(PDF) Don Juan e A Construção de Um Mito em El Burlador de Sevilla

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃ
PÓS-GRADUAÇÃO
O EM LITERATURA ESPANHOLA

DON JUAN E A CONSTRUÇÃO DE UM MITO EM


EL BURLADOR DE SEVILLA

LILIAN DOS SANTOS SILVA RIBEIRO

Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Literatura Espanhola, do
Departamento de Letras Modernas
da Faculdade d
dee Filosofia, Letras e
Ciências Hum
Humanas
anas da Universidade
de São Paulo, para obtenção do
título de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Mario Miguel Gonz


González
ález

São Paulo
2007
Livros Grátis
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃ
PÓS-GRADUAÇÃO
O EM LITERATURA ESPANHOLA

DON JUAN E A CONSTRUÇÃO DE UM MITO EM


EL BURLADOR DE SEVILLA

LILIAN DOS SANTOS SILVA RIBEIRO

São Paulo
2007

2
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DEDICATÓ
DEDICATÓRIA
RIA

Dedico este trabalho:

ao Patrick, por me mostrar a leveza essencial da vida e a real natureza do


amor;

aos meus irmãos, Paula e Leandro, e sobrinhos, Caio e Pietra, pela família
que somos e seremos;

e especialmente aos meus pais, Benedicto e Madalena, por me educarem


para a tolerância e para a liberdade.

3
AGRADECIME
AGRADECIMENTOS
NTOS

Agradeço a todos aqueles que direta ou indiretamente


contribuíram para a conclusão deste trabalho, seja em termos materiais ou
afetivos:

- Mario González, pela orientação efetiva, atenciosa, e, acima de


tudo, democrática;

- Aos meus colegas e alunos do Español en el campus, pelo


companheirismo que nos uniu;

- Aos meu amigos queridos e companheiros de universidade:


Ana Paula, Ana Cruz, Andréa, Cecília, Cibelle, Edina, Élcio, Mirian, Nalvo,
Rossana e Solange, pelo apoio emocional.

O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ – Brasil.

4
RESUMO

O presente trabalho visa delimitar quais os fatores os fatores

constitutivos da peça El burlador de Sevilla, tanto do ponto de vista extra-

literário — isto é, os fatores sociais, políticos e religiosos —, quanto do

ponto de vista da estrutura literária — relacionados à forma artística em que

os primeiros ganham forma —, e o modo como esses fatores se relacionam

na composição do mito que sustenta o enredo da obra.

ABSTRACT

The present work intents to delimitate what are the

containing factors from the play El burldor de Sevilla, by the extra-literary

view - social, politics and religious facts - as well as the literary structure

view - related to the artistc form in which the previuous ones gain shape -,

and the way those factors associate to each other compounding the plot

sustaining myth.

PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS)

Don Juan, Convidado de pedra, Mito, Tirso de Molina, Siglo de Oro

Don Juan, Stone guest, Myth, Tirso de Molina, Spanish Golden Century

5
SUMÁRIO

Resumo.....................................................................................05

Abstract.....................................................................................05

Índice.........................................................................................07

Introdução.................................................................................08

Capítulo 1: A finalidade moral: Don Juan como exemplum.........10

Capítulo 2: Uma construção alegórica........................................42

Capítulo 3: O confronto entre dois absolutos.............................63

Conclusão..................................................................................73

Referências
bibliográficas.............................................................................75

6
ÍNDICE

I.Introdução...............................................................................08

II. Capítulo 1: A finalidade moral: Don Juan como exemplum....10

III. Capítulo 2: Uma construção alegórica...................................42

IV. Capítulo 3: O confronto entre dois absolutos........................63

V. Conclusão..............................................................................73

VI. Referências bibliográficas......................................................75

7
INTRODUÇÃO

O ponto de partida deste estudo é a análise dos fatores constitutivos da


peça El burlador de Sevilla, atribuída a Tirso de Molina, tanto pelas determinantes
político-religiosas — isto é, os aspectos históricos, extra-literários —, quanto pela
sua formalização dramática — os aspectos propriamente artísticos —, com vistas a
delinear o caráter mítico de Don Juan Tenorio.

Na tentativa de abordar de uma forma mais abrangente a construção


de Don Juan, nos convém adotar uma dupla aproximação, o que certamente tornará
mais clara a imagem final a que pretendemos chegar. No primeiro tópico de
aproximação, trataremos de analisar os fatores externos à obra, aqueles que dizem
respeito ao seu entorno social, o ideário que fornece o tema da peça. No segundo
ponto da abordagem, será analisada a personagem no contexto mesmo da obra,
tratando-se de comprovar que sua configuração é principalmente de natureza mítica,
ultrapassando a simples ilustração do tema, sobretudo ao confrontar-se com a
estátua de Don Gonzalo, que é a personagem mítica à qual se contrapõe.

Nossa tentativa de análise por meio de duas abordagens


aparentemente opostas — isto é, uma abordagem que se pauta em elementos
sociais que se manifestam na peça, e outra que se pauta nos elementos mítico-
literários que a estruturam de fato — revela-se necessária se quisermos abranger o
maior número possível de aspectos componentes da obra. No que diz respeito a
esse método de análise, temos em mente as palavras de Antonio Candido:

A tentativa de focalizar simultaneamente a obra como realidade própria,


e o contexto como sistema de obras, parecerá ambiciosa a alguns, dada
a força com que se arraigou o preconceito do divórcio entre história e
estética, fomra e conteúdo, erudição e gosto, objetividade e apreciação.
Uma crítca equilibrada não pode, todavia, aceitar estas falsa
incompatibilidades, procurando, ao contrário, mostrar que são partes de
uma explicação tanto quanto possível total, que é o ideal do crítico,
embora nunca atingido em virtude das limitações individuais e
metodológicas. 1

1
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: 1750-1836. São Paulo: Livraria Martins, 4ª
edição, p. 31.

8
Assim, este trabalho levanta questões cuja finalidade última é a
confirmação do uso ideológico — de uma ideologia em total conformidade à
sociedade absolutista espanhola do século XVII — de uma estrutura literária mítica
por parte do autor de El burlador de Sevilla, com o sentido de reforçar a transmissão
de uma moralidade através do exemplo teatral.

9
CAPÍTULO 1

A FINALIDADE MORAL: DON JUAN COMO EXEMPLUM.

Neste capítulo, tratamos de averiguar os principais fatores extra-


literários que concorrem para a composição do enredo e das personagens da peça
El burlador de Sevilla, e que lhe dão um sentido de exemplaridade didática ao pôr
em cena conceitos religiosos, políticos, sociais e morais que deveriam ser
apreendidos por seu público.

A QUESTÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO E A ESCOLHA DE DON JUAN.

O primeiro aspecto a ser considerado quando empreendemos uma


análise da peça El burlador de Sevilla é o fato de que se trata, antes de mais nada,
de uma obra que serve à atuação explícita da Contra-Reforma espanhola. O crítico
literário John Varey considera que o tema da peça é o arrependimento oportuno 2 ;
parece-nos, porém, que talvez seja mais acertado afirmar que o tema central seja o
bom uso do livre-arbítrio, como algo que antecede o arrependimento, já que este é
paliativo, e o outro é preventivo dos pecados que poderiam ser cometidos, mas que
a doutrina trata de evitar. Faremos um breve trajeto sobre o pensamento de Santo
Agostinho, quem forneceu a base, tão longamente aplicada pela Igreja, a respeito do
conceito de livre-arbítrio, e também sobre Lutero, para em seguida notarmos como
se dá, na obra, o rechaço à visão protestante.

AS OBRAS VERSUS A FÉ

2
VAREY, J. E. Cosmovisión y escenografía: el teatro español en el siglo de oro. Madrid: Castalia,
1990.

10
Um dos principais ensinamentos que o público de El burlador de Sevilla
deveria depreender é o de que a obra do homem deve ser superior à sua fé. O
espectador poderia dar-se conta de que Don Juan tem alguma fé, já que não chega
a formular uma negação da existência de Deus e da punição, como podemos
comprovar em seu famoso refrão “¡Tan largo me lo fiáis!” (“Tenho tempo de sobra”),
pois seria completamente diferente se ele afirmasse não acreditar no castigo, ou
risse das admoestações — como o refrão “No hay plazo que no llegue, ni deuda que
no se pague” (“Não há prazo que não chegue, nem dívida que não se pague”) —
como se não passassem de singelas crendices. O caráter didático-moralizante da
obra parece estar na base dessa ausência de crítica teórica. Afinal, a transgressão
de Don Juan só poderia ser justificada pelo seu autor como oriunda da busca por um
prazer profano e inconseqüente, de quem não respeita as leis deste e do outro
mundo, tornando-se um pecador. Mas a personagem jamais poderia estar dotada de
uma fundamentação teórica que justificasse tal transgressão. Na tentativa de
imprimir a lição de moral nos espectadores, a repetição de “¡Tan largo me lo fiáis!”
só pode caracterizar o pecador contumaz, que pensa em obter o perdão na hora da
morte.3 O problema é que a personagem acredita que pode pedir perdão um dia, e
ser salvo pelo arrependimento — ainda que, no seu caso, não seja possível haver
uma verdadeira contrição. Mas a ênfase na importância da obra humana nos leva a
pensar que o autor conseguiu levar ao palco a Contra-Reforma: a fé não é o
suficiente para justificar o pecador. Nesse sentido, presentifica-se a noção de que a
fé sem obras é inútil, matéria morta, como lemos na Epístola de Tiago:

Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as obras


é inoperante? Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado,
quando ofereceu sobre o altar o próprio filho Isaque? Vês como a fé
operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que
a fé se consumou (...) Verificais que uma pessoa é justificada por obras
e não por fé somente (...) porque assim como o corpo sem espírito é
4
morto, assim também a fé sem obras é morta.

3
Segundo o crítico Ramiro de Maeztu, Don Juan não é um cético, e sim um soberbo, pois se fosse
cético o convite à estátua de pedra seria absurdo. In: MAEZTU, R. Don Quijote, Don Juan y La
Celestina. Madrid: 1981. Espasa-Calpe. p. 85.
4
Tiago: 2: 20-26. BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1993.

11
Sob esse aspecto, a obra configura-se como mais uma defesa católica
contra o Protestantismo, já que o tratamento que dá às noções de pecado e
salvação diverge radicalmente à visão de Lutero que, em seu sermão Duas espécies
de justiça, de 1519 5, nega a idéia patrística tradicional de justificação do homem
como decorrente de um processo gradativo de erradicação dos pecados. Lutero
propõe a fides apprehensiva, que capacita o pecador a captar a justiça de Cristo,
tornando-se uno com ele. A justiça é sempre extranea, sem merecimento do fiel,
dada somente pela graça. O crente é sempre simul justus et peccator. Seus pecados
não se apagam, mas sua fé garante que deixem de pesar contra ele. O cristão é
morador de dois reinos: o de Cristo e o das coisas mundanas, e sua justificação vem
antes da santificação, pois esta última, sim, é gradual e começa logo após o pecador
ter adquirido a fé. Lutero também estabelece, em Liberdade de um cristão 6, de 1520,
uma antítese entre os mandamentos divinos do Velho Testamento, que considera
impossíveis de serem cumpridos, e a promessa de redenção do Novo Testamento.
Afirma que o primeiro tem a função de mostrar ao homem sua própria incapacidade
de ser virtuoso e fazê-lo desesperar-se diante disso. O Novo Testamento serviria,
então, para reconfortar-nos, mostrando que ainda que não possamos atingir a
salvação através do cumprimento irrestrito dos mandamentos, podemos consegui-la
através da fé. Mais tarde, em A servidão da vontade 7, apesar de não negar o valor
da razão natural, opõe-se à tese humanística de Erasmo, segundo a qual o homem
tem a oportunidade de utilizar seus poderes racionais para descobrir como Deus
quer que ele aja. Para Lutero, não se pode medir Deus pela razão humana, nem
entender os mistérios da Sua vontade. Somos todos frutos do pecado original e por
isso estamos condenados à nossa natureza contrária e má. Os mandamentos
divinos devem ser obedecidos apenas por provirem de Deus, parecendo-nos justos
ou não, divergindo da percepção tomística e humanística, que entendia Deus como
uma espécie de “legislador racional”. A justificação sola fide (pela fé apenas) exclui a
possibilidade de o cristão justificar-se (salvar-se) por mérito de suas obras. Porém, o

5
LUTERO, M. Apud: SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003, p. 290.
6
Idem, Ibidem, p. 292.
7
LUTERO, M. Apud: SKINNER, Q. Op. cit., p.287.

12
protestante acrescenta que está ao alcance de todos a percepção da gratia de Deus
— a graça salvadora concedida por Ele àqueles que predestinou para a salvação.
Essa graça constitui um favor fora de proporção com o mérito humano: o pecador
deve visar diretamente a fidúcia, ou seja, a fé passiva na justiça divina e na
possibilidade de obter a justificação através da Sua misericórdia. Esse pensamento
é antitético ao vigente na Igreja Católica, que propõe a existência da sindérese,
iluminação dada por Deus aos homens, que os capacita a distinguir as duas coisas e
concluir, racionalmente, qual ação O agradaria, enquanto que a lex pecati luterana
prevê a incapacidade humana de julgar o bem e o mal, incapacidade esta
decorrente da mácula hereditária do pecado original.

Podemos perceber em El burlador de Sevilla que Don Juan Tenorio é


alguém capaz de discernir o Bem e o Mal, sendo “muito católico” nesse sentido,
afastando-se de qualquer traço de ceticismo ou ateísmo. Porém ele funciona como o
exemplo de que, já que estão todos os homens dotados dessa capacidade racional,
não devem sob nenhuma hipótese guiarem-se simplesmente pela fé, já que cada um
será julgado, e o critério para o julgamento são as suas obras, cujo prêmio ou
castigo lhes são diretamente proporcionais, muito diferente das noções de fidúcia e
da percepção da graça dentro do Luteranismo. A ideologia em cena, ao enfocar a
primazia das boas obras, direciona a atenção para o uso da liberdade individual.
Don Juan é livre para mudar de rumo, e lhe são dados avisos que seriam um ensejo
para essa mudança, mas, usando sua liberdade de maneira equivocada, assinala
sua própria condenação.

Notamos, porém, que Don Juan tem a possibilidade de pecar porque


nasceu provido da sindérese e do livre-arbítrio, ambos provenientes de Deus. Ora,
mas por que, então, Deus concede o livre-arbítrio se este é que torna possível o
pecado? Em O livre-arbítrio, Agostinho nos reponde que o homem, pensado em sua
condição de homem, é um certo bem, e tanto ele quanto o bem procedem de Deus 8 .
Ninguém poderia proceder virtuosamente a não ser que assim o desejasse, e para
isso é mister possuir a vontade livre. Se comprovamos que através da vontade livre
abre-se a possibilidade do pecado, nem por isso devemos concluir que foi com esta

8
AGOSTINHO. O livre-arbítrio. Braga: Faculdade de Filosofia, 1990. Edição de António Soares
Pinheiro. pp. 79-80.

13
finalidade que o criador a concedeu. Assim sendo, há razão suficiente para ela nos
ser dada, pois sem ela não nos seria possível viver virtuosamente. Desta maneira,
não há como considerar uma injustiça de Deus o fato de nos haver dotado de livre-
arbítrio, com isso sujeitando-nos à possibilidade do erro. Da mesma forma que
nossas mãos, pés e olhos são um bem, que grande falta fazem quando um não os
possui, e que, porém, podem ser usados de maneira incorreta na prática do mal,
assim o é o livre arbítrio: deve-se, sim, condenar os que o usam mal, mas nem por
isso afirmar-se que não deveria dá-lo quem o deu. Deus é justo, confere prêmios
aos bons e castigos aos maus, que são males para estes últimos. É autor deste tipo
de “males”, mas não do mal praticado por alguém, responsabilidade de seu autor,
praticado por livre vontade. A liberdade, portanto, constitui um bem que nos fora
dado para que Deus pudesse medir e regular o valor da nossa virtude. Isso significa
que, sem ela, tudo teria o mesmo peso, sendo impossível, então, dimensionar cada
ato como bom ou mau — o que certamente inviabilizaria a execução da justiça
divina.

Agostinho traça uma espécie de divisão por ordem de grandeza dos


bens de que a humanidade fora dotada. Considera como grandes bens as virtudes,
pelas quais se vive honestamente, e das quais ninguém pode fazer mal uso. Dentre
os bens médios, estão todas as potencialidades do espírito, sem as quais não é
possível viver honestamente. Por último, nos bens ínfimos, estão as perfeições de
quaisquer corpos, sem as quais é plenamente possível que se viva honestamente, já
que a honestidade encontra-se no espírito. Os bens médios e ínfimos podem ser
bem ou mal utilizados. Pensemos, mais uma vez, no exemplo supracitado, do uso
das mãos (ínfimos) e da vontade (médio): as mãos, quando mal utilizadas, roubam;
a vontade, nesse caso, deseja roubar. Quando a vontade adere ao bem
incomutável, que é o bem comum para todos e não privativo de cada um, então o
homem encontra-se dentro da vida venturosa. Assim, embora seja um bem médio, a
vontade alcança os maiores bens do homem, as virtudes. Porém, quando se
distancia do bem comum e se volta para seu bem particular, ou para um bem
exterior, ou inferior, comete-se o pecado, através do mal uso dessa mesma vontade.
Além disso, defende que todo pecado consiste numa dominação do indivíduo pela

14
lascívia, ou “iniância” 9 , que é o amor pelas coisas que cada um pode perder contra
sua vontade. Aquele que tem a iniância de praticar o pecado é tão pecador quanto
aquele que o pratica. Ou seja: o que caracteriza o pecado está sempre na vontade
do homem, pois mesmo não exteriorizando o mal, não praticando o pecado, torna-se
pecador pelo simples fato de sua vontade estar dominada pela paixão. Vemos o
quanto isso se aplica, por exemplo, à insistência com que Don Juan demonstra
desejar a propagação de seu nome, estando sua vontade dominada pelo apego
mundano da fama: a simples existência desse desejo já seria um pecado, fato
bastante agravado pelos subterfúgios que ele usa para realizá-lo. Para que possa
evitar ser possuído pela iniância, o homem deve, antes, fazer uso da boa-vontade,
10
que se define pela intenção se viver reta e dignamente, visando atingir a sapiência.

Dominado pela paixão de enganar e de ver seu nome propagado como


sendo o maior burlador de Espanha, Don Juan usa o livre-arbítrio em prol de seu
bem particular. Todavia, ele não está destituído da sindérese católica, pois
demonstra ter plena consciência da irregularidade de seus atos e — fator agravante
— orgulha-se disso. Ou seja: embora dotado de capacidade para discernir o Bem e
o Mal, deleita-se com desagradar “Deus e o mundo”, o que neste caso é quase
literal, contando, porém, com Sua misericórdia no momento final. Morto pelas mãos
de um enviado divino, sem sacramentos e sem justificação, só lhe resta o ardor
infernal como prova de que o memento mori “no hay plazo que no llegue ni deuda
que no se pague” estava certo. Da mesma forma, qualquer traço de fidúcia luterana
também estava condenada a arder no fogo, do inferno ou da Inquisição: Don Juan
Tenorio serviria também para lembrar ao público que, memento mori, agindo “pela fé
somente”, sem ater-se à legitimidade de seu comportamento, este seria certamente
seu destino.

9
Adota-se aqui o termo “iniância” conforme a tradução de António Soares Pinheiro consultada para
este trabalho: “‘Iniância’ deriva do verbo latino ‘inhiare’, também usado por Agostinho, o qual significa
esperar ou desejar avidamente. Exprime qualquer das impulsividades sensitivas, geralmente
desregradas, para o seu objecto, ou seja, o que vulgarmente se denomina ’paixões’”. In
AGOSTINHO. Op. cit., p. 29.
10
“A sapiência ou ‘sabedoria’ consistia no pretendido domínio de toda a ciência, e no conhecimento
das supremas leis da moralidade, um e outro unidos ao perfeito exercício do conjunto das virtudes. O
seu oposto era a insciência (stultitia), caracterizada pela ignorância e falta de princípios morais”.
Idem, Ibidem, p.36, nota 9.

15
E eis que a justiça é feita pelas mãos de uma estátua que é a
representação legítima do divino: ela é a pedra, símbolo da perenidade do Reino de
Deus. A estátua do comendador também encarna um paradoxo exemplar: ela
representa o ideal de liberdade católico — o que pode parecer-nos muito estranho
como atributo de uma figura pétrea. Lembremos, porém, que para o catolicismo a
escolha de Deus já é a escolha da liberdade pois, sendo Ele infinitamente perfeito, é
infinitamente livre. O fiel deve ter a liberdade de subordinar-se. Don Gonzalo de
Ulloa, morto por Don Juan em combate na tentativa de guardar a honra de sua filha,
sendo evidentemente o herói da sociedade retratada, representa a autoridade do
Pai, Senhor, Deus. Diz seu epitáfio:

Aquí aguarda del Señor


el más leal caballero
la venganza de un traidor. 11

A subordinação de Don Gonzalo foi recompensada por Deus, que lhe

permitiu a justa vingança de sua morte. Nas palavras da estátua:

Las maravillas de Dios


son, Don Juan, investigables
y así quiere que tus culpas
a manos de un muerto pagues;
y así pagar de esta suerte
las doncellas que burlaste
Esta es justicia de Dios:
12
quién tal hace, que tal pague.

É interessante notarmos nessa fala a afirmação de que “as maravilhas


de Deus são investigáveis”, pois ela retoma a idéia de que qualquer homem é capaz
de perceber qual seja a Sua vontade. Esse discernimento refuta a idéia de
predestinação luterana, segundo a qual não podemos perscrutar esse mistério, pois
não nos é possível entendê-Lo, devido às limitações da razão humana. Mais uma

11
MOLINA, Tirso de (atribuída a ). El burlador de Sevilla. Madrid: Ediciones Cátedra, 1990. Edición de
Alfredo Rodríguez López-Vázquez, p. 213. Todas as citações extraídas da peça serão referenciadas,
a partir deste ponto, apenas pelos números dos versos dessa edição.
12
Versos 2839-2846

16
vez temos a sindérese católica, seguida pelo mau uso do livre-arbítrio e o inevitável
infortúnio. Há, novamente, a correspondência agostiniana entre a vontade que se
afasta do bem comum em favor apenas do indivíduo e o castigo justo, aplicado a
essa falta: “Esta é a justiça de Deus/ quem tal faz, que tal pague.”

Numa outra abordagem, também podemos relacionar essa visão com a


controvérsia teológica “de auxiliis”, sobre a graça divina. De um lado da disputa
estava o dominicano Domingo Báñez (1528-1604), que liderava a linha tomista
(baseada na escolástica de São Tomás de Aquino), segundo a qual era necessário
admitir a “premonição física”, ou seja, admitir que tudo que se move é movido por
outro, o que equivale a dizer que, em última instância, tudo é movido por Deus. Isso
significa que qualquer obra humana é motivada por Ele. Pois bem: do outro lado da
controvérsia estava o jesuíta Luis de Molina (1535-1600), quem deu nome ao
molinismo, linha que considera que esse impulso a priori para a vontade humana
desrespeita a liberdade desta. A essa afirmação, respondiam os tomistas que se
Deus tivesse que esperar a livre ação do homem para só depois julgá-la, Ele estaria
em alguma medida dependente e subordinado ao homem.

Passemos, então, ao problema da salvação: se Deus move as


criaturas a obrar, qual o Seu papel no pecado humano? Para os tomistas, Deus nos
dá a força de obrar, que é um ser, mas o pecado é um não-ser, e para o não-ser não
se necessita do concurso divino. 13

Agora, se Deus não move as criaturas, conforme pregam os molinistas, Ele


sabe, no entanto, desde a eternidade, quem vai salvar-se ou condenar-se. Ele
escolhe ou condena os homens em perfeita simultaneidade com o bem ou mal obrar
de cada um, o que não o torna dependente da ação humana, já que não a
predestinava antes, embora soubesse seu curso, nem depois: a ciência de Deus
sobre o nosso destino (e, conseqüentemente, a predestinação) é estritamente
simultânea às ações e à vida da criatura. Sob esse aspecto, podemos pensar que o
autor de El burlador de Sevilla talvez fosse mais propenso à corrente molinista no
que tange à ênfase que a obra dá à liberdade de escolha de cada um, no que ecoa
também a concepção agostiniana de livre-arbítrio. É conveniente lembrarmos que foi
13
MORÓN ARROYO, Ciriaco. La controversia “de auxiliis” (sobre la gracia). In MOLINA, Tirso. El
condenado por desconfiado. Madrid: Ediciones Cátedra, 1992, p.34.

17
convocada pelo Papa uma congregação especial para examinar a disputa, e que por
várias ocasiões essa esteve prestes a condenar a doutrina de Molina, o que só não
ocorreu porque, além de a Companhia de Jesus ser um instrumento importante para
o papado — nas universidades e na expansão territorial do catolicismo —, ela era,
no fim das contas, mais eficiente no combate ao protestantismo do que a dos
dominicanos, que, de algum modo, dava margem a conceitos também usados por
aqueles. A solução, então, foi permitir que cada grupo opinasse como quisesse,
proibindo-os, porém, de tachar de hereges os seus contrários e também de publicar
livros sobre o tema sem o consentimento do Santo Ofício. 14

Podemos, assim, concluir que o autor de El burlador de Sevilla, em


consonância com o pensamento agostiniano, e talvez tendo em vista a controvérsia
sobre a graça de Deus, considera que todos os homens estão dotados da sindérese
e do livre-arbítrio; a diferença entre Don Juan e Don Gonzalo é apenas de uso deste
atributo, e não uma diferença originária, predestinada. Nisto, aproveita o ensejo para
propagar ideais antiluteranos de tal modo que a estátua de Don Gonzalo alegoriza a
própria Igreja Católica, encarnando as idéias contra-reformistas e dogmáticas
freqüentemente presentes na produção teatral do Siglo de Oro.

A IGREJA E O ESTADO: O CORPO MÍSTICO ESPANHOL.

Veremos a partir deste ponto o modo como se articulam Estado e


Igreja na sociedade espanhola do XVII, e de que forma essa relação simbiótica é
caracterizada dentro da peça El burlador de Sevilla, notadamente através das
personagens de Don Juan Tenorio e de Don Gonzalo de Ulloa.

UMA SOCIEDADE CONTRA O INDIVÍDUO.

14
Cf. AVILLÉS, VILLAS & CREMADES. Historia de España: la crisis del siglo XVII bajo los últimos
Áustrias (1598-1700). Madrid: Editorial Gredos, 1988, p. 199.

18
De acordo com o crítico literário Ian Watt, é possível estabelecer-se a
seguinte relação entre Renascença e Reforma Protestante: ambas optam pela
primazia do indivíduo sobre o coletivo, traço que seria definidor da moderna
sociedade ocidental 15. Também defende a tese de que o individualismo sempre foi
germinal dentro doutrina cristã. Para tanto, baseia-se em Louis Dumont, que havia
estudado a sociedade de castas indiana e o modo como esse sistema se opunha à
forma social do cristianismo, pois, enquanto na primeira as pessoas tendem a
aceitar a as coerções da família extensa, da casta e da religião, sendo reconhecidos
como “indivíduos-no-mundo”, no cristianismo haveria uma sociedade teoricamente
baseada na igualdade entre os fiéis, sendo reconhecidos como “indivíduos-
16
relacionados-com-Deus” . A união entre os crentes é de caráter meramente
espiritual, sendo cada um deles uma unidade moralmente autônoma. Watt conclui
então que a Reforma, ao reforçar a idéia de ligação direta entre Deus e o indivíduo,
corrobora a afirmação do individualismo renascentista, principalmente na concepção
de Calvino, cuja aplicação secular do protestantismo casou-se com o capitalismo
17
individualista.

Assim como esteve apartada do desenvolvimento do capitalismo


financeiro, a Espanha também se afastou da Reforma Protestante, que no geral
acompanhava a nova economia 18 . Aliás, não apenas se afastou como agiu

15
WATT, Ian P. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp. 235-240.
16
DUMONT, L. Essais sur l’individalisme: une perspective anthropologique sur l’ideologie moderne.
Apud WATT. Op. cit., p.235.
17
WATT. Op. cit., p.236. A causa da relação entre o calvinismo e o capitalismo na visão de Max
Weber não se baseia em uma descendência obrigatória: “Apesar de pouco importante
numericamente na época de expansão do protestantismo, ele [calvinismo] era ligado em qualquer
país a uma determinada classe social (como o eram aliás os demais ramos do protestantismo), de
uma maneira tão característica, e, de certa forma, ‘típica’, que, por exemplo, nas igrejas dos
huguenotes franceses, monges-industriais (comerciantes, artesãos) constituíam boa parte dos fiéis,
especialmente na época das perseguições. Até os espanhóis sabiam que a heresia (dos calvinistas
da Holanda) ‘promove o comércio’, e isso vem coincidir com as opiniões expressas por Sir William
Petty, em sua discussão sobre as razões do desenvolvimento capitalista nos Países Baixos. Gothein
corretamente qualifica a diáspora dos calvinistas como ‘essência da economia capitalista’. Mesmo
assim, todavia, poder-se-ia considerar como fator decisivo a superioridade das culturas econômicas
francesa e holandesa, que deram origem a essa diáspora, ou, quem sabe, à imensa influência do
exílio na decomposição das relações sociais tradicionais.” WEBER, Max. A ética protestante e o
espírito do capitalismo. Trad. Maria Irene Q. F Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. São
Paulo: Pioneira, 1967, pp.25-26.
18
Como sabemos, a Espanha do século XVII — onde surge El burlador de Sevilla por volta de 1630
— encontra-se já à beira do colapso de seu mercantilismo, que havia apostado apenas no exploração
de metais americanos. Sua economia tornava-se cada vez mais dependente de importações, devido

19
ferozmente para deter o protestantismo através da Contra-Reforma. Assim, se
podemos afirmar que Reforma e capitalismo enfatizam a autonomia do indivíduo, é
passo inevitável concluirmos que na Espanha o indivíduo não teve a chance de se
desenvolver no mesmo grau.
19
De fato, a sociedade espanhola do XVII se vê como corpo místico ,
onde não pode haver o fomento do individualismo de qualquer um dos seus
constituintes, pois é inerente à forma aristocrática de governo ver seus cidadãos
como elos de uma cadeia, integrada por todos os membros da sociedade, desde o
20
plebeu até o próprio rei.

É nessa sociedade tão contrária ao indivíduo, portanto, que surge a


personagem de Don Juan Tenorio. A peça El burlador de Sevilla contém claramente
uma lição de moral, como todo o teatro religioso do Siglo de Oro. De fato, a
personagem quer se destacar nessa sociedade através da fama de seu nome, como
se ela pudesse “pairar” sobre todos os níveis, desobedecendo ao princípio de “não
sair de seu devido lugar” que regia o corpo social. A fama que Don Juan almeja o
eleva sobre todos os homens, independentemente da classe social. Ele promove
uma espécie de “denúncia apologética” em que o intuito do autor é o de acusar
quem se comporte como a personagem, ao mesmo tempo efetuando uma apologia
da moralidade católica típica do teatro do Siglo de Oro. E Don Juan vai atacar
precisamente o ponto frágil sobre o qual a sociedade espanhola do XVII se alicerça:
a noção de honra, que ele destruirá e de seus destroços construirá sua fama —
conceito que, como veremos, distingue-se da honra por não ser necessariamente
sinônimo de boa reputação como esta.

O desejo de fama tão característico da personagem em questão não


constituiu, obviamente, nenhuma novidade quando da elaboração dessa obra.

à falta de incentivos às atividades agrícolas e manufatureiras: como dispunha de muitos metais, além
de não produzir, pagava o preço que lhe fosse cobrado pelo que precisava. Já desestabilizada, a
Espanha se colocava à margem da expansão capitalista.
19
A expressão corpus mysticum foi originalmente usada na época carolíngia como equivalente à
Eucaristia ou à hóstia consagrada, assumindo mais tarde uma conotação sociológica, como quando o
papa Bonifácio VIII, na bula Unam sanctam de 1302, define a Igreja como “um corpo místico cuja
cabeça é Cristo”. O termo foi facilmente adaptado por juristas e acadêmicos para a concepção e
estabelecimento do Estado secular, também considerado corpo místico cuja cabeça seria o rei. Cf.
KANTOROWICZ, E. H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, pp.125-169.
20
TOCQUEVILLE, A. L’Ancien Régime et la Révolution. Apud WATT. Op. cit., pp.238-239.

20
Iremos vasculhar os mais remotos registros históricos e literários que atestam sua
existência, e que, devidamente contextualizados, nos ajudarão a delinear, por
contraposições, a configuração desse desejo em El burlador de Sevilla.

OS CONCEITOS DE GLORIA, HONOR E VIRTUS.

É fundamental, antes de prosseguirmos, precisarmos os conceitos de


glória, honra e virtude se quisermos analisar adequadamente a base moral sobre a
qual se sustenta El burlador de Sevilla. Esses conceitos, que constumavam
entremear-se na literatura clássica, aparecem sob uma nova luz na obra, refletindo
ideais religiosos e sociais típicos da Espanha do XVII.

Primeiramente, delimitaremos o que eram a gloria, a honor e a virtus


entendidas inicialmente segundo os padrões clássicos. Esse resgate histórico nos
ajudará a recompor, por contraposição, seu significado no momento de composição
de El burlador de Sevilla — onde vemos Don Juan “tirar a honra das mulheres”
enquanto Don Gonzalo encarna a glória que se pode almejar nesse universo, além
de assistirmos a uma generalizada falta de virtude na maioria das personagens.

Sabemos que era traço comum da cultura grega antiga a atenção ao


indivíduo, o desenvolvimento da personalidade e o desejo de perdurar na memória
coletiva mesmo após a morte. As formas de manifestação desse anseio, segundo
María Rosa Lida de Malkiel 21, se comprovam nas práticas do enterro público, do
discurso panegírico, do epitáfio, dos retratos particulares, além da variedade de
nomes próprios com a idéia de glória e excelência: Cleo-, -cles, -doxo, Aristo-. A
estudiosa atribui a esse interesse pelo individual a criação de riquíssimos caracteres
literários, com destaque para Aquiles, que ao se defrontar com os dois destinos
possíveis previstos pela sua mãe, a deusa Tetis, escolhe aquele que encurtará sua
vida terrena, fato que ele considera como um preço baixo a ser pago pela vida que
se prolongará na glória de seu nome.

21
MALKIEL, María Rosa Lida. La idea de la fama en la Edad Media castellana. México: Fondo de
Cultura Económica, 1983, p. 13.

21
A fama almejada por Aquiles, não é uma fama qualquer, e sim aquela
espécie que corresponde ao conceito clássico de gloria: o feito de ser considerado
bom pelos homens de bem, e por isso ser imortalizado. De acordo com os estudos
de Maria Helena da Rocha Pereira, a gloria “é o público reconhecimento das
qualidades do cidadão” 22, isto é, a conquista de uma boa reputação. Ultrapassa a
idéia da mera fama, pois esta é apenas “o que se diz a respeito de alguém”, sendo
23
um termo neutro , enquanto a gloria prevê o bom valor do quê é dito, e de quem o
diz. É também é um valor que se relaciona mais tarde à res publica romana, de
caráter político e social, e que se reflete sobre a herança da estirpe. Em Cícero, são
inúmeras as reflexões, espalhadas em diversos textos, sobre a natureza e o valor da
gloria, geralmente relacionando-a com virtus, conceito que evolui de sua acepção
original de cunho militar (traduzível por valentia, coragem) para um termo que se
aproxima da “hombridade”, sendo não só “homem”, mas “homem correto”,
especificando-se mais adiante em sua evolução como “qualidades boas do caráter”,
já no sentido em que conhecemos atualmente: virtude. Podemos averigüar dita
relação neste trecho de Dos Deveres: “A melhor das heranças que os pais podem
deixar aos filhos, mais valiosa do que todo o patrimônio, é a gloria da sua virtus e
24
dos seus feitos.” Além disso, Cícero especifica que ela resulta de três condições:
de ser amado pela multidão, de se possuir a confiança (fides) dessa multidão, e de
ser admirado e merecedor de honrarias.

Em Cícero, apenas nalguns passos das Tusculanas e, sobretudo, no


Sonho de Cipião, a glória é diminuída e mesmo reduzida a nada, na
longa fala do Africano ao seu descendente por adopção. É aí que se
exprime a noção de que é na própria virtus, e não no reconhecimento
25
vindo dos outros, que está sua recompensa.“

O conceito de gloria não se relaciona somente com a virtus, mas


também guarda íntimo contato com a honor, que assim como aquela faz referência
ao reconhecimento público, ligado à vida política, do mérito que tem função
22
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1998, p. 333.
23
Distinção feita por EARL, D. C. The Moral and Political Tradition of Rome. Apud PEREIRA. Op. cit.,
p. 334
24
Cícero. Dos Deveres. Apud: PEREIRA. Op. cit., p. 335.
25
PEREIRA. Op. cit., p. 336.

22
pedagógica para a cidade. A honor, porém, é um degrau inferior à gloria, pois se
atinge mais facilmente do que a imortalidade concedida por esta. Sendo assim, a
honor é alcançada pelo vir honestus (aquele que é íntegro e digno de admiração,
honorável), enquanto a gloria é apenas atribuível ao vir magnus. O vir honestus
torna-se digno de honrarias e homenagens, que no entanto não garantirão sua
posteridade gloriosa. A imortalidade, portanto, é somente atingível pelo vir magnus e
através da gloria.

Embora Cícero, como já foi dito, algumas vezes defenda a prioridade


da virtus, no geral se mantém dentro de uma linha latina que encara positivamente o
desejo de gloria, da qual fazem parte Salústio, Horácio e Ovídio, dentre outros. É
digno de nota aqui o caso de Salústio, que chega até mesmo a prescindir de uma
defesa do desejo de gloria, partindo do pressuposto de que este é natural a qualquer
indivíduo, idéia presente em Conjuração de Catilina e em Guerra de Yugurta. Nas
palavras de Lida de Malkiel:

Salustio ni expresa el valor de la gloria, y se refiere a su empeño por


ganarla como un moderno hablaría del instinto de conservación. Porque
su deseo raya casi en lo biológico, la gloria es meta común de buenos y
malos, quienes difieren únicamente en el proceder que adoptan para
alcanzarla (...) El autor puede cargar la memoria de Catilina con toda
suerte de crímenes; no por ello dejará éste de tentar a los conjurados
con la gloria que, entre otros bienes, se les seguirá de su golpe de
estado.26

Ou seja, no caso de Salústio parece haver um distanciamento entre as


qualidades intrínsecas ao homem (virtus) e o reconhecimento público. Ainda que
usando métodos reprováveis, importa mais a imagem final de grande homem (vir
magnus) que chegará à “platéia” de cidadãos, garantindo sua posteridade.

Essa linha romana de defesa do desejo de gloria, no entanto, não foi


uniforme ao longo da história da República e do Império. O caso mais notável de voz
dissonante encontra-se em Virgílio, e sob este aspecto é ponto pacífico entre a
crítica considerá-lo como avesso à busca superficial pela fama. De acordo com

26
MALKIEL. Op. cit., p.33.

23
Pereira 27, a ideologia da Eneida sobrepõe a virtude à glória, e Lida de Malkiel
encontra provas desse interesse secundário pela fama ao comparar o
comportamento dos guerreiros da Eneida ao “ingenuo deseo de sobresalir por el
que marchan a la batalla Glauco y Aquileo.” 28 O desejo de glória que não se liga a
nenhuma vantagem prática configura-se em Virgílio como uma espécie de futilidade
juvenil, presente em mancebos, como Niso, Euríalo, Palante e Ascânio. Para
concluir, “hasta parecería que Virgilio juzga semejante deseo como frivolidad griega,
no tolerable en la acción verdadera, sino, a lo sumo, en el deporte, en los remeros
que esperan palpitantes la señal de la regata (Eneida, V, 137-138).” 29

Porém, uma voz dissonante muito mais poderosa viria não só a


contrapor-se ao romano desejo de gloria, mas a impor-se, com o advento do
Cristianismo, ao qual o imperador Constantino se declara convertido em 312: a
glória cristã não depende de um julgamento dos homens, como aquela até então
conhecida, e sim da misericórdia divina. Obviamente não se alteraram os modos de
senti-la repentina e massivamente, mas já não era possível ignorar o pouco apreço
tido pelo desejo de fama na nova instituição.

É em nome da glória de Deus que falam as mais relevantes vozes da


Igreja medieval. Santo Agostinho, em A cidade de Deus 30, debate a importância da
idéia de fama e seus atrativos no mundo pagão, chegando, em linhas gerais, à
conclusão de que o homem de virtude irreprimível não precisa do alento propiciado
pela glória mundana e dispensa os juízos dos que lhe engrandecem, porém, com o
fito de ajudá-los, os induz a louvar o Único digno de louvor. Assim sendo, também
conclui que não se pode subordinar a virtude à fama (o que ocorria em Salústio).

Apesar da distância cronológica, é possível verificarmos uma linha


contínua do pensamento agostiniano que chega até Santo Tomás de Aquino. Este
não chega nem mesmo a citar a fama póstuma, diferentemente de Agostinho, que
seria uma substituta da imortalidade, ocupando-se exclusivamente da inanis gloria, o
desejo de glória terrena:

27
PEREIRA. Op. cit., p.336.
28
MALKIEL. Op. cit., p.37.
29
Idem, Ibidem, p.38.
30
AGOSTINHO. A cidade de Deus. Apud MALKIEL. Op. cit. p.101-103.

24
Más desapasionado que San Agustín y otros Padres de la Iglesia (San
Juan Crisóstomo, San Gregorio Magno), no condena redondamente el
sentimiento de la fama y admite que, sin ser un bien en si, puede serlo
accidentalmente (Summa theologica, Secunda secundae, quaestio
CXXXII, art. I) (...) pero inmediatamente viene la necesaria aclaración:
(...) sin ser pecado mortal, es el amor a la gloria pecado peligroso, pues
predispone al hombre a olvidar el verdadero fin de sus buenas acciones.
31

Vimos aqui, resumidamente, o que veio a ser a posição da Igreja


perante a questão do desejo de glória humana: um esquecimento da verdadeira
glória, que só pode provir da graça de Deus. A conclusão à qual pudemos chegar
até o momento é a de que a noção de glória terrena implica necessariamente uma
concepção individualista da existência. A fama exclui a priori a noção de rebanho, de
igualdade natural entre os homens, tão fundamental no Cristianismo. Também se
opõe às sociedades medievais, que se viam como “corpo místico” — idéia que,
porém, persiste em sistemas absolutistas, como a Espanha retratada em El burlador
de Sevilla —, onde cada uma das camadas sociais ordenadas hierarquicamente se
articulam como num corpo vivo, estando o rei no topo, no lugar da cabeça. Esse
corpo, da mesma forma que não permite que “um pé” passe a ocupar um lugar de
“braço”, não prevê que cada uma das partes tenha autonomia, que possa sobreviver
fora de seu lugar “natural”: o indivíduo destacado simplesmente não pode existir.
Isso nos leva a pensar que a idéia de fama perderia posição nessas sociedades,
pois o desejo manifesto dela poderia ser identificado como uma espécie de rebelião
ou heresia. No entanto, é claro que a fama alcançada por alguém dentro de um
regime absolutista pode ser de grande serventia, já que pode propiciar-lhe mais
oportunidades para favores, concessões e honrarias — o que, aliás, é um traço que
persiste entre nós: a fama é uma garantia de proteção. Notemos, entretanto, que
essa proteção só está assegurada quando se tem uma fama positiva, uma boa
reputação: a chamada honra. A fama que o burlador busca certamente não é desse
tipo, e isso é algo preocupante para seu pai: “Verte más cuerdo quería / más bueno
y con mejor fama.” 32

31
MALKIEL. Op. cit. p.103.
32
Versos 1416-1417.

25
Mas notamos que Don Juan não só quer a propagação de seu nome,
como quer que ela aconteça devido a um único movimento repetitivo seu, o de
enganar todos à sua volta para desonrar uma mulher:

Sevilla a voces me llama


el Burlador, y el mayor
gusto que en mí puede haber
es burlar una mujer
33
y dejarla sin honor.

A honra era um dos valores fundamentais na Espanha do XVII. Sua


característica mais relevante é a de que só pode existir pela opinião dos demais
sobre determinado homem. A honra é sempre externa, é a opinião dos outros
homens que prevalece, e nisso se distancia da honor, outro termo usado na época,
que se relacionava com a idéia de “dignidade”, de consciência tranqüila consigo
mesmo, sem se pautar pelos demais. Muitos autores, porém, usam indistintamente
ambos os termos, como no trecho supracitado, onde honor se usa na acepção de
honra. Esta, pertencendo à esfera social, também tinha uma dimensão diacrônica,
que a ligava à linhagem familiar da pessoa, e uma dimensão sincrônica, que
seria o bom nome que liga a pessoa à sua comunidade: alguém “desonrado”
desonra também sua família e sua cidade. Sob esse aspecto, a honra
espanhola se liga à honor clássica, no sentido de que as duas zelam pela
boa reputação de alguém como reconhecimento público de suas qualidades. O
hombre honrado equivaleria ao vir honestus no sentido de que ambos têm uma
função pedagógica para a cidade — como veremos, Don Gonzalo, o convidado de
pedra, era o único homem verdadeiramente honrado naquele universo. É claro que,
apesar de ser um guardião da honra, Don Gonzalo não aspirava à glória de seu
nome, pois, seguindo a cartilha de Santo Agostinho, o único digno de louvor é
Deus 34.

Essa honra de caráter coletivo progressivamente se transformou na


honra depositada na mulher, que passou a ser a portadora da honra dos homens da
família, especialmente o pai e o marido. Podemos percebê-lo na fala do Rei da
Espanha ao descobrir a traição de Isabela:

33
Versos 1305-1309.
34
AGOSTINHO. A cidade de Deus. Apud LIDA DE MALKIEL, María Rosa. Op. cit., pp.101-103.

26
¡Ah, pobre honor! Si eres alma
del hombre, ¿por qué te dejan
en la mujer inconstante,
si es la misma ligereza? 35

É essa honra, portanto, que Don Juan quer tomar para si: ao fazê-lo,
ele toma também a honra dos homens da cidade, acumulando-a toda. O que era
boa reputação alheia torna-se “a reputação” de Don Juan, que deseja ser conhecido
como “el burlador de España” (com destaque para o artigo definido, que o destaca
inclusive de outros patifes, como o marquês de la Mota):

Catalinón:

Y tú señor eres
langosta de la mujeres;
y con público pregón,
porque de ti se guardara
cuando a noticia viniera
de la que doncella fuera,
fuera bien se pregonara:
“Guárdense todos de un hombre
que a las mujeres engaña,
y es el burlador de España.”

Don Juan:
36
Tú me has dado gentil nombre.

O tema da honra era um dos preferidos pelo teatro do Siglo de oro, por
considerar-se que, além de agradar, move o público a praticar o bem, como vemos
na mais importante preceptiva dramática do período, Arte nuevo de hacer comedias,
de Lope de Vega:

Los casos de la honra son los mejores


porque mueven con fuerza a toda gente,
con ellos las acciones virtuosas,
que la virtud en dondequiera amada. 37

35
Versos 153-156.
36
Versos 1471-1481.

27
Roubar a honra alheia para si através do engano significa que Don
Juan nunca está dizendo a verdade, não tem compromisso com a palavra
empenhada. No entanto, é a sua preocupação em cumprir com a palavra que dera à
estátua do comendador Don Gonzalo, a de comparecer à segunda ceia, que
acarreta sua punição. Segundo Ian Watt:

É verdade que Dom Juan ainda guarda uma residual e ambígua fidelidade ao
código de honra, mas a sua versão desse código é muito mais arcaica e
individualista do que as leis da cavalaria cristã. Para ele, o que está
fundamentalmente em causa é a determinação de manter sua conduta pública,
e não permitir que nada se diga ou se faça para deslustrar o mérito dessa face
externa. E essa versão da honra, o pundonor, transforma-se no instrumento
que dará morte a Dom Juan. Procurando certificar-ser de que Dom Juan
comparecerá à segunda ceia, a estátua do Comendador o desafia: ‘Como um
cavalheiro, manterá sua palavra?’ E ele responde: ‘Sendo um cavalheiro,
mantenho a palavra que dou aos homens’. Na segunda ceia é um aperto de
mão – gesto cavalheiresco com o qual se sela um compromisso – o
instrumento da danação de Dom Juan. Na verdade, a estátua alcança seu
propósito valendo-se da pública sujeição de Dom Juan à noção individual e
pagã de ‘fidelidade’ (troth), oposta à concepção cristã – mais moderna e mais
38
universal – corporificada na palavra ‘verdade’ (truth).

Dessa forma, podemos concluir que Don Juan, ao corresponder


“cavalheiramente” ao convite da estátua, não está tão preocupado com a fides, a
palavra empenhada no acordo, e sim em preservar sua reputação de burlador
destemido, que não conhecia limites. Aparentemente, o que ele pretende é ainda
garantir a sua imagem pública, de quem desafiaria até mesmo o além-túmulo.
Porém o confronto com a estátua do comendador — legítimo representante do
homem honrado, e posteriormente do pai ofendido e assassinado — é o único limite
possível à natureza sem limitações de Don Juan: a estátua de pedra, como
representação do valor moral e religioso — já que a pedra é um símbolo que remete
à Igreja, como nas palavras de Jesus: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre

37
LOPE DE VEGA. Arte nuevo de hacer comedias. Edición de Enrique García Santo-Tomás. Madrid,
Cátedra. Versos 327-330.
38
WATT, I. Op. cit., p.116.

28
essa pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra
39
ela” —, exerce a justiça divina, já que a humana não o alcança.

A conclusão que nos resta, então, é a de que o próprio desejo de fama


por parte de Don Juan concorre para sua condenação. Don Gonzalo, que não era
indivíduo, senão um homem honrado que era “homem do rei”, “comendador de uma
ordem religiosa”, e “pai”, ou seja, que só se definia por papéis sociais de prestígio
moral, é a única personagem em toda peça moralmente inatacável — pois mesmo
as mulheres “vítimas” de Don Juan tinham sua grande parcela de culpa — e o fato
de voltar do além o investe ainda mais da autoridade de Deus, que age através dele.
O corpo místico da sociedade espanhola, investido dos poderes pelo Senhor
concedidos, vencera: conseguira matar o indivíduo.

AS LEIS DESTE MUNDO

Há um agravante no comportamento de Don Juan, por se tratar de um


nobre: nessa posição ele ofende mais diretamente ao rei, já que está mais próximo à
ele do que um plebeu. Da mesma forma, são gravíssimas as traições da duquesa
Isabela, que teve a ousadia de convidar o amante para seus aposentos no palácio
do rei de Nápoles, e de Don Pedro, homem de confiança do mesmo rei e tio de Don
Juan que o ajuda a escapar quando descoberto por Isabela. O crítico John Varey
nota que o autor da peça não chega exatamente a condenar o uso de favoritos por
parte do rei, mas sugere que este abdica de parte de seu poder ao confiar em outros
homens, já que a confiança pode estar dirigida a alguém tão digno como Don
Gonzalo (o justo vingador de Don Juan), ou tão indigno como Don Pedro:

A través de la obra vemos que la administración de la justicia es


corrupta, ineficiente y, hasta la escena final, claramente injusta. La
gente del pueblo se da cuenta, antes que el Rey de Castilla, de que la
Corte ha perdido contacto con la realidad y que ‘la desvergüenza en
España / se ha hecho caballería‘ (III, 131-32). Por obvias razones, Tirso
39
Mateus: 16:19. BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica
do Brasil, 1993.

29
carga al rey napolitano con más culpa que al de Castilla, pero, a pesar
de esto, el público tuvo que darse cuenta de que la obra contenía un
ataque agudo contra el poder de favoritos indignos, y una súplica para
que la Corona interviniera más directamente en la administración de la
justicia. No hubiese sido difícil referir esta lección moral a la España de
Lerma y de Olivares. 40

Desse modo, vemos uma clara referência na peça à presença dos


validos no governo espanhol, cuja arbitrariedade e liberdade de ação incomodam a
muitos, que os vêm como usurpadores do poder real. Durante o provável período de
escrita de El burlador de Sevilla, em pleno reinado de Felipe IV (1621-1665),
encontrava-se ao lado deste a figura marcante do Conde-Duque de Olivares
(Gaspar de Guzmán, conde de Olivares e, após 1625, duque de Sanlúcar la Mayor),
cujo mandato perdurou por vinte e um anos, de 1622 a 1643.

Diferentemente de seu antecessor mais notório, o Duque de Lerma


41
(Don Francisco Gómez de Sandoval y Rojas, Marquês de Denia) , valido de Felipe
III (1598-1621), o Conde-Duque de Olivares rodeou-se de especialistas, tendo
assessoria em todos os assuntos de Estado. Por outro lado, assim como o Duque de
Lerma, Olivares também colocou familiares e amigos em pontos estratégicos,
assegurando sua influência em diversos âmbitos do poder. Além disso, passa a
atuar, juntamente com Felipe IV, de forma contrária e independente das decisões
tomadas pelo Conselho de Estado, órgão de função consultiva e executiva na época
de Felipe III, convertido em mero apêndice do governo. Como podemos ver, o poder
ilimitado conferido ao valido tende a angariar muitas antipatias, já que tende a
quebrar a unidade harmônica do corpo místico, igualando-se muitas vezes ao rei em
funções que deveriam ser somente atribuíveis a este. A maioria dos autores
espanhóis do XVII que trataram da figura do valido e dos demais favoritos do rei,
mostram-se, no entanto, favoráveis à existência dos mesmos, defendendo somente
uma redução dos seus poderes, para que não se igualem ao mando real. Assim
encontramos em Quevedo:

40
VAREY, John. Op. cit., p.146.
41
O Duque de Lerma foi deposto em 1618 e substituído por seu filho, o Duque de Uceda, que para
garantir sua eleição ao cargo, demonstrou uma profunda inimizade com o pai. Governou por apenas
três anos, sob a pressão de Baltasar de Zúñiga, opositor de seu pai, e que preparava a introdução do
futuro valido, seu sobrinho, o Conde-Duque de Olivares. Cf. AVILLÉS, VILLAS & CREMADES. Op.
cit., p. 50.

30
Señor: criados han de tener los reyes, unos más cercanos de su
persona que otros, y la voluntad no será en todos igual y determinará
con más afecto en algunos; y entre ellos podrá ser que uno solo sea
dueño de la voluntad del Príncipe (...) no está en eso el inconveniente si
el rey sabe en qué cosas puede hacer a su criado dueño de su voluntad,
42
y el criado cómo ha de usar de este favor y estado.

Em El Burlador de Sevilla, os favoritos só são considerados indignos


porque, assim como Don Juan, agem contrariamente ao princípio de articulação das
partes pois, ao enganarem o rei, impedem que a justiça desse seja efetuada com
sucesso. Relacionando a noção de corpo místico com o apontado por Varey, vemos
que não há a condenação de favoritos pois estes seriam “o pescoço”, a articulação
necessária à ação real — mas digamos que esse sofreu um torcicolo e se recusa a
obedecer os comandos da cabeça. A sociedade espanhola retratada em El burlador
de Sevilla só consegue funcionar bem quando as partes se mantêm obedientes,
articulando-se entre si com o intuito de promover a glória de Deus através do bom
governo dos homens. Nesse sentido, Don Juan é um impedimento ao bom governo
tanto quanto Don Pedro ou a duquesa Isabela, mas dá um passo além no quesito de
justiça de divina, a qual ele também pensa poder enganar ao pedir perdão na hora
da morte — sem atentar ao “fato” de que a justiça humana pode ser falível, mas a de
Deus não.

“¡Tan largo me lo fiáis!” (“tenho tempo de sobra”) — eis o refrão


constantemente proferido por Don Juan Tenorio. Mas, afinal, o que significaria para
a personagem “ter tempo de sobra”? Outro tema recorrente, na voz de outras
personagens, e que se contrapõe ao dito anterior, nos ensina que “não há prazo que
não chegue, nem dívida que não se pague”. Existe um prazo depois do qual Don
Juan simplesmente não pode voltar atrás: não se apagam os seus pecados e eles
pesam enormemente sobre ele — suas obras o danam, sem espaço para o
arrependimento ou salvação.

42
QUEVEDO, Francisco. Política de Dios y gobierno de Cristo. Apud TOMÁS Y VALIENTE,
Francisco. Los validos en la monarquía española del siglo XVII. Madrid: Siglo veintiuno de España
editores, 1990, p.50.

31
A personagem é a própria transgressão corporificada — sua ausência
de limitações em todos os níveis (moral, espacial, temporal) dão a idéia de um poder
demoníaco. Mas ninguém se iluda: Don Juan não é um revolucionário, um livre-
pensador que se rebelou contra o status quo. Embora se afaste substancialmente
dos valores em questão, não os coloca em dúvida em nenhum momento; ele não é
um rebelde. No fundo, instaura o caos, desarticulando a sociedade a seu redor na
prática, mas não há reflexão ou discursos teóricos sobre seus atos. Quando há
reflexão, esta vem sempre do "outro lado", e então vemos outras personagens
(Catalinón, o comendador, o rei, o pai) tecendo discursos moralizantes. Mas Don
Juan em nenhuma fala se mostra indignado quanto a essa moralidade. Podemos
ver, ao longo da peça, que nas ocasiões que podemos considerar como oportunas a
um questionamento da organização dessa sociedade, se isenta de fazê-lo: seu
comportamento vai sempre no sentido de ignorar deliberadamente as restrições que
se imponham à vontade, mas sem dar-se ao trabalho de contestá-las. Temos um
exemplo dessa aparente indiferença de Don Juan com relação à ordem social
quando o Marquês de la Mota confessa-lhe estar interessado em sua prima, Doña
Ana, já que ele tanto é capaz de aconselhá-lo que se casem, como também que a
engane:

Don Juan:

¿Es hermosa?

Mota:

Es extremada,
porque en Doña Ana de Ulloa
se extremó Naturaleza.

Don Juan:

¿Tan bella es esa mujer?


¡Vive Dios que la he de ver!

Mota:

Veréis la mayor belleza


que los ojos del sol ven.

Don Juan:

32
Casaos, si es tan extremada.

Mota:

El rey la tiene casada


y no se sabe con quién.

Don Juan:

¿No os favorece?

Mota:

Y me escribe

(...)

Don Juan:

Quién tan satisfecho vive


de su amor, ¿desdichas teme?
Sacadla, solicitadla,
escribidla y engañadla,
y el mundo se abrase y queme. 43

É interessante notarmos que aparentemente Don Juan não é contrário


ao casamento legal. Pelo menos é essa a interpretação do Marquês ao responder-
lhe que não podem unir-se porque o rei já designou a Doña Ana um outro marido.
Mota parece não se dar conta de que Don Juan está referindo-se a um outro tipo de
casamento — do qual ele tampouco pretende cumprir a promessa: aquele que se
consuma na relação sexual que se segue à simples troca de palavra de
compromisso entre os amantes, prática oficialmente reconhecida como legítima pela
Igreja Católica a partir do século XII com o Papa Alexandre III (em 1163), segundo o
qual, se um voto de casamento é pronunciado no momento presente, ou se é feito
como um projeção para o futuro, e se desse voto se segue uma consumação carnal,
há uma união legal. O reconhecimento papal ecoa uma doutrina anterior,
encontrável no pensamento de Graciano, quem, como bem mostra Bloch, defende o
reconhecimento desse tipo de união:

Aqui [em Graciano] o modelo invocado é o do sacramento: a união de


Cristo com a Igreja, que, aplicada à esfera matrimonial, não está
completa se não houver tanto livre escolha quanto unitas carnis física

43
Versos 1259-1277.

33
(união da carne). Na realidade, o que Graciano queria dizer não era que
o consentimento não constituísse um casamento, uma vez que ele
declara explicitamente que ‘o consentimento daqueles entre os quais é
feito o casamento é suficiente de acordo com a lei’, mas que o vínculo
só se tornava indissolúvel uma vez ocorrida a commixtio sexuum
(consumação). Para Graciano havia uma diferença entre um vínculo
válido e um inteiramente lícito, diferença esta que está na distinção
entre as núpcias (conjugium initiatum) e sua confirmação no conjugium
consummatum ou ratum. Somente com a união da carne é que o
contrato se transforma num laço cuja condição sacramental não pode
44
ser revogada.

Assim, vemos em El burlador de Sevilla que a pescadora Tisbea, por


exemplo, não adianta seu corpo como um meio de sedução, e sim como uma parte
daquilo que é necessário para o reconhecimento de um casamento. Podemos
comprovar que não se entrega de forma ingênua, pois o que quer é ter o direito de
reclamar o casamento, oficializando-o. Ao descobrir-se abandonada, imediatamente
lembra-se de que pode vingar-se de Don Juan, denunciando-o ao rei:

Seguidle todos, seguidle


mas no importa que se vaya,
que en la presencia del Rey
tengo de pedir venganza:
¡Fuego, zagales, fuego, agua, agua,
45
Amor, clemencia, que se abrasa el alma!

Além disso, também pretende remediar seu estado casando-se com


Anfriso, alegando, ao encontrar-se por acaso com a duquesa Isabela, haver
pensado que estava em seus braços quando se entregou na cabana a Don Juan, ou
seja, alegará uma falsa intenção na consumação sexual para validar essa união:

Que me llevéis os ruego


con vos, señora, a mí y a un viejo padre,
porque de aqueste fuego
la venganza me dé que más me cuadre,
y al Rey pida justicia
de este engaño y traición, de esta malicia.
Anfriso, en cuyos brazos
me pensé ver en tálamo dichoso,
dándole eternos lazos, conmigo ha de ir,

44
BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Tradução de
Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, p. 226.
45
Versos 1026-1031.

34
que quiere ser mi esposo.46

A duquesa Isabela parece usar da mesma estratégia, pois também


demonstra esperar o cumprimento da promessa de casamento:

Don Juan:

Duquesa, de nuevo os juro


de cumplir el dulce sí

Isabela:

Mi gloria, ¿serán verdades


promesas y ofrecimientos,
regalos y cumplimientos,
voluntades y amistades? 47

Além disso, demonstra a mesma preocupação em remediar seu erro


com outro casamento, exatamente como Tisbea:

Mi culpa
no hay disculpa que la venza.
[Aparte]
(Mas no será el yerro tanto
si el Duque Octavio lo enmienda.) 48

Arminta, por sua vez, mostra-se um pouco relutante em aceitar de


imediato o discurso de Don Juan, que aparentemente a convence com base na lei
que permitiria a anulação de seu casamento com Batricio, já que não havia ocorrido
a consumação sexual:

Arminta:

No sé qué diga,
que se encubren tus verdades
con retóricas mentiras.
Porque si estoy desposada,
como es cosa conocida,
con Batricio, el matrimonio

46
Versos 2250-2259.
47
Versos 3-8.
48
Versos 187-190.

35
no se absuelve, aunque él desista.

Don Juan:

En no siendo consumado,
por engaño o por malicia,
puede anularse.

Arminta:

Es verdad.
Mas, ¡ay Dios! que no querría
que me dejases burlada
49
cuando mi esposo me quitas.

Já no caso de Doña Ana, a entrega do corpo parece ter um outro


sentido, pois dá indícios de que quer apenas dar prova de seu amor ao primo, como
vemos em seu bilhete interceptado por Don Juan:

Dice así: “Mi padre infiel


en secreto me ha casado
sin poderme resistir;
no sé si podré vivir
porque la muerte me ha dado.
Si estimas, como es razón,
mi amor y mi voluntad,
y si tu amor fue verdad,
muéstralo en esta ocasión.
Porque veas que te estimo
ven esta noche a la puerta,
que estará a las once abierta,
donde tu esperanza, primo,
50
goces, y el fin de tu amor.”

Não temos indícios para saber se Doña Ana não arranjaria algum
estratagema para que a vissem na calada da noite recebendo seu amado — o que
certamente a livraria do casamento forçado pelo pai, e de sobra lhe traria o homem
desejado. Contudo, se tinha ou não intenção de fazê-lo, não importa muito à
moralidade da obra, pois é o seu ato de desobediência, por si só, que acarreta a
morte de seu pai.

Por outro lado, claro está que a questão do livre consentimento e da


consumação carnal como dados suficientes para a legitimidade da união não

49
Versos 2093-2105.
50
Versos: 1317-1330.

36
necessariamente era um pressuposto para todos. A aristocracia presente em El
burlador de Sevilla casa-se, é claro, por outros interesses, como no casamento
arranjado pelo rei para Doña Ana, ou como podemos entrever na resposta dada pelo
duque Octavio a seu criado Ripio:

Ripio:

Pues, ¿no seré majadero,


y de solar conocido,
si pierdo yo mi sentido
por quién me quiere y la quiero?
Si ella a ti no te quisiera
fuera bien el porfialla,
regalalla y adoralla,
y aguardar que se rindiera.
Mas, si los dos os queréis
con una misma igualdad,
dime, ¿hay más dificultad
de que luego os deposéis?

Octavio:

Eso fuera, necio, a ser


de lacayo o lavandera
la boda. 51

Como podemos ver, persiste aqui uma noção que separa radicalmente
amor e casamento quando os envolvidos estão muito longe de ser “lacayo o
52
lavandera” . Don Juan, por sua parte, ao aconselhar o Marquês a casar-se e,
imediatamente depois, a enganar Isabela, não é na verdade nem favorável nem
contrário ao casamento: ele é simplesmente maquiavélico, no sentido de que
considera válida qualquer estratégia que La Mota utilize para ter a mulher desejada.

Ainda vemos que Don Juan, no que tange à sua posição frente as
restrições sociais, tampouco contesta a determinação real de ser “desterrado” em
Lebrija, comunicada por seu pai. Não cabe pensar que haveria lugar de se fazer um

51
Versos: 219-232.
52
A separação radical entre amor e casamento é uma tópica do discurso do amor cortês. Cf. BLOCH,
R. H. Op. cit.

37
discurso, proclamando a liberdade do indivíduo, cuja vontade não pode subordinar-
se a uma resolução real, a qual ele não contradiz mas, obviamente, a desobedece:

Don Juan:

¿Por qué vienes de esa suerte?

Tenorio:

Por tu trato y tus locuras.


Al fin el Rey me ha mandado
que te eche de la ciudad,
porque está de una maldad
con justa causa indignado
(...)
Mira que aunque al parecer
Dios te consiente y aguarda,
tu castigo no se tarda,
y que castigo ha de haber
para los que profanáis
su nombre, y que es juez fuerte
Dios en la muerte.

Don Juan:

¿En la muerte?
¿Tan largo me lo fiáis? De aquí allá hay larga jornada.

Tenorio:

Breve te ha de parecer.

Don Juan:

Y la que tengo de hacer,


pues a su Alteza le agrada,
agora, ¿es larga también? 53

De qualquer forma, podemos ver que o que faz Don Juan é usar a
estrutura social a seu favor, já que, não se opondo a nenhuma de suas instituições,
aproveita-se das mesmas, utilizando-as a seu bel-prazer. Assim, sem proferir uma
palavra sequer contra o casamento, usa a palavra empenhada e a consumação
carnal, signos do matrimônio, para não efetivá-lo. Sem opor-se ao desterro,
aproveita a “viagem” para seduzir mais uma mulher. Don Juan sente-se protegido, e
não ameaçado, por essa estrutura social. E ele tem razões para isso, já que é de
uma família de privados do rei de Castilla, como orgulha-se de dizer:

53
Versos 1421-1442.

38
Yo soy noble caballero,
cabeza de la familia
de los Tenorios antiguos,
ganadores de Sevilla.
Mi padre, después del Rey,
se reverencia y se estima
en la Corte, y de sus labios
54
penden las muertes y vidas.

Essa proteção social evidencia-se quando se dirige a Catalinón:

Si es mi padre
el dueño de la justicia
y la privanza del Rey,
¿qué temes? 55

O sistema protege Don Juan; o uso que faz de sua condição nobre
para humilhar — como o faz com Batricio, desrespeitando o direito deste sobre
Arminta — e para resguardar-se, conforme lhe convenha, certamente é algo
previsível nessa estrutura. Esse uso arbitrário da superioridade social é decorrente
de uma hierarquização rígida, que é aceita por todos, caso contrário a manipulação
de Don Juan não funcionaria. Porém ele ultrapassa o limite do aceitável — que não
é apenas aceitável, e sim, como já dissemos, previsível, já que uma sociedade cujos
poderes estão baseados no favoritismo prevê que alguém mais poderoso esteja fora
do alcance da lei — cometendo também o pecado da hybris. Quando se considera
numa condição superior aos demais homens, ele não está enganado, pois, de fato,
ele pode usar sua condição social para isso, além de poder considerar-se um
afortunado trickster — tipo popular do embusteiro —, já que suas burlas atingem até
mesmo o rei. Sua desmedida encontra-se no fato de desejar equiparar-se ao divino,
ou seja, é hybris — comportamento desmedido, excessivo, que não condiz à
condição de homem que conhece seu exato tamanho frente aos deuses —,
desacatar a estátua de Don Gonzalo. É no contato com o elemento divino que a
lição de moral “transcendente” se desvela. Somente no âmbito desse embate é que
podemos interpretar Don Juan como personagem demoníaca, pois é quando
54
Versos 2066-2073.
55
Versos 1994-1997.

39
evidencia-se sua construção alegorizante, personificação da vaidade tola dos
homens — que em seu caso é a vaidade da fama, da conquista e do engano. Sobre
as características dessa construção alegórica, trataremos no próximo capítulo.

40
CAPÍTULO 2

UMA CONSTRUÇÃO ALEGÓRICA

Com base no que foi exposto no capítulo precedente, podemos


formular a hipótese de que o objetivo de exemplaridade acaba por forçar-nos a uma
interpretação alegórica de Don Juan Tenorio e das demais personagens de El
burlador de Sevilla — a alegoria, aqui, é entendida no sentido estrito de
personificação de abstrações. Isto porque, para lograr a transmissão do
ensinamento, todos eles têm que ser expostos da maneira mais simplificada
possível, sem espaço para ambigüidades — pois, de qualquer forma, sempre há
uma estreita relação entre a finalidade moral e a tipificação alegorizante do caráter.
Assim sendo, trataremos de verificar a construção alegórica do enredo, que se
efetiva na relação dramática do protagonista com os demais. Para tanto,
perguntamo-nos de que forma pode uma personagem teatral tender à forma
alegórica, pergunta que se nos impõe como necessária à análise adequada das
personagens da obra em questão. Tentaremos inicialmente delimitar aquilo que se
entende por característico da personagem teatral. Em seguida, analisaremos a
configuração dramática de Don Juan Tenorio conforme sua relação com as demais
personagens de El burlador de Sevilla.

A FÁBULA TEATRAL: ALEGORIA E DIDATISMO

O preceito dramático do “ensinar deleitando” foi difundido em língua


espanhola por Alonso López, mais conhecido pelo gentílico “Pinciano”, quem
publicou, em 1596, a primeira poética nacional, Philosofía antigua poética.
Remetendo-se à Ars poetica de Horacio, um dos clássicos precursores na defesa do
caráter edificante do teatro, Pinciano sustenta que os caracteres da tragédia devem
“instruir com suas falas honestas e sérias, com suas ações excelsas e honradas”.
Além disso, defende que cada personagem dever ter o final merecido: “o caráter

41
probo e digno de elogio (...) receberá o prêmio que lhe cabe, enquanto o malvado
56
será punido.”

É sempre possível verificarmos como o teatro foi diversas vezes


utilizado com objetivos doutrinários — pensemos como os jesuítas lançaram mão
desse recurso na catequese do gentio, exemplo lembrado muito a propósito por
Décio de Almeida Prado 57, ou ainda, nas representações do martírio de Cristo ainda
hoje encenadas nas festividades de Páscoa. Ao que tudo indica, a arte teatral possui
qualidades ideais para a persuasão de um público determinado. O autor de El
burlador de Sevilla, atento a esse fato, parece querer ensinar ao seu espectador,
sobretudo, a importância da obra humana perante os olhos de Deus, pois Don Juan
Tenorio, embora peça confissão no momento de sua morte, não obtém a salvação
da alma devido à sua insistência em pecar, apesar de ter sido várias vezes advertido
acerca da justiça divina. E para que a mensagem esteja bem clara, a personagem
tem de ser exposta da maneira mais simplificada possível, sem espaço para
ambigüidades. Assim, parece haver uma relação estreita entre a finalidade didática e
a tipificação do caráter: Don Juan, em última instância, pode ser definido
simplesmente pelo seu epíteto de burlador — característica que engloba todas as
suas falhas de caráter. Desse modo, ele se torna uma figura que tende ao alegórico,
no sentido de que, pelo menos à primeira vista, é a personificação dos valores
moralmente condenáveis. Esta tendência ao alegórico, portanto, atende à exigência
preliminar do didatismo, tornando-o exemplar. Nesse sentido, o enredo de El
burlador de Sevilla aproxima-se da fábula, se definimos esta como uma alegoria em
forma de história, e com uma conclusão moral 58 . A “lição de moral” que a fábula
transmite é na verdade anterior ao enredo, sendo sua determinante e não sua
conseqüência. Segundo Kothe,

A fabulação da fábula é escolhida e montada conforme a necessidade


da conclusão. Nesse sentido, a conclusão é anterior à fabulação. A
fabulação da fábula existe para levar a essa “conclusão”, serve apenas

56
LÓPEZ PINCIANO. Philosophía antigua poetica. Apud CARLSON, Marvin. Teorias do teatro:
estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Editora Unesp, 1997, p. 57.
57
PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In CÂNDIDO, Antonio (org.) A personagem de
ficção. São Paulo: Perspectiva, 2004.
58
“A alegoria é comumente distinguida da metáfora por ser mais extensa e detalhada, enquanto a
fábula é uma alegoria em forma de história curta e com uma conclusão moral (que pretende ser
definitiva). Essa última pertence a um gênero que se supõe hoje inexistente: o didático”. KOTHE,
Flávio R. A alegoria. São Paulo: Editora Ática, 1986, p.13

42
para legitimá-la. A conclusão é um pressuposto, não uma conclusão. A
fábula é uma forma de alegoria, é uma alegoria desenvolvida. Através
de elementos concretos procura-se expressar uma idéia ‘abstrata’. Que
só é abstrata no sentido de escamotear suas raízes sociais e históricas
para alcançar maior eficácia apresentando-se como a própria voz da
transcendência. 59

Em alguma medida, El burlador de Sevilla, como boa parte do teatro do


Siglo de Oro, realiza uma atualização das antigas moralidades medievais, peças
constituídas por longos diálogos entre tipos alegóricos, no sentido mais estrito do
termo, de vícios e virtudes. Considera-se o retor Prudêncio o precursor das
moralidades por haver sido o primeiro, até onde sabemos, em personificar os
conceitos fundamentais da ética cristã em sua obra Psychomachia, um verdadeiro
louvor à Cristandade, escrito por volta do ano 400, onde é retratada uma disputa
entre vícios e virtudes pela alma do homem. O gênero, no entanto, apenas se
desenvolveu de fato no século XV, quando os caracteres alegóricos adquiriram
funções diretas na ação. Em território ibérico, as moralidades alcançaram seu
melhor momento dentro da obra de Gil Vicente (1470-1536), a quem se atribui na
península a autoria da famosa Todo o Mundo e Ninguém, da qual reproduzimos aqui
um trecho bastante exemplar do modo como se estruturavam essa peças:

Ninguém:

E agora, que buscas lá?

Todo o Mundo:

Busco honra muito grande.

Ninguém:

E eu, virtude, que Deus mande


que tope co ela já.

(Berzebu para Dinato)


Berzebu:

Outra audição nos acude:


escreve aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo,

59
Idem, Ibidem.

43
60
e Ninguém busca virtude.

Se se reescrevesse El burlador de Sevilla em forma de moralidade,


talvez Don Juan se chamasse “Soberbia” (a Soberba), já que podemos considerar
que sua principal falha é a hybris, ao pensar que pode desafiar a tudo e a todos. É
evidente que seu caráter, no entanto, apresenta-se de forma mais complexa do que
as personificações de representação limitada das moralidades. As personagens de
El burlador de Sevilla são como alegorias desenvolvidas, são personagens típicas,
sem conflitos internos, dadas as condições históricas e sociais em que se inserem 61 .
Vemos que os caracteres das moralidades configuravam-se basicamente por meio
das falas, discorrendo sobre os traços de cada vício ou virtude. No entanto, como
nos recorda Décio de Almeida Prado, em seu texto supracitado, em linhas gerais
uma personagem teatral configura-se tanto pelas ações, quanto pelo que diz de si
mesma (principalmente no recurso do aparte, no qual ela sempre diz a verdade),
quanto pelo que as demais personagens dizem a seu respeito. A obra aqui estudada
segue essa tendência, afastando-se consideravelmente da configuração dos
caracteres das moralidades.

Notamos, porém, que a ação, a fala própria e a fala dos demais só


formam um todo coerente se nos atentamos à rede de relações de cada
personagem. Isto é: a relação que o caráter A estabelece com o caráter B é que
determina a ação de A sobre B e o modo como A se apresenta frente a B, fatos que
por fim determinam o que B opina sobre A. Assim sendo, nunca podemos analisar a

60
VICENTE, Gil. Todo o Mundo e Ninguém. Apud MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através
dos textos. São Paulo: Editora Cultrix, 1999, p.71. Notamos aqui já a noção de honra como boa
reputação, um valor extrínseco à pessoa, e não como uma virtude inerente. Cf. pp. 16-17.
61
Diferentemente do teatro de Shaekspeare, por exemplo, marcado principalmente por conflitos
internos das personagens, cujos monólogos encontram-se “já bem mais próximos da marcha real do
pensamento, com suas vacilações e incertezas, mas sem perder com isso a sua beleza retórica (...)
um dos quais, ‘To be or not to be’, gravou-se mesmo na imaginação popular como o exemplo mais
perfeito da reflexão poética sobre o homem” (PRADO, Décio de Almeida. Op. cit., p. 91). Esses
conflitos internos das personagens shaekespearianas tendem a ser a base da unidade de ação das
peças, criando a identificação do público com seu aspecto emocional, promovendo, de acordo com
Anatol Rosenfeld, o efeito catártico: “A fábula das peças de shaekespearianas desenvolve-se com
poderosa necessidade e motivação internas, apesar da freqüente descontinuidade das cenas e da
ruptura da ilusão por elementos cômico-burlescos. Esse rigor do desenvolvimento interno
corresponde a um teatro ilusionista. Nisso Lessing tem razão, ao considerar Shaekespeare superior
aos clássicos franceses na criação de uma atmosfera intensamente emocional e na obtenção do
efeito catártico exigido por Aristóteles.” ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva,
2004, p.73.

44
personagem teatral isoladamente, e sim inserida nas relações com os outros e na
totalidade da obra dramática. Como muito bem nos ensina o crítico Francisco Ruiz
Ramón:

Para interpretar, pues, el sentido de un personaje o de una


escena no hay que aislar a aquél o a ésta de los otros personajes
o de los otros momentos, ni ambos — personaje y situaciones —
del universo en que están integrados (...) Todo personaje es así,
desde un punto de vista estructural, una reciprocidad de
personajes, como cada escena una reciprocidad de escenas. El
análisis crítico de la estructura dramática exige, en consecuencia,
ir de lo estructurado a lo estructurante. 62

Analisemos, então, como se relaciona Don Juan com as demais


personagens e como ele se insere na macroestrutura dramática de El burlador de
Sevilla.

FORMAÇÃO DE DON JUAN POR ANTÍTESE

Décio de Almeida Prado afirma que, dentre os três modos de


caracterização da personagem — através de suas ações, do que diz de si mesmo e
do que dizem os outros a seu respeito —, o mais eficaz é aquele que nos transmite
sua natureza através das ações. Em suas palavras: “Drama, em grego, significa
etimologicamente ação: se quisermos delinear dramaticamente a personagem
devemos ater-nos, pois, à esfera do comportamento, à psicologia extrospectiva e
não introspectiva.” 63 Assim, somente através das atitudes é que se constrói a história
e a narração desta é sempre o principal objetivo do teatro. Neste ponto, o crítico se
coloca em consonância com Aristóteles, que defendeu a supremacia do enredo
(também chamado de mito) sobre os demais elementos integrantes da obra teatral,
distinguindo-os da seguinte maneira:
62
RUIZ RAMÓN, Francisco. Estudios de teatro español clásico y contemporáneo. Madrid: Fundación
Juan March/Cátedra, 1978, p. 26.
63
PRADO, Décio de Almeida. Op. cit., p.91.

45
Ora, o mito é imitação de ações; e por ‘mito’, entendo a composição
dos atos; por ‘caráter’ o que nos faz dizer das personagens que elas
têm tal ou tal qualidade; e por ‘pensamento, tudo quanto digam as
personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar
sua decisão.64

Segundo o filósofo grego, seria possível, por exemplo, haver tragédia


sem caracteres, mas não poderia havê-la sem ação, pois por melhores que sejam as
elocuções e os pensamentos, nem por isso estes lograrão algum efeito sobre a
platéia, ao passo que a tragédia que utilizá-los com parcimônia, e enfatizar o
mito/enredo, certamente o conseguirá. Notamos, porém, que evidentemente, em
momentos distintos da história do teatro existiram formas que não privilegiavam o
enredo sobre os caracteres, sendo o mito/enredo a conseqüência da índole das
personagens 65 . No entanto, é claro que, devido aos fatores históricos do período em
que se insere El burlador de Sevilla, encontramo-nos com uma peça que privilegia o
enredo e não os caracteres, fato decorrente de seu objetivo moralizador, já que é o
enredo que efetua a transmissão da mensagem edificante, sendo a personagem
uma espécie de intermediário entre esta, manifestada no enredo, e o público, que
será seu receptor. Assim sendo, o enredo de El burlador de Sevilla é facilmente
resumível e compreensível.

A repetição de ações enganosas por parte de Don Juan culmina com o


assassínio de Don Gonzalo. É esse o conflito que deverá ser solucionado até o final
da peça. Até esse momento, o que se assiste é a ilustração de dois tipos
antagônicos: o jovem arrogante e o velho sábio, caracteres que se delineiam
principalmente por suas atitudes opostas frente à autoridade do rei — a qual Don
Juan ofende tanto quanto Don Gonzalo a engrandece —, e também pelas posturas

64
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964. Trad.
Antonio Pinto de Carvalho. Aristóteles dividia a tragédia em mito, caráter, pensamento, elocução,
espetáculo e melopéia. Destacamos os três primeiros elementos por serem os mais pertinentes à
análise aqui empreendida.
65
Segundo Rosenfeld, é sempre possível perceber no teatro ou uma tendência a enfatizar a ação ou
uma tendência a enfatizar a índole das personagens. Ao citar o teatro de Ibsen, por exemplo,
classifica-o como “drama analítico”, em que “a ação nada é senão a própria análise dos personagens
e da situação.” ROSENFELD, Anatol. Op. cit. p. 85-90 passim.

46
frente à devoção cristã, presente de forma inconteste no comendador e referida com
escárnio por Don Juan.

Don Juan monta sua armadilhas com o objetivo de seduzir mulheres.


Mas a sedução do ponto de vista de Don Juan não é uma conquista amorosa, uma
estratégia daquele que busca arrefecer a resistência da pessoa desejada, como a
pensamos de forma mais corrente nos nossos dias. A sedução para ele é uma forma
de humilhação através do engano, e cada vítima, uma espécie de degrau em sua
escalada rumo àquela fama que ninguém mais pode alcançar.

Nota-se, no entanto, que Don Juan Tenorio não é exatamente a figura


de irresistível conquistador e performático sexual em que se transformaria em
versões posteriores. Como bem nos recorda Mario M. González

En el itinerario de Don Juan que va de la alcoba de Isabela a la tumba


de Don Gonzalo, sin embargo, la seducción como tal ocupa un espacio
bastante limitado. Ante las dos mujeres nobles, Isabela y Doña Ana,
Don Juan procede a las más burda substitución de persona. No es él,
así, quien ha seducido, sino que él aprovecha la oscuridad para hacerse
pasar por los seductores de ambas. Ante las dos mujeres villanas, la
pescadora Tisbea y la campesina Aminta, Don Juan hace valer, ante
todo, su rango social y la riqueza que éste conlleva. 66

Isso equivale a dizer que, para conseguir uma mulher, Don Juan
simplesmente “dá” a esta o que ela quer, fingindo propiciar aquilo que ele sabe que
é desejado. Para Isabela e Ana, ele “realiza” o desejo de estarem com seus amados;
para Tisbea e Aminta, lhes “dá” a “oportunidade” de casamento com um nobre.
Nesse sentido, atua como um demônio, que só pode agir através do ponto fraco de
uma pessoa. Afinal, essas mulheres não agiram mal porque foram induzidas por
Don Juan, e sim porque sucumbiram a uma vontade inadequada aos preceitos
sociais e religiosos.

Nesse sentido, é interessante analisarmos a concepção de controle


das paixões que está em cena — controle que tais mulheres não conseguem
exercer. Trata-se de conceber o controle das vontades não como o governo racional

66
GONZÁLEZ, Mario Miguel. Don Juan: burlador, seducido y seductor. In ABREU VIERA DE
OLIVEIRA, Ester e MIRTIS CASER, Maria (Orgs.). Universo Hispánico - Lengua, Literatura, Cultura.
Vitória: UFES/APEES, 2001, pp. 212-214.

47
de si mesmo — como o seria para os antigos, baseados na ética aristotélica —, e
sim como um requisito para a salvação da alma — parâmetro tipicamente católico.
Se para os gregos o desejo não era considerado indigno em si, somente se fosse
dirigido a objetos indignos — pois o homem virtuoso deseja o adequado —, o
catolicismo rechaça a priori sua existência, numa espécie de neoestoicismo em que
a anulação do desejo possui um valor de ascensão espiritual. Sucumbir a uma
fraqueza, a um pecado, equivale a um empecilho à salvação cristã:

El cristianismo (...) postulará el renunciamiento a sí mismo como una


condición para hallar la verdad; pues ésta no reside en el sujeto, sino en
la sujeción a la ley. De este modo, la práctica de la ‘obediencia’ es lo
que le permite al sujeto encontrar la verdad y acceder a su salvación (...)
Esta supremacía de lo eclesiástico y la subordinación del sí mismo a
una norma única y totalizante, será pues lo que establecerá las
condiciones del ‘poder pastoral’. Así, de la ascesis antigua, a la ascesis
cristiana, se pasa de una matriz de subjetivación a una subordinación o
sumisión del sujeto a la ley divina. 67

Em El burlador de Sevilla, a voz histórica e social que quer se


apresentar como transcendente é, evidentemente, a voz da Igreja e do Estado, que
compunham na Espanha um uníssono. Notamos que essa voz encarna na figura de
Don Gonzalo de Ulloa, que, como sabemos, tanto é um dos privados do rei de
Castilla, quanto representante da ordem religiosa de Calatrava. Nesse sentido, o
comendador é uma personagem que sintetiza os valores positivos que se devem
apreender da representação da obra. Don Gonzalo, assassinado por Don Juan
quando pretendia defender a honra de sua filha, é a representação legítima do Pai,
Senhor, Deus. Luta para preservar justamente aquilo que o burlador quer tirar das
mulheres, tomando para si. O combate entre duas forças diametralmente opostas
resulta, é claro, na vitória do lado que encarna não apenas uma manutenção do
sistema social — pois Don Juan também defende a preservação dessa estrutura
que, como já vimos, o protege —, mas que representa uma espécie de saneamento
moral, de correção exemplar de conduta.

67
NAUGHTON, Virginia. Historia del deseo en la época medieval. Buenos Aires: Quadrata, 2005,
pp.64-65.

48
Don Juan, por sua vez, afirma que “burlar uma mulher e deixá-la sem
honra” é seu maior prazer. Nesta afirmação certamente se explicita a intenção
pedagógica do autor, mostrando que há homens “desse tipo” soltos por aí e que,
portanto, as donzelas deveriam se resguardar. Tomar a honra, que era um valor
fundamental para aquela sociedade, demonstra que Don Juan desempenha uma
função social, pois reforça a idéia de que é necessário preservar a mulher a todo
custo, já que é depositária da honra dos homens. Ou seja: configurando-se como um
representante dos valores condenáveis dentro daquela estrutura, sua atuação visa
ao fortalecimento de seus valores ideais. Assim, a principal função de Don Juan
dentro da obra é a de reforçar, por antítese ao comendador, os valores em
funcionamento naquele universo. Embora a história seja narrada como ocorrida no
século XIV, é evidente que o que se quer ilustrar são os males da sociedade
contemporânea aos espectadores 68, e assim sendo, Don Juan Tenorio empreenderá
sua missão às avessas, defendendo, por oposição, o saneamento do sistema social
atuante na Espanha do XVII. Esse reforço por contraste se dá em diversos níveis:

a) sendo um enganador de mulheres, mostra a importância da “honra


feminina”, nesse contexto reduzida à mera aparência, opinião do grupo sobre
determinada mulher, que é portadora da honra dos homens que têm relação direta
com ela: o pai, o irmão, o marido, o filho;

b) sendo alguém que afirma constantemente “ter tempo de sobra”


frente às advertências que recebe ao longo da peça para se arrepender, revela a

68
Ao projetar a história em um passado distante, nos parece que o autor tenta evitar a possível
identificação de personalidades e autoridades contemporâneas que poderiam ser facilmente
relacionadas com personagens que no enredo estavam ligadas ao rei. Além disso, o autor também
realiza um afastamento espacial, como nos mostra o crítico John Varey: “La Sevilla corrupta es la
ciudad de Sevilla, y no la Corte real, la que no es atacada. El menosprecio de corte de los moralistas
del siglo XVI claramente influyó a Tirso en su ataque contra la vida corrupta de la ciudad. Pero la
palabra ‘corte’ tenía dos acepciones en la España del siglo XVII: podía referirse a la ciudad o al
palacio, esto es al séquito de cortesanos y ministros que acompañaban al Rey. Pero aunque la Corte
del Rey español sale más o menos ilesa – a pesar del ataque contra la ciudad de de Sevilla – , no por
eso deja la inmoralidad de una Corte – la del Rey de Nápoles – de ser atacada sin clemencia en la
obra. Sin duda por razones políticas, Tirso decidió que sería más sensato atacar la Corte napolitana
que la de Alfonso XI de Castilla. El moralista muestra prudencia, y no sin razón, al seleccionar su
blanco.” In VAREY, J. Op. cit. p.139.

49
necessidade de se observar sempre a obra humana para se tornar merecedor da
misericórdia divina;

c) sendo alguém que quer se destacar e alcançar uma fama cuja


natureza não é a de aproximá-lo mais à autoridade real — como certamente seria o
desejo daquela nobreza, ávida de proteção e regalias inerentes a essa proximidade
—, mas que o faz “pairar” por toda uma sociedade que se pensa como corpo
místico, reforça a importância de que sejam sempre obedecidas as regras e as leis
que mantêm cada parte desse corpo hierárquico em seu devido lugar.

A presença de Don Juan como um desafio à estabilidade desse


sistema serve, portanto, para contornar melhor o que seja essa sociedade, cujos
valores modelares encarnam na figura do Convidado de pedra. A função do
antagonista é, assim, precisar o contorno do herói; e ambos, finalmente contornados
e definidos alegoricamente, desempenham com grande eficácia o papel que lhes
fora destinado: o de educar, através do exemplo, a sociedade espanhola de seu
tempo.

SIGNOS CONVENCIONAIS EM EL BURLADOR DE SEVILLA

Ainda sob essa perspectiva do didatismo, percebemos a presença de


signos convencionais na obra, isto é, de significantes que evocam significados já
consolidados culturalmente. Ao manipular esses “conhecimentos prévios” do público,
a obra pode reforçar ou pôr em xeque o ensinamento contido no significado pré-
estabelecido. Neste trabalho, analisaremos três das convenções que se articulam
em El burlador de Sevilla: o romance que forneceu o tema do jovem que afronta o
além; o tema da aldeia como espaço da honra e da corte como espaço do vício; e a
tópica folclórica do “burlador burlado”.

50
ORIGEM FOLCLÓRICA

O fundo social presente em El burlador de Sevilla foi acrescentado a


um romance popular bastante difundido na época, e que apresentava a configuração
básica do tema desenvolvido na peça, como veremos. O romanceiro popular ibérico
foi fonte de versos variáveis sobre a história de um jovem que ofende a figura de um
defunto. Dentre as variantes folclóricas recolhidas por Said Armesto, transcrevemos
uma que nos parece suficientemente exemplar da presença do tema no folclore
ibérico, e que contém muitos aspectos que também se apresentam na fabulação de
El burlador de Sevilla:

Camiñaba Don Galán / para misa de Cuaresma,


non por devoción da misa / nin por otra que tuviera,
iba por mirar las damas / que salían de la iglesia.
Na porta do camposanto / encontró una calavera
que seus dentes lle griñaba / como si de él se riera.
Don Galán cand’a mirou / una patada le diera:
— Calavera, eu te convido / esta noche a miña cena.
A cosa de media noche / cantan los gallos afuera.
A cosa de media noche / Don Galán pide la cena.
Aun bocado non probara / cuando petan a la puerta.
— Da palabra que me deches, / Don Galán, non te m’esquenzas
— Non m’esquenzo da palabra / nunca de ela m’esquencera:
Ahí tes preparada silla / prato, cuberto e cullera.
Sentárase muy a modo / a cenar la calavera,
de ricos pratos que había / de todos ellos comiera.
— Come, come, el convidado, / que la sopita está buena.
Estando ‘n estas razones / la calavera dijera:
— Vente, Don Galán, conmigo / esta noche a miña cena,
ven conmigo al Camposanto / que mellor cousa te dera.
Ao redor do Camposanto / se prepara una gran festa,
encendidos na capilla / moitos cirios e candelas,
no medio d’aquelo todo / una sepultura aberta.
— Entra ‘n esta sepultura / a comer da miña cena.
— Eu aquí non entro, non / que esa mmira non truxera.
— Que a trayas, que non a trayas, / entrarás, vilano, ‘n ella,
ca luz tua acá s’acaba / y o teu corpo morto queda. 69

69
Recitado por Rita Beleiro, 61 años, lavradora residente en Cuñas, província de Orense, Espanha,
em julho de 1903. In SAID ARMESTO, Victor. La leyenda de Don Juan. Buenos Aires: Espasa-Calpe
Argentina, 1946, pp. 29-30.

51
Até mesmo o nome do jovem, Don Galán, parece ecoar no nome de
Don Juan, por assonância. Podemos comprovar que este último também é
considerado um galante pelas demais personagens:

Gaseno:

¿Quién viene?

Catalinón:

Don Juan Tenorio

Gaseno:

¿El viejo?

Catalinón:

No ese Don Juan

Belisa:

Será su hijo galán.


Batricio:

Téngolo por mal agüero,


que galán y caballero
70
quitan gusto y celos dan.

E também:

Fabio:

Que si a Octavio perdiste


más galán es Don Juan, y de notorio solar. 71

Há no romance popular o desrespeito de um “Don Galán” com uma


caveira à porta do cemitério. Antes disso, porém, já estava sendo cometido um outro
deslize, já que desrespeitava a própria missa, ao flertar com as moças ali presentes.

70
Versos 1732-1737
71
Versos 2165-2166

52
Esse traço mulherengo será uma das bases de Don Juan Tenorio. O desrespeito
com o além encontra-se agravado em El burlador de Sevilla pelo fato de que Don
Juan não só desrespeita um morto, como o faz Don Galán, mas desrespeita um
homem que havia assassinado, e que era um modelo de conduta religiosa, política e
paterna. Assim sendo, Don Juan não só afronta o além, mas toda a ordem histórica
que Don Gonzalo de Ulloa encarna; Don Gonzalo é tanto uma representação da
Igreja quanto o é do Estado, basta recordar-nos da descrição elogiosa que faz dos
conventos lisboetas ao rei espanhol, demonstrando um orgulho que tanto é
devocional quanto patriótico 72. Ou seja, ao elaborar a obra sobre um tema folclórico,
acrescentou-se um fundo histórico que determina sua moral, mas que quer
apresentar-se como a verdade, como uma voz atemporal, transcendente. Sabemos,
no entanto, que essa “verdade” é uma mera convenção, e que o enredo não busca
nada mais do que reforçar uma estrutura social. O público de El burlador de Sevilla
não estava aprendendo nada novo sobre pecado e castigo, apenas estava sendo
“lembrado” de suas obrigações. Precisamente por isso a alegoria em cena é de
facílima compreensão, apresentando signos convencionais naquele universo,
inclusive ao evocar a lenda do jovem galante que ofende os mortos.

A HONRA ALDEÃ E O VÍCIO CORTESÃO

Mas não somente a evocação do romance popular é um recurso


convencional dentro da peça — convencional no sentido de evocar uma
correspondência já consolidada socialmente entre significante e significado,
simplesmente reafirmando essa relação. O convencionalismo é um princípio
eficiente de apelo popular em El burlador de Sevilla, pois o uso de signos já
assentados culturalmente facilita o (re)aprendizado dos preceitos morais em cena. O
público contemporâneo à peça, ao assistir o convite de Don Juan à estátua de pedra
de Don Gonzalo, certamente se recordaria do enredo do romance, cuja evocação
reforça, basicamente, o respeito que se deve guardar aos mortos. Além dessa
72
Versos 743-784.

53
alusão, como veremos, toda a obra está pautada por signos consagrados do
universo social retratado.

Uma outra convenção, muito difundida na Espanha do XVI e XVII, é a


tópica que considera o campo como espaço de virtudes e a corte como espaço de
vícios, cujo eco encontramos na boca do próprio Don Juan, que ironiza o modo
como o aldeão Batricio abre mão de sua esposa por uma “questão de honra”:

Don Juan:

Con el honor le vencí,


porque siempre los villanos
tienen su honor en las manos
y siempre miran por sí,
que por tantas variedades
es bien que se entienda y crea

que el honor se fue a la aldea


huyendo de las ciudades.73

A origem dessa associação remonta à necessidade de se provar a


“limpeza do sangue de cristão velho”, já que a vida nas aldeias praticamente impedia
o anonimato que poderia ocultar um cristão novo (judeu converso), ao contrário do
ambiente urbano e cortesão. Dentro de El burlador de Sevilla, vemos essa
associação na fala de Gaseno, que ao tentar ajudar Arminta a reclamar o
casamento com Don Juan, empenha-se em demonstrar a Octavio que, por ser uma
“cristã velha”, sua filha é suficientemente digna de casar-se com um nobre:

Gaseno:

Doña Arminta es muy honrada


cuando se casen los dos,
que cristiana vieja es
hasta los huesos, y tiene
de la hacienda el interés,
y a su virtud aún le aviene,
74
más bien que un Conde, un Marqués.

73
Versos 1932-1939
74
Versos 2684-2692.

54
A visão do campo como espaço da virtude, no entanto, sobreviveu
ainda quando não necessariamente aludisse à religião. Além disso, também é
recorrente a idéia de que do poder de um cavalheiro sempre advém algum mal,
como vemos na fala de Batricio: “Bien dije que es mal agüero / en bodas un
poderoso”.75

Esse lugar-comum de associação da virtude com o campo e do vício


com a corte foi tema abordado e desenvolvido por Antonio de Guevara, que
diferenciava camponeses de cortesãos em variados aspectos, dentre os quais o
valor que cada um dá à honra:

Es privilegio del aldea que allí sea el bueno honrado por bueno y el ruin
conoscido por ruin, lo cual no es así en la corte ni en las grandes
repúblicas, a do ninguno es servido y acatado por lo que vale sino por lo
que tiene (...) Es privilegio de aldea que allí sean los hombres más
virtuosos y menos viciosos, lo cual no es así por cierto en la corte y en
las grandes repúblicas, a do hay mil que os estorben el bien y cien mil
76
que os incite al mal.

Em El burlador de Sevilla, no entanto, a tão louvada pureza do espírito


camponês parece manifestar-se integralmente apenas na personagem de Batricio,
que se mostra bastante confuso frente ao comportamento “cortesão” de Don Juan
Tenorio:

Batricio

Pues cada vez que quería


metella, la desviaba,
diciendo a cuanto tomaba:
“Grosería, grosería”.

(...)

Pues llegándome a quejar


a algunos, me respondían,
y con su risa me decían:
“No tenéis de qué os quejar;
eso no es cosa que importe;
no tenéis de qué temer.
Callad, que debe de ser

75
Versos 1798-1799
76
GUEVARA, Antonio. Menosprecio de corte y alabanza de aldea. Edición de Asunción Rallo Gruss.
Madrid: Cátedra. p.177, 179.

55
uso de allá de la Corte.”
Buen uso, trato extremado.
Más no se usara en Sodoma:
que otro con la novia coma,
77
y que ayune el desposado.

Arminta, que acaba cedendo sem muito esforço ao “casamento” com


Don Juan, também desconfia, antes de entregar-se, de seu cavalheirismo:

Arminta:

Di, ¿qué caballero es este


que de mi esposo me priva?
La desvergüenza en España
78
se ha hecho caballería.

Além de Arminta, outros camponeses parecem desviar-se do modelo


de virtude que o lugar-comum lhes impunha: podemos percebê-lo em Belisa, que tão
entusiasmada se mostra com a chegada de Don Juan, e no comportamento
totalmente deslumbrado de Gaseno, no momento em que recebe aquele no
casamento de sua filha:

Gaseno:

Venga tan gran caballero


a ser hoy en Dos Hermanas
honra de estas nobles canas.79

E quando a entrega ao sedutor:

Gaseno:

Acompañaros querría
por darle de esta ventura
el parabién a mi hija

Don Juan:

77
Versos 1844-1847 e 1856-1867.
78
Versos 1960-1963
79
Versos 1758-1760

56
Tiempo mañana nos queda

Gaseno:

Bien decís. El alma mía


en ella os ofrezco. 80

Excetuando-se Batricio, vemos que a inocência aldeã encontra-se


corrompida, fascinada com a riqueza e o poder da corte, que penetra nesse universo
através de Don Juan Tenorio. No pólo oposto, Don Gonzalo e Don Juan, o velho,
constituem uma exceção à corrupção e má-fé que se alastram em ambiente
cortesão. Assim, trabalhando sobre o convencionalismo que associa a virtude ao
campo e o vício à cidade, o autor mostra que essa relação não é forçosamente
verdadeira: corrupção e valor podem ser encontrados em qualquer parte, já que há
aldeães viciosos e cortesãos virtuosíssimos. Desse modo, reafirma-se em outro nível
que o homem não é um ser sobredeterminado, nem mesmo pelo meio em que vive,
pois detém o livre-arbítrio para escolher seu caminho.

TÓPICA DO BURLADOR BURLADO

O único desejo de Don Juan é enganar a todos ao seu redor. Esse


aspecto aproxima-o do tipo folclórico conhecido como trickster — “aquele que faz
truques” —, e que na literatura clássica é bem representado por Ulisses, o
idealizador do cavalo de Tróia. O trickster sempre foi um motivo recorrente em
diversas mitologias ao redor do mundo, transmitindo aos povos a noção de que
todos são vítimas potenciais do engano, inclusive o enganador-mor. López-
81
Vázquez já havia advertido que a personagem em muitos aspectos assemelha-se

80
Versos: 1977-1982
81
RODRÍGUEZ LÓPEZ-VÁZQUEZ. Introducción. In MOLINA, Tirso de (atribuida a). El burlador de
Sevilla. Madrid: Cátedra, 1990, p. 27. O autor também nota que Tisbea funciona como um
contraponto feminino, de “burladora burlada”: “Tisbea participa en la burla al ocultarle a Don Juan el
hecho de que conoce su identidad. Dramáticamente el fondo de ese episodio está prefigurando ya el
esquema de construcción del mito: quien burla primero, más tarde será burlado” Idem, p. 57.

57
a essa figura, o enganador sem freios que um dia, finalmente, é enganado. Notamos
essa aproximação, por exemplo, em um comportamento recorrente de Don Juan: ele
alterna momentos de supressão do eu — quando se esconde, passando por outras
pessoas, ou quando pede a Catalinón que não revele à seduzida quem ele é —
com momentos em que se torna um "super-indivíduo", ao querer elevar-se muito
acima de todos os homens — nos momentos posteriores às conquistas, quando ele
almeja a fama de seu nome ("Ha de ser burla de fama", em suas palavras). Nesse
sentido, ele é um verdadeiro trickster, que usa de qualquer artimanha para efetuar
seus engodos82 .

Também é possível verificar a existência de embusteiros anteriores no


histórico do teatro espanhol dos séculos XVI e XVII, que parecem oferecer alguns
episódios básicos de El burlador de Sevilla. Uma delas chama-se El infamador, de
Juan de la Cueva, representada em Sevilha em 1581. Nela aparece um homem
dissoluto, Leucino, cujo foco é a calúnia contra uma única vítima, e que receberá
mais tarde um castigo sobrenatural. Há também uma peça de Lope de Vega, datável
entre 1595 e 1603, chamada La fuerza lastimosa, que apresenta um duque Octavio
que, nas cenas iniciais, escuta a filha do rei marcar um encontro com um conde, e
aproveita para enganá-la, passando-se por este. La serrana de la Vera, também de
Lope, datável entre 1595 e 1598 apresenta uma “burladora burlada”, que talvez
tenha algo de modelar para a pescadora Tisbea. Desse modo, percebe-se o manejo,
em El burlador de Sevilha, de alguns pontos já trabalhados com êxito em peças
antecedentes, além da manipulação evidente do tipo popular do embusteiro.

Segundo o estudioso Marc Vitse, no entanto, o itinerário de Don Juan


Tenorio conduz a uma mudança na acepção do verbo “burlar”, pois se em princípio
ele aparece com o significado de “enganar, ludibriar”, evolui para um sentido de “rir-
se de, mofar-se”; assim sendo, a índole da personagem passa da burla-engano à
burla-zombaria 83. Também podemos interpretar essa evolução como a confirmação
de uma ultrapassagem que se efetua do nível do trickster para o nível daquele que

82
Quanto ao fato de lançar mão de qualquer recurso para atingir sua finalidade, já foi dito por
Gregorio Marañón que Don Juan seria o exemplo de um certo maquiavelismo aplicado à prática
amorosa. MARAÑÓN, Gregorio. Don Juan e o donjuanismo. Apud RIBEIRO. Op. cit. p. 15.
83
VITSE, Marc. Las burlas de Don Juan: viejos mitos y mito nuevo. In RUIZ RAMÓN, F. y OLIVA, C.
(coord.). El mito en el teatro clásico español. Madrid: Taurus, 1988, p.182

58
comete hybris, isto é, uma progressão do enganador-mor para o orgulhoso
desmedido que ridiculariza a todos, pois os tem como seres inferiores, presas fáceis
e dignas de gozação. Don Juan é um ser excessivo, não tem prudência, e essa sua
desmedida o torna cômico. O caráter cômico aqui é exclusivamente entendido como
participando daquela instância que dá conta do feio, que pode ser inocente,
causando o riso, ou vicioso, causando o horror — caso em que obviamente se
insere o burlador.

É notável, no entanto, o fato de que Don Juan não é o único culpado


dentro da peça, mas é o único que é castigado. O crítico Francisco Ruiz Ramón já
advertiu quanto a esse aspecto de El burlador de Sevilla, concluindo que o
encerramento da ação é conflitivo, não efetuando a restauração da ordem, como
seria de se esperar:

Que sólo Don Juan reciba castigo, y tan tremendo, pero no los otros — ni
siquiera un castigo menor apropiado a sus culpas —, debe hacernos meditar
en por qué no se cumple el principio de la justicia poética, sino antes bien el de
la injusticia poética, en esos otros personajes. No me parece que sea en este
drama — como en otros — lo significativo el principio de la justicia poética, sino
su valor relativo y, especialmente, la contradicción patente entre justicia y no-
justicia poéticas. 84

O autor define essa situação como um caso em que a justiça poética

não contém necessariamente uma justiça moral: o que acontece no final da peça é
apenas uma ordem aparente, que não consegue, porém, sanar todos os setores

corrompidos, dos quais Don Juan se aproveitava para enganar e conquistar a fama

de seu nome. Como já foi dito, ele só pode enganar porque há brechas que lhe
permitem, e essas brechas são, exatamente, as falhas das suas vítimas, que

também pecam, ainda que seja de forma aparentemente “menos grave”.

Assim sendo, notamos que a presença de Don Juan como embusteiro-

mor funciona como uma denúncia dos pequenos pecados cometidos por quase

todos os retratados, pois são esses que permitem a atuação de um mal maior,

84
RUIZ RAMÓN, 1988, p. 36.

59
demoníaco, o qual ele encarna. Mais uma vez, percebe-se sua identificação com o

diabólico, pois assim como o demônio, Don Juan não obriga ninguém a pecar,

apenas aproveita-se daqueles que já estavam predispostos, por assim dizer.

60
CAPÍTULO 3

O CONFRONTO ENTRE DOIS ABSOLUTOS

Como vimos no capítulo anterior, Don Juan é uma personagem que


traz em sua composição traços do trickster. Neste capítulo, analisaremos o modo
pelo qual a personagem ultrapassa esse tipo folclórico, identificando-se com
qualidades somente atribuíveis a personagens míticas. Trataremos de verificar como
a peça El burlador de Sevilla evoca elementos míticos em sua trama e nos
caracteres de Don Juan Tenorio e Don Gonzalo de Ulloa, personagens que se
submetem a um mito cuja finalidade é a defesa de uma ordem social.

SER E NÃO SER – EIS DON JUAN

A hipótese de Don Juan confirgurar-se como mito parece ser


confirmada por sua relação com a existência temporal: simultaneamente Don Juan
se afirma como ser que existe em seu refrão: “soy un hombre...” e se nega como
indivíduo, “...sin nombre”. Como a negação do nome anula a primeira informação, a
de “ser um homem” (já que o nome, de certa forma, é condição inerente a todo
homem), a única mensagem que realmente se processa é a de que Don Juan é. Ele
afirma apenas sua existência imediata e presente, ignorando o passado (que seria
dado por sua origem, o seu nome) e o futuro (no seu refrão complementar “¡Qué
largo me lo fiáis!”). Cremos que essa é a absoluta afirmação de um presente
contínuo, o tempo dos mitos. Ele estaria portanto mais próximo ao ciclo mítico em
contraposição à fixidez do convidado de pedra que é quem dá um final (a idéia de
um término, de um tempo retilíneo) à repetição de burlas (uma repetição que tende
ao infinito, um tempo cíclico). O erro de Don Juan parece ter sido justamente
acreditar numa suposta equivalência de status entre ele e a estátua do comendador
(cometendo o pecado da hybris), pois esta representa o peso da eternidade,
enquanto o burlador, conforme apontado por González, apresenta uma

61
atemporalidade que está diametralmente oposta à noção do eterno, pois trata-se de
um instante absoluto.

A capacidade de Don Juan para o engano é a manifestação básica de


sua superioridade, o que faz com que ele seja inatingível para a justiça
humana que, exercida pela mesma classe social à qual pertence,
jamais consegue atingi-lo. Essa superioridades se apóia no fato de que
Don Juan desconhece o tempo, isto é, seus atos carecem da
perspectiva temporal. Assim, ele jamais se preocupa com o futuro,
como prova sua resposta — “¡cuán largo me lo fiáis!” — às reiteradas
advertências de que à hora da morte pagará pelos seus crimes. Não há
projetos, a não ser imediatíssimos: possuir essa mesma noite a mulher
que acaba de conhecer e fugir logo mais. Do mesmo modo, não existe
o passado para Don Juan: ele jamais reflete sobre seus atos, o que
elimina por completo que possa carregar a noção de culpa (...) Sua vida
tem, para ele, um sentido de eternidade, pois vê a existência como uma
interminável sucessão de instantes independentes. Em última instância,
Don Juan é isso: a encarnação de um absoluto atemporal que, na falta
de outra designação melhor, chamamos de “instante”.85

Laymert Garcia dos Santos, também faz notar a relação existente entre
tempo e vontade para Don Juan:

O homem se crê senhor do tempo. E alegremente se convence de que


pode tudo; antes de mais nada: satisfazer todos os seus imperiosos
desejos. E se tudo pode, é porque, senhor do tempo, estaria acima de
qualquer lei — seu limite é a duração e a intensidade de sua vontade,
86
da força de sua vontade.

Quanto ao fato de se afirmar sob um aspecto e se negar sob outro


também pode ser interpretado como a negação do papel institucional / social: ele se
afirma como "animal / instinto" ("soy un hombre") e se nega como ser em sociedade
/ aculturado ("sin nombre"). De qualquer forma a sua força mítica está sempre
preservada ao se distinguir e se elevar das premissas do que é "ser humano"
segundo a sociedade que o cerca: todo homem deve ter um nome, deve ter limites,
deve temer a justiça de Deus e dos homens, deve ter a consciência de sua finitude,
deve amar e respeitar o próximo, etc. Don Juan, simplesmente quebra todas as

85
GONZÁLEZ, Mario Miguel. Introdução. In MOLINA, Tirso de (atribuída). O burlador de Sevilha e o
convidado de pedra. Trad. Alex Cojorian. Brasília: Círculo de Brasília, 2004, p.26.
86
SANTOS, Laymert Garcia dos. Don Juan e o nome da sedução. In RIBEIRO. Op. cit. p. 24.

62
expectativas do mundo ao seu redor. Essa singularidade, de fazer o que nenhum
outro homem é capaz, lhe confere o caráter de trickster — no sentido de ser alguém
mais esperto que os demais, e valer-se disso. No entanto, o retorno da estátua do
comendador do além-túmulo, como única instância capaz de puni-lo, confirma que
Don Juan não é somente mais um “burlador burlado”, e sim a encarnação do Mal,
tornando-se um “burlador absoluto”, que é punido pelo Bem supremo. É o momento
final de enfrentamento entre o Bem encarnado em Don Gonzalo e o Mal encarnado
em Don Juan que ressignifica o enredo de El burlador de Sevilla, pois é quando
evidencia-se seu aspecto mítico, de confronto entre absolutos.

FUNÇÕES DO MITO

Os mitos muitas vezes são utilizados em forma de alegorias da ciência,


da religião ou da moralidade, explicando ou ilustrando uma lei, um argumento ou
uma situação, como bem nos mostra Northrop Frye, e, assim sendo, podem ser
interpretados alegórica ou dogmaticamente 87 . O mito religioso em cena em El
burlador de Sevilla visa, basicamente, a ilustração do refrão “No hay plazo que no
llegue, ni deuda que no se pague”, tantas vezes proferido ao longo da peça.

Do ponto de vista sociológico, o mito sempre tem uma função que


ultrapassa o mero entretenimento. Segundo o antropólogo norte-americano Joseph
Campbell, o mito pode assumir quatro funções distintas, segundo sua finalidade:
mística, cosmológica, pedagógica e sociológica. A função mística prevalece nos
mitos que dão conta do mistério transcendente do universo, do enigma da vida em
todas as suas formas. A segunda função, a cosmológica, relaciona-se com o papel
que atualmente é considerado como campo exclusivo da ciência, "mostrando qual é
a forma do universo, mas fazendo-o de uma tal maneira que o mistério, outra vez, se
manifesta" 88. Já os mitos cuja intenção é pedagógica devem ensinar aos homens o
modo como viver em qualquer circunstância, independentemente da sociedade em

87
FRYE, N. Fábulas de Identidade. São Paulo: Nova Alexandria, 2000, p. 40
88
CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 2001. p.32

63
que se encontrem — portanto dizem respeito à natureza humana universal. Na
função sociológica, à qual nos interessa chegar, o que importa realmente é a
validação de uma ordem social. Nessa categoria, tem-se a defesa dos princípios
éticos de determinada comunidade através da ilustração que o mito proporciona.
Esses mitos "variam tremendamente, de lugar para lugar. Você tem toda uma
mitologia da poligamia, toda uma mitologia da monogamia. Ambas são satisfatórias.
Depende de onde você estiver”89. Embora a história seja narrada como ocorrida no
século XIV, é evidente que o que se quer ilustrar são os males da sociedade
contemporânea aos espectadores, e assim sendo, Don Juan Tenorio empreenderá
sua missão às avessas, defendendo por oposição a manutenção da mitologia social
atuante na Espanha do XVII.

Diríamos que no tocante à totalidade narrativa da peça temos uma


“mitologia da obediência” às instituições sociais (valores considerados perenes como
a honra, o poder político, a religião) ou uma “mitologia do castigo”, sendo a estátua
do comendador o herói da história e Don Juan seu opositor. A imagem heróica da
estátua como legítimo representante do bem é o que confirma a dimensão mítica do
outro, pois sem o convidado de pedra para detê-lo e castigá-lo, Don Juan seria
apenas mais um trickster.

CARÁTER SOBRE-HUMANO

Don Juan executa proezas que o afastam do comum dos homens, mas
possui uma dimensão antropomórfica, que o faz parecer humano. Como veremos,
ele está substancialmente oposto ao conceito de humanidade, que tomamos aqui
emprestado dos latinos e humanistas do Renascimento, conforme os estudos de

89
Idem, ibidem.

64
Maria Helena da Rocha Pereira 90 . A primeira noção de humanitas engloba a idéia de
natureza humana, aquilo que é característico do ser humano, modos de
comportamento que lhe são próprios. Dessa idéia original, deriva uma segunda
noção, que é o sentimento de simpatia ao próximo, de filantropia, ou "ação
humanitária". Essas duas primeiras acepções se referem basicamente ao indivíduo
tomado isoladamente. Já no plano social, tem-se mais duas possíveis significações
de humanitas: a primeira é a oposição à selvageria, sendo equivalente à civilidade, à
aculturação, se associando à cordialidade e à mansidão — isto é, os homens, antes
dispersos e violentos, aprenderam a convivência em grupo, subjugando-se às leis e
usando da mansidão, ou seja, limitando sua conduta; a segunda diz respeito à
cultura propriamente dita, no sentido de educação espiritual e intelectual — é a
formação do indivíduo dentro do grupo, a transmissão social da cultura (tendo
resquícios do conceito grego de paidéia). Vejamos o modo como Don Juan se afasta
substancialmente dessa "humanidade", em qualquer uma de suas acepções.

Don Juan está muito longe de partilhar do sentimento do "homem


universal" pois seu modo de comportamento é ímpar, e sua singularidade o destaca
dos demais, dos seus supostos semelhantes. Ninguém está mais distante desse
primeiro sentido de "humanidade", principalmente no que tange à noção do tempo,
que lhe falta, um atributo humano por excelência, que diferencia o homem dos
animais e dos deuses. A noção de tempo traz a consciência de finitude — e finitude /
limitação é uma característica ausente em Don Juan.

O burlador tampouco conhece as noções de apreço ao semelhante, de


simpatia ou de ação humanitária, presentes na segunda definição. Para ele, é como
se o outro não existisse — ou existe apenas como platéia, que não é exatamente
um "outro" e sim uma massa informe, que lhe reconhece as façanhas, validando-
91
as . O único "outro" que Don Juan reconhece como legítimo, como digno de

90
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Op. cit.
91
A respeito dessa relação que Don Juan estabelece com a sociedade como platéia de suas
façanhas, há uma excelente observação de Renato Janine Ribeiro, que nota que a personagem
opera uma mudança na acepção da palavra “público”, que passa do sentido político, de espaço
comum a todos, ao teatral, de platéia. Don Juan usa o espaço público como se fosse sua platéia.
“Fazendo-se espetáculo, ele garante que não exista mais rival para seus feitos, ou controle para suas
ações. O poder religioso foi descartado, dispensando-se o padre da cerimônia religiosa, excluindo-se

65
atenção, é a estátua, uma instância sobrenatural: ao que parece, Don Juan só pode
reconhecer como seu semelhante um ente sobre-humano. Do contrário, não há a
mínima ocupação com os problemas alheios, causados por ele próprio. Não há
nenhum traço de remorso 92, mesmo tendo burlado a amada do amigo, o Marquês de
la Mota.

Passemos agora à terceira acepção de humanitas, aquela que se opõe


à bárbarie, ao representar a vida em comunidade. Diz respeito ao uso das leis,
direitos e deveres, em nome do bom andamento social. Claramente se nos
apresenta a impossibilidade de Don Juan inserir-se nessa "humanidade", pois o que
ele faz é instaurar o caos social, desobedecendo suas leis e fugindo de sua justiça.
É exatamente o oposto da civilidade.

Já na quarta acepção encontramos o ideal de desenvolvimento


humano, relacionado à formação do homem dentro da cultura, como receptor do
legado espiritual e intelectual desta. E aqui precisamos de algumas adaptações da
nossa idéia ao conceito, excluindo uma parte deste. Não faria sentido analisarmos a
personagem em termos de educação formal recebida, e sim avaliarmos se, de
alguma forma, apreendeu princípios da cultura em que se encontra, ou seja: teria
Don Juan algum resquício do legado espiritual / cultural da sociedade espanhola dos
séculos XVI, XVII? Temos em mente, principalmente, o legado da religiosidade
católica, um fator sempre determinante ao pensarmos tal sociedade e ao
pensarmos, obviamente, a obra religiosa que é El burlador de Sevilla. E neste ponto
as coisas se complicam: a princípio, Don Juan parece realmente ser o diabo
encarnado, contrastando seu comportamento com qualquer ideal cristão de
conduta. E ele efetivamente é assim. Porém, devido à finalidade didática da peça,
Don Juan não pode bater de frente com o discurso religioso. Como já vimos, ele não
contesta a moralidade católica, simplesmente seu comportamento é alheio a ela.
Isso quer dizer, apenas, que devido à intenção pedagógica do autor, a personagem

da consciência a moral cristã; o poder temporal tornou-se irrelevante, já que o governante perdeu a
praça pública, reduzida, de ágora, a cenário. Isso é talvez o que há de mais notável na ação de Don
Juan: ele domina os homens por um recurso único, exemplar, o de teatralizar o social”. RIBEIRO, R.
J. A política de Don Juan. In: RIBEIRO, R. J. (Org.). Op. cit., p.16.
92
De fato, como aponta Mario González, não pode sentir culpa, já que carece da noção de tempo
retilíneo, onde caberia a consciência de um passado a ser redimido num futuro. Cf. GONZÁLEZ,
2004, p. 27.

66
não pode questionar os princípios éticos dessa cultura, mas nos é evidente que não
adquiriu para si nenhum dos seus conceitos — e dessa forma tampouco se insere
nessa última significação de humanitas.

Parafraseando os humanistas, poderíamos imputar-lhe o lema: "Tudo


do que é humano me é alheio" — e teríamos a dimensão exata, sobre-humana, de
Don Juan Tenorio. A identificação de uma persongem com o sobre-humano é
facilmente encontrada no tipo de narrativa que conhecemos como mito. Pensamos
aqui em consonância com o a definição de Northrop Frye:

Por mito (...) refiro-me primariamente a um certo tipo de história (...) na


qual alguns dos personagens principais são deuses ou outros seres
mais poderosos que a humanidade. (...) Os personagens podem fazer o
que querem, o que significa o que o narrador quer: não há necessidade
de ser plausível ou lógico em motivação. As coisas que acontecem no
mito são coisas que acontecem apenas em histórias; elas estão em um
mundo literário auto-suficiente.93

Esse caráter poderoso e arbitrário de Don Juan, portanto, parece


confirmar sua leitura como mito. Assim, podemos concluir que, apesar da
simplificação / esquematização do caráter, Don Juan e a estátua do comendador
Don Gonzalo não se tornaram apenas alegóricos, embora certamente possam ser
lidos dessa forma. Ambos ultrapassaram a alegoria à qual deveriam estar
destinados para efetivar a transmissão de uma moral. Basicamente, ele remetem ao
mito por unirem a realidade natural e sobrenatural, colocando-se acima do cotidiano
dos homens. A alegoria é apenas uma forma de se ler o mito. Se pensamos, por
exemplo, no da caso da Grécia antiga, vemos que foram os estóicos os primeiros a
interpretar os mitos alegoricamente, vendo-os como representações de
pensamentos e comportamentos humanos. A explicação alegórica supõe que o mito
é uma estrutura ambivalente, tendo um sentido aparente e outro oculto. No caso
grego

concluiu-se que, olhado em profundidade, o mito deixaria transparecer


um fundo também doutrinal, embora dissimulado, e não apenas
93
FRYE. N. Fábulas de Identidade. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Nova Alexandria, 2000, p.
38.

67
poético. Não se trata de uma tentativa para acabar com o mito, mas de
uma crítica empreendida em nome de certo tipo de racionalismo. Os
mitos não morreram; ficaram apenas sujeitos a interpretações, podendo
sugerir outras figuras — menos poéticas — dotadas de princípios
normativos gerais, que forma conhecidas como divindades
alegóricas. 94

Ou seja, se por um lado podemos ler alegoricamente o protagonista e o


antagonista de El burlador de Sevilla como personificações de princípios éticos, por
outro, numa abordagem mitológica, os encontramos como seres superiores, que
detêm os princípios do Bem e do Mal, e cuja origem remete à rebelião demoníaca.
Assim sendo, é possível e pertinente a leitura de Ramiro de Maeztu, que considera
Don Juan como a encarnação do mito do poder. Segundo o crítico espanhol, a
personagem age como se tivesse consigo um código de direito com um artigo único:
o de fazer tudo o que lhe desse vontade. Além disso, afirma que “el secreto de la
facinación que Don Juan ejerce, consiste precisamente en su energía inagotable.
Esa infinitud dependerá de que no se enamora, de que no se gasta o de que es
95
intrínsicamente inagotable.”

Para Ramiro de Maeztu, o fato de Don Juan direcionar sua energia


exclusivamente em direção às mulheres se justificaria por serem elas uma espécie
de meio-termo entre o concreto e o abstrato. Segundo o autor, ele não poderia se
dirigir com afã ao dinheiro ou ao poder pois estes seriam instâncias "demasiado
abstratas". Se, em vez disso, se dirigisse à bebida ou comida, estaria buscando algo
"demasiado concreto". Podemos, no entanto, cogitar outras possibilidades. É
possível que Don Juan, caso direcionasse sua energia inesgotável para a
bebida/comida, não a estaria gastando e sim acumulando-a. Se a direcionasse ao
dinheiro ou ao poder, estaria bucando meios para alcançar seus objetos de desejo
— pois embora seja possível o gosto pelo poder e pelo dinheiro em si mesmos, o
prazer que proporcionam é sempre da ordem da utilidade, do que pode ser feito

94
MITOLOGIA. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 738. Ainda com o intuito de ressaltar a diferença
entre um deus mítico e uma divindade alegórica, vejamos o exemplo de Ares (Marte) deus da guerra
e Enio (Belona), divindade que alegoriza a guerra. Enquanto o primeiro detém o princípio bélico, a
visão global do guerrear, a segunda expressa a própria luta que se empreende no campo de batalha,
sendo a concreção do conceito que está sob o comando de Ares.
95
MAEZTU, Ramiro. Op. cit. p. 90.

68
através deles. Já com as mulheres, Don Juan não necessita de meios: ele é seu
próprio veículo, o acesso às mulheres se dá pelo seu próprio eu — esse eu que faz
tudo o que lhe dá vontade, uma verdadeira representação do mito do poder.

O castigo de Don Juan efetua-se pelas mãos de uma instância divina,


superior. E não poderia ser de outra forma, pois, como já vimos, as autoridades
temporais não podem alcançá-lo. O jantar com a estátua de pedra é o único
momento em que o burlador cumpre sua palavra (porque não quer ser considerado
covarde, além do desejo manifesto de que Sevilla conheça mais uma façanha sua),
pois considera-se à altura da estátua, que também “não é desse mundo”. Segundo
sua própria fala:

Pero todas son ideas


que da a la imaginación
el temor; y temer muertos
es más villano temor.
Si un cuerpo con alma noble,
con potencias y razón,
y con ira, no se teme,
¿Quién cuerpos muertos temió?
Iré mañana a la iglesia
donde convidado estoy,
porque se admire y espante
96
Sevilla de mi valor.
Assim, ao enfrentar a estátua do comendador, depara com uma
instância que, assim como ele, também "não é deste mundo", porém é sua
afirmação positiva, representante legítima dos ideais da sociedade católica de seu
tempo e, portanto, suprime a afirmação negativa que é Don Juan — afirmação
negativa no sentido de que funciona como oposição aos limites dessa sociedade, ou
seja, ao negá-los, acaba demonstrando-os, funcionando como exemplum.

Portanto Don Juan não só se identifica com o trickster mas, na


verdade, o ultrapassa. Apenas no embate com o seu opositor divino é que ele pode
definir-se como figura transcendente; é nesse momento que ele pode ser muito mais
do que um enganador incansável, tornando-se a representação mítica dos valores
moralmente condenáveis. Neste ponto, temos em mente o que afirma Mircea Eliade

96
Versos 2531-2542.

69
[aos mitos] compete acima de tudo despertar e manter a
consciência de um outro mundo, do além (...) Esse ‘outro mundo’
representa um plano sobre-humano, ‘transcendente’, o plano das
realidades absolutas. É através da experiência do sagrado, do
encontro com uma realidade transumana, que nasce a idéia de
que alguma coisa existe realmente, de que existem valores
absolutos, capazes de guiar o homem e conferir uma significação
à existência humana. 97

o que nos leva a concluir que a estátua e o burlador são duas faces do
mesmo mito, uma confirmando a outra.

97
Eliade, M. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1986. p.123

70
CONCLUSÃO

Ao longo deste trabalho buscou-se averigüar os principais fatores que


fazem de El burlador de Sevilla uma obra propícia a dois níveis de interpretação
crítica. Em um primeiro nível, temos a peça que trabalha em função de um ideário
histórico-social, que é católico, aristocrático, absolutista, contra-reformista e
moralizador, perceptível na abordagem que faz de questões como o uso do livre-
arbítrio por parte do homem, do casamento baseado no juramento e na consumação
física, e em valores como honra, boa-fé, virtude, glória e fama. Em um segundo
nível, temos a peça que, ainda com o intuito de reforçar uma exemplaridade,
trabalha conteúdos que remetem a narrativas míticas, manifestados explicitamente
nas persongens-mitos de Don Juan Tenorio e Don Gonzalo de Ulloa. Ambos os
níveis, apresentados nos capítulos 1 e 2 deste trabalho respectivamente, revelam-se
como complementares, sendo indispensáveis a uma abordagem que pretenda ser o
mais completa possível da obra em questão. Segundo o crítico Rodríguez López-
Vázquez:

El problema está en dilucidar el transfondo mítico en que se sustenta:


las estructuras antropológicas que permiten su reconocimiento como
mito, pero también las preocupaciones personales que hacen que un
autor concreto, en una época concreta, articule las bases del mito. En el
primer caso estamos en el terreno de la mitografía comparada; en el
segundo, en el de la crítica literaria. Difícilmente se conseguirá dar una
98
idea clara del problema si no se atiene el estudioso a ambos niveles.

O autor também adverte quanto à relação inextricável que se


estabelece entre a estrutura mítica e o conteúdo histórico que se apresentam:

Este transfondo bíblico, que sustenta los gestos y las metáforas escénicas de
la obra, se complementa con un ámbito mitológico que funciona de manera
similar. Del mismo modo que los fragmentos textuales y gestuales de cada
escena actúan como prolepsis del final, también las referencias mitológicas
99
elaboran un entramado simbólico muy claro.

98
RODRÍGUEZ LÓPEZ-VÁZQUEZ, Alfredo. Op. cit., p. 26.
99
Idem, ibidem, p.48.

71
A articulação de estruturas míticas têm uma funcionalidade dentro do
caráter religioso e didático de El burlador de Sevilla, pois, ao ser configurada com
traços que remetem ao enredo mítico, que sempre supõe a existência do
transcendente, a peça teatral reforça a idéia religiosa que a sustenta. Assim, lemos
na estrutura da obra um uso ideológico do mito pela peça, que vai ao encontro do
ideal contra-reformista do teatro do Siglo de Oro. Nesse sentido, a personagem de
Don Juan submete-se a um enredo cuja finalidade moral é ilustrada por um mito. É
no nível do enredo, então, que vemos o funcionamento de um mito que defende a
manutenção de uma ordem social. É a interpenetração do transcendente no
mundano, do divino no humano — característica básica das narrativas míticas —,
que nos mostra que a “realidade”, como considerada na obra, está subordinada a
esse “plano superior”, e deve organizar-se a partir dele — o que, neste caso,
significa a subordinação de toda uma sociedade aos preceitos da Igreja e do Estado
espanhóis, com todas as conseqüências de suas naturezas contra-reformista e
absolutista.

72
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