Camila Simões Rosa
Camila Simões Rosa
Camila Simões Rosa
São Carlos/SP
2018
CAMILA SIMÕES ROSA
São Carlos/SP
2018
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Profa. Dra. Elenice Maria Cammarosano Onofre
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
________________________________________
Prof. Dra. Tatiane Cosentino Rodrigues
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
_________________________________________
Prof. Dra. Thaís Fernanda Leite Madeira
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
_________________________________________
Prof. Dra. Eva Aparecida da Silva
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP
_________________________________________
Prof. Dra. Sandra Maciel de Almeida
Universidade Federal Fluminense -UFF
Dedico esta tese às mulheres pretas presas em suas lutas diárias.
AGRADECIMENTOS
Há um provérbio africano que ensina: “Nunca se esquecem as lições aprendidas nas
dores”. É a partir dele que resisto, que me movimento e uso as dificuldades experenciadas como
inspiração a almejar atuar na academia de forma que este espaço se faça menos hostil para
mulheres negras.
A escrita desta tese não foi solitária como eu achei que seria, muitos foram o que me
acolheram, que ensinaram, inspiraram e de algum modo utilizaram suas mãos para me ajudar a
escrever um conhecimento sobre o qual eu acreditava.
Desta forma, esta etapa de agradecimento se faz a cada mão que se fez imprescindível na
construção desta tese.
Da minha mãe, Maria José, por ter mãos que acalentam, motivam, unem, educam. Do
meu pai, Carlos Alberto, por ser uma mão que ampara, tranquiliza, conforta. Vocês me fazem
acreditar que eu posso ser o que quiser; são minha fortaleza e exemplo.
Do meu irmão, Gustavo. Por ser a mão que cuida, não importa em que parte do mundo se
aventure a estar, da amizade mais sincera que eu carrego. Você me inspira.
Do meu companheiro Arthur. Por ser mão de fazer cafuné, de corrigir texto, de mostrar
quão feliz a vida é quando se tem um amor/amigo/parceiro. Em especial pela ajuda na coleta dos
dados, na leitura de cada etapa da pesquisa. Você é amor/amizade.
Da família que mantém acesa as raízes. Em especial a Vó Maria e Vô Dito, por serem
mãos da ancestralidade. Aline, Amanda e Ariane, as primas que me lembram da importância da
gargalhada e da leveza. Vocês são o cuidado que eu quero ter para sempre.
Das companheiras de Pós-graduação, Sara, Aline, Clóris, Katia e Luciana. Das mãos que
me ajudaram a não desistir frente às dificuldades de ser pesquisadora.
Dos amigos de sempre Natália P., Mariana R., Vinícius L., Karine, Natália S., Camila G.,
Camila P., Nayara e Bruno. Por serem mãos que acalentam a alma, das prosas e das risadas. Em
especial à Karine, pela ajuda na tabulação de dados.
Dos amigos de Americana, a cidade que tem me acolhido. Em especial à Natália e
Vitória, por serem mãos de mulheres que lutam.
Dos amigos de Atlanta, Cláudia, Gustavo e Allan. Das mãos que traduziam um novo
mundo nos meses que estive fora.
Das sábias mãos das professoras Tatiane Cosentino Rodrigues, Ana Cristina Juvenal da
Cruze Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Por serem fortaleza e exemplo a serem seguidos. Das
mãos cuidadosas e pacientes das Professoras Joyce King e Aisha Kareem, que em Atlanta deram
todo o suporte e ensinamento para que o intercâmbio fosse ainda mais rico. Vocês são pessoas
das quais sempre me orgulharei pela luta que travam diariamente, atravessando o desafio de ser
mulher negra acadêmica.
À CAPES, pelo auxílio-financiamento no Programa de Desenvolvimento Abdias Nascimento.
RESUMO
Trata-se de um estudo de cunho teórico e abordagem qualitativa, com aportes no feminismo
negro, que ao considerar não haver hierarquia entre as práticas de opressão vivenciadas por
mulheres, reconhece a urgência de análises e reflexões sobre o encarceramento em massa de
mulheres negras. O contexto a ser estudado, e a opção teórica em feministas negras brasileiras e
norte-americanas, alavancaram o interesse em um estudo mais aprofundado sobre um dos
conceitos deste movimento social, que orientado pela invisibilidade de pautas da mulher negra
nos debates feministas e nos debates de raça, propõe a interseccionalidade. Na etapa da pesquisa
que se dedica à compreensão deste conceito, realizou-se discussões históricas que evidenciam
que mulheres negras eram afetadas pelas discriminações interseccionais mesmo antes do conceito
ser delineado por Kimberlé Crenshaw, na década de 80. Apresentam-se ainda as discussões
teóricas do conceito a partir desta feminista norte-americana, de brasileiras e outras que
colaboraram no impulsionamento teórico da interseccionalidade enquanto sensibilidade analítica
capaz de tirar da invisibilidade grupos atravessados por diferentes práticas de opressão. Ainda
nesta discussão, encontra-se um levantamento bibliográfico no banco de teses e dissertações da
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) entre os anos de 2005 e
2015 com o descritor “interseccionalidade”. As pesquisas foram analisadas em relação à
quantidade de publicações por ano, gênero e raça dos pesquisadores, e uso da interseccionalidade
em diferentes contextos. Adentrando a discussão interseccional para o encarceramento em massa
de mulheres negras, apresenta-se um panorama das prisões femininas, análise instrumental de
indicadores do sistema prisional feminino e considerações sobre o Sistema Prisional Feminino
em uma perspectiva interseccional a partir de Angela Davis. Evidencia-se a potencialidade do
conceito interseccional na compreensão de vivências que atingem mulheres negras e outros
grupos marginalizados. Ademais, este conceito do feminismo negro surge como essencial na
discussão das opressões de gênero e raça que atingem a mulher em situação de cárcere.
Palavras-chave: Interseccionalidade. Encarceramento em Massa de Mulheres Negras. Mulheres
Negras.
ABSTRACT
This is a theoretical study with a qualitative approach, and contributions in black feminism,
which, when considering that there is no hierarchy between the practices of oppression
experienced by women, recognizes the urgency of analyzes and reflections on the mass
incarceration of black women. The context to be studied, and the theoretical option in Brazilian
and North American black feminists, have leapfrogged the interest in a more detailed study of
one of the concepts of this social movement, which guided by the invisibility of black woman
agenda in feminist debates and on the race debates, proposes intersectionality. At the stage of the
research that is dedicated to the understanding of this concept, historical discussions were
conducted evidencing that black women were affected by intersectional discrimination even
before the concept was outlined by Kimberlé Crenshaw in the 1980s. Presented here are the
theoretical discussions of the concept from this North American feminist, Brazilian woman and
others who collaborate in the theoretical impetus of intersectionality as analytical sensibility
capable of taking from invisibility groups crossed by different practices of oppression. Also, in
this discussion, there is a bibliographical survey in the thesis and dissertation bank of CAPES
(Coordination of Improvement of Higher Level Personnel) amid the years 2005 and 2015 with
the descriptor: intersectionality. The researches analysis regarded the number of publications per
year, gender and race of the researchers, and the use of intersectionality in different contexts.
Entering the intersectional discussion for the mass incarceration of black women, it presents an
overview of women's prisons, an instrumental analysis of indicators of the female prison system,
and considerations on the Women's Prison System from an intersectional perspective coming
from Angela Davis. It evidences the potentiality of the intersectional concept in the
understanding of experiences that affect black women and other marginalized groups. Moreover,
this concept of black feminism arises as essential in the discussion of the oppression of gender
and race that affect women in prison.
Keywords: Intersectionality. Mass Imprisonment of Black Women. Black Women.
RESUMEN
Se trata de un estudio de cuño teórico y abordaje cualitativo, con aportes en el feminismo negro,
que al considerar no haber jerarquía entre las prácticas de opresión vivenciadas por mujeres,
reconoce la urgencia de análisis y reflexiones sobre el encarcelamiento masivo de mujeres
negras. El contexto a ser estudiado y la opción teórica en feministas negras brasileñas y
norteamericanas, apalancar el interés en un estudio más profundo sobre uno de los conceptos de
este movimiento social, que orientado por la invisibilidad de pautas de la mujer negra en los
debates feministas y en los debates de raza, propone la interseccionalidad. En la etapa de la
investigación que se dedica a la comprensión del concepto de interseccionalidad, se realizaron
discusiones históricas que evidencian que las mujeres negras eran afectadas por las
discriminaciones interseccionales incluso antes del concepto ser delineado por Kimberlé
Crenshaw en la década de 80. Se presentan aún las discusiones teóricas del concepto a partir de
esta feminista norteamericana, brasileñas y otras que colaboraron en el impulso teórico de la
interseccionalidad como sensibilidad analítica capaz de sacar de la invisibilidad a grupos
atravesados por diferentes prácticas de opresión. En esta discusión, se encuentra levantamiento
bibliográfico en el banco de tesis y disertaciones de la CAPES (Coordinación de
Perfeccionamiento de Personal de Nivel Superior) entre los de 2005 y 2015 con el descriptor
"interseccionalidad". Las investigaciones fueron analizadas en relación a la cantidad de
publicaciones por año, género y raza de los investigadores, y uso de la interseccionalidad en
diferentes contextos. En el marco de la discusión interseccional para el encarcelamiento masivo
de mujeres negras, se presenta un panorama de las prisiones femeninas, análisis instrumental de
indicadores del sistema penitenciario femenino y consideraciones sobre el Sistema prisionero
Femenino desde una perspectiva interseccional a partir de Angela Davis. Se evidencia la
potencialidad del concepto interseccional en la comprensión de vivencias que afectan a mujeres
negras y otros grupos marginados. Además, este concepto del feminismo negro surge como
esencial en la discusión de las opresiones de género y raza que alcanzan a la mujer en situación
de cárcel.
Palavras clave: Interseccionalidad; Encarcelamiento en massa de mujeres negras; Mujeres
Negras.
Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor
em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as
estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o
genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras.
Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado
com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o
poder do amor. O amor cura.
bell hooks
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Produções por ano ....................................................................................................... 72
Gráfico 2 - Produções Tese por Gênero ........................................................................................ 76
Gráfico 3 - Produções Dissertações por Gênero ............................................................................ 76
Gráfico 4 - Docentes doutores na pós-graduação .......................................................................... 80
Gráfico 5 - Produções por grandes áreas ....................................................................................... 84
Gráfico 6 - Homicídios de mulheres por raça.............................................................................. 124
Gráfico 7 - Presas por Etnia......................................................................................................... 142
Gráfico 8 - Perfil Racial Nacional ............................................................................................... 143
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Encontros de Mulheres e Feministas Brasileiros e Latino-Americanos ...................... 34
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Vias de intersecção Crenshaw ...................................................................................... 56
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 27
O projeto de doutorado/ Divisão do estudo ....................................................................... 27
APRESENTAÇÃO E TRAJETÓRIA
i) Trajetória
1
Cada vez que retomava as escritas desta introdução refazia algum trecho de forma diferente, ainda que se tratasse
sobretudo de uma narração da minha trajetória. Teorizava não só o que escrevia, mas também o que vivia e o modo
de perceber o que vivi.
16
convivências fizeram com que eu não tivesse quase nenhuma referência de negritude e, além
disso, meu pai também não se “percebia” como negro. Ele me conta que somente com meu
interesse pela temática racial e com as discussões que eu levava do âmbito acadêmico para a
esfera familiar foi que ele se reconheceu como negro, compreendendo assim com mais clareza
sua posição nos lugares que vivenciava.
Antes disso, meu pai estava, assim como eu estive, vendado na percepção da atuação do
mito da democracia racial e do discurso da mestiçagem em nossas vivências – sem acesso à
convivências e conhecimentos que me permitissem identificação racial.
É processual e penso que seja também progressiva a tomada de consciência sobre minha
identidade de mulher negra. Quando analiso minha identificação tardia com minhas origens,
compreendo o conflito de ser mestiça em um país que faz uso do racismo disfarçado para manter
a exploração e opressão, “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas
tornar-se negra é uma conquista” (GONZALEZ, 1988, p. 2).
Os pensamentos da infância e adolescência eram sobre minha não escolha em ser negra e
um processo de autoenganação de que eu poderia escolher afirmar ou negar minha negritude na
sociedade. Eu vivia em espaços brancos e ainda que tenha pele escura, meu nariz é fino e meu
cabelo, crespo, quando natural forma cachos, o que me renderam elogios como: “ela é negra, mas
é tão bonita”. A questão é que meus privilégios econômicos e o meu tom de pele e traços
embranquecidos me “beneficiaram” na ilusão de que ser negra pudesse ser uma escolha.
Neste processo de falta de identificação, meus modelos eram brancos e por isso sempre
idealizei cabelos lisos. Desde os nove anos fiz uso de produtos químicos capilares que me atraíam
por qualquer ligação com a palavra “alisamento”. Não importava o que fosse nem o dano que
pudesse causar à saúde dos meus fios e do meu corpo: tioglicolato de amônio, amônia e formol
me mantiveram longe das raízes que eu temia tanto em negar.
Quando ingressei na UFSCar em 2008 o contato com o espaço, o público e a teoria
acadêmica me tiraram da minha zona de conforto. Eu já não era a única negra, existiam pessoas
que afirmavam a negritude nos meus espaços de convívio e eu era levada a problematizar algo
que estava silenciado: eu era negra?
Soa estúpido repetir esta pergunta nos meus dias de hoje, mas não o foi no final da
graduação quando tive minhas primeiras aproximações com leituras sobre raça e racismo no
contexto escolar em uma disciplina com a Profa. Dra. Roseli Rodrigues de Mello. No final da
17
aula sentei para conversar com uma das amigas mais próximas da sala, Vanessa, e rimos, em um
misto de descoberta e desespero, quando percebemos que tínhamos nos encontrados naqueles
relatos de racismo de crianças em fase escolar, algo que também havíamos vivenciados, mas que
nunca nos foi apresentado como tal.
Percebi que ser negra não era uma escolha e sim uma condição. Encontrei nessa condição
caminhos para a afirmação e para o amor-próprio. Percebia algo imutável e que não queria
mudar, e na impossibilidade eminente em se lutar contra o que se é, e no desejo latente de ser o
que eu era, ainda que com curtos passos, decidi me engajar na militância dos movimentos pelos
meus pares.
Instigada por este primeiro contato com a temática racial, realizei inscrição na disciplina,
ainda optativa para minha grade curricular, “Didática das relações étnico-raciais”, da Profa. Dra.
Sonia Stella Araújo Oliveira. A discussão central era a partir do filósofo argentino e um dos
maiores expoentes pensadores da filosofia da libertação, Enrique Dussel, sobre eurocentrismo e a
criação da categoria outro como aquela que não surge naturalmente no percurso da história de
construção das sociedades, e sim faz parte de um processo ideológico de poder.
Compreendi as teorias raciais na perspectiva de autores latino-americanos, e tive contato
com uma obra de Nilma Lino Gomes que me despertou um interesse imediato pelas discussões
sobre o significado da estética no campo das relações étnico-raciais.
Finalizei a graduação e tive meu projeto de mestrado aprovado em 2012, no
PPGE/UFSCar, na linha Práticas Sociais e Processos Educativos. O estudo materializado em
dissertação com o título “Mulheres negras e seus cabelos: um estudo sobre questões estéticas e
identitárias” trazia como objetivo compreender de que forma o cabelo marca a construção de
identidade na trajetória de vida da mulher negra. Tratou-se de uma pesquisa de campo, tendo
como instrumentos metodológicos a observação com registros em diários de campo, entrevistas e
uma roda de conversa.
O processo de mestrado é substancial no que me fundamenta como pesquisadora. A
escolha pela temática racial com foco na estética de mulheres negras poderia ser sobre mim, mas
eu não me via como uma das minhas colaboradoras de pesquisa. Foi somente com os estudos
teóricos aplicados nas falas destas mulheres que me percebi como elas, e assim compreendi que o
estudo também era uma autodescoberta.
18
Entendi o que era pesquisar sobre uma realidade social que me atingia, e me permiti um
novo modo de ver/entender e agir na sociedade – desde então, realizar pesquisa acadêmica tem
corroborado no meu processo de autotransformação e na tentativa de colaborar para as práticas
que visam a transformação da sociedade a partir da ruptura de suas desigualdades e injustiças.
Na pesquisa contei com cinco colaboradoras negras que adotavam diferentes formas de
manipulação de seus cabelos (alisado, trançado, natural); seus nomes: Irene, Dandara, Jéssica,
Monalisa e Thulany. Nos encontros realizamos entrevistas semiestruturadas para compreender as
relações que estas estabeleciam com seus cabelos desde a infância.
Além destas colaboradoras, entrevistei também Silas Dias, cabelereiro e proprietário do
salão Raízes Black Power2, um dos poucos identificados na época da pesquisa voltado
especificamente para os cuidados de cabelos crespos e cacheados na cidade de São Carlos/SP. As
vivências neste salão me permitiram compreender aquele espaço como possibilidade de cuidado,
valorização e exaltação da beleza negra. As conversas e os estudos que vinha realizando me
ensinavam sobre as diferentes histórias dos cabelos – o cabelo como símbolo de resistência e
ancestralidade.
Encorajada por estas experiências bem como pelos estudos da obra “Sem perder a raiz:
corpo e cabelo como símbolos da identidade negra”, de Nilma Lino Gomes (2008)3, a dissertação
de mestrado de Aline Lemos da Cunha (2005)4 serviu como inspiração teórica e metodológica, e
tantas outras leituras me inspiraram e motivaram para percorrer o processo político de transição
do cabelo alisado para o cabelo natural. O cabelo, enquanto símbolo estético que permeia
processos políticos, evidencia a ligação com histórias de luta e resistência de nós, mulheres
negras.
Os resultados da pesquisa de mestrado apresentados na dissertação defendida em 2016
desvelaram experiências do racismo que ultrapassavam as discriminações em relação à estética
da mulher negra. Os focos de discussão, estabelecidos após as entrevistas, levaram ao debate a
infância da menina negra, as relações familiares, o contexto escolar e de trabalho e também a
2
Localizado na cidade de São Carlos/SP.
3
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
4
CUNHA, Aline Lemos da. Narrativas entrelaçadas: conversando sobre leituras e lembranças de escola com
mulheres que se “encontram” em um Salão de Beleza de Cultura Afro. 2005. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, 2005.
19
5
Discussões realizadas por Gonzalez (1988).
20
Senti-me intrigada nas primeiras aproximações com pessoas que não só estudavam os
espaços prisionais como também eram atuantes dentro deles. A possibilidade de vivenciar os
estudos e práticas do grupo me fez pensar na premência de educadores/as se dedicarem a
diferentes espaços, principalmente aqueles marginalizados e invisibilizados nas pesquisas
acadêmicas.
Com a participação neste grupo, iniciei em 2013 uma atividade específica junto ao
PROEXT (Projeto de Extensão) “Formação de Educadores e Gestores Educacionais para atuar
nas unidades prisionais paulistas”, em parceria como a Secretaria de Estado da Educação (SEE),
Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) e a Fundação Dr. Manoel Pedro Pimentel
(FUNAP). O objetivo central deste projeto foi contribuir com a formação de educadores/as que
atuam no contexto prisional com vistas a promover alguns avanços nas práticas educativas que
acontecem nesses espaços.
Dentre as metodologias adotadas para alcançar este objetivo contamos com a realização
de Encontros Regionais para discutir diversas temáticas. Em um destes encontros fui mediadora
de uma mesa redonda com a temática “Diversidade e questões étnico-raciais no contexto
prisional”, e foi o momento que marcou o início das minhas reflexões sobre a relação entre
questões étnico-raciais e contextos de privação e restrição de liberdade. A discussão e reflexão
desta mesa foram esclarecedoras e despertaram atenção do público participante, composto por
educadoras e educadores que atuavam no sistema prisional e que demonstraram grande interesse
de aprofundamento pelas questões raciais.
As palestrantes responsáveis, Profa. Dra. Maria Walburga dos Santos e Profa. Dra.
Tatiana Cosentino Rodrigues, provocavam duas questões centrais sendo a primeira sobre a
população encarcerada formada majoritariamente por negros, e a segunda sobre a carência de
estudos e pesquisas que discutiam esta realidade. A palestra foi como um gatilho para a criação
de um projeto de doutorado que fosse capaz de explorar duas questões que me envolviam: cárcere
e mulheres negras.
Neste transitar pelo tempo de doutorado tive a oportunidade de experienciar outro espaço.
Desde o mestrado tive a curiosidade de sair do país e de complexificar os olhares a partir de
outras vistas. Em 2017 tive a oportunidade de ser bolsista CAPES no Programa de
21
6
Estabelecido por meio de parceria entre a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão do Ministério da Educação (Secadi/MEC) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).
7
O NEAB/UFSCar estabeleceu projetos conjuntos de pesquisa com as instituições Universidad Distrital Francisco
José de Caldas (Colômbia), Geogia State University (EUA) e Université Paris Ouest Nanterre La Défense (França).
8
Portaria do MEC Nº 1.129, de 17 de novembro de 2013.
9
Centro de Excelência em Ensino e Aprendizagem (CETL) da GSU, Colégio de Educação e Desenvolvimento
Humano (CEHD), Departamento de Estudos de Políticas Educativas, Alonzo Crim Center (Educação Urbana) e o
Dean’s Office-School, Southern Education Foundation (SEF)
22
O grupo de docentes era bastante heterogêneo10; Dra. King era responsável pela
disciplina, mas as aulas eram ministradas por professores e professoras de diversas áreas, o que
evidenciou que com uma temática geral podemos nos aproximar a diversas áreas de
conhecimento – compreendo como um caminho para não nos limitarmos a disciplinas específicas
para discutir as injustiças sociais e trilhar percursos para mudança.
O tema central era justiça social e sucesso do estudante – não se trata, então, de uma
disciplina voltada especificamente para a questão racial, embora esta perpasse por todo o
discurso. Tal postura metodológica se aproxima das reflexões interseccionais que são discutidas
nesta pesquisa, ao não hierarquizar as opressões, e alicerçar uma disciplina pautada nas esferas de
dominação que atingem alunos da GSU, impedindo o sucesso estudantil e a justiça social.
Quando Dra. King convida especialistas de diversas áreas, possibilitando
compartilhamento de espaço e ideias com alunos, funcionários e professores sobre o que é justiça
social bem como sucesso estudantil, revela-se a necessidade de mudarmos a visão sobre os
conteúdos que utilizados e também sobre as formas que discutimos as opressões sociais. Na
disciplina, referenciou-se inúmeras vezes, como analogia, ao caleidoscópio, para
compreendermos que para sermos mais inclusivos e termos uma educação libertadora precisamos
renovar constantemente nossos olhares.
Como proposta de trabalho, que amplia as possibilidades de discussão do papel da
universidade para justiça social, a referida disciplina discute a aplicação da pesquisa participativa
(PAR), que permite aos estudantes uma análise crítica do significado de justiça social e o sucesso
dos alunos na GSU.
Os alunos selecionarão um foco de pesquisa, realizarão um projeto piloto de
pesquisa participativa orientado a ação e você aprenderá como aplicar pesquisa
de qualidade para sua comunidade mais ampla. Os projetos de pesquisa de classe
serão conduzidos como um estudo PAR piloto com orientação de um
patrocinador da Faculdade e com o envolvimento de um “Parceiro de
Aprendizagem Comunitário”. Os projetos de pesquisa de classe serão
combinados e arquivados em formato digital como parte do Museu Vivo on-line
do curso. Este curso foi concebido para estudantes interessados em advocacia,
10
Os responsáveis da universidade e os palestrantes convidados eram: Dr. James Ainsworth (Sociologia), Dr.
Makungu Akinyela (Estudo afro-americanos), Dr. Amanda Assalone (Southern Education Foundation), Dr. Jonathan
Gayles (Estudo afro-americanos), Dr. Janice Fournillier (Estudos de políticas educacionais/ métodos de pesquisa),
Dr. Dhanfu E. Elston (Complete College America), Dr. Carmen Kynard (English Department John Jay College,
CUNY), Dr. Gholnescar “Gholdy” Muhammad (Middle/Secondary Education), Dr. Timothy Renick (Vice
Provost/Vice President for Enrollment Management & Student Success), Dr. Akinyele Umoja Chairman (African
American Studies), Dra. Angela Valenzuela (Univ. of Texas, Austin), Dra. Joyce King e Dra. Valora Richardson.
23
11
Disponibilizado na plataforma do Youtube.
12
O conhecimento sobre prisão brasileira na promoção da justiça social e sucesso do estudante (traduzido pela
autora).
13
“Se eu não me definisse para mim mesmo, eu seria crucificado nas fantasias de outras pessoas para mim e comido
vivo” (traduzido pela autora).
24
Quando Lorde (1984) problematiza que ao permitir que outros nos definam corremos o
risco de sermos crucificados nas fantasias de alguém, surge a necessidade de reconhecermos o
que foi exaustivamente discutido na disciplina: a história por trás da história.
A necessidade de se perceber que sempre existe uma história por detrás da história que
nos é narrada surgiu a partir dos dados que trazem a GSU como a faculdade que mais gradua
estudantes negros em todos os Estados Unidos.
De 2003 a 2015, de acordo com a universidade, sua taxa de graduação para estudantes
afro-americanos aumentou de 29% para 57%. Para estudantes hispânicos, passou de 22% para
54%. Em 2014, para estudantes de baixa renda (aqueles que são elegíveis para uma doação
federal de Pell), atingiu 51% – quase o mesmo que para estudantes não-Pell. Sua taxa de
graduação para estudantes de primeira geração aumentou 32% entre 2010 e 2014. E a GSU
aumentou essas porcentagens ao mesmo tempo em que aumentou em 10% o número de
estudantes negros, hispânicos e de baixa renda (GSU, 2017).
O questionamento que permeou as discussões na disciplina se relacionava ao que estes
dados significavam de fato – se o ingresso de estudantes negros garantia, por si só, uma
universidade mais inclusiva que permitisse o sucesso de seus estudantes, ou se outras ações eram
necessárias.
O que se evidenciou ao longo dos encontros, e que se apresenta nesta pesquisa, é a
impossibilidade de se pensar em sucesso estudantil enquanto não houver comprometimento
acadêmico com a justiça social. Neste caminho, o vídeo desenvolvido para a disciplina trouxe a
impossibilidade de pensar em justiça social, quando se invisibiliza qualquer população ou grupo,
dentro os quais destacamos a população carcerária brasileira que possui taxas de aumento
constante. A participação na disciplina corroborou para situar esta pesquisa na sua importância no
campo educacional.
A segunda experiência que tive durante o intercâmbio, que favoreceu a construção desta
tese, foi o trabalho14 em parceria com a Profa. Dr. Aisha Kareem.
O contato com esta professora fez da experiência nos EUA ainda mais sólida. Para
apresentar esta militante negra que inspira a produção desta pesquisa, apresenta-se trajetória
escrita por ela mesma.
14
Anexo 1.
25
15
Cheauvon L. Brown é formada em Direito e defende a justiça restauradora, social e criminal em eventos comuns
da comunidade e do estado da Califórnia-EUA. Ela também é fundadora e diretora executiva da Golden Blessings
Ministries, Inc. e de seu “WEM” (Women's Empowerment Movement), que organiza eventos e workshops para
ajudar a curar, educar e dar voz às mulheres por seus testemunhos de violência doméstica e abuso. Cheauvon é
apaixonado por curar, restaurar e transformar a vida das mulheres em nossa sociedade (Dados fornecidos por ela para
a apresentação no Annual Muslim Chaplain Training, 2017).
16
A modalidade prisional “Centro de Ressocialização” (CR), instituída pelo Governo do Estado de São Paulo em
2000, que prevê a unidade administrada mediante parceria entre o Estado e uma ONG, consiste em si em uma prática
funcional, haja vista os resultados positivos expressos pelo baixo índice de reincidência, sete vezes e meio menor que
o do sistema prisional tradicional (Ministério da Justiça e DEPEN, 2009).
17
O Campus Avançado da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) instalado dentro do presídio do Serrotão, em
Campina Grande, foi inaugurado em 2013. Experiência inédita no Brasil, o Campus Avançado aponta a educação e a
cultura como instrumentos de ressocialização do apenado, desenvolvendo atividades acadêmicas, pedagógicas e
culturais.
26
Tais dados foram acrescidos de material fornecido pela Dr. Kareem, que continham os
números da população carcerária feminina dos Estados Unidos, recortes do CWSC Resolution on
Criminal Justice and Drug Policy Reform e reflexões a partir de fundamentos da religião
islâmica.
Com o compartilhamento de boas práticas, o objetivo da apresentação foi oferecer
melhores condições para mulheres encarceradas. A carta de agradecimento recebida do Muslim
American Chaplains Association sobre este vídeo apontou que o esforço conjunto forneceu aos
capelães melhores práticas informadas, permitindo às mulheres encarceradas uma reentrada bem-
sucedida na sociedade.
A possibilidade de discussão com uma pesquisadora norte-americana sobre o
encarceramento em massa de mulheres nos EUA e Brasil permitiu entender que não se trata de
realidades tão diferentes, e que a troca de informações é um rico caminho para a transformação
deste cenário.
Desta forma, estas duas experiências foram fundamentais para a produção desta tese, pois
permitiram o desvelamento da importância da presente pesquisa no campo educacional e também
compreensão de que diálogos entre realidades distintas é positiva na construção de conhecimento.
27
INTRODUÇÃO
O projeto inicial enviado para ingresso no doutorado trazia como objetivo desvelar quais
eram os impactos das identidades de raça e gênero na vivência de mulheres encarceradas.
Tratava-se de um estudo de campo que teria como instrumento metodológico entrevistas com
mulheres em situação de cárcere.
Na tentativa de se definir descritores para a pesquisa bibliográfica da pesquisa, utilizando
os termos “mulher”, “negra” e “prisão”, os resultados eram bastante escassos, mas estes se
tornavam mais numerosos ao se inserir como busca “mulher” e “prisão” ou “prisão” e “negros”.
Esta busca inicial evidenciou uma possível lacuna nos estudos que traziam simultaneamente
gênero e raça no sistema prisional.
Aliado a isso, na etapa inicial do doutorado com participação nas disciplinas e leituras
para fundamentação teórica do projeto, foi possível ter contato não só com os autores/as
apresentados/as pelo programa como também com outras leituras, que trouxeram o interesse de
redesenhar o projeto inicial.
Houve então aproximação com o movimento feminista negro e as leituras advindas deste
movimento que trouxeram a interseccionalidade como conceito primordial na discussão de
identidades que se sobrepõe em contextos marcados por violência. Partindo da necessidade de
maior dedicação sobre este conceito, houve a opção por uma pesquisa teórica em detrimento à
pesquisa de campo, que se apresentava no projeto inicial.
Desta forma, o que aqui se apresenta é um estudo teórico que estrutura-se em ao menos
três aspectos que se interligam: a) compreensão do conceito de interseccionalidade dentro do
movimento que o origina, o Feminismo Negro; b) levantamento bibliográfico em banco de
dissertações e teses sobre a perspectiva interseccional para se compreender a recepção do
conceito por pesquisadoras/es brasileiras/os; c) reflexões sobre o sistema prisional feminino a
partir de documentos indicadores e de pesquisas na perspectiva interseccional.
Buscou-se responder duas questões centrais:
Quais os avanços da interseccionalidade nas pesquisas brasileiras entre os anos de 2005
e 2015?
28
18
O Banco de Teses da CAPES é o sistema online oficial do governo brasileiro para depósito de teses e dissertações
brasileiras, vinculado ao Ministério da Educação (MEC).
29
1. Feminismo Negro
inserção das opressões raciais que não poderiam ser combatidas em um movimento alheio à luta
contra opressões de gênero.
Em uma visão difundida, tem-se a constituição do que posteriormente seria chamado de
feminismo, à luta pelo sufrágio no contexto da Inglaterra do século XIX. Ao se considerar o
contexto social da Inglaterra neste período é possível compreender que:
Foi a percepção da sua ‘igualdade cristã’ que levou as mulheres a se
consciencializarem da sua desigualdade civil: se como cristãs tinham ‘almas
iguais’, como cidadãs deveriam ser, tal como os homens, também detentoras de
direitos naturais e inalienáveis. Foi esse despertar de consciência cívica que
dotou as mulheres dessa geração revolucionária do estímulo e coragem
suficientes para intervirem no domínio público, desafiarem as autoridades civis e
eclesiásticas, desobedecerem ao pai, irmão ou marido, escreverem, publicarem e
expressarem publicamente e de viva voz as suas crenças e opiniões, de teor
político, civil e teológico (ABREU, 2002, p. 451).
Tanto o movimento feminista quanto o abolicionista surgem em uma tradição cultural e
corrente ideológica advinda do desenvolvimento do pensamento teológico, filosófico e
constitucional britânico, sobretudo durante o período entre a Reforma da Igreja do século XVI e a
Revolução de Independência da América, que ocorreu em 1776 (ABREU, 2002).
Foi nos movimentos anarquistas e socialistas, e nas organizações sindicais que
surgiram na Grã-Bretanha durante o século XIX que as mulheres britânicas
recuperaram a experiência de mobilização, organização e activismo público
legada pelas suas precursoras seiscentistas – as levellers –, cuja militância
política em defesa das suas crenças, ideais e liberdades no período
revolucionário de meados do século XVII foi notável (ABREU, 2002, p. 453).
Denominada “primeira onda do feminismo”, esta etapa tem como marco a luta das
mulheres a fim de conquistar o direito de participar das decisões políticas, acesso à educação e
mais igualdade no casamento. Nesta época não havia o objetivo de se discutir a divisão sexual
dos papéis de gênero; as pautas do movimento “inclusive reforçavam esses papéis, estereótipos e
tradições na medida em que utilizavam as ideias e representações das virtudes domésticas e
maternas como justificativa para suas demandas” (COSTA, 2005, p. 56).
Neste período o Brasil experenciava mudanças sociais, políticas e econômicas com o fim
do sistema monárquico e a implantação do Regime Republicano. A urbanização do país se
acarretava em uma integração da mulher ao mundo do trabalho e do interesse delas por mais
acesso a espaços tido apenas como masculinos, dentre eles, a política. O movimento brasileiro
recebeu influências de movimentos sufragistas realizados, sobretudo, na Europa e nos Estados
Unidos.
32
19
Célia Regina Pinto (2010) narra que a liderança das sufragistas brasileiras estava por conta de Bertha Lutz,
bióloga, que estudou no exterior e voltou para o Brasil na década de 1910, iniciando a luta pelo voto.
33
20
As informações foram coletadas por Claudia Ferreira e Claudia Bonan (2015) e estão disponíveis em um site que
objetiva a criação de um banco de imagens eletrônico, como acervo documental e de memória fotográfica dos
movimentos de mulheres.
35
21
Do movimento feminista e do movimento negro.
37
atribuídas aos homens, como castigo e mutilações, como também a todas as formas de coação
sexual.
Mesmo após a abolição da escravatura e a ascensão do “trabalho livre”, há uma
reconfiguração das formas de opressão de classe, sexo e raça que consolida a dominação
capitalista, destinando trabalhos e ideologias específicas a grupos que de quem exerce e de quem
sofre a opressão.
O pós-abolição não é diferente e se caracteriza pelo trabalho de mulheres negras na
agricultura e no serviço doméstico, de mulheres brancas pobres em fábricas, e de mulheres
burguesas de classe média na dedicação da “nobre missão” de “ser mãe e dona de casa” – é a
mulher negra quem fica sujeita a condições de exploração extremas e perpetuadoras de práticas
de violência (como o abuso sexual por parte dos patrões).
Outra feminista negra estadunidense que merece ressalva é bell hooks22, com uma teoria
importante para a compreensão do “patriarcado capitalista de supremacia branco” que estrutura a
sociedade. A autora trabalha com o sexismo, enquanto sistema de dominação, que apesar de ser
institucionalizado nunca determinou de forma absoluta o destino de todas as mulheres nesta
sociedade. Ao analisar as motivações das mulheres brancas, muitas vezes com acesso a estudo,
privilégios materiais e uma variedade de opções de profissão e de estilo de vida é possível se
questionar quando estas mulheres dizem que “o sofrimento não pode ser medido”:
Ser oprimida significa ausência de opções. É o principal ponto de contato entre o
oprimido (a) e o opressor (a). Muitas mulheres nesta sociedade têm escolhas
(por mais inadequadas que possam ser); portanto, exploração e discriminação
são palavras que descrevem com mais precisão a sorte coletiva das mulheres nos
Estados Unidos (HOOKS, 2015, p. 197).
A autora explica que muitas mulheres não participam da resistência organizada contra o
sexismo porque o sexismo não tem o significado de absoluta falta de opções.
Elas podem saber que são discriminadas em função de sexo, mas não equiparam
isso a opressão. No capitalismo, o patriarcado é estruturado de forma que o
sexismo restrinja o comportamento das mulheres em algumas esferas, mesmo
que, em outras, haja liberdade em relação a limitações. A ausência de restrições
extremas leva muitas mulheres a ignorar as áreas em que são exploradas ou
discriminadas e pode até levá-las a imaginar que as mulheres não são oprimidas
(idem, 2015, p. 198).
22
Nascida em 25 de setembro de 1952 em Hopkinsville, nos Estados Unidos, Gloria Jean Watkins é conhecida pelo
pseudônimo bell hooks, que escrito em minúsculas reforça que suas ideias vêm em primeiro lugar, antes de seu nome
e identidade pessoal.
40
Questiona-se então, o cânone do pensamento feminista moderno que afirma que “todas as
mulheres são oprimidas”:
Essa afirmação sugere que as mulheres compartilham a mesma sina, que fatores
como classe, raça, religião, preferência sexual etc. não criam uma diversidade de
experiências que determina até que ponto o sexismo será uma força opressiva na
vida de cada mulher. O sexismo, como sistema de dominação, é
institucionalizado, mas nunca determinou de forma absoluta o destino de todas
as mulheres nesta sociedade (ibidem, 2015, p. 197).
Hooks (2015) pontua que os sentimentos que feministas compartilhavam no início do
movimento não se sustentaram. Algumas mulheres alcançaram ganhos com o movimento
feminista por igualdade no mercado de trabalho, mas o oportunismo individual prejudicou os
apelos à luta coletiva. Desta forma, o feminismo rotula mulheres que não se opunham ao
patriarcado, ao capitalismo, ao classismo e ao racismo. O lapso que se promove neste tipo de
ideologia constitui o seu viés racista e classista, pois a ideia de mulher veiculada pelo mito da
feminilidade não incluía nem as escravas do regime escravagista.
A autora evidencia que os problemas e dilemas específicos de donas de casa brancas da
classe privilegiada, apesar de serem preocupações reais e importantes, não eram a pauta das
políticas urgentes da maioria das mulheres, mais preocupadas com a sobrevivência econômica, a
discriminação étnica e racial etc. O surgimento do movimento feminista negro se marca pela
ausência da discussão sobre o impacto do sexismo sobre o estatuto social das mulheres negras.
Ao denunciar o poder patriarcal que os homens utilizavam para dominar as mulheres, as
feministas brancas não demonstraram esforços em “enfatizar que o poder patriarcal, o poder que
os homens usam para dominar as mulheres, não é apenas um privilégio das classes altas e médias
dos homens brancos, mas um privilégio de todos os homens na sociedade sem olhar a classe ou a
raça” (HOOKS, 2015, p. 64). A autora continua, afirmando que:
As feministas brancas tão focadas na disparidade no estatuto económico entre os
homens brancos/mulheres brancas, tiveram uma indicação do impacto negativo
do sexismo que elas traçavam e não deram nenhuma atenção ao facto de os
homens das classes mais baixas e pobres serem tão capazes de oprimir e
brutalizar as mulheres como qualquer outro grupo de homens na sociedade
americana. A tendência feminista de fazer sinónimo da possessão do poder
económico masculino ser opressor, fez o homem branco ser rotulado como “o”
inimigo. A rotulação do homem branco patriarca como “porco chauvinista”
proveu um conveniente bode expiatório para os homens negros sexistas. Eles
podiam juntar-se às mulheres brancas e negras para protestar contra a opressão
masculina e desviar a atenção do seu sexismo, o seu apoio ao patriarcado e a sua
exploração sexista das mulheres (HOOKS, 2015, p. 64).
41
O que se acentua é que pessoas oprimidas sabem de sua opressão, ainda que não se
envolvam em resistência organizada ou não consigam formular por escrito a natureza de sua
opressão. Hooks (2015) auxilia a compreender o movimento de mulheres negras a partir da
limitação do feminismo ao lutar pelo fim da opressão das mulheres.
O fato de que nós, mulheres negras, não nos organizamos coletivamente, em
grande número, em torno das questões do “feminismo” (muitas de nós nem
conhecem ou usam o termo), ou de que não tivemos acesso aos mecanismos de
poder que nos permitiriam compartilhar nossas análises ou teorias sobre gênero
com o público norte-americano, não negam sua presença na nossa vida e nem
nos colocam em uma posição de dependência em relação às feministas brancas e
não brancas que falam a um público maior (HOOKS, 2015, p. 203).
Haveria então, atuação de estereótipos racistas na mente de mulheres feministas, que por
acreditarem na mulher negra enquanto supermulher, as permitem ignorar nos discursos de
vitimização da sociedade.
No Brasil, tem-se destaque Lélia Gonzalez, feminista negra importante para formulações
teóricas na especificidade do contexto que aqui se tem.
A pensadora e feminista negra Lélia Gonzalez nos dá uma perspectiva muito
interessante sobre esse tema, porque criticava a hierarquização de saberes como
produto da classificação racial da população. Ou seja, reconhecendo a equação:
quem possui o privilégio social possui o privilégio epistêmico, uma vez que o
modelo valorizado e universal de ciência é branco (RIBEIRO, 2018, p. 24).
Em seu artigo “Por um feminismo Afrolatinoamericano”, Gonzalez (1988) discute como o
sistema patriarcal-racista suprime a humanidade das mulheres negras ao lhes negar o direito de
ser sujeito de seu próprio discurso e de sua própria história.
A autora destaca o fundamental papel do feminismo em suas lutas e conquistas, que
trouxe novos questionamentos, estimulou a formação de grupos e redes e desenvolveu a busca de
uma nova forma de ser mulher.
Ao centralizar suas análises em torno do conceito do capitalismo patriarcal (ou
patriarcado capitalista), evidenciou as bases materiais e simbólicas da opressão
das mulheres, o que constitui uma contribuição de crucial importância para o
encaminhamento das nossas lutas como movimento[...]. O extremismo
estabelecido pelo feminismo fez irreversível a busca de um modelo alternativo
de sociedade. Graças a sua produção teórica e a sua ação como movimento, o
mundo não foi mais o mesmo (GONZALEZ, 1988b, p. 13).
Nessas lutas evidencia-se que o feminismo trouxe contribuições fundamentais para a
discussão da discriminação pela orientação sexual, mas que o mesmo não ocorre “com outros
tipos de discriminação, tão grave como a sofrida pela mulher: a de caráter racial” (GONZALEZ,
1988b, p. 13).
43
Evidencia-se também a partir desta autora que o feminismo não está ileso do racismo, e
que contribui para sua reprodução e manutenção quando se pauta na mulher enquanto sujeito
universal abstrato.
Discute-se, então, que tanto o racismo quanto o feminismo
[...] partem das diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de
dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este “esquecimento” por
parte do feminismo? A resposta, na nossa opinião, está no que alguns cientistas
sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes, dizemos nós, se
encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e neo-colonialista da realidade
(GONZALEZ, 1988b, p. 13).
A autora parte das categorias de infante e de sujeito-suposto-saber do pensamento
lacaniano que ajuda. A articulação desta categoria permite compreender o tema da alienação.
A primeira designa a aquele que não é sujeito do seu próprio discurso, a medida
em que é falado pelos outros. O conceito de infante se constitui a partir de uma
análise da formação psíquica da criança que, ao ser falado pelos adultos na
terceira pessoa, é, consequentemente, excluída, ignorada, colocada como ausente
apesar da sua presença; reproduz então esse discurso e fala em si em terceira
pessoa (até o momento em que aprende a trocar os pronomes pessoais)
(GONZALEZ, 1988b, p. 13-14).
Compreende-se então que mulheres negras foram definidas e classificadas por um sistema
ideológico de dominação que visa a infantilização. Situadas em uma hierarquia, apoiadas em
condições biológicas de sexo e raça, mulheres negras são omitidas de suas humanidades, pois têm
negado seus direitos de dizer seu próprio discurso e contar sua própria história (GONZALEZ,
1998b).
É desnecessário dizer que com todas essas características, nos estamos referindo
ao sistema patriarcal-racista. Consequentemente, o feminismo coerente consigo
mesmo não pode dar ênfase a dimensão racial. Se assim o fizera, estaria
contraditoriamente aceitando e reproduzindo a infantilização desse sistema, e
isto é alienação (GONZALEZ, 1998b, p. 14).
Trata-se da necessidade de o feminismo latino-americano incluir o caráter multirracial e
pluricultural das sociedades dessa região. Desta forma, “falar da opressão da mulher latino-
americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade
vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não ser brancas”
(idem, 1988b, p. 14).
Conforme salientado pela autora, a conscientização da opressão sobre a realidade histórica
para mulheres “amefricanas” do Brasil e de outros países da região, e também para as
“ameríndias” ocorre, antes de qualquer coisa, a partir da exploração racial e discriminação de
44
classe, elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia
subordinada. De acordo com Gonzalez (1988b, p. 18), “foi dentro da comunidade escravizada
que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar
uma luta plurissecular de liberação”.
Válido também destaque para Sueli Carneiro (2003) que nomeia esta ação de superação a
um feminismo excludente, de “enegrecer o feminismo”, ou seja, designar a trajetória de mulheres
negras no interior do movimento feminista brasileiro. Esta proposta advém da compreensão de
que a unicidade de uma imagem de mulher cristalizada pela identidade branca e ocidental da
formulação clássica feminista é insuficiente em termos teóricos e práticos para a sociedade
multirracial e pluricultural. É preciso politizar as desigualdades de gênero considerando as
especificidades de grupos existentes dentro do grupo das mulheres – reconhecer as
especificidades acarreta na luta por demandas específicas.
Portanto, para nós se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja
uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que
não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em
uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres, deve enfrentar
virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é
possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades
multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-
americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre
as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero
em nossas sociedades (CARNEIRO, 2003, p. 50).
Carneiro (2003) denuncia a relação de coisificação da mulher negra na sociedade como
reflexo de seu passado, quando servia às “frágeis sinhazinhas” e eram vítimas dos abusos dos
senhores de engenho – esse contexto se reflete em uma relação que não parece ter sofrido grandes
rupturas já que mulheres negras são “hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e
dondocas, ou de mulatas tipo exportação” (idem, 2003, p. 49-50).
A autora questiona a quem se refere o mito da fragilidade feminina, justificativa histórica
para a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres. Mulheres negras, que nunca foram
tratadas como frágeis, não reconhecem este mito.
Evidencia-se então que o racismo rebaixa o status dos gêneros – “o racismo superlativa os
gêneros por meio de privilégios que advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos.
Institui para os gêneros hegemônicos padrões que seriam inalcançáveis em uma competição
igualitária” (CARNEIRO, 2003, p. 3).
Os estudos na perspectiva de estudiosas negras evidenciam os limites e a fragilidade da
ação política de mulheres brancas quando não apresentam elementos de consciência sobre a
supremacia branca e as consequências disso na vida de uma mulher negra.
Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos
poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de
um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas
como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a
mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para
homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para
que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais
os anúncios de emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”
(CARNEIRO, 2003, p. 2).
Com Carneiro (2003), compreende-se o surgimento do feminismo negro a partir da
perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica que não se separa de outros
eixos de opressão exigindo, assim, análises múltiplas. Desta forma, o feminismo negro se
constrói no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas, tendo como principal
eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero.
Desta forma, o racismo é determinante na própria hierarquia de gênero.
O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população
em geral e das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de
divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres
brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de
gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista
e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão
de gênero na sociedade brasileira (CARNEIRO, 2002, p. 3).
Deste modo, percebe-se que houve uma grande movimentação para que mulheres negras
no Brasil tivessem suas demandas atendidas e conseguissem se fortalecer nos debates de gênero
com a formulação do feminismo negro – esse novo olhar feminista e antirracista possibilita uma
renovação da identidade política da mulher negra (CARNEIRO, 2002). Evidencia-se também a
influência das teorias norte-americanas que se mostraram férteis para o contexto brasileiro. As
discussões sobre a marginalidade de mulheres negras vão se construindo em um intercâmbio e se
mostrando cada vez mais presentes nas pautas de gênero e raça.
46
2. O CONCEITO DE INTERSECCIONALIDADE
Sojourner Truth23 é uma mulher importante na saga de intelectuais negras que ainda que
não tenham produzido uma obra escrita, marcaram um período histórico na defesa pelos
interesses e lutas das mulheres negras.
Truth foi uma mulher afro-americana escravizada e que após conquistar a liberdade, em
1827, tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. Ela utilizou seu corpo24 e sua voz para
confrontar as normas sociais e construir novas maneiras de existir, desafiando discursos racistas e
sexistas que desumanizavam as mulheres negras.
A participação de Sojourner Truth resistindo à hostilidade foi importante porque permitiu
representatividade de suas irmãs negras – escravas e livres:
[...] ela trouxe um espírito lutador à campanha dos direitos das mulheres. Este
foi o contributo único e histórico de Sojourner Truth. E no caso das mulheres
brancas esquecerem que as mulheres negras não são menos mulheres que elas, a
sua presença e o seu discurso serviu de constante recordação. As mulheres
negras também iam obter os seus direitos (DAVIS, 2016, p. 51).
O discurso “Eu não sou uma mulher25”, proferido por ela na I Convenção sobre os
Direitos das Mulheres em Akron, em 1852, apresenta características que permitem compreensões
sobre o caráter contra hegemônico das mulheres negras no contexto da escravidão e que podem
ser estendidas até os dias atuais.
Sozinha, Sojouner Truth salvou o encontro de mulheres de Akron das zombarias
disruptivas promovidas por homens hostis ao evento. De todas as mulheres que
compareceram à reunião, ela foi a única capaz de responder com agressividade
aos argumentos, baseados na supremacia masculina, dos ruidosos agitadores.
Com seu inegável carisma e suas poderosas habilidades como oradora, Sojouner
Truth derrubou as alegações de que a fraqueza feminina era incompatível com o
sufrágio (DAVIS, 2016, p. 70).
Isso porque, conforme apontado por Davis (2016), seu discurso se pautou em uma lógica
irrefutável e quando “o líder incompatível dos provocadores afirmou que era ridículo que as
mulheres desejassem votar, já que não podiam sequer pular uma poça ou embarcar em uma
23
Nascida em 1797 em um cativeiro em Swartekill, Nova Iorque, Isabella Baumfree adotou o nome de Sojouner
Truth a partir de 1843 (RIBEIRO, 2017).
24
Meredith Minister (2012) relata que Sojourner Truth tinha um corpo que, além de preto e feminino, era também
incapacitado, visto que carregava marcas de um acidente de trabalho que feriu sua mão. A autora problematiza que
embora a história desta importante mulher negra tenha sido explorada extensivamente a partir das perspectivas
exclusivas de raça, feminilidade e deficiência, a erudição está apenas começando a considerar as relações entre esses
estigmas. Isso reforça que a separação desses discursos em blocos separados de opressão não identifica como essas
opressões se perpetuam e sustentam. Explorar a relação entre estes três estigmas de debilidade, feminilidade e
alteridade racial no século XIX estabelece uma base para considerar como Sojourner Truth usou seu próprio corpo
para navegar entre esses estigmas.
25
Título original: Ain’t I A Woman.
49
carruagem sem a ajuda de um homem” (DAVIS, 2016, p. 71). Truth questionou quem era esta
mulher referida e proferiu:
Muito bem crianças, onde há muita algazarra alguma coisa está fora da ordem.
Eu acho que com essa mistura de negros do Sul e mulheres do Norte, todo
mundo falando sobre direitos, o homem branco vai entrar na linha rapidinho.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o
melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em
carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor
lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus
braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum
poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto
e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para
isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari 13 filhos e vi
a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha
dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? Daí eles
falam dessa coisa na cabeça; como eles chamam isso… [alguém da audiência
sussurra, “intelecto”). É isso querido. O que é que isso tem a ver com os direitos
das mulheres e dos negros? Se o meu copo não tem mais que um quarto, e o seu
está cheio, porque você me impediria de completar a minha medida? Daí aquele
homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que
o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o
seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com
isso. Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo
de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui
devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E
agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem
fazer o que elas querem. Agradecida a vocês por me escutarem, e agora a velha
Sojourner não tem mais nada a dizer (TRUTH, 2002, p. 47).
O discurso, feito de improviso, foi registrado pela feminista Frances Gages26. A partir dele
se tem dados para discutir a movimentação de mulheres deste período contra uma categoria
hegemônica do ser mulher – categoria pela qual mulheres negras estavam negadas. A interseção
da raça com o gênero surge como imperativo, trazendo nova significação ao termo mulher, que
em busca da liberdade não poderia lutar apenas contra o patriarcado, mas também contra outras
opressões que estivesse sujeita, neste caso, a opressão racista.
Ribeiro (2018) apresenta um poema de Truth no qual é possível perceber a crítica desta
ativista em relação a mulheres de classe social privilegiada que estavam à frente do movimento
feminista. No poema “On woman’ dress poem” a poeta diz “é melhor vocês reformarem a si
26
Frances Gages é uma das autoras de um importante material da primeira onda do feminismo “The history of
woman sufragge” (1881).
50
mesmas em primeiro lugar”, e essa estrofe “aponta para uma possível cegueira dessas mulheres
em relação às mulheres negras no que diz respeito à perpetuação do racismo e como, naquele
momento, esse fato não era considerado relevante como pauta feminista por elas” (RIBEIRO,
2017, p. 24).
Desta forma, “o que a voz de Sojouner traz, além de inquietações e necessidades de
existir, é evidenciar que as vozes esquecidas pelo feminismo hegemônico já falavam há muito
tempo. A questão a ser formulada é: por que demoraram tanto a serem ouvidas?” (RIBEIRO,
2017, p. 24).
Há também de se destacar a importante atuação de Sarah Grimké (1792-1873) e Angelina
Grimké (1805-1879), conhecidas como as irmãs Grimké, que também ligaram a questão da
escravatura à opressão das mulheres, promovendo discussão sobre a forma como as opressões se
interseccionam.
Sarah e Angelina não estavam preocupadas, pelo menos não o exprimiram – em
questionar a desigualdade social das mulheres. A sua principal prioridade era
expor a essência desumana e imoral do sistema da escravatura e
responsabilidade especial das mulheres na sua perpetuação. Mas quando a
supremacia masculina atacou-as, perceberam que enquanto não se defendessem
como mulheres – e os direitos das mulheres em geral – ficariam para sempre
impedidas de aceder à campanha de libertação dos escravos (DAVIS, 2016, p.
37-38).
Estas irmãs estavam profundamente envolvidas no movimento de abolição. Em 1836,
com a escrita do panfleto “Um apelo às mulheres cristãs do Sul”, elas lutaram contra a
escravidão. Em 1835, uma das irmãs, Angelina, escreveu uma carta de aprovação a William
Lloyd Garrison que posteriormente publicou em seu jornal abolicionista, The Liberator.
Os textos e as leituras destas duas espantosas irmãs foram entusiasticamente
recebidos por muitas mulheres que estavam ativas no movimento feminino
antiescravatura. Mas alguns dos homens líderes na campanha abolicionista
reclamaram que a questão dos direitos das mulheres confundiria e alienaria
aqueles que estavam apenas interessados em derrotar a escravatura (DAVIS,
2016, p. 38).
A partir de Davis (2016) é possível compreender a atuação e as produções destas irmãs
como percursoras da interseccionalidade, já que além de produzirem análises extensas do status
da mulher também denunciaram a isenção dos “homens líderes na campanha abolicionista, que
reclamaram que a questão dos direitos das mulheres confundiria e alienaria aqueles que estavam
apenas interessados em derrotar a escravatura” (DAVIS, 2016, p. 38). Na sequência, um trecho
de uma de suas cartas, apresentado por Davis (2016):
51
Um dia Bonaparte repreendeu uma senhora por se ocupar com política. “Senhor”
disse ela “num país onde as mulheres são colocadas para morrer, é muito natural
que as mulheres queriam saber os motivos disso”. E queridas irmãs, num país
onde as mulheres são degradadas e brutalizadas, onde são expostas ao sangue
humano debaixo do chicote – onde são vendidas, roubado os seus salários,
tiradas dos seus maridos, saqueadas da sua virtude e da sua descendência;
certamente nesse país é muito natural que as mulheres queiram saber a razão
porque – especialmente quando esses ultrajes de sangue e horrores sem nome
são praticados violando os princípios da nossa constituição (GRIMKÉ apud
DAVIS, 2016, p. 38).
Tem-se então nesta militância das irmãs Grimke um chamado para que as mulheres se
juntassem em uma tarefa urgente, compreendendo que a sua própria opressão se sustentava e
perpetuava na continuidade da existência do sistema da escravatura.
Davis (2016) discute que a consciência destas irmãs permitiu compreender a
inseparabilidade da luta da libertação dos negros e da luta da libertação das mulheres
[...] elas nunca foram apanhadas na armadilha ideológica de que uma luta era
absolutamente mais importante do que outra. Elas reconheciam o carácter
dialético da relação entre as duas causas. Mais do que outras mulheres na
campanha contra a escravatura, as irmãs Grimke chamaram a urgência da
inclusão constante da questão dos direitos das mulheres. Ao mesmo tempo que
argumentavam que as mulheres nunca alcançariam a sua liberdade
independentemente do povo negro (DAVIS, 2016, p. 39).
A partir do exposto, evidencia-se que mulheres negras denunciavam a indissociabilidade
das opressões nos seus movimentos de luta. Estes relatos permitem mais do que mostrar uma
“disfonia em relação à história dominante do feminismo, mas também a urgência por existir e a
importância de evidenciar que mulheres negras historicamente estavam produzindo insurgências
contra o modelo dominante e promovendo disputas de narrativas” (RIBEIRO, 2017, p. 24).
Válido se desestabilizar verdades acerca da história e da existência de mulheres negras.
Foi a partir de uma experiência pessoal que Kimberlé Crenshaw27 voltou suas atenções
para como ser mulher negra poderia estar situado em uma esfera que não estava sendo nem
problematizada pelo movimento feminista nem pelo movimento negro.
Durante a graduação, no grupo de estudos com outros dois colegas negros, um deles foi o
primeiro membro afro-americano aceito em uma consagrada agremiação de estudantes na
Universidade de Harvard. Ela e seus colegas questionavam sobre como seria a reação das pessoas
quando os três entrassem no espaço, que a princípio não contava com a participação de negros, e
por isso foram preparados para enfrentar possíveis discriminações.
No momento do evento, o colega que entraria na fraternidade informou à Crenshaw e ao
outro colega que eles não poderiam entrar pela porta da frente e prontamente eles responderam
que não aceitariam esta discriminação racial. O caso é que a proibição da entrada não era por
conta de serem negros, e sim porque Crenshaw era uma mulher. Os colegas decidiram que então
não teria problema e fariam suas entradas pelas portas do fundo. A autora conta então que:
[...] enquanto dávamos a volta no edifício para entrar pela porta dos fundos,
fiquei pensando que, embora tivéssemos assumido uma postura de solidariedade
contra qualquer discriminação racial, essa solidariedade simplesmente havia
desaparecido quando ficou claro que a discriminação não era racial, mas de
gênero. Nesse momento, assumi um compromisso comigo mesma de entender
esse fenômeno (CRENSHAW, 2002, p. 2).
A partir desta experiência e de encontro com inúmeras mulheres negras que já haviam
vivenciado situações similares, Crenshaw começou a se dedicar na compreensão do fenômeno
das formas de hierarquização entre gênero e raça, denominado de interseccionalidade, e como
essas discriminações operam juntas, limitando as chances de sucesso.
Crenshaw28 introduziu a teoria da interseccionalidade à teoria feminista em 1989,
tornando-se a primeira pessoa a usar essa palavra nesse contexto de feminismo. Tem-se como
27
Kimberlé Williams Crenshaw nasceu em 1959 em Canton, Ohio. Ela frequentou a faculdade em Cornell, onde
seus diplomas incluíram foco em estudos de negros, e se formou na Harvard Law School, em 1984. Ela trabalhou
para um juiz da Suprema Corte de Wisconsin após a graduação, desenvolvendo experiência em direito
constitucional. Em 1986, se tornou professora na Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, em Los
Angeles. Ela permaneceu na UCLA até o presente, embora também tenha assumido compromissos adicionais na
Columbia Law School. Em 2011, fundou o Centro de Interseccionalidade e Estudos de Políticas Sociais em
Columbia, com base em sua pesquisa e suas teorias da interseccionalidade que foram avançadas em seu ensaio
germinal, “Mapeando as margens”. Ela é uma defensora dos direitos civis norte-americano e uma das principais
estudiosas da teoria crítica da raça.
28
Além de suas produções acadêmicas, Crenshaw também contribuiu para o desenvolvimento de políticas nos
Estados Unidos e no exterior. Na década de 1990 ela estava na equipe jurídica de Anita Hill, uma advogada negra e
acadêmica que acusou Clarence Thomas, da Suprema Corte, de assédio sexual. O trabalho de Crenshaw nesse caso
53
baseou-se em sua escrita sobre as intersecções de raça e gênero e as maneiras pelas quais o trabalho antirracista pode,
às vezes, ignorar o gênero ou agravar os problemas enfrentados pelas mulheres de cor. Crenshaw também foi
cofundadora do African American Policy Forum, em 1996, que foca na justiça social e na intersecção de gênero e
raça. Ela também atuou no Comitê Nacional da Fundação para Pesquisas sobre Violência Contra a Mulher e no
painel do Conselho Nacional de Pesquisa sobre Violência Contra a Mulher. Além dos Estados Unidos, Crenshaw
esteve envolvida na Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Racismo e em outros fóruns internacionais
sobre igualdade racial e de gênero.
29
Título orginal: All the Women Are White; All the Blacks Are Men, But Some of Us are Brave: Black Women's
Studies - Gloria T. Hull, et al, eds (The Feminist Press, 1982) - traduzido pela autora.
30
Traduzido pela autora.
54
Por ser tão comum, a ponto de parecer um fato da vida, natural ou pelo menos
imutável, esse pano de fundo (estrutural) é, muitas vezes, invisível. O efeito
disso é que somente o aspecto mais imediato da discriminação é percebido,
enquanto que a estrutura que coloca as mulheres na posição de ‘receber’ tal
subordinação permanece obscurecida. Como resultado, a discriminação em
questão poderia ser vista simplesmente como sexista (se existir uma estrutura
racial como pano de fundo) ou racista (se existir uma estrutura de gênero como
pano de fundo) (CRENSHAW, 2002, p. 176).
A compreensão da discriminação como um problema interseccional requer então que as
dimensões raciais ou de gênero sejam colocadas em evidência, como fatores que contribuem para
a produção da subordinação, pois somente deste modo é possível análise aprofundada e a
formulação de proposições de intervenções mais eficazes (CRENSHAW, 2002).
Existem diferentes formas de discriminação interseccional. A primeira é contra grupos
específicos, que procuram mulheres que são específicas (interseccionais); a segunda é a
discriminação múltipla ou composta, que trata da combinação entre as discriminações de gênero
e raça; e a última seria a estrutural, quando não há discriminação ativa (CRENSHAW, 2002).
A discriminação contra grupos específicos é ocasionada por conta de propagandas e
estereótipos. Ao enquadrar a mulher negra nestes estereótipos a consequência direta é no
tratamento social que a ela é dado. A discriminação múltipla ou composta é quando as mulheres
são afetadas de maneira específica por sofrerem discriminação de gênero e de raça.
Crenshaw (2002) traz o exemplo da experiência de mulheres negras em uma empresa
norte-americana, a General Motors. A empresa não tinha mulheres negras como funcionárias, e
quando estas mulheres foram reivindicar seus direitos e garantir espaço para suas participações
neste local, não acharam meio de evidenciar a discriminação mista que sofriam. Não podiam
acusar a empresa de machismo porque ela contratava mulheres, nem de racismo porque ela
contratava negros.
Questiona-se nomear o terceiro tipo de discriminação como fenômeno de discriminação,
já que ele não se volta para grupos específicos. Não há um discriminador ativo. Em muitos casos,
ela não resulta de políticas locais, mas de políticas internacionais, que têm efeito particular para
as mulheres em decorrência da sua posição na estrutura socioeconômica (CRENSHAW, 2002).
Para a autora, considerar as zonas de intersecção possibilita uma análise aprofundada e a
formulação de proposições de intervenções mais eficazes. Crenshaw trabalha com a ilustração de
vias para explicar a atuação das intersecções, como visto na figura 1.
56
31
Hirata (2014) desenvolve sua pesquisa na prática do care, ou seja do cuidado, evidenciando a desvalorização deste
trabalho em sua relação com sexo, classe e raça. De acordo com a autora há duas possibilidades para esta
desvalorização. A primeira parte de teorias feministas que a associam como continuidade da desvalorização do
trabalho doméstico executado de forma não remunerada pelas mulheres. A segunda possibilidade seria a relação
entre a vulnerabilidade e falta de cidadania dos que são cuidados (idosos, portadores de deficiência) com a
vulnerabilidade dos cuidadores, que são também de uma subcategoria – mulheres negras.
60
A busca inicial identificou 56 registros de produções, sendo que uma destas publicações
não estava disponível em português32 e outras nove utilizavam do conceito em contextos
desconexos à discussão do presente estudo33. As 46 produções foram organizadas em uma tabela,
que apresenta dados importantes sobre cada uma das produções: título da produção; autoria; ano
de publicação; área e instituição/estado no qual a pesquisa se desenvolve. Na tabela 2 a seguir, as
marcações D e T referem-se, respectivamente, a dissertações de mestrado e teses de doutorado.
32
A dissertação de Carla Denise Grudtner (2014), produzida em Estudos Linguísticos e Literários, estava disponível
apenas em língua inglesa.
33
1. A tese “As Filhas do vento e o Céu de Suely: sujeitos femininos no cinema da retomada” aparece duplicada,
com autoria de Tania Mara Moysses em um resultado, e Sumaya Machado Lima em outro. Na tese publicada a
autoria oficial pertence a Lima (2010); 2. As teses de Elmara Pereira de Souza (2013) e Maria Carolina Santos de
Souza (2013), porque discutem interseccionalidade como conceito advindo das subjetividades em ambiente virtual;
3. As teses de Marcia de Freitas Cordeiro (2015), Gilmara dos Santos Oliveira Vergara (2015), Rocha-Ramos (2014)
e Alberico Salgueiro de Freitas Neto (2015), que trabalham a perspectiva de interseccionalidade em outra perspectiva
que não a do feminismo negro. 5. A tese de Claudia Embirussu Barreto (2015), na qual interseccionalidade é
problematizada a partir de referenciais teóricos do campo da ciência da computação.
66
D Um olhar interseccional sobre feminismos, Vanilda Maria de 2006 Sociologia Universidade Federal de
negritudes e lesbianidades em Goiás Oliveira Goiás/GO
D Cassandra Rios de lágrimas: uma leitura crítica Maria Isabel de 2009 Literatura Universidade Federal de
dos inter(ditos) Castro Lima Santa Catarina/SC
D Desigualdade e identidade no serviço Neville Júlio de 2010 Sociologia Universidade Federal de
doméstico: intersecções entre classe, raça e Vilasboas e Santos Goiás/GO
gênero
D Conceição do Coité em “quadrado”: retratos da Zuleide Paiva da 2010 Estudos Universidade Federal da
violência contra as mulheres (1980-1998) Silva interdisciplinares Bahia/BA
sobre mulheres,
gênero e feminismo
T As filhas de vento e o Céu de Suely: sujeitos Sumaya Machado 2010 Literatura Universidade Federal de
femininos no cinema da Retomada Lima Santa Catarina/SC
D O conceito de gênero nas políticas públicas que Leila Alcina Correia 2010 Enfermagem Universidade Federal da
orientam atenção à saúde da mulher: revisão Vaz Bustorff Paraíba/PB
integrativa da literatura
D Direitos Sexuais e políticas públicas: o Samuel Luiz de 2011 Direito Universidade Federal do
combate à discriminação para a concretização Souza Junior Pará/PA
dos Direitos Humanos de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) no
Estado do Pará
T Entre vapores e dublagens: dissidências Fernando Altair 2011 Educação Universidade Federal do
homo/eróticas nas tramas do envelhecimento Pocahy Rio Grande do Sul/RS
D Ó paí, prezada! Racismo e sexismo Carla Adriana da 2012 Estudos Universidade Federal da
institucionais tomando bonde no conjunto Silva Santos Interdisciplinares Bahia/BA
penal feminino de Salvador sobre Mulheres,
Gênero e Feminismo
67
D Interseccionalidade entre raça e surdez: a Francisco José Roma 2012 Educação Universidade de
situação de surdos (as) negros (as) em São Luís Buzar Brasília/DF
– MA
D A construção social da Saúde reprodutiva no Heloísa Helena da 2012 Saúde Coletiva Universidade do Vale do
Brasil: um olhar na perspectiva da Silva Duarte Rio dos Sinos/RS
interseccionalidade de gênero e raça
D Mulheres negras soropositivas e as Angelita Alves de 2012 Serviço Social Universidade Federal de
Interseccionalidades entre Gênero, Classe e Toledo Santa Catarina/SC
Raça/Etnia
D Violência contra as mulheres e interfaces com Terlúcia Maria da 2013 Ciências Jurídicas Universidade Federal da
o racismo: o desafio da articulação de gênero e Silva Paraíba/PB
raça
D Sobre subalternidades e enfrentamentos: André Geraldo 2013 Psicologia Universidade Federal de
sexualidade, poder e agenciamentos na Ribeiro Diniz MG/MG
experiência de mulheres prostitutas
T Interseccionalidade gênero/raça/etnia e a Lei Raquel Da Silva 2013 Psicologia Social e Universidade Federal do
Maria da Penha: discursos jurídicos brasileiros Silveira institucional Rio Grande do Sul/RS
e espanhóis e a produção de subjetividade
D Discriminação múltipla como discriminação Rodrigo da Silva 2013 Direito Centro Universitário
interseccional: o direito brasileiro e as Ritter dos Reis/RS
intersecções de raça, gênero e classe
D Conectadas uma análise de práticas de ajuda- Lara Roberta 2013 Sociologia Universidade Federal de
mútua feminina na era das Mídias Digitais' Rodrigues Facioli São Carlos/SP
D Processos de territorialização em espaços Alexandre da Silva 2013 Interdisciplinar em Universidade Federal de
marginais: estudo exploratório e descritivo das Ciências da Saúde São Paulo/SP
vivências de homens que fazem sexo com
outros homens na cidade de Praia Grande/SP
D Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher e Mayara Alice Souza 2013 Ciência Jurídica Universidade Estadual do
a atuação estatal: o respeito à diferença Pegorer Norte do Paraná/PR
múltipla como fator orientador de políticas
públicas de gênero
68
D Mulheres negras em Jacutinga: sobre Alexandre dos Santos 2014 Relações Étnico- Centro Federal de
interseccionalidade e empoderamento Monteiro Raciais Educação Tecnológica
Celso Suckow da
Fonseca/RJ
D Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos Jouber Silvestre da 2014 Sociologia Universidade Federal de
surdos-homossexuais Silva Candido Goiás/GO
D Os tambores das 'yabás': raça, sexualidade, Valeria Alves de 2014 Ciência Social Universidade de São
gênero e cultura no bloco afro Ilú obá de Min Souza Paulo/SP
D Os significados do uso de álcool entre os/as Roseane Amorim da 2014 Psicologia Universidade Federal de
jovens quilombolas de Garanhuns/PE: uma Silva Pernambuco/PE
perspectiva interseccional
D Mulheres Invisíveis: uma análise da influência Debora Cheskys 2014 Direito Pontifícia Universidade
dos estereótipos de gênero na vida de mulheres Católica/RJ
encarceradas
D “Recordar é preciso": Conceição Evaristo e a Barbara Araújo 2014 História Universidade
intelectualidade negra no contexto do Machado Fluminense/RJ
movimento negro brasileiro contemporâneo
(1982-2008)
D Trabalhadora doméstica - patriarcalismo, Marco Antônio 2014 Direito Pontifícia Universidade
interseccionalidades de gênero e raça e Redinz Católica/RJ
situação no mercado de trabalho no Brasil
T Resistindo à tempestade: a interseccionalidade Marcela Ernesto dos 2014 Letras Universidade Estadual
de opressões nas obras de Carolina Maria e Santos Paulista Júlio de Mesquita
Maya Angelou Filho/SP
D Corpos em movimento, educação em questão: Patrícia Gabrielle 2014 Relações Étnico- Centro Federal de
a trajetória escolar das travestis negras Oliveira Rodrigues Raciais Educação Tecnológica
Celso Suckow da
Fonseca/RJ
69
T Elementos teopedagógicos afrocentrados para Lilian Conceição da 2014 Teologia Escola Superior de
superação da violência de gênero contra as Silva Pessoa de Lira Teologia/RS
mulheres negras: diálogo com a comunidade-
terreiro Ilé àṣẹ yem ọjá omi olodò e o
acolhimento que alimenta a ancestralidade
D Grupo de mulheres negras Mãe Andresa: Ana Nery Correia 2014 Ciências Sociais Universidade Federal do
marcações identitárias de gênero e raça na Lima Maranhão/MA
produção de estratégias contra o racismo e o
machismo
D No Feirão do Chope: um estudo antropológico Bruno dos Santos 2015 Antropologia Social Universidade Federal de
sobre intersecções entre marcadores sociais da Hammes Goiás/GO
diferença em um bar na região periferizada de
Goiânia
D As intervenções com homens autores de João Paulo Bernardes 2015 Psicologia Universidade Federal de
violência doméstica contra as mulheres ante Gonçalves Minas Gerais/MG
suas bases teórico-metodológicas e
perspectivas políticas: as experiências no
estado de Minas Gerais
T Mulheres negras, negras mulheres: ativismo na Ana Cristina 2015 Educação Universidade Federal do
capital baiana (1980-1991) Conceição Santos Ceará/CE
D Penalidade e privilégio: a falsa representação Ana Carolina 2015 Direito Político e Universidade
dos homens negros homossexuais Welligton Costa Econômico Presbiteriana
Gomes Mackenzie/SP
D Concepções de violência e interseccionalidade: Thalita Rodrigues 2015 Psicologia Universidade Federal de
análise em um centro de referência de Minas Gerais/MG
atendimento a mulheres em situação de
violência
D Tecendo o futuro: vivências de mulheres Débora Brasil 2015 Direitos Humanos e Universidade de
negras em uma perspectiva intergeracional e Miranda Cidadania Brasília/DF
familiar
70
D Trajetórias militantes e feminismos Mariana Passos Dutra 2015 Sociologia Universidade Federal
divergentes: transgressão, institucionalização e Fluminense/RJ
transeccionalidade
D Além dos muros da escola: um estudo sobre Cintia Isabel Patti 2015 Educação Pontifícia Universidade
educação popular e o projeto Promotoras Católica de Campinas/SP
Legais Populares de Campinas (SP)
D Desigualdades de gênero e intragênero: um Fernanda Ferreira de 2015 Ciências Sociais Universidade Federal do
estudo acerca das representações sociais do Jesus Recôncavo da Bahia/BA
envelhecimento
D “Quando não tem bebida, morga logo! ” Um Leyllyanne Bezerra 2015 Psicologia Universidade Federal de
estudo interseccional sobre juventude e de Souza Pernambuco/PE
consumo de álcool
D “Tá dentro, não tá fora”: subjetividade, Eliana Costa Xavier 2015 Psicologia Pontifícia Universidade
interseccionalidade e experiências de Católica do Rio Grande
adoecimento de mulheres negras com doença do Sul/RS
falciforme
D Rés negras, judiciário branco: uma análise da Enedina do Amparo 2015 Ciências Sociais Pontifícia Universidade
interseccionalidade de gênero, raça e classe na Alves Católica de São Paulo/SP
produção da punição em uma prisão paulistana
T A vivência de mulheres em cargos em cargos Edilene Machado 2015 Ciências Sociais Universidade Estadual
executivos em grandes empresas: uma análise Pereira Paulista
interseccional das desigualdades de gênero e de Júlio de Mesquita
raça Filho/SP
D Por inflexões decoloniais de corpos e Viviane Vergueiro 2015 Programa Universidade Federal da
identidades de gênero inconformes: uma Simakawa Multidisciplinar Bahia/BA
análise autoetnográfica da cisgeneridade como Cultura e Sociedade
normatividade
D Perspectivas de rappers brancos/as Jorge Hilton de Assis 2015 Educação e Universidade Estadual da
brasileiros/as sobre as relações raciais: um Miranda Contemporaneidade Bahia/BA
olhar sobre a branquitude
71
D Baianas de acarajé contra FIFA: um estudo de Larissa da Silva Araújo 2015 Direitos Humanos e Universidade de
caso sobre desenvolvimento e colonialidade Cidadania Brasília/DF
T Morra para se libertar: estigmatização e Valeria Melki Busin 2015 Psicologia Social Universidade de São
violência contra travestis' Paulo/SP
É possível trilhar alguns caminhos de hipótese para este aumento exponencial nas
produções, equacionando que sua grande maioria se concentra na discussão das discriminações
raciais. Todavia, esta análise precisa evidenciar que não é possível a afirmação de que estas
produções estão sendo feitas por pesquisadores/as negros/as, já que nem sempre este dado
aparece no corpo do estudo.
Quando estes pertencimentos foram salientados nas introduções ou trajetórias,
considerando a importância de dar visibilidade para as produções intelectuais negras, realizaram-
se recortes que permitem não só evidenciar o pertencimento negro da/o pesquisadora/a como
também a ligação de tal pertencimento como motivação para a perspectiva interseccional.
É o caso de Carla Adriana da Silva Santos (2012), que se auto apresenta como mulher
negra, vinda das camadas populares de Salvador, e que por essa origem tem conhecimentos
importantes sobre as dificuldades no acesso à justiça, enfrentadas por mulheres como ela, e a
partir de tal vivência se propõe a desenvolver um estudo para dar visibilidade para as práticas de
violência institucional contra mulheres negras no sistema prisional protagonizados por homens
presos e por servidores do Estado.
Patrícia Gabrielle Oliveira Rodrigues (2014), se coloca em sua trajetória como mulher
negra, evidenciando os enfrentamentos no espaço educacional, e pontua que para sua formação
enquanto estudante negra foi primordial estar imersa em uma rede de solidariedade, no contexto
da autora, o coletivo Sankofa. A partir destas experiências a autora desenvolve seu estudo sobre
heteronormatividade e os privilégios da branquitude a partir de investigação formulada com
travestis negras no desvelamento de práticas de discriminação no ambiente escolar.
Bastante interessante também o modo como Edilene Machado Pereira (2015) inclui a
importância de sua trajetória no desenvolvimento da pesquisa que desenvolve sobre mulheres
negras em cargos de poder. Narra então que sua mãe, responsável pelo sustento familiar, quando
trocou de uma ocupação remunerada pelo trabalho doméstico não foi valorizada socialmente, o
que tirou dela autonomia, deixando-a dependente financeira e emocionalmente do marido.
A pesquisadora conta que sempre se interessou por leituras, por onde diz que sua mente
podia vivenciar aventuras e sonhar com histórias – a partir deste interesse por ler, com suas
experiências pessoais ela passou a se interessar por autores que trabalhavam com a temática das
relações raciais no Brasil, se percebendo assim como adolescente negra.
Assim, a minha subjetividade foi se construindo e se deu por meio da inter-
relação com outras subjetividades, na escola com as colegas, no mundo da
74
Ainda que não tenha sido possível desenhar o perfil de raça/gênero dos pesquisadores, os
recortes apresentados e as temáticas de estudos evidenciam a ligação da interseccionalidade com
a discriminação racial e de gênero.
Tendo constatado que as pesquisas têm tido um aumento exponencial nos últimos anos, é
necessário equacionar o impacto das ações afirmativas no desenvolvimento de estudos com essa
temática. A implementação destas políticas no ensino superior, além de garantir o acesso da
79
população negra nos espaços acadêmicos também pode estar possibilitando um maior interesse
dos pesquisadores/as sobre temáticas raciais.
É necessário compreender as políticas que favorecem o ingresso da população negra e
também a discussão sobre práticas de racismos, a partir da fundamentação desta e de uma agenda
que vise combater a herança do processo de escravização e das práticas de racismo e segregação
racial que vitimizam a população negra no Brasil.
34
Necessário salientar que não só mulheres negras acadêmicas têm produzido o feminismo negro; outras mulheres
negras – professoras, pastoras, empregadas domésticas, mulheres em situação de cárcere – também constroem o
feminismo negro. “Desde o movimento dos direitos civis e do feminismo, as ideias de mulheres negras têm sido cada
vez mais documentadas e está atingindo um público mais amplo” (COLLINS, 2016, p. 102).
35
De acordo com a tradutora do texto de Collins (2016), Juliana de Castro Galvão, o termo outsider within não tem
uma correspondência inquestionável em português, por isso em sua tradução opta-se por manter o termo original,
trazendo como possíveis traduções: “forasteiras de dentro”, “estrangeiras de dentro”.
81
36
Collins (2016) trabalha a partir da realidade norte-americana, porém acredita-se com base na análise do percurso
histórico da mulher negra latino-americana que a realidade não é/foi muito diferente.
37
Sujeito que não se enquadra na sociedade, que se situa à margem das convenções sociais.
82
É possível fazer uma junção dos grupos conforme as grandes áreas de pesquisa em que os
estudos foram desenvolvidos. As áreas do conhecimento são delimitadas a partir do proposto pela
CAPES, que agrega as 49 áreas de avaliação por critério de afinidade, em dois níveis: Colégios
em um primeiro, tendo o Colégio de Ciências da Vida, Colégio de Ciências Exatas, Tecnológicas
e Multidisciplinar e Colégio de Humanidades; e o segundo nível, a partir do qual se realizou
divisão para as análises desta pesquisa, são definidos a partir do que a CAPES denomina como
Grandes Áreas.
Tem-se então o seguinte panorama (gráfico 5):
84
Há, portanto, uma concentração maior nas áreas de sociologia e direito. Por ser um
conceito sociológico, desenvolvido dentro das discussões sobre justiça, faz sentido que tal
perspectiva venha sendo adotada por pesquisadoras/es destas duas áreas. Sobre a área
interdisciplinar, seu alto número de produções se justifica também porque ela abrange diferentes
cursos, no caso das pesquisas do levantamento inclui cursos interdisciplinares sobre gênero e
também sobre racismo, mas também sobre saúde coletiva.
Sendo o presente estudo desenvolvido dentro de um programa de pós-graduação em
educação, ressalta-se o baixo número de pesquisas desenvolvidas na perspectiva educacional por
mestres e doutores em educação. É possível problematizar o acesso que estes programas de
educação estão dando a teorias de feministas negras nos debates das diferentes opressões.
Todavia, para análise deste estado do conhecimento, verificou-se impossibilidade de
apresentar as discussões das pesquisas a partir das áreas do conhecimento, primeiramente porque
elas são bastante diversas, e também porque dentro de uma mesma área há produções sobre
diferentes temáticas ou focalizando diferentes grupos.
Para análise dos dados do levantamento bibliográfico e formulação do estado do
conhecimento em interseccionalidade, houve a ordenação das 46 pesquisas encontradas em
85
grupos de discussões a partir da temática central que traziam enquanto pauta – são os espaços
pelos quais autoras e autores se debruçaram para lançar um olhar interseccional de análise,
perpassando por relevantes pautas de mulheres negras e outros grupos marginalizados. Válido
salientar que tal divisão não considera as áreas de conhecimento de cada pesquisa, sendo assim,
dentro do bloco Interseccionalidade e Relações de Trabalho, por exemplo, existem pesquisas de
áreas do conhecimento diversas, como sociologia e direito. A partir da leitura dos estudos é que
foi possível perceber que eles convergiam para temáticas bastante semelhantes em alguns casos.
Ou seja, embora o pertencimento de gênero e racial de seus sujeitos de análise fossem uma
variável, o contexto sobre o qual a pesquisa se desenvolvia permitia agrupamento por serem
correlatos.
A divisão se deu em nove temáticas, apresentadas com inclusão da quantidade de suas
produções: Interseccionalidade e Diversidade sexual (7); Interseccionalidade e Violência Contra
Mulher (6); Interseccionalidade e Saúde (6); Interseccionalidade e práticas organizadas de
militância (6); Interseccionalidade e Movimentos Artísticos (6); Interseccionalidade e
Intergeracionalidade (5); Interseccionalidade e Relações de Trabalho (5); Interseccionalidade,
Direito e Encarceramento (4) e Interseccionalidade e Deficiência (1).
Apresenta-se nesta etapa as pesquisas encontradas que trazem discussões a partir das
categorias de lésbicas, gays, travestis e transgêneros A teoria da interseccionalidade, conforme
será apresentado, mostra sua eficácia nestes estudos ao evidenciar como diferentes estruturas de
poder interagem na vida das minorias sexuais38.
A pesquisa de Samuel Luiz de Souza Junior (2011) busca compreender as mobilizações e
a construção do movimento LGBT para a conquista da atenção do poder público às suas
demandas, entendendo, também, que a problemática da discriminação perpassa a
interseccionalidade de variados marcadores sociais, constituintes da sociedade brasileira.
Na dissertação “Direitos sexuais e políticas públicas: combate à discriminação para a
concretização dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT)
38
Refere-se aos membros das orientações sexuais ou que se envolvem em atividades sexuais que não fazem parte da
maioria. Refere-se a membros de grupos sexuais que não se enquadram nas categorias majoritárias de homens e
mulheres, como intersexuais e transexuais (Definition of Terms - Sexual minority. Gender Equity Resource Center –
traduzido pela autora).
86
39
Políticas públicas circunscritas ao Estado do Pará, no período de gestão do Poder Executivo estadual de 2007 a
2010.
40
Mesmo reconhecendo esta importância da análise interseccional, Souza Junior (2011) não discute nenhuma autora
do feminismo negro, e nem faz esta análise por outras perspectivas teóricas.
87
41
O autor faz a escolha do hífen, em detrimento da preposição “e”, “por acreditar que as identidades são mais do que
soma de atributos e características” (CANDIDO, 2014, p. 15).
88
Por esse motivo, buscar-se-á inovar nessa área com o estudo dos homens negros
homossexuais, bem como estes, sendo a priori uma categoria privilegiada pelo
gênero, sofrem as penalidades em razão das cargas da discriminação racial e
homofóbica[...]. Sabendo que as mulheres negras foram tomadas como sujeitos
quintessenciais da interseccionalidade, terá lugar o desafio de interpretar tais
pesquisas teóricas para o gênero masculino (GOMES, 2015, p. 8).
Parte-se da constatação de que, no movimento gay, homens negros homossexuais não têm
igualdade de participação em relação aos homens brancos. A partir da observação dos caminhos
seguidos por mulheres negras dentro do feminismo na busca por maior paridade de participação,
Gomes (2015) busca alternativas para a correção da disparidade de participação sofridas pelos
sujeitos objeto de estudo.
Vanilda Maria de Oliveira (2006), na pesquisa intitulada “Um olhar interseccional sobre
feminismos, negritudes e lesbianidades em Goiás”, realiza um estudo para compreender nos
discursos de feministas negras de uma organização não-governamental de Goiânia os significados
atribuídos à interseção entre raça, gênero e orientação sexual, e de que modo essa interseção
influencia a militância feminista de mulheres negras, lésbicas ou não. A autora revela como essas
feministas negras pensam e moldam imagens sobre a sexualidade e como elas percebem a
construção da identidade e a militância das mulheres negras lésbicas que inserem suas bandeiras
no próprio grupo.
A autora busca compreender o funcionamento de estruturas de poder na narrativa fílmica,
a partir do conceito de interseccionalidade, que é apresentado como um tipo de exclusão
resultante de discriminações cruzadas de etnia, religião, raça, gênero, geração, família, trabalho
ou cultura.
A principal questão que se coloca na pesquisa de Oliveira (2006) é de que forma as
interseções têm dado origem a diferentes politizações dos sujeitos subalternizados no feminismo.
A autora discute o conceito de “novos movimentos sociais” como denúncia aos antagonismos
sociais em que surgem os atores coletivos. Discute-se a interseccionalidade enquanto forma
como:
[...] na constituição da subjetividade e da identidade dos sujeitos, diversas
categorias como raça, classe, gênero, religião, idade, orientação sexual, entre
tantas, se cruzam produzindo formas particulares de opressão ou privilégio [...]
responsável pela formação de um sujeito específico e, consequentemente, de
determinados lugares sociais, de forma de ser e estar no mundo e relações
interpessoais (OLIVEIRA, 2006, p. 66).
89
42
“Conceição do Coité em ‘quadrado’: retratos da violência contra as mulheres (1980-1998)”
92
sofrem e por isso são mulheres de subsistência e resistência com a função de garantir a existência
de suas comunidades até os dias de hoje (LIRA, 2014).
Reconhecer a importância da mulher negra na história, em especial, reconhecer
sua força, garra, inteligência, criatividade, sensibilidade, sabedoria, mas também
suas ambiguidades, é reconhecer sua humanidade como antropologicamente
marcada por uma “mistura”130 e não por estereótipos culturalmente construídos.
Isso é fundamental para discutir as múltiplas formas de violência às quais as
mulheres em geral e as mulheres negras em particular são submetidas, e
encontrar maneiras de superar essa violência (LIRA, 2014, p. 33).
Em uma das etapas do trabalho a autora de dedica exclusivamente à discussão de gênero,
violência contra as mulheres, etnicidade e religião, constatando a emergência da
interseccionalidade. “A relação entre gênero, violência e religião na história das ideias é algo,
segundo a teóloga feminista católica, branca, norte-americana e lésbica, Mary E. Hunt, que se
tornou possível somente há pouco mais de três décadas” (LIRA, 2014, p. 71).
De acordo com esta pesquisa, o conceito de interseccionalidade foi elaborado pelas
sociólogas alemãs Gabriele Winker e Nina Degele:
[...] segundo Hunt, esta relação se estabeleceu no âmbito pastoral vivido por
teólogas feministas norte-americanas protestantes e católicas a partir da década
de 1970. Foram teólogas feministas protestantes as primeiras a investigar e a se
instrumentalizar para enfrentar as questões relativas a gênero, religião e
violência (LIRA, 2014, p. 72).
A autora problematiza que essa relação tenha se iniciado na vida pastoral e partido de uma
mulher branca, e lança o desafio em qualificar ainda mais esta relação de modo a avaliá-la
enquanto interseccionalidade mostrando sua relação entre gênero, violência, etnicidade e religião
em toda sua trama complexa e multifacetada.
Raquel da Silva Silveira (2013), na tese intitulada “Interseccionalidade gênero/raça/etnia e
a Lei Maria da Penha: discursos jurídicos brasileiros e espanhóis e a produção de subjetividade”,
discute também a problemática de se inserir a discussão sobre VCM como problema universal,
desconsiderando qualquer marcador social.
A pesquisa evidencia o modo como a interseccionalidade gênero, raça e etnia emerge no
discurso jurídico sobre as mulheres que acessam a justiça e como esta articulação caracteriza as
relações de poder nas quais estão imersas.
O estudo se constrói a partir de uma comparação entre a Lei Maria da Penha (Lei
11.340/2006) com a legislação espanhola de Proteção Integral à Violência de Gênero (LO
1/2004), bem como das práticas jurídicas nas cidades de Porto Alegre e Sevilha.
95
43
A pesquisa foi realizada no estado de Minas Gerais e contou como instrumentos de análise entrevista com os
gestores institucionais e profissionais facilitadores dos grupos, análise documental e revisão bibliográfica sobre a
violência masculina e sobre os feminismos (GONÇALVES, 2015).
97
Esta pesquisa busca contribuir para a discussão das diretrizes, a partir de uma
perspectiva mais ampla, no que concerne o atendimento dos homens na política
pública. A Lei Maria da Penha, em seu Art. 30, prevê o desenvolvimento de
trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados
para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e
aos adolescentes. Além disso, o Art. 35, inciso V, institui a criação e promoção
dos Centros de Educação e de Reabilitação para os Agressores (p. 24).
Na discussão das interfaces do trabalho dos psicólogos relacionados com as intervenções
com os homens que exercem violência contra as mulheres, ele aponta que as discussões do
movimento feminista podem contribuir para a construção de uma identidade profissional
congruente com as transformações sociais.
Justificando o uso da interseccionalidade, Gonçalves (2015) traz que:
A interseccionalidade do gênero – desde as categorias raça, classe, nacionalidade
(ou a posição na desigual ordem mundial) – dão ampla implicação para a análise
da masculinidade. Por exemplo, desde a perspectiva relacional do gênero, a
masculinidade branca se constitui a partir da feminilidade branca, mas também
da masculinidade negra. Por isso, Connell (1997) defende que se articule a 37
análise das masculinidades com o legado histórico das situações coloniais e pós-
coloniais. Segundo ele, isso também fornece base para compreensão do controle
da polícia pelos homens brancos, das cortes e prisões nas colônias e, logo, com a
presença maciça de homens negros nas prisões (GONÇALVES, 2015, p. 36-37).
A conclusão da pesquisa é a existência de uma organização social da masculinidade
articulada a várias categorias identitárias. “A partir dessa perspectiva torna-se compreensível a
organização social da masculinidade desde diferentes marcadores sociais e a regulação dos
modos de subjetivação masculina. Nesse sentido, as estruturas de poder e opressão se voltariam à
manutenção e reprodução de algumas ordens” (GONÇALVES, 2015, p. 100). E o autor continua,
explicando que:
Porém, as agências masculinas associadas às categorias identitárias poderiam
revelar formas de resistência à dominação. O conceito do patriarcado resulta do
empenho teórico feminista que buscou da origem da subordinação das mulheres
tencionando desconstruí-la, possuindo relevância de leitura apesar das críticas
que tem recebido. É preciso destacar seu aspecto histórico que perpassa o
desenvolvimento da sociedade baseada no patrimonialismo. Ele apresenta
relevância na pesquisa social e no entendimento das relações e conflitos
familiares. Ao visualizarmos o grupo dos HAV como um microcosmo da
realidade, é possível inserirmos a noção da “política da localização”, que
perpassa estranhamentos, incômodos e negociações a partir de diferentes lugares
de enunciação (GONÇALVES, 2015, p. 100).
98
maternos por aborto no período de 2000 a 2008, entre mulheres de dez a 29 anos, representou
quase o dobro para mulheres negras em relação às brancas.
A análise se dá a partir de uma estratégia nomeada Rede Cegonha lançada em março de
2011 no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) com o objetivo de melhorar a qualidade da
assistência pré-natal para diminuir a mortalidade materna e infantil. Quando a autora equaciona o
quesito racial, revela os altos índices de mortalidade materna resultantes da má qualidade no
atendimento pré-natal e a desorganização nos serviços de saúde.
[...] em geral as mulheres que buscam os serviços de saúde quando em situação
de abortamento são discriminadas pelos profissionais de saúde e para as
mulheres negras ocorre dupla discriminação por serem negras, recebendo o
atendimento após as mulheres brancas, aumentando o risco de morte (DUARTE,
2012, p. 70).
A autora reforça um dos lemas do feminismo, “nosso corpo nos pertence”, mas
problematiza a questão racial neste contexto.
Referindo à mortalidade materna, o movimento de mulheres negras traz questões
relacionadas ao passado de políticas eugênicas que ainda refletem na biopolítica
atual, como por exemplo, a questão da mortalidade materna ser maior entre
mulheres negras. Enquanto que as reivindicações das feministas brancas
aparecem mais relacionadas à autonomia/liberdade feminina, em poder decidir o
que fazer com seu corpo (DUARTE, 2012, p. 73).
A conclusão do trabalho é na possibilidade da interseccionalidade como ferramenta
analítica para produção de discursos sociais sobre saúde reprodutiva enquanto fenômeno social
complexo envolvendo relações de poder e jogos de forças sociais em determinados contextos.
Eliana Costa Xavier (2015) também trabalha com interseccionalidade e saúde na
dissertação intitulada: “Tá dentro, não tá fora: subjetividade, interseccionalidade e experiências
de adoecimento de mulheres negras com doença falciforme”.
A pesquisa44 se constitui a partir de dois estudos empíricos com a proposta de conhecer e
analisar a história de mulheres negras com doença falciforme45 e compreender como a
44
De acordo com Xavier (2015), a pesquisa teve delineamento qualitativo e se caracterizou como exploratória-
descritiva, na qual a coleta das informações se deu por meio de entrevistas semi-estruturadas que foram exploradas
através da Análise Crítica do Discurso. Participaram nove mulheres com diagnóstico de doença falciforme,
autodeclaradas negras e atendidas pelo Centro de Referência da Anemia Falciforme do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre (CRAF).
45
“Cabe destacar que a Doença falciforme caracteriza o conjunto de síndromes ocasionadas por uma alteração
genética onde as hemácias tomam a forma de ‘meia-lua’ ou ‘foice’. É uma hemoglobinopatia cujo processo altera o
fluxo sanguíneo e compromete órgão e tecidos, causando uma anemia intensa que acarreta complicações clínicas que
podem ocasionar sequelas irreversíveis” (BRASIL, 2012). É uma condição crônica de saúde que necessita de
cuidados constantes, influenciando nos aspectos psicossociais das pessoas e podendo comprometer seu desempenho
101
subjetividade destas é construída e confrontada a partir do significado da doença que tem origem
na ancestralidade negra. A autora realiza análises do acesso das mulheres negras com doença
falciforme às políticas públicas de saúde, a partir dos itinerários terapêuticos na busca por
cuidados para as questões de saúde produzidas pela doença, destacando a importância de resgatar
as marcas de como foram experienciados, sentidos e compreendidos determinados momentos,
acontecimentos, ou mesmo como ficou registrado na memória de cada mulher negra e/ou do seu
coletivo o intercurso desta condição de saúde com os serviços de saúde pública.
Entender a construção da subjetividade de mulheres negras com doença
falciforme possibilita a compreensão da experiência coletiva na visão de mundo
sob a ótica racial, pois resgata e fortalece a concepção ampla dos determinantes
sociais em saúde, como relacionados às condições sociais em que as pessoas
vivem e trabalham (Paulo Buss & Alberto Pellegrini Filho, 2007). A
complexidade da subjetividade feminina, da negritude e da doença falciforme foi
problematizada a partir da argumentação constituída desde os inúmeros fatores
que perpassam a vida das mulheres negras brasileiras, como raça e racismo,
gênero, história, cultura, ancestralidade e adoecimento. Então, a singularidade de
trabalhar com a história das mulheres negras nos possibilitou, através de seus
discursos, a compreensão subjetiva dos momentos vividos como mulher negra
com doença falciforme (XAVIER, 2015, p. 17-18).
Xavier (2015) apresenta também reflexões sobre a história de mulheres negras com
doença falciforme e evidencia que a subjetividade destas é construída e confrontada a partir dos
sentidos subjetivos associados aos marcadores de gênero, raça e classe social. Destaca-se como
resultados que o impacto psicossocial da doença falciforme depende expressivamente dos
serviços e das políticas de saúde, no acesso às tecnologias referentes à doença para dirimir o
processo de adoecimento, bem como do significado que o sujeito associa a sua doença.
Evidencia-se também que o racismo institucional, presente em todas as aproximações das
mulheres negras na sociedade, responde à vulnerabilidade histórica que invisibiliza as mulheres
negras.
Angelita Alves de Toledo (2012), na dissertação “Mulheres Negras Soropositivas e as
Interseccionalidades entre Gênero, Classe e Raça/Etnia”, analisa a tríplice desigualdade e os
fatores de vulnerabilidade que contribuem para mulheres negras de Florianópolis contraírem o
vírus HIV/Aids.
emocional e social (CORDEIRO; FERREIRA, 2009). “Está associada à hereditariedade racial da população negra e
acomete basicamente os africanos e os descendentes da África (BRASIL, 2012)” (XAVIER, 2015, p. 16).
102
crescente crescimento da participação das mulheres nas relações sociais que envolvem tanto a
esfera privada como pública, conduz as políticas a um novo olhar sobre as mulheres e os homens,
articulado com a categoria de gênero.
Salienta-se a necessidade de os órgãos governamentais que publicam e fornecem
materiais no campo da saúde da mulher incorporem as relações de gênero em suas produções
literais, auxiliando assim a compreensão das relações entre mulheres e homens e suas
articulações com as questões de saúde.
A dissertação “Os direitos sexuais e reprodutivos da mulher e a atuação estatal: o respeito
à diferença múltipla como fator orientador de políticas públicas de gênero”, escrita por Mayara
Alice Souza Pegorer (2013), traz a importância da abordagem da diferença múltipla como fator
norteador de políticas públicas para proteção da mulher e consequente reafirmação do processo
de inclusão social feminino.
Problematiza-se que a abordagem dos direitos sexuais e reprodutivos, sob o enfoque da
titularidade feminina, na Ciência Jurídica ainda é tímida, o que explica a adoção de uma proteção
legislativa ainda conservadora, apesar das inúmeras iniciativas empreendidas atualmente em
outros âmbitos.
Ademais, ao mesmo tempo em que se devem resgatar as relações historicamente
travadas entre homens e mulheres a fim de se visualizar a evolução desse papel
social assumido para atender a suas novas expectativas e, em consequência,
proteger seus direitos, deve-se ter em pauta a existência de uma sociedade
cosmopolita, marcada pela diversidade e pelo multiculturalismo, que traz ainda
mais caracteres de identificação de grupo e individual. Daí o imperativo de se
ponderar a existência de necessidades que marcam grupos existentes dentro de
uma mesma categoria, nesse caso, a mulher, como forma de nortear os
programas de proteção promovidos, traçando objetivos e integrando setores,
inclusive no caso dos direitos sexuais e reprodutivos (PEGORER, 2013, p. 11).
A autora traz o conceito de interseccionalidade na discussão sobre o direito à diferença,
seu emprego na questão de gênero e a construção da diferença múltipla. Aponta-se a necessidade
de se conceber a diferença múltipla, reconhecendo a existência de uma minoria dentro de uma
minoria. O conceito ganha prestígio ao possibilitar o estudo das implicações da subordinação em
razão do gênero, correlacionando-a a outros eixos, e dentro da discussão dos direitos sexuais e
reprodutivos.
104
46
Não foi trazida a análise desta pesquisa na categoria geracionalidade visto que a própria autora salienta que não se
baseou nem na teoria geracional nem na classista. Buscou-se, a partir dessa diversidade de perspectivas,
compreender os/as jovens, ora sendo importante refletir sobre a classe social e o contexto o qual os/a mesmos/as
pertencem, ora delimitando uma faixa etária para os/as participantes da pesquisa, no intuito de visibilizar os/as
mesmos/as (SILVA, 2014).
105
47
A área estudada é delimitada pelas ruas Ana Peixoto, Barros Peixoto e Aimoré, e pela linha férrea auxiliar.
106
48
O território pode ser definido, também, pela identidade que uma pessoa ou um grupo de pessoas têm para com um
determinado espaço.
107
49
Ainda no resumo há a informação de que a pesquisa foi realizada na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do
Sul, com três feministas, na qual cada uma trouxe a realidade de três tipos de feminismos discutidos: o feminismo
militante, que se dá através da vivência da entrevistada no movimento da Marcha das Vadias; o feminismo negro e o
feminismo institucional (DUTRA, 2015).
109
a internet quanto com o próprio discurso da autoajuda; e, por fim, alguns livros do gênero, mais
citados pelas colaboradoras e alguns exemplares dos mais vendidos nos últimos anos, no Brasil.
O referencial teórico adotado pela autora analisa questões de subjetividade por meio do
uso das mídias digitais, bem como aquele que aborda uma perspectiva de interseccionalidade das
diferenças de classe, gênero, sexualidade, raça e religião, todos os marcadores que atravessam tal
uso.
A investigação se concentra nos processos de subjetivação em discursos de autoajuda
contemporânea voltados para o público feminino:
[...] que quando penetram na rede, através de uma específica forma de uso das
mídias digitais, se transformam em práticas de ajuda mútua. Tais práticas se
mostraram atravessadas por um debate central, ou seja, aquele direcionado à
esfera dos relacionamentos amorosos, ainda vistos como representantes do
sucesso feminino (FACIOLI, 2013, p. 13).
As análises da autora evidenciam que nos discursos da plataforma do site do Bolsa da
Mulher há intersecções entre gênero, sexualidade e raça, o que traz para o debate outros diversos
marcadores que compõem a experiência de sociabilidade destas mulheres.
As matérias lançadas pelo Bolsa, principalmente aquelas que apresentam dicas
sobre beleza, maquiagem e moda, comumente exibem como referencial de
estética feminina mulheres brancas, magras e de cabelos lisos ou alisados. É
frequente a exposição de textos que apontam, por exemplo, como usar cores que
realçam o tom da pele, que vêm acompanhados de uma série de fotos de
mulheres famosas, brancas, o que deixe evidente, nas entrelinhas, que o único
tom de pele que de fato merece destaque é o do corpo não negro. Mesmo as
reportagens que se colocam direcionadas a “ajudar” a mulher negra a entender
sua pele, usando a maquiagem apropriada em meio a um mercado que ainda não
dispõe de produtos para a pele e cabelos negros, acabam irrompendo na
exposição de fotos de mulheres negras embranquecidas. Em recente conteúdo
sobre como esconder espinhas na pele negra, a foto de chamada para a íntegra da
matéria tratava de expor uma mulher com cabelos pretos nitidamente alisados e
que se apresentava com um tom de pele quase branco (FACIOLI, 2013, p. 126).
A partir da pesquisa evidencia-se a presença de outros marcadores, além de gênero, em
plataformas digitais utilizadas por mulheres.
busca evidenciar nas obras50 das autoras a escrita autobiográfica como a forma de expressão que
não apenas traz à baila relatos preciosos acerca das mazelas enfrentadas pelas personagens, mas
também sinaliza a tripla opressão vivida pelas mulheres negras.
Ao discorrer sobre a importância das narrativas, Santos (2014) apresenta que:
A narrativa data de tempos imemoriais e tem como objetivo compreender não
apenas o mundo, mas principalmente a si próprio. Desse modo, na ânsia de
imortalizar sua história de vida, o ser humano vale-se da palavra escrita para
representar sua realidade, eternizando momentos que não podem ser capturados
pelo cronos. Nesse ínterim, a literatura confessional ou escrita do eu destaca-se
como uma narrativa de teor intimista em que o autor é também o sujeito da
enunciação e tenta, por intermédio da palavra, explicitar fatos ocorridos em sua
existência (SANTOS, 2014, p. 22).
Conforme evidenciado por Santos (2014), existem congruências nas histórias de vida de
Carolina Maria e Maya Angelou.
A negritude, o preconceito, as dificuldades para criar os filhos sozinha num
mundo tipicamente misógino e a coragem para transformar esses episódios de
dor em fatos memoráveis, fazem das autoras supracitadas ícones da escrita do
eu. Valendo-se do veio da memória, Carolina e Maya revisitam o passado e
relatam com poeticidade eventos de dor que nem mesmo as transformações do
tempo são capazes de apagar. Ao registrar a própria existência, por meio da
escrita, as escritoras transcendem os limites do cronos e levam o leitor a uma
reflexão sobre questões identitárias, sexistas e, sobretudo, preconceituosas que
ainda assolam a realidade de muitas mulheres negras (SANTOS, 2014, p. 32).
Evidencia-se que a hierarquia de gênero, raça e classe tem direcionado mulheres negras
para a fronteira dos acontecimentos, silenciando as vozes afro-femininas. A análise da obra destas
autoras evidenciou a interseccionalidade de opressões como a grande temática das obras em
questão, podendo ser entendida como uma realidade social conflitiva e tensa, que se quer
transformada (SANTOS, 2014).
Barbara Araújo Machado (2014), na dissertação intitulada “Recordar é preciso":
Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro
contemporâneo (1982-2008)”, discute a relação entre literatura e militância e, mais amplamente,
entre cultura e política no movimento negro brasileiro contemporâneo.
Machado (2014) apresenta a análise da trajetória e da obra literária da escritora negra
Conceição Evaristo, considerada como uma intelectual orgânica51.
50
As obras analisadas por Santos (2014) foram: I know why the caged Bird sings (1969), Gather together in my
name (1974), de Maya Angelou, Diário de Bitita (1982) e Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus.
51
Segundo a concepção de Antônio Gramsci (MACHADO, 2014).
111
bloco, sua composição artística e o perfil das integrantes; as dinâmicas das relações de raça,
gênero e sexualidade no interior do bloco; o trânsito entre o Bloco Afro Ilú Obá De Min e o seu
Ponto de Cultura Ilú Oná: Caminhos do Tambor.
Por certo tempo as discussões sobre mulher negra na composição do Ilú não eram bem
recebidas e com atuação de Beth Belli, pressionada por parte da população negra que colocava
em pauta a ausência de mulheres negras no Ilú Obá, passou a trabalhar mais esse tema nas
reuniões e encontros de dentro do bloco.
A partir de análises de Carneiro (1995), Mcclintock (2010) e Moutinho (2004), a autora
analisou as formas com que marcadores sociais da diferença tais como raça, gênero, sexualidade,
religiosidade e cultura operam um em relação ao outro no cotidiano do Bloco Afro Ilú Obá De
Min, agindo de diferentes formas em diferentes situações (SOUZA, 2014). Abordam-se discursos
antropológicos sobre cultura e cultura negra e as formas que as componentes do bloco
interpretam e operacionalizam essa cultura.
Sumaya Machado Lima (2010), na tese “As filhas do vento e o céu de Suely: sujeitos
femininos no cinema da retomada”, analisa como os filmes ficcionais de longa-metragem,
situados no período da retomada do cinema brasileiro, “As filhas do vento” (2005), de Joel Zito
Araújo e “O Céu de Suely” (2006), de Karim Aïnouz, representam sujeitos femininos em
condição de exclusão social e como ocorrem as estratégias de poder relacionadas a esses sujeitos.
Maria Isabel de Castro Lima (2009), na dissertação “Cassandra Rios de lágrimas: uma
leitura crítica dos inter(ditos)”, discute que obras consideradas de pouca complexidade pelo
cânone do século XX ficaram à margem dos estudos literários.
Neste panorama, as autobiografias de mulheres começaram a ser procuradas e lidas, ou
relidas pela crítica feminista a partir dos anos 1980. O destaque é feito para narrativas que sofrem
marginalização dentro destas marginalizadas, obras de mulheres lésbicas, ignoradas, escondidas
ou tratadas como doentes mentais. Cassandra Rios52 faz parte destas mulheres que foram
invisibilizadas e com seu trabalho literário luta pelos direitos de mulheres lésbicas.
Em sua pesquisa, Lima (2009) realiza um histórico sobre o gênero autobiográfico,
abordando algumas teóricas feministas pós-estruturalistas. Desta forma se destaca a importância
52
Cassandra Rios é o pseudônimo da escritora Odete Rios.
113
do estudo dos textos autobiográficos de mulheres para uma reescrita da História, apresentando
aspectos críticos sobre as diferenças existentes dentro da categoria mulheres.
A autora salienta que:
Usar a categoria “mulher” para análise é uma estratégia de articulação política.
No entanto, é imprescindível que essa estratégia leve em consideração que o
sujeito é intersectado por múltiplos discursos, pelas condições de produção de
seu texto, pelo momento histórico, além de outras tantas categorias, como
sexualidade, classe, raça e etnia (LIMA, 2009, p. 28).
Para estudar o tema de maneira mais aprofundada, a autora identifica a exclusão social,
através do conceito de interseccionalidade/discriminação composta de Crenshaw.
O conceito feminista de interseccionalidade serviu para visualizar os conflitos
que levam as personagens a um determinado tipo de exílio, à negociação de suas
identidades e ao seu eventual reposicionamento social ou político.
Posicionamento político no sentido mesmo que o feminismo aplica. “O pessoal é
político”, de forma que modos de pensar sempre serão diversos e constituídos
em múltiplas vozes, às vezes, convergentes, outras vezes contraditórias, mas
sempre focalizadas nas lutas e conquistas das mulheres (idem, 2010, p. 60).
Jorge Hilton de Assis Miranda (2015b), na dissertação “Perspectivas de rappers
brancos/as brasileiros/as sobre as relações raciais: um olhar sobre a branquitude”, traz a
necessidade de se compreender o estilo musical do rap dentro do seu contexto elementar de
composição do hip-hop enquanto manifestação de caráter sociopolítico que envolve cultura e
movimento. Ele diz que no Brasil:
[...] o Rap surge na década de 1980. Seus precursores são herdeiros da Black
Music brasileira dos anos 1970, cena fortemente inspirada pelo contexto de luta
política e cultural estadunidense. Nesse enredo anterior, as composições dos
artistas negros locais refletiam cada vez mais consciência da sua cidadania e
negritude, com valorização da estética afro, revolta contra opressão e incentivo à
mudança de comportamento (MIRANDA, 2015b, p. 23).
O rap no Brasil, conforme o autor, recebeu muita influência norte-americana, e embora no
início não se voltasse diretamente para as injustiças sociais, teve em seu segundo momento uma
crítica muito ativa ao machismo e ao sexismo.
Coloca-se em debate os conflitos da legitimidade de “brancos cantando músicas de
negros” e evidencia a partir de falas de seus sujeitos de pesquisas que muitos se sentiram
discriminados por serem brancos em um espaço socialmente considerado para negros. O autor,
porém, problematiza que os preconceitos sofridos por brancos e negros não podem ser
equiparados, já que os negros são acometidos de maiores injustiças e violências sociais. Ele traz
para debate o conceito de empatia abnegada como sendo a “elevada capacidade de compreensão
114
e aceitação de situações ofensivas por outro indivíduo ou grupo, em razão de contextos históricos
de injustiça nos quais esses se encontram” (MIRANDA, 2015b, p. 42).
Para discutir identidades o autor aborda outras categorias de análise como gênero, religião
e estética, articulando-as com raça. Aponta que dentro do movimento do rap a educação enquanto
processo de transformação positiva dos indivíduos pode sensibilizar homens para que estes
também se tornem capazes na luta contra o machismo.
53
Ao longo do texto não foram encontradas relações diretas destes autores com interseccionalidade.
117
relações de poder em torno das formas de regulação da vida que se interseccionam às marcas e
habilidades do corpo, aos discursos de racialização humana, às relações sociais abertamente
tarifadas, à classe social, às representações de masculinidade e à orientação sexual.
54
De acordo com Araújo (2015), o ofício de baianas de acarajé tem percorrido várias gerações e se constitui
enquanto conhecimento popular disseminado há séculos no estado da Bahia. A autora aponta que em tempos
coloniais, esse ofício teve grande significado para muitas mulheres e se constituía como única alternativa de sustento
familiar e sobrevivência, não só econômica, mas também simbólica e religiosa – ainda hoje, essa prática é o que dá
sustento para muitas famílias. Desta forma “com a popularidade, tanto do futebol no Estado quanto dos alimentos
oferecidos em seus tabuleiros, não surpreende que as baianas sejam presença comum nos estádios, há pelo menos 50
anos, segundo relatos das próprias baianas. Mas, em tempos de Megaeventos no País, inúmeras violações de direitos
humanos acontecem em nome da realização das obras e do cumprimento das exigências do capital internacional”
(ARAÚJO, 2015, p. 1).
120
55
Conforme Pereira (2015, p. 35) são consideradas “executivas aquelas profissionais que ocupam posições
gerenciais ou de direção em grandes empresas, nacionais públicas e privadas assim como multinacionais que
compõem o mundo coorporativo. Portanto mulheres que nesses cargos assumiram responsabilidades e tem voz e
poder de decisão nos lugares profissionais que ocupam”.
121
56
Ainda nesta questão deve-se considerar artifícios como os apresentados por Carneiro (2003) de que a “boa
aparência” utilizada até recentemente nos anúncios de emprego, num país onde ser negro é associado a tantos
estereótipos negativos, é uma forma sutil de barrar as aspirações dos negros, em geral, e das mulheres negras, em
particular.
122
negras. Ainda que a luta feminista tenha alcançado avanços significativos em relação ao mercado
de trabalho, ainda não conseguiu diminuir as desigualdades raciais que atingem mulheres negras.
No recorte temporal utilizado, somente foi encontrada a pesquisa de Francisco José Roma
Buzar (2012) que traz o panorama das discriminações de pessoas portadoras de deficiência a
partir de análise interseccional. A dissertação intitulada “Interseccionalidade entre raça e surdez:
a situação de surdos (as) negros (as) em São Luís – MA”, tem inspiração na teoria da
interseccionalidade e no que esta tem contribuído para a compreensão dos aspectos de gênero da
discriminação racial e dos aspectos raciais da discriminação de gênero.
Buzar (2012) parte do entrecruzamento entre raça e surdez para compreender as
circunstâncias concretas da experiência de intersecção vivenciada por surdos (as) negros (as) em
São Luís/MA. De acordo com o autor:
[...] as questões referentes às subordinações interseccionais enfrentadas por
surdos (as) negros (as) não são encontradas nem dentro dos estudos surdos e
nem dentro dos estudos étnico-raciais no Brasil. A invisibilidade referente a este
tema no nosso país é tão marcante que não encontramos um só artigo, livro ou
publicações acadêmicas científicas que tratasse do referido assunto (BUZAR,
2012, p. 65).
O autor utiliza as categorias de superinclusão e subinclusão, desenvolvidas nos Estudos
sobre a Discriminação Racial relativos ao Gênero.
Carla Adriana da Silva Santos (2012) na dissertação intitulada “Ó paí, prezada! Racismo e
sexismo institucionais tomando bonde no conjunto penal feminino de Salvador”, identifica e
analisa a intersecção do racismo e sexismo institucionais no Conjunto Penal Feminino de
57
Salvador, Bahia . O conceito de interseccionalidade é utilizado como ferramenta teórico-
metodológica e prática à captura dos marcadores do binômio gênero-raça que dão margem à
opressão diferenciada das mulheres negras em privação de liberdade.
A pesquisa de Rodrigo da Silva (2013), intitulada “Discriminação múltipla como
discriminação interseccional: o direito brasileiro e as intersecções de raça, gênero e classe”,
57
O trabalho se baseia em estudo de campo de cunho etnográfico realizado durante os meses de dezembro de 2011 e
janeiro de 2012, no Complexo Penitenciário Lemos de Brito.
123
O levantamento se situa três décadas após Crenshaw ter dado o nome ao conceito de
interseccionalidade enquanto “uma sensibilidade analítica, uma maneira de pensar sobre a
identidade e sua relação com o poder58” (CRENSHAW, 2015). Ainda que o estudo teórico tenha
evidenciado que a interseccionalidade foi criada em nome das mulheres negras, constata-se, pelo
estudo realizado, que o conceito tem permitido visibilidade a vários outros grupos, que
denunciam a falha de suas representações nos diferentes movimentos sociais.
O estudo atento a cada uma das teses e/ou dissertações apresentadas nesta etapa, além de
permitirem compreensões, antes postergadas, sobre práticas que são atravessadas por intersecções
de opressões, foi fundamental para a compreensão teórica/prática da interseccionalidade e de sua
ação na compreensão do encarceramento em massa de mulheres negras.
58
Em entrevista para o Washington Post (2015).
124
Destaca-se a importância das pesquisas sobre a violência contra mulher negra, por sua
intima relação com a questão do encarceramento em massa do seu segmento. Neste sentido é
preciso pensar que mulheres negras durante infância e fase adulta têm vivências de opressão
similares às outras mulheres, sendo vítimas de assédio e abuso na infância, violência sexual,
tráfico, exploração e violência por parceiro íntimo, entre outras, mas que conforme se pode
verificar nos dados de 2012 do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da
Saúde (SIM/MS), 58,86% das mulheres vítimas de violência doméstica são negras; das vítimas
de mortalidade materna, 53,6% são mulheres negras; 65,9% das mulheres que sofrem violência
obstétrica também são mulheres negras e 68,8% das mulheres mortas por agressão, segundo
dados do Ministério da Justiça (2015), são mulheres negras.
O Dossiê Mulher 2015, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, aponta que
56,8% das vítimas dos estupros registrados no Estado em 2014 eram negras. E 62,2% dos
homicídios de mulheres vitimaram pretas (19,3%) e pardas (42,9%).
Em relação aos homicídios de mulheres, tem-se o seguinte panorama, apresentado no
gráfico 6:
É válido destacar que apesar da Lei Maria da Penha ter alcançado uma redução, ainda que
pequena, com relação aos homicídios contra as mulheres, tratam-se de dados referentes a
mulheres brancas, já que o feminicídio de mulheres negras continua a crescer, o que demonstra a
baixa efetividade das medidas protetivas na Lei com relação a essa parcela da população.
125
59
No campo da saúde, outro ponto de pauta se refere à esterilização e também à anemia falciforme, que como dito
anteriormente é hereditária e também a doença genética mais comum da população negra no Brasil.
126
capítulo 4, existe um estereótipo, uma propaganda em torno da mulher negra que faz com que ela
seja alvo de perseguição – o que leva ao encarceramento.
As pesquisas apresentadas levam à reflexão do apresentado por Carneiro (2003) sobre a
naturalização do racismo e sexismo na mídia que ainda repassa e também constrói representações
sociais negativas da população negra:
Configura-se como panorama mundial a presença de mais de 700 mil mulheres presas em
estabelecimentos penais. No Brasil, a população absoluta de mulheres encarceradas cresceu
567% entre os anos 2000 e 2014, chegando ao patamar de 37.380 mulheres nesta situação
(INFOPEN, 2016). Segundo dados do World Female Imprisonment List, em 80% dos países do
mundo as mulheres representam entre 2% e 9% da população prisional total; na realidade
brasileira as mulheres compõem 6,4% do total, situando o país dentro da margem projetada pelo
instituto. Contudo, o ritmo de crescimento da população prisional total no Brasil é acelerado e
contrapõe as tendências mais recentes dos países que historicamente investiram em políticas de
encarceramento em massa.
Apesar do crescimento acelerado, reflexões sobre o encarceramento feminino ainda não
são tão presentes nas pautas e discussões do movimento feminista, pois:
[...] o feminismo da mulher universal, apesar de seus contributos antipatriarcais,
tornou-se incapaz de verificar o quanto as instituições prisionais, por exemplo,
se valeriam desta legitimidade de mão única, genérica, para discriminar certas
mulheres, dando-lhes exatamente um tratamento universalista, desconsiderando
particularidades femininas no tocante a saúde, a educação, trabalho e acesso à
justiça a partir do elemento racial. A ponto de, no aspecto jurídico, sofrer
contundentes críticas da criminologia feminista frente à ideia da distribuição
equânime do sistema de justiça, onde teoricamente as mulheres são
criminalizadas de forma linear quando cometem infrações e supostamente
propensas a igualdade de tratamento corretivo dado pelas prisões (SANTOS,
2014, p. 19).
A atuação do androcentrismo tende a desconsiderar os relatos de mulheres nas prisões, e
ainda que hoje os esforços feministas permitam voz e registro escrito referente aos estupros e às
torturas presentes nos contextos de aprisionamentos, “insistem as teóricas do Feminismo Negro
no fato de as razões de classe fazerem com que o segmento de mulheres negras seja mais
invisibilizado, a constar, que pouco é mencionada a história de resistência e tortura no cárcere”
(SANTOS, 2010, p. 36). Embora haja um aumento em estudos que “des-masculinizam” o
universo prisional, ainda existem lacunas em relação à especificidade da mulher negra (ALVES,
2014).
Todavia, à medida do aumento de empenho da ciência feminista em conhecer e
informar a situação das mulheres que vivem atrás das grades, torna-se possível
identificar as opressões, as explorações e resistências das infratoras dos valores
paternalistas do Estado. Sabemos da quase inexistência de registros de mulheres
negras prisioneiras, por isso, sem dúvida, a vontade intelectual de se pensar
gênero e raça, ambas entrelaçadas, nos fornece uma compreensão dos “silêncios
128
Denuncia-se, portanto, a existência de uma lacuna teórica que reflete na ausência de políticas
públicas para este grupo específico.
A construção do capítulo se apresenta da seguinte forma: inicialmente propõe-se uma
breve contextualização do panorama histórico com reflexões acerca da criação do sistema
criminal brasileiro como forma de garantir o controle social da população negra, gerando a
manutenção de um esquema baseado em hierarquias raciais. O objetivo é a problematização das
ideologias forjadas que inibem reflexões do porquê de tantas pessoas serem “direcionadas” para a
prisão, ainda que não haja um debate efetivo sobre a eficácia do encarceramento. Em um segundo
momento, a discussão se concentra na especificidade do encarceramento feminino, partindo da
análise documental dos indicadores raciais do sistema prisional feminino para que, por fim, a
partir das pesquisas do levantamento do capítulo anterior e também de pesquisadoras da temática
seja possível ampliar análises sobre a interseccionalidade de gênero e raça no espaço prisional
feminino.
60
INFOPEN é um programa de coleta de dados do Sistema Penitenciário no Brasil, alimentado pelos órgãos de
administração penitenciária voltado para a criação de banco de dados federal e estaduais sobre estabelecimentos
penais e populações penitenciárias.
130
seu bojo, se estabelece aplicando punições diferentes para negros e brancos, ou mesmo para
negros escravizados e negros libertados.
A Constituição de 1824 não contemplava os escravizados ao abolir as penas corporais,
“pois com a substituição do Livro V das Ordenações Filipinas pelo Código Criminal do Império
do Brasil, promulgado em 1830, os castigos corporais continuaram vigorando para eles”
(TRINDADE, 2011, p. 171). É apenas em 1841, com uma reforma no Código Criminal, que há
diminuição da participação civil no ambiente jurídico, o que institui uma estrutura policial
centrada ao executivo (BORGES, 2018). Neste período é válido destacar que:
Diante deste mundo efervescente e de crescente revoltas e táticas diante da
contradição do império que se pretendia liberal mantendo a instituição
escravista, acirram-se as noras e regulamentos de vigilância sobre a população
escravizada que se apresenta em contingente muito maior em relação à
população livre e branca (BORGES, 2018, p. 68).
Evidencia-se de que houve uma restruturação da sociedade brasileira imperial de modo a
preparar um aparelho estatal perpetuador das desigualdades, tendo como pilar a racialização.
Neste sentido, se problematiza a modernização do Estado brasileiro muito mais como discurso do
que uma realidade, já que traz como base a exclusão de pessoas que não eram consideradas como
os outros cidadãos, e sim como propriedades.
Com isso não é absurdo afirmar que sequer um status liberal o Brasil conseguiu
estabelecer na formação de seu Estado. Ao falarmos de uma perene mentalidade
de escravocrata em nossa sociedade, estamos falando destes elementos, destes
“mitos fundantes” que se remodelam e reconfiguram para manter a estrutura de
Casa Grande e Senzala operando. As “crises” dos sistemas prisionais e criminal
sequer poderiam ser denominadas como tal, porque se tratam na verdade, de
uma engrenagem funcionando a todo vapor pela manutenção de hierarquias
sociais constituídas e indissociadas do elemento racial (BORGES, 2018, p. 70).
No período do Brasil republicano ocorre uma série de reformas nas leis criminais e o
sistema de justiça começa a se estabelecer como instituição com leis que garantem a
criminalização desta população, que agora passa a ser “liberta”.
Com o crescimento das cidades, diversas são as ações tomadas no período
objetivando o aumento da vigilância sobre os negros e pobres livres. A polícia
ganha outros contornos e a vadiagem, embasada e definida por valores morais e
raciais de que “as classes menos favorecidas” eram preguiçosas, corruptas e
imorais, alimentavam o cenário que se entenderia como “crime” e da
criminalização do sujeito que seria criminalizado, o “criminoso” (idem, 2018, p.
76).
Após a Proclamação da República, o modelo penal progressivo foi o escolhido como base
para o Código Penal de 1890. Há então um rompimento com o que restava das penas corporais e
132
uma promoção da ruptura formal do direito penal com o período escravista e a instituição da
isonomia na aplicação da legislação penal. Esse Código Criminal, elaborado às pressas na
passagem de um regime a outro, foi duramente criticado e sofreu modificações com a criação de
várias leis esparsas que foram consolidadas através do Decreto nº 22.213, de 14 de dezembro de
1932, na denominada Consolidação das Leis Penais de Piragibe61, que vigorariam até 1940.
É válido destacar, conforme aponta Borges (2018), que a partir de 1930 o mito da
democracia racial se sedimenta e a miscigenação é tida como característica e símbolo nacional.
Deste modo, a legislação sobre o negro, que é limpa no Código de 1940, já não mais ocorre nas
práticas das instituições do Estado brasileiro, já impregnadas nas décadas anteriores.
Portanto, é uma engrenagem de repressão que segue em forte atuação. Ao passar
das décadas, esta criminalização vai se modificando e avançando sobre outras
características, inclusive sob o verniz de uma criminalização da pobreza em um
esforço de limpar o elemento racial como sustentação do sistema de
desigualdades brasileiro (BORGES, 2018, p. 80).
O Código Penal brasileiro atual é o que entrou em vigor no ano de 194062, mas a partir
dos anos 90 houve “uma série de medidas e edificações de leis elevando penas, dissertando
crimes hediondos, dificultando progressão de penas e assim por diante. E esta criminalização vem
conduzida por um forte cenário de cárcere e extermínio” (idem, 2018, p. 81).
Os dados sobre o crescimento carcerário a partir da década de 90 revelam como o controle
social brasileiro foi se moldando, reforçando seu caráter autoritário e seletivo. Em 1990 havia no
Brasil 90 mil presos; em 2015 esse número saltou para 615.933, sendo que deste, 39% estão em
situação provisória. Para entender este aumento assustador é preciso também analisar a Lei nº
11.343, de 23 de agosto de 2006, a Nova Lei de Drogas, que prescreve medidas para prevenção
do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, estabelecendo
normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito, definindo as tipologias
penais que enquadram as condutas nela descritas.
61
Foi o desembargador Vicente Piragibe quem sistematizou as leis esparsas em um corpo de dispositivos que passou
a ser chamados de Consolidação das Leis Penais.
62
O direito penal brasileiro fundamenta-se sobre três conjuntos de leis: o Código Penal (CP), escrito em 1940, que
descreve o que é crime e determina a pena para cada infração; o Código de Processo Penal (CPP), do ano seguinte,
que tem por objetivo determinar os passos que a justiça deve respeitar diante da ocorrência de um crime, da
investigação policial ao julgamento; e a Lei de Execução Penal (LEP) (Lei 7.210, de 11/07/1984), criada a partir de
um tratado da ONU sobre execução penal no mundo, definidora das condições em que o sentenciado cumpre pena
(JULIÃO, 2012, p. 105).
133
Com essa lei a população carcerária masculina tem um aumento de 220%, e a feminina
um crescimento ainda mais assustador, com índices maiores que 500%. Para entender as
modificações realizadas nos anos de 1990, é necessário estabelecer um paralelo entre as
realidades brasileiras e norte-americanas, pois:
Como se vê, as experiências de adoção de políticas de segurança pública cada
vez mais segregativas não é privilégio somente dos Estados Unidos, mas
também são adotadas no Brasil, portanto, é imprescindível fazer,
comparativamente, as análises do contexto social e econômico dos dois países
em função de que, no mesmo período, ambos os países implementaram políticas
de segurança pública muito semelhantes, no sentido de, não só privatizar as
penitenciárias, mas também, quando fosse o caso, permitir e incentivar a
construção de estabelecimentos penais, sob o argumento da melhoria da
segurança pública (GRAZIANO SOBRINHO, 2014, p. 137)
Ao declarar as drogas como inimigo público número um, em 1972, o então presidente dos
EUA, Richard Nixon, fundamenta um movimento proibicionista marcado pelo discurso moral
que tem como objetivo o controle das minorias étnicas residentes no país – o controle social é
mascarado sob a justificativa de combate ao tráfico.
Michelle Alexander63 na obra “The new Crow Jim”, oferece um panorama detalhado do
fenômeno crítico do encarceramento em massa de afro-americanos nos EUA, no contexto do que
se intitula “guerra às drogas”. A autora se debruça sobre a relação do sistema de justiça criminal e
a preservação da hierarquia racial, evidenciando que o sistema de justiça criminal foi construído
de forma a tornar as pessoas negras em cidadãos de segunda classe, da mesma maneira como as
leis de Jim Crow, que institucionalizaram a segregação racial, fizeram no século XIX e início do
século XX. Desta forma, a denúncia é que mesmo com o fim da segregação racial dos EUA nos
anos 60, o sistema se reformulou para manter o efeito da segregação, que é a estratificação social
a partir da clivagem de raça.
Essas duras disparidades raciais não podem ser explicadas pelas taxas de crimes
de drogas. Estudos mostram que pessoas de todas as cores usam e vendem
drogas ilegais a taxas notavelmente semelhantes. Se houver diferenças
significativas nas pesquisas a serem encontradas, elas frequentemente sugerem
que brancos, particularmente jovens brancos, são mais propensos a se envolver
em crimes de drogas do que pessoas negras. Isso não é o que se pode imaginar,
no entanto, ao entrar nas prisões e prisões de nossa nação, que por conta da
legislação antidrogas estão transbordando de criminosos pardos e negros. Em
alguns estados, os homens negros foram admitidos na prisão sob a acusação de
drogas vinte a cinquenta vezes mais do que os homens brancos. E nas grandes
63
Michelle Alexander é uma advogada estadunidense associada ao movimento de direitos civis de afro-americanos e
professora das universidades de Stanford e Ohio.
134
Para trazer esta discussão para o contexto feminino, a primeira preocupação foi em
mapear os indicadores raciais do encarceramento de mulheres. Partindo do pressuposto de que a
transformação de uma determinada realidade social não se concebe a partir do desconhecido, se
faz necessário um diagnóstico claro e preciso sobre suas condições.
O que se defende nesta pesquisa é a premência de que as bases sobre a realidade
carcerária feminina se mantenham atualizadas e disponíveis para acesso público, e mais do que
isso, que se dê a devida importância na coleta do perfil racial dos sujeitos que ali se situam para
64
Somados, roubos e furtos chegam a 37%. Homicídios representam 11% dos crimes que causaram a prisão
(INFOPEN, 2016).
135
que observações possam ser desenvolvidas com dados reais, precisos e construtivos para análises
críticas deste sistema – somente assim é possível revelar e trilhar caminhos para a reversão do
racismo institucional que aprisiona um grupo específico de mulheres.
Desta forma, a presente etapa do estudo se dedica ao levantamento e análise documental
dos indicadores prisionais femininos a partir de 2007 (primeiro registro identificado), até o mais
recente, de 2014.
A análise documental permite identificar, em documentos primários, informações que
sirvam de subsídio para responder alguma questão de pesquisa. De acordo com Lüdke e André
(1986), por representarem uma fonte natural de informação, estes documentos “não são apenas
uma fonte de informação contextualizada, mas surgem em um determinado contexto e fornecem
informações sobre esse mesmo contexto” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 39). A opção por
ferramenta metodológica parte da compreensão de que a linguagem utilizada nos documentos
indicadores do encarceramento feminino no Brasil constitui-se como elemento fundamental para
a investigação da interseccionalidade nestes espaços. Neste estudo compreende-se que o uso de
levantamentos de dados, estatísticas e indicadores permitem a valorização do conhecimento
científico de forma a garantir à pesquisa maior transparência e neutralidade, deslocando a
produção de uma perspectiva subjetiva para a cientificidade.
Para a análise destes documentos foram considerados seus processos de construções, a
partir do contexto evidenciado e sua objetividade/clareza na indicação do perfil étnico-racial, bem
como seus textos de análise e a presença/ausência de debates interseccionais, que considerem as
opressões de gênero e raça. Compreende-se que a inserção destes documentos em um contexto
sócio histórico resulta, assim como qualquer documento, em um conteúdo passível de análise.
Inicialmente é válido destacar que o descaso por parte do Estado na implantação de
políticas públicas voltadas para os estabelecimentos prisionais específicos, como os femininos, se
reflete na insuficiência de dados sobre estes espaços. Em 2004 foi criado o Sistema de
Informações Penitenciárias (Infopen) como um sistema de informações estatísticas do sistema
penitenciário brasileiro, atualizado pelos gestores dos estabelecimentos penais, que sintetiza
informações sobre as unidades e a população prisional. Antes da existência do programa os dados
disponíveis a respeito da realidade prisional do país eram escassos, com pouca periodicidade e,
frequentemente, não abrangiam todo o universo em questão. Com sua criação, esse quadro sofreu
sensível mudança a partir da produção de relatórios que começaram a desvelar a realidade
136
existente no universo intramuros, ainda que muitas e importantes questões ainda permaneçam
invisíveis aos olhos da sociedade65.
Os responsáveis pelo Sistema alertam que nos dez anos de sua existência, o Infopen se
estabeleceu enquanto dispositivo fundamental para a análise de informações do sistema
penitenciário brasileiro, permitindo compreensões sobre o impacto e a eficácia das políticas
públicas desenvolvidas na área.
Analisando as entidades e organizações responsáveis pela produção dos documentos
percebe-se algumas rupturas em relação à preocupação com os dados do sistema prisional
feminino – mesmo sendo criado em 2004, é apenas dez anos depois que o Infopen se dedica à
coleta e publicação de dados mais sólidos e profícuos sobre a realidade de mulheres encarceradas.
Vale salientar os percalços na busca destes dados e as dificuldades no acesso ao site do
Sistema de Informação Penitenciária, que se encontrava em muitos momentos fora do ar.
Os relatórios analisados foram: Grupo de Trabalho Interministerial: Reorganização e
Reformulação do Sistema Prisional Feminino (2007), Mulheres Presas – Dados Gerais: Projeto
Mulheres/DEPEN (2011), Mulheres encarceradas – Consolidação dos dados fornecidos pelas
unidades da federação (2008), Mulheres Presas – Dados Gerais: Projeto Mulheres/DEPEN
(2011), e o mais recente, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, de junho de
2014, publicado em 201666. Estes documentos não foram produzidos pelo Infopen, mas se
valeram dele numa revisão de seus dados de modo a contemplar primordialmente o recorte de
gênero. A busca no presente estudo é analisar a potencialidade destes documentos numa revisão
que também aborde os marcadores de raça.
A seguir é apresentada a tabela 3 para melhor elucidação destes relatórios de dados
prisionais femininos, a partir de suas datas de publicação:
65
Informações a partir do Infopen (2014).
66
Encontraram-se documentos levantados pela Pastoral Carcerária que não estavam disponíveis nos sistemas centrais
de divulgação da realidade prisional feminina, mas que pela sua dedicação em questões importantes são apresentados
nesta pesquisa.
137
67
Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) criado por Decreto Presidencial s/nº, de 25 de maio de 2007, com a
finalidade de “elaborar propostas para a reorganização e reformulação do Sistema Prisional Feminino” e foi
composto pelos seguintes órgãos do Governo Federal: Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da Presidência
da República; Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça; Secretaria Especial de Promoção da
Igualdade Racial; Secretaria Especial dos Direitos Humanos, ambos da Presidência da República; Ministério do
Trabalho e Emprego; Ministério da Saúde; Ministério da Educação; Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome; Ministério da Cultura; Ministério dos Esportes; Secretaria Nacional Antidrogas do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República; e Secretaria Nacional da Juventude da Secretaria-Geral da
Presidência da República, cujos membros foram designados pela Portaria da SPM/PR nº 24 de 14 de junho de 2007.
A coordenação do Grupo de Trabalho Interministerial, nos termos do 2º parágrafo, do artigo 2º do referido Decreto
Presidencial1, após o início dos trabalhos do Grupo, convidou representantes da Sociedade Civil para fazerem parte
do mesmo. As entidades, ao aceitarem o convite, indicaram: Heidi Ann Cerneka - da Pastoral Carcerária Nacional - e
sua suplente Michael Mary Nolan, do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC); Kenarik Boujikian Felippe, da
Associação Juízes pela Democracia (AJD), e sua suplente Luciana Zaffalon Leme Cardoso, do Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD).
138
68
Retirado do item 1.1 Sistema de Informação/Banco de Dados, p. 30, do documento Reorganização e Reformulação
do Sistema Prisional Feminino, 2007.
139
As lacunas neste documento podem ser verificadas na falta de dados estaduais; o único
gráfico que apresenta o perfil racial traz dados nacionais e não apresenta nenhuma discussão
sobre como foi coletado, ou uma análise sobre o significado de se ter um percentual de 60% de
mulheres negras e pardas.
No ano de 2011 o relatório “Mulheres Presas” apresenta os dados gerais do
encarceramento feminino a partir do Projeto Mulheres/DEPEN. Por meio da Diretoria de
Políticas Penitenciárias, o documento é apresentado como parte do Projeto Efetivação dos
Direitos das Mulheres no Sistema Penal, voltado para o atendimento às necessidades da
população carcerária feminina, por meio da estruturação de políticas e ações voltadas a esse
público. Há novamente uma discussão por parte do DEPEN que surge da preocupação com a
crescente taxa de encarceramento feminino.
Parece haver uma preocupação maior do documento nos dados sobre o perfil racial da
população carcerária, já que o mesmo traz o panorama nacional e também o de cada estado da
federação, conforme pode ser visto no gráfico 8.
143
A partir dos dados foi elaborada a tabela 5 com o perfil racial das mulheres por estado da
federação.
Tabela 5 - Perfil racial das mulheres encarceradas por estado da federação
Estado Pardas Brancas Negras Indígenas Amarelas
Acre 85,94% 6,42% 6,42% 0% 0,8%
Alagoas 66,84% 13,9% 8,55% 0% 0%
Amazonas 71,35% 12,32% 6,07% 0,34% 0%
Amapá 46,15% 23,07% 26,15% 2,3% 2,3%
Bahia 40,76% 10,43% 17,06% 0% 0%
Ceará 37,39% 5,89% 20,95% 0,75% 0,37%
Distrito Federal 60,54% 18% 21,44% 0% 0%
Espírito Santo 64,87% 19,2% 14,98% 0,11% 0%
Goiás 48,5% 27,38% 15,53% 0% 0%
Maranhão 48,66% 13,39% 12,5% 0% 0%
Minas Gerais 35,53% 26,71% 17,17% 0% 1,8%
Mato Grosso do Sul 56,87% 26,8% 9% 0,79% 0,08%
144
Por este gráfico evidencia-se que a população carcerária feminina é composta por uma
maioria negra(68%). Porém, é válido observar o apresentado na tabela 6 sobre a distribuição da
população privada de liberdade por raça cor ou etnia nas Unidades da Federação:
Tabela 6 – Raça, cor ou etnia das mulheres privadas de liberdade por UF (2014)
São Paulo, o estado com o maior número absoluto de presos, tem também a maior
população absoluta de mulheres encarceradas, respondendo por 39% do total de presas no país
em 201469 (INFOPEN, 2014). Sobre este estado em específico, não estão disponíveis os dados
raciais, o que alerta para uma grande lacuna. Nas demais Unidades da Federação, a maioria
absoluta da população prisional é negra. Os estados com maior porcentagem de pessoas presas
negras são o Acre e o Amapá.
69
Dados do INFOPEN (2014) também apontam o Rio de Janeiro, com 4.139 mulheres presas (11% do total), e
Minas Gerais, com 3.070 presas (ou 8,2%), ocupando, respectivamente, a segunda e terceira posições no ranking de
2014.
147
Apenas nos estados do sul do país – Santa Catarina (36%), Paraná (33%) e Rio Grande do
Sul (32%) – a população prisional não é composta majoritariamente por pessoas negras. Esse
dado, contudo, deve ser analisado à luz do perfil demográfico desses estados: apesar de apenas
1/3 da população prisional da região sul ser composta por pessoas negras, ainda há uma
sobrerrepresentação dessa parcela da população, considerado que na população em geral da
região a porcentagem de pessoas negras é de 21%.
A análise destes documentos com indicadores da população prisional feminina entre os
anos de 2007 a 2014 apontam progressos, mas se marcam primordialmente pela fragilidade e
inconstância em relação ao recorte racial.
Os relatórios acessados e analisados não foram satisfatórios para se desvelar o perfil
étnico-racial nas prisões femininas e evidenciaram fragilidade e descaso do Infopen ao fornecer
dados sobre essa parcela da população em estado de encarceramento.
Coloca-se como reflexão o apresentado por Silva (2014) de que ainda que estas pesquisas
avancem no sentido de garantir maior visibilidade para o encarceramento feminino, pouco se vê
progresso no aspecto racial do aprisionamento. Ainda que estas mulheres criminosas assumam
novos papéis na sociedade, papéis não aconselháveis para sua condição de “segundo sexo” elas
também são compreendidas a partir de sua subversão ao modelo de sociedade vigente (SILVA,
2014). “Invariavelmente, os castigos destinados às mulheres, inserindo aí a invisibilização da
temática prisional, objetivam não somente purificar, normatizar e recuperar a “essência” fundante
das teses voltadas a comportamentos biologizados, mas, também, credibilizá-las” (SILVA, 2014,
p. 35).
Há uma falta de disponibilidade em imagens sobre a vida nas prisões femininas e isso
corrobora na persuasão de ativistas das prisões que estão principalmente preocupados com a
situação das pessoas em privação de liberdade – da centralidade do gênero para uma
compreensão da punição estatal (DAVIS, 2013).
Embora os homens constituam a grande maioria dos prisioneiros no mundo,
aspectos importantes da operação da punição estadual são perdidos se se supuser
que as mulheres são marginais e, portanto, não merecedoras de atenção. A
justificativa mais frequente para a falta de atenção às mulheres em prisões e às
questões particulares em torno da prisão feminina é a proporção relativamente
pequena de mulheres entre as populações encarceradas em todo o mundo.
(DAVIS, 2013, p. 65 – traduzido pela autora).
Estas lacunas sobre o perfil racial das mulheres encarceradas prejudicam a construção de
análises consistentes sobre esta realidade. Não se percebeu com o estudo destes documentos uma
148
70
Santos (2014) evidencia o desinteresse da pesquisa em investigar as motivações das mulheres sucumbirem à lei
através de seus audaciosos crimes.
153
Todavia, a autora afirma que “eliminar a influência prejudicial dos estereótipos de gênero
não precisa, no entanto, levar a uma completa cegueira de gênero que desconsidere
especificidades da mulher essenciais para dar a ela, além da igualdade formal, a tão almejada
igualdade material” (idem, 2014, p. 80).
Torna-se fundamental para o presente estudo a discussão apresentada por Cheskys (2014)
sobre a interação entre gênero, classe e raça/etnia enquanto recorte indispensável no trabalho com
mulheres encarceradas brasileiras, que permite reflexões sobre as nuances acrescentadas pelas
outras formas de discriminação, além da de gênero.
Assim, embora não se possa abrir mão do recorte de gênero na análise das
especificidades da população carcerária feminina, sobretudo considerando
que essa perspectiva ainda tem sido pouco explorada na comparação com
as demais formas de discriminação (especialmente quando se fala em
problemas relativos ao cárcere), e porque, afinal, é isso que as distingue
primordialmente da população carcerária masculina, não podemos deixar
de reconhecer a existência de três vetores principais que empurram cada
vez mais as mulheres encarceradas para a base da pirâmide social: a
discriminação de gênero, de raça e de classe (CHESKYS, 2014, p. 80).
Parte-se da compreensão de que as identidades se compõem por diferentes fatores que se
relacionam constantemente, e se apresenta o conceito de estereótipos compostos de Cook e
Cusack (2010) para analisar de que forma o gênero interage com os demais traços da identidade.
Mulheres presas representariam um exemplo de estereótipo composto porque são:
CONSIDERAÇÕES
Dentro das epistemologias do feminismo negro, esta ligação entre linguagem e dominação
precisa ser problematizada dentro do percurso histórico de colonização e de escravização, como
parte do processo de conquista que ao transportarem forçosamente africanas/os para terras
colonizadas, os fizeram de escravos em um espaço onde linguagem falada não era por eles
compreendida, e onde seu idioma materno não tinha sentido nenhum (HOOKS, 2008).
Podemos pensar este mesmo processo dentro das produções intelectuais científicas, que
sendo forjadas em uma instituição branca, masculina, heteronormativa tem estes critérios para
elaboração de uma linguagem padrão e normativa. Todavia, se durante a escravidão mulheres e
homens negros assimilavam a linguagem do opressor utilizando-a como som da resistência, é
preciso, estando situados na academia, que usemos a linguagem acadêmica como forma de
recuperarmos nosso poder dentro deste contexto de dominação, mas sem perder de vista a
necessidade de recriação utilizada por negros/as neste período – a produção intelectual que visa
romper com os processos de violência contra populações marginalizadas necessita também da
recriação da linguagem, permitir espaços nas pesquisas onde possamos produzir cultural e
epistemologicamente visões de mundo contra-hegemônicas.
Deste modo, “mudar a maneira como nós pensamos sobre linguagem e como nós a
usamos, necessariamente altera a maneira como nós sabemos o que nós sabemos” (HOOKS,
2008, p. 862). Não se pode esperar que a linguagem mude através da mudança do mundo, a
dialética entre linguagem, pensamento e mundo é processual e contraditória, por isso é necessário
um discurso que se faça democrático e antidiscriminatório (FREIRE, 2009).
Na trajetória busquei ressaltar como desde a graduação, com o primeiro contato com os
debates raciais, os aprofundamentos teóricos e o desenvolvimento de pesquisas e práticas
acadêmicas têm me construído em um processo dialético. Qual o significado de ser uma mulher
negra que se descobre tardiamente como tal, desenvolvendo pesquisa que desvela e denuncia
realidades de machismo e racismo? Embora esta não tenha sido uma questão de pesquisa, é fato
que tal questionamento perpassou todo o desenvolver deste estudo.
A produção do conhecimento se fundamenta no meu olhar sobre as leituras que realizo.
Produzo coletivamente, tendo como base minhas experiências e meu modo de experenciar o
mundo que vivo. A alegria da pesquisa se encontra primordialmente na descoberta de mulheres
negras com obras tão impactantes e fundamentais: descortinamento das nossas possibilidades
enquanto mulheres negras.
159
Eu não fui apresentada para estas autoras como fui para “clássicos da educação”, ainda
que suas leituras tenham corroborado no meu processo de desvelamento pessoal e construção
enquanto docente. Escrever sobre uma perspectiva que não está sendo debatida nas suas
disciplinas obrigatórias, ter que conhecer para buscar, faz do processo um desafio. Um dos
produtos finais é o desejo que se criou por querer me entender enquanto sujeito, não em uma ação
individual, e sim coletiva e de militância, que reconheça o espaço de privilégio que tenho na
academia, como ensejo para nossa inclusão nestes espaços.
Nos estudos, bell hooks denuncia a prática de mulheres brancas que não permitem
espaços para as narrativas de mulheres negras:
Raramente se escreve sobre tentativas por parte de feministas brancas de
silenciar mulheres negras. Muitas vezes, elas acontecem em salas de
conferência, salas de aula ou na privacidade de acolhedoras salas de estar, onde
uma negra solitária enfrenta a hostilidade racista de um grupo de brancas
(HOOKS, 2015, p. 204).
Ter vivenciado tentativas de silenciamento desde a graduação e ter escolhido mulheres
negras para construir conhecimento científico foi a forma de reconhecer que ainda que o espaço
acadêmico seja branco, masculino, heteronormativo, classista, projetado de forma que não parece
caber a mulher negra, eu luto e demarco meu lugar. Eu não posso padecer, vou resistir e ficar por
nós!
A pesquisa se iniciou a partir do interesse em se compreender as categorias de gênero e
raça dentro dos espaços prisionais, e os caminhos evidenciaram a necessidade do debruçar teórico
sobre o conceito de Interseccionalidade, que além de ser chave para entender as opressões de
mulheres nestes espaços também permitia reflexões sobre outros tipos de opressões intersectadas.
Declinei então da opção de pesquisa de campo e me dediquei a uma pesquisa teórica que
trouxesse aprofundamento sobre o conceito e adentrando a partir dele nas compreensões sobre
gênero e raça nos sistemas prisionais.
Houve uma dificuldade, enquanto pesquisadora do presente estudo, em “aceitar” a
pesquisa teórica como suficiente em seu papel e sua responsabilidade com o compromisso social
do ser pesquisadora.
Ao perceber a capacidade em si da pesquisa no meu processo de autoidentificação racial e
de gênero, compreendi que havia um compromisso social muito bem estabelecido em ser mulher
negra acadêmica ocupando um espaço de produtora de conhecimento. Há uma sub-representação
da mulher negra no espaço acadêmico que se agrava com a sub-representação de nós nos
160
gênero, e alcança ganhos inestimáveis para a garantia de nós mulheres aqui, hoje, mas ainda
assim, surge na voz de mulheres brancas, heterossexuais e de classe média e por isso, ainda que
lute contra uma dominação que deve ser combatida em nossa sociedade, a masculina, não luta
contra o racismo, a homofobia e tantas outras opressões que as mulheres estão sujeitas.
A partir de Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez e outras feministas negras brasileiras, foi
possível problematizar a situação da mulher negra que teve seus corpos associados ao trabalho, à
violência e ao sexo no período da escravidão, e ainda o tem – agora em ações específicas do
nosso contexto que precisam ser denunciadas pelas produções interseccionais, dentre as quais
destacamos o sistema prisional.
Compreendeu-se Interseccionalidade enquanto conceito sociológico dedicado ao
desvelamento de interações nas vidas das minorias. Ainda que mulheres negras já tivessem
denunciado a situação de violência que estavam sujeitas por conta de seus pertencimentos de
gênero e raça, foi Kimberlé Crenshaw (1989) que cunhou o conceito teoricamente no final da
década de 80, enquanto sensibilidade que permite olhar como diferentes esferas de opressão
colidem produzindo impactos mais ou menos violentos a partir da realidade que se problematiza.
Sendo a Interseccionalidade um conceito cunhado no bojo do feminismo negro
estadunidense e recebido por feministas negras brasileiras, mas de forma ainda pouco difundida,
busquei compreender mais sobre o conceito a partir da sua recepção por pesquisadores/as
brasileiros. Apresentado como Estado de conhecimento em Interseccionalidade, analisei o
levantamento bibliográfico realizado no banco de teses e dissertações da CAPES entre os anos de
2005 e 2015, que evidenciou as contribuições da perspectiva Interseccional na ampliação das
discussões acerca das sobreposições de opressão que afetam sobremaneira a mulher negra.
Inicialmente, buscando compreender o que desperta nos/as pesquisadores/as o interesse
pela perspectiva interseccional, se há uma similaridade com o processo de construção deste
estudo, no qual minha subjetividade de mulher negra é o que gera o interesse por compreender
mais a fundo estas opressões, tentei traçar um perfil no pertencimento de gênero e raça dos
pesquisadores/as.
Não houve dificuldades para se estabelecer que há um número expressivamente maior de
mulheres escrevendo sobre a temática da interseccionalidade tanto na produção de dissertações,
quanto de teses, porém a análise sobre o pertencimento racial das pesquisadoras/es não foi
possível, pois nem sempre estes deixavam evidente este aspecto em suas trajetórias.
162
Os conceitos, as compreensões e as novas visões que este estudo proporcionou não são
aqui apresentados como conclusivos – são portas de entradas, convite para mim e para quem mais
esteja disposto a entender as dores de um mundo injusto. O estudo é também um manifesto de
apoio a todos os grupos que precisam lutar pelo reconhecimento e pela garantia de direitos.
165
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ANEXOS
Anexo 1
176
Anexo 2
177
Anexo 3
178
Anexo 4
179
Anexo 5
180
Anexo 6