' Rodrigues Facioli São Carlos/SP
D Processos de territorialização em espaços Alexandre da Silva 2013 Interdisciplinar em Universidade Federal de
marginais: estudo exploratório e descritivo das Ciências da Saúde São Paulo/SP
vivências de homens que fazem sexo com
outros homens na cidade de Praia Grande/SP
D Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher e Mayara Alice Souza 2013 Ciência Jurídica Universidade Estadual do
a atuação estatal: o respeito à diferença Pegorer Norte do Paraná/PR
múltipla como fator orientador de políticas
públicas de gênero
68

Tipo Título Autoria Ano Área Instituição/Estado

D Mulheres negras em Jacutinga: sobre Alexandre dos Santos 2014 Relações Étnico- Centro Federal de
interseccionalidade e empoderamento Monteiro Raciais Educação Tecnológica
Celso Suckow da
Fonseca/RJ
D Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos Jouber Silvestre da 2014 Sociologia Universidade Federal de
surdos-homossexuais Silva Candido Goiás/GO
D Os tambores das 'yabás': raça, sexualidade, Valeria Alves de 2014 Ciência Social Universidade de São
gênero e cultura no bloco afro Ilú obá de Min Souza Paulo/SP
D Os significados do uso de álcool entre os/as Roseane Amorim da 2014 Psicologia Universidade Federal de
jovens quilombolas de Garanhuns/PE: uma Silva Pernambuco/PE
perspectiva interseccional
D Mulheres Invisíveis: uma análise da influência Debora Cheskys 2014 Direito Pontifícia Universidade
dos estereótipos de gênero na vida de mulheres Católica/RJ
encarceradas
D “Recordar é preciso": Conceição Evaristo e a Barbara Araújo 2014 História Universidade
intelectualidade negra no contexto do Machado Fluminense/RJ
movimento negro brasileiro contemporâneo
(1982-2008)
D Trabalhadora doméstica - patriarcalismo, Marco Antônio 2014 Direito Pontifícia Universidade
interseccionalidades de gênero e raça e Redinz Católica/RJ
situação no mercado de trabalho no Brasil
T Resistindo à tempestade: a interseccionalidade Marcela Ernesto dos 2014 Letras Universidade Estadual
de opressões nas obras de Carolina Maria e Santos Paulista Júlio de Mesquita
Maya Angelou Filho/SP
D Corpos em movimento, educação em questão: Patrícia Gabrielle 2014 Relações Étnico- Centro Federal de
a trajetória escolar das travestis negras Oliveira Rodrigues Raciais Educação Tecnológica
Celso Suckow da
Fonseca/RJ
69

Tipo Título Autoria Ano Área Instituição/Estado

T Elementos teopedagógicos afrocentrados para Lilian Conceição da 2014 Teologia Escola Superior de
superação da violência de gênero contra as Silva Pessoa de Lira Teologia/RS
mulheres negras: diálogo com a comunidade-
terreiro Ilé àṣẹ yem ọjá omi olodò e o
acolhimento que alimenta a ancestralidade
D Grupo de mulheres negras Mãe Andresa: Ana Nery Correia 2014 Ciências Sociais Universidade Federal do
marcações identitárias de gênero e raça na Lima Maranhão/MA
produção de estratégias contra o racismo e o
machismo
D No Feirão do Chope: um estudo antropológico Bruno dos Santos 2015 Antropologia Social Universidade Federal de
sobre intersecções entre marcadores sociais da Hammes Goiás/GO
diferença em um bar na região periferizada de
Goiânia
D As intervenções com homens autores de João Paulo Bernardes 2015 Psicologia Universidade Federal de
violência doméstica contra as mulheres ante Gonçalves Minas Gerais/MG
suas bases teórico-metodológicas e
perspectivas políticas: as experiências no
estado de Minas Gerais
T Mulheres negras, negras mulheres: ativismo na Ana Cristina 2015 Educação Universidade Federal do
capital baiana (1980-1991) Conceição Santos Ceará/CE
D Penalidade e privilégio: a falsa representação Ana Carolina 2015 Direito Político e Universidade
dos homens negros homossexuais Welligton Costa Econômico Presbiteriana
Gomes Mackenzie/SP
D Concepções de violência e interseccionalidade: Thalita Rodrigues 2015 Psicologia Universidade Federal de
análise em um centro de referência de Minas Gerais/MG
atendimento a mulheres em situação de
violência
D Tecendo o futuro: vivências de mulheres Débora Brasil 2015 Direitos Humanos e Universidade de
negras em uma perspectiva intergeracional e Miranda Cidadania Brasília/DF
familiar
70

Tipo Título Autoria Ano Área Instituição/Estado

D Trajetórias militantes e feminismos Mariana Passos Dutra 2015 Sociologia Universidade Federal
divergentes: transgressão, institucionalização e Fluminense/RJ
transeccionalidade
D Além dos muros da escola: um estudo sobre Cintia Isabel Patti 2015 Educação Pontifícia Universidade
educação popular e o projeto Promotoras Católica de Campinas/SP
Legais Populares de Campinas (SP)
D Desigualdades de gênero e intragênero: um Fernanda Ferreira de 2015 Ciências Sociais Universidade Federal do
estudo acerca das representações sociais do Jesus Recôncavo da Bahia/BA
envelhecimento
D “Quando não tem bebida, morga logo! ” Um Leyllyanne Bezerra 2015 Psicologia Universidade Federal de
estudo interseccional sobre juventude e de Souza Pernambuco/PE
consumo de álcool
D “Tá dentro, não tá fora”: subjetividade, Eliana Costa Xavier 2015 Psicologia Pontifícia Universidade
interseccionalidade e experiências de Católica do Rio Grande
adoecimento de mulheres negras com doença do Sul/RS
falciforme
D Rés negras, judiciário branco: uma análise da Enedina do Amparo 2015 Ciências Sociais Pontifícia Universidade
interseccionalidade de gênero, raça e classe na Alves Católica de São Paulo/SP
produção da punição em uma prisão paulistana
T A vivência de mulheres em cargos em cargos Edilene Machado 2015 Ciências Sociais Universidade Estadual
executivos em grandes empresas: uma análise Pereira Paulista
interseccional das desigualdades de gênero e de Júlio de Mesquita
raça Filho/SP
D Por inflexões decoloniais de corpos e Viviane Vergueiro 2015 Programa Universidade Federal da
identidades de gênero inconformes: uma Simakawa Multidisciplinar Bahia/BA
análise autoetnográfica da cisgeneridade como Cultura e Sociedade
normatividade
D Perspectivas de rappers brancos/as Jorge Hilton de Assis 2015 Educação e Universidade Estadual da
brasileiros/as sobre as relações raciais: um Miranda Contemporaneidade Bahia/BA
olhar sobre a branquitude
71

Tipo Título Autoria Ano Área Instituição/Estado

D Baianas de acarajé contra FIFA: um estudo de Larissa da Silva Araújo 2015 Direitos Humanos e Universidade de
caso sobre desenvolvimento e colonialidade Cidadania Brasília/DF
T Morra para se libertar: estigmatização e Valeria Melki Busin 2015 Psicologia Social Universidade de São
violência contra travestis' Paulo/SP

Fonte: Elaborada pela autora (2017)


72

3.1 O perfil das pesquisadoras e dos pesquisadores

O conceito de interseccionalidade, conforme discutido nesta pesquisa, foi cunhado na


década de 80 por Crenshaw. A proposta do presente estudo ao se propor compreender a
dedicação de pesquisadores/as sobre a perspectiva interseccional entre os anos de 2005 e 2015
permite um panorama sobre a recepção do conceito de interseccionalidade nas pesquisas
brasileiras 25 anos após sua conceituação teórica.
Conforme apresentado no Gráfico 1, no ano de 2005 não há registro de pesquisas com
esse descritor no banco de teses. O primeiro registro é de 2006, em um programa de Sociologia.
Nos anos de 2007 e 2008 novamente não há registros, e a partir de 2009 há uma constante de
crescimento nas produções.

Gráfico 1 - Produções por ano

Fonte: Elaborada pela autora (2017)

Ainda pelo gráfico, analisando a divisão das produções em grau de mestre ou


doutoramento, tem-se um número muito maior de dissertações (39) em comparação às teses
(oito). E, conforme evidencia o gráfico 1, ainda que haja aumento do número de teses ao longo
dos anos, este número sempre é inferior ao de dissertações produzidas.
73

É possível trilhar alguns caminhos de hipótese para este aumento exponencial nas
produções, equacionando que sua grande maioria se concentra na discussão das discriminações
raciais. Todavia, esta análise precisa evidenciar que não é possível a afirmação de que estas
produções estão sendo feitas por pesquisadores/as negros/as, já que nem sempre este dado
aparece no corpo do estudo.
Quando estes pertencimentos foram salientados nas introduções ou trajetórias,
considerando a importância de dar visibilidade para as produções intelectuais negras, realizaram-
se recortes que permitem não só evidenciar o pertencimento negro da/o pesquisadora/a como
também a ligação de tal pertencimento como motivação para a perspectiva interseccional.
É o caso de Carla Adriana da Silva Santos (2012), que se auto apresenta como mulher
negra, vinda das camadas populares de Salvador, e que por essa origem tem conhecimentos
importantes sobre as dificuldades no acesso à justiça, enfrentadas por mulheres como ela, e a
partir de tal vivência se propõe a desenvolver um estudo para dar visibilidade para as práticas de
violência institucional contra mulheres negras no sistema prisional protagonizados por homens
presos e por servidores do Estado.
Patrícia Gabrielle Oliveira Rodrigues (2014), se coloca em sua trajetória como mulher
negra, evidenciando os enfrentamentos no espaço educacional, e pontua que para sua formação
enquanto estudante negra foi primordial estar imersa em uma rede de solidariedade, no contexto
da autora, o coletivo Sankofa. A partir destas experiências a autora desenvolve seu estudo sobre
heteronormatividade e os privilégios da branquitude a partir de investigação formulada com
travestis negras no desvelamento de práticas de discriminação no ambiente escolar.
Bastante interessante também o modo como Edilene Machado Pereira (2015) inclui a
importância de sua trajetória no desenvolvimento da pesquisa que desenvolve sobre mulheres
negras em cargos de poder. Narra então que sua mãe, responsável pelo sustento familiar, quando
trocou de uma ocupação remunerada pelo trabalho doméstico não foi valorizada socialmente, o
que tirou dela autonomia, deixando-a dependente financeira e emocionalmente do marido.
A pesquisadora conta que sempre se interessou por leituras, por onde diz que sua mente
podia vivenciar aventuras e sonhar com histórias – a partir deste interesse por ler, com suas
experiências pessoais ela passou a se interessar por autores que trabalhavam com a temática das
relações raciais no Brasil, se percebendo assim como adolescente negra.
Assim, a minha subjetividade foi se construindo e se deu por meio da inter-
relação com outras subjetividades, na escola com as colegas, no mundo da
74

leitura e entre a própria família. Costumava observar, na escola, que com o


passar dos anos o número de colegas negros diminuía. Muitas jovens iam
trabalhar em “casa de família” e por conta disso precisavam se transferir para o
turno noturno ou abandonar os estudos. Com os meninos negros acontecia algo
semelhante. Eles iam vender alimentos na rua ou engraxar sapatos dos pedestres
para ajudar nas despesas da família. Era a perpetuação do “lugar social do
negro”, lugar esse naturalizado pela sociedade para os não brancos como sendo
o da subalternidade (PEREIRA, 2015, p. 29).
Valéria Alves de Souza (2014) evidencia em sua trajetória como suas vivências de
opressão machista e racista a impactaram na produção de uma pesquisa voltada para a intersecção
de opressões das identidades de gênero e raça. A autora evidencia sob que circunstâncias foi
construindo sua identidade de intelectual negra, e aponta um processo dialético em que ao mesmo
tempo em que ela se reproduzia no seu campo de pesquisa, era produzida por ele.
Os marcadores sociais da diferença, gênero, raça, sexualidade, cultura e
religiosidade (eu estou considerando religiosidade um marcador, pois, se
olhamos o mundo a partir daquilo que nos constitui, a forma de professar a fé,
ou a simpatia por alguma expressão religiosa nos orientam e nos direcionam
para determinados tipos de olhares sobre ele), e suas intersecções são inerentes a
uma sociedade profundamente desigual e olhar e analisar no interior dos grupos
como eles são vivenciados e articulados é nossa tarefa de pesquisadoras e
pesquisadores. (SOUZA, 2014, p. 7).
Souza (2014) se coloca no campo enquanto intelectual negra com vivências
cotidianamente marcadas pelas relações de poder e interseccionalidade, e traz uma investigação
que perpassa por estas suas vivências religiosas, de gênero e raça, em uma investigação sobre os
modos pelos quais as componentes do Bloco Afro Ilú Obá De Min operacionalizam e articulam
os marcadores sociais da diferença raça, gênero e sexualidade.
Na pesquisa de Raquel da Silva Silveira (2013) há enunciação do perfil racial
miscigenado da autora e sua aproximação com a temática racial, quando ela discute que a opção
por se trabalhar com raça enquanto categoria de análise se deu a partir da invisibilidade que as
diferenciações da miscigenação tiveram em sua vida.
Apesar de minha branquitude, meus cabelos encaracolados vêm de um tataravô
negro, casado com uma mulher branca, que segundo relatos familiares, tinha
sido motivo de muitos desgostos para as gerações seguintes, em virtude dessa
herança genética “ruim”. Aliado a isso, minha filha tem a marca roxa da
miscigenação no seu corpo, uma pele “branca” mais escura que a minha, cabelos
encaracolados de um pai que se reconhecia como “branco”, mas com um corpo
nitidamente marcado pela mestiçagem e que é neto de uma negra que sempre
negou sua cor, seus cabelos crespos, sua origem. Essa “exposição” da minha
história de vida vem no sentido de inscrevê-la nos arranjos coletivos que nos
constituem, bem como demarcar a impossibilidade da neutralidade dos “objetos”
de pesquisa. (SILVEIRA, 2013, s/p).
75

A autora fundamenta esta explicitação em uma perspectiva teórica implicada com a


posição do sujeito para poder enunciar um discurso.
Eliana Costa Xavier (2015) discute que para se debruçar sobre a temática da subjetividade
interseccionada às questões de gênero, raça e classe social, ela não era capaz de se descolar das
suas próprias construções subjetivas como mulher negra. “Minha reflexão inicia com a
singularidade do meu percurso histórico e social, onde todos esses aspectos juntos constituem
para mim sentidos subjetivos” (XAVIER, 2015, p. 11). Nas palavras da autora:
Ser negra significa entender o processo edificado por violências históricas.
Violência moral no confronto com o poder; violência física, no medo dos maus
tratos; violência sexual, na cultura de disposição do corpo feminino negro e
dotado de uma superexcitação genética e psicológica, na humilhação racial e
principalmente, na carência de referenciais raciais, sociais e femininos que
assinalam a rejeição do papel da mulher negra na formação da cultura nacional.
Tornar-se negra é um movimento que se organiza de forma processual, pois
incorpora a multiplicidade de marcas implícitas. Ao buscar uma representação
desse processo me veio à mente a imagem de um cubo mágico, que mesmo
sendo um objeto concreto e endurecido, cada uma das suas posições, pela
infinidade de combinações passa a dinamicidade com os distintos e/ou iguais
pontos coloridos que compõe o todo. Cada faceta apresenta nuances distintas
que juntas compõem inúmeras configurações e dispersas isoladamente ou
repetidas, representam marcadores que interseccionam-se e configuram uma
série de possibilidades no auto reconhecimento como mulher negra (XAVIER,
2015, p. 11).
Tratando-se de uma análise inserida em uma pesquisa que se propõe compreender a
interseccionalidade, torna-se categórico analisar para além da questão racial sua intersecção com
gênero, buscando identificar se a interseccionalidade teorizada era também vivenciada pelas
autoras e autores em suas subjetividades.
A dificuldade em se estabelecer um perfil de raça neste estado de conhecimento em
interseccionalidade a partir de teses e dissertações não ocorreu na delimitação do perfil de gênero.
Há um grande predomínio de pesquisadoras mulheres desenvolvendo pesquisas a partir do
conceito de interseccionalidade, conforme se evidencia pelo gráfico 2 e 3.
76

Gráfico 2 – Produções Tese por Gênero

Fonte: elaborado pela autora (2017)

No gráfico 3 evidencia-se, porém que o número de homens produzindo dissertações é


maior do que os que produzem teses.

Gráfico 3 - Produções Dissertações por Gênero

Fonte: Elaborado pela autora (2017)


77

Tem-se um número expressivamente maior de mulheres escrevendo sobre a temática da


interseccionalidade. Evidencia-se que homens produziram apenas 12,5% das teses e 27,5% das
dissertações.
Válido destacar que embora no banco de teses e dissertações da CAPES a dissertação
“Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise
autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade” aparece com autoria de Douglas
Vergueiro Simakawa, o nome no corpo do texto e a quem se atribui autoria é Viviane Vergueiro
Simakawa.
Uso camisetinha, shortinho e sandálias havaianas (‘femininas’) cotidianas, tenho
os cabelos compridos e ondulados, com pequenas entradas parcialmente
reduzidas pela administração (sem acompanhamento médico) de finasterida, as
sobrancelhas afinadas, a pele do rosto relativamente sem pelos (após algumas 8
sessões de depilação a laser feitas uns 5 anos atrás), os seios pequenos e
desenvolvidos pela administração de climene, os olhos vermelhos de Jah. Muitas
pessoas ao meu redor me tomavam, ao menos por algum tempo e a alguma
distância, como uma mulher cisgênera, e/ou me respeitavam enquanto uma
mulher trans*travesti: é desde esta e desde estas outras posições específicas que
tento articular minha voz e produzir este trabalho. (SIMAKAWA, 2015, p. 18).
Simakawa (2015), pesquisadora mulher trans, constrói uma autoetnografia a partir deste
reconhecimento, trazendo a interseccionalidade como conceito fundamental para este trabalho
sobre diversidades corporais e de identidades de gênero.
Esta sub-representação masculina nas produções interseccionais instigaram a buscar nas
trajetórias dos autores de que forma se deu aproximação com um conceito do campo temático do
feminismo negro.
André Geraldo Ribeiro Diniz (2013) destaca em sua trajetória que sua aproximação com o
debate feminista se deu após a qualificação do projeto de dissertação no qual percebeu que em
sua pesquisa sobre subalternidades e enfrentamento, sexualidade, poder e agenciamentos na
experiência de mulheres prostitutas, apesar das significativas conexões com o problema de
pesquisa, ainda não havia nenhuma menção à prostituição. Seu aprofundamento sobre gênero se
deu durante uma mobilidade acadêmica na Escuela de Estudios de Género (EEG), da Universidad
Nacional de Colômbia, onde se aproximou de pesquisadoras/militantes, e com sua inserção na
equipe de um dos eixos do Programa Mulheres Promotoras de Cidadania.
Na trajetória de Bruno dos Santos Hammes (2015), sua aproximação se deu a partir da
participação no Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual, e com ingresso no
núcleo “Ser-Tão” da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG),
78

que trabalha com a qualificação e a produção de conhecimentos em torno das homossexualidades


e das questões relativas à gênero, dentre outros temas. Com estas vivências o autor tem contato
com debates que o aproximam da interseccionalidade e o levam a desenvolver um estudo sobre
pertencimento, juventude e sexualidade.
Na pesquisa de Samuel Luiz de Souza Junior (2011), o autor revela que seu interesse
pelas questões de gênero se deu na graduação em Direito, quando compreendeu que sua postura,
enquanto profissional, deveria ser a luta pela promoção, defesa e garantia dos Direitos Humanos.
Nessa perspectiva, busquei me aproximar dos Movimentos Sociais, conhecendo
suas reivindicações e convivendo mais de perto com as/os militantes. Essa
aproximação se deu de forma mais efetiva quando passei a atuar no então
Movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais); na
ocasião integrei o corpo de voluntários do Grupo Homossexual do Pará (GHP) e
me apropriei, então, das discussões ali travadas. Isso se deu a partir de 2004.
(SOUZA JUNIOR, 2011, p. 13).
Válido destacar o apresentado pelo autor das suas dificuldades pela carência de debates
acadêmicos que pautassem discriminações de gênero e raça. Nas suas palavras: “as pessoas eram
invisibilizadas e não havia disposição para a proposição do debate, que era omitido ou tratado de
forma sempre preconceituosa por parte dos corpos discente e docente” (SOUZA JUNIOR, 2011,
p. 13).
Jouber Silvestre da Silva Candido (2014) relata que no período de sua graduação em
Ciências Sociais, na busca por algum tema de interesse para pesquisa de conclusão de curso, em
meio a tantas possibilidades, se deparou, nas palavras de Candido (2014, p. 12) “meio que de
forma ‘acidental’, com algo que realmente me instigaria, me inquietaria e provocaria em mim um
interesse em conhecer mais os sujeitos surdos e homossexuais” e que a partir de então foram
sujeitos da sua investigação acadêmica.

3.2 Ações afirmativas e o status das pesquisadoras

Ainda que não tenha sido possível desenhar o perfil de raça/gênero dos pesquisadores, os
recortes apresentados e as temáticas de estudos evidenciam a ligação da interseccionalidade com
a discriminação racial e de gênero.
Tendo constatado que as pesquisas têm tido um aumento exponencial nos últimos anos, é
necessário equacionar o impacto das ações afirmativas no desenvolvimento de estudos com essa
temática. A implementação destas políticas no ensino superior, além de garantir o acesso da
79

população negra nos espaços acadêmicos também pode estar possibilitando um maior interesse
dos pesquisadores/as sobre temáticas raciais.
É necessário compreender as políticas que favorecem o ingresso da população negra e
também a discussão sobre práticas de racismos, a partir da fundamentação desta e de uma agenda
que vise combater a herança do processo de escravização e das práticas de racismo e segregação
racial que vitimizam a população negra no Brasil.

Compreende-se ação afirmativa enquanto prática que visa combater


desigualdade racial e “que seu conceito e utilização envolve uma tentativa
de compensar a população negra pela discriminação sofrida ou pela
alocação nos patamares mais baixos, no que se refere aos índices sociais,
como educação, distribuição salarial e habitação” (MUNANGA, 2003, p.
86).
Tais políticas se fazem cada vez mais presentes nos debates político e intelectual
brasileiro, e se fundamentam como forma privilegiada para a promoção da população negra,
inclusive no que se refere ao maior acesso de negras e negros à pós-graduação. Desta forma,
destaca-se que a identificação de pertencimento racial do indivíduo, acrescido dos valores e
conteúdos inerentes à realidade histórico-cultural própria desse contexto, incide em sua
identidade e possibilita o reconhecimento enquanto sujeito-pesquisador-negro, o que pode gerar o
desenvolvimento de pesquisas sobre as opressões da população negra.
Problematizando, todavia, a existência de uma lacuna nos estudos sobre desigualdade
racial e políticas de ação afirmativa no ensino superior, em relação à questão racial na discussão
sobre gênero e ciência é preciso notar que “de modo inverso, na literatura sobre desigualdade
racial e políticas de ação afirmativa no ensino superior, poucos estudos têm tratado das
disparidades entre negros e brancos, homens e mulheres, na categoria docente e nas carreiras
acadêmicas e científicas” (BARRETO, 2015, p. 42).
Com a continuidade da realização de estudos sobre a desigualdade racial no
ensino superior, e dez anos depois das primeiras iniciativas de criação das
políticas de ação afirmativa, estão surgindo outras demandas quando se trata de
promover a igualdade racial nas IES, e outros temas de pesquisa, com destaque
para a criação de espaços institucionais e de projetos antirracistas e antissexistas,
a inovação nos currículos e a situação dos docentes (BARRETO, 2015, p. 40).
A análise do levantamento bibliográfico apresentada nesta tese evidenciou o apontado
pela autora de que “em termos teóricos, a preocupação com a interface entre classe, gênero e raça
cresceu na pesquisa sobre desigualdade, incentivada, por exemplo, pelos estudos que utilizam a
abordagem interseccional” (idem, 2015, p. 40).
80

Sugere-se então que conceito de interseccionalidade surge como forma de permitir às


pesquisadoras negras incluir suas demandas nos debates raciais. Na academia34, estas mulheres
estariam ocupando o status de outsider within35, que permite um direcionamento de atenções para
áreas específicas do questionamento sociológico (COLLINS, 2016).
O gráfico 4 a seguir demonstra que mulheres negras ocupam um número
assustadoramente baixo na pós-graduação.

Gráfico 4 - Docentes doutores na pós-graduação

Fonte: INEP – Censo da Educação Superior 2016

Há compreensão de que mulheres negras acadêmicas, mesmo que ainda em número


relativamente baixo, têm papel importante na construção de conhecimentos e práticas que
contribuam para o rompimento da cultura machista e racista.

34
Necessário salientar que não só mulheres negras acadêmicas têm produzido o feminismo negro; outras mulheres
negras – professoras, pastoras, empregadas domésticas, mulheres em situação de cárcere – também constroem o
feminismo negro. “Desde o movimento dos direitos civis e do feminismo, as ideias de mulheres negras têm sido cada
vez mais documentadas e está atingindo um público mais amplo” (COLLINS, 2016, p. 102).
35
De acordo com a tradutora do texto de Collins (2016), Juliana de Castro Galvão, o termo outsider within não tem
uma correspondência inquestionável em português, por isso em sua tradução opta-se por manter o termo original,
trazendo como possíveis traduções: “forasteiras de dentro”, “estrangeiras de dentro”.
81

Discorrendo sobre mulheres negras enquanto “outsider within”, é interessante observar na


análise do percurso histórico a íntima relação de mulheres afro-americanas36 com a sociedade
branca, porque além de oferecerem seus trabalhos na parte de cozinha e limpeza também
cuidavam dos filhos destas famílias e davam conselhos a seus empregadores. Essa relação de
insider era positiva para todos os envolvidos. Há relatos de brancos ricos demonstrando esse
amor pelas suas “mães” negras. As mulheres negras percebiam que sua posição de inferioridade
não tinha relação com um intelecto de menor valor do que o das mulheres brancas, e sim com o
racismo. Mulheres negras se viam como melhores mães do que as mulheres brancas, e com
capacidade maior para desenvolver inúmeras tarefas. Por outro lado, essas mulheres tinham a
noção de quem jamais pertenceriam às “suas” famílias brancas: apesar de seu envolvimento,
permaneciam como outsiders37 (COLLINS, 2016).
Esse status de outsider within tem proporcionado às mulheres afro-americanas
um ponto de vista especial quanto ao self, à família e à sociedade. Uma revisão
cuidadosa da emergente literatura feminista negra revela que muitas intelectuais
negras, especialmente aquelas em contato com sua marginalidade em contextos
acadêmicos, exploram esse ponto de vista produzindo análises distintas quanto
às questões de raça, classe e gênero (COLLINS, 2016, p. 100).
“Outsider within” pode ser definido como essa possibilidade da mulher negra de viver na
margem e poder observar tanto de dentro para fora, quanto de fora para dentro – o que permite
uma compreensão mais ampla da sua realidade (COLLINS, 2016). Este status proporciona
obstáculos, mas também é benéfico, pois a objetividade permite ao mesmo tempo proximidade,
distância, preocupação e indiferença; trazem a tendência dessas pessoas se abrirem para estranhos
de modo como não fariam umas com as outras e, finalmente, possibilitam a habilidade destes
sujeitos em ver padrões que dificilmente seriam percebidos por aqueles imersos nas situações.
A autora problematiza que os estrangeiros na academia são os intelectuais marginais, e
que a postura crítica destes intelectuais nos trabalhos acadêmicos é essencial para o
desenvolvimento criativo das próprias disciplinas acadêmicas.
Sociólogos podem se beneficiar ao considerarem seriamente a emergência da
literatura multidisciplinar que denomino pensamento feminista negro,
precisamente porque para muitas mulheres intelectuais afro-americanas a
“marginalidade” tem sido um estímulo à criatividade. Como outsiders within,
estudiosas feministas negras podem pertencer a um dos vários distintos grupos

36
Collins (2016) trabalha a partir da realidade norte-americana, porém acredita-se com base na análise do percurso
histórico da mulher negra latino-americana que a realidade não é/foi muito diferente.
37
Sujeito que não se enquadra na sociedade, que se situa à margem das convenções sociais.
82

de intelectuais marginais cujos pontos de vista prometem enriquecer o discurso


sociológico contemporâneo. Trazer esse grupo – assim como outros que
compartilham um status de outsider within ante a sociologia – para o centro da
análise pode revelar aspectos da realidade obscurecidos por abordagens mais
ortodoxas (COLLINS, 2016, p. 101).
O “pensamento feminista negro consiste em ideias produzidas por mulheres negras que
elucidam um ponto de vista de e para mulheres negras” (COLLINS, 2016, p. 101). Esta questão
evidencia a impossibilidade de separar estrutura e conteúdo temático de pensamento e das
condições materiais que fazem parte da vida de suas produtoras. Então, embora o pensamento
feminista negro possa ser registrado por outras pessoas, ele é produzido por mulheres negras
(COLLINS, 2016).
Um segundo ponto fundamental apresentado por Collins (2016) que merece destaque é
que mulheres negras defendem uma perspectiva única sobre suas experiências e que alguns
elementos nesta perspectiva serão compartilhados pelas mulheres negras como grupo. Em
contrapartida, embora algumas visões sejam compartilhadas por mulheres negras, cada uma vive
em um contexto social diversificado, e essas diferenças em suas identidades pode fazer com que
estas vivências sejam experenciadas de forma específica por cada mulher negra.
Além da política de ações afirmativas, a análise sobre o número crescente de produções
sobre a interseccionalidade pode ser atribuída a uma visibilidade maior do feminismo e do
feminismo negro nas mídias digitais. Renata Barreto Malta e Laila Thaíse Batista de Oliveira
(2016) trazem importantes reflexões sobre os contornos que o feminismo negro brasileiro tem
adquirido com a sua inserção nas redes e o alcance e multiplicação de informação através do
compartilhamento de textos políticos. As autoras relatam como estas plataformas digitais têm
sido cada vez mais utilizadas para o compartilhamento de experiências de racismo e machismo na
vida de mulheres negras.
Destaca-se a importância das redes sociais para que indivíduos e grupos possam atuar
como agentes de transformação – tal fenômeno vem ocorrendo dentro do feminismo negro
através da inserção de mulheres negras, jovens em sua maioria, em ações no ciberespaço
(MALTA; OLIVEIRA, 2016).
São sites e blogs como o “Geledés” e “Que Nega é Essa? ”, que,
compartilhando textos através das redes sociais como o facebook e o
twitter, têm ganhado um alcance e visibilidade cada vez maiores. Dentre
os sites e blogs destacamos a atuação do Blogueiras Negras
(http://blogueirasnegras.org/) que, ao aceitar contribuições textuais das
leitoras de todo o Brasil, estimula a formação de uma política que
83

descentraliza o conhecimento. O blog tem incentivado que mais mulheres


negras possam narrar suas experiências e, através de suas histórias, ajudar
outras mulheres que vivenciam situações de opressão (MALTA;
OLIVEIRA, 2016, p. 61-62).
As autoras evidenciam a forma como o movimento feminista negro se modificou e
alcançou novas facetas de atuação, com foco nas ações realizadas por meio da internet e das redes
sociais.

Com o aumento da população negra nas universidades, fruto também das


políticas de ação afirmativa, é possível observar uma produção mais
expressiva de negras e negros e sobre a história da população afro-
brasileira. Estamos vivenciando um período onde a população negra
reivindica com veemência o papel de protagonista da sua própria história.
Atualmente, temos acompanhado as novas expressões e canais de difusão
de informação e conhecimento na internet utilizado por diferentes
ativistas negras, estudiosas ou não, que buscam algo em comum: o desejo
de compartilhar suas experiências através de narrativas sobre sua história
e sobre como enfrentam o racismo e o machismo em suas vidas. Tais
narrativas têm contribuído para a formação de uma rede onde outras
mulheres negras conseguem se enxergar e buscar meios para enfrentar
esses problemas que também estão presentes nos seus cotidianos
(MALTA; OLIVEIRA, 2016, p. 68).
Há de se destacar o apontado pelas autoras de que o compartilhamento destas narrativas
fortalece e estimula mulheres de todo o país a escrever suas próprias histórias. Durante o
desenvolvimento desta pesquisa, o acesso às redes sociais foi uma forma de aproximação de
novos referenciais, e também de possibilidade de espaços para discussão sobre a temática da
pesquisa e o ser mulher negra pesquisadora. Da mesma forma, problematiza-se que este canal de
comunicação possa ter servido de inspiração, motivação e fortalecimento para o aumento de
pesquisas interseccionais com referenciais do feminismo negro.

3.3 A interseccionalidade nas pesquisas acadêmicas (2005-2015)

É possível fazer uma junção dos grupos conforme as grandes áreas de pesquisa em que os
estudos foram desenvolvidos. As áreas do conhecimento são delimitadas a partir do proposto pela
CAPES, que agrega as 49 áreas de avaliação por critério de afinidade, em dois níveis: Colégios
em um primeiro, tendo o Colégio de Ciências da Vida, Colégio de Ciências Exatas, Tecnológicas
e Multidisciplinar e Colégio de Humanidades; e o segundo nível, a partir do qual se realizou
divisão para as análises desta pesquisa, são definidos a partir do que a CAPES denomina como
Grandes Áreas.
Tem-se então o seguinte panorama (gráfico 5):
84

Gráfico 5 – Produções por grandes áreas

Fonte: produzido pela autora (2017).

Há, portanto, uma concentração maior nas áreas de sociologia e direito. Por ser um
conceito sociológico, desenvolvido dentro das discussões sobre justiça, faz sentido que tal
perspectiva venha sendo adotada por pesquisadoras/es destas duas áreas. Sobre a área
interdisciplinar, seu alto número de produções se justifica também porque ela abrange diferentes
cursos, no caso das pesquisas do levantamento inclui cursos interdisciplinares sobre gênero e
também sobre racismo, mas também sobre saúde coletiva.
Sendo o presente estudo desenvolvido dentro de um programa de pós-graduação em
educação, ressalta-se o baixo número de pesquisas desenvolvidas na perspectiva educacional por
mestres e doutores em educação. É possível problematizar o acesso que estes programas de
educação estão dando a teorias de feministas negras nos debates das diferentes opressões.
Todavia, para análise deste estado do conhecimento, verificou-se impossibilidade de
apresentar as discussões das pesquisas a partir das áreas do conhecimento, primeiramente porque
elas são bastante diversas, e também porque dentro de uma mesma área há produções sobre
diferentes temáticas ou focalizando diferentes grupos.
Para análise dos dados do levantamento bibliográfico e formulação do estado do
conhecimento em interseccionalidade, houve a ordenação das 46 pesquisas encontradas em
85

grupos de discussões a partir da temática central que traziam enquanto pauta – são os espaços
pelos quais autoras e autores se debruçaram para lançar um olhar interseccional de análise,
perpassando por relevantes pautas de mulheres negras e outros grupos marginalizados. Válido
salientar que tal divisão não considera as áreas de conhecimento de cada pesquisa, sendo assim,
dentro do bloco Interseccionalidade e Relações de Trabalho, por exemplo, existem pesquisas de
áreas do conhecimento diversas, como sociologia e direito. A partir da leitura dos estudos é que
foi possível perceber que eles convergiam para temáticas bastante semelhantes em alguns casos.
Ou seja, embora o pertencimento de gênero e racial de seus sujeitos de análise fossem uma
variável, o contexto sobre o qual a pesquisa se desenvolvia permitia agrupamento por serem
correlatos.
A divisão se deu em nove temáticas, apresentadas com inclusão da quantidade de suas
produções: Interseccionalidade e Diversidade sexual (7); Interseccionalidade e Violência Contra
Mulher (6); Interseccionalidade e Saúde (6); Interseccionalidade e práticas organizadas de
militância (6); Interseccionalidade e Movimentos Artísticos (6); Interseccionalidade e
Intergeracionalidade (5); Interseccionalidade e Relações de Trabalho (5); Interseccionalidade,
Direito e Encarceramento (4) e Interseccionalidade e Deficiência (1).

3.3.1 Interseccionalidade e Diversidade Sexual

Apresenta-se nesta etapa as pesquisas encontradas que trazem discussões a partir das
categorias de lésbicas, gays, travestis e transgêneros A teoria da interseccionalidade, conforme
será apresentado, mostra sua eficácia nestes estudos ao evidenciar como diferentes estruturas de
poder interagem na vida das minorias sexuais38.
A pesquisa de Samuel Luiz de Souza Junior (2011) busca compreender as mobilizações e
a construção do movimento LGBT para a conquista da atenção do poder público às suas
demandas, entendendo, também, que a problemática da discriminação perpassa a
interseccionalidade de variados marcadores sociais, constituintes da sociedade brasileira.
Na dissertação “Direitos sexuais e políticas públicas: combate à discriminação para a
concretização dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT)

38
Refere-se aos membros das orientações sexuais ou que se envolvem em atividades sexuais que não fazem parte da
maioria. Refere-se a membros de grupos sexuais que não se enquadram nas categorias majoritárias de homens e
mulheres, como intersexuais e transexuais (Definition of Terms - Sexual minority. Gender Equity Resource Center –
traduzido pela autora).
86

no Estado do Pará”, Souza Junior (2011) analisa as políticas públicas39, construídas e


implementadas especificamente para a comunidade LGBT, a partir de experiências no mesmo
sentido das políticas de enfrentamento à aids.
Discute-se que processos de construção identitária são constantemente marcados por
tensões, originárias de questões sociais e culturais da formação da sociedade brasileira. Esta
formação, ao ser estruturada ideologicamente pela construção de marcadores sociais das
diferenças, como de raça e gênero, gera a necessidade de se entender a interseccionalidade40 entre
esses marcadores e a importância para também se compreender a diversidade sexual (e social) a
partir das múltiplas possibilidades de construção das pessoas (SOUZA JÚNIOR, 2011).
A partir de demandas sociais específicas da comunidade LGBT, resultado de um processo
histórico de discriminação e estigmatização social, este grupo foi colocado em posição de
desvantagem no acesso aos bens materiais, produzindo desigualdades e privações de ordem
socioeconômica aos grupos discriminados (idem, 2011).
Daí a importância de um âmbito de articulação de políticas públicas
direcionadas. Nesse sentido, evidenciamos, na atualidade, o processo de diálogo
do Estado com a sociedade civil na construção de políticas públicas que atendam
às demandas específicas dos diversos segmentos sociais; o que tem se
concretizado por meio de conferências, convocadas pelo Poder Público, para a
propositura das demandas da sociedade civil e a posterior elaboração de políticas
de atendimento (SOUZA JÚNIOR, 2011, p. 72).
As pesquisas de Alexandre da Silva (2013) e Jouber Silvestre da Silva Candido (2014)
discutem a interseccionalidade nas vivências de opressões de homens gays. O trabalho de Silva
(2013), intitulado “Processos de territorialização em espaços marginais: estudo exploratório e
descritivo das vivências de homens que fazem sexo com outros homens na cidade de Praia
Grande/SP”, não foi localizado na íntegra. A partir do resumo disponível é possível apreender
que se trata de uma pesquisa de campo que investiga processos de territorialização de homens
que fazem sexo com outros homens em espaços marginais. O autor utiliza observações de campo,
e constata que homens com vivências homoeróticas constroem espacializações reclusas, dadas as
condições heteronormativa da constituição social do espaço. A interseccionalidade se volta para
marcadores pessoais, sociais e territoriais na apropriação do território.

39
Políticas públicas circunscritas ao Estado do Pará, no período de gestão do Poder Executivo estadual de 2007 a
2010.
40
Mesmo reconhecendo esta importância da análise interseccional, Souza Junior (2011) não discute nenhuma autora
do feminismo negro, e nem faz esta análise por outras perspectivas teóricas.
87

Na pesquisa de Candido (2014), intitulada “Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos


surdos-homossexuais41”, a interseccionalidade é discutida a partir das identidades de sujeito
surdo e do sujeito homossexual. Apresentam-se estas identidades como categorias não
limitantes/excludentes, ou seja, ser surdo e homossexual é parte do todo que esse sujeito é.
Válido destacar a explicação do autor sobre a escrita com hífen na categoria do sujeito de estudo:
Busquei desenvolver a pesquisa a partir de perspectivas de análise que se
entrecruzam. Procurei destacar de que maneira homens se percebem ou se
reconhecem como homossexuais e surdos. Em uma primeira tentativa,
identifiquei-os como surdos-homossexuais, embora não soubesse se esta seria a
expressão que os próprios sujeitos utilizariam para se autodefinir, mas
acreditamos que seja a que mais se aproxima ao menos como categoria do objeto
de estudo. A escolha pelo hífen, em detrimento da preposição “e”, é por
acreditar que as identidades são mais do que soma de atributos e características
(CANDIDO, 2014, p. 15).
A partir de Picitelli (2008) e Brah (2006), o autor investiga como se estabelece a
identidade “surda-homossexual” e de que forma os sujeitos lidam com marcadores sociais
marginalizantes em uma perspectiva interseccional. A interseccionalidade nesta pesquisa
justifica-se a partir da impossibilidade de analisar os atributos identitários de maneira
independente e sequencial. O autor destaca que estas categorias:
[...] se sobrepõem a partir de um fio condutor único, que é o estímulo de
compreensão dos significados das experiências constitutivas dos sujeitos, sejam
eles surdos, homossexuais, deficientes, ouvintes, heterossexuais, ou seja, são
perspectivas que perpassam a construção identitária de qualquer sujeito
(CANDIDO, 2014, p. 16).
Fazendo a intersecção da orientação sexual com a questão racial, a pesquisa de Welligton
Costa Gomes (2015), “Penalidade e privilégio: a falsa representação dos homens negros
homossexuais”, faz a intersecção com a questão racial voltada para a discussão da
representatividade dos homens negros homossexuais dentro do movimento gay.
O tema, então, gira em torno dos preconceitos em razão da raça e da
sexualidade, e como a intersecção desses dois fatores em um único sujeito pode
afetá-lo de modo diferenciado em relação àquele outro sujeito que sofre
discriminação homofóbica, mas não racial. Isto é, serão trabalhados indivíduos
com características interseccionais, com múltiplas cargas de opressão (GOMES,
2015, p. 8).
Válido destaque para o reconhecimento do autor de que a maioria dos estudos sobre
interseccionalidade se debruçam à questão da mulher negra. Desta forma, apresenta-se que:

41
O autor faz a escolha do hífen, em detrimento da preposição “e”, “por acreditar que as identidades são mais do que
soma de atributos e características” (CANDIDO, 2014, p. 15).
88

Por esse motivo, buscar-se-á inovar nessa área com o estudo dos homens negros
homossexuais, bem como estes, sendo a priori uma categoria privilegiada pelo
gênero, sofrem as penalidades em razão das cargas da discriminação racial e
homofóbica[...]. Sabendo que as mulheres negras foram tomadas como sujeitos
quintessenciais da interseccionalidade, terá lugar o desafio de interpretar tais
pesquisas teóricas para o gênero masculino (GOMES, 2015, p. 8).
Parte-se da constatação de que, no movimento gay, homens negros homossexuais não têm
igualdade de participação em relação aos homens brancos. A partir da observação dos caminhos
seguidos por mulheres negras dentro do feminismo na busca por maior paridade de participação,
Gomes (2015) busca alternativas para a correção da disparidade de participação sofridas pelos
sujeitos objeto de estudo.
Vanilda Maria de Oliveira (2006), na pesquisa intitulada “Um olhar interseccional sobre
feminismos, negritudes e lesbianidades em Goiás”, realiza um estudo para compreender nos
discursos de feministas negras de uma organização não-governamental de Goiânia os significados
atribuídos à interseção entre raça, gênero e orientação sexual, e de que modo essa interseção
influencia a militância feminista de mulheres negras, lésbicas ou não. A autora revela como essas
feministas negras pensam e moldam imagens sobre a sexualidade e como elas percebem a
construção da identidade e a militância das mulheres negras lésbicas que inserem suas bandeiras
no próprio grupo.
A autora busca compreender o funcionamento de estruturas de poder na narrativa fílmica,
a partir do conceito de interseccionalidade, que é apresentado como um tipo de exclusão
resultante de discriminações cruzadas de etnia, religião, raça, gênero, geração, família, trabalho
ou cultura.
A principal questão que se coloca na pesquisa de Oliveira (2006) é de que forma as
interseções têm dado origem a diferentes politizações dos sujeitos subalternizados no feminismo.
A autora discute o conceito de “novos movimentos sociais” como denúncia aos antagonismos
sociais em que surgem os atores coletivos. Discute-se a interseccionalidade enquanto forma
como:
[...] na constituição da subjetividade e da identidade dos sujeitos, diversas
categorias como raça, classe, gênero, religião, idade, orientação sexual, entre
tantas, se cruzam produzindo formas particulares de opressão ou privilégio [...]
responsável pela formação de um sujeito específico e, consequentemente, de
determinados lugares sociais, de forma de ser e estar no mundo e relações
interpessoais (OLIVEIRA, 2006, p. 66).
89

Evidencia-se a partir de uma análise interseccional, que no caso da sexualidade de


mulheres negras, ao se cruzar raça e gênero se origina uma classificação de um modo particular
de diferença que mantém estas mulheres na subalternidade. Ressalta-se a partir deste estudo a
dificuldade de mulheres negras para falar/vivenciar sua sexualidade.
Neste mesmo caminho de opressões vivenciadas por orientação sexual na análise
interseccional de opressões, a pesquisa de Patrícia Gabrielle Oliveira Rodrigues (2014), “Corpos
em movimento, educação em questão: a trajetória escolar das travestis negras”, percorre a
discussão sobre heteronormatividade e os privilégios da branquitude a partir de investigação
formulada com travestis negras no desvelamento de práticas de discriminação no ambiente
escolar.
A escola surge enquanto espaço produtor e reprodutor do sistema racista e também
responsável pela conformação da ordem binária de gênero e formatação da sexualidade, o que
agrava os quadros de desigualdade. Retoma-se com isto a complexa tríade raça, gênero e
sexualidade e de suas intersecções no que diz respeito à discriminação e à exclusão. A
interseccionalidade é discutida a partir do que sofrem estas travestis em relação:
[...] ao seu corpo pelo seu fenótipo, mas também por questões relacionadas ao
gênero e à sexualidade. Em sua maioria, estão expostas a todo e qualquer tipo de
violência, comumente não encontram colocações nem naqueles que possam ser
considerados os piores lugares reservados em termos de trabalho formal, quase
não há representação positiva por parte da mídia e instituições, assim como não
possuem representatividade nos espaços de disputa, o que torna cada vez mais
difícil a inserção destas no que se refere aos direitos a uma cidadania eficaz e
verdadeira (RODRIGUES, 2014, p. 6).
A partir de Crenshaw a autora discute que, nestes contextos, por não se emoldurarem nas
normas de cor, gênero e sexualidade, travestis negras sofrem constante exclusão. A
interseccionalidade é utilizada:
[...] uma vez que não é possível compreender os processos de dominação sem
que sejam considerados os sistemas de dominação existentes, pois a
identificação destes acaba por possibilitar a visualização de como os domínios
de desigualdades operam em conjunto para a conservação do status quo
(RODRIGUES, 2014, p. 45).
Em uma abordagem interseccional, identifica-se que pessoas trans são discriminadas em
coeficientes diferentes já que as discriminações são consequências das relações intrincadas pelos
processos sociais, que tratam as pessoas como se fosse possível separá-las em categorias
independentes.
90

Já no estudo de Busin (2015), “Morra para se libertar: estigmatização e violência contra


travestis”, o foco é a dinâmica psicossocial das violências cotidianas sofridas por travestis,
chamando a atenção para o gênero articulado a outros marcadores sociais de diferença.
A autora mostra que os marcadores de diferença se articulam de formas diversas para
produzir-se ao mesmo tempo – nesses dois casos, a interseccionalidade entre gênero e classe
produziu maior margem de liberdade, ainda que a estigmatização tenha perdurado e tenha sido
manifestada explicitamente. Neste sentido realiza-se discussão sobre a violência contra as
travestis a partir da questão das interseccionalidades entre marcadores de diferença.
Autoras como Kimberlé Crenshaw, Leslie McCall, Ann Phoenix, Anne
McKlintock e Avtar Brah, entre outras, contribuem de forma intensa para
desconstruir essa maneira de encarar as relações de poder e as diversas formas
de opressão como simples superposição. Elas passam a aprofundar as discussões
que demonstram como os marcadores sociais de diferença - como gênero, raça,
classe e sexualidade – entrelaçam-se, articulam-se e engendram umas às outras,
gerando desigualdades (BUSIN, 2015, p. 70).
Evidenciam-se as contribuições da interseccionalidade na compreensão das trajetórias de
vida e a violência experienciada por travestis negras. Problematiza-se que a diferença expressa
pela ruptura com os scripts de gênero hegemônicos desencadeia processos de estigmatização e
experiências de violência que as colocaram em um lugar simbólico marginal e desqualificado
(BUSIN, 2015).
Ainda neste campo temático, a tese de Simakawa (2015), com o título “Por inflexões
decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da
cisgeneridade como normatividade”, ainda que não discuta a interseção de raça, tem como
propósitos fundamentar e caracterizar as categorias analíticas de cisgeneridade e
cisnormatividade, propondo-as como relevantes para reflexões políticas, acadêmicas e
existenciais sobre as diversidades de corpos e de identidades de gênero.
Por se tratar de uma autoetnografia, permite à autora, a partir de sua vivência trans,
registrar os traços de exclusão e marginalização institucional, sociocultural e existencial que
experenciou. Simakawa (2015) evidencia que a cisnormatividade se institucionalizou e que sua
pesquisa autoetnográfica defende uma legitimação para “colocação incisiva de demandas
políticas outrora marginalizadas, silenciadas, neutralizadas, e para a promoção de uma rede de
saberes, recursos e afetos que façam da teoria” (SIMAKAWA, 2015, p. 26) na qual segundo ela
“é possível encontrar curas, curas contra processos cisnormativos e cissexistas. Porque, até onde
91

chega minha percepção autoetnográfica, se chegamos à teoria – privilégio de pouquíssimas de


nós, pessoas trans –, chegamos a ela sangrando” (idem, 2015, p. 26).
A partir da análise destas teses e dissertações anteriormente apresentadas, evidencia-se o
aumento da produção acadêmica em diversas áreas do conhecimento que toma os estudos sobre
sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero em perspectivas críticas e com rupturas
paradigmáticas, em seus diversos enfoques e abordagens teórico-metodológicas com
abordagens/enfoque interseccional.

3.3.2 Interseccionalidade e Violência Contra Mulher

Na dissertação42 para o mestrado em Estudos Interdisciplinares sobre mulheres, gênero e


feminismo, Zuleide Paiva da Silva (2010) realiza um estudo construído à luz das teorias
feministas e lésbicas, com o propósito de visibilizar, mensurar e analisar a violência contra as
mulheres produzida e denunciada em Conceição do Coité -BA, no período de 1980 a 1998.
Problematiza-se a Violência Contra a Mulher (VCM) enquanto um fenômeno que deve
ser compreendido como uma violação aos direitos humanos, já que tem sido reconhecido em
muitos países como um grave problema de saúde pública, uma epidemia que contamina a
sociedade e mata, a cada dia, mais e mais mulheres em função do seu sexo (SILVA, 2010).
Silva (2010) utiliza a interseccionalidade das categorias de análise como estratégia para
compreender no contexto do Sertão e a vivência de mulheres em situação de violência. O
conceito se localiza na construção da pesquisa conforme apresentado pela autora:
Sabemos que o caminho da pesquisa não é dado a priori, ele é construído no
processo de pesquisa em resposta aos sinais que a realidade investigada vai
dando. A trajetória aqui percorrida se mostra circular, dialética. Partindo da
prática, vai à teoria, objetivando compreendê-la; volta à prática com a teoria
ressignificada, atualizada, para dela se valer e melhor intervir na prática.
(SILVA, 2010, p. 26).
A autora compreende gênero enquanto categoria de análise, e utiliza os estudos de
Crenshaw para justificar a relevância da interseccionalidade nas pesquisas e ações de combate à
violência de gênero. Discute-se a importância da promoção de melhorias no levantamento de
dados e nas estratégias de desagregação do gênero e da raça, de forma a permitir o cruzamento
dos dados e a identificação da violência interseccional.

42
“Conceição do Coité em ‘quadrado’: retratos da violência contra as mulheres (1980-1998)”
92

Os resultados deste estudo demonstram que a violência de gênero no período analisado


impactou mulheres de diferentes idades, estado civil, raças, escolaridade e classe social. Porém,
alerta que estes dados não sugerem que a VCM:
[...] seja um fenômeno “democrático”, que atinge todas as mulheres de forma
igual, pois os enlaces dos marcadores sociais de gênero, raça, classe,
sexualidade, geração, dentre outros que não foram possíveis de serem
identificados nas queixas analisadas, definem as múltiplas faces das violências
sofridas em diferentes fases da vida das mulheres. Mas o fato da grande maioria
ser analfabeta ou semianalfabeta, com profissões que oferecem baixa
remuneração aponta para a necessidade de um olhar especial dos (as) gestores
(as) e responsáveis pelas políticas públicas para as mulheres voltado para a
questão da educação e da geração de renda como instrumentos potencialmente
importantes para o processo de empoderamento das mulheres de Conceição do
Coité e região (SILVA, 2010, p. 153).
A discussão sobre VCM também é realizada por Terlúcia Maria da Silva (2013), na
dissertação “Violência contra as mulheres e interfaces com o racismo: o desafio da articulação de
gênero e raça”. De acordo com a autora, a interseccionalidade surge enquanto proposta na
efetivação que articula gênero e raça (SILVA, 2013). O embasamento teórico se dá a partir
Kimberly Crenshaw, Heleieth Saffiotti e Antônio Guimarães.
Silva (2013, p. 16) realiza discussão sobre o Artigo 2º da Lei 11.340/06 (Lei Maria da
Penha) uma vez que “o artigo expressa a manutenção do modo de se pensar a ‘mulher’ como um
sujeito homogêneo e universal, bem como avigora a ideia de nivelamento do fenômeno da
violência, como fenômeno que atinge ‘todas’ as mulheres da mesma forma”. Este é um dos panos
de fundo para reflexões da autora sobre a invisibilidade das mulheres que pertencem a diferentes
grupos raciais e que possuem experiências e necessidades distintas.
De acordo com ela, a VCM:
[...] considerada uma grave violação aos direitos humanos, é um problema
complexo e reconhecidamente de grandes proporções em nível nacional e
mundial que se expressa de forma diversa, de acordo com os sujeitos envolvidos
e os contextos em que ocorre. Nesta perspectiva, considera-se que a violência
contra as mulheres em sua forma doméstica e familiar ultrapassa um problema
de cunho privado, ocorrido apenas a partir de conflitos familiares e se constitui
uma questão de poder com implicações na efetivação dos direitos humanos das
mulheres (SILVA, 2010, p. 16).
A autora discute como o feminicídio, o racismo e a lesbofobia promovem a fragilização
das relações humanas e são responsáveis pela promoção e pela materialidade da manutenção de
uma organização social de gênero, na qual diferenças são transformadas em desigualdades que,
por sua vez, produzem e mantêm a VCM.
93

Em uma compreensão de empoderamento enquanto modificação radical de processos


estruturas que reduzem a posição de subordinação das mulheres, a autora problematiza que “na
visão feminista de empoderamento, uma pessoa não empodera a outra, pois o empoderamento
feminino exige a consciência crítica e a autonomia da mulher para agir, reagir e transformar as
estruturas que lhe oprimem” (SILVA, 2013, p. 113).
A autora salienta, porém, que mesmo para mulheres empoderadas que se constituem
sujeitos da sua própria história e tomam a atitude de denunciar seus agressores ou agressoras, a
ruptura do ciclo da VCM não é algo simples, ou fácil.
A experiência e os estudos sobre a VCM revelam que é comum, mas não
natural, que as mulheres sintam dificuldades para falar sobre as violências que
sofreram/sofrem. O medo, a vergonha e mesmo a culpa quase sempre
contribuem para a subnotificação de violências marcadas em corpos femininos
(SILVA, 2013 p. 113).
Mais reflexões sobre a violência de gênero foram encontradas na tese de doutorado de
Lilian Conceição da Silva Pessoa de Lira (2014), intitulada “Elementos Teopedagógicos
Afrocentrados para superação da violência de gênero contra as mulheres negras: diálogo com a
comunidade-terreiro Ilè àṣẹ yemọjá omi olodò e o acolhimento que alimenta a ancestralidade”.
O estudo discute, nas ações educativas e nos processos pedagógicos do terreiro, elementos
teopedagógicos que promovam empoderamento e autonomia das mulheres negras, possibilitando
melhores condições para a superação da violência de gênero. A tese reúne conteúdos teóricos
sobre religião, raça e etnia, gênero e violência de gênero e tradição, oralidade, ancestralidade e
afrocentricidade.
Lira (2014) contextualiza a comunidade-terreiro onde a pesquisa se desenvolveu a partir
da realidade das religiões de matriz africana no Brasil desde o período da escravidão,
evidenciando que a população negra sempre utilizou estratégias de enfrentamento para manter
suas manifestações religiosas. Posteriormente, a autora discute que nas religiões de matriz
africana há a existência de uma ambiguidade, assim como no cotidiano das mulheres, entre a
feminilidade e virilidade, o que permite a criação de alternativas de sobrevivência e de
resistência. Por serem religiões de “casa”, ligadas à natureza, de festa, de antepassados e de
resistência, a autora indica que as mulheres desempenham um papel fundamental.
A autora destaca a importância das mulheres negras que se tornam alicerce de sustentação
nas comunidades tradicionais de terreiro. Nestes espaços e nestas práticas elas resgatam suas
histórias, recriam suas possibilidades, precisam se criar e recriar a partir das perseguições que
94

sofrem e por isso são mulheres de subsistência e resistência com a função de garantir a existência
de suas comunidades até os dias de hoje (LIRA, 2014).
Reconhecer a importância da mulher negra na história, em especial, reconhecer
sua força, garra, inteligência, criatividade, sensibilidade, sabedoria, mas também
suas ambiguidades, é reconhecer sua humanidade como antropologicamente
marcada por uma “mistura”130 e não por estereótipos culturalmente construídos.
Isso é fundamental para discutir as múltiplas formas de violência às quais as
mulheres em geral e as mulheres negras em particular são submetidas, e
encontrar maneiras de superar essa violência (LIRA, 2014, p. 33).
Em uma das etapas do trabalho a autora de dedica exclusivamente à discussão de gênero,
violência contra as mulheres, etnicidade e religião, constatando a emergência da
interseccionalidade. “A relação entre gênero, violência e religião na história das ideias é algo,
segundo a teóloga feminista católica, branca, norte-americana e lésbica, Mary E. Hunt, que se
tornou possível somente há pouco mais de três décadas” (LIRA, 2014, p. 71).
De acordo com esta pesquisa, o conceito de interseccionalidade foi elaborado pelas
sociólogas alemãs Gabriele Winker e Nina Degele:
[...] segundo Hunt, esta relação se estabeleceu no âmbito pastoral vivido por
teólogas feministas norte-americanas protestantes e católicas a partir da década
de 1970. Foram teólogas feministas protestantes as primeiras a investigar e a se
instrumentalizar para enfrentar as questões relativas a gênero, religião e
violência (LIRA, 2014, p. 72).
A autora problematiza que essa relação tenha se iniciado na vida pastoral e partido de uma
mulher branca, e lança o desafio em qualificar ainda mais esta relação de modo a avaliá-la
enquanto interseccionalidade mostrando sua relação entre gênero, violência, etnicidade e religião
em toda sua trama complexa e multifacetada.
Raquel da Silva Silveira (2013), na tese intitulada “Interseccionalidade gênero/raça/etnia e
a Lei Maria da Penha: discursos jurídicos brasileiros e espanhóis e a produção de subjetividade”,
discute também a problemática de se inserir a discussão sobre VCM como problema universal,
desconsiderando qualquer marcador social.
A pesquisa evidencia o modo como a interseccionalidade gênero, raça e etnia emerge no
discurso jurídico sobre as mulheres que acessam a justiça e como esta articulação caracteriza as
relações de poder nas quais estão imersas.
O estudo se constrói a partir de uma comparação entre a Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006) com a legislação espanhola de Proteção Integral à Violência de Gênero (LO
1/2004), bem como das práticas jurídicas nas cidades de Porto Alegre e Sevilha.
95

Silveira (2013) apresenta como referencial teórico-metodológico a análise das práticas


discursivas e não discursivas de Michel Foucault e justifica a escolha, pois:
Trabalhar com a análise das práticas discursivas e não discursivas de Michel
Foucault permite que se articulem as falas das pessoas com as marcas
enunciativas que constituem a possibilidade de emergência da condição de
sujeito. Nessa perspectiva, as falas são tomadas não mais como apenas
individuais, mas como o arranjo possível das tramas institucionais em que essa
pessoa está imersa, sendo consideradas tanto as situações como as posições que
ela vivencia para poder enunciar algo. (SILVEIRA, 2013, p. 19).
Outro aporte teórico, que mais interessa nesta pesquisa, é o conceito de
interseccionalidade, que no caso da pesquisa de Silveira é feito pelo conceito de gênero e pelos
marcadores sociais de raça e etnia.
Assim, para investigar a interseccionalidade racial que atravessa a violência de
gênero contra as mulheres nas relações de intimidade, amparei-me nos estudos
que analisam os diferentes marcadores sociais que constituem a produção de
subjetividade num país tão desigual como o Brasil. As discussões teóricas sobre
os processos discriminatórios étnicoraciais me levaram a compreender um pouco
melhor o significado coletivo, cultural e social desse tipo específico de violência
de gênero contra as mulheres e as dificuldades em enfrentar de forma eficaz esse
problema (SILVEIRA, 2013, p. 20).
Silveira (2013) utiliza Crenshaw para o desenvolvimento do conceito e identifica em sua
pesquisa uma diferença de percentuais na representatividade das mulheres negras que acessaram
a Lei Maria da Penha, sendo que na amostra com maior número de mulheres houve uma
sobrerrepresentação das mulheres negras, assim como nos boletins de ocorrência investigados.
Desta forma, a autora salienta que, na questão do acesso à justiça, em seus níveis iniciais dos
trâmites burocráticos as mulheres negras demonstraram buscar de forma mais intensa esses
recursos. Além disso, também se evidenciou que nas falas dos/as juízes/as entrevistados/as, a
interseccionalidade gênero-raça e etnia não é reconhecida como elemento que interfira no acesso
à justiça, tanto em Porto Alegre como em Sevilha. Prevalece uma concepção do sujeito de
direitos universal, em que não só a raça é deixada de lado como também outros marcadores
sociais importantes, como a classe e a idade, que também não são abordados.
Silveira (2013) aponta a necessidade de discutir a interseccionalidade entre raça e gênero
nos casos de VCM.
Desta forma, entendo ser importante colocar em análise as diferentes formas de
subordinação às quais estão expostas parcelas significativas de nossa população.
Esse posicionamento teórico pode funcionar como um agenciador de políticas
públicas mais específicas e eficazes no enfrentamento do cotidiano de violação
de direitos das mulheres (ILVEIRA, 2013, p. 21).
96

Conforme apontado, a partir de levantamento de estado da arte sobre a temática, as


discussões da interseccionalidade entre gênero, raça e etnia nas situações de violência de gênero
contra as mulheres nas relações de intimidade tem sido pouco explorada. Neste sentido, os
estudos que foram apresentados neste bloco de análise são importantes no campo da
interseccionalidade e na compreensão do contexto de existência social da mulher negra porque
discutem a existência de uma relação entre o racismo e a violência cometida contra as mulheres
negras.
Thalita Rodrigues (2015), na dissertação “Concepções de violência e interseccionalidade:
análise em um centro de referência de atendimento a mulheres em situação de violência”, busca,
a partir da interseccionalidade, ampliar os olhares para as VCM partindo da “compreensão do
fenômeno a partir da experiência de vida em uma sociedade marcada por desigualdades que se
interconectam, complexificando análises sociais e enfrentamento às desigualdades e violências”
(RODRIGUES, 2015, p. 35).
Ao trazer a justificativa para o uso do conceito, a autora aponta que:
Existem muitas autoras e autores, perspectivas teórico-políticas importantes para
a compreensão das desigualdades de gênero, sexualidade, raça e classe.
Entretanto, nosso posicionamento aqui é o de priorizar discussões feministas que
tratem destas desigualdades e conjugá-las à compreensão das violências contra
as mulheres, o que não impede que estas/es outras/os autoras/es emerjam
enquanto interlocutoras/es ao longo da dissertação (RODRIGUES, 2015, p. 34).
Destaca-se dentre os resultados do estudo de Rodrigues (2015) que os discursos
preconceituosos e normativos estão presentes, não sendo surpresa a ausência de experiências de
mulheres (lésbicas, prostitutas, trans) no serviço. Desta forma, a autora problematiza os
movimentos institucionais de aproximação com os debates raciais.
João Paulo Bernardes Gonçalves (2015), dissertação intitulada “As intervenções com
homens autores de violência doméstica contra as mulheres ante suas bases teórico-metodológicas
e perspectivas políticas: as experiências no estado de Minas Gerais”, discute a VCM na
perspectiva de homens que cometem/cometeram a violência43.
De acordo com o autor:
É recente a discussão sobre a intervenção com homens que exercem violência
doméstica, porém, na Lei 11.340/06 já está previsto o trabalho com este público.

43
A pesquisa foi realizada no estado de Minas Gerais e contou como instrumentos de análise entrevista com os
gestores institucionais e profissionais facilitadores dos grupos, análise documental e revisão bibliográfica sobre a
violência masculina e sobre os feminismos (GONÇALVES, 2015).
97

Esta pesquisa busca contribuir para a discussão das diretrizes, a partir de uma
perspectiva mais ampla, no que concerne o atendimento dos homens na política
pública. A Lei Maria da Penha, em seu Art. 30, prevê o desenvolvimento de
trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados
para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e
aos adolescentes. Além disso, o Art. 35, inciso V, institui a criação e promoção
dos Centros de Educação e de Reabilitação para os Agressores (p. 24).
Na discussão das interfaces do trabalho dos psicólogos relacionados com as intervenções
com os homens que exercem violência contra as mulheres, ele aponta que as discussões do
movimento feminista podem contribuir para a construção de uma identidade profissional
congruente com as transformações sociais.
Justificando o uso da interseccionalidade, Gonçalves (2015) traz que:
A interseccionalidade do gênero – desde as categorias raça, classe, nacionalidade
(ou a posição na desigual ordem mundial) – dão ampla implicação para a análise
da masculinidade. Por exemplo, desde a perspectiva relacional do gênero, a
masculinidade branca se constitui a partir da feminilidade branca, mas também
da masculinidade negra. Por isso, Connell (1997) defende que se articule a 37
análise das masculinidades com o legado histórico das situações coloniais e pós-
coloniais. Segundo ele, isso também fornece base para compreensão do controle
da polícia pelos homens brancos, das cortes e prisões nas colônias e, logo, com a
presença maciça de homens negros nas prisões (GONÇALVES, 2015, p. 36-37).
A conclusão da pesquisa é a existência de uma organização social da masculinidade
articulada a várias categorias identitárias. “A partir dessa perspectiva torna-se compreensível a
organização social da masculinidade desde diferentes marcadores sociais e a regulação dos
modos de subjetivação masculina. Nesse sentido, as estruturas de poder e opressão se voltariam à
manutenção e reprodução de algumas ordens” (GONÇALVES, 2015, p. 100). E o autor continua,
explicando que:
Porém, as agências masculinas associadas às categorias identitárias poderiam
revelar formas de resistência à dominação. O conceito do patriarcado resulta do
empenho teórico feminista que buscou da origem da subordinação das mulheres
tencionando desconstruí-la, possuindo relevância de leitura apesar das críticas
que tem recebido. É preciso destacar seu aspecto histórico que perpassa o
desenvolvimento da sociedade baseada no patrimonialismo. Ele apresenta
relevância na pesquisa social e no entendimento das relações e conflitos
familiares. Ao visualizarmos o grupo dos HAV como um microcosmo da
realidade, é possível inserirmos a noção da “política da localização”, que
perpassa estranhamentos, incômodos e negociações a partir de diferentes lugares
de enunciação (GONÇALVES, 2015, p. 100).
98

3.3.3 Interseccionalidade e Saúde

Sobre os estudos que se debruçam à análise interseccional na área da saúde, a dissertação


de Heloísa Helena da Silva Duarte (2012), intitulada “A construção social da Saúde reprodutiva
no Brasil: um olhar na perspectiva da interseccionalidade de gênero e raça” problematiza a
relação das adolescentes negras grávidas com o sistema de saúde e com os profissionais que as
atendem. A discussão é sobre as disparidades de gênero, classe e raça como importantes
marcadores sociais para se pensar sobre a saúde das populações no Brasil, principalmente nas
questões relativas ao pré-natal. A gravidez precisa ser pensada não a partir de sua ideia de risco e
sim na perspectiva da produção de vulnerabilidade.
Conforme a autora, ao se considerar somente idade como fator isolado para analisar os
indicadores de gravidez na adolescência, não se permite a compreensão do contexto em sua
amplitude – fatores como classe social e raça são fundamentais para esta análise. Desta forma, a
intersecção das desigualdades de classe e raça/etnia mantém e reforça as desigualdades de
gênero, que interferem em relação à maternidade. No caso das classes populares, é grande o
número de mulheres jovens que têm a maternidade como projeto de vida, o que já não é
recorrente em classes mais favorecidas.
Duarte (2012) traz que mulheres de baixa renda, principalmente as negras, por não terem
acesso a métodos contraceptivos, tinham nos médicos o poder de decisão sobre seus corpos, o
que explica a grande opção destes pela esterilização. Evidencia-se, então, que mulheres negras
têm menos acesso aos serviços de saúde de boa qualidade, incluindo os serviços relacionados à
maternidade. A autora propõe a análise a partir da perspectiva de vulnerabilidade e não de risco,
pois:
[...] a vulnerabilidade pode ser entendida como o resultado da interação entre os
aspectos individuais do sujeito e fatores sociais de desigualdades em que ele está
inserido, podendo, neste caso, a adolescente aumentar ou diminuir sua
vulnerabilidade de acordo com sua capacidade de reinterpretar criticamente as
mensagens que a colocam em situações de desvantagem (DUARTE, 2012, p.
19).
Neste caminho, problematiza-se que mulheres negras, situadas em contextos sociais de
intersecção de fatores como violência de gênero, discriminação racial e pobreza, dentre outros,
estão mais vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis, principalmente na adolescência. A
saúde reprodutiva é compreendida na pesquisa como problema social, por isso utiliza-se como
99

perspectiva teórico-metodológica a análise crítica do discurso, focando o referencial teórico da


interseccionalidade de gênero e raça, biopolítica e medicalização do corpo da mulher.
Salienta-se também que o movimento de mulheres negras vem ampliando o conceito de
saúde reprodutiva de forma a favorecer as chances de vida e bem-estar destas mulheres, que são
as mais atingidas pelos programas eugênicos, de esterilização em massa, para que possam ser
respeitadas e ter autonomia, poder e decisão na escolha de métodos contraceptivos. A autora
aponta que nos anos de 1980 e 1990, bem como na atualidade, as mulheres negras foram as mais
afetadas nas esterilizações em massa e as que mais morreram por causas relacionadas à gestação,
parto e ao puerpério.
A interseccionalidade é então utilizada como perspectiva analítica como possibilidade de
compreender problemas sociais e as consequências estruturais e dinâmicas das intersecções
complexas entre dois ou mais eixos de opressões. A autora utiliza feministas negras norte-
americanas e brasileiras como Crenshaw (2002) e Caldwell (200) para evidenciar a atuação de
mulheres negras que não ocupam centralidade nem no movimento negro, nem no movimento
feminista.
Duarte (2012) traz esta tensão interna do movimento feminista para a luta pela saúde da
mulher quando, desde 1960, as lutas feministas tinham como lema “nosso corpo nos pertence”, se
referindo à integralidade do corpo, autonomia da sexualidade em relação à reprodução e temas
como aborto. Essas temáticas, analisadas com olhar interseccional, apontam para uma dimensão
biopolítica baseada em desigualdades de raça e classe.
Uma análise crítica das políticas contraceptivas contemporâneas mostra a
continuidade de certos discursos que formavam parte de programas eugênicos da
primeira metade do século XX: particularmente a ideia de que aos pobres é
atribuído à perpetuação da pobreza e da marginalidade, por isso o controle
reprodutivo dessa classe se dá pela restrição no número de gestações e de filhos,
popularizando os métodos contraceptivos e o aborto, enquanto que a reprodução
de indivíduos considerados talentosos e bem dotados é incentivada. Este foi o
sustento ideológico das práticas de esterilização tubária em massa em mulheres
de baixa renda, sobretudo de mulheres negras (DUARTE, 2012, p. 59).
Desde 1980 pesquisadores e ativistas sociais vêm investigando as causas da crescente
esterilização de mulheres, sobretudo as de baixa renda onde se encontram a maioria das mulheres
negras. Duarte (2012) problematiza que ao olhar para as desigualdades raciais é possível notar
que a população negra está à margem nas condições sociais também de saúde. A partir de dados
do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM), a autora evidencia que a proporção de óbitos
100

maternos por aborto no período de 2000 a 2008, entre mulheres de dez a 29 anos, representou
quase o dobro para mulheres negras em relação às brancas.
A análise se dá a partir de uma estratégia nomeada Rede Cegonha lançada em março de
2011 no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) com o objetivo de melhorar a qualidade da
assistência pré-natal para diminuir a mortalidade materna e infantil. Quando a autora equaciona o
quesito racial, revela os altos índices de mortalidade materna resultantes da má qualidade no
atendimento pré-natal e a desorganização nos serviços de saúde.
[...] em geral as mulheres que buscam os serviços de saúde quando em situação
de abortamento são discriminadas pelos profissionais de saúde e para as
mulheres negras ocorre dupla discriminação por serem negras, recebendo o
atendimento após as mulheres brancas, aumentando o risco de morte (DUARTE,
2012, p. 70).
A autora reforça um dos lemas do feminismo, “nosso corpo nos pertence”, mas
problematiza a questão racial neste contexto.
Referindo à mortalidade materna, o movimento de mulheres negras traz questões
relacionadas ao passado de políticas eugênicas que ainda refletem na biopolítica
atual, como por exemplo, a questão da mortalidade materna ser maior entre
mulheres negras. Enquanto que as reivindicações das feministas brancas
aparecem mais relacionadas à autonomia/liberdade feminina, em poder decidir o
que fazer com seu corpo (DUARTE, 2012, p. 73).
A conclusão do trabalho é na possibilidade da interseccionalidade como ferramenta
analítica para produção de discursos sociais sobre saúde reprodutiva enquanto fenômeno social
complexo envolvendo relações de poder e jogos de forças sociais em determinados contextos.
Eliana Costa Xavier (2015) também trabalha com interseccionalidade e saúde na
dissertação intitulada: “Tá dentro, não tá fora: subjetividade, interseccionalidade e experiências
de adoecimento de mulheres negras com doença falciforme”.
A pesquisa44 se constitui a partir de dois estudos empíricos com a proposta de conhecer e
analisar a história de mulheres negras com doença falciforme45 e compreender como a

44
De acordo com Xavier (2015), a pesquisa teve delineamento qualitativo e se caracterizou como exploratória-
descritiva, na qual a coleta das informações se deu por meio de entrevistas semi-estruturadas que foram exploradas
através da Análise Crítica do Discurso. Participaram nove mulheres com diagnóstico de doença falciforme,
autodeclaradas negras e atendidas pelo Centro de Referência da Anemia Falciforme do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre (CRAF).
45
“Cabe destacar que a Doença falciforme caracteriza o conjunto de síndromes ocasionadas por uma alteração
genética onde as hemácias tomam a forma de ‘meia-lua’ ou ‘foice’. É uma hemoglobinopatia cujo processo altera o
fluxo sanguíneo e compromete órgão e tecidos, causando uma anemia intensa que acarreta complicações clínicas que
podem ocasionar sequelas irreversíveis” (BRASIL, 2012). É uma condição crônica de saúde que necessita de
cuidados constantes, influenciando nos aspectos psicossociais das pessoas e podendo comprometer seu desempenho
101

subjetividade destas é construída e confrontada a partir do significado da doença que tem origem
na ancestralidade negra. A autora realiza análises do acesso das mulheres negras com doença
falciforme às políticas públicas de saúde, a partir dos itinerários terapêuticos na busca por
cuidados para as questões de saúde produzidas pela doença, destacando a importância de resgatar
as marcas de como foram experienciados, sentidos e compreendidos determinados momentos,
acontecimentos, ou mesmo como ficou registrado na memória de cada mulher negra e/ou do seu
coletivo o intercurso desta condição de saúde com os serviços de saúde pública.
Entender a construção da subjetividade de mulheres negras com doença
falciforme possibilita a compreensão da experiência coletiva na visão de mundo
sob a ótica racial, pois resgata e fortalece a concepção ampla dos determinantes
sociais em saúde, como relacionados às condições sociais em que as pessoas
vivem e trabalham (Paulo Buss & Alberto Pellegrini Filho, 2007). A
complexidade da subjetividade feminina, da negritude e da doença falciforme foi
problematizada a partir da argumentação constituída desde os inúmeros fatores
que perpassam a vida das mulheres negras brasileiras, como raça e racismo,
gênero, história, cultura, ancestralidade e adoecimento. Então, a singularidade de
trabalhar com a história das mulheres negras nos possibilitou, através de seus
discursos, a compreensão subjetiva dos momentos vividos como mulher negra
com doença falciforme (XAVIER, 2015, p. 17-18).
Xavier (2015) apresenta também reflexões sobre a história de mulheres negras com
doença falciforme e evidencia que a subjetividade destas é construída e confrontada a partir dos
sentidos subjetivos associados aos marcadores de gênero, raça e classe social. Destaca-se como
resultados que o impacto psicossocial da doença falciforme depende expressivamente dos
serviços e das políticas de saúde, no acesso às tecnologias referentes à doença para dirimir o
processo de adoecimento, bem como do significado que o sujeito associa a sua doença.
Evidencia-se também que o racismo institucional, presente em todas as aproximações das
mulheres negras na sociedade, responde à vulnerabilidade histórica que invisibiliza as mulheres
negras.
Angelita Alves de Toledo (2012), na dissertação “Mulheres Negras Soropositivas e as
Interseccionalidades entre Gênero, Classe e Raça/Etnia”, analisa a tríplice desigualdade e os
fatores de vulnerabilidade que contribuem para mulheres negras de Florianópolis contraírem o
vírus HIV/Aids.

emocional e social (CORDEIRO; FERREIRA, 2009). “Está associada à hereditariedade racial da população negra e
acomete basicamente os africanos e os descendentes da África (BRASIL, 2012)” (XAVIER, 2015, p. 16).
102

A autora evidencia a importância da interseccionalidade na compreensão da articulação


entre as categorias gênero, classe e raça/etnia no desencadeamento das vulnerabilidades
individuais, sociais e políticas frente à epidemia do vírus HIV/Aids, que repercute de forma
particular no processo de saúde e doença das mulheres negras (TOLEDO, 2012).
Os resultados das entrevistas com mulheres soropositivas autodeclarantes como pretas ou
pardas demonstram:
[...] baixa escolaridade das mulheres negras; forte sentimento de discriminação
racial, principalmente em relação ao trabalho; falta de percepção em relação a
contrair o vírus por conta da confiança na estabilidade da relação e pelo
imaginário da Aids, enquanto doença “do outro”; importância da realização do
exame pré-natal durante a gestação; discriminação enquanto soropositivo e
dificuldade de aceitação do vírus (TOLEDO, 2012, s/p).
Na conclusão da pesquisa a autora ressalta que há uma tríplice desigualdade a que estão
sujeitas as mulheres negras, e que o “racismo sexista” favorece ao adoecimento, seja ele psíquico
ou físico das pessoas de cor preta ou parda, contribuindo de forma decisiva na contração do vírus
HIV/Aids (TOLEDO, 2012).
Leila Alcina Correia Vaz Bustorff (2010), na dissertação “O conceito de gênero nas
políticas públicas que orientam atenção à saúde da mulher: revisão integrativa da literatura”,
realiza uma revisão integrativa da literatura com os conceitos de gênero nas políticas de atenção à
saúde da mulher, publicadas pelo Ministério da Saúde, no período de 1980 a 2000.
A partir da consideração de que a abordagem do conceito de gênero nas políticas públicas
para as mulheres redimensiona o modo de conceber mulheres e homens, suas relações sociais,
familiares e conjugais, com repercussões no entendimento das questões de saúde, da rede de
serviços e da atenção à saúde propriamente dita, a autora apresenta que:
A construção de políticas públicas dirigidas à saúde da mulher no Brasil é parte
das profundas mudanças societárias das últimas décadas, através das lutas do
movimento feminista, aliadas às profissionais da saúde do movimento
sanitarista, comprometidas com a filosofia de saúde enquanto direito e
preocupadas em garantir à mulher assistência integral, o que inclui a luta contra
a situação de desigualdade entre homens e mulheres, e o poder de dominação
que os homens, historicamente, exerciam sobre as mulheres. É na efervescência
desses debates que se consolida o campo de estudos sobre gênero no Brasil, no
final dos anos 1970, concomitantemente ao fortalecimento do movimento
feminista no país (SILVA, 2000). No entanto, mesmo após anos de sua inserção,
a incorporação da perspectiva de gênero por políticas públicas é um tema ainda
pouco explorado (BUSTORFF, 2010, p. 13).
Os resultados da pesquisa de Bustorff (2010) apontam que o conceito de gênero foi
construído ao longo dos anos permeado por diversas temáticas. Além disto, a autora aponta que o
103

crescente crescimento da participação das mulheres nas relações sociais que envolvem tanto a
esfera privada como pública, conduz as políticas a um novo olhar sobre as mulheres e os homens,
articulado com a categoria de gênero.
Salienta-se a necessidade de os órgãos governamentais que publicam e fornecem
materiais no campo da saúde da mulher incorporem as relações de gênero em suas produções
literais, auxiliando assim a compreensão das relações entre mulheres e homens e suas
articulações com as questões de saúde.
A dissertação “Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher e a atuação estatal: o respeito
à diferença múltipla como fator orientador de políticas públicas de gênero”, escrita por Mayara
Alice Souza Pegorer (2013), traz a importância da abordagem da diferença múltipla como fator
norteador de políticas públicas para proteção da mulher e consequente reafirmação do processo
de inclusão social feminino.
Problematiza-se que a abordagem dos direitos sexuais e reprodutivos, sob o enfoque da
titularidade feminina, na Ciência Jurídica ainda é tímida, o que explica a adoção de uma proteção
legislativa ainda conservadora, apesar das inúmeras iniciativas empreendidas atualmente em
outros âmbitos.
Ademais, ao mesmo tempo em que se devem resgatar as relações historicamente
travadas entre homens e mulheres a fim de se visualizar a evolução desse papel
social assumido para atender a suas novas expectativas e, em consequência,
proteger seus direitos, deve-se ter em pauta a existência de uma sociedade
cosmopolita, marcada pela diversidade e pelo multiculturalismo, que traz ainda
mais caracteres de identificação de grupo e individual. Daí o imperativo de se
ponderar a existência de necessidades que marcam grupos existentes dentro de
uma mesma categoria, nesse caso, a mulher, como forma de nortear os
programas de proteção promovidos, traçando objetivos e integrando setores,
inclusive no caso dos direitos sexuais e reprodutivos (PEGORER, 2013, p. 11).
A autora traz o conceito de interseccionalidade na discussão sobre o direito à diferença,
seu emprego na questão de gênero e a construção da diferença múltipla. Aponta-se a necessidade
de se conceber a diferença múltipla, reconhecendo a existência de uma minoria dentro de uma
minoria. O conceito ganha prestígio ao possibilitar o estudo das implicações da subordinação em
razão do gênero, correlacionando-a a outros eixos, e dentro da discussão dos direitos sexuais e
reprodutivos.
104

A dissertação de Roseane Amorim da Silva (2014)46, “Os significados do uso de álcool


entre os/as jovens quilombolas de Garanhuns/PE: uma perspectiva interseccional”, apresenta uma
pesquisa qualitativa de inspiração feminista que buscou investigar os significados do uso de
álcool entre os/as jovens quilombolas do município de Garanhuns/PE, em interface com as
questões de gênero, classe social e raça/etnia.
A autora apresenta sua pesquisa no campo de debate da saúde, ao lembrar que o uso
abusivo de álcool ocasiona graves consequências para a saúde pública mundial. “Além de que
informações sobre saber beber com responsabilidade e as consequências do uso inadequado de
álcool ainda são insuficientes e nem sempre contemplam as diversas populações” (SILVA, 2014,
p. 21).
A autora evidencia a partir de estudos realizados que na última década o álcool foi a droga
depressora mais utilizada com fins recreacionais. No contexto do quilombo, posto que as
situações juvenis são diversas, o uso de álcool também ocorre em diferentes situações, em bares
das comunidades, em suas casas, sozinhos/as, acompanhados/as por parentes e amigos/as.
Os/as jovens quilombolas pesquisados/as têm suas trajetórias marcadas por
situações em que ora a homogeneidade conferida à sua geração prevalece e ora a
heterogeneidade de suas condições de gênero, raça/etnia e classe social definem
seus percursos. Não podemos esquecer que eles e elas se inserem na sociedade
em uma posição desigual e carregam o estigma histórico sobre o seu local de
moradia, quilombola e rural (SILVA, 2014, p. 18).
Os resultados demonstram que as percepções sobre o uso de álcool diferem quando
realizadas por homem, a que se atribui naturalização, e quando são praticadas por mulheres, que
são difamadas principalmente quando o consumo é feito em bares. Salienta a necessidade de
reflexões e ações sobre as condições desiguais que têm marcado a existência dos/das quilombolas
e sobre estratégias que possam ser acionadas/desenvolvidas buscando maior afetividade política
dessa população, considerando as repercussões do uso de álcool em seus projetos de vida
(SILVA, 2014).

46
Não foi trazida a análise desta pesquisa na categoria geracionalidade visto que a própria autora salienta que não se
baseou nem na teoria geracional nem na classista. Buscou-se, a partir dessa diversidade de perspectivas,
compreender os/as jovens, ora sendo importante refletir sobre a classe social e o contexto o qual os/a mesmos/as
pertencem, ora delimitando uma faixa etária para os/as participantes da pesquisa, no intuito de visibilizar os/as
mesmos/as (SILVA, 2014).
105

O uso do conceito interseccionalidade é justificado pela sua possibilidade de manter


pesquisadores/as atentos/as à forma como as pessoas vão se constituindo no jogo de forças a que
estão expostas (SILVA, 2014).
O olhar interseccional nos convocou a considerarmos a diversidade de tramas
que os marcadores sociais de diferenciação vão engendrando, bem como
percebemos que o tripé clássico discutido na literatura feminista que pretende
enfrentar a subordinação gênero-classe-raça/etnia, também precisa ser
tencionado, para que os discursos produzidos não reifiquem essas categorias de
análise, sob pena de uma nova naturalização (SILVA, 2014, p. 19-20).
Neste bloco de análise as pesquisas de Duarte (2012), Xavier (2015) e Toledo (2012)
trazem a especificidade da mulher negra; as pesquisas de Bustorff (2010) e Pegorer (2013)
discutem a categoria mulher intersectada por outros marcadores, dentre os quais os marcadores
raciais, e a pesquisa de Silva (2014) discute jovens negros, homens e mulheres.

3.3.4 Interseccionalidade e Práticas de Militância

Alexandre dos Santos Monteiro (2014), na dissertação “Mulheres negras em Jacutinga:


sobre interseccionalidade e empoderamento”, realiza estudo sobre uma realidade de ocupação
territorial de uma área da Baixada Fluminense47 que se mostrou majoritariamente negra e, mais
do que isso, se deu a partir de lideranças femininas.
Trata-se de estudo com aspectos etnográficos, geográficos e históricos. A pesquisa
bibliográfica abrangeu trabalhos de, principalmente, antropólogos, geógrafos e historiadores, que
estudaram as mulheres negras a partir do conceito de interseccionalidade, que pressupõe a
interseção de formas de opressão.
Conforme salientado pelo autor:
Ao longo da pesquisa, foi possível perceber que a particularidade da ocupação
da área do mutirão era muito maior do que a liderança de mulheres negras.
Muito mais do que isso, eram mulheres que buscavam em Jacutinga o local de
fuga de opressões diversas, geralmente impostas pelos próprios maridos:
agressões físicas e morais, violência sexual, torturas. Eram mulheres que viam
em Jacutinga o local de libertação, de possibilidade de construir uma nova
realidade, uma nova vida, livres da violência e da humilhação, uma vida feliz
(MONTEIRO, 2014, p. 4).

47
A área estudada é delimitada pelas ruas Ana Peixoto, Barros Peixoto e Aimoré, e pela linha férrea auxiliar.
106

Para definir a existência de uma identidade territorial48 negra e feminina em uma


comunidade pobre da periferia da região metropolitana do Rio de Janeiro, o autor utiliza os
conceitos de interseccionalidade e empoderamento:
Para compreender esta situação, consideramos importante abordar conceitos
como interseccionalidade e empoderamento, sempre os relacionando à realidade
vivida por mulheres negras moradoras de uma comunidade empobrecida, em
estado de relativo abandono pelo Estado, o qual tem sido ausente tanto em
termos de políticas públicas quanto na simples consideração da comunidade
como relevante para os interesses políticos dos grupos dominantes
(MONTEIRO, 2014, p. 45).
O estudo evidencia que o racismo se constitui enquanto expressão diária e habitual da
discriminação racial, vivenciada pelos negros e negras que residem no bairro. O autor salienta,
porém, que a opressão racial experimentada pela mulher negra apresenta peculiaridades em
relação àquela que o homem negro é vítima.
Em outras palavras, numa sociedade patriarcal como o Brasil, ainda que
subjugados racialmente, os homens negros usufruem do poder masculino que
confere a eles privilégios e vantagens sociais, aos quais as mulheres negras não
podem acessar; relegando-as, assim, a status ainda mais inferior que seus pares
masculinos dentro da hierarquia de gênero, condição esta que ocupa um lugar
abaixo das mulheres brancas na pirâmide das relações de gênero. Desse modo,
um segundo elemento que impõe dificuldades sociais às mulheres negras se
constitui na condição de gênero (MONTEIRO, 2014, p. 46).
Desta forma, Monteiro (2014) justifica que em consequência de a mulher negra
experimentar um tipo de desigualdade ainda mais complexa e perversa, que parte da combinação
do racismo com o sexismo, as mesmas são colocadas em condição tão singular “que somente
através de conceitos como a interseccionalidade será possível compreender como este tipo de
opressão se materializa e se manifesta na vida e status das mulheres negras” (MONTEIRO, 2014,
p. 46).
Cintia Isabel Patti (2015) desenvolveu uma pesquisa que visa compreender os
mecanismos de geração e repetição da discriminação e do preconceito sofrido pelas mulheres
negras ao longo da história. Para isso, debruça suas atenções nos cursos propostos e executados
pelas Promotoras Legais e Populares de Campinas (SP), cursos que objetivam conscientizar
mulheres sobre seus direitos como pessoas e como mulheres, de modo a torná-las empoderadas e
atuantes em suas vidas. Utiliza de metodologia participante e caráter qualitativo, onde ocorre

48
O território pode ser definido, também, pela identidade que uma pessoa ou um grupo de pessoas têm para com um
determinado espaço.
107

envolvimento e participação no curso, entrevistas com as organizadoras e coordenadoras de


maneira formal e casual. A análise interseccional visa compreender de que modo raça e gênero
interferem na autoestima e no reconhecimento de alunas do curso. O embasamento teórico do
conceito de interseccionalidade é realizado a partir de Xavier e Werneck (2013) e Piscitelli
(2008).
Ana Nery Correia Lima (2014), na dissertação “Grupo de mulheres negras Mãe Andresa:
marcações identitárias de gênero e raça na produção de estratégias contra o racismo e o
machismo”, busca compreender as estratégias contra a discriminação racial e de gênero
produzidas por militantes do grupo de Mulheres Negras Mãe Andresa, em São Luís - MA.
A autora tece reflexões sobre como marcações (raciais e de gênero), acionadas pelas
militantes do Grupo Mãe Andresa nos espaços de militância em que estão inseridas, são
negociadas na produção de estratégias frente ao racismo e o machismo. O aporte teórico tem
como base os estudos pós-coloniais e subalternos, os estudos feministas pós-estruturalista, a
interseccionalidade e o feminismo negro.
O termo “mulheres negras militantes” surge enquanto categoria analítica que se refere ao
grupo de sujeitas marcadas (entre outras) pelo gênero e pela raça que se apresentam como
mulheres negras, que estão situadas, também, no interior do Movimento Negro e Movimento de
Mulheres Negras, ou seja, Feminismo Negro, onde constroem sua militância na busca por acesso
aos direitos e enfrentamento ao racismo, machismo e outras formas de discriminação (LIMA,
2014).
De acordo com a autora, “em torno das dimensões das identidades/representações mulher
e negra existem um mosaico de significados e diversidades circunscritos nessas categorias e por
isso não devem ser analisadas fora dos contextos sociais em que são acionadas” (LIMA, 2014, p.
43).
Lima (2014) parte da compreensão da inexistência de um conceito ou entendimento único
que abarque a multiplicidade e heterogeneidade presentes na representação mulheres negras.
No entanto, devo elucidar, que essa construção identitária é muito cara as atrizes
sociais que as utilizam, pois se trata de, além de uma autorrepresentação, uma
estratégia política de conquista de espaços e demarcação de lugares sociais para
construção e efetivação de direitos e por essa razão é utilizada por elas na
maioria das vezes como uma identidade mais “fixa” ou mais importante no rol
de tantas outras que possam acionar (LIMA, 2014, p. 43-44).
108

O foco da interseccionalidade de gênero e raça no estudo é para a compreensão do sujeito


político mulheres negras. Destaca-se, então, que por meio dessas marcações identitárias estas
mulheres negras constroem estratégias na busca por seus direitos e por reconhecimento.
Ana Cristina Conceição Santos (2015), na dissertação intitulada “Mulheres negras, negras
mulheres: ativismo na capital baiana (1980-1991)”, discute o movimento das mulheres negras em
Salvador na década de 1980 e início dos anos de 1990. Trata-se de estudo com metodologia de
natureza qualitativa com o propósito de interpretar os significados atribuídos por essas mulheres
ao que se refere às opressões de raça-gênero-classe-sexualidade, de forma interseccional, e como
elas constroem suas identidades no que concerne ser mulher negra ativista.
A dissertação de Mariana Passos Dutra (2015) intitulada “Trajetórias militantes e
feminismos divergentes: transgressão, institucionalização e transeccionalidade” não foi localizada
na íntegra. A partir do resumo observou-se que a pesquisa traz reflexões sobre as experiências de
mulheres militantes de organizações feministas, buscando perceber através das suas trajetórias os
aspectos constitutivos dos significados profundos e cotidianos dos movimentos feministas.
As categorias trabalhadas são: militância, movimento feminista, feminismos,
interseccionalidade e feminismo institucional. Os instrumentos de coleta adotados por Dutra
(2015) são entrevistas semiestruturadas de tipo qualitativo e de observação de campo. O objetivo
do trabalho foi compreender de que maneira que o feminismo se insere na vida dessas militantes,
de onde ele surge e como se torna parte central nas suas lutas, trabalhando através dos seus
relatos biográficos e histórias de vida49.
Lara Roberta Rodrigues Facioli (2013) realiza investigação sobre os processos de
subjetivação em discursos de autoajuda contemporânea voltada para o público feminino, que
quando penetram na rede, através de uma específica forma de uso das mídias digitais, se
transformam em práticas de ajuda-mútua.
A autora realiza estudo etnográfico no site Bolsa de Mulher, com seus fóruns de debate,
propagandas e venda de produtos e o grupo criado pelas usuárias no Facebook; as falas das
usuárias e usuários que integram essa plataforma, suas histórias de vida e experiências, tanto com

49
Ainda no resumo há a informação de que a pesquisa foi realizada na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do
Sul, com três feministas, na qual cada uma trouxe a realidade de três tipos de feminismos discutidos: o feminismo
militante, que se dá através da vivência da entrevistada no movimento da Marcha das Vadias; o feminismo negro e o
feminismo institucional (DUTRA, 2015).
109

a internet quanto com o próprio discurso da autoajuda; e, por fim, alguns livros do gênero, mais
citados pelas colaboradoras e alguns exemplares dos mais vendidos nos últimos anos, no Brasil.
O referencial teórico adotado pela autora analisa questões de subjetividade por meio do
uso das mídias digitais, bem como aquele que aborda uma perspectiva de interseccionalidade das
diferenças de classe, gênero, sexualidade, raça e religião, todos os marcadores que atravessam tal
uso.
A investigação se concentra nos processos de subjetivação em discursos de autoajuda
contemporânea voltados para o público feminino:
[...] que quando penetram na rede, através de uma específica forma de uso das
mídias digitais, se transformam em práticas de ajuda mútua. Tais práticas se
mostraram atravessadas por um debate central, ou seja, aquele direcionado à
esfera dos relacionamentos amorosos, ainda vistos como representantes do
sucesso feminino (FACIOLI, 2013, p. 13).
As análises da autora evidenciam que nos discursos da plataforma do site do Bolsa da
Mulher há intersecções entre gênero, sexualidade e raça, o que traz para o debate outros diversos
marcadores que compõem a experiência de sociabilidade destas mulheres.
As matérias lançadas pelo Bolsa, principalmente aquelas que apresentam dicas
sobre beleza, maquiagem e moda, comumente exibem como referencial de
estética feminina mulheres brancas, magras e de cabelos lisos ou alisados. É
frequente a exposição de textos que apontam, por exemplo, como usar cores que
realçam o tom da pele, que vêm acompanhados de uma série de fotos de
mulheres famosas, brancas, o que deixe evidente, nas entrelinhas, que o único
tom de pele que de fato merece destaque é o do corpo não negro. Mesmo as
reportagens que se colocam direcionadas a “ajudar” a mulher negra a entender
sua pele, usando a maquiagem apropriada em meio a um mercado que ainda não
dispõe de produtos para a pele e cabelos negros, acabam irrompendo na
exposição de fotos de mulheres negras embranquecidas. Em recente conteúdo
sobre como esconder espinhas na pele negra, a foto de chamada para a íntegra da
matéria tratava de expor uma mulher com cabelos pretos nitidamente alisados e
que se apresentava com um tom de pele quase branco (FACIOLI, 2013, p. 126).
A partir da pesquisa evidencia-se a presença de outros marcadores, além de gênero, em
plataformas digitais utilizadas por mulheres.

3.3.5 Interseccionalidade Movimentos Artísticos

Foram encontradas também pesquisas que discutem a interseccionalidade a partir da


análise de movimentos artísticos. Marcela Ernesto dos Santos (2014), em sua tese: “Resistindo à
tempestade: a interseccionalidade de opressões nas obras de Carolina Maria e Maya Angelou”,
110

busca evidenciar nas obras50 das autoras a escrita autobiográfica como a forma de expressão que
não apenas traz à baila relatos preciosos acerca das mazelas enfrentadas pelas personagens, mas
também sinaliza a tripla opressão vivida pelas mulheres negras.
Ao discorrer sobre a importância das narrativas, Santos (2014) apresenta que:
A narrativa data de tempos imemoriais e tem como objetivo compreender não
apenas o mundo, mas principalmente a si próprio. Desse modo, na ânsia de
imortalizar sua história de vida, o ser humano vale-se da palavra escrita para
representar sua realidade, eternizando momentos que não podem ser capturados
pelo cronos. Nesse ínterim, a literatura confessional ou escrita do eu destaca-se
como uma narrativa de teor intimista em que o autor é também o sujeito da
enunciação e tenta, por intermédio da palavra, explicitar fatos ocorridos em sua
existência (SANTOS, 2014, p. 22).
Conforme evidenciado por Santos (2014), existem congruências nas histórias de vida de
Carolina Maria e Maya Angelou.
A negritude, o preconceito, as dificuldades para criar os filhos sozinha num
mundo tipicamente misógino e a coragem para transformar esses episódios de
dor em fatos memoráveis, fazem das autoras supracitadas ícones da escrita do
eu. Valendo-se do veio da memória, Carolina e Maya revisitam o passado e
relatam com poeticidade eventos de dor que nem mesmo as transformações do
tempo são capazes de apagar. Ao registrar a própria existência, por meio da
escrita, as escritoras transcendem os limites do cronos e levam o leitor a uma
reflexão sobre questões identitárias, sexistas e, sobretudo, preconceituosas que
ainda assolam a realidade de muitas mulheres negras (SANTOS, 2014, p. 32).
Evidencia-se que a hierarquia de gênero, raça e classe tem direcionado mulheres negras
para a fronteira dos acontecimentos, silenciando as vozes afro-femininas. A análise da obra destas
autoras evidenciou a interseccionalidade de opressões como a grande temática das obras em
questão, podendo ser entendida como uma realidade social conflitiva e tensa, que se quer
transformada (SANTOS, 2014).
Barbara Araújo Machado (2014), na dissertação intitulada “Recordar é preciso":
Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro
contemporâneo (1982-2008)”, discute a relação entre literatura e militância e, mais amplamente,
entre cultura e política no movimento negro brasileiro contemporâneo.
Machado (2014) apresenta a análise da trajetória e da obra literária da escritora negra
Conceição Evaristo, considerada como uma intelectual orgânica51.

50
As obras analisadas por Santos (2014) foram: I know why the caged Bird sings (1969), Gather together in my
name (1974), de Maya Angelou, Diário de Bitita (1982) e Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus.
51
Segundo a concepção de Antônio Gramsci (MACHADO, 2014).
111

A análise da trajetória e a obra da Conceição Evaristo se volta na observação das formas


de organização da intelectualidade negra – em particular escritoras e escritores –, bem como as
estratégias utilizadas pelo movimento na construção de uma identidade negra combativa e
reivindicatória de direitos em uma sociedade dominada pela ideia hegemônica de democracia
racial.
Como parto do pressuposto de que existe uma vinculação entre intelectuais e os
grupos sociais em conflito, ainda que alguns deles se apresentem como
observadores/as independentes e externos/as ao processo social, cabe um olhar
mais atento a essa vinculação. Além da questão da luta de classes, há outras
questões que complexificam os conflitos sociais. É a essa complexidade que
Conceição Evaristo se refere quando fala em um “lugar social e étnico” que
ocupa na academia e, em termos de sua produção literária, ao cunhar a expressão
“escre(vivência) de dupla face”. Essa “dupla face”, que remete à sua experiência
como mulher e como negra, pode ser desdobrada em uma “tripla face”, já que 33
não só o gênero e a raça, mas também a classe se apresentam como aspectos
fundamentais na experiência subjetiva, na trajetória intelectual e na produção
literária da autora (MACHADO, 2014, p. 32-33).
A autora discute a dificuldade na conciliação de uma análise que ressalte questões como a
de gênero e a de raça com uma perspectiva marxista da questão de classe.
Da obra da autora, não se depreende apenas a conclusão de que a população
negra é oprimida em nossa sociedade. Conceição fala sobre as maneiras como
quem é oprimido/a e explorado/a se sente, vive, experimenta opressão e
exploração. “Maneiras”, no plural, porque cada ser humano sofre de um jeito. Se
a população negra compartilha uma experiência sócio-histórica por conta da
prática do racismo, isso não anula o fato de que cada pessoa experimenta a vida
de uma maneira. Ao humanizar o sofrimento, Conceição Evaristo constrói uma
obra literária que não é panfletária ou simplificadora, mas carregada de uma
sensibilidade literária fundamental para uma reflexão mais profunda sobre as
relações de subalternidade no Brasil (MACHADO, 2014, p. 116).
O desafio proposto pela autora é abordar estas questões não em um caminho de soma de
elementos equivalentes cujo resultado é desigualdade social, e sim partindo do pressuposto de
que as dimensões de classe, raça e gênero se apresentam na realidade de forma imbricada e
complexa, estruturando e organizando a desigualdade e a opressão. De acordo com Machado
(2014), esse entendimento baseia-se em uma perspectiva interseccional de análise.
Valéria Souza (2014), na dissertação “Os tambores das 'yabás': raça, sexualidade, gênero e
cultura no bloco afro Ilú obá de Min”, investiga as maneiras pelas quais as componentes do Bloco
Afro Ilú Obá De Min: Educação, Cultura e Arte operacionalizam e articulam os marcadores
sociais da diferença raça, gênero e sexualidade. A análise é feita a partir da história do carnaval
no Brasil o lugar ocupado pelo Ilú Obá no carnaval paulistano; os processos que deram origem ao
112

bloco, sua composição artística e o perfil das integrantes; as dinâmicas das relações de raça,
gênero e sexualidade no interior do bloco; o trânsito entre o Bloco Afro Ilú Obá De Min e o seu
Ponto de Cultura Ilú Oná: Caminhos do Tambor.
Por certo tempo as discussões sobre mulher negra na composição do Ilú não eram bem
recebidas e com atuação de Beth Belli, pressionada por parte da população negra que colocava
em pauta a ausência de mulheres negras no Ilú Obá, passou a trabalhar mais esse tema nas
reuniões e encontros de dentro do bloco.
A partir de análises de Carneiro (1995), Mcclintock (2010) e Moutinho (2004), a autora
analisou as formas com que marcadores sociais da diferença tais como raça, gênero, sexualidade,
religiosidade e cultura operam um em relação ao outro no cotidiano do Bloco Afro Ilú Obá De
Min, agindo de diferentes formas em diferentes situações (SOUZA, 2014). Abordam-se discursos
antropológicos sobre cultura e cultura negra e as formas que as componentes do bloco
interpretam e operacionalizam essa cultura.
Sumaya Machado Lima (2010), na tese “As filhas do vento e o céu de Suely: sujeitos
femininos no cinema da retomada”, analisa como os filmes ficcionais de longa-metragem,
situados no período da retomada do cinema brasileiro, “As filhas do vento” (2005), de Joel Zito
Araújo e “O Céu de Suely” (2006), de Karim Aïnouz, representam sujeitos femininos em
condição de exclusão social e como ocorrem as estratégias de poder relacionadas a esses sujeitos.
Maria Isabel de Castro Lima (2009), na dissertação “Cassandra Rios de lágrimas: uma
leitura crítica dos inter(ditos)”, discute que obras consideradas de pouca complexidade pelo
cânone do século XX ficaram à margem dos estudos literários.
Neste panorama, as autobiografias de mulheres começaram a ser procuradas e lidas, ou
relidas pela crítica feminista a partir dos anos 1980. O destaque é feito para narrativas que sofrem
marginalização dentro destas marginalizadas, obras de mulheres lésbicas, ignoradas, escondidas
ou tratadas como doentes mentais. Cassandra Rios52 faz parte destas mulheres que foram
invisibilizadas e com seu trabalho literário luta pelos direitos de mulheres lésbicas.
Em sua pesquisa, Lima (2009) realiza um histórico sobre o gênero autobiográfico,
abordando algumas teóricas feministas pós-estruturalistas. Desta forma se destaca a importância

52
Cassandra Rios é o pseudônimo da escritora Odete Rios.
113

do estudo dos textos autobiográficos de mulheres para uma reescrita da História, apresentando
aspectos críticos sobre as diferenças existentes dentro da categoria mulheres.
A autora salienta que:
Usar a categoria “mulher” para análise é uma estratégia de articulação política.
No entanto, é imprescindível que essa estratégia leve em consideração que o
sujeito é intersectado por múltiplos discursos, pelas condições de produção de
seu texto, pelo momento histórico, além de outras tantas categorias, como
sexualidade, classe, raça e etnia (LIMA, 2009, p. 28).
Para estudar o tema de maneira mais aprofundada, a autora identifica a exclusão social,
através do conceito de interseccionalidade/discriminação composta de Crenshaw.
O conceito feminista de interseccionalidade serviu para visualizar os conflitos
que levam as personagens a um determinado tipo de exílio, à negociação de suas
identidades e ao seu eventual reposicionamento social ou político.
Posicionamento político no sentido mesmo que o feminismo aplica. “O pessoal é
político”, de forma que modos de pensar sempre serão diversos e constituídos
em múltiplas vozes, às vezes, convergentes, outras vezes contraditórias, mas
sempre focalizadas nas lutas e conquistas das mulheres (idem, 2010, p. 60).
Jorge Hilton de Assis Miranda (2015b), na dissertação “Perspectivas de rappers
brancos/as brasileiros/as sobre as relações raciais: um olhar sobre a branquitude”, traz a
necessidade de se compreender o estilo musical do rap dentro do seu contexto elementar de
composição do hip-hop enquanto manifestação de caráter sociopolítico que envolve cultura e
movimento. Ele diz que no Brasil:
[...] o Rap surge na década de 1980. Seus precursores são herdeiros da Black
Music brasileira dos anos 1970, cena fortemente inspirada pelo contexto de luta
política e cultural estadunidense. Nesse enredo anterior, as composições dos
artistas negros locais refletiam cada vez mais consciência da sua cidadania e
negritude, com valorização da estética afro, revolta contra opressão e incentivo à
mudança de comportamento (MIRANDA, 2015b, p. 23).
O rap no Brasil, conforme o autor, recebeu muita influência norte-americana, e embora no
início não se voltasse diretamente para as injustiças sociais, teve em seu segundo momento uma
crítica muito ativa ao machismo e ao sexismo.
Coloca-se em debate os conflitos da legitimidade de “brancos cantando músicas de
negros” e evidencia a partir de falas de seus sujeitos de pesquisas que muitos se sentiram
discriminados por serem brancos em um espaço socialmente considerado para negros. O autor,
porém, problematiza que os preconceitos sofridos por brancos e negros não podem ser
equiparados, já que os negros são acometidos de maiores injustiças e violências sociais. Ele traz
para debate o conceito de empatia abnegada como sendo a “elevada capacidade de compreensão
114

e aceitação de situações ofensivas por outro indivíduo ou grupo, em razão de contextos históricos
de injustiça nos quais esses se encontram” (MIRANDA, 2015b, p. 42).
Para discutir identidades o autor aborda outras categorias de análise como gênero, religião
e estética, articulando-as com raça. Aponta que dentro do movimento do rap a educação enquanto
processo de transformação positiva dos indivíduos pode sensibilizar homens para que estes
também se tornem capazes na luta contra o machismo.

3.3.6 Interseccionalidade e Intergeracionalidade

Neste bloco apresentam-se as discussões da interseccionalidade envolvendo fatores


intergeracionais. A dissertação de Miranda (2015a), intitulada “Tecendo o futuro: vivências de
mulheres negras em uma perspectiva intergeracional e familiar”, e a de Jesus (2015),
“Desigualdades de gênero e intragênero: um estudo acerca das representações sociais do
envelhecimento”, discutem a intersecção de gerações, gênero, raça, sendo que a segunda
complexifica o debate incluindo sexualidade.
Miranda (2015a) discute como o racismo impacta a vida de mulheres negras, mesmo que
não faça parte das discussões elaboradas por estes sujeitos. A interseccionalidade é feita a partir
das opressões de raça, de gênero e classe social. Evidencia-se a dificuldade de se trabalhar em
uma abordagem interseccional, por esta ter sido pouco explorada em termos de análise, tornando-
se um desafio teórico, metodológico e político a ser enfrentado.
O estudo se realiza a partir de entrevistas com uma família monoparental composta por
três mulheres de gerações diferentes, o que revela importantes aspectos do ponto de vista
analítico e teórico. A partir destas entrevistas a autora discute corporalidade negra, cotas raciais,
miscigenação e racismo institucional, dentre outros, e problematiza a situação de mulheres negras
a partir da compreensão de que a desigualdade racial é um fenômeno que ocorre não somente
concomitantemente a outros, mas também em interação com estes. “Entre os múltiplos processos
e fenômenos que operam no cotidiano dessas mulheres, a conjugação da desigualdade racial com
a desigualdade de gênero potencializa situações de vulnerabilidade” (MIRANDA, 2015a, p. 64).
A interseccionalidade é discutida a partir de Crenshaw e inclui-se na análise interseccional, além
da desigualdade de gênero e social, a desigualdade geracional que evidencia o adultocentrismo e
promove acesso desigual de poder entre os adultos e as crianças e (ou) adolescentes.
115

Jesus (2015) realiza um estudo sobre as desigualdades de gênero e intragênero durante o


processo de envelhecimento. A autora parte da crítica aos estudos sobre os processos de
envelhecimento que desconsideram a trajetória de vida individual.
É diante deste contexto de reflexão sobre o envelhecimento que uma pesquisa de
cunho interseccional se faz necessária, uma pesquisa que leve em consideração
como aspectos que compõe o gênero, a raça, a geração, a classe e a sexualidade
se entrecruzam na vivência do processo do envelhecimento (JESUS, 2015, p.15).
Os estudos de Jesus (2015) e Miranda (2015a) evidenciam que as mulheres negras, ao
cruzarem as zonas de impactos entre opressões de gênero e raça durante a velhice, sofrem
violências sociais de injustiças que merecem atenção. Já nos estudos de Souza (2015) e Hammes
(2015), percebe-se a questão geracional e seus impactos na população jovem em relação ao
consumo de álcool.
Souza (2015), na dissertação “’Quando não tem bebida, morga logo!’ Um estudo
interseccional sobre juventude e consumo de álcool”, realiza uma análise interseccional sobre
juventude e consumo de álcool. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de inspiração feminista,
inserida na Psicologia Social. A interseccionalidade é utilizada em relação aos marcadores sociais
que permitem compreensão/intervenção de/em posicionamentos das/os jovens interlocutoras/es
relativamente ao consumo de álcool.
Problematiza-se na pesquisa que o álcool é um importante elemento relacionado à
sociabilidade de jovens e que o tensionamento público-privado caracteriza diferentes
experiências com as bebidas. Destaca-se nesta pesquisa os significados do beber e suas distinções
quanto aos marcadores de gênero, sobretudo quando articulados às vivências e posicionamentos
sexuais. Conforme evidenciado, a mulher que bebe em espaços públicos, principalmente, é alvo
de críticas e regulações; além disso, a experiência de embriaguez para mulheres jovens é
fortemente associada ao risco de violência sexual. Por outro lado, o homem que bebe pode se
sentir mais desinibido, e assim, colocar-se de forma mais ativa em situações de paquera, o que lhe
é esperado e valorizado.
Hammes (2015), na pesquisa “No Feirão do Chope: Um estudo antropológico sobre
intersecções entre marcadores sociais da diferença em um bar na região periferizada de Goiânia”,
apresenta um estudo etnográfico com o objetivo de analisar e entender o processo de constituição
de identidades, subjetividades e pertencimentos experimentados por jovens frequentadoras/es do
espaço de lazer e sociabilidade noturna.
116

A partir de indagações sobre a formulação de elementos de subjetividade e pertencimento,


Hammes (2015) traz reflexões sobre a associação artificial entre “periferia” e “negritude”, que
naturaliza os locais de baixa renda, afastados e estigmatizados econômica e socialmente, como
“lugar de negro”. O autor também problematiza os efeitos da erotização do corpo dos homens
negros.
A interseccionalidade é juventude, gênero e sexualidade com raça, em uma investigação e
formulação a partir do conhecimento de alguém marginalizado. Utilizam-se também os estudos
de Crenshaw e apresenta interseccionalidade como mais que um conceito categórico
sistematizado.
Ao invés, ou mais do que isso, seria um método de análise contextualizado das
múltiplas formas através das quais os marcadores sociais da diferença (ou eixos
de subordinação) se entrecruzariam nas relações sociais e de poder intragrupais,
revelando a condição, mais ou menos “subalternizada”, a partir da qual os
indivíduos se localizariam/seriam localizados nas interações sociais (HAMMES,
2015, p. 58).
No estudo de Pocahy (2011), o foco é nos discursos de objetificação dirigidos a homens
idosos que exercem práticas homo/eróticas. Na tese “Entre vapores e dublagens: dissidências
homo/eróticas nas tramas do envelhecimento”, o autor se dedica na análise das formas de
regulação do gênero e da sexualidade em interseccionalidade com a idade, buscando
compreender de que maneira se produzem estratégias de contestação às significações
desqualificantes sobre a (homo)sexualidade e o envelhecimento.
A partir de trabalhos de Mendes-Leite (2000; 2003) se discute “a possibilidade de
pensarmos que existe uma tensão no terreno das experimentações da (homo)sexualidade que não
se acomodam tranquilamente e necessariamente por ocasião de um espaço configurado que se
destina a um grupo supostamente identitário” (como se esta representação fosse fechada, sem
ranhuras, fissuras etc.) (POKAHY, 2011, p. 130).
Considerando a existência de uma diversidade de categorias, de papéis, de extratos sociais
e de diferenças de idade o autor anuncia que trabalha com interseccionalidade a partir de Richard
Parker (2002), Néstor Perlongher (1981; 1987), Veriano Terto Jr (1987) e Peter Fry (1982)53.
A partir da perspectiva de diversidade e de mudanças sociais ao considerar
interseccionalidades sociais e dimensões culturais distintas, Pokahy (2011) evidencia algumas das

53
Ao longo do texto não foram encontradas relações diretas destes autores com interseccionalidade.
117

relações de poder em torno das formas de regulação da vida que se interseccionam às marcas e
habilidades do corpo, aos discursos de racialização humana, às relações sociais abertamente
tarifadas, à classe social, às representações de masculinidade e à orientação sexual.

3.3.7 Interseccionalidade e Relações de Trabalho

Neste bloco de análise se encontram as pesquisas que envolvem relações de trabalho


analisadas a partir da interseccionalidade. Santos (2010), na dissertação “Desigualdade e
identidade no serviço doméstico: intersecções entre classe, raça e gênero”, analisa as identidades
construídas nas relações entre trabalhadoras domésticas e patroas. Importante destacar o
apresentado pelo autor de que:
O serviço doméstico remunerado se constituiu, então, como um objeto
fundamentalmente importante para essa perspectiva. Suas características
tradicionais, de trabalho feminino executado predominantemente por negras e
pobres, o fizeram um dos objetos centrais das preocupações do feminismo negro
(SANTOS, 2010, p. 10).
Neste sentido o autor demonstra que o trabalho doméstico tem sua peculiaridade por
reunir em si a herança simbólica da escravidão negra e da desvalorização histórica do trabalho
feminino.
Nesta pesquisa se elegem os conceitos de “identidade” e “diferença” como categorias
analíticas centrais, e as categorias de classe, raça e gênero como marcadores das diferenças que
perpassam essa relação, se tornando bases para a construção de identidades. Utiliza a metáfora da
interseccionalidade como cruzamento, conexão e combinação e justifica seu uso pela hipótese de
que o serviço doméstico se baseia em relações que envolvem uma conexão complexa entre
diferenças e desigualdades de classe, raça e gênero que, de acordo com o contexto, forjam
identidades mais ou menos estáveis. A partir dessas identidades, patroas e trabalhadoras
domésticas se posicionam na relação e interagem levando em consideração as diferenças
existentes entre elas.
Redinz (2014) também desenvolve pesquisa sobre o trabalho doméstico no Brasil. Na
dissertação “Trabalhadora doméstica – patriarcalismo, interseccionalidades de gênero e raça e
situação no mercado de trabalho no Brasil”, aborda a problemática da interseccionalidade entre
raça e gênero, discutindo de forma crítica o trabalho doméstico a partir de suas bases históricas,
desenvolvimento normativo, legislação brasileira e as condições das trabalhadoras domésticas a
partir de suas vivências de preconceito e discriminação.
118

Apresentando que no processo histórico houve direcionamentos de papéis importantes


para homens e as tarefas domésticas e cuidados de filho para mulheres, ocorreu uma mudança e
as mulheres passaram a exercer papéis menos significativos para a sociedade, que ocorrem na
extensão do próprio lar, sendo exemplos os cargos de a secretária/ajudante de um empresário. A
estes cargos aliam-se baixa remuneração e nenhum poder (REDINZ, 2014).
O autor trabalha com interseccionalidade a partir da constatação de que:
[...] as muitas formas de discriminação e de preconceito não agem de forma
separada e isolada sobre suas vítimas, mas na verdade, em inúmeras vezes, uma
mesma pessoa acaba sendo vítima de mais de uma forma de opressão. Em tais
casos, uma mesma mulher poderá vir a sofrer discriminação de gênero e também
de raça, caso seja negra, ou mesmo de classe, se for pobre, além de muitas outras
formas de opressão. Segundo a teoria intersecional tal questão deve ser analisada
sob a ótica de gênero, raça e classe, em sua totalidade, e não isoladamente, como
se tratassem de categorias distintas de mulher, na qual cada forma de
discriminação e preconceito seria tratada de forma isolada, sendo que na
experiência real se mesclam e se manifestam de múltiplas formas e sob inúmeros
contextos em relação a uma mesma pessoa (REDINZ, 2014, p. 36).
Para o doutor em Direito, o conceito de interseccionalidade de raça e de gênero permitiu a
compreensão sobre as desigualdades existentes entre homens e mulheres, principalmente no que
diz respeito às mulheres negras e pobres. O autor discute que estas desigualdades também se
fazem presente no campo das relações de trabalho, e em sua pesquisa demonstra “o impacto da
interseccionalidade de raça e gênero sobre as mulheres trabalhadoras domésticas, que pelas
condições de raça e gênero são submetidas a estereótipos e discriminações, o que acaba dando
margem a todo tipo de preconceito e exploração” (REDINZ, 2014, p. 61).
Ele discute que ainda hoje são poucas as mulheres que realmente chegam ao poder, e
quando chegam são cobradas de maior competência e ainda recebem salários inferiores aos
homens, mesmo exercendo mesma função. Estudos recentes, de acordo com o autor, demonstram
maior inserção da mulher no mercado de trabalho com a diminuição das diferenças salariais.
[...] apesar de tais avanços “muita coisa ainda tem que mudar”, visto que “o
preconceito em relação ao ‘gênero’ ainda existe e, sendo algo cultural, não irá
acabar tão cedo”. Mas é inegável é que “mesmo com todo preconceito existente
na sociedade, cada vez as mulheres estão conseguindo quebrar as barreiras e
ocupar cargos que antes eram dados exclusivamente aos homens (REDINZ,
2014, p. 36).
119

Larissa da Silva Araújo (2015), na dissertação “Baianas de acarajé54 contra FIFA: um


estudo de caso sobre desenvolvimento e colonialidade”, investiga a implementação de um
modelo de desenvolvimento por megaeventos durante a realização da Copa do Mundo da FIFA
de 2014, que resultou na violação de direitos humanos de vários brasileiros, entre eles as baianas
de acarajé.
A partir de pesquisa de campo, realizada em Salvador em 2014, e pesquisa documental,
Araújo (2015) identificou estratégias e discursos da disputa entre as baianas de acarajé e as
instituições, revelando uma tensão entre o desenvolvimento e a “diferença”, categorias que
resumem as distintas visões em jogo.
A interseccionalidade é apresentada enquanto metodologia, juntamente com o marco
teórico da (des)colonialidade. A autora realiza uma discussão sobre a tensão entre direitos
humanos universais – na figura do direito ao desenvolvimento – e o direito à diferença. Uma
discussão teórica sobre essas categorias desvela a realidade subjacente ao conflito e indica
caminhos descoloniais para distender a tensão.
Optei por fazer a análise desse estudo de caso a partir da metodologia da
interseccionalidade e da perspectiva do conhecimento situado. Isso porque eu
poderia fazer a análise a partir do enfoque em apenas uma das categorias de
análise – enfoque nas relações de gênero, raça ou classe – mas não me sentia à
vontade para delimitar o escopo da pesquisa com o olhar direcionado a
investigar apenas uma das relações. Essa metodologia me deu a possibilidade de
observar o campo considerando distintas categorias que, articuladas, compõem
uma estrutura de dominação e exploração que sustenta e constitui as relações de
poder entre os sujeitos em interação. Já a perspectiva do conhecimento situado
me permitiu investigar o estudo de caso a partir do olhar das baianas de acarajé,
que, por ocuparem uma posição desprivilegiada nessa trama de relações,
paradoxalmente, tem o privilégio de compreender o todo com mais riqueza de
detalhes (ARAÚJO, 2015, p. 4).
A partir de investigação sobre a vida cotidiana das baianas, a autora consegue identificar
as chaves de interpretação das relações de poder de gênero e raça que estão envolvidas.

54
De acordo com Araújo (2015), o ofício de baianas de acarajé tem percorrido várias gerações e se constitui
enquanto conhecimento popular disseminado há séculos no estado da Bahia. A autora aponta que em tempos
coloniais, esse ofício teve grande significado para muitas mulheres e se constituía como única alternativa de sustento
familiar e sobrevivência, não só econômica, mas também simbólica e religiosa – ainda hoje, essa prática é o que dá
sustento para muitas famílias. Desta forma “com a popularidade, tanto do futebol no Estado quanto dos alimentos
oferecidos em seus tabuleiros, não surpreende que as baianas sejam presença comum nos estádios, há pelo menos 50
anos, segundo relatos das próprias baianas. Mas, em tempos de Megaeventos no País, inúmeras violações de direitos
humanos acontecem em nome da realização das obras e do cumprimento das exigências do capital internacional”
(ARAÚJO, 2015, p. 1).
120

Edilene Machado Pereira (2015), na tese “A vivência de mulheres em cargos em cargos


executivos em grandes empresas: uma análise interseccional das desigualdades de gênero e de
raça”, apresenta uma pesquisa dedicada justamente a compreender as barreiras existentes em
mulheres ocupando cargos de poder. Tendo como cenário as cidades de São Paulo e Salvador
(capital da Bahia) e também as trajetórias de executivas pretas, pardas e brancas, na sociologia do
trabalho, trata-se de uma pesquisa com abordagem sociológica/social que analisa a questão do
racismo, sexismo e pré-equidade no mundo empresarial.
Pereira (2015) analisa as condições do mercado de trabalho para as mulheres brasileiras
pretas, pardas e brancas, com foco nos cargos executivos55 no mundo corporativo, evidenciando
os percalços enfrentados para manter ou garantir sua mobilidade profissional, a partir da
identificação de quanto os traços raciais influenciam na ascensão dentro da carreira profissional.
A interseccionalidade é em relação à condição de gênero e à pertença racial para esta mobilidade,
com o cruzamento das categorias raça, sexismo e classismo.
O mundo do trabalho das mulheres negra e branca brasileira pode ser
caracterizado como categoria fundamental do ser social dentro de uma sociedade
racializada, na qual a sociologia das ausências impera no tocante à
invisibilização dessas mulheres (PEREIRA, 2015, p. 126)
A mulher negra vivendo em ambiente urbano ocupa lugar predeterminado com pior qualidade
e remuneração. A autora problematiza tal cenário e promove análises a partir da ideologia da
democracia racial que permeia a sociedade brasileira e a interseccionalidade na perspectiva de
Kimberlé Crenshaw.
O fenômeno da interseccionalidade é evidenciado nos dados que apontam que:
[...] apesar de as mulheres pretas e pardas representarem uma parcela de 50,1%
do total das mulheres ativas na população brasileira, ainda sofrem exclusão
originada na junção de patriarcalismo, gênero, raça, opressão de classe e traços
físicos causando desigualdades básicas entre as mulheres pretas, pardas e branca
(PEREIRA, 2015, p. 126)
Os resultados do estudo apresentam as diversas maneiras de exclusão sofridas pelas mulheres
pesquisadas, mas evidenciou-se o efeito que os atos discriminatórios causam em cada mulher de
forma diferenciada, causando maiores danos às mulheres negras.

55
Conforme Pereira (2015, p. 35) são consideradas “executivas aquelas profissionais que ocupam posições
gerenciais ou de direção em grandes empresas, nacionais públicas e privadas assim como multinacionais que
compõem o mundo coorporativo. Portanto mulheres que nesses cargos assumiram responsabilidades e tem voz e
poder de decisão nos lugares profissionais que ocupam”.
121

Esses atos são de forma velada ou declarada. O machismo e o sexismo estão


presentes na fala de todas as participantes, mas, acrescenta-se aqui o racismo, a
classe social de origem que compõem a interseccionalidade que mesmo
invisibilizadas estão presentes no cotidiano dessas mulheres como nos informa
Crenshaw (2002). Frequentemente, um certo grau de invisibilidade envolve
questões relativas às mulheres marginalizadas, mesmo naquelas circunstancias
em que se tem certo conhecimento sobre seus problemas (PEREIRA, 2015, p.
222).
André Geraldo Ribeiro Diniz (2013), na dissertação “Sobre subalternidades e
enfrentamentos: sexualidade, poder e agenciamentos na experiência de mulheres prostitutas”, se
debruça a uma análise interseccional de sexualidade com ênfase na identificação e análise de
posições de agenciamento na experiência de mulheres prostitutas em Belo Horizonte. O autor
busca desvelar as condições de subalternidade que fazem parte do cotidiano destas mulheres para
identificar experiências de resistência e afirmação de autonomia.
A perspectiva interseccional adotada por Diniz é a proposta por Brah (2006) e Brah e
Phoenix (2004), que considera experiência enquanto possibilidade de significado.
Os três dispositivos de articulação de marcadores sociais apontados por Mayorga
& Prado (2010) foram tomados neste estudo como categorias analíticas
transversais. Assim, buscamos analisar de que forma esses dispositivos atuam
nas dinâmicas de diferenciação social relacionadas à prostituição, e de que
maneira eles articulam diferentes marcadores na produção de opressões,
subalternidades, resistências, dentre outros efeitos de poder. Chamamos a elas de
categorias analíticas transversais porque elas foram utilizadas transversalmente
na análise das categorias centrais do estudo. As categorias analíticas centrais
foram determinadas a partir das tensões identificadas no campo de pesquisa,
associadas aos pressupostos teóricos nos quais se sustentam nossas hipóteses e
argumentos (DINIZ, 2013, p. 36).
As conclusões do autor evidenciam que há uma constante articulação entre os marcadores
dos diversos sistemas de poder como pano de fundo para as dinâmicas de subalternização das
prostitutas.
Neste bloco de pesquisa, todos os estudos, exceto o de Diniz (2013) que discute a
categoria mulher atravessada por outros marcadores, discutem a especificidade da mulher negra.
Apoiados nesta análise desta parte do levantamento, concorda-se com Carneiro (2003)56 que
ainda existe um abismo entre experiências de homens brancos e negros e mulheres brancas e

56
Ainda nesta questão deve-se considerar artifícios como os apresentados por Carneiro (2003) de que a “boa
aparência” utilizada até recentemente nos anúncios de emprego, num país onde ser negro é associado a tantos
estereótipos negativos, é uma forma sutil de barrar as aspirações dos negros, em geral, e das mulheres negras, em
particular.
122

negras. Ainda que a luta feminista tenha alcançado avanços significativos em relação ao mercado
de trabalho, ainda não conseguiu diminuir as desigualdades raciais que atingem mulheres negras.

3.3.8 Interseccionalidade e Deficiências

No recorte temporal utilizado, somente foi encontrada a pesquisa de Francisco José Roma
Buzar (2012) que traz o panorama das discriminações de pessoas portadoras de deficiência a
partir de análise interseccional. A dissertação intitulada “Interseccionalidade entre raça e surdez:
a situação de surdos (as) negros (as) em São Luís – MA”, tem inspiração na teoria da
interseccionalidade e no que esta tem contribuído para a compreensão dos aspectos de gênero da
discriminação racial e dos aspectos raciais da discriminação de gênero.
Buzar (2012) parte do entrecruzamento entre raça e surdez para compreender as
circunstâncias concretas da experiência de intersecção vivenciada por surdos (as) negros (as) em
São Luís/MA. De acordo com o autor:
[...] as questões referentes às subordinações interseccionais enfrentadas por
surdos (as) negros (as) não são encontradas nem dentro dos estudos surdos e
nem dentro dos estudos étnico-raciais no Brasil. A invisibilidade referente a este
tema no nosso país é tão marcante que não encontramos um só artigo, livro ou
publicações acadêmicas científicas que tratasse do referido assunto (BUZAR,
2012, p. 65).
O autor utiliza as categorias de superinclusão e subinclusão, desenvolvidas nos Estudos
sobre a Discriminação Racial relativos ao Gênero.

3.3.9 Interseccionalidade, Direito e Encarceramento

Carla Adriana da Silva Santos (2012) na dissertação intitulada “Ó paí, prezada! Racismo e
sexismo institucionais tomando bonde no conjunto penal feminino de Salvador”, identifica e
analisa a intersecção do racismo e sexismo institucionais no Conjunto Penal Feminino de
57
Salvador, Bahia . O conceito de interseccionalidade é utilizado como ferramenta teórico-
metodológica e prática à captura dos marcadores do binômio gênero-raça que dão margem à
opressão diferenciada das mulheres negras em privação de liberdade.
A pesquisa de Rodrigo da Silva (2013), intitulada “Discriminação múltipla como
discriminação interseccional: o direito brasileiro e as intersecções de raça, gênero e classe”,

57
O trabalho se baseia em estudo de campo de cunho etnográfico realizado durante os meses de dezembro de 2011 e
janeiro de 2012, no Complexo Penitenciário Lemos de Brito.
123

apresenta reflexões sobre o conceito jurídico de discriminação múltipla como discriminação


interseccional.
Já a dissertação “Mulheres Invisíveis: uma análise da influência dos estereótipos de
gênero na vida de mulheres encarceradas”, de Debora Cheskys (2014), discute os múltiplos focos
de discriminação que sofre a mulher presa, evidenciando o direito enquanto instituição através da
qual os estereótipos de gênero são reproduzidos, possibilitando questionamentos sobre em que
medida pode o direito ser um instrumento de luta por igualdade, reconhecendo a urgência na
construção e valorização de criminologias feministas aptas a transformar as práticas de gênero
que vêm impedindo a mulher presa de receber tratamento adequado.
A dissertação de Enedina do Amparo Alves (2015), “Rés negras, judiciário branco: uma
análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão
paulistana”, apresenta o direito penal brasileiro a partir de seu sistema de poder que organiza as
relações sociais e fundamenta-se por uma ideologia racista, patriarcal, homofóbica e classista.
Propõe-se, a partir disso, a análise de raça e colonialidade da justiça como fatores históricos no
Brasil contemporâneo.
Análises mais aprofundadas destas obras serão feitas no capítulo 4, ao discorrer sobre a
interseccionalidade e o encarceramento de mulheres negras.

3.4 As facetas das análises interseccionais

O levantamento se situa três décadas após Crenshaw ter dado o nome ao conceito de
interseccionalidade enquanto “uma sensibilidade analítica, uma maneira de pensar sobre a
identidade e sua relação com o poder58” (CRENSHAW, 2015). Ainda que o estudo teórico tenha
evidenciado que a interseccionalidade foi criada em nome das mulheres negras, constata-se, pelo
estudo realizado, que o conceito tem permitido visibilidade a vários outros grupos, que
denunciam a falha de suas representações nos diferentes movimentos sociais.
O estudo atento a cada uma das teses e/ou dissertações apresentadas nesta etapa, além de
permitirem compreensões, antes postergadas, sobre práticas que são atravessadas por intersecções
de opressões, foi fundamental para a compreensão teórica/prática da interseccionalidade e de sua
ação na compreensão do encarceramento em massa de mulheres negras.

58
Em entrevista para o Washington Post (2015).
124

Destaca-se a importância das pesquisas sobre a violência contra mulher negra, por sua
intima relação com a questão do encarceramento em massa do seu segmento. Neste sentido é
preciso pensar que mulheres negras durante infância e fase adulta têm vivências de opressão
similares às outras mulheres, sendo vítimas de assédio e abuso na infância, violência sexual,
tráfico, exploração e violência por parceiro íntimo, entre outras, mas que conforme se pode
verificar nos dados de 2012 do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da
Saúde (SIM/MS), 58,86% das mulheres vítimas de violência doméstica são negras; das vítimas
de mortalidade materna, 53,6% são mulheres negras; 65,9% das mulheres que sofrem violência
obstétrica também são mulheres negras e 68,8% das mulheres mortas por agressão, segundo
dados do Ministério da Justiça (2015), são mulheres negras.
O Dossiê Mulher 2015, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, aponta que
56,8% das vítimas dos estupros registrados no Estado em 2014 eram negras. E 62,2% dos
homicídios de mulheres vitimaram pretas (19,3%) e pardas (42,9%).
Em relação aos homicídios de mulheres, tem-se o seguinte panorama, apresentado no
gráfico 6:

Gráfico 6 - Homicídios de mulheres por raça

Fonte: Dossiê Mulher (2015)

É válido destacar que apesar da Lei Maria da Penha ter alcançado uma redução, ainda que
pequena, com relação aos homicídios contra as mulheres, tratam-se de dados referentes a
mulheres brancas, já que o feminicídio de mulheres negras continua a crescer, o que demonstra a
baixa efetividade das medidas protetivas na Lei com relação a essa parcela da população.
125

Deste modo, é possível evidenciar a urgência na compreensão do fenômeno da violência


doméstica a partir da perspectiva múltipla e interseccional, considerando também o caráter
estruturante do racismo e as questões ligadas aos marcadores de raça delimitados na construção
social da mulher negra.
Ainda pensando na importância de se desvelar as vulnerabilidades sociais da mulher negra
que devem ser problematizadas na situação do encarceramento deste segmento social, destaca-se
a importância das pesquisas que interseccionam a questão de gênero e raça, no campo da saúde.
Há ainda uma baixa presença sobre a saúde da mulher negra nos periódicos nacionais
dedicados às Ciências da Saúde (WERNECK, 2016). Estas ausências acarretam em uma falta de
consolidação “da saúde da mulher negra como campos temáticos e de pesquisa, relacionada ao
baixo grau de penetração nas instituições de pesquisa dos debates sobre o racismo, seus impactos
na saúde e suas formas de enfrentamento” (WERNECK, 2016, p. 536).
As formulações conceituais de diretrizes e estratégias e da atuação em saúde da população
negra tem origem fora do sistema de saúde, com a atuação dos sujeitos negros organizados, de
suas análises, conhecimentos e valores:
Nesse processo de formulação, as mulheres negras tiveram especial destaque,
não apenas por sua experiência histórica e cultural nas ações de cuidado, mas
também por serem as mulheres negras a parte expressiva de trabalhadoras de
saúde das diferentes profissões. As instituições de pesquisa, os órgãos de
fomento e as instâncias de gestão do Sistema Único de Saúde permaneceram
ausentes na maior parte desse processo e ainda necessitam de atuação mais
consistente e capaz de responder adequadamente às demandas largamente
expressas (WERNECK, 2016, p. 539).
Faz-se necessária a discussão sobre os direitos reprodutivos da mulher negra na agenda da
luta antirracista e o reconhecimento das diferenças étnicas e raciais nessa pauta de discussão, e
destacam-se as lutas travadas pela inclusão no campo da saúde do quesito cor nos sistemas de
classificação da população brasileira59. Ademais, se mulheres negras são invisibilizadas em
relação à sua saúde no contexto de liberdade, problematiza-se a urgência de se discutir a questão
da saúde da mulher negra no espaço prisional.
Ainda a partir do estado do conhecimento em interseccionalidade se problematizou a
situação atual da mulher negra em relação aos meios artísticos. Conforme será discutido no

59
No campo da saúde, outro ponto de pauta se refere à esterilização e também à anemia falciforme, que como dito
anteriormente é hereditária e também a doença genética mais comum da população negra no Brasil.
126

capítulo 4, existe um estereótipo, uma propaganda em torno da mulher negra que faz com que ela
seja alvo de perseguição – o que leva ao encarceramento.
As pesquisas apresentadas levam à reflexão do apresentado por Carneiro (2003) sobre a
naturalização do racismo e sexismo na mídia que ainda repassa e também constrói representações
sociais negativas da população negra:

[...] são ainda grandes os desafios na área dos meios de comunicação e da


imagem em prol da construção de um novo imaginário da mulher negra
nesse espaço, e, por extensão, nas instâncias de decisão política e na
sociedade (CARNEIRO, 2003, p. 9).
Por fim, é válido destacar que o conceito interseccionalidade vem tomando centralidade
nos debates feministas, mas que se trata de conceitos com diferentes significações de acordo o
referencial teórico que dele se utiliza (PISCITELLI, 2008). Percebeu-se que as pesquisas utilizam
diferentes referenciais teóricos, mas que a perspectiva mais adotada é a formulada por Kimberlé
Crenshaw, o que mostra a centralidade desta autora para o conceito.
127

4. INTERSECCIONALIDADE E O ENCARCERAMENTO DE MULHERES NEGRAS

Configura-se como panorama mundial a presença de mais de 700 mil mulheres presas em
estabelecimentos penais. No Brasil, a população absoluta de mulheres encarceradas cresceu
567% entre os anos 2000 e 2014, chegando ao patamar de 37.380 mulheres nesta situação
(INFOPEN, 2016). Segundo dados do World Female Imprisonment List, em 80% dos países do
mundo as mulheres representam entre 2% e 9% da população prisional total; na realidade
brasileira as mulheres compõem 6,4% do total, situando o país dentro da margem projetada pelo
instituto. Contudo, o ritmo de crescimento da população prisional total no Brasil é acelerado e
contrapõe as tendências mais recentes dos países que historicamente investiram em políticas de
encarceramento em massa.
Apesar do crescimento acelerado, reflexões sobre o encarceramento feminino ainda não
são tão presentes nas pautas e discussões do movimento feminista, pois:
[...] o feminismo da mulher universal, apesar de seus contributos antipatriarcais,
tornou-se incapaz de verificar o quanto as instituições prisionais, por exemplo,
se valeriam desta legitimidade de mão única, genérica, para discriminar certas
mulheres, dando-lhes exatamente um tratamento universalista, desconsiderando
particularidades femininas no tocante a saúde, a educação, trabalho e acesso à
justiça a partir do elemento racial. A ponto de, no aspecto jurídico, sofrer
contundentes críticas da criminologia feminista frente à ideia da distribuição
equânime do sistema de justiça, onde teoricamente as mulheres são
criminalizadas de forma linear quando cometem infrações e supostamente
propensas a igualdade de tratamento corretivo dado pelas prisões (SANTOS,
2014, p. 19).
A atuação do androcentrismo tende a desconsiderar os relatos de mulheres nas prisões, e
ainda que hoje os esforços feministas permitam voz e registro escrito referente aos estupros e às
torturas presentes nos contextos de aprisionamentos, “insistem as teóricas do Feminismo Negro
no fato de as razões de classe fazerem com que o segmento de mulheres negras seja mais
invisibilizado, a constar, que pouco é mencionada a história de resistência e tortura no cárcere”
(SANTOS, 2010, p. 36). Embora haja um aumento em estudos que “des-masculinizam” o
universo prisional, ainda existem lacunas em relação à especificidade da mulher negra (ALVES,
2014).
Todavia, à medida do aumento de empenho da ciência feminista em conhecer e
informar a situação das mulheres que vivem atrás das grades, torna-se possível
identificar as opressões, as explorações e resistências das infratoras dos valores
paternalistas do Estado. Sabemos da quase inexistência de registros de mulheres
negras prisioneiras, por isso, sem dúvida, a vontade intelectual de se pensar
gênero e raça, ambas entrelaçadas, nos fornece uma compreensão dos “silêncios
128

gritantes” da história das mulheres presas, constituindo, desta forma, um


caminho indicador das lutas, disputas e (re) existência das encarceradas
(SANTOS, 2010, p. 37).
Desta forma, estudiosas e ativistas do feminismo não devem considerar de forma
marginalizada a estrutura da punição estatal – há a necessidade de se reconhecer que o caráter
profundamente baseado em gênero da punição reflete e aprofunda ainda mais a estrutura de raça
da sociedade em geral. Analisando os discursos de criminalidade e instituições de controle,
percebe-se que a distinção de gênero assumiu e continuou a estruturar as políticas penais e que,
ao ser acrescida dos impactos de classe e da raça, materializa-se nos corpos negros de mulheres
encarceradas massivamente.
Não é válida a justificativa de falta de estudos sobre o encarceramento de mulheres com
base no baixo número que estas ocupam em relação ao encarceramento masculino. O fato destas
mulheres ocuparem um espaço de marginalidade traz a necessidade de maior atenção e não o
contrário.
A mesma realidade que Davis (2013) apresenta sobre o rápido crescimento da população
carcerária feminina nos EUA é também uma realidade no Brasil. Essa expansão contemporânea
das prisões é um chamado a examinar alguns dos aspectos históricos e ideológicos da punição
estatal impostas às mulheres (DAVIS, 2013).
Há então a necessidade de se pensar sobre a (re)construção de um mundo para além do
encarceramento em massa. Neste sentido, além de se pensar questões específicas das prisões para
mulheres é primordial que se modifique toda a compreensão sobre o sistema prisional.

Certamente, as práticas da prisão feminina, assim como as de prisão


masculina, são de gênero. Supor que as instituições masculinas constituem
a norma e as instituições femininas são marginais é, em certo sentido,
participar da própria normalização das prisões, o que uma abordagem
abolicionista procura contestar (DAVIS, 2013, p. 161 – traduzido pela
autora).
Houve, nos capítulos anteriores, dedicação na compreensão do conceito de
interseccionalidade a partir de sua formulação e aplicabilidade em diferentes contextos. Nesta
etapa busca-se responder à segunda questão de pesquisa proposta: “quais as contribuições da
perspectiva interseccional para os estudos sobre o encarceramento de mulheres negras? ”.
O levantamento bibliográfico do conceito de interseccionalidade apresentado neste estudo
evidencia seu pouco uso na análise e discussão sobre encarceramento de mulheres negras.
129

Denuncia-se, portanto, a existência de uma lacuna teórica que reflete na ausência de políticas
públicas para este grupo específico.
A construção do capítulo se apresenta da seguinte forma: inicialmente propõe-se uma
breve contextualização do panorama histórico com reflexões acerca da criação do sistema
criminal brasileiro como forma de garantir o controle social da população negra, gerando a
manutenção de um esquema baseado em hierarquias raciais. O objetivo é a problematização das
ideologias forjadas que inibem reflexões do porquê de tantas pessoas serem “direcionadas” para a
prisão, ainda que não haja um debate efetivo sobre a eficácia do encarceramento. Em um segundo
momento, a discussão se concentra na especificidade do encarceramento feminino, partindo da
análise documental dos indicadores raciais do sistema prisional feminino para que, por fim, a
partir das pesquisas do levantamento do capítulo anterior e também de pesquisadoras da temática
seja possível ampliar análises sobre a interseccionalidade de gênero e raça no espaço prisional
feminino.

4.1 Processos históricos da punição no Brasil

Dados divulgados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias60


(INFOPEN 2016), referentes à situação de dezembro de 2014, revelam que o sistema carcerário
do Brasil, mesmo comportando 365 mil vagas, se encontra com um total de 615 mil pessoas em
estado de encarceramento – destaque para o fato de que pelo menos 250 mil suspeitos estão
presos sem ao menos passarem por julgamento.
As reflexões devem partir do processo de concentração estatal do poder punitivo na
sociedade brasileira. Há de se discutir os conceitos genuínos dos discursos que naturalizam a
pena privativa de liberdade, ou seja, para que não se limite os estudos da punição à equação crime
e castigo é necessário compreender as estratégias de dominação que estruturaram os sistemas
punitivos nos processos históricos no Brasil. “Esta população prisional não é multicultural e tem,
sistematicamente, seus direitos violados. A prisão, como conhecemos hoje, surge como espaço de
correção. Mas mais distorce do que corrigi. Na verdade, poderíamos nos perguntar: alguma vez já
corrigiu? E se corrigiu para o quê?” (BORGES, 2018, p. 14).

60
INFOPEN é um programa de coleta de dados do Sistema Penitenciário no Brasil, alimentado pelos órgãos de
administração penitenciária voltado para a criação de banco de dados federal e estaduais sobre estabelecimentos
penais e populações penitenciárias.
130

Historicamente, as práticas de punição no Brasil evidenciam que o sistema criminal não é


somente perpassado pelo racismo; sua criação se dá nos países colonizados como forma de
garantir o controle social da população negra, o que acarreta na manutenção de um esquema
baseado em hierarquias raciais. Compreendendo que “o debate sobre Justiça Criminal no Brasil
não pode jamais ser prescindo da questão racial como elemento pilar, inclusiva para a instalação
desta instituição no país” (BORGES, 2018, p. 54), a inserção das opressões de gênero e da
interseccionalidade é “fundamental tanto para pensar em um novo projeto estratégico quanto para
pensar medidas emergenciais seja pensando em mulheres em situação prisional, seja em mulheres
que acabam passando pelo cárcere indiretamente pela relação com seus familiares” (idem, 2018,
p. 15).
Desde a época da colonização as leis que eram determinadas pelo império já
diferenciavam a relação dos escravizados e proprietários. “O trabalho era uma atividade
disciplinadora e civilizatória aos ‘selvagens’. Os castigos e as punições eram práticas
incentivadas para evitar desobediência. As punições públicas buscavam, pelo medo, marcar e
construir exemplos pelo corpo marcado, garantir e construir autoridade” (BORGES, 2018, p. 56).
Neste período, escravizados eram tratados como objetos e as penalizações eram feitas na
esfera privada. “No caso do Brasil colonial as prisões, em um primeiro momento, não foram as
únicas alternativas. Os locais eram improvisados e, na maioria das vezes, utilizado para os que
aguardavam julgamento. Não havia, ainda, um conjunto unitário, como instituição prisional”
(BORGES, 2018, p. 34). Válido destacar que “no Brasil, o poder despótico dos senhores de
escravos inaugurou uma espécie de Estado de exceção no qual a lei aparece, para os negros
sempre como punição, nunca como garantia de direitos” (ALVES, 2014, p. 27).
Durante o Brasil Império ocorre a aprovação do Código Criminal do Império Brasileiro,
em 16 de dezembro de 1830, legitimando a criação de um Sistema Penal em pleno cenário de
escravização. Neste período:
[...] manteve-se o tratamento diferenciado nas penas entre livres e escravizados.
Estes últimos, majoritariamente, recebiam punições físicas e eram devolvidos
aos seus senhores. Sendo vistos como propriedades, uma ação em relação a um
escravo pelo Judiciário era entendida como uma intervenção do Estado sobre
uma propriedade privada (BORGES, 2018, p. 66).
Em alguns casos, quando algum escravizado era pego por infrações, pedia-se pela
liberação dos mesmos, para que os próprios proprietários aplicassem a pena no âmbito privado.
Este é um elemento importante para compreensão de que o sistema prisional brasileiro, ainda no
131

seu bojo, se estabelece aplicando punições diferentes para negros e brancos, ou mesmo para
negros escravizados e negros libertados.
A Constituição de 1824 não contemplava os escravizados ao abolir as penas corporais,
“pois com a substituição do Livro V das Ordenações Filipinas pelo Código Criminal do Império
do Brasil, promulgado em 1830, os castigos corporais continuaram vigorando para eles”
(TRINDADE, 2011, p. 171). É apenas em 1841, com uma reforma no Código Criminal, que há
diminuição da participação civil no ambiente jurídico, o que institui uma estrutura policial
centrada ao executivo (BORGES, 2018). Neste período é válido destacar que:
Diante deste mundo efervescente e de crescente revoltas e táticas diante da
contradição do império que se pretendia liberal mantendo a instituição
escravista, acirram-se as noras e regulamentos de vigilância sobre a população
escravizada que se apresenta em contingente muito maior em relação à
população livre e branca (BORGES, 2018, p. 68).
Evidencia-se de que houve uma restruturação da sociedade brasileira imperial de modo a
preparar um aparelho estatal perpetuador das desigualdades, tendo como pilar a racialização.
Neste sentido, se problematiza a modernização do Estado brasileiro muito mais como discurso do
que uma realidade, já que traz como base a exclusão de pessoas que não eram consideradas como
os outros cidadãos, e sim como propriedades.
Com isso não é absurdo afirmar que sequer um status liberal o Brasil conseguiu
estabelecer na formação de seu Estado. Ao falarmos de uma perene mentalidade
de escravocrata em nossa sociedade, estamos falando destes elementos, destes
“mitos fundantes” que se remodelam e reconfiguram para manter a estrutura de
Casa Grande e Senzala operando. As “crises” dos sistemas prisionais e criminal
sequer poderiam ser denominadas como tal, porque se tratam na verdade, de
uma engrenagem funcionando a todo vapor pela manutenção de hierarquias
sociais constituídas e indissociadas do elemento racial (BORGES, 2018, p. 70).
No período do Brasil republicano ocorre uma série de reformas nas leis criminais e o
sistema de justiça começa a se estabelecer como instituição com leis que garantem a
criminalização desta população, que agora passa a ser “liberta”.
Com o crescimento das cidades, diversas são as ações tomadas no período
objetivando o aumento da vigilância sobre os negros e pobres livres. A polícia
ganha outros contornos e a vadiagem, embasada e definida por valores morais e
raciais de que “as classes menos favorecidas” eram preguiçosas, corruptas e
imorais, alimentavam o cenário que se entenderia como “crime” e da
criminalização do sujeito que seria criminalizado, o “criminoso” (idem, 2018, p.
76).
Após a Proclamação da República, o modelo penal progressivo foi o escolhido como base
para o Código Penal de 1890. Há então um rompimento com o que restava das penas corporais e
132

uma promoção da ruptura formal do direito penal com o período escravista e a instituição da
isonomia na aplicação da legislação penal. Esse Código Criminal, elaborado às pressas na
passagem de um regime a outro, foi duramente criticado e sofreu modificações com a criação de
várias leis esparsas que foram consolidadas através do Decreto nº 22.213, de 14 de dezembro de
1932, na denominada Consolidação das Leis Penais de Piragibe61, que vigorariam até 1940.
É válido destacar, conforme aponta Borges (2018), que a partir de 1930 o mito da
democracia racial se sedimenta e a miscigenação é tida como característica e símbolo nacional.
Deste modo, a legislação sobre o negro, que é limpa no Código de 1940, já não mais ocorre nas
práticas das instituições do Estado brasileiro, já impregnadas nas décadas anteriores.
Portanto, é uma engrenagem de repressão que segue em forte atuação. Ao passar
das décadas, esta criminalização vai se modificando e avançando sobre outras
características, inclusive sob o verniz de uma criminalização da pobreza em um
esforço de limpar o elemento racial como sustentação do sistema de
desigualdades brasileiro (BORGES, 2018, p. 80).
O Código Penal brasileiro atual é o que entrou em vigor no ano de 194062, mas a partir
dos anos 90 houve “uma série de medidas e edificações de leis elevando penas, dissertando
crimes hediondos, dificultando progressão de penas e assim por diante. E esta criminalização vem
conduzida por um forte cenário de cárcere e extermínio” (idem, 2018, p. 81).
Os dados sobre o crescimento carcerário a partir da década de 90 revelam como o controle
social brasileiro foi se moldando, reforçando seu caráter autoritário e seletivo. Em 1990 havia no
Brasil 90 mil presos; em 2015 esse número saltou para 615.933, sendo que deste, 39% estão em
situação provisória. Para entender este aumento assustador é preciso também analisar a Lei nº
11.343, de 23 de agosto de 2006, a Nova Lei de Drogas, que prescreve medidas para prevenção
do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelecendo
normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito, definindo as tipologias
penais que enquadram as condutas nela descritas.

61
Foi o desembargador Vicente Piragibe quem sistematizou as leis esparsas em um corpo de dispositivos que passou
a ser chamados de Consolidação das Leis Penais.
62
O direito penal brasileiro fundamenta-se sobre três conjuntos de leis: o Código Penal (CP), escrito em 1940, que
descreve o que é crime e determina a pena para cada infração; o Código de Processo Penal (CPP), do ano seguinte,
que tem por objetivo determinar os passos que a justiça deve respeitar diante da ocorrência de um crime, da
investigação policial ao julgamento; e a Lei de Execução Penal (LEP) (Lei 7.210, de 11/07/1984), criada a partir de
um tratado da ONU sobre execução penal no mundo, definidora das condições em que o sentenciado cumpre pena
(JULIÃO, 2012, p. 105).
133

Com essa lei a população carcerária masculina tem um aumento de 220%, e a feminina
um crescimento ainda mais assustador, com índices maiores que 500%. Para entender as
modificações realizadas nos anos de 1990, é necessário estabelecer um paralelo entre as
realidades brasileiras e norte-americanas, pois:
Como se vê, as experiências de adoção de políticas de segurança pública cada
vez mais segregativas não é privilégio somente dos Estados Unidos, mas
também são adotadas no Brasil, portanto, é imprescindível fazer,
comparativamente, as análises do contexto social e econômico dos dois países
em função de que, no mesmo período, ambos os países implementaram políticas
de segurança pública muito semelhantes, no sentido de, não só privatizar as
penitenciárias, mas também, quando fosse o caso, permitir e incentivar a
construção de estabelecimentos penais, sob o argumento da melhoria da
segurança pública (GRAZIANO SOBRINHO, 2014, p. 137)
Ao declarar as drogas como inimigo público número um, em 1972, o então presidente dos
EUA, Richard Nixon, fundamenta um movimento proibicionista marcado pelo discurso moral
que tem como objetivo o controle das minorias étnicas residentes no país – o controle social é
mascarado sob a justificativa de combate ao tráfico.
Michelle Alexander63 na obra “The new Crow Jim”, oferece um panorama detalhado do
fenômeno crítico do encarceramento em massa de afro-americanos nos EUA, no contexto do que
se intitula “guerra às drogas”. A autora se debruça sobre a relação do sistema de justiça criminal e
a preservação da hierarquia racial, evidenciando que o sistema de justiça criminal foi construído
de forma a tornar as pessoas negras em cidadãos de segunda classe, da mesma maneira como as
leis de Jim Crow, que institucionalizaram a segregação racial, fizeram no século XIX e início do
século XX. Desta forma, a denúncia é que mesmo com o fim da segregação racial dos EUA nos
anos 60, o sistema se reformulou para manter o efeito da segregação, que é a estratificação social
a partir da clivagem de raça.
Essas duras disparidades raciais não podem ser explicadas pelas taxas de crimes
de drogas. Estudos mostram que pessoas de todas as cores usam e vendem
drogas ilegais a taxas notavelmente semelhantes. Se houver diferenças
significativas nas pesquisas a serem encontradas, elas frequentemente sugerem
que brancos, particularmente jovens brancos, são mais propensos a se envolver
em crimes de drogas do que pessoas negras. Isso não é o que se pode imaginar,
no entanto, ao entrar nas prisões e prisões de nossa nação, que por conta da
legislação antidrogas estão transbordando de criminosos pardos e negros. Em
alguns estados, os homens negros foram admitidos na prisão sob a acusação de
drogas vinte a cinquenta vezes mais do que os homens brancos. E nas grandes

63
Michelle Alexander é uma advogada estadunidense associada ao movimento de direitos civis de afro-americanos e
professora das universidades de Stanford e Ohio.
134

cidades destruídas pelo combate às drogas, 80% dos jovens afro-americanos


agora têm registros criminais e, portanto, estão sujeitos à discriminação
legalizada para o resto de suas vidas (ALEXANDER, 2010, p. 7 - traduzido pela
autora).
A citação em destaque é sobre o contexto estadunidense e não soa nada estranho ao se
transpor para a realidade carcerária do Brasil, onde a população negra é uma das maiores vítimas
não apenas da violência policial e o extermínio, mas também do encarceramento em massa tendo
como veículo fundamental a guerra às drogas. Dados do Infopen (2016) revelam que os crimes
relacionados ao tráfico de drogas são os que mais levam as pessoas às prisões, com 28% da
população carcerária total64. Em relação ao perfil racial, 64% da população prisional é composta
por pessoas negras e na população brasileira acima de 18 anos, em 2015, a parcela negra
representa 53%, indicando a sobrerrepresentação deste grupo populacional no sistema prisional.
A guerra contra as drogas foi adotada por diferentes países, e com isso vendedores de
plantas e compostos químicos passaram a ser tratados como terroristas em ameaça à segurança e
à saúde pública. Além disso, foram também enquadrados seus portadores e consumidores, o que
gerou um aumento exponencial na lotação dos espaços prisionais.
Este breve panorama evidencia o “para quê” e “para quem” das prisões brasileiras, e fica
nítido que o desenho do encarceramento se dá em traços racistas, que usa mecanismos
ideológicos e se apresenta com suaves contornos, mascarando profundas distorções: levam à
crença de que encarceramento é garantia de segurança social, se ocultando seu caráter genocida
em relação à população negra.

4.2 Análise documental de indicadores raciais do sistema prisional feminino brasileiro

Para trazer esta discussão para o contexto feminino, a primeira preocupação foi em
mapear os indicadores raciais do encarceramento de mulheres. Partindo do pressuposto de que a
transformação de uma determinada realidade social não se concebe a partir do desconhecido, se
faz necessário um diagnóstico claro e preciso sobre suas condições.
O que se defende nesta pesquisa é a premência de que as bases sobre a realidade
carcerária feminina se mantenham atualizadas e disponíveis para acesso público, e mais do que
isso, que se dê a devida importância na coleta do perfil racial dos sujeitos que ali se situam para

64
Somados, roubos e furtos chegam a 37%. Homicídios representam 11% dos crimes que causaram a prisão
(INFOPEN, 2016).
135

que observações possam ser desenvolvidas com dados reais, precisos e construtivos para análises
críticas deste sistema – somente assim é possível revelar e trilhar caminhos para a reversão do
racismo institucional que aprisiona um grupo específico de mulheres.
Desta forma, a presente etapa do estudo se dedica ao levantamento e análise documental
dos indicadores prisionais femininos a partir de 2007 (primeiro registro identificado), até o mais
recente, de 2014.
A análise documental permite identificar, em documentos primários, informações que
sirvam de subsídio para responder alguma questão de pesquisa. De acordo com Lüdke e André
(1986), por representarem uma fonte natural de informação, estes documentos “não são apenas
uma fonte de informação contextualizada, mas surgem em um determinado contexto e fornecem
informações sobre esse mesmo contexto” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39). A opção por
ferramenta metodológica parte da compreensão de que a linguagem utilizada nos documentos
indicadores do encarceramento feminino no Brasil constitui-se como elemento fundamental para
a investigação da interseccionalidade nestes espaços. Neste estudo compreende-se que o uso de
levantamentos de dados, estatísticas e indicadores permitem a valorização do conhecimento
científico de forma a garantir à pesquisa maior transparência e neutralidade, deslocando a
produção de uma perspectiva subjetiva para a cientificidade.
Para a análise destes documentos foram considerados seus processos de construções, a
partir do contexto evidenciado e sua objetividade/clareza na indicação do perfil étnico-racial, bem
como seus textos de análise e a presença/ausência de debates interseccionais, que considerem as
opressões de gênero e raça. Compreende-se que a inserção destes documentos em um contexto
sócio histórico resulta, assim como qualquer documento, em um conteúdo passível de análise.
Inicialmente é válido destacar que o descaso por parte do Estado na implantação de
políticas públicas voltadas para os estabelecimentos prisionais específicos, como os femininos, se
reflete na insuficiência de dados sobre estes espaços. Em 2004 foi criado o Sistema de
Informações Penitenciárias (Infopen) como um sistema de informações estatísticas do sistema
penitenciário brasileiro, atualizado pelos gestores dos estabelecimentos penais, que sintetiza
informações sobre as unidades e a população prisional. Antes da existência do programa os dados
disponíveis a respeito da realidade prisional do país eram escassos, com pouca periodicidade e,
frequentemente, não abrangiam todo o universo em questão. Com sua criação, esse quadro sofreu
sensível mudança a partir da produção de relatórios que começaram a desvelar a realidade
136

existente no universo intramuros, ainda que muitas e importantes questões ainda permaneçam
invisíveis aos olhos da sociedade65.
Os responsáveis pelo Sistema alertam que nos dez anos de sua existência, o Infopen se
estabeleceu enquanto dispositivo fundamental para a análise de informações do sistema
penitenciário brasileiro, permitindo compreensões sobre o impacto e a eficácia das políticas
públicas desenvolvidas na área.
Analisando as entidades e organizações responsáveis pela produção dos documentos
percebe-se algumas rupturas em relação à preocupação com os dados do sistema prisional
feminino – mesmo sendo criado em 2004, é apenas dez anos depois que o Infopen se dedica à
coleta e publicação de dados mais sólidos e profícuos sobre a realidade de mulheres encarceradas.
Vale salientar os percalços na busca destes dados e as dificuldades no acesso ao site do
Sistema de Informação Penitenciária, que se encontrava em muitos momentos fora do ar.
Os relatórios analisados foram: Grupo de Trabalho Interministerial: Reorganização e
Reformulação do Sistema Prisional Feminino (2007), Mulheres Presas – Dados Gerais: Projeto
Mulheres/DEPEN (2011), Mulheres encarceradas – Consolidação dos dados fornecidos pelas
unidades da federação (2008), Mulheres Presas – Dados Gerais: Projeto Mulheres/DEPEN
(2011), e o mais recente, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, de junho de
2014, publicado em 201666. Estes documentos não foram produzidos pelo Infopen, mas se
valeram dele numa revisão de seus dados de modo a contemplar primordialmente o recorte de
gênero. A busca no presente estudo é analisar a potencialidade destes documentos numa revisão
que também aborde os marcadores de raça.
A seguir é apresentada a tabela 3 para melhor elucidação destes relatórios de dados
prisionais femininos, a partir de suas datas de publicação:

65
Informações a partir do Infopen (2014).
66
Encontraram-se documentos levantados pela Pastoral Carcerária que não estavam disponíveis nos sistemas centrais
de divulgação da realidade prisional feminina, mas que pela sua dedicação em questões importantes são apresentados
nesta pesquisa.
137

Tabela 3 - Documentos Indicadores Sistema Prisional Feminino

Documentos com Indicadores sobre o Sistema Prisional Feminino


Nome Ano
Grupo de Trabalho Interministerial: Reorganização e Reformulação do Sistema 2007
Prisional Feminino
Mulheres encarceradas – Consolidação dos dados fornecidos pelas unidades da 2008
federação
Mulheres Presas – Dados Gerais: Projeto Mulheres/DEPEN 2011
Levantamento Nacional de informações penitenciárias (Infopen Mulheres) 2014

Fonte: Elaborada pela autora (2017)

O primeiro documento encontrado, intitulado “Reorganização e Reformulação do Sistema


Prisional Feminino”, é datado de 2007 e foi produzido pelo Grupo de Trabalho Interministerial67.
Inicialmente é necessário salientar que o próprio documento anuncia na sua introdução a
falta quase absoluta de dados nacionais oficiais sobre o encarceramento feminino. Tal situação
dificulta a definição de um perfil nacional. No documento há a denúncia de que o Infopen:
[...] além de não ser alimentado constantemente pelos estados, não interage com
o Sistema de Informação das Secretarias Nacional e Estadual de Segurança
Pública, impossibilitando agregar os dados das mulheres que estão presas nas
cadeias públicas. Por outro lado, é necessário que o sistema de informação do
Departamento Penitenciário agregue outras categorias necessárias para melhor
conhecer a população carcerária e, em especial, a de mulheres. Assim sendo,
faz-se necessário o aperfeiçoamento da base de dados existente para viabilizar
um diagnóstico fundamentado do sistema prisional a partir da construção de
indicadores que subsidiem a construção de políticas públicas específicas e

67
Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado por Decreto Presidencial s/nº, de 25 de maio de 2007, com a
finalidade de “elaborar propostas para a reorganização e reformulação do Sistema Prisional Feminino” e foi
composto pelos seguintes órgãos do Governo Federal: Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da Presidência
da República; Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça; Secretaria Especial de Promoção da
Igualdade Racial; Secretaria Especial dos Direitos Humanos, ambos da Presidência da República; Ministério do
Trabalho e Emprego; Ministério da Saúde; Ministério da Educação; Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome; Ministério da Cultura; Ministério dos Esportes; Secretaria Nacional Antidrogas do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República; e Secretaria Nacional da Juventude da Secretaria-Geral da
Presidência da República, cujos membros foram designados pela Portaria da SPM/PR nº 24 de 14 de junho de 2007.
A coordenação do Grupo de Trabalho Interministerial, nos termos do 2º parágrafo, do artigo 2º do referido Decreto
Presidencial1, após o início dos trabalhos do Grupo, convidou representantes da Sociedade Civil para fazerem parte
do mesmo. As entidades, ao aceitarem o convite, indicaram: Heidi Ann Cerneka - da Pastoral Carcerária Nacional - e
sua suplente Michael Mary Nolan, do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC); Kenarik Boujikian Felippe, da
Associação Juízes pela Democracia (AJD), e sua suplente Luciana Zaffalon Leme Cardoso, do Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD).
138

possibilitem melhor avaliar os programas e ações implementadas


(SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES DA
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2007).
Válido destaque para esta preocupação de que a base de dados do Infopen deveria agregar
informações que contemplem as áreas jurídicas, saúde, educação e trabalho, bem como os
recortes de gênero, raça/cor, etnia, faixa etária, orientação sexual, número de filhos e grau de
instrução (escolaridade), além de outros.
Neste sentido, “não há que se perder de vista que a base de dados produzida deve ser
disponibilizada para acesso público, bem como o resultado de pesquisas e estudos oficiais68”
(SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES DA PRESIDÊNCIA DA
REPÚBLICA, 2007).
Propõe-se, para melhor estruturar a base de dados do INFOPEN, que cada
Ministério construa um rol de indicadores - que contribuam na estruturação de
políticas e projetos direcionados às mulheres em situação de prisão - para que
questões sobre o tema sejam incluídas nos instrumentos de coletas de dados
utilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional, pela Polícia Federal e
pelas Secretarias Estaduais responsáveis pelo encarceramento. Com a
estruturação de uma base de dados completa e segura será possível entender
como se dá à relação dessas mulheres com a criminalidade e propiciará
elementos para melhor enfrentar essa problemática de forma eficaz. No que se
refere às informações que devem ser prestadas pelos estados, também é preciso
criar condições para o desenvolvimento e manutenção de bancos de dados
informatizados e atualizados regularmente (SECRETARIA ESPECIAL DE
POLÍTICAS PARA AS MULHERES DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA,
2007).
Há neste documento a elaboração de um quadro de apontamentos e propostas divididos
por eixos temáticos, apresentado na tabela 4:

68
Retirado do item 1.1 Sistema de Informação/Banco de Dados, p. 30, do documento Reorganização e Reformulação
do Sistema Prisional Feminino, 2007.
139

Tabela 4 - Quadro de apontamentos e propostas por eixo temático

Fonte: Secretaria especial de políticas para as mulheres da Presidência da República, 2007

O destaque para esta tabela é porque além de apresentar a problemática, os envolvidos se


preocuparam com a proposta de melhoria e designaram órgãos responsáveis pelas ações. A
questão que se coloca é do envolvimento de cada um destes setores, no que se refere ao
fornecimento de dados de maior qualidade e especificidade sobre raça, classe social e suas
intersecções com gênero – denuncia-se a falta de base de dados e de pesquisas realizadas sobre o
sistema prisional feminino.
Além disto, destaca-se que os responsáveis pelo documento indicam atribuição à
proposta de fomentar e disponibilizar os conteúdos no sitio do Departamento Penitenciário
(DEPEN) às Universidades participantes, juntamente com as Secretarias responsáveis pelo
Sistema Carcerário (definitivo e provisório) e os Institutos de Pesquisas (ONGs), por
responsabilidade do Ministério da Justiça.
Nesta proposta, percebe-se também que a partir da inexistência de base de dados
específicos que viabilize a estruturação de programas e uma análise aprofundada da questão de
gênero e raça no sistema prisional, atribui-se como função a todos os Ministérios que integram os
Grupos Interministeriais e Secretarias responsáveis pelo Sistema Carcerário a construção de
diagnóstico com maior amplitude e especificidade.
140

Aponta-se como fio condutor do trabalho a criação e a institucionalização do recorte de


gênero, que deverá ser transversalmente observado nos processos de construção, implementação
e avaliação de políticas públicas direcionadas para o sistema prisional.
Os objetivos listados são:
a) instituir programas voltados à educação, saúde, capacitação para o trabalho e
acompanhamento jurídico para as mulheres encarceradas e seus familiares; b)
elaborar critérios visando nortear a elaboração do Decreto de Indulto Natalino de
maneira a contemplar as mulheres encarceradas; c) propor percentual do Fundo
Penitenciário Nacional a ser destinado aos presídios femininos e acompanhar sua
aplicação; d) elaborar regramento mínimo para ser incorporado nos Regimentos
Internos dos Presídios Femininos; de modo a propiciar condições de tratamento
digno às mulheres encarceradas; e) estabelecer regramento único para a estada,
permanência e posterior encaminhamento das/os filhas/os das mulheres
encarceradas na prisão; f) Revisar o Sistema de Informações Penitenciárias –
INFOPEN - de maneira que contemple os recortes de gênero, raça, etnia, entre
outros; g) propor instalações físicas adequadas nos presídios femininos; h) rever
as infrações penais.
Dentre os objetivos, é válida atenção ao “item f”, que traz a necessidade de revisão das
formas de coleta de dados sobre o sistema penitenciário feminino, de modo que contemple os
recortes de gênero, raça e etnia, entre outros.
O perfil da mulher encarcerada neste relatório, sobre o panorama de 2007, evidencia que
elas são jovens e a maioria (54%) se declara negra ou parda (afrodescendentes) – indicando que
há uma sobrerrepresentação das mulheres afrodescendentes encarceradas no Brasil, uma vez que
a porcentagem de negras e pardas na sociedade brasileira em geral, no período, era de 42%.
Há uma breve discussão na introdução que anuncia sem aprofundamentos o preconceito
racial dentro do Sistema Penal:
Hoje, bastaria apenas que os Estados cumprissem o que determina a Lei de
Execução Penal para conseguirmos provocar muitas mudanças. Ocorre, no
entanto, que apesar de caber aos Estados a responsabilidade de administrar o
sistema e de fazer cumprir a Lei de Execução Penal, o que se vê são
administrações ineficientes, processos judiciais lentos, o desrespeito à Lei de
Execução Penal, o preconceito social, de gênero, raça, orientação sexual e uma
falta de capacidade para promover a reabilitação destas pessoas (SECRETARIA
ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES DA PRESIDÊNCIA DA
REPÚBLICA, 2007, p. 58).
Válido salientar que ao apresentar as práticas de Tortura e Maus Tratos, como violência
institucional, realizada por agentes do Estado contra as mulheres encarceradas é freqüentemente
relatada por organizações da sociedade civil, propõe-se dentro do “Plano de Ações Integradas
141

para a Prevenção e o Combate à Tortura no Brasil” a imediata inclusão da questão da tortura no


cárcere, dentro da perspectiva de gênero e raça (BRASIL, 2007).
Há também presença da temática racial, ainda que de forma sucinta, nas análises sobre
educação que pode ser evidenciada ao discorrer que o que se pretende como planejamento
educacional deve englobar “as Escolas Penitenciárias Estaduais como espaços de qualificação
dos servidores para atuar em unidades femininas, com formação em direitos humanos e na
questão de gênero e raça” (idem, 2007, p. 20).
É possível notar que ainda com as dificuldades encontradas nas bases de dados do
Infopen, este documento com recorte de gênero produzido em 2007 é bastante sensível e pro
No ano seguinte, em 2008, há a publicação do documento “Mulheres encarceradas –
Consolidação dos dados fornecidos pelas unidades da federação”. Na justificativa para
elaboração deste documento, o Departamento Penitenciário Nacional salienta o crescente
incremento das taxas de encarceramento feminino, o que traz a necessidade de se aprofundar os
dados existentes sobre o gênero feminino para que se apure, com minúcias, suas particularidades
e, frente à real situação atual, desenvolva políticas públicas a serem implementadas junto aos
Estados Membros da Federação.
A Constituição Federal e a Lei de Execuções Penais insculpem direitos e
garantias assecuratórias de respeito, de dignidade humana e de isonomia de
tratamento às mulheres, pauta ideal norteadora dos Órgãos de Execução Penal.
Há que se detectar as falhas existentes neste nicho do sistema penitenciário.
Imprescindível, portanto, o conhecimento absoluto de todas as resultantes do
contexto feminino hodierno, a embasar a reflexão sobre o tema, tratado até
então, de forma ínsita e silenciosa, visando à adoção de medidas concretas, para
senão solucionar, pelo menos contribuir de forma substancial para a melhoria da
realidade atual (BRASIL, 2008, p. 7).
O relatório se constrói a partir de questionários sobre a situação da mulher presa nos
estabelecimentos penais exclusivamente feminino ou não, solicitados para todos os órgãos
responsáveis pela administração penitenciária, nas 27 Unidades da Federação. Há neste
documento o seguinte gráfico sobre o perfil racial (gráfico 7):
142

Gráfico 7 - Presas por Etnia

Fonte: DEPEN (2008)

As lacunas neste documento podem ser verificadas na falta de dados estaduais; o único
gráfico que apresenta o perfil racial traz dados nacionais e não apresenta nenhuma discussão
sobre como foi coletado, ou uma análise sobre o significado de se ter um percentual de 60% de
mulheres negras e pardas.
No ano de 2011 o relatório “Mulheres Presas” apresenta os dados gerais do
encarceramento feminino a partir do Projeto Mulheres/DEPEN. Por meio da Diretoria de
Políticas Penitenciárias, o documento é apresentado como parte do Projeto Efetivação dos
Direitos das Mulheres no Sistema Penal, voltado para o atendimento às necessidades da
população carcerária feminina, por meio da estruturação de políticas e ações voltadas a esse
público. Há novamente uma discussão por parte do DEPEN que surge da preocupação com a
crescente taxa de encarceramento feminino.
Parece haver uma preocupação maior do documento nos dados sobre o perfil racial da
população carcerária, já que o mesmo traz o panorama nacional e também o de cada estado da
federação, conforme pode ser visto no gráfico 8.
143

Gráfico 8 - Perfil Racial Nacional

Fonte: DEPEN (2011)

A partir dos dados foi elaborada a tabela 5 com o perfil racial das mulheres por estado da
federação.
Tabela 5 - Perfil racial das mulheres encarceradas por estado da federação
Estado Pardas Brancas Negras Indígenas Amarelas
Acre 85,94% 6,42% 6,42% 0% 0,8%
Alagoas 66,84% 13,9% 8,55% 0% 0%
Amazonas 71,35% 12,32% 6,07% 0,34% 0%
Amapá 46,15% 23,07% 26,15% 2,3% 2,3%
Bahia 40,76% 10,43% 17,06% 0% 0%
Ceará 37,39% 5,89% 20,95% 0,75% 0,37%
Distrito Federal 60,54% 18% 21,44% 0% 0%
Espírito Santo 64,87% 19,2% 14,98% 0,11% 0%
Goiás 48,5% 27,38% 15,53% 0% 0%
Maranhão 48,66% 13,39% 12,5% 0% 0%
Minas Gerais 35,53% 26,71% 17,17% 0% 1,8%
Mato Grosso do Sul 56,87% 26,8% 9% 0,79% 0,08%
144

Estado Pardas Brancas Negras Indígenas Amarelas


Mato Grosso 60,23% 22,03% 17,86% 0,13% 0,39%
Pará 89,59% 4,9% 4,6% 0,14% 0,74%
Paraíba 43,27% 8,68% 7,83% 0% 0%
Pernambuco 54,86% 22,59% 20,46% 0,11% 0,39%
Piauí 71,65% 11,02% 12,59% 0% 0%
Paraná 7,11% 32,26% 2,57% 0% 0,22%
Rio de Janeiro 38,05% 28,87% 24,58% 0% 0,05%
Rio Grande do Norte 34,43% 19,64% 11,25% 0% 0,44%
Rondônia 57,92% 21,7% 18,19% 0,16% 1,33%
Roraima 61,81% 20% 10,9% 8,48% 0%
Rio Grande do Sul 19,49% 65,24% 11,93% 0,44% 0%
Santa Catarina 16,33% 64,78% 12,03% 0,07% 0,15%
Sergipe 73,77% 14,2% 13,11% 0% 0%
São Paulo 28,73% 35,01% 11,8% 0,1% 0,3%
Tocantins 48,5% 8,2% 14,17% 0% 0%
Fonte: elaborado pela autora (2018)
Destaca-se que tanta disparidade no perfil racial carcerário feminino pode ser
consequência das formas como os dados foram coletados. Apesar de não haver menção sobre
isso, ao trazer que estas mulheres “foram consideradas” em determinado perfil racial, evidencia-
se que não foi utilizada uma autoclassificação e sim uma hetero-classificação.
Os dados do Infopen Mulheres (2014) são os mais recentes na elaboração desta pesquisa.
Válido destacar que a publicação inicial foi o Infopen de 2014, com dados gerais sobre o sistema
penitenciário no Brasil, com informações sobre a realidade masculina e feminina. Porém,
conforme apontado por Lima et. al. (2013), neste documento:
[...] a despeito do trabalho analítico aprofundado, dos gráficos e estatísticas, ele
padece de um vício grave, porém comum quando se discute política criminal: a
ausência generalizada de informações sobre as mulheres presas. Não se trata,
neste caso, do erro mais frequente, que é a inexistência de um filtro de gênero na
produção dos dados; o instrumento de coleta utilizado consegue apurar
características de gênero em 100% das variáveis pesquisadas e as informações
constam na base de dados disponibilizada algumas semanas depois (LIMA et al.,
2016, p. 8).
145

A problematização se encontra no fato de que “o texto final desse primeiro relatório


trouxe apenas 7 referências às características femininas – 7 em 130 possíveis (88 gráficos e 42
tabelas) ” (LIMA et al., 2016, p. 8).
Cinco meses depois desta publicação, o DEPEN lançou um segundo relatório, específico
sobre as mulheres. Nesse contexto, o órgão propõe uma política nacional de melhoria dos
serviços penais, abrangendo quatro eixos: 1) alternativas penais e gestão de problemas
relacionados ao hiperencarceramento; 3) humanização das condições carcerárias e integração
social e 4) modernização do sistema penitenciário nacional.
Os redatores do documento evidenciam que de 2004 até 2014 nenhuma alteração havia
sido feita na base metodológica deste sistema, e que a partir da importância da gestão da
informação e da potencialidade dessa ferramenta, em 2014, o DEPEN reformulou a metodologia
utilizada, com vistas a modernizar o instrumento de coleta e ampliar o leque de informações
coletadas. E ainda apontam:
Os diagnósticos realizados e divulgados nesse relatório não esgotam, de forma
alguma, todas as possibilidades de análise. A publicação dos dados em formato
aberto, pela primeira vez na história do Departamento Penitenciário Nacional,
permitirá a livre interpretação dos dados a partir dos mais diversos olhares e
perspectivas, com análises críticas que poderão somar à compreensão da
realidade prisional brasileira. Esse novo formato permitirá a democratização da
informação, indicando possíveis caminhos de análise dos dados e fomentando a
construção de alternativas para a busca de um horizonte melhor para o sistema
prisional brasileiro (DEPEN, 2014, p. 8).
Este documento pretendeu promover um grande salto qualitativo na produção de
informações penitenciárias no Brasil. Na figura 2 é possível analisar sobre o perfil racial das
mulheres encarceradas:

Figura 2 – Raça, cor ou etnia das mulheres privadas de liberdade (2014)


146

Por este gráfico evidencia-se que a população carcerária feminina é composta por uma
maioria negra(68%). Porém, é válido observar o apresentado na tabela 6 sobre a distribuição da
população privada de liberdade por raça cor ou etnia nas Unidades da Federação:

Tabela 6 – Raça, cor ou etnia das mulheres privadas de liberdade por UF (2014)

São Paulo, o estado com o maior número absoluto de presos, tem também a maior
população absoluta de mulheres encarceradas, respondendo por 39% do total de presas no país
em 201469 (INFOPEN, 2014). Sobre este estado em específico, não estão disponíveis os dados
raciais, o que alerta para uma grande lacuna. Nas demais Unidades da Federação, a maioria
absoluta da população prisional é negra. Os estados com maior porcentagem de pessoas presas
negras são o Acre e o Amapá.

69
Dados do INFOPEN (2014) também apontam o Rio de Janeiro, com 4.139 mulheres presas (11% do total), e
Minas Gerais, com 3.070 presas (ou 8,2%), ocupando, respectivamente, a segunda e terceira posições no ranking de
2014.
147

Apenas nos estados do sul do país – Santa Catarina (36%), Paraná (33%) e Rio Grande do
Sul (32%) – a população prisional não é composta majoritariamente por pessoas negras. Esse
dado, contudo, deve ser analisado à luz do perfil demográfico desses estados: apesar de apenas
1/3 da população prisional da região sul ser composta por pessoas negras, ainda há uma
sobrerrepresentação dessa parcela da população, considerado que na população em geral da
região a porcentagem de pessoas negras é de 21%.
A análise destes documentos com indicadores da população prisional feminina entre os
anos de 2007 a 2014 apontam progressos, mas se marcam primordialmente pela fragilidade e
inconstância em relação ao recorte racial.
Os relatórios acessados e analisados não foram satisfatórios para se desvelar o perfil
étnico-racial nas prisões femininas e evidenciaram fragilidade e descaso do Infopen ao fornecer
dados sobre essa parcela da população em estado de encarceramento.
Coloca-se como reflexão o apresentado por Silva (2014) de que ainda que estas pesquisas
avancem no sentido de garantir maior visibilidade para o encarceramento feminino, pouco se vê
progresso no aspecto racial do aprisionamento. Ainda que estas mulheres criminosas assumam
novos papéis na sociedade, papéis não aconselháveis para sua condição de “segundo sexo” elas
também são compreendidas a partir de sua subversão ao modelo de sociedade vigente (SILVA,
2014). “Invariavelmente, os castigos destinados às mulheres, inserindo aí a invisibilização da
temática prisional, objetivam não somente purificar, normatizar e recuperar a “essência” fundante
das teses voltadas a comportamentos biologizados, mas, também, credibilizá-las” (SILVA, 2014,
p. 35).
Há uma falta de disponibilidade em imagens sobre a vida nas prisões femininas e isso
corrobora na persuasão de ativistas das prisões que estão principalmente preocupados com a
situação das pessoas em privação de liberdade – da centralidade do gênero para uma
compreensão da punição estatal (DAVIS, 2013).
Embora os homens constituam a grande maioria dos prisioneiros no mundo,
aspectos importantes da operação da punição estadual são perdidos se se supuser
que as mulheres são marginais e, portanto, não merecedoras de atenção. A
justificativa mais frequente para a falta de atenção às mulheres em prisões e às
questões particulares em torno da prisão feminina é a proporção relativamente
pequena de mulheres entre as populações encarceradas em todo o mundo.
(DAVIS, 2013, p. 65 – traduzido pela autora).
Estas lacunas sobre o perfil racial das mulheres encarceradas prejudicam a construção de
análises consistentes sobre esta realidade. Não se percebeu com o estudo destes documentos uma
148

preocupação da Justiça Criminal no desenvolvimento de análises criteriosas das evidências


empíricas sobre a realidade prisional feminina.
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) usa “preto” como classificação de
cor ou raça nas pesquisas de censo demográfico desde 1872. Em diversos documentos, para
formar a classificação de negros, é comum que seja somada a população preta à população parda
para a formação de um grupo. Portanto, usar o termo preto não é equivalente a usar a categoria
negro, que pode incluir os pardos.
Embora haja recomendações internacionais para que se adote sempre a autoatribuição em
pesquisas ou registros que captam a raça ou a etnia, ou outras características correlatas à
identidade dos indivíduos, estes documentos têm se valido de heteroatribuição, ou em muitos
casos, não definem como foi realizado o perfil de coleta.
Ainda que venha sendo alvo de importantes reflexões acadêmicas, surgindo enquanto
objeto de estudo de alta relevância para a compreensão da dinâmica da violência e da
criminalidade na sociabilidade contemporânea, persiste a precariedade e a insuficiência da
organização prisional, o que acarreta em fatores condicionantes para as dificuldades na
reintegração social dos sujeitos que cometeram crimes e, notadamente, das mulheres
(PIMENTEL, 2013).
Deste modo, coloca-se a urgência de se desenvolver ações nos setores que coordenam a
utilização dos sistemas de informação penitenciária, ampliando a coleta e análise sobre o perfil
racial da população feminina encarcerada, permitindo maior completude do campo.

4.3 Encarceramento em massa de mulheres negras

Ainda que a realidade do encarceramento venha sendo alvo de importantes reflexões


acadêmicas, surgindo enquanto objeto de estudo de alta relevância para a compreensão da
dinâmica da violência e da criminalidade na sociabilidade contemporânea, persiste a precariedade
e a insuficiência da organização prisional, o que acarreta em fatores condicionantes para as
dificuldades na reintegração social dos sujeitos que cometeram crimes e, notadamente, das
mulheres:

Ainda que as mutações culturais tenham produzido deslocamentos


significativos em relação ao lugar da mulher no contexto social, continua
presente no imaginário coletivo a percepção de que as mulheres cumprem
um papel maternal marcado, principalmente, pela capacidade amorosa e
acolhedora que conseguem estabelecer, seja no espaço privado ou no
149

espaço público. Assim, o envolvimento de mulheres na criminalidade


repercute de forma muito peculiar nesse imaginário coletivo, sobretudo
porque as expectativas sobre o comportamento feminino são rompidas
com a prática de um delito. Ou seja, os gestos amorosos, cuidadosos e
atenciosos atribuídos tradicionalmente à figura da mulher, são vistos
como incompatíveis às práticas delituosas (PIMENTEL, 2013, p. 52).
Esta ausência da existência social das mulheres no mundo do cárcere localiza o
questionamento da existência de mulheres encarceradas nas lacunas em políticas públicas de
construção de presídios, de penas alternativas e, ainda mais, de criminologia e acesso à justiça
para mulheres:
Para o Estado e a sociedade, parece que são somente 440.000 homens e
nenhuma mulher nas prisões do país. Só que, uma vez por mês,
aproximadamente 28.000 desses presos menstruam. Às vezes, alguns
deles engravidam, o que complica muito para o sistema prisional, pois há
a necessidade de atendimento pré-natal, um parto seguro e escolta no
hospital, bem como de um lugar limpo e propício para cuidar de seu
recém-nascido. É necessária também uma política que assegure que a
lactante não perca a audiência processual só porque tem de amamentar seu
filho (CERNEKA, 2009, p. 62-63).
Problematiza-se que embora o crescimento alarmante da população prisional feminina
tenha levado várias organizações e movimentos governamentais e não-governamentais a se
questionarem sobre “como lidar com mulheres em um mundo carcerário construído para alojar
homens presumivelmente violentos” (CERNEKA, 2009, p. 64), quando se iniciaram as discussões
sobre como melhorar o acesso à justiça e ao cumprimento de pena para as mulheres, houve
protestos contra este tipo de diferenciação, alegando se tratar de discriminação contra homens.
Evidencia-se o apontado por Elaine Pimentel (2013) que, embora a prática de crimes por
mulheres não seja um fenômeno recente, no Brasil, as estatísticas revelam um aumento
significativo do número de mulheres envolvidas em diversas expressões da criminalidade. A
mulher encarcerada parece ter ficado de fora dos debates feministas por conta da visão
essencialista, com uma representação hegemônica de mulher, que é incompatível com sua
condição de criminosa:

Assim, a identidade de uma mulher que cometeu um crime fica


categoricamente comprometida e essa mulher passa a ser condenada não
somente pelo crime que cometeu, mas, principalmente, porque não
correspondeu aos atributos femininos culturalmente instituídos e que as
identificam naturalmente como pessoas bondosas, amorosas, românticas,
gentis, compreensivas, maternais, meigas e angelicais (PIMENTEL, 2013,
p. 60).
150

Constata-se a impossibilidade de graduação dos níveis de negação social em relação à


maior gravidade de gênero ou raça e, deste modo, a experiência de cárcere vivenciada pelos
grupos subalternizados deve ser analisada a partir do adicionamento de marcadores sociais, se
ausentando de um viés simplista de promoção de uma categoria central, o gênero ou a raça,
consequentemente à secundarização dos outros marcadores sociais (SANTOS, 2012).
A intersecção dos marcadores de raça no encarceramento de mulheres impacta a opressão
que elas estão sujeitas na relação com prisão. Neste sentido, parte-se da premência de uma
perspectiva contemporânea que analise as prisões femininas em uma ótica interseccional
considerando, dentre outros, os aspectos do sexismo e racismo institucionais.
O direito deve combater o fenômeno da discriminação a partir da consideração de que a
presença de diversas identidades revela em alguns casos a concomitância de critérios proibidos de
discriminação em situações discriminatórias específicas. Deste modo, tratados e convenções
internacionais desenvolvem o conceito jurídico de discriminação múltipla (e seus conceitos
equivalentes, tais como as “múltiplas formas de discriminação”, as “múltiplas barreiras” e as
“múltiplas e agravadas formas de discriminação”). “Assim, tem-se que ocorre discriminação
múltipla quando há a concomitância de mais de um critério proibido de discriminação, gerando
uma complexidade no caso discriminatório a ser analisado” (SILVA, 2013, p. 25).
O debate sobre este conceito se insere na proteção ao princípio da igualdade como
cláusula proibitiva de discriminação, sendo objeto de estudo do direito da antidiscriminação
(SILVA, 2013). “Essa disciplina contém uma série de categorias jurídicas, princípios e institutos
jurídicos próprios, que são hábeis a uma compreensão dinâmica, em contraponto a uma
compreensão estática sobre o conteúdo jurídico do princípio da igualdade” (idem, 2013, p. 14).
Porém, é válido destacar o apresentado por Silva (2013, p. 14), de que “o direito da
antidiscriminação utiliza como técnica legislativa de proteção da igualdade os critérios proibidos
de discriminação”. E por isso,

[...] há a proibição de discriminação por determinados motivos, como, por


exemplo, raça, sexo, gênero, idade, variando-se a listagem proibitiva de
acordo com a legislação de cada país. O tratamento jurídico sob a ótica da
mera adição de critérios proibidos de discriminação pode gerar
invisibilidades no enfrentamento à discriminação, ensejando-se uma
limitada análise da situação discriminatória ou a equivocada conclusão de
que não se estaria diante de uma violação da igualdade (SILVA, 2013, p.
14-15).
151

O autor apresenta os estudos do feminismo negro estadunidense como caminho a ser


trilhado como forma de compreensão da discriminação múltipla, permitindo uma análise
contextualizada dos critérios proibidos de discriminação intersectados como forma de se
compreender concretamente as dinâmicas discriminatórias que não se constituem como mera
soma de critérios proibidos de discriminação.
Crenshaw (2002) discute sobre como o sistema de justiça parece invisibilizar a mulher
negra quando ela sofre algum tipo de violência, mas “hipervisibilizá-la” quando nela há
possibilidade de acusá-la de um ato infracional. Coloca-se então como central a discussão sobre
esta forma de discriminação interseccional contra grupos específicos a partir do uso de
propagandas e estereótipos, pois “na verdade, a noção da propaganda com um componente racial
contra mulheres negras continua a criar padrões no sistema de justiça criminal que minam o
acesso de mulheres negras aos mecanismos de proteção” (CRENSHAW. 2002, p. 6). Os estudos
apresentados evidenciam o caráter racista na criminalização das mulheres, sendo a mulher negra
o principal atrativo da criminalização e aprisionamento no Brasil. Cabe então a denúncia sobre a
tendência policial na maior arbitrariedade com o segmento negro, levando a maiores punições
dos comportamentos das mulheres de camadas sociais mais baixas.
É necessário dar visibilidade para as práticas de violência institucional contra mulheres
negras no sistema prisional, protagonizadas por homens presos e por servidores do Estado, como
se apresenta na pesquisa Santos (2012), que se propõe à compreensão destes microcosmos de
violências amplas que não recebem cobertura midiática, dos episódios sociais de violência contra
as mulheres que não causam repúdios expressivos por parte das feministas.
A criminalização penal se vale da seletividade racial como mecanismo de culpabilidade
tácita das mulheres pobres e negras, enquanto retratam as mulheres brancas e das camadas
médias como ora inimputáveis ora inocentadas, ou sequer consideradas suspeitas pelos seus
crimes sofisticados.

Os corriqueiros casos de violências contra as mulheres encarceradas,


protagonizados por homens presos e por servidores do Estado são uma
demonstração cabal da urgência de debruçarmos atenção substantiva à
prisão feminina, como uma instância de violência institucional na
sociedade brasileira contra mulheres, principalmente as mulheres negras.
É preciso entender melhor como tal microcosmo de violências amplas não
encontra a mesma cobertura midiática dos episódios sociais de violência
contra as mulheres, nem provocado repúdios expressivos por parte das
feministas (SANTOS, 2014, p. 15).
152

Ao discutir as implicações sociais de crimes70 praticados por mulheres, a autora aponta


dois panoramas: 1) a baixa frequência da criminalidade feminina, 2) “maior culpabilização do
perfil de mulheres pertencentes às camadas subalternizadas, constantemente estereotipadas pelos
programas de rádio e televisão sensacionalistas, responsáveis por dar notoriedade à eficácia da
polícia e aos profissionais da segurança pública” (SANTOS, 2014, p. 15).
Problematiza-se então o perfil racial das encarceradas, majoritariamente pobres, negras,
semialfabetizadas, acusadas de tráfico de drogas, evidenciando que estas mulheres estão inseridas
em uma complexa rede de violência, que não pode ser rompida pelo tempo, posto a situação da
mulher negra em ausência de condições materiais e presença de pretextos subjetivados em
vínculos afetivos com homens, filhos e maridos delituosos.

A partir das contradições de princípios que habitam os expedientes


institucionais executados pelo próprio Estado Brasileiro, “transgressor e
ofensivo ao ideário democrático anunciado nos instrumentos
internacionais de direitos humanos, na Constituição Republicana, violador
dos acordos bilaterais à superação das violências contra as mulheres, e
infrator da lei de execução penal” (SANTOS, 2010, p. 17).
Há então necessidade de atenção para essa ausência de políticas públicas sensíveis a
gênero e raça que contribuem na manutenção de segregações biologizantes e comprometem a
ressocialização das mulheres, dada a precedente execução penal discriminatória (SANTOS,
2010).
Torna-se necessário discutir os estereótipos relacionados à mulher negra em situação de
cárcere. Cheskys (2014) examina os estereótipos de gênero que operam em detrimento das
mulheres, criminalizando-as duplamente, observando em contexto de encarceramento. Torna-se
então possível explorar o universo das mulheres encarceradas brasileiras a partir de uma
perspectiva de gênero.
A autora demonstra de que forma as categorias de estereótipos desenhadas por Rebecca
Cook e Simone Cusack (2010) podem ser verificadas no cotidiano das mulheres que cometeram
delitos, de modo a reproduzir preconceitos e perpetuar uma situação de opressão e subordinação
da mulher. A inspiração nos trabalhos de Cook e Cusack é justificada evidenciando a importância
das autoras na definição de estereótipos:

70
Santos (2014) evidencia o desinteresse da pesquisa em investigar as motivações das mulheres sucumbirem à lei
através de seus audaciosos crimes.
153

Inspirando-se no trabalho de Appiah, Rebecca Cook e Simone Cusack


definiram estereótipo como uma visão generalizada de atributos ou
características possuídas por membros de um grupo particular, ou pré-
conceitos relativos a papéis que são ou deveriam ser desempenhados pelos
membros desse grupo. Com essa definição conseguiram aglutinar
basicamente as características mais importantes descritas por Appiah em
suas diferenciações do sentido da palavra e nos fornecer um conceito
sólido e objetivo (CHESKYS, 2014, p. 20).
O estudo se inicia em uma exploração do que são os estereótipos, em especial os de
gênero e também na compreensão de como eles agem, se reproduzem e se reafirmam no meio
social. De acordo com a autora “os estereótipos de gênero têm demonstrado a capacidade não
apenas de construir homens e mulheres como seres essencialmente diferentes, mas de construir
essa diferença de um modo que é prejudicial às mulheres” (CHESKYS, 2014, p. 11).
Problematiza-se a existência de uma discriminação de gênero que quase sempre passa
despercebida e que quando esta discriminação atinge uma categoria de mulheres discriminadas
por outros fatores, como o caso das mulheres encarceradas que são postas à margem da sociedade
por terem cometido crimes, ficando sem qualquer representação política relevante, essa categoria
de mulheres passa a ser invisível, e a consequência é que quase nenhuma preocupação política,
jurídica ou social é dispensada a elas.
Pontua-se a preocupação com a perpetuação dos estereótipos de gênero através das leis,
políticas públicas e outras práticas estatais.

Isso nos parece suficiente para evitar uma quantidade significativa de


danos que vem sendo causados pelos estereótipos, em especial para as
mulheres encarceradas, como ainda teremos oportunidade de observar.
Para nós, não é relevante a discussão sobre a possibilidade ou não de
eliminação completa dos estereótipos de gênero da vida em sociedade,
pois a investigação sobre as possibilidades de minimização da influência
desses estereótipos no direito e nas práticas estatais já basta. Considerando
que nossa identidade sempre será formada no meio social através do
discurso e que esse discurso não é neutro, mas está recheado de
significados, escolhas, relações de dominação e opressão, acreditamos que
a questão principal está em problematizar se as identidades podem ser
constituídas de forma autônoma mesmo em relações onde há assimetria de
poder (CHESKYS, 2014, p. 23).
Neste contexto, “ao tolerar a aplicação, reforço e perpetuação de um estereótipo de
gênero, o direito, sendo uma instituição do Estado, cria um ambiente de legitimidade e
normalidade em torno daquele estereótipo” (idem, 2014, p. 13).
154

Tendo em vista a importância do direito enquanto estrutura de poder, “considerando sua


imperatividade e consequente capacidade de determinar de modo significativo o comportamento
das pessoas, cada vez que deixa de atuar para atenuar a perpetuação dos estereótipos de gênero”
(CHESKYS, 2014, p. 13), o direito se estabelece como fundador de um ambiente jurídico que
mantém e reforça as discriminações.
Com a discussão sobe estereótipos, Cheskys (2014) problematiza que o tratamento às
mulheres encarceradas não pode ser pautado nos preconceitos de gênero, o que traz a necessidade
de se dar tratamento igualitário a homens e mulheres. Desta forma, Cheskys (2014, p. 50) afirma
que tanto mulheres, quanto homens presos/as “merecem ser tratados/as com dignidade; devem ter
sua autonomia respeitada; devem ter a possibilidade de cumprir sua pena em locais dignos;
devem poder exercer todos os seus direitos, como a visita íntima, o trabalho, estudo e lazer, em
igualdade de condições”.

Ao mesmo tempo, é preciso entender o que a Lei de Execução Penal quer


dizer quando estabelece que mulheres serão recolhidas em
estabelecimentos adequados à sua condição pessoal. Fica claro que o
legislador reconheceu que determinadas especificidades da mulher devem
ser observadas e respeitadas. É por isso que não é contraditório rechaçar
os estereótipos e ao mesmo tempo afirmar a necessidade de se garantir o
exercício saudável da maternidade, da convivência com os filhos,
especialmente os ainda em fase de amamentação e da atenção específica
às questões de saúde e higiene próprias da mulher (CHESKYS, 2014, p.
50).
A autora diz não ser um bom caminho para o movimento feminista propor a eliminação
da dicotomia, “pois nos parece uma solução utópica que pouco auxilia nos desafios a serem
encarados pelas mulheres na vida real” (CHESKYS, 2014, p. 50).
Neste sentido, a proposta apresentada é uma concentração de esforços na valorização do
privado, que tem como consequência a valorização da mulher, e posteriormente na consolidação
do entendimento de que o patriarcado não está restrito à família, o que faz com que seus reflexos
devam ser debatidos e solucionados na esfera pública, através da política.

Portanto, na elaboração de políticas públicas, sejam elas quais forem, os


estereótipos serão necessários para que o Estado possa elaborar planos de
ação que atinjam e beneficiem o maior número de pessoas possível. Essa
percepção, no entanto, não deve nos impedir de enxergar que em
determinadas situações as generalizações devem ser deixadas de lado para
que se dê a atenção necessária às especificidades de um dado grupo. Isso
ocorrerá sempre que se perceber que a generalização está, na verdade,
negando direitos iguais àquele grupo (CHESKYS, 2014, p. 79).
155

Todavia, a autora afirma que “eliminar a influência prejudicial dos estereótipos de gênero
não precisa, no entanto, levar a uma completa cegueira de gênero que desconsidere
especificidades da mulher essenciais para dar a ela, além da igualdade formal, a tão almejada
igualdade material” (idem, 2014, p. 80).
Torna-se fundamental para o presente estudo a discussão apresentada por Cheskys (2014)
sobre a interação entre gênero, classe e raça/etnia enquanto recorte indispensável no trabalho com
mulheres encarceradas brasileiras, que permite reflexões sobre as nuances acrescentadas pelas
outras formas de discriminação, além da de gênero.

Assim, embora não se possa abrir mão do recorte de gênero na análise das
especificidades da população carcerária feminina, sobretudo considerando
que essa perspectiva ainda tem sido pouco explorada na comparação com
as demais formas de discriminação (especialmente quando se fala em
problemas relativos ao cárcere), e porque, afinal, é isso que as distingue
primordialmente da população carcerária masculina, não podemos deixar
de reconhecer a existência de três vetores principais que empurram cada
vez mais as mulheres encarceradas para a base da pirâmide social: a
discriminação de gênero, de raça e de classe (CHESKYS, 2014, p. 80).
Parte-se da compreensão de que as identidades se compõem por diferentes fatores que se
relacionam constantemente, e se apresenta o conceito de estereótipos compostos de Cook e
Cusack (2010) para analisar de que forma o gênero interage com os demais traços da identidade.
Mulheres presas representariam um exemplo de estereótipo composto porque são:

[...] majoritariamente são mulheres que durante anos sofreram


discriminação em razão de sua cor; que tiveram raras oportunidades
somente por serem negras; que não conseguiram estudar; não
conseguiram bons empregos; que não são vistas como capazes de ocupar
um lugar de chefia no tráfico (ou mesmo não desejam isso) – o que lhes
retira a possibilidade de barganha com a polícia, por exemplo –, mulheres
que tem que sustentar suas famílias. São essas as mulheres encarceradas
brasileiras (CHESKYS, 2014, p. 81).
Os estudos evidenciam que a criminalização penal se vale da seletividade racial como
mecanismo de culpabilidade de mulheres negras. Analisando os discursos de criminalidade e
instituições de controle, percebe-se que a distinção de gênero assumiu e continuou a estruturar as
políticas penais, e que ao ser acrescida dos impactos de classe e da raça, materializam-se nos
corpos negros de mulheres encarceradas massivamente.
As demandas históricas, políticas e culturais resultaram na articulação de
heterogeneidades que faz com que mulheres negras, enquanto sujeitos identitários e políticos,
precisem enfrentar condições adversas estabelecidas pela sociedade racista atual. Neste sentido
156

justifica-se a alegação de Davis (2016) de que as prisões se tornaram instituições obsoletas, já


que estas se marcam pela presença cada vez maior de pessoas das comunidades racialmente
oprimidas, aliada a uma existência isolada marcada por regimes autoritários, violência, doenças e
tecnologias de reclusão que produzem uma grave instabilidade mental.
157

CONSIDERAÇÕES

Compõe esta etapa do estudo um apanhado das considerações elaboradas à luz do


referencial teórico estabelecido no trabalho que se projeta a partir de minhas percepções surtidas
no decorrer da construção desta tese. Trata-se então de um desenhar das reflexões que me
rodeiam até o presente momento.
Sabendo que a tese se consiste em um material disponibilizado por vários anos – anos
pelos quais eu estarei imersa em novas leituras, dando braçadas de resistência em outra realidade
– já não sei se a defesa que trago no texto hoje será a mesma; ainda assim, para o que tenho como
realidade de agora, são estas as impressões finais que agrego às discussões da temática.
O nome do capítulo que indica o fechamento do trabalho não poderia ser conclusão,
porque não se conclui o pertencimento de raça e de gênero presentes na autora do estudo: sou
mulher negra, antes, durante e depois do fechamento deste estudo e a opção por me debruçar em
pesquisas que desvelam sobre minha identidade, sobre meu espaço de ser no mundo, não se
finaliza com a conclusão desta tese – apenas conclui o processo de doutoramento, o convívio
mais próximo junto às amigas/os que agora também seguem por novos rumos, mas que seguimos
ligados por militância e afeto.
Retomo a escrita em primeira pessoa para explicitação da autoria, ainda que pouco usual
nas escritas acadêmicas. Penso ser essa autoria o que estampa os atos de coragem, evidenciando
minha responsabilidade e comprometimento com os resultados que apresento neste estudo.
O tempo todo que produzia o texto me forçava a escrever em um rigor formal da escrita
acadêmica surtindo reflexões sobre como a academia surge como mais uma das práticas
discursivas impositivas sobre o modo correto de dizer as palavras. Na academia esta imposição se
potencializa e a escrita acadêmica surge como espaço no qual a punição pelo “erro” é a negação
do seu texto como científico.
Aponto então como substancial para o fortalecimento das pesquisas que denunciam
opressões e injustiças, a partir de grupos marginalizados, propostas para perpassar as fronteiras da
linguagem possibilitando discussões sobre formas de escrita que, ao invés de se alicerçarem na
manutenção das relações de desigualdades, possam auxiliar na transformação social. Neste
caminho de ruptura, a linguagem “recusa-se a ser encerrada em fronteiras, ela mesma fala contra
a nossa vontade em palavras e pensamentos que se intrometem, até mesmo violam os mais
secretos espaços da mente e do corpo (HOOKS, 2008, p. 857).
158

Dentro das epistemologias do feminismo negro, esta ligação entre linguagem e dominação
precisa ser problematizada dentro do percurso histórico de colonização e de escravização, como
parte do processo de conquista que ao transportarem forçosamente africanas/os para terras
colonizadas, os fizeram de escravos em um espaço onde linguagem falada não era por eles
compreendida, e onde seu idioma materno não tinha sentido nenhum (HOOKS, 2008).
Podemos pensar este mesmo processo dentro das produções intelectuais científicas, que
sendo forjadas em uma instituição branca, masculina, heteronormativa tem estes critérios para
elaboração de uma linguagem padrão e normativa. Todavia, se durante a escravidão mulheres e
homens negros assimilavam a linguagem do opressor utilizando-a como som da resistência, é
preciso, estando situados na academia, que usemos a linguagem acadêmica como forma de
recuperarmos nosso poder dentro deste contexto de dominação, mas sem perder de vista a
necessidade de recriação utilizada por negros/as neste período – a produção intelectual que visa
romper com os processos de violência contra populações marginalizadas necessita também da
recriação da linguagem, permitir espaços nas pesquisas onde possamos produzir cultural e
epistemologicamente visões de mundo contra-hegemônicas.
Deste modo, “mudar a maneira como nós pensamos sobre linguagem e como nós a
usamos, necessariamente altera a maneira como nós sabemos o que nós sabemos” (HOOKS,
2008, p. 862). Não se pode esperar que a linguagem mude através da mudança do mundo, a
dialética entre linguagem, pensamento e mundo é processual e contraditória, por isso é necessário
um discurso que se faça democrático e antidiscriminatório (FREIRE, 2009).
Na trajetória busquei ressaltar como desde a graduação, com o primeiro contato com os
debates raciais, os aprofundamentos teóricos e o desenvolvimento de pesquisas e práticas
acadêmicas têm me construído em um processo dialético. Qual o significado de ser uma mulher
negra que se descobre tardiamente como tal, desenvolvendo pesquisa que desvela e denuncia
realidades de machismo e racismo? Embora esta não tenha sido uma questão de pesquisa, é fato
que tal questionamento perpassou todo o desenvolver deste estudo.
A produção do conhecimento se fundamenta no meu olhar sobre as leituras que realizo.
Produzo coletivamente, tendo como base minhas experiências e meu modo de experenciar o
mundo que vivo. A alegria da pesquisa se encontra primordialmente na descoberta de mulheres
negras com obras tão impactantes e fundamentais: descortinamento das nossas possibilidades
enquanto mulheres negras.
159

Eu não fui apresentada para estas autoras como fui para “clássicos da educação”, ainda
que suas leituras tenham corroborado no meu processo de desvelamento pessoal e construção
enquanto docente. Escrever sobre uma perspectiva que não está sendo debatida nas suas
disciplinas obrigatórias, ter que conhecer para buscar, faz do processo um desafio. Um dos
produtos finais é o desejo que se criou por querer me entender enquanto sujeito, não em uma ação
individual, e sim coletiva e de militância, que reconheça o espaço de privilégio que tenho na
academia, como ensejo para nossa inclusão nestes espaços.
Nos estudos, bell hooks denuncia a prática de mulheres brancas que não permitem
espaços para as narrativas de mulheres negras:
Raramente se escreve sobre tentativas por parte de feministas brancas de
silenciar mulheres negras. Muitas vezes, elas acontecem em salas de
conferência, salas de aula ou na privacidade de acolhedoras salas de estar, onde
uma negra solitária enfrenta a hostilidade racista de um grupo de brancas
(HOOKS, 2015, p. 204).
Ter vivenciado tentativas de silenciamento desde a graduação e ter escolhido mulheres
negras para construir conhecimento científico foi a forma de reconhecer que ainda que o espaço
acadêmico seja branco, masculino, heteronormativo, classista, projetado de forma que não parece
caber a mulher negra, eu luto e demarco meu lugar. Eu não posso padecer, vou resistir e ficar por
nós!
A pesquisa se iniciou a partir do interesse em se compreender as categorias de gênero e
raça dentro dos espaços prisionais, e os caminhos evidenciaram a necessidade do debruçar teórico
sobre o conceito de Interseccionalidade, que além de ser chave para entender as opressões de
mulheres nestes espaços também permitia reflexões sobre outros tipos de opressões intersectadas.
Declinei então da opção de pesquisa de campo e me dediquei a uma pesquisa teórica que
trouxesse aprofundamento sobre o conceito e adentrando a partir dele nas compreensões sobre
gênero e raça nos sistemas prisionais.
Houve uma dificuldade, enquanto pesquisadora do presente estudo, em “aceitar” a
pesquisa teórica como suficiente em seu papel e sua responsabilidade com o compromisso social
do ser pesquisadora.
Ao perceber a capacidade em si da pesquisa no meu processo de autoidentificação racial e
de gênero, compreendi que havia um compromisso social muito bem estabelecido em ser mulher
negra acadêmica ocupando um espaço de produtora de conhecimento. Há uma sub-representação
da mulher negra no espaço acadêmico que se agrava com a sub-representação de nós nos
160

conhecimentos que são difundidos na universidade – o conhecimento acadêmico ainda se


encontra aprisionado em uma visão eurocêntrica, masculina. Parte-se então da compreensão do
“ser mulher negra” enquanto ancestralidade e vivência que pode e necessita ser teorizada.
Há um processo de desvalorização, negação e silenciamento das contribuições das
vivências e do intelecto de mulheres negras ao patrimônio cultural da humanidade e neste sentido
se coloca uma contradição eminente em querer discutir a realidade social dos/as oprimidos/as a
partir do olhar, da linguagem, da construção teórico-ideológica de grupos que são responsáveis
pelo processo de opressão.
Ignorar contribuições e trajetórias de vida de mulheres negras se enquadra no conceito de
epistemicídio, que são as formas de conhecimento que não estão estabelecidas, não tem
reconhecimento no meio acadêmico. Sueli Carneiro (2005) é uma das autoras que discute este
conceito na análise da produção intelectual negra e evidencia que o epistemicídio ocorre “no
dualismo do discurso militante versus discurso acadêmico, através do qual o pensamento do
ativismo negro é desqualificado como fonte de autoridade do saber sobre o negro, enquanto é
legitimado o discurso do branco sobre o negro” (CARNEIRO, 2005, p. 60).
Se queremos inverter essa situação – por meio da sociologia das ausências – temos de
fazer com que “o que está ausente esteja presente, que as experiências que já existem, mas são
invisíveis e não-críveis estejam disponíveis; ou seja, transformar objetos ausentes em objetos
presentes” (BOAVENTURA, 2007, p. 32).
Mulheres negras, desde antes terem seus corpos explorados, violentados e mortos pelos
processos de escravização de seus povos, são produtoras de conhecimento, e suas contribuições
intelectuais fazem parte da formação do Brasil. Desta forma, as escolhas teóricas-epistemológicas
são neste estudo justificadas também em uma ação de luta e resistência. A adoção por
referenciais teóricos do Feminismo Negro nesta pesquisa demarca a reivindicação de
conquistarmos além dos espaços sujeito de pesquisa, ocupando nosso lugar de sujeitos
pesquisadoras. Trata-se de um trabalho de militância dentro da academia, já que as narrativas de
mulheres negras ainda seguem ausentes no que se produz e se divulga nas universidades.
O capítulo inicial focou então na militância e produções de mulheres do feminismo negro
evidenciando a luta de mulheres negras para inclusão das pautas raciais nos debates de gênero.
Foi possível apreender que embora falemos de lutas e minorias, não estamos imunes de exclusões
e silenciamentos. O feminismo se constitui como movimento que protagoniza as demandas de
161

gênero, e alcança ganhos inestimáveis para a garantia de nós mulheres aqui, hoje, mas ainda
assim, surge na voz de mulheres brancas, heterossexuais e de classe média e por isso, ainda que
lute contra uma dominação que deve ser combatida em nossa sociedade, a masculina, não luta
contra o racismo, a homofobia e tantas outras opressões que as mulheres estão sujeitas.
A partir de Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez e outras feministas negras brasileiras, foi
possível problematizar a situação da mulher negra que teve seus corpos associados ao trabalho, à
violência e ao sexo no período da escravidão, e ainda o tem – agora em ações específicas do
nosso contexto que precisam ser denunciadas pelas produções interseccionais, dentre as quais
destacamos o sistema prisional.
Compreendeu-se Interseccionalidade enquanto conceito sociológico dedicado ao
desvelamento de interações nas vidas das minorias. Ainda que mulheres negras já tivessem
denunciado a situação de violência que estavam sujeitas por conta de seus pertencimentos de
gênero e raça, foi Kimberlé Crenshaw (1989) que cunhou o conceito teoricamente no final da
década de 80, enquanto sensibilidade que permite olhar como diferentes esferas de opressão
colidem produzindo impactos mais ou menos violentos a partir da realidade que se problematiza.
Sendo a Interseccionalidade um conceito cunhado no bojo do feminismo negro
estadunidense e recebido por feministas negras brasileiras, mas de forma ainda pouco difundida,
busquei compreender mais sobre o conceito a partir da sua recepção por pesquisadores/as
brasileiros. Apresentado como Estado de conhecimento em Interseccionalidade, analisei o
levantamento bibliográfico realizado no banco de teses e dissertações da CAPES entre os anos de
2005 e 2015, que evidenciou as contribuições da perspectiva Interseccional na ampliação das
discussões acerca das sobreposições de opressão que afetam sobremaneira a mulher negra.
Inicialmente, buscando compreender o que desperta nos/as pesquisadores/as o interesse
pela perspectiva interseccional, se há uma similaridade com o processo de construção deste
estudo, no qual minha subjetividade de mulher negra é o que gera o interesse por compreender
mais a fundo estas opressões, tentei traçar um perfil no pertencimento de gênero e raça dos
pesquisadores/as.
Não houve dificuldades para se estabelecer que há um número expressivamente maior de
mulheres escrevendo sobre a temática da interseccionalidade tanto na produção de dissertações,
quanto de teses, porém a análise sobre o pertencimento racial das pesquisadoras/es não foi
possível, pois nem sempre estes deixavam evidente este aspecto em suas trajetórias.
162

Ainda assim as pesquisas que apresentam a narrativa e pertencimento racial de seus


sujeitos surgiram como fundamentais para problematizar a necessidade de negras e negros terem
uma consciência efetiva de si mesmos, e mais, inclui esse debate no bojo das epistemologias e da
linguagem que tende a atuar como ferramenta de aprisionamento e manutenção das estruturas
racistas e sexistas na academia.
Tendo constatado que as pesquisas tiveram aumento exponencial nos últimos anos,
equacionei nas análises o impacto das ações afirmativas no ensino superior que além de garantir o
acesso da população negra nos espaços acadêmicos também possibilita um maior interesse dos
pesquisadores/as sobre temáticas raciais. Sendo esses pesquisadores em sua maioria mulheres, há
então essa preocupação com a interface de gênero e outros marcadores, e por isso o uso da
perspectiva interseccional.
Os estudos justificam a inclusão da interseccionalidade nas pesquisas acadêmicas,
garantindo visibilidade de grupos marginalizados pelas diferentes esferas de opressão que atuam
de forma intersectada. A leitura atenta de cada uma destas teses e dissertações auxiliou
compreensões, antes postergadas, sobre práticas que são atravessadas por intersecções de
opressões, e mais, permitiu caminhos para se trabalhar interseccionalidade na denúncia do
encarceramento de mulheres negras.
Parti da necessidade de denúncia ao racismo e ao machismo, intersectados produzindo um
sistema penitenciário retratado por mulheres negras. Estudar prisão se faz urgente por vários
motivos; um deles é seu crescimento, outro é pelo perfil de encarceradas que denuncia o racismo
do sistema de justiça brasileiro.
Ainda neste caminho é válido destacar o apresentado por Lélia Gonzales de que “se
estamos comprometidas com um projeto de transformação social, não podemos ser convenientes
com posturas ideológicas de exclusão, que só privilegiam um aspecto da realidade por nós
vivida” (GONZALEZ, 1988, p. 13).
Como forma de reiterar a importância das pesquisas sobre espaços prisionais, apresenta-se
o respaldo teórico de Davis (2011), que discute que:
Um problema que temos enfrentado, atualmente é o seguinte: na medida em que
os negros ascendem socialmente, eles têm deixado para trás sua própria
comunidade. Não querem estabelecer nenhuma relação com as mulheres negras
da Previdência Social, nem ser relacionados às pessoas negras que estão na
prisão. Porém, alguns de nós estão dizendo: “eles são nossos irmãos, e se
adquirimos um certo grau de visibilidade, foi em cima dos ombros daqueles que
ficaram para trás” (DAVIS, 2011, s/p.).
163

A citação de Davis (2011) surge como descortinamento da relevância de pesquisas sobre


grupos marginalizados dentro do processo de opressão resultado de uma sociedade machista e
racista.
O perfil da população carcerária feminina é jovem, negro e na sua maior parte são presos
por tráfico de drogas simples. Não se trata de uma simples coincidência de que a ausência da
intelectualidade da mulher negra utilizada na academia que discutimos há pouco seja a presença
deste mesmo segmento no sistema prisional. O mesmo mecanismo de exclusão e silenciamento
de vozes é o de aprisionamento de corpos.
Os estudos sobre Interseccionalidade, Direito e Encarceramento de Santos (2012), Silva
(2013), Cheskys (2014) e Alves (2015) discutem a especificidade da mulher negra. Para meu
último capítulo utilizei além destes estudos: buscando um caminho para se compreender as
intersecções de gênero e raça no sistema prisional feminino, realizei uma análise documental dos
indicadores deste espaço.
Na análise dos indicadores feita a partir de documentos de 2007 até o mais recente o
INFOPEN 2014, verificou-se pouca atenção na produção destes documentos, e inexistência de
dados que permitam análises interseccionais, já que pouca atenção é dada na definição do perfil
racial das mulheres em situação de cárcere.
Quando Sojouner Truth (1852) questiona se ela não é uma mulher no contexto de
escravidão nos EUA, o mesmo questionamento pode ser feito pelas mulheres encarceradas que
parecem estar invisibilizadas nas pautas feministas. Evidencia-se a potencialidade do conceito
interseccional na compreensão de vivências que atingem mulheres negras e outros grupos
marginalizados. Ademais, o conceito do feminismo negro surge como essencial na discussão das
opressões de gênero e raça que atingem a mulher em situação de cárcere.
O maior questionamento na finalização desta pesquisa é como ampliar esta discussão para
que ela não tenha utilidade somente para a produção de artigos meus ou de outras/os que queiram
nela se inspirar. Como levar estes debates para uma esfera mais ampla, permitindo que outros
sujeitos, também aqueles em situação de cárcere e sem possibilidade de acesso a essa leitura,
possam se beneficiar desta discussão? Concordo com Santos (2010) da premência de pesquisas
que possam ser utilizadas como mecanismo político e teórico a favor de saberes interessantes aos
grupos que requerem a implementação de ações afirmativas, já que somente desta forma
conseguiremos a reparação das desvantagens sociais provenientes das injustiças históricas.
164

Os conceitos, as compreensões e as novas visões que este estudo proporcionou não são
aqui apresentados como conclusivos – são portas de entradas, convite para mim e para quem mais
esteja disposto a entender as dores de um mundo injusto. O estudo é também um manifesto de
apoio a todos os grupos que precisam lutar pelo reconhecimento e pela garantia de direitos.
165

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175

ANEXOS

Anexo 1
176

Anexo 2
177

Anexo 3
178

Anexo 4
179

Anexo 5
180

Anexo 6

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