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cia ao apresentar a Eneias os espíritos dos Marcelos correspon
dem à exaltação do povo de Roma, naquilo que ele tinha de
grandioso e peculiar:
Outros povos trabalharão com mais delicadeza os bronzes que
parecem respirar - assim creio eu - e tirarão do mármore rostos
que parecem vivos, discursarão melhor em suas causas, descreve
rão com o compasso o espaço do céu e discorrerão sobre os astros
que surgem. Quanto a ti, ó romano, lembra-te de governar os ou
tros povos com o teu poder. Esta será a tua arte: impor as condi
ções de paz, poupar os vencidos, destruir os soberbos.
(Verg. Am. VI, 847-853)
No Canto VII, ao relatar o episódio da chegada dos troia
nos ao Lácio, Virgílio faz referências ao rei Latino, soberano da
região, e à consulta feita por ele ao oráculo de Fauno. Nas pa
lavras proféticas da divindade, há nova alusão ao valor do futu
ro romano:
Não procures unir tua filha a um esposo latino, meu filho, e
não confies no casamento combinado. Virão de fora os genros que,
por sua progênie, elevarão nosso nome até os astros; os descenden
tes dessa raça verão que a seus pés se curva, deixando-se dominar,
tudo aquilo que o sol ilumina ao percorrer seu caminho entre os
dois oceanos.
(Verg. Am. VII, 96-100)
Finalmente, no Canto VIII, a descrição do escudo que Vul
cano forja para Eneias, a pedido de Vênus, mostra-nos que ali
se achavam esculpidos, em artísticos relevos, os feitos grandio
sos que iriam marcar o destino de Roma.
Muitas vezes a Eneida foi considerada como uma espécie
de decalque das epopeias homéricas. Trata-se, a nosso ver, de
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uma postura que não faz justiça à arte e às qualidades de Vir
gílio. O poeta romano inspira-se nos textos gregos, é indiscu
tível. E tal procedimento dificilmente poderia ser diferente,
uma vez que a “moda” literária da época preconizava essa ati
tude: se havia modelos perfeitos, a perfeição deveria ser imita
da. A Eneida, porém, não pode ser considerada como cópia
vulgar dos poemas homéricos. Mantendo pontos que haviam
sido explorados na poesia da Grécia, Virgílio soube ser origi
nal e, sobretudo, romano. Alguns dos trechos mais belos da
Eneida testemunham essa originalidade: a história da trágica
paixão de Dido (Canto IV); o sonho de Eneias com Tiberino,
divindade personificadora do Tibre (Canto VIII); o passeio
feito por Eneias em companhia de Evandro no local em que
seria fundada a futura Roma (Canto VIII); o desespero da mãe
de Euríalo ao saber da morte do filho (Canto IX); a descrição
da morte de Camila, rainha dos volscos (Canto XI).
Mesmo nos trechos inspirados em obras de outros auto
res, Virgílio consegue mostrar sua criatividade e seu poder de
inovar. Assim ocorre, por exemplo, no Canto VI, quando o
poeta relata a viagem de Eneias ao mundo dos mortos. Se na
Odisséia encontramos um relato semelhante - o do contato
de Ulisses com o reino de Hades - , os detalhes que compõem
tais narrativas são diferentes. O relato homérico é linear: aber
tas as portas da mansão subterrânea, o rei de Ítaca vê o desfi
lar das almas —pretexto, talvez, para a evocação de velhas
lendas. O de Virgílio é complexo, permeado de soluções no
vas. O poeta romano não só introduz o pormenor do enig
mático ramo de ouro (passaporte para a entrada na casa dos
espíritos) e a presença de uma sibila que conduz o troiano,
como opta por um mundo infernal dividido em setores distin
tos, cada um com sua peculiaridade. Na pintura desse mundo
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não se detém apenas na referência a episódios mitológicos;
vale-se da oportunidade para aludir a algumas das teorias filo
sóficas que se ocuparam da pós-morte: a platônica, a pitagóri
ca, a neoplatônica, a órfica; aproveita dados da doutrina estoi
ca e encontra o momento adequado para expô-los; funde na
mesma realidade o mito e a história; compõe uma narrativa
em que se evidencia, acima de tudo, o simbolismo alegórico.
O mesmo se pode dizer do trecho em que é descrito o es
cudo de Eneias: Virgílio se inspira em Homero, mas modifica
os pormenores. Aquiles, na Ilíada, possui, é certo, um escudo
de fabricação divina, onde há a reprodução de cenas da vida
cotidiana. O de Eneias, porém, apresenta esculpidos os gran
des momentos da futura história romana.
Os deuses de Virgílio são diferentes dos de Homero. Têm
uma contextura mais humana, submetem-se ao Destino e às
leis que comandam o universo. As personagens humanas são
construídas com mais complexidade e revelam, por vezes, ca
racterísticas tipicamente romanas.
Dido é uma criação inesquecível, quer no momento em
que exibe sua personalidade de rainha organizadora e realiza
dora, quer nos dias em que trava terrível luta interior, bata
lhando, impotente, entre o pudor e a paixão, quer quando,
desesperada e já decidida a cometer suicídio, amaldiçoa o
amante que parte, com palavras candentes em que se extrava
sam, simultaneamente, o ódio e o amor:
Nem uma deusa é tua mãe, ó pérfido, nem Dárdano o ances
tral de tua gente. O árido Cáucaso te gerou, em suas penedias ás
peras, e as tigresas da Hircânia te ofereceram as tetas. Por que devo
dissimular? Para que coisas maiores me reservo? Acaso sofre ele
com meu pranto? Acaso baixa o olhar? Acaso, comovido, verte lá
grimas ou tem compaixão de quem o ama?
[...]
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Vai, segue para a Itália com os ventos. Alcança teu reino pelas
ondas. Espero, entretanto, se as pias divindades podem algo, que
sofras as maiores desventuras no meio dos rochedos e que Dido
seja invocada muitas vezes por seu nome. Embora ausente, eu te
acompanharei com negras tochas e quando a pálida morte hou
ver separado meus membros do espírito estarei presente, como
sombra, em todos os lugares. Sofrerás teu castigo, perverso, e dis
so eu saberei: a Fama virá até mim, nas profundezas dos manes.
(Verg. Am. IV, 365-370/381-387)
A própria personalidade de Eneias - que para alguns se afi
gura como inexplicável e contraditória - é compreensível em
suas características. Nos primeiros livros, o chefe troiano não
deixa entrever seu lado heroico. Mero joguete dos deuses,
apenas obedece a ordens, sem praticamente agir. Após o retor
no do Inferno, transmuda-se, adquirindo os contornos do ver
dadeiro herói. Parece que a atitude do poeta é intencional nessa
complexidade de construção: o poema, com seu tom nacio
nalista e seu caráter de obra a serviço da política imperial,
procura valorizar as virtudes cultuadas pelos romanos dos ve
lhos tempos, sobretudo a piedade - a pietas -, ou seja, a cons
ciente submissão aos deuses, a resignação com a própria con
dição, o profundo senso do dever.
O estilo de Virgílio é puro e elegante. O vocabulário é
rico, preciso e pitoresco. A frase é suave e harmoniosa. A versi
ficação é correta. O ritmo, variado em suas limitações, é ade
quado ao assunto explorado a cada momento. Belas imagens
ponteiam o texto, no qual figuras retóricas de todos os tipos
se apresentam com naturalidade, sem provocar a impressão
de sobrecarga.
Apreciado por seus contemporâneos, considerado modelo
no Baixo Império, lido e admirado na Idade Média, Virgílio
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inspirou a epopeia renascentista. Dante e Camões são os épi
cos modernos que, mais de perto, se deixaram influenciar pelo
autor da Eneida.
A poesia épica pó s-virgiliana
Nenhum poeta latino, após Virgílio, teve condições de
compor uma epopeia que se nivelasse com a Eneida. Nos dias
de Augusto, outros escritores se dedicaram a obras épicas:
Vário Rufo escreveu Sobre a morte (De m orte), epopeia de
cunho filosófico; Domício Marso compôs um poema mito
lógico, A guerra das amazonas (Amazonides); Albinovano
Pedo, além de uma epopeia mitológica, Teseida ( Theseis),
compôs um poema histórico sobre as guerras no Reno, em
homenagem a Germânico. Também se dedicaram à épica
histórica Rabírio, com A guerra do Egito (Bellum A egyptia
cum ), e Cornélio Severo com A guerra sícula (Bellum Sicu
lum ), cujo herói é Otávio. Nenhum desses poemas logrou
atingir a posteridade; de alguns temos pequenos fragmentos,
conservados por outros autores.
Na época de Nero, um jovem poeta se dispôs, novamente,
a enfrentar a epopeia histórica: Lucano (Marcus Annaeus Luca
nus - 39-65). Conhecido por seu talento poético desde a pri
meira juventude, autor de numerosas outras obras - perdidas,
infelizmente Lucano teve a audácia de abandonar a tradição
virgiliana, ao escrever seu poema épico Farsália (Pharsalia) sem
se utilizar de elementos mitológicos.
Embora seja uma obra inacabada, os dez livros que chega
ram a ser escritos permaneceram até nossos dias. Neles o poe
ta narrou a guerra civil travada entre Júlio César e Pompeu e
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considerada como causa da queda do regime republicano em
Roma. Lucano inicia o texto fazendo uma invocação a Nero.
Depois de traçar o perfil dos dois generais inimigos, o poeta
relata o episódio do Rubicão (Livro I). Nos demais livros en
contramos narrativas do cerco de Brundísio, quando as tropas
de César sitiaram as de Pompeu, obrigando-o a refugiar-se na
Grécia (Livro II), do cerco de Marselha e das campanhas de
César na Espanha (Livros III e IV), do cerco de Dirráquio (Li
vros V e VI), da campanha da Tessália e da batalha de Farsália
(Livro VII), do assassínio de Pompeu no Egito (Livro VIII),
dos feitos de Catão na África (Livro IX) e da guerra de Alexan
dria (Livro X).
Criativo e sensível, Lucano soube dar um sopro épico a
seu poema, embora desprezasse os recursos comuns da epo
peia, tais como as intervenções divinas e as máquinas épicas.
Vivendo num momento em que a pureza clássica começava a
ser substituída pela bizarria das formas, pela sobrecarga de
elementos ornamentais e retóricos e pelo abuso da ênfase, Lu
cano não fugiu aos hábitos da época: a Farsália é repleta de fi
guras, de efeitos artificiais e de preciosismos.
Dominando a arte de escrever, recheando seu texto de be
las descrições, de orações, retratos, digressões e narrativas de
sonhos e prodígios, Lucano não soube, entretanto, conservar
a uniformidade de tom no correr dos livros. Nos três primei
ros, publicados durante a vida do poeta, nota-se certa isenção
no que diz respeito à crítica ao sistema político então vigente.
Nos últimos, escritos após um desentendimento com Nero -
desentendimento que determinou a proibição da publicação
dos livros finais, a ruptura com o imperador, a participação
do poeta na conjuração de Pisão e sua condenação à morte —,
percebe-se nitidamente a posição de Lucano diante do regi
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me: exaltando o espírito republicano, encarnado em Pompeu
e, sobretudo, em Catão, valorizando as virtudes que haviam sido,
no passado, o apanágio do romano, o poeta combate o despo
tismo, a ambição e a crueldade de que Nero, sem dúvida, re
presentava o exemplo.
Após Lucano são poucos os poetas épicos latinos dignos
de menção. Na época de Vespasiano (69-79), Valério Flaco,
retomando a antiga lenda de Argo, escreveu Argonáutica (Ar-
gonautica), não chegando, entretanto, a completar o poema;
Sílio Itálico, inspirando-se em Tito Lívio e utilizando recursos
já explorados por Virgílio, compôs, sem muito brilho e regu
laridade, a epopeia Púnica (Punica), poema histórico em que
narra fatos ocorridos durante a segunda guerra travada entre
romanos e cartagineses.
Nesse período, o poeta épico mais importante é Estácio
(Publius Papinius Statius - 40?-96), autor de duas epopeias:
a Tebaida (Thebais) e a Aquileida (Achilleis). Na primeira,
composta de dezessete cantos, Estácio retoma o tema da guer
ra que se travou entre os filhos de Édipo; na segunda, inaca
bada, pretendeu explorar os feitos grandiosos de Aquiles.
Embora Estácio fosse capaz de escrever com brilho, re
velando simultaneamente sensibilidade e conhecimento de
recursos de retórica, as epopeias se ressentem de falhas de com
posição.
Após Estácio, a poesia épica latina praticamente desapa
rece. Há quem considere “epopeias cristãs” a Psicomaquia (Psi
chomachia) de Prudêncio (348-410?), na qual vícios e virtu
des travam um combate alegórico, os Feitos da história espiri
tual (Libelli de spiritalis historiae gestis), de Santo Avito (sécu
lo V), poema sobre a criação do mundo, e a Vida de São
M artinho (Vita Sancti M artini), de São Fortunato (século
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VI), poema escrito ao alvorecer da Idade Média, quando o
Império Romano já se fragmentara, perdendo a antiga uni
dade política.
Nesses textos, o caráter didático e o moralismo superam,
de muito, o legítimo sopro épico.