O Processo de Construção Da Saúde Mental

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A FAMÍLIA NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO

DA SAÚDE MENTAL

Docente: Profa. Ma. Camilla de Melo Silva


Uma apresentação da nossa travessia...
Possíveis pontos de partida:

Por que precisamos falar sobre saúde mental e sua interface com a família?

Sobre que família estamos falando?

Como podemos ampliar o debate para que possamos tecer redes de cuidado
que vão além das especialidades?

Precisamos produzir caminhos que nos levem além da norma:


descolonizar para desmedicalizar!

Atentar para os conceitos apresentados enquanto ferramentas analíticas.


Uma apresentação da nossa travessia...
Ementa:

• Valorização e interface família na saúde mental;


• Afetividade na família e a saúde mental;
• Vínculos e diálogos na promoção e resgate da saúde mental;
• Diferentes abordagens à família em saúde mental;
• Saúde Mental e a importância da família nos grupos de ajuda;
• A inclusão da família nos projetos terapêuticos;
• A visita domiciliar em saúde mental.
Como chegamos até aqui?
Quais os ecos da nossa caminhada?
Ninguém melhor do que nós para falar sobre nós, pois o nó é nosso", disse-nos,
em alto e bom tom, para o enorme auditório paulistano, o usuário de um serviço
da saúde mental. Sua voz ainda ecoa, apesar dos anos passados. Outras vozes
foram ouvidas. Novas histórias. Vidas atravessadas por flechas simbólicas
lançadas por seres mascarados. Tolice. Seus rostos foram vistos - as vozes nos
contam. Narram. Descrevem, minuciosamente, os traços. Rostos grossos. Rostos
sedentos. As vozes não se calam diante das flechas. As vozes estão por toda
parte. Ainda que a racionalidade opressora não queira ouvi-las, elas estarão
emitindo seus sons. Vozes. Nós.
A CONTRARREFORMA PSIQUIÁTRICA EM CURSO...
• O olhar da sociedade sobre a loucura costuma mudar em períodos de crise.

• Algumas reflexões importantes:


1. As RP nascem, em geral, de momentos de crises sociopolíticas e sanitárias que produzem e evidenciam as
vulnerabilidades e tensões do tecido social;
2. As RP não podem se reduzir a reorientações do modelo assistencial, já que os problemas que denunciam
demandam mudanças estruturais nas macro e micropolíticas sanitárias e intersetoriais para produzirem efeitos
mais efetivos;
3. Para que, no âmbito do cuidado e da atenção, as RP possam enfrentar a complexidade da natureza das crises
(psíquica, social, política, econômica e física) que acometem os sujeitos, necessitam atuar em uma lógica territorial,
psicossocial, desinstitucionalizadora e antimanicomial, sob pena de apenas mascararem os conflitos e os
determinantes das crises e produzirem segregação das pessoas, ou medicalização de problemas complexos.

(Nunes, 2019)
A CONTRARREFORMA PSIQUIÁTRICA EM CURSO...

• As Contrarreformas configuram efeitos paradoxais, isto é, inesperados pelas forças sociais que idealizaram,
conquistaram e implementaram a RP em questão;

• Nos casos mais extremos, contam com o reaparecimento do manicômio, ou função manicômio, operando no
centro do modelo de atenção e a hegemonia do modelo biomédico, com ênfase na explicação biológica do
adoecimento e nas terapêuticas correlatas;

• A Contrarreforma pode ser entendida como um processo sociopolítico e cultural complexo que evidencia
uma correlação de forças e interesses que tensionam e até revertem as transformações produzidas pelas RP
nas quatro dimensões propostas por Amarante (2003): epistemológica, técnico-assistencial, político-jurídica
e sociocultural.

(Nunes, 2019)
Alguns conceitos para (des)bussolar
a caminhada de produção de cuidado(s)
Uma ferramenta analítica necessária:
a MEDICALIZAÇÃO DA VIDA

A medicalização, conforme discutem Freitas e Amarante (2015), tem se apresentado


enquanto um fenômeno que tende a reduzir as experiências humanas e, claro, o próprio
ser humano, a questões medicáveis ou não. Apesar de amplamente discutido, o conceito
de medicalização, ainda hoje, nem sempre ultrapassa a centralização e a crítica ao saber
médico (Camargo Jr., 2013).
Uma ferramenta analítica necessária:
a MEDICALIZAÇÃO DA VIDA

A medicalização da vida não deve ser compreendida apenas enquanto


uma crítica a um saber localizado, assim como não deve ser reduzida à prescrição e
consumo desenfreado de medicamentos. A entendemos enquanto fenômeno atravessado
por forças motrizes que são subjacentes aos processos e que impulsionam a expansão da
medicina – e dos ditos “saberes da saúde” – sobre diferentes necessidades sociais, como,
por exemplo, as situações de vulnerabilidade que expressam modos de vida e identidades
(Minakawa & Frazão, 2016). Tais forças motrizes dizem das instituições, da indústria,
do Estado e da própria sociedade.
(Itinerários vividos, histórias narradas: gradientes de autonomia entre
beneficiários do Programa ‘De Volta para Casa’ – 2020)
Uma ferramenta analítica necessária:
AUTONOMIA (ou: “gradientes de autonomia”)
• Há que se adotar uma concepção de autonomia que verse sobre a vida em comum e suas possibilidades, entendendo que
o humano se faz e refaz a partir do reconhecimento mútuo entre pares, construindo uma vida e galgando possibilidades
que só são viáveis a partir da partilha e do convívio entre os seus, tendo o público – e não só o privado – como um campo
importante de ampliação da liberdade;

• Na contramão do paradigma neoliberal, tem-se a autonomia como capacidade de estabelecer, em um plano comum de
coexistência, relações de interdependência para a construção das escolhas e decisões de modo ético, isto é, decisões que
podem ser apoiadas e cujos efeitos considerem sua existência na relação com os demais que o cercam;

• O fato de as relações das pessoas diagnosticadas com transtorno mental serem geralmente muito restritas é o que as
tornam menos autônomas;

• “Somos mais autônomos quanto mais dependentes de tantas coisas pudermos ser, pois isto amplia nossas possibilidades
para o estabelecimento de novas normas, novos ordenamentos para a vida” (Kinoshita, 2016).

• Autonomia não é antônimo de dependência, nem “liberdade absoluta” – devido à sua aproximação à compreensão
individualista/liberal. Ao contrário, entende-se autonomia como a capacidade do sujeito, em sua relação com o corpo
social, de construir redes de dependências: de apoio, proteção, afetos.
Uma ferramenta analítica necessária: a INTERSECCIONALIDADE

• Kimberlé Crenshaw (1989 e 1991) inaugura o termo “interseccionalidade”: A interseccionalidade é uma


conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre
dois ou mais eixos da subordinação;

• A interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em


sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como
ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação
sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se
mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das
pessoas e das experiências humanas” (Patrícia Hill Collins & Sirma Bilge, 2020);

• “Em determinada sociedade, em determinado período, as relações de poder que envolvem raça, classe e
gênero, por exemplo, não se manifestam como entidades distintas e mutuamente excludentes. De fato, essas
categorias se sobrepõem e funcionam de maneira unificada” (Patrícia Hill Collins & Sirma Bilge, 2020);

• Assim, a interseccionalidade, enquanto ferramenta analítica, nos dá um melhor acesso à complexidade do


mundo e de nós mesmas/os.
Uma ferramenta analítica necessária:
o SOFRIMENTO ÉTICO-POLÍTICO

• O sofrimento ético-político diz respeito ao sentimento que parte do indivíduo dentro de um contexto político,
econômico, social e cultural. Aflige aquele que percebe, de alguma forma, sua condição excluída, desalojada, a
dor individual e coletiva da desigualdade e os seus impactos na vida cotidiana. O sofrimento ético-político nos
conta os efeitos dilacerantes de um sistema grosseiro e desumano;

• O sofrimento ético-político diz respeito a um sentimento que não é individual, ou seja, sentido apenas pelo
indivíduo em si mesmo, mas de sua percepção do todo, da percepção da desigualdade coletiva que o inclui,
estando em coesão com a lógica excludente à sua volta;

• O contraponto ao sofrimento ético-político é a felicidade pública. Diferente de outras emoções momentâneas


associadas a alegria, a felicidade pública, assim como o sofrimento ético-político, “é sentida quando se
ultrapassa a prática do individualismo e do corporativismo para abrir-se à humanidade”.

(Sawaia, 2014)
Uma ferramenta analítica necessária:
A CONTRAFISSURA E A PLASTICIDADE PSÍQUICA

• “Esse fenômeno de desespero, de fissura por resolver imediatamente, se manifesta na prática de internações
forçadas muitas vezes de adolescentes que tiveram seu primeiro contato com alguma droga ilegal. A esse afã
por resolver imediatamente e de modo simplificado problemas de tamanha complexidade chamamos
contrafissura” (p. 30);

• A contrafissura é manifestada em jornais, autoridades políticas e policiais. Se manifesta também em


programas de governo (por exemplo, focando nas drogas e não nas pessoas);

• A contrafissura também se manifesta em cada cuidador e terapeuta que imagina salvar a vida das pessoas, que
pelas razões mais complexas está habitando as bocadas e zonas de uso ou simplesmente de pessoas que
procuram ajuda.

(Lancetti, 2015)
Uma ferramenta analítica necessária:
A CONTRAFISSURA E A PLASTICIDADE PSÍQUICA

• A plasticidade psíquica pode ser entendida como uma ruptura com a rigidez psíquica;

• “O trabalho dos terapeutas, ou seja, de todos os membros da equipe de Caps AD exige uma plasticidade
psíquica extraordinária, daí a importância de artistas na equipe” (p. 60);

• “A constante mudança de situações, ora repetitivas, ora explosivas, as diversas crises que os profissionais
acolhem, o encontro com histórias de vida terrificantes ou situações de horror tornadas habituais ou
banalizadas, exigem plasticidade psíquica e outro olhar” (p. 62).

• A plasticidade psíquica nos dá aparato para mergulharmos “na biografia de pessoas silenciadas”.

(Lancetti, 2015)
Valorização e interface família na saúde mental
COMPREENSÃO DE FAMÍLIA:
INDO ALÉM DA ESTRUTURA CIS-HÉTERO-PATRIARCAL E ASSUMINDO A
PLURALIDADE NA/DA CONTEMPORANEIDADE

(Silva & Rosa, 2014; Dias, 2007)


A estrutura familiar acompanha o constante
processo de transformação da sociedade nos
vários âmbitos: social, econômico e político, de
forma a atender esta demanda.

(Silva & Rosa, 2014; Dias, 2007)


“Antes de qualquer proposição de trabalho com família, necessário será entender o que é
família em sua complexidade, suspendendo juízos de valor, conceitos fechados, lineares e
prontos, os quais produzem uma concepção reducionista de família. Pode ser útil
compreender família como um sistema aberto e interconectado com outras estruturas sociais
e outros sistemas que compõem a sociedade, constituído por um grupo de pessoas que
compartilham uma relação de cuidado (proteção, alimentação, socialização), estabelecem
vínculos afetivos, de convivência, de parentesco consanguíneo ou não, condicionados pelos
valores socioeconômicos e culturais predominantes em um dado contexto geográfico,
histórico e cultural” (Brasil, 2013, p. 63).
O USUÁRIO ENTRE AS INSTITUIÇÕES E A FAMÍLIA:
É PRECISO DESINSTITUCIONALIZAR

Para pensarmos a família no processo de construção da saúde mental é preciso que


levemos a cabo os processos de desinstitucionalização para além da desospitalização (Rotelli
et al., 1990). É preciso que pensemos a família também enquanto instituição – tendo em
vista as relações de poder(es) nela presentes (Foucault, 1984) – para que, a partir disso,
possamos seguir delineando e construindo, junto com os usuários e familiares, práticas de
cuidado que se pautem na contratualidade (Kinoshita, 2016), no fortalecimento de vínculos
e na produção de autonomia.
O LUGAR DA FAMÍLIA NA PRODUÇÃO
DO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL

• Nessa relação entre o sujeito e sua família, a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), fruto da reforma
psiquiátrica brasileira, redirecionou os modos de produção de cuidado em saúde mental, no sentido de
conceber e entender o papel da família no cuidado dos sujeitos;

• Se, antes, o tratamento se dava por meio do isolamento do indivíduo do seio familiar e comunitário, agora, ele
deve ser realizado em serviços de base territorial, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), e na Atenção
Básica à Saúde (ABS), por meio da equipe de saúde da família, entre outros;

• Fruto da Reforma Psiquiátrica: as pessoas em sofrimento psíquico grave passam a ter o direito de convívio com a
família garantido – assim como passa a circular pelo território e estabelecer relações com as redes sociais e de
apoio que a comunidade oferece;

(Brasil, 2013; Ferreira, T., Sampaio, J., Oliveira, I., & Gomes L., 2019)
O LUGAR DA FAMÍLIA NA PRODUÇÃO
DO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL: UMA NOVA PERSPECTIVA

• A família como parceira dos novos serviços e reafirmada como um dos possíveis espaços do provimento de
cuidado, podendo ser necessária e aliada no cuidado de seu familiar em sofrimento psíquico;

• A família passa a ser convocada a integrar as redes de apoio do usuário, e, como tal, deve ser considerada na
produção do cuidado, de modo que não seja apenas acionada para o atendimento do sujeito, mas também
possa fazer parte das ações;

• Nos CAPS, a lógica da desinstitucionalização, enquanto desconstrução de um modelo hegemônico de cuidado


centrado nos hospitais psiquiátricos reconhece também a família como espaço que cuida e precisa ser cuidado.

A abordagem familiar ainda é um desafio nas práticas


cotidianas dos serviços substitutivos.

(Ferreira, T., Sampaio, J., Oliveira, I., & Gomes L., 2019)
INTERFACE FAMÍLIA E SAÚDE MENTAL
Atribuições/funções e tarefas da família:
transformações são produzidas pelas alterações no modelo assistencial em saúde mental
advindas da Reforma Psiquiátrica brasileira.

MODELO HOSPITALOCÊNTRICO NOVO MODELO ASSISTENCIAL


Fica restrita ao papel de identificar a Ganha uma pluralidade de sentidos e
loucura, encaminhar o familiar ao asilo para dimensões, preponderantemente como: 1)
os cuidados médicos, visitá-lo, bem como um grupo que precisa de
fornecer as informações necessárias sobre a assistência e cuidados; 2) como um recurso
história de sua enfermidade. Assim, a ou lugar, como outro qualquer, mas não o
relação da família com a pessoa em único; 3) como
processo de adoecimento psíquico passa a provedora de cuidados; 4) como avaliadora
ser mediatizada por agentes médicos dos serviços e 5) como sujeito político.
e por agências estatais, encarregadas da
cura, da custódia e da assistência.

(Silva & Rosa, 2014; Dias, 2007)


INTERFACE FAMÍLIA E SAÚDE MENTAL

“A família é considerada um sujeito cuidador, (...) mas também precisa de cuidados e


atenção, principalmente, por ser, quase sempre, apenas um cuidador que se
sobrecarrega ou é sobrecarregado do cuidado familiar, que acaba, muitas vezes,
sendo sinônimo de cuidado comunitário. A família, então, não é mais tida como um
sujeito extra no tratamento e sim como parte integrante deste, como provedora e
recebedora de cuidado, numa outra divisão de cuidado com o Estado. Inserida no
contexto da Reforma Psiquiátrica, é responsável por mediar o seu ente familiar que
tem ‘transtorno mental’ com os serviços de saúde e com os profissionais que
prestam atendimento aos mesmos,
bem como dar o suporte e o apoio no convívio social”

(Silva & Rosa, 2014; Dias, 2007)


Vínculos e diálogos na promoção e resgate
da saúde mental
UM MOVIMENTO IMPORTANTE A SE DESTACADO
• O Programa de Volta pra Casa (PVC): instituído a partir da assinatura da Lei Federal 10.708 de 31 de julho de
2003 e dispõe sobre a regulamentação do auxílio-reabilitação psicossocial a pacientes que tenham permanecido
em longas internações psiquiátricas;

• Caráter indenizatório àqueles que, por falta de alternativas, foram submetidos a tratamentos aviltantes e
privados de seus direitos básicos de cidadania;

• Assume o objetivo de contribuir efetivamente para o processo de reinserção social dessas pessoas, incentivando
a organização de uma rede ampla e diversificada de recursos assistenciais e de cuidados, facilitadora do convívio
social, capaz de assegurar o bem-estar global e estimular o exercício pleno de seus direitos civis, políticos e de
cidadania;

• TRIPÉ: PVC, Programa de Redução de Leitos Hospitalares e os Serviços Residenciais Terapêuticos – essencial
para o efetivo processo de desinstitucionalização e resgate da cidadania das pessoas com graves
acometimentos psíquicos submetidas à privação da liberdade nos HP’s brasileiros.

O QUE SIGNIFICA “RETORNAR”?


(Brasil, 2003)
Manutenção dos vínculos familiares: a experiência de Roberto Carlos
Atualmente, um importante vínculo de Roberto, para além das pessoas que fazem parte de
sua rotina diária (na Residência Terapêutica), continua sendo sua mãe. Ela mora no bairro de Rosa
Cruz, na mesma cidade. Já se mudou algumas vezes, desde que o filho saiu de casa, mas sempre fica
em bairros próximos. Todas as sextas-feiras Roberto passa o dia em sua companhia. Sai de casa às 8h e
fica o dia todo com a mãe. Lá ele fuma, come pão, toma café, conversa, escuta o Rei e observa o dia
da mãe. É encantado com o coração cheio de ternura “de uma mãe” - ou da sua, uma mulher
guerreira que cuida de todos, conta.
Os sonhos de Roberto Carlos são simples como seu modo de se colocar no mundo. Deseja ter
saúde e poder voltar a trabalhar - seja enquanto mecânico de automóveis ou consertando torneiras.
Seja criando uma nova possibilidade de trabalho, seja fazendo o que já sabe. Ele deseja estar saudável
para trabalhar, ainda que em muitos momentos de sua trajetória de vida ele tenha parado de
acreditar que poderia ir além. Roberto sabe que é possível e que “além do horizonte deve ter algum
lugar bonito pra viver em paz”, como cantarola(m) o(s) rei(s) - o daqui e o de acolá.

(Trecho retirado de diário de campo)


Manutenção dos vínculos familiares: a experiência de Leão.
“Em Leão, passado e presente se entrecruzam: ainda se relaciona com os pais como se fosse aquele mesmo filho
que os deixou aos dezenove anos de idade. Abraça-os, beija-os e é beijado. A conversa gira em torno de uma
época em que a família era unida: fala-se de um tempo em que se assistia a “Os trapalhões”, “Viva a noite”,
“Escolinha do professor Raimundo” e “Chaves”. As músicas cantadas são da mesma época. Leão repete inúmeras
vezes os nomes dos programas e músicas, numa tentativa de reviver ou tornar presente mais uma vez uma
época em que os abraços e beijos de seus pais poderiam ser acessados a qualquer momento, uma época em
que sua vida ainda não fora atravessada pelos muros e grades de um manicômio. Aliás, o balançar de Leão – algo
que pode ser tido como sua marca – cessa quando está em companhia dos pais
(...)
Nosso ator só permite que uma pessoa o auxilie na higiene pessoal: o pai. E assim tal cuidado foi diariamente
ofertado pelo mesmo – um homem baixo, robusto, cabeça branca, bigode, pele queimada, de olhar manso, com
o corpo marcado pela tinta de seu trabalho como pintor – seja em casa, no manicômio ou na RT. O obstinado
pai, que perfuma, semelhantemente a uma “flor”, a vida do filho, se mostra desgostoso com o corte
exageradamente curto do cabelo de Leão; como se alguém houvesse “pelado” a beleza da juba do filho. Na
residência, os cortes de cabelo são feitos por um dos cuidadores e, no caso de Leão e de alguns outros
moradores, os cortes apresentavam algumas irregularidades”

(Trecho retirado de diário de campo)


Diferentes abordagens à família em saúde mental
O caráter multidimensional do sofrimento psíquico
• Para que seja possível pensarmos as diferentes abordagens à família em saúde mental, é
necessário que seja levado em consideração o caráter multidimensional do sofrimento psíquico;

• O processo de adoecimento engloba questões biológicas, sociais, de raça, de gênero, de classe e


de cultura – e aqui ressalta-se a importância de pensarmos a saúde mental a partir da
interseccionalidade;

Assim, entendendo tal questão,

“Há um consenso de que fatores familiares, valores sociais e sistema cultural têm
influência no processo saúde-doença. No fim da década de 1950, a família era considerada
a causadora da doença no indivíduo, notando-se que esse fator exerce influência até hoje
na relação entre os profissionais e familiares”
(Duarte, Souza, Kantorski & Pinho, 2007, p. 67)
A concepção de família é singular

“Cada indivíduo tem sua concepção de família, seja ela constituída de pai,
mãe e filhos ou, simplesmente, de pessoas que se veem unidas por relações
afetivas, independentemente de seus laços consanguíneos. Esse núcleo social
é o primeiro a se mobilizar numa situação de enfermidade e é um elemento
fundamental no processo de reabilitação do usuário, tornando-se, assim, um
referencial para os serviços de saúde”

(Duarte, Souza, Kantorski & Pinho, 2007, p. 67)


A abordagem à família é fruto da Reforma Psiquiátrica

“Os estudos sobre família ganham grande visibilidade na década de 1950,


através do surgimento das terapias familiares, especialmente as de
abordagem sistêmica que têm seus conceitos oriundos principalmente da
teoria geral dos sistemas e da cibernética. De modo geral, o enfoque das
terapias familiares recai sobre as mudanças nos padrões relacionais e de
comunicação dentro do sistema familiar. Esses conceitos foram incorporados
ao trabalho dos profissionais brasileiros, mas é a partir do movimento da
Reforma Psiquiátrica que se passa a dar maior atenção à relação da família
com o portador de sofrimento psíquico”

(Santin & KlafkeII, 2011)


ALGUMAS REFLEXÕES NECESSÁRIAS...

• Em alguns casos, a família é vista como ‘quem atrapalha o cuidado’, ou ‘quem não coopera para a melhora do
sujeito’;

• “Em alguns momentos, como, por exemplo, na elaboração de um plano de cuidado para o seu membro, a
família pode não integrar o seu planejamento, ou porque a equipe de saúde não reconhece o seu saber e
suas contribuições no cuidado ou porque essa família não se visualiza como participante desse processo”;

• “A família pode assumir diferentes papéis no cuidado de seu parente que vivencia sofrimento psíquico, visto
que essa, algumas vezes, é responsabilizada pelo usuário e pela sua melhora, todavia, ao mesmo tempo, não
é vista como aquela que pode opinar e auxiliar na elaboração do projeto terapêutico do sujeito, buscando
estratégias de inserção deste na comunidade, e assim por diante”;

• “O deslocamento das ações de cuidado do hospital para o domicílio desloca, também, os próprios
trabalhadores da saúde, que precisam repensar suas práticas, desterritorializar-se/reterritorializar-se dos seus
saberes técnicos adquiridos, para encontrarem-se com o outro, que agora encontra-se na sua residência,
ocupando espaços singulares e de produção da sua subjetividade”.

(Ferreira, T., Sampaio, J., Oliveira, I., & Gomes L., 2019, p. 445)
ALGUMAS REFLEXÕES NECESSÁRIAS...
• É necessário que levemos em consideração que a família também é atravessada por processos de
adoecimento e necessita fazer parte dos planos de cuidado;

• Num contexto familiar adoecido, não raras vezes, o ambiente pode se tornar um “espaço de agudização” do
sofrimento psíquico de determinado usuário: tal questão precisa ser levada em consideração pela equipe de
profissionais;

• Atentar para a necessidade do cuidado familiar e não somente do indivíduo – atentemos: individualizar o
sofrimento é abrir mão da complexidade a ele inerente;

• Quando atentamos para a importância de conhecermos as pessoas que constituem o ambiente familiar, assim
como suas particularidades – compreendo quem são e como se organizam naquele lugar – o cuidado integral
torna-se uma possibilidade real. Ou seja, a família poderá ser integrada ao projeto terapêutico;

• “A integralidade do cuidado ao indivíduo envolve, também, sua família, uma vez que esta traz em si as suas
experiências e os modos de viver a vida, que são singulares e interferem nos modos de lidar com os processos
saúde-doença de seus membros” (p. 446).

(Ferreira, T., Sampaio, J., Oliveira, I., & Gomes L., 2019, p. 445)
ALGUMAS REFLEXÕES NECESSÁRIAS...

“Pelo fato de a família constituir as redes primárias do indivíduo, elas devem ser vistas como
fundamentais no processo de trabalho/cuidado. Na elaboração dos projetos terapêuticos, é
fundamental que os profissionais de saúde considerem as famílias nas suas singularidades, já
que estas apresentam demandas das mais variadas ordens. Entre as quais, Colvero et al. cita: a
dificuldade de lidar com as situações de crise, com os conflitos familiares emergentes, com a
culpa, com o pessimismo por não conseguir vislumbrar saídas para os problemas, com o
isolamento social a que ficam sujeitos, as dificuldades materiais da vida cotidiana, as
complexidades do relacionamento com esse familiar, a expectativa frustrada de cura
ou o desconhecimento da doença propriamente dita.
(...) Estar atento à história que envolve o passado da família, o seu presente e aquilo que esta
projeta para o futuro, sem dúvidas, é uma importante aposta das equipes de saúde na
produção do cuidado que reconheça e legitime o ambiente familiar como espaço de cuidado”
(p. 446).

(Ferreira, T., Sampaio, J., Oliveira, I., & Gomes L., 2019, p. 445)
Abordagem à família em saúde mental

• “Focando a atuação na família, amplia-se a noção de atendimento integral à saúde, em que, a partir de
um cliente, as ações são desdobradas para o grupo, com a organização de práticas preventivas coletivas e
de promoção de saúde” (Santos et al., 2015);

• Na Estratégia Saúde da Família (ESF), mesmo com todos os retrocessos aos quais foi exposta, a equipe
multiprofissional de saúde é levada a conhecer a realidade das famílias pelas quais é responsável, por
meio do cadastramento e da identificação de suas características, tornando-se mais sensível às suas
necessidades;

• A partir da relação direta com a família, vínculos são criados – “que facilita a identificação e o
atendimento dos problemas de saúde da comunidade”;

• Para alcançar esses objetivos, com um cuidado em saúde que alcance resultados satisfatórios e seja eficaz
no cuidado à família, faz-se necessário a utilização das ferramentas de família.

(Santos, et al. 2015)


Abordagem à família em saúde mental
• A utilização das ferramentas de abordagem familiar possibilita à equipe de saúde a construção de um
conhecimento mais abrangente acerca da família em questão e uma interação maior com a mesma no
sentido de melhorar a relação de ajuda estabelecida entre profissionais e membros do conjunto familiar;

• Algumas possibilidades de ferramentas de abordagem familiar: visita domiciliar, Genograma, Ecomapa,


Ciclo de vida, Conferência Familiar:

Genograma: permite uma visualização rápida com informações relevantes com relação à família,
para um melhor conhecimento da mesma. É uma ferramenta de representação gráfica da família
por meio da qual são representados cada um dos seus membros, seus relacionamentos e questões
como, por exemplo, possíveis morbidades, podendo ainda ser acrescentadas outras informações
relevantes como escolaridade, hábitos, etc.;

Ecomapa: É uma ferramenta que complementa o genograma, pois é a representação da rede social
da família e envolve as relações intrafamiliares e com o meio externo – levando em conta o vínculo
com o trabalho, amigos, serviços de saúde e assistência e a própria comunidade (Exemplo: Louro
José)
(Santos, et al. 2015)
Exemplo de Genograma
Exemplo de Ecomapa
Abordagem à família em saúde mental

• Algumas possibilidades de ferramentas de abordagem familiar: visita domiciliar, Genograma, Ecomapa,


Ciclo de vida, Conferência Familiar:

Ciclo de vida: ferramenta que divide a história da família em estágios de desenvolvimento (jovens
adultos saindo de casa; casamento; famílias com filhos pequenos; famílias com filhos
adolescentes; lançando os filhos e seguindo em frente; famílias em estágio avançado de vida). Os
estágios são caracterizados por tarefas específicas e crises evolutivas e/ou previsíveis, que exigem
processos singulares de cada membro que os vivencia (Santos, et al. 2015);

Conferência familiar: momento de troca e diálogo que pode (de preferência) acontecer no domicílio
da família. Espaço para exposição dos problemas familiares no qual é garantida a voz de todas as
pessoas presentes. Após a conferência, pode ser realizada a pós-conferência (Santos, et al. 2015);

Grupos “de família”: atividades que costumam acontecer nos serviços, mas que podem ir além
sendo propostas, por exemplo, rodas de terapia comunitária em outros espaços da comunidade –
participação da rede: CRAS, CREAS, UBSF, CAPS.
Vídeo:
Saúde Mental e a importância da família
nos grupos de ajuda
Um breve relato de caso - Berê e sua mãe: quem cuida de quem cuida?
• Em uma das salas de espera, presenciamos uma discussão entre Berê, uma usuária do serviço, e a sua
mãe. Na ocasião, a mãe de Berê estava visivelmente incomodada por ter que estar esperando a consulta.
Segundo a mesma, ela já não aguentava mais ter que ir ao serviço, afirmando que é uma mulher idosa e
que sua filha já tinha condições de cuidar de si. Em alguns momentos ela afirmava que já estava cansada.
Foi nessa situação, em que mãe e filha discutiam, que emergiram falas sobre a usuária ser uma pessoa
“agressiva e nervosa”.

Nesse momento, a mãe de Berê começa a falar sobre algumas situações vividas com a filha. Conta que
Berê “sempre deu trabalho” diante do uso de substâncias e sempre recorreu à mãe para pedir ajuda,
pois as pessoas foram cansando com o passar do tempo. A mãe conta que quando a filha “arruma
alguém”, fica mais tranquila, mas logo acaba e “vira problema de novo”. Menciona que a filha “tem as
relações dela com mulher” e que ela não se preocupa com isso, porque o que importa é que ela “deixe
de dar trabalho”. [...] A mãe de Berê continua falando. Diz que a filha é agressiva e nervosa e, por isso,
já passou por relações que terminaram muito mal. Sua mãe diz que a filha já colocou fogo na casa de
uma ex, assim como já esteve presa por tentativa de homicídio. Berê diz: “A senhora sabe que eu sou
assim. Que eu fico nervosa”. Berê fala que depois de viver muitas relações problemáticas, prefere ficar
sozinha sem ninguém pra lhe “aperrear”. Em seguida, a usuária é chamada para a consulta e a mãe
segue na sala de espera...
Um breve relato de caso - Berê e sua mãe: quem cuida de quem cuida?

• Desabafo da mãe e discussão com a filha;

• Momento em que a mãe se nega a retornar para o CAPS: grupos “de família”?

• Mediação da situação por parte da enfermeira;

• Reconciliação.
OS GRUPOS DE FAMÍLIA

• Os grupos de familiares (ou grupos de ajuda) costumam ser compostos, principalmente, por mães,
irmãs, companheiras e avós de usuários: uma questão de gênero;

• Objetivo: oferecer suporte aos familiares, tanto no sentido de ser um espaço para tirar dúvidas
sobre o cuidado e o manejo do tratamento junto ao usuário, como um momento para que o
familiar cuidador possa desabafar, falar das suas angústias e do seu cansaço, mas também falar de
si mesmo enquanto pessoa, não somente enquanto cuidador;

• Para Pontes (2009), nos grupos de familiares ou nos atendimentos de família, é comum que as
discussões girem em torno dos sintomas, e é importante que o profissional que media o grupo
fique atento às possibilidades e ao conjunto de recursos que a família apresenta e como cada um
se apropria deles ou como fica paralisado diante do momento vivido;
OS GRUPOS DE FAMÍLIA

• Um grupo de familiares pode funcionar como um espaço de acolhimento das experiências de vida
dos seus participantes. O estímulo às trocas de experiências tem se revelado uma importante
ferramenta para ampliar a capacidade de lidar com os problemas, assim como tem permitido que
um familiar possa se abrir para o discurso do seu companheiro (Melman, 2008).

• Os grupos chamam a atenção para a importância do fortalecimento de vínculos e de uma rede


mais ampla de cuidado: para além do CAPS e da própria família;

Importante dar-se conta: com as mudanças advindas com a Reforma Psiquiátrica,


profissionais da saúde mental e familiares de usuários estão em constante processo de
compreensão da construção coletiva do cuidado. O que antes se centrava no hospital e nas
mãos de profissionais (incluindo a própria família), hoje descentraliza-se. Não um único
centro cuidado, mas um cuidado compartilhado. Neste cuidado, lembremos, o protagonismo
é do usuário – que deve transitar em liberdade nessa teia de relações, vínculos e afeto.
OS GRUPOS DE FAMÍLIA

“Para amenizar a sobrecarga familiar e alcançar o cuidado em saúde mental como


preconizado pela Reforma Psiquiátrica, é necessário que se construa uma rede de cuidados,
não deixando o indivíduo somente como responsabilidade da família ou dos serviços de
saúde, mas integrando todas as estratégias possíveis para atendê-lo de forma integral e
humanizada. Para Pereira (2002), é a interação das pessoas na sociedade, a criação de laços
de amizade, culturais, de comunidade, de trabalho ou de estudo, que se constituem como
importantes bases de apoio ao indivíduo e à família em momentos de crise.

Sluski (1997), citado por Melman (2008), usa o termo Rede Social de Sustentação para
definir a soma de todas as relações que um indivíduo percebe como importantes ou
diferenciadas da massa anônima da sociedade. A rede social coloca o indivíduo e sua família
em um determinado território social e favorece que os serviços de saúde mental ampliem
seu território de intervenção” (Santin & KlafkeII, 2011).
MODALIDADES DE ATENDIMENTO PENSADAS PARA A PARTICIPAÇÃO DAS
FAMÍLIAS: EXEMPLO DE UM HOSPITAL DIA
Existem no Hospital Dia quatro modalidades de atendimento especificamente pensadas para a
participação das famílias no tratamento:

• Os grupos familiares ocorrem com a participação de pacientes, ex pacientes e familiares e têm o


objetivo de promover um espaço de diálogo entre equipe, pacientes e familiares acerca de temas
que lhes interessem;

• Os grupos de cuidadores funcionam como espaço de apoio, acolhimento e orientação para


familiares de pacientes atuais e daqueles em pós-alta;

• As reuniões familiares ocorrem semanalmente com cada família em específico – paciente e


familiares – e são um contexto que visa ao diálogo sobre questões trazidas por aquela família
acerca de sua vida cotidiana, adoecimento mental e a dinâmica familiar.

(Martins & Guanaes-Lorenzi, 2016)


MODALIDADES DE ATENDIMENTO PENSADAS PARA A PARTICIPAÇÃO DAS
FAMÍLIAS: EXEMPLO DE UM HOSPITAL DIA

• Os familiares descrevem sua participação como sendo uma forma de se sentirem acolhidos,
cuidados e apoiados mediante as situações colocadas com o adoecimento de seu familiar;

• Espaço para reflexão, autocuidado e fortalecimento pessoal no enfrentamento dos desafios do


acometimento psíquico grave: a potência do acolhimento – “cuidar de quem cuida”;

• A família também se sente cuidada ao se ver acompanhada por profissionais qualificados, que têm
o conhecimento necessário para sua atuação. Isso gera um sentimento de segurança nos
familiares, que finalmente se sentem amparados.

(Martins & Guanaes-Lorenzi, 2016)


MODALIDADES DE ATENDIMENTO PENSADAS PARA A PARTICIPAÇÃO DAS
FAMÍLIAS: EXEMPLO DE UM HOSPITAL DIA

• Espaço de aprendizado sobre o adoecimento psíquico e maneiras de lidar com o mesmo: por meio
do contato com a equipe profissional e com os outros familiares, os espaços de acolhimento aos
familiares torna-se um espaço de referência para obter informações e recursos técnicos
relacionados ao quê e a como fazer ao enfrentar determinadas situações com seu familiar
adoecido;

• “O aprendizado sobre a doença e seus efeitos benéficos para as famílias acontecem no cotidiano
do tratamento dessas famílias, por meio do diagnóstico e aceitação da doença, do recebimento de
informações sobre a doença e como lidar com situações advindas da mesma”.

(Martins & Guanaes-Lorenzi, 2016)


MODALIDADES DE ATENDIMENTO PENSADAS PARA A PARTICIPAÇÃO DAS
FAMÍLIAS: EXEMPLO DE UM HOSPITAL DIA

• Utilização de estratégias de psicoeducação como benéficas para os familiares (Aman, 2005; Rose &
Shelton, 2006) – nos deslocamos da lógica manicomial que concentra o conhecimento nas mãos de
um só profissional: eis um movimento que nos leva a refletir sobre a desmedicalização do
cuidado;

• O acesso às informações auxilia no manejo de situações cotidianas, assim como propicia uma
melhora na relação familiar, pois as pessoas passam a compreender determinados
comportamentos e podem pensar estratégias para a lida com o familiar em condição de
adoecimento: desloca-se da culpabilização do sujeito.

(Martins & Guanaes-Lorenzi, 2016)


A inclusão da família nos projetos terapêuticos
INSERÇÃO DA FAMILIA NO PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR (PTS):
• O PTS é um instrumento de trabalho em equipe;

• Possibilita a participação do usuário e, consequentemente, a construção de sua autonomia;

• Considera a historicidade e as necessidades individuais do usuário que se encontra inserido num contexto;

• Seu planejamento deve incluir ações que favoreçam a participação ativa do usuário e de sua família,
promovendo maior autonomia e compartilhamento de informações e saberes;

• “A construção de um projeto terapêutico singular deve ser compreendida como estratégia que, em sua
proposição e desenvolvimento, envolve a pessoa com transtorno mental, seus familiares e a rede social, num
processo contínuo, integrado e negociado de ações voltadas à satisfação de necessidades e produção de
autonomia, protagonismo, inclusão social” (Boccardo, Zane, Rodrigues & Mângia, 2011, p. 87);

• Encaminhamento de membros da família: identificação de demandas (Martins & Guanaes-Lorenzi, 2016).


INSERÇÃO DA FAMILIA NO PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR (PTS):
• Quais as pessoas envolvidas na rede de relações da/do usuária/o? Como se constitui a rede de afetos? Com
quem podemos contar? Quem precisa contar conosco?

• A possibilidade de construção e fortalecimento de vínculo da família com os serviços que compõem a Rede de
Atenção Psicossocial;

• Indo além do profissional de referência: o necessário envolvimento das equipes responsáveis;

• Intervenções possíveis do/no PTS: acolhimento de demandas e crenças, acesso à história em sua totalidade,
reorganização de contratos de participação nos serviços, compreensão dos “comportamentos difíceis”,
convivências – aproximação a partir das preferências e do universo da pessoa usuária: música, pintura, dança,
por exemplo – atendimento individual, grupo terapêutico, visitas a espaços frequentados pela pessoa usuária,
grupo voltado para familiares, “grupo de medicação”, diálogo com a rede de cuidado, visita domiciliar, etc.;

• Ampliação da rede de cuidado. Produção de existências outras. Produção de vida.

(Leal, Azevedo & Fabri, 2016)


INSERÇÃO DA FAMILIA NO PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR (PTS):
RELACIONAR-SE – AMPLIAÇÃO DA VIDA

“Acolhida das estranhezas e das singularidades do modo de vida que ali se expressam,
bem como o da escuta dessas expressões, não pelo viés patológico (com seus diagnósticos
e tratamentos), mas colocando-se ao lado do anômalo, do rugoso – como propõe
Canguilhem (2002), quando quer desmontar a ideia de anormalidade, trabalhando com a
positividade e legitimidade da diferença – para “fazer nascer ali um mundo”, “fazer nascer
uma criança”. Daí a enorme importância de sustentar um espaço tempo para que uma
experiência um tanto desordenada ganhasse sentido” (p. 167).

(Leal, Azevedo & Fabri, 2016)


INSERÇÃO DA FAMILIA NO PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR (PTS):

Como nós, profissionais, posicionamos a família ao entender a importância de convidá-la


a participar do tratamento?

Queremos reforçar discursos de culpabilização pelo adoecimento e de patologização da


família?

Ou desejamos nos engajar em práticas que de fato legitimem a dificuldade e fragilidade


da situação em que essas pessoas se encontram?

(Martins & Guanaes-Lorenzi, 2016)


A visita domiciliar em saúde mental.
CUIDADO NO TERRITÓRIO: A VISITA DOMICILIAR

• “Pode-se dizer que o objetivo primordial da visita domiciliar é buscar a capacitação das famílias para
que estas possam utilizar recursos próprios, a fim de resolverem os seus problemas, incluindo-as no
processo de tratamento“;

• A partir do momento que o usuário se desloca/é deslocado da instituição total (Goffman, 2003) e
torna-se presente na sua comunidade, um acompanhamento comunitário e familiar se faz necessário;

• A comunidade, bem como a “família nuclear”, tornam-se importantes (quando não os principais)
espaços de acolhimento do sujeito. Assim, para que seja garantido o acompanhamento da rede social
do usuário, emergem enquanto importantes dispositivos a visita domiciliar, mais focada no trabalho
com o sistema familiar, e a terapia comunitária, focada no trabalho com a comunidade em geral;

• O atendimento domiciliar reflete as limitações do atendimento institucional e da atuação individual do


profissional – a vida para além das paredes da instituição.

(Pietroluongo & Resende, 2007; Brandão, 2001)


CUIDADO NO TERRITÓRIO: A VISITA DOMICILIAR

ALCANÇAR O SUJEITO QUE SOFRE

DESCONSTUIR PRÉ-CONCEITOS ELABORADOS E CONSTRUÍDOS SOCIALMENTE

TER UMA ESCUTA DIFERENCIADA SEM JULGAMENTOS OU


TENTATIVAS DE ENCAIXE DO SUJEITO NA TEORIA

“Um técnico só pode chegar a compreender o sujeito e a


família a partir do momento em que ele se permite sempre ser surpreendido com algo
novo que surge no relacionamento, questionando os seus conceitos a priori. Essa
atitude contribui para o surgimento de momentos de subjetivação”.

(Pietroluongo & Resende, 2007; Brandão, 2001)


CUIDADO NO TERRITÓRIO: A VISITA DOMICILIAR

• DESLOCAMENTO DA CULPABILIZAÇÃO DA FAMÍLIA;

• VALORIZAÇÃO DOS SABERES E HABILIDADES;

• COMPREENDER A LOUCURA COMO O MODO DE EXISTÊNCIA DO DITO LOUCO: DEVOLVER O PODER DE


VERDADE À PALAVRA DO LOUCO (Fernando Tenório);

• VALORIZAÇÃO DAS SAÍDAS QUE A PRÓPRIA FAMÍLIA ENCONTRA PARA OS IMPASSES SUSCITADOS;

• BUSCA DA HABILIDADE DE CADA MEMBRO DO SISTEMA PARA RESOLVER OS PROBLEMAS PONTUAIS


COLOCADOS NA VISITA;

• VALORIZAR AS POTENCIALIDADES DA FAMÍLIA É PRODUZIR SEGURANÇA E, DIANTE DISSO, PRODUZIR


AUTONOMIA.

(Pietroluongo & Resende, 2007; Brandão, 2001)


“Enfim, se pudéssemos sugerir alguma reivindicação que não depende da aceitação de
uma emenda legal, pois não pode ser atendida por decreto, seria preciso resumir tudo o
que precede numa fórmula lapidar: sim, fim do manicômio, mas igualmente fim do
manicômio mental, isto é, um direito à desrazão. E seria necessário acrescentar
imediatamente: um direito à desrazão, mas sem confiná-la àquele cantinho privado e
secreto de nosso psiquismo chamado "nossas fantasias", onde ela costuma dormitar
inofensiva. O direito à desrazão significa poder pensar loucamente, significa poder levar o
delírio à praça pública, significa fazer do Acaso um campo de invenção efetiva,
significa liberar a subjetividade das amarras da Verdade, chamese ela identidade ou
estrutura, significa devolver um direito de cidadania pública ao invisível, ao indizível e até
mesmo, por que não, ao impensável. Libertar-se do manicômio mental é isso tudo e
muito mais. No entanto, para que a "libertação" da desrazão não venha a ser mais uma
astúcia da Razão — como talvez o seja a libertação dos loucos — é preciso evitar suas
ciladas, que não são poucas”
(Peter Pál Pelbart)
Obrigada pelo espaço de troca!

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REFERÊNCIAS
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de Ações Programáticas Estratégicas. (2013). Cadernos de atenção básica em saúde mental. Brasília, DF: Ministério da Saúde.

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