(PDF) Don Juan e A Construção de Um Mito em El Burlador de Sevilla
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Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Literatura Espanhola, do
Departamento de Letras Modernas
da Faculdade d
dee Filosofia, Letras e
Ciências Hum
Humanas
anas da Universidade
de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Letras.
São Paulo
2007
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São Paulo
2007
2
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DEDICATÓ
DEDICATÓRIA
RIA
aos meus irmãos, Paula e Leandro, e sobrinhos, Caio e Pietra, pela família
que somos e seremos;
3
AGRADECIME
AGRADECIMENTOS
NTOS
4
RESUMO
ABSTRACT
view - social, politics and religious facts - as well as the literary structure
view - related to the artistc form in which the previuous ones gain shape -,
and the way those factors associate to each other compounding the plot
sustaining myth.
Don Juan, Stone guest, Myth, Tirso de Molina, Spanish Golden Century
5
SUMÁRIO
Resumo.....................................................................................05
Abstract.....................................................................................05
Índice.........................................................................................07
Introdução.................................................................................08
Conclusão..................................................................................73
Referências
bibliográficas.............................................................................75
6
ÍNDICE
I.Introdução...............................................................................08
V. Conclusão..............................................................................73
7
INTRODUÇÃO
1
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: 1750-1836. São Paulo: Livraria Martins, 4ª
edição, p. 31.
8
Assim, este trabalho levanta questões cuja finalidade última é a
confirmação do uso ideológico — de uma ideologia em total conformidade à
sociedade absolutista espanhola do século XVII — de uma estrutura literária mítica
por parte do autor de El burlador de Sevilla, com o sentido de reforçar a transmissão
de uma moralidade através do exemplo teatral.
9
CAPÍTULO 1
AS OBRAS VERSUS A FÉ
2
VAREY, J. E. Cosmovisión y escenografía: el teatro español en el siglo de oro. Madrid: Castalia,
1990.
10
Um dos principais ensinamentos que o público de El burlador de Sevilla
deveria depreender é o de que a obra do homem deve ser superior à sua fé. O
espectador poderia dar-se conta de que Don Juan tem alguma fé, já que não chega
a formular uma negação da existência de Deus e da punição, como podemos
comprovar em seu famoso refrão “¡Tan largo me lo fiáis!” (“Tenho tempo de sobra”),
pois seria completamente diferente se ele afirmasse não acreditar no castigo, ou
risse das admoestações — como o refrão “No hay plazo que no llegue, ni deuda que
no se pague” (“Não há prazo que não chegue, nem dívida que não se pague”) —
como se não passassem de singelas crendices. O caráter didático-moralizante da
obra parece estar na base dessa ausência de crítica teórica. Afinal, a transgressão
de Don Juan só poderia ser justificada pelo seu autor como oriunda da busca por um
prazer profano e inconseqüente, de quem não respeita as leis deste e do outro
mundo, tornando-se um pecador. Mas a personagem jamais poderia estar dotada de
uma fundamentação teórica que justificasse tal transgressão. Na tentativa de
imprimir a lição de moral nos espectadores, a repetição de “¡Tan largo me lo fiáis!”
só pode caracterizar o pecador contumaz, que pensa em obter o perdão na hora da
morte.3 O problema é que a personagem acredita que pode pedir perdão um dia, e
ser salvo pelo arrependimento — ainda que, no seu caso, não seja possível haver
uma verdadeira contrição. Mas a ênfase na importância da obra humana nos leva a
pensar que o autor conseguiu levar ao palco a Contra-Reforma: a fé não é o
suficiente para justificar o pecador. Nesse sentido, presentifica-se a noção de que a
fé sem obras é inútil, matéria morta, como lemos na Epístola de Tiago:
3
Segundo o crítico Ramiro de Maeztu, Don Juan não é um cético, e sim um soberbo, pois se fosse
cético o convite à estátua de pedra seria absurdo. In: MAEZTU, R. Don Quijote, Don Juan y La
Celestina. Madrid: 1981. Espasa-Calpe. p. 85.
4
Tiago: 2: 20-26. BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1993.
11
Sob esse aspecto, a obra configura-se como mais uma defesa católica
contra o Protestantismo, já que o tratamento que dá às noções de pecado e
salvação diverge radicalmente à visão de Lutero que, em seu sermão Duas espécies
de justiça, de 1519 5, nega a idéia patrística tradicional de justificação do homem
como decorrente de um processo gradativo de erradicação dos pecados. Lutero
propõe a fides apprehensiva, que capacita o pecador a captar a justiça de Cristo,
tornando-se uno com ele. A justiça é sempre extranea, sem merecimento do fiel,
dada somente pela graça. O crente é sempre simul justus et peccator. Seus pecados
não se apagam, mas sua fé garante que deixem de pesar contra ele. O cristão é
morador de dois reinos: o de Cristo e o das coisas mundanas, e sua justificação vem
antes da santificação, pois esta última, sim, é gradual e começa logo após o pecador
ter adquirido a fé. Lutero também estabelece, em Liberdade de um cristão 6, de 1520,
uma antítese entre os mandamentos divinos do Velho Testamento, que considera
impossíveis de serem cumpridos, e a promessa de redenção do Novo Testamento.
Afirma que o primeiro tem a função de mostrar ao homem sua própria incapacidade
de ser virtuoso e fazê-lo desesperar-se diante disso. O Novo Testamento serviria,
então, para reconfortar-nos, mostrando que ainda que não possamos atingir a
salvação através do cumprimento irrestrito dos mandamentos, podemos consegui-la
através da fé. Mais tarde, em A servidão da vontade 7, apesar de não negar o valor
da razão natural, opõe-se à tese humanística de Erasmo, segundo a qual o homem
tem a oportunidade de utilizar seus poderes racionais para descobrir como Deus
quer que ele aja. Para Lutero, não se pode medir Deus pela razão humana, nem
entender os mistérios da Sua vontade. Somos todos frutos do pecado original e por
isso estamos condenados à nossa natureza contrária e má. Os mandamentos
divinos devem ser obedecidos apenas por provirem de Deus, parecendo-nos justos
ou não, divergindo da percepção tomística e humanística, que entendia Deus como
uma espécie de “legislador racional”. A justificação sola fide (pela fé apenas) exclui a
possibilidade de o cristão justificar-se (salvar-se) por mérito de suas obras. Porém, o
5
LUTERO, M. Apud: SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, p. 290.
6
Idem, Ibidem, p. 292.
7
LUTERO, M. Apud: SKINNER, Q. Op. cit., p.287.
12
protestante acrescenta que está ao alcance de todos a percepção da gratia de Deus
— a graça salvadora concedida por Ele àqueles que predestinou para a salvação.
Essa graça constitui um favor fora de proporção com o mérito humano: o pecador
deve visar diretamente a fidúcia, ou seja, a fé passiva na justiça divina e na
possibilidade de obter a justificação através da Sua misericórdia. Esse pensamento
é antitético ao vigente na Igreja Católica, que propõe a existência da sindérese,
iluminação dada por Deus aos homens, que os capacita a distinguir as duas coisas e
concluir, racionalmente, qual ação O agradaria, enquanto que a lex pecati luterana
prevê a incapacidade humana de julgar o bem e o mal, incapacidade esta
decorrente da mácula hereditária do pecado original.
8
AGOSTINHO. O livre-arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia, 1990. Edição de António Soares
Pinheiro. pp. 79-80.
13
finalidade que o criador a concedeu. Assim sendo, há razão suficiente para ela nos
ser dada, pois sem ela não nos seria possível viver virtuosamente. Desta maneira,
não há como considerar uma injustiça de Deus o fato de nos haver dotado de livre-
arbítrio, com isso sujeitando-nos à possibilidade do erro. Da mesma forma que
nossas mãos, pés e olhos são um bem, que grande falta fazem quando um não os
possui, e que, porém, podem ser usados de maneira incorreta na prática do mal,
assim o é o livre arbítrio: deve-se, sim, condenar os que o usam mal, mas nem por
isso afirmar-se que não deveria dá-lo quem o deu. Deus é justo, confere prêmios
aos bons e castigos aos maus, que são males para estes últimos. É autor deste tipo
de “males”, mas não do mal praticado por alguém, responsabilidade de seu autor,
praticado por livre vontade. A liberdade, portanto, constitui um bem que nos fora
dado para que Deus pudesse medir e regular o valor da nossa virtude. Isso significa
que, sem ela, tudo teria o mesmo peso, sendo impossível, então, dimensionar cada
ato como bom ou mau — o que certamente inviabilizaria a execução da justiça
divina.
14
lascívia, ou “iniância” 9 , que é o amor pelas coisas que cada um pode perder contra
sua vontade. Aquele que tem a iniância de praticar o pecado é tão pecador quanto
aquele que o pratica. Ou seja: o que caracteriza o pecado está sempre na vontade
do homem, pois mesmo não exteriorizando o mal, não praticando o pecado, torna-se
pecador pelo simples fato de sua vontade estar dominada pela paixão. Vemos o
quanto isso se aplica, por exemplo, à insistência com que Don Juan demonstra
desejar a propagação de seu nome, estando sua vontade dominada pelo apego
mundano da fama: a simples existência desse desejo já seria um pecado, fato
bastante agravado pelos subterfúgios que ele usa para realizá-lo. Para que possa
evitar ser possuído pela iniância, o homem deve, antes, fazer uso da boa-vontade,
10
que se define pela intenção se viver reta e dignamente, visando atingir a sapiência.
9
Adota-se aqui o termo “iniância” conforme a tradução de António Soares Pinheiro consultada para
este trabalho: “‘Iniância’ deriva do verbo latino ‘inhiare’, também usado por Agostinho, o qual significa
esperar ou desejar avidamente. Exprime qualquer das impulsividades sensitivas, geralmente
desregradas, para o seu objecto, ou seja, o que vulgarmente se denomina ’paixões’”. In
AGOSTINHO. Op. cit., p. 29.
10
“A sapiência ou ‘sabedoria’ consistia no pretendido domínio de toda a ciência, e no conhecimento
das supremas leis da moralidade, um e outro unidos ao perfeito exercício do conjunto das virtudes. O
seu oposto era a insciência (stultitia), caracterizada pela ignorância e falta de princípios morais”.
Idem, Ibidem, p.36, nota 9.
15
E eis que a justiça é feita pelas mãos de uma estátua que é a
representação legítima do divino: ela é a pedra, símbolo da perenidade do Reino de
Deus. A estátua do comendador também encarna um paradoxo exemplar: ela
representa o ideal de liberdade católico — o que pode parecer-nos muito estranho
como atributo de uma figura pétrea. Lembremos, porém, que para o catolicismo a
escolha de Deus já é a escolha da liberdade pois, sendo Ele infinitamente perfeito, é
infinitamente livre. O fiel deve ter a liberdade de subordinar-se. Don Gonzalo de
Ulloa, morto por Don Juan em combate na tentativa de guardar a honra de sua filha,
sendo evidentemente o herói da sociedade retratada, representa a autoridade do
Pai, Senhor, Deus. Diz seu epitáfio:
11
MOLINA, Tirso de (atribuída a ). El burlador de Sevilla. Madrid: Ediciones Cátedra, 1990. Edición de
Alfredo Rodríguez López-Vázquez, p. 213. Todas as citações extraídas da peça serão referenciadas,
a partir deste ponto, apenas pelos números dos versos dessa edição.
12
Versos 2839-2846
16
vez temos a sindérese católica, seguida pelo mau uso do livre-arbítrio e o inevitável
infortúnio. Há, novamente, a correspondência agostiniana entre a vontade que se
afasta do bem comum em favor apenas do indivíduo e o castigo justo, aplicado a
essa falta: “Esta é a justiça de Deus/ quem tal faz, que tal pague.”
17
convocada pelo Papa uma congregação especial para examinar a disputa, e que por
várias ocasiões essa esteve prestes a condenar a doutrina de Molina, o que só não
ocorreu porque, além de a Companhia de Jesus ser um instrumento importante para
o papado — nas universidades e na expansão territorial do catolicismo —, ela era,
no fim das contas, mais eficiente no combate ao protestantismo do que a dos
dominicanos, que, de algum modo, dava margem a conceitos também usados por
aqueles. A solução, então, foi permitir que cada grupo opinasse como quisesse,
proibindo-os, porém, de tachar de hereges os seus contrários e também de publicar
livros sobre o tema sem o consentimento do Santo Ofício. 14
14
Cf. AVILLÉS, VILLAS & CREMADES. Historia de España: la crisis del siglo XVII bajo los últimos
Áustrias (1598-1700). Madrid: Editorial Gredos, 1988, p. 199.
18
De acordo com o crítico literário Ian Watt, é possível estabelecer-se a
seguinte relação entre Renascença e Reforma Protestante: ambas optam pela
primazia do indivíduo sobre o coletivo, traço que seria definidor da moderna
sociedade ocidental 15. Também defende a tese de que o individualismo sempre foi
germinal dentro doutrina cristã. Para tanto, baseia-se em Louis Dumont, que havia
estudado a sociedade de castas indiana e o modo como esse sistema se opunha à
forma social do cristianismo, pois, enquanto na primeira as pessoas tendem a
aceitar a as coerções da família extensa, da casta e da religião, sendo reconhecidos
como “indivíduos-no-mundo”, no cristianismo haveria uma sociedade teoricamente
baseada na igualdade entre os fiéis, sendo reconhecidos como “indivíduos-
16
relacionados-com-Deus” . A união entre os crentes é de caráter meramente
espiritual, sendo cada um deles uma unidade moralmente autônoma. Watt conclui
então que a Reforma, ao reforçar a idéia de ligação direta entre Deus e o indivíduo,
corrobora a afirmação do individualismo renascentista, principalmente na concepção
de Calvino, cuja aplicação secular do protestantismo casou-se com o capitalismo
17
individualista.
15
WATT, Ian P. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp. 235-240.
16
DUMONT, L. Essais sur l’individalisme: une perspective anthropologique sur l’ideologie moderne.
Apud WATT. Op. cit., p.235.
17
WATT. Op. cit., p.236. A causa da relação entre o calvinismo e o capitalismo na visão de Max
Weber não se baseia em uma descendência obrigatória: “Apesar de pouco importante
numericamente na época de expansão do protestantismo, ele [calvinismo] era ligado em qualquer
país a uma determinada classe social (como o eram aliás os demais ramos do protestantismo), de
uma maneira tão característica, e, de certa forma, ‘típica’, que, por exemplo, nas igrejas dos
huguenotes franceses, monges-industriais (comerciantes, artesãos) constituíam boa parte dos fiéis,
especialmente na época das perseguições. Até os espanhóis sabiam que a heresia (dos calvinistas
da Holanda) ‘promove o comércio’, e isso vem coincidir com as opiniões expressas por Sir William
Petty, em sua discussão sobre as razões do desenvolvimento capitalista nos Países Baixos. Gothein
corretamente qualifica a diáspora dos calvinistas como ‘essência da economia capitalista’. Mesmo
assim, todavia, poder-se-ia considerar como fator decisivo a superioridade das culturas econômicas
francesa e holandesa, que deram origem a essa diáspora, ou, quem sabe, à imensa influência do
exílio na decomposição das relações sociais tradicionais.” WEBER, Max. A ética protestante e o
espírito do capitalismo. Trad. Maria Irene Q. F Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. São
Paulo: Pioneira, 1967, pp.25-26.
18
Como sabemos, a Espanha do século XVII — onde surge El burlador de Sevilla por volta de 1630
— encontra-se já à beira do colapso de seu mercantilismo, que havia apostado apenas no exploração
de metais americanos. Sua economia tornava-se cada vez mais dependente de importações, devido
19
ferozmente para deter o protestantismo através da Contra-Reforma. Assim, se
podemos afirmar que Reforma e capitalismo enfatizam a autonomia do indivíduo, é
passo inevitável concluirmos que na Espanha o indivíduo não teve a chance de se
desenvolver no mesmo grau.
19
De fato, a sociedade espanhola do XVII se vê como corpo místico ,
onde não pode haver o fomento do individualismo de qualquer um dos seus
constituintes, pois é inerente à forma aristocrática de governo ver seus cidadãos
como elos de uma cadeia, integrada por todos os membros da sociedade, desde o
20
plebeu até o próprio rei.
à falta de incentivos às atividades agrícolas e manufatureiras: como dispunha de muitos metais, além
de não produzir, pagava o preço que lhe fosse cobrado pelo que precisava. Já desestabilizada, a
Espanha se colocava à margem da expansão capitalista.
19
A expressão corpus mysticum foi originalmente usada na época carolíngia como equivalente à
Eucaristia ou à hóstia consagrada, assumindo mais tarde uma conotação sociológica, como quando o
papa Bonifácio VIII, na bula Unam sanctam de 1302, define a Igreja como “um corpo místico cuja
cabeça é Cristo”. O termo foi facilmente adaptado por juristas e acadêmicos para a concepção e
estabelecimento do Estado secular, também considerado corpo místico cuja cabeça seria o rei. Cf.
KANTOROWICZ, E. H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, pp.125-169.
20
TOCQUEVILLE, A. L’Ancien Régime et la Révolution. Apud WATT. Op. cit., pp.238-239.
20
Iremos vasculhar os mais remotos registros históricos e literários que atestam sua
existência, e que, devidamente contextualizados, nos ajudarão a delinear, por
contraposições, a configuração desse desejo em El burlador de Sevilla.
21
MALKIEL, María Rosa Lida. La idea de la fama en la Edad Media castellana. México: Fondo de
Cultura Económica, 1983, p. 13.
21
A fama almejada por Aquiles, não é uma fama qualquer, e sim aquela
espécie que corresponde ao conceito clássico de gloria: o feito de ser considerado
bom pelos homens de bem, e por isso ser imortalizado. De acordo com os estudos
de Maria Helena da Rocha Pereira, a gloria “é o público reconhecimento das
qualidades do cidadão” 22, isto é, a conquista de uma boa reputação. Ultrapassa a
idéia da mera fama, pois esta é apenas “o que se diz a respeito de alguém”, sendo
23
um termo neutro , enquanto a gloria prevê o bom valor do quê é dito, e de quem o
diz. É também é um valor que se relaciona mais tarde à res publica romana, de
caráter político e social, e que se reflete sobre a herança da estirpe. Em Cícero, são
inúmeras as reflexões, espalhadas em diversos textos, sobre a natureza e o valor da
gloria, geralmente relacionando-a com virtus, conceito que evolui de sua acepção
original de cunho militar (traduzível por valentia, coragem) para um termo que se
aproxima da “hombridade”, sendo não só “homem”, mas “homem correto”,
especificando-se mais adiante em sua evolução como “qualidades boas do caráter”,
já no sentido em que conhecemos atualmente: virtude. Podemos averigüar dita
relação neste trecho de Dos Deveres: “A melhor das heranças que os pais podem
deixar aos filhos, mais valiosa do que todo o patrimônio, é a gloria da sua virtus e
24
dos seus feitos.” Além disso, Cícero especifica que ela resulta de três condições:
de ser amado pela multidão, de se possuir a confiança (fides) dessa multidão, e de
ser admirado e merecedor de honrarias.
22
pedagógica para a cidade. A honor, porém, é um degrau inferior à gloria, pois se
atinge mais facilmente do que a imortalidade concedida por esta. Sendo assim, a
honor é alcançada pelo vir honestus (aquele que é íntegro e digno de admiração,
honorável), enquanto a gloria é apenas atribuível ao vir magnus. O vir honestus
torna-se digno de honrarias e homenagens, que no entanto não garantirão sua
posteridade gloriosa. A imortalidade, portanto, é somente atingível pelo vir magnus e
através da gloria.
26
MALKIEL. Op. cit., p.33.
23
Pereira 27, a ideologia da Eneida sobrepõe a virtude à glória, e Lida de Malkiel
encontra provas desse interesse secundário pela fama ao comparar o
comportamento dos guerreiros da Eneida ao “ingenuo deseo de sobresalir por el
que marchan a la batalla Glauco y Aquileo.” 28 O desejo de glória que não se liga a
nenhuma vantagem prática configura-se em Virgílio como uma espécie de futilidade
juvenil, presente em mancebos, como Niso, Euríalo, Palante e Ascânio. Para
concluir, “hasta parecería que Virgilio juzga semejante deseo como frivolidad griega,
no tolerable en la acción verdadera, sino, a lo sumo, en el deporte, en los remeros
que esperan palpitantes la señal de la regata (Eneida, V, 137-138).” 29
27
PEREIRA. Op. cit., p.336.
28
MALKIEL. Op. cit., p.37.
29
Idem, Ibidem, p.38.
30
AGOSTINHO. A cidade de Deus. Apud MALKIEL. Op. cit. p.101-103.
24
Más desapasionado que San Agustín y otros Padres de la Iglesia (San
Juan Crisóstomo, San Gregorio Magno), no condena redondamente el
sentimiento de la fama y admite que, sin ser un bien en si, puede serlo
accidentalmente (Summa theologica, Secunda secundae, quaestio
CXXXII, art. I) (...) pero inmediatamente viene la necesaria aclaración:
(...) sin ser pecado mortal, es el amor a la gloria pecado peligroso, pues
predispone al hombre a olvidar el verdadero fin de sus buenas acciones.
31
31
MALKIEL. Op. cit. p.103.
32
Versos 1416-1417.
25
Mas notamos que Don Juan não só quer a propagação de seu nome,
como quer que ela aconteça devido a um único movimento repetitivo seu, o de
enganar todos à sua volta para desonrar uma mulher:
33
Versos 1305-1309.
34
AGOSTINHO. A cidade de Deus. Apud LIDA DE MALKIEL, María Rosa. Op. cit., pp.101-103.
26
¡Ah, pobre honor! Si eres alma
del hombre, ¿por qué te dejan
en la mujer inconstante,
si es la misma ligereza? 35
É essa honra, portanto, que Don Juan quer tomar para si: ao fazê-lo,
ele toma também a honra dos homens da cidade, acumulando-a toda. O que era
boa reputação alheia torna-se “a reputação” de Don Juan, que deseja ser conhecido
como “el burlador de España” (com destaque para o artigo definido, que o destaca
inclusive de outros patifes, como o marquês de la Mota):
Catalinón:
Y tú señor eres
langosta de la mujeres;
y con público pregón,
porque de ti se guardara
cuando a noticia viniera
de la que doncella fuera,
fuera bien se pregonara:
“Guárdense todos de un hombre
que a las mujeres engaña,
y es el burlador de España.”
Don Juan:
36
Tú me has dado gentil nombre.
O tema da honra era um dos preferidos pelo teatro do Siglo de oro, por
considerar-se que, além de agradar, move o público a praticar o bem, como vemos
na mais importante preceptiva dramática do período, Arte nuevo de hacer comedias,
de Lope de Vega:
35
Versos 153-156.
36
Versos 1471-1481.
27
Roubar a honra alheia para si através do engano significa que Don
Juan nunca está dizendo a verdade, não tem compromisso com a palavra
empenhada. No entanto, é a sua preocupação em cumprir com a palavra que dera à
estátua do comendador Don Gonzalo, a de comparecer à segunda ceia, que
acarreta sua punição. Segundo Ian Watt:
É verdade que Dom Juan ainda guarda uma residual e ambígua fidelidade ao
código de honra, mas a sua versão desse código é muito mais arcaica e
individualista do que as leis da cavalaria cristã. Para ele, o que está
fundamentalmente em causa é a determinação de manter sua conduta pública,
e não permitir que nada se diga ou se faça para deslustrar o mérito dessa face
externa. E essa versão da honra, o pundonor, transforma-se no instrumento
que dará morte a Dom Juan. Procurando certificar-ser de que Dom Juan
comparecerá à segunda ceia, a estátua do Comendador o desafia: ‘Como um
cavalheiro, manterá sua palavra?’ E ele responde: ‘Sendo um cavalheiro,
mantenho a palavra que dou aos homens’. Na segunda ceia é um aperto de
mão – gesto cavalheiresco com o qual se sela um compromisso – o
instrumento da danação de Dom Juan. Na verdade, a estátua alcança seu
propósito valendo-se da pública sujeição de Dom Juan à noção individual e
pagã de ‘fidelidade’ (troth), oposta à concepção cristã – mais moderna e mais
38
universal – corporificada na palavra ‘verdade’ (truth).
37
LOPE DE VEGA. Arte nuevo de hacer comedias. Edición de Enrique García Santo-Tomás. Madrid,
Cátedra. Versos 327-330.
38
WATT, I. Op. cit., p.116.
28
essa pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra
39
ela” —, exerce a justiça divina, já que a humana não o alcança.
29
carga al rey napolitano con más culpa que al de Castilla, pero, a pesar
de esto, el público tuvo que darse cuenta de que la obra contenía un
ataque agudo contra el poder de favoritos indignos, y una súplica para
que la Corona interviniera más directamente en la administración de la
justicia. No hubiese sido difícil referir esta lección moral a la España de
Lerma y de Olivares. 40
40
VAREY, John. Op. cit., p.146.
41
O Duque de Lerma foi deposto em 1618 e substituído por seu filho, o Duque de Uceda, que para
garantir sua eleição ao cargo, demonstrou uma profunda inimizade com o pai. Governou por apenas
três anos, sob a pressão de Baltasar de Zúñiga, opositor de seu pai, e que preparava a introdução do
futuro valido, seu sobrinho, o Conde-Duque de Olivares. Cf. AVILLÉS, VILLAS & CREMADES. Op.
cit., p. 50.
30
Señor: criados han de tener los reyes, unos más cercanos de su
persona que otros, y la voluntad no será en todos igual y determinará
con más afecto en algunos; y entre ellos podrá ser que uno solo sea
dueño de la voluntad del Príncipe (...) no está en eso el inconveniente si
el rey sabe en qué cosas puede hacer a su criado dueño de su voluntad,
42
y el criado cómo ha de usar de este favor y estado.
42
QUEVEDO, Francisco. Política de Dios y gobierno de Cristo. Apud TOMÁS Y VALIENTE,
Francisco. Los validos en la monarquía española del siglo XVII. Madrid: Siglo veintiuno de España
editores, 1990, p.50.
31
A personagem é a própria transgressão corporificada — sua ausência
de limitações em todos os níveis (moral, espacial, temporal) dão a idéia de um poder
demoníaco. Mas ninguém se iluda: Don Juan não é um revolucionário, um livre-
pensador que se rebelou contra o status quo. Embora se afaste substancialmente
dos valores em questão, não os coloca em dúvida em nenhum momento; ele não é
um rebelde. No fundo, instaura o caos, desarticulando a sociedade a seu redor na
prática, mas não há reflexão ou discursos teóricos sobre seus atos. Quando há
reflexão, esta vem sempre do "outro lado", e então vemos outras personagens
(Catalinón, o comendador, o rei, o pai) tecendo discursos moralizantes. Mas Don
Juan em nenhuma fala se mostra indignado quanto a essa moralidade. Podemos
ver, ao longo da peça, que nas ocasiões que podemos considerar como oportunas a
um questionamento da organização dessa sociedade, se isenta de fazê-lo: seu
comportamento vai sempre no sentido de ignorar deliberadamente as restrições que
se imponham à vontade, mas sem dar-se ao trabalho de contestá-las. Temos um
exemplo dessa aparente indiferença de Don Juan com relação à ordem social
quando o Marquês de la Mota confessa-lhe estar interessado em sua prima, Doña
Ana, já que ele tanto é capaz de aconselhá-lo que se casem, como também que a
engane:
Don Juan:
¿Es hermosa?
Mota:
Es extremada,
porque en Doña Ana de Ulloa
se extremó Naturaleza.
Don Juan:
Mota:
Don Juan:
32
Casaos, si es tan extremada.
Mota:
Don Juan:
¿No os favorece?
Mota:
Y me escribe
(...)
Don Juan:
43
Versos 1259-1277.
33
(união da carne). Na realidade, o que Graciano queria dizer não era que
o consentimento não constituísse um casamento, uma vez que ele
declara explicitamente que ‘o consentimento daqueles entre os quais é
feito o casamento é suficiente de acordo com a lei’, mas que o vínculo
só se tornava indissolúvel uma vez ocorrida a commixtio sexuum
(consumação). Para Graciano havia uma diferença entre um vínculo
válido e um inteiramente lícito, diferença esta que está na distinção
entre as núpcias (conjugium initiatum) e sua confirmação no conjugium
consummatum ou ratum. Somente com a união da carne é que o
contrato se transforma num laço cuja condição sacramental não pode
44
ser revogada.
44
BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Tradução de
Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 226.
45
Versos 1026-1031.
34
que quiere ser mi esposo.46
Don Juan:
Isabela:
Mi culpa
no hay disculpa que la venza.
[Aparte]
(Mas no será el yerro tanto
si el Duque Octavio lo enmienda.) 48
Arminta:
No sé qué diga,
que se encubren tus verdades
con retóricas mentiras.
Porque si estoy desposada,
como es cosa conocida,
con Batricio, el matrimonio
46
Versos 2250-2259.
47
Versos 3-8.
48
Versos 187-190.
35
no se absuelve, aunque él desista.
Don Juan:
En no siendo consumado,
por engaño o por malicia,
puede anularse.
Arminta:
Es verdad.
Mas, ¡ay Dios! que no querría
que me dejases burlada
49
cuando mi esposo me quitas.
Não temos indícios para saber se Doña Ana não arranjaria algum
estratagema para que a vissem na calada da noite recebendo seu amado — o que
certamente a livraria do casamento forçado pelo pai, e de sobra lhe traria o homem
desejado. Contudo, se tinha ou não intenção de fazê-lo, não importa muito à
moralidade da obra, pois é o seu ato de desobediência, por si só, que acarreta a
morte de seu pai.
49
Versos 2093-2105.
50
Versos: 1317-1330.
36
necessariamente era um pressuposto para todos. A aristocracia presente em El
burlador de Sevilla casa-se, é claro, por outros interesses, como no casamento
arranjado pelo rei para Doña Ana, ou como podemos entrever na resposta dada pelo
duque Octavio a seu criado Ripio:
Ripio:
Octavio:
Como podemos ver, persiste aqui uma noção que separa radicalmente
amor e casamento quando os envolvidos estão muito longe de ser “lacayo o
52
lavandera” . Don Juan, por sua parte, ao aconselhar o Marquês a casar-se e,
imediatamente depois, a enganar Isabela, não é na verdade nem favorável nem
contrário ao casamento: ele é simplesmente maquiavélico, no sentido de que
considera válida qualquer estratégia que La Mota utilize para ter a mulher desejada.
Ainda vemos que Don Juan, no que tange à sua posição frente as
restrições sociais, tampouco contesta a determinação real de ser “desterrado” em
Lebrija, comunicada por seu pai. Não cabe pensar que haveria lugar de se fazer um
51
Versos: 219-232.
52
A separação radical entre amor e casamento é uma tópica do discurso do amor cortês. Cf. BLOCH,
R. H. Op. cit.
37
discurso, proclamando a liberdade do indivíduo, cuja vontade não pode subordinar-
se a uma resolução real, a qual ele não contradiz mas, obviamente, a desobedece:
Don Juan:
Tenorio:
Don Juan:
¿En la muerte?
¿Tan largo me lo fiáis? De aquí allá hay larga jornada.
Tenorio:
Breve te ha de parecer.
Don Juan:
De qualquer forma, podemos ver que o que faz Don Juan é usar a
estrutura social a seu favor, já que, não se opondo a nenhuma de suas instituições,
aproveita-se das mesmas, utilizando-as a seu bel-prazer. Assim, sem proferir uma
palavra sequer contra o casamento, usa a palavra empenhada e a consumação
carnal, signos do matrimônio, para não efetivá-lo. Sem opor-se ao desterro,
aproveita a “viagem” para seduzir mais uma mulher. Don Juan sente-se protegido, e
não ameaçado, por essa estrutura social. E ele tem razões para isso, já que é de
uma família de privados do rei de Castilla, como orgulha-se de dizer:
53
Versos 1421-1442.
38
Yo soy noble caballero,
cabeza de la familia
de los Tenorios antiguos,
ganadores de Sevilla.
Mi padre, después del Rey,
se reverencia y se estima
en la Corte, y de sus labios
54
penden las muertes y vidas.
Si es mi padre
el dueño de la justicia
y la privanza del Rey,
¿qué temes? 55
O sistema protege Don Juan; o uso que faz de sua condição nobre
para humilhar — como o faz com Batricio, desrespeitando o direito deste sobre
Arminta — e para resguardar-se, conforme lhe convenha, certamente é algo
previsível nessa estrutura. Esse uso arbitrário da superioridade social é decorrente
de uma hierarquização rígida, que é aceita por todos, caso contrário a manipulação
de Don Juan não funcionaria. Porém ele ultrapassa o limite do aceitável — que não
é apenas aceitável, e sim, como já dissemos, previsível, já que uma sociedade cujos
poderes estão baseados no favoritismo prevê que alguém mais poderoso esteja fora
do alcance da lei — cometendo também o pecado da hybris. Quando se considera
numa condição superior aos demais homens, ele não está enganado, pois, de fato,
ele pode usar sua condição social para isso, além de poder considerar-se um
afortunado trickster — tipo popular do embusteiro —, já que suas burlas atingem até
mesmo o rei. Sua desmedida encontra-se no fato de desejar equiparar-se ao divino,
ou seja, é hybris — comportamento desmedido, excessivo, que não condiz à
condição de homem que conhece seu exato tamanho frente aos deuses —,
desacatar a estátua de Don Gonzalo. É no contato com o elemento divino que a
lição de moral “transcendente” se desvela. Somente no âmbito desse embate é que
podemos interpretar Don Juan como personagem demoníaca, pois é quando
54
Versos 2066-2073.
55
Versos 1994-1997.
39
evidencia-se sua construção alegorizante, personificação da vaidade tola dos
homens — que em seu caso é a vaidade da fama, da conquista e do engano. Sobre
as características dessa construção alegórica, trataremos no próximo capítulo.
40
CAPÍTULO 2
41
probo e digno de elogio (...) receberá o prêmio que lhe cabe, enquanto o malvado
56
será punido.”
56
LÓPEZ PINCIANO. Philosophía antigua poetica. Apud CARLSON, Marvin. Teorias do teatro:
estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 57.
57
PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In CÂNDIDO, Antonio (org.) A personagem de
ficção. São Paulo: Perspectiva, 2004.
58
“A alegoria é comumente distinguida da metáfora por ser mais extensa e detalhada, enquanto a
fábula é uma alegoria em forma de história curta e com uma conclusão moral (que pretende ser
definitiva). Essa última pertence a um gênero que se supõe hoje inexistente: o didático”. KOTHE,
Flávio R. A alegoria. São Paulo: Editora Ática, 1986, p.13
42
para legitimá-la. A conclusão é um pressuposto, não uma conclusão. A
fábula é uma forma de alegoria, é uma alegoria desenvolvida. Através
de elementos concretos procura-se expressar uma idéia ‘abstrata’. Que
só é abstrata no sentido de escamotear suas raízes sociais e históricas
para alcançar maior eficácia apresentando-se como a própria voz da
transcendência. 59
Ninguém:
Todo o Mundo:
Ninguém:
59
Idem, Ibidem.
43
60
e Ninguém busca virtude.
60
VICENTE, Gil. Todo o Mundo e Ninguém. Apud MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através
dos textos. São Paulo: Editora Cultrix, 1999, p.71. Notamos aqui já a noção de honra como boa
reputação, um valor extrínseco à pessoa, e não como uma virtude inerente. Cf. pp. 16-17.
61
Diferentemente do teatro de Shaekspeare, por exemplo, marcado principalmente por conflitos
internos das personagens, cujos monólogos encontram-se “já bem mais próximos da marcha real do
pensamento, com suas vacilações e incertezas, mas sem perder com isso a sua beleza retórica (...)
um dos quais, ‘To be or not to be’, gravou-se mesmo na imaginação popular como o exemplo mais
perfeito da reflexão poética sobre o homem” (PRADO, Décio de Almeida. Op. cit., p. 91). Esses
conflitos internos das personagens shaekespearianas tendem a ser a base da unidade de ação das
peças, criando a identificação do público com seu aspecto emocional, promovendo, de acordo com
Anatol Rosenfeld, o efeito catártico: “A fábula das peças de shaekespearianas desenvolve-se com
poderosa necessidade e motivação internas, apesar da freqüente descontinuidade das cenas e da
ruptura da ilusão por elementos cômico-burlescos. Esse rigor do desenvolvimento interno
corresponde a um teatro ilusionista. Nisso Lessing tem razão, ao considerar Shaekespeare superior
aos clássicos franceses na criação de uma atmosfera intensamente emocional e na obtenção do
efeito catártico exigido por Aristóteles.” ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva,
2004, p.73.
44
personagem teatral isoladamente, e sim inserida nas relações com os outros e na
totalidade da obra dramática. Como muito bem nos ensina o crítico Francisco Ruiz
Ramón:
45
Ora, o mito é imitação de ações; e por ‘mito’, entendo a composição
dos atos; por ‘caráter’ o que nos faz dizer das personagens que elas
têm tal ou tal qualidade; e por ‘pensamento, tudo quanto digam as
personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar
sua decisão.64
64
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964. Trad.
Antonio Pinto de Carvalho. Aristóteles dividia a tragédia em mito, caráter, pensamento, elocução,
espetáculo e melopéia. Destacamos os três primeiros elementos por serem os mais pertinentes à
análise aqui empreendida.
65
Segundo Rosenfeld, é sempre possível perceber no teatro ou uma tendência a enfatizar a ação ou
uma tendência a enfatizar a índole das personagens. Ao citar o teatro de Ibsen, por exemplo,
classifica-o como “drama analítico”, em que “a ação nada é senão a própria análise dos personagens
e da situação.” ROSENFELD, Anatol. Op. cit. p. 85-90 passim.
46
frente à devoção cristã, presente de forma inconteste no comendador e referida com
escárnio por Don Juan.
Isso equivale a dizer que, para conseguir uma mulher, Don Juan
simplesmente “dá” a esta o que ela quer, fingindo propiciar aquilo que ele sabe que
é desejado. Para Isabela e Ana, ele “realiza” o desejo de estarem com seus amados;
para Tisbea e Aminta, lhes “dá” a “oportunidade” de casamento com um nobre.
Nesse sentido, atua como um demônio, que só pode agir através do ponto fraco de
uma pessoa. Afinal, essas mulheres não agiram mal porque foram induzidas por
Don Juan, e sim porque sucumbiram a uma vontade inadequada aos preceitos
sociais e religiosos.
66
GONZÁLEZ, Mario Miguel. Don Juan: burlador, seducido y seductor. In ABREU VIERA DE
OLIVEIRA, Ester e MIRTIS CASER, Maria (Orgs.). Universo Hispánico - Lengua, Literatura, Cultura.
Vitória: UFES/APEES, 2001, pp. 212-214.
47
de si mesmo — como o seria para os antigos, baseados na ética aristotélica —, e
sim como um requisito para a salvação da alma — parâmetro tipicamente católico.
Se para os gregos o desejo não era considerado indigno em si, somente se fosse
dirigido a objetos indignos — pois o homem virtuoso deseja o adequado —, o
catolicismo rechaça a priori sua existência, numa espécie de neoestoicismo em que
a anulação do desejo possui um valor de ascensão espiritual. Sucumbir a uma
fraqueza, a um pecado, equivale a um empecilho à salvação cristã:
67
NAUGHTON, Virginia. Historia del deseo en la época medieval. Buenos Aires: Quadrata, 2005,
pp.64-65.
48
Don Juan, por sua vez, afirma que “burlar uma mulher e deixá-la sem
honra” é seu maior prazer. Nesta afirmação certamente se explicita a intenção
pedagógica do autor, mostrando que há homens “desse tipo” soltos por aí e que,
portanto, as donzelas deveriam se resguardar. Tomar a honra, que era um valor
fundamental para aquela sociedade, demonstra que Don Juan desempenha uma
função social, pois reforça a idéia de que é necessário preservar a mulher a todo
custo, já que é depositária da honra dos homens. Ou seja: configurando-se como um
representante dos valores condenáveis dentro daquela estrutura, sua atuação visa
ao fortalecimento de seus valores ideais. Assim, a principal função de Don Juan
dentro da obra é a de reforçar, por antítese ao comendador, os valores em
funcionamento naquele universo. Embora a história seja narrada como ocorrida no
século XIV, é evidente que o que se quer ilustrar são os males da sociedade
contemporânea aos espectadores 68, e assim sendo, Don Juan Tenorio empreenderá
sua missão às avessas, defendendo, por oposição, o saneamento do sistema social
atuante na Espanha do XVII. Esse reforço por contraste se dá em diversos níveis:
68
Ao projetar a história em um passado distante, nos parece que o autor tenta evitar a possível
identificação de personalidades e autoridades contemporâneas que poderiam ser facilmente
relacionadas com personagens que no enredo estavam ligadas ao rei. Além disso, o autor também
realiza um afastamento espacial, como nos mostra o crítico John Varey: “La Sevilla corrupta es la
ciudad de Sevilla, y no la Corte real, la que no es atacada. El menosprecio de corte de los moralistas
del siglo XVI claramente influyó a Tirso en su ataque contra la vida corrupta de la ciudad. Pero la
palabra ‘corte’ tenía dos acepciones en la España del siglo XVII: podía referirse a la ciudad o al
palacio, esto es al séquito de cortesanos y ministros que acompañaban al Rey. Pero aunque la Corte
del Rey español sale más o menos ilesa – a pesar del ataque contra la ciudad de de Sevilla – , no por
eso deja la inmoralidad de una Corte – la del Rey de Nápoles – de ser atacada sin clemencia en la
obra. Sin duda por razones políticas, Tirso decidió que sería más sensato atacar la Corte napolitana
que la de Alfonso XI de Castilla. El moralista muestra prudencia, y no sin razón, al seleccionar su
blanco.” In VAREY, J. Op. cit. p.139.
49
necessidade de se observar sempre a obra humana para se tornar merecedor da
misericórdia divina;
50
ORIGEM FOLCLÓRICA
69
Recitado por Rita Beleiro, 61 años, lavradora residente en Cuñas, província de Orense, Espanha,
em julho de 1903. In SAID ARMESTO, Victor. La leyenda de Don Juan. Buenos Aires: Espasa-Calpe
Argentina, 1946, pp. 29-30.
51
Até mesmo o nome do jovem, Don Galán, parece ecoar no nome de
Don Juan, por assonância. Podemos comprovar que este último também é
considerado um galante pelas demais personagens:
Gaseno:
¿Quién viene?
Catalinón:
Gaseno:
¿El viejo?
Catalinón:
Belisa:
E também:
Fabio:
70
Versos 1732-1737
71
Versos 2165-2166
52
Esse traço mulherengo será uma das bases de Don Juan Tenorio. O desrespeito
com o além encontra-se agravado em El burlador de Sevilla pelo fato de que Don
Juan não só desrespeita um morto, como o faz Don Galán, mas desrespeita um
homem que havia assassinado, e que era um modelo de conduta religiosa, política e
paterna. Assim sendo, Don Juan não só afronta o além, mas toda a ordem histórica
que Don Gonzalo de Ulloa encarna; Don Gonzalo é tanto uma representação da
Igreja quanto o é do Estado, basta recordar-nos da descrição elogiosa que faz dos
conventos lisboetas ao rei espanhol, demonstrando um orgulho que tanto é
devocional quanto patriótico 72. Ou seja, ao elaborar a obra sobre um tema folclórico,
acrescentou-se um fundo histórico que determina sua moral, mas que quer
apresentar-se como a verdade, como uma voz atemporal, transcendente. Sabemos,
no entanto, que essa “verdade” é uma mera convenção, e que o enredo não busca
nada mais do que reforçar uma estrutura social. O público de El burlador de Sevilla
não estava aprendendo nada novo sobre pecado e castigo, apenas estava sendo
“lembrado” de suas obrigações. Precisamente por isso a alegoria em cena é de
facílima compreensão, apresentando signos convencionais naquele universo,
inclusive ao evocar a lenda do jovem galante que ofende os mortos.
53
alusão, como veremos, toda a obra está pautada por signos consagrados do
universo social retratado.
Don Juan:
Gaseno:
73
Versos 1932-1939
74
Versos 2684-2692.
54
A visão do campo como espaço da virtude, no entanto, sobreviveu
ainda quando não necessariamente aludisse à religião. Além disso, também é
recorrente a idéia de que do poder de um cavalheiro sempre advém algum mal,
como vemos na fala de Batricio: “Bien dije que es mal agüero / en bodas un
poderoso”.75
Es privilegio del aldea que allí sea el bueno honrado por bueno y el ruin
conoscido por ruin, lo cual no es así en la corte ni en las grandes
repúblicas, a do ninguno es servido y acatado por lo que vale sino por lo
que tiene (...) Es privilegio de aldea que allí sean los hombres más
virtuosos y menos viciosos, lo cual no es así por cierto en la corte y en
las grandes repúblicas, a do hay mil que os estorben el bien y cien mil
76
que os incite al mal.
Batricio
(...)
75
Versos 1798-1799
76
GUEVARA, Antonio. Menosprecio de corte y alabanza de aldea. Edición de Asunción Rallo Gruss.
Madrid: Cátedra. p.177, 179.
55
uso de allá de la Corte.”
Buen uso, trato extremado.
Más no se usara en Sodoma:
que otro con la novia coma,
77
y que ayune el desposado.
Arminta:
Gaseno:
Gaseno:
Acompañaros querría
por darle de esta ventura
el parabién a mi hija
Don Juan:
77
Versos 1844-1847 e 1856-1867.
78
Versos 1960-1963
79
Versos 1758-1760
56
Tiempo mañana nos queda
Gaseno:
80
Versos: 1977-1982
81
RODRÍGUEZ LÓPEZ-VÁZQUEZ. Introducción. In MOLINA, Tirso de (atribuida a). El burlador de
Sevilla. Madrid: Cátedra, 1990, p. 27. O autor também nota que Tisbea funciona como um
contraponto feminino, de “burladora burlada”: “Tisbea participa en la burla al ocultarle a Don Juan el
hecho de que conoce su identidad. Dramáticamente el fondo de ese episodio está prefigurando ya el
esquema de construcción del mito: quien burla primero, más tarde será burlado” Idem, p. 57.
57
a essa figura, o enganador sem freios que um dia, finalmente, é enganado. Notamos
essa aproximação, por exemplo, em um comportamento recorrente de Don Juan: ele
alterna momentos de supressão do eu — quando se esconde, passando por outras
pessoas, ou quando pede a Catalinón que não revele à seduzida quem ele é —
com momentos em que se torna um "super-indivíduo", ao querer elevar-se muito
acima de todos os homens — nos momentos posteriores às conquistas, quando ele
almeja a fama de seu nome ("Ha de ser burla de fama", em suas palavras). Nesse
sentido, ele é um verdadeiro trickster, que usa de qualquer artimanha para efetuar
seus engodos82 .
82
Quanto ao fato de lançar mão de qualquer recurso para atingir sua finalidade, já foi dito por
Gregorio Marañón que Don Juan seria o exemplo de um certo maquiavelismo aplicado à prática
amorosa. MARAÑÓN, Gregorio. Don Juan e o donjuanismo. Apud RIBEIRO. Op. cit. p. 15.
83
VITSE, Marc. Las burlas de Don Juan: viejos mitos y mito nuevo. In RUIZ RAMÓN, F. y OLIVA, C.
(coord.). El mito en el teatro clásico español. Madrid: Taurus, 1988, p.182
58
comete hybris, isto é, uma progressão do enganador-mor para o orgulhoso
desmedido que ridiculariza a todos, pois os tem como seres inferiores, presas fáceis
e dignas de gozação. Don Juan é um ser excessivo, não tem prudência, e essa sua
desmedida o torna cômico. O caráter cômico aqui é exclusivamente entendido como
participando daquela instância que dá conta do feio, que pode ser inocente,
causando o riso, ou vicioso, causando o horror — caso em que obviamente se
insere o burlador.
Que sólo Don Juan reciba castigo, y tan tremendo, pero no los otros — ni
siquiera un castigo menor apropiado a sus culpas —, debe hacernos meditar
en por qué no se cumple el principio de la justicia poética, sino antes bien el de
la injusticia poética, en esos otros personajes. No me parece que sea en este
drama — como en otros — lo significativo el principio de la justicia poética, sino
su valor relativo y, especialmente, la contradicción patente entre justicia y no-
justicia poéticas. 84
não contém necessariamente uma justiça moral: o que acontece no final da peça é
apenas uma ordem aparente, que não consegue, porém, sanar todos os setores
corrompidos, dos quais Don Juan se aproveitava para enganar e conquistar a fama
de seu nome. Como já foi dito, ele só pode enganar porque há brechas que lhe
permitem, e essas brechas são, exatamente, as falhas das suas vítimas, que
mor funciona como uma denúncia dos pequenos pecados cometidos por quase
todos os retratados, pois são esses que permitem a atuação de um mal maior,
84
RUIZ RAMÓN, 1988, p. 36.
59
demoníaco, o qual ele encarna. Mais uma vez, percebe-se sua identificação com o
diabólico, pois assim como o demônio, Don Juan não obriga ninguém a pecar,
60
CAPÍTULO 3
61
atemporalidade que está diametralmente oposta à noção do eterno, pois trata-se de
um instante absoluto.
Laymert Garcia dos Santos, também faz notar a relação existente entre
tempo e vontade para Don Juan:
85
GONZÁLEZ, Mario Miguel. Introdução. In MOLINA, Tirso de (atribuída). O burlador de Sevilha e o
convidado de pedra. Trad. Alex Cojorian. Brasília: Círculo de Brasília, 2004, p.26.
86
SANTOS, Laymert Garcia dos. Don Juan e o nome da sedução. In RIBEIRO. Op. cit. p. 24.
62
expectativas do mundo ao seu redor. Essa singularidade, de fazer o que nenhum
outro homem é capaz, lhe confere o caráter de trickster — no sentido de ser alguém
mais esperto que os demais, e valer-se disso. No entanto, o retorno da estátua do
comendador do além-túmulo, como única instância capaz de puni-lo, confirma que
Don Juan não é somente mais um “burlador burlado”, e sim a encarnação do Mal,
tornando-se um “burlador absoluto”, que é punido pelo Bem supremo. É o momento
final de enfrentamento entre o Bem encarnado em Don Gonzalo e o Mal encarnado
em Don Juan que ressignifica o enredo de El burlador de Sevilla, pois é quando
evidencia-se seu aspecto mítico, de confronto entre absolutos.
FUNÇÕES DO MITO
87
FRYE, N. Fábulas de Identidade. São Paulo: Nova Alexandria, 2000, p. 40
88
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 2001. p.32
63
que se encontrem — portanto dizem respeito à natureza humana universal. Na
função sociológica, à qual nos interessa chegar, o que importa realmente é a
validação de uma ordem social. Nessa categoria, tem-se a defesa dos princípios
éticos de determinada comunidade através da ilustração que o mito proporciona.
Esses mitos "variam tremendamente, de lugar para lugar. Você tem toda uma
mitologia da poligamia, toda uma mitologia da monogamia. Ambas são satisfatórias.
Depende de onde você estiver”89. Embora a história seja narrada como ocorrida no
século XIV, é evidente que o que se quer ilustrar são os males da sociedade
contemporânea aos espectadores, e assim sendo, Don Juan Tenorio empreenderá
sua missão às avessas, defendendo por oposição a manutenção da mitologia social
atuante na Espanha do XVII.
CARÁTER SOBRE-HUMANO
Don Juan executa proezas que o afastam do comum dos homens, mas
possui uma dimensão antropomórfica, que o faz parecer humano. Como veremos,
ele está substancialmente oposto ao conceito de humanidade, que tomamos aqui
emprestado dos latinos e humanistas do Renascimento, conforme os estudos de
89
Idem, ibidem.
64
Maria Helena da Rocha Pereira 90 . A primeira noção de humanitas engloba a idéia de
natureza humana, aquilo que é característico do ser humano, modos de
comportamento que lhe são próprios. Dessa idéia original, deriva uma segunda
noção, que é o sentimento de simpatia ao próximo, de filantropia, ou "ação
humanitária". Essas duas primeiras acepções se referem basicamente ao indivíduo
tomado isoladamente. Já no plano social, tem-se mais duas possíveis significações
de humanitas: a primeira é a oposição à selvageria, sendo equivalente à civilidade, à
aculturação, se associando à cordialidade e à mansidão — isto é, os homens, antes
dispersos e violentos, aprenderam a convivência em grupo, subjugando-se às leis e
usando da mansidão, ou seja, limitando sua conduta; a segunda diz respeito à
cultura propriamente dita, no sentido de educação espiritual e intelectual — é a
formação do indivíduo dentro do grupo, a transmissão social da cultura (tendo
resquícios do conceito grego de paidéia). Vejamos o modo como Don Juan se afasta
substancialmente dessa "humanidade", em qualquer uma de suas acepções.
90
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit.
91
A respeito dessa relação que Don Juan estabelece com a sociedade como platéia de suas
façanhas, há uma excelente observação de Renato Janine Ribeiro, que nota que a personagem
opera uma mudança na acepção da palavra “público”, que passa do sentido político, de espaço
comum a todos, ao teatral, de platéia. Don Juan usa o espaço público como se fosse sua platéia.
“Fazendo-se espetáculo, ele garante que não exista mais rival para seus feitos, ou controle para suas
ações. O poder religioso foi descartado, dispensando-se o padre da cerimônia religiosa, excluindo-se
65
atenção, é a estátua, uma instância sobrenatural: ao que parece, Don Juan só pode
reconhecer como seu semelhante um ente sobre-humano. Do contrário, não há a
mínima ocupação com os problemas alheios, causados por ele próprio. Não há
nenhum traço de remorso 92, mesmo tendo burlado a amada do amigo, o Marquês de
la Mota.
da consciência a moral cristã; o poder temporal tornou-se irrelevante, já que o governante perdeu a
praça pública, reduzida, de ágora, a cenário. Isso é talvez o que há de mais notável na ação de Don
Juan: ele domina os homens por um recurso único, exemplar, o de teatralizar o social”. RIBEIRO, R.
J. A política de Don Juan. In: RIBEIRO, R. J. (Org.). Op. cit., p.16.
92
De fato, como aponta Mario González, não pode sentir culpa, já que carece da noção de tempo
retilíneo, onde caberia a consciência de um passado a ser redimido num futuro. Cf. GONZÁLEZ,
2004, p. 27.
66
não pode questionar os princípios éticos dessa cultura, mas nos é evidente que não
adquiriu para si nenhum dos seus conceitos — e dessa forma tampouco se insere
nessa última significação de humanitas.
67
poético. Não se trata de uma tentativa para acabar com o mito, mas de
uma crítica empreendida em nome de certo tipo de racionalismo. Os
mitos não morreram; ficaram apenas sujeitos a interpretações, podendo
sugerir outras figuras — menos poéticas — dotadas de princípios
normativos gerais, que forma conhecidas como divindades
alegóricas. 94
94
MITOLOGIA. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 738. Ainda com o intuito de ressaltar a diferença
entre um deus mítico e uma divindade alegórica, vejamos o exemplo de Ares (Marte) deus da guerra
e Enio (Belona), divindade que alegoriza a guerra. Enquanto o primeiro detém o princípio bélico, a
visão global do guerrear, a segunda expressa a própria luta que se empreende no campo de batalha,
sendo a concreção do conceito que está sob o comando de Ares.
95
MAEZTU, Ramiro. Op. cit. p. 90.
68
através deles. Já com as mulheres, Don Juan não necessita de meios: ele é seu
próprio veículo, o acesso às mulheres se dá pelo seu próprio eu — esse eu que faz
tudo o que lhe dá vontade, uma verdadeira representação do mito do poder.
96
Versos 2531-2542.
69
[aos mitos] compete acima de tudo despertar e manter a
consciência de um outro mundo, do além (...) Esse ‘outro mundo’
representa um plano sobre-humano, ‘transcendente’, o plano das
realidades absolutas. É através da experiência do sagrado, do
encontro com uma realidade transumana, que nasce a idéia de
que alguma coisa existe realmente, de que existem valores
absolutos, capazes de guiar o homem e conferir uma significação
à existência humana. 97
o que nos leva a concluir que a estátua e o burlador são duas faces do
mesmo mito, uma confirmando a outra.
97
Eliade, M. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1986. p.123
70
CONCLUSÃO
Este transfondo bíblico, que sustenta los gestos y las metáforas escénicas de
la obra, se complementa con un ámbito mitológico que funciona de manera
similar. Del mismo modo que los fragmentos textuales y gestuales de cada
escena actúan como prolepsis del final, también las referencias mitológicas
99
elaboran un entramado simbólico muy claro.
98
RODRÍGUEZ LÓPEZ-VÁZQUEZ, Alfredo. Op. cit., p. 26.
99
Idem, ibidem, p.48.
71
A articulação de estruturas míticas têm uma funcionalidade dentro do
caráter religioso e didático de El burlador de Sevilla, pois, ao ser configurada com
traços que remetem ao enredo mítico, que sempre supõe a existência do
transcendente, a peça teatral reforça a idéia religiosa que a sustenta. Assim, lemos
na estrutura da obra um uso ideológico do mito pela peça, que vai ao encontro do
ideal contra-reformista do teatro do Siglo de Oro. Nesse sentido, a personagem de
Don Juan submete-se a um enredo cuja finalidade moral é ilustrada por um mito. É
no nível do enredo, então, que vemos o funcionamento de um mito que defende a
manutenção de uma ordem social. É a interpenetração do transcendente no
mundano, do divino no humano — característica básica das narrativas míticas —,
que nos mostra que a “realidade”, como considerada na obra, está subordinada a
esse “plano superior”, e deve organizar-se a partir dele — o que, neste caso,
significa a subordinação de toda uma sociedade aos preceitos da Igreja e do Estado
espanhóis, com todas as conseqüências de suas naturezas contra-reformista e
absolutista.
72
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Livros Grátis
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