t1 - Ambulatório de Luto e Psicologia Fenomenológico-Existencial - Da Formação Do Aluno Ao Acolhimento Do Enlutado

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JULIANA VENDRUSCOLO

AMBULATÓRIO DE LUTO E PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-


EXISTENCIAL: DA FORMAÇÃO DO ALUNO AO ACOLHIMENTO DO
ENLUTADO.
RIBEIRÃO PRETO
2017

AMBULATÓRIO DE LUTO E PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-


EXISTENCIAL: DA FORMAÇÃO DO ALUNO AO ACOLHIMENTO DO
ENLUTADO.
Autor: Profa. Dra. Juliana Vendruscolo
Supervisor: Prof. Dr. Manoel Antonio dos Santos

Relatório parcial do programa de pós-doutorado.


RESUMO

VENDRUSCOLO, Juliana. Ambulatório de Luto e Psicologia Fenomenológico-


Existencial: da formação do aluno ao acolhimento do enlutado. Ribeirão Preto, 2016.

As questões relacionadas à morte e ao processo de luto permeiam a existência humana desde


os primórdios da história. A Psicologia como uma ciência rigorosa, tem abrigado em seu
campo de saber inúmeros estudos a respeito de tal temática. Muitos psicólogos e psiquiatras
investigaram a maneira como o homem compreende a morte ao longo do curso do
desenvolvimento. Tais estudos contribuíram de forma considerável para a atenção específica e
diferenciada no cuidado terapêutico oferecido à criança e ao adulto. Atentar para essa
temática desde a graduação em Psicologia tem sido primordial para a qualidade da formação
do psicólogo. Quando essa atenção é acrescida da prática clínica em atendimentos voltados
para situações de perdas e luto a população também é beneficiada. Nesse estudo, partindo dos
conceitos tradicionais relacionados ao tema da morte e do luto como os estudos de Collen
Parkes, grande referência nos estudos do luto e apresento o Modelo do Processo Dual do Luto
de Stroebe e Schut (1999), questiono: “Como se dá a relação terapêutica pautada na
fenomenologia existencial em situação de luto?”. Suspendo as conceituações teóricas e, vou
até a vivência da perda através de atendimentos realizados pelos alunos-estagiários de um
ambulatório de luto. O atendimento psicológico ao enlutado pode ser configurado como
procedimento de emergência. A dor da perda ou do rompimento de um vínculo afetivo sangra,
transbordando muitas vezes de maneira desagregadora no existir. Não se trata, portanto de
aplicar uma técnica específica para uma queixa, mas de uma modalidade de atendimento
pautada na atitude fenomenológica. Da mesma forma como em outro processo
psicoterapêutico, esse também se constitui então como a abertura às possibilidades e o resgate
do modo de ser temporal e livre e não necessariamente a mudança de comportamento ou a
eliminação do sintoma. Esta relação se dá em liberdade e não é uma técnica que se aplica, ou
uma ferramenta. A existência vai transcorrendo e, repentinamente, sua concretude se
apresenta com a ausência de alguém que amamos. Trata-se de uma realidade cognitivamente
apropriada pelo homem adulto que já compreende o caráter universal da morte. Mas o que se
rompe com a perda é a trama tecida pelo sentido daquela relação. Considerando que o dasein
é sempre ser-com, estamos falando aqui do sentido mais próprio de ser. Continuar lançando-
se a ser a cada dia exige um contínuo reconfigura-se. Nesse sentido, contrariamente às
prescrições do mundo moderno que buscam um modelo de atendimento psicológico que
resolva e elimine a dor do outro, essa proposta do atendimento psicológico em situação de
enlutamento procura acompanhar o processo de existir na ambiguidade exacerbada de
mergulhar em tudo que se refere à perda, bem como em tudo que o remete à vida que se
apresenta.

Palavras-chave: Fenomenologia existencial. Modelo Dual do Luto. Psicoterapia.


PRÉ-REFLEXIVO

Há muitos anos, durante a graduação em Psicologia no início da década de 90,


deparei-me com o a abordagem fenomenológica em um estágio curricular denominado
“Orientação de pais de crianças com câncer” proposto e supervisionado pela Profª. Drª
Elizabeth Ranier Martins do Valle em parceria com a Profª. Drª Luciana Pagano Castilho.
Tratava-se de uma parceria do curso de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP/RP)
com o Grupo de Apoio à Criança com Câncer (GACC/RP) do Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HC-FMRP/USP).
Começava aí uma nova, importante e fundamental etapa em minha formação
profissional, marcada por duas grandes influências: a Psicologia Hospitalar e a
Fenomenologia-Existencial. O pensamento fenomenológico sustentava tanto as atividades
clínico-terapêuticas quanto as pesquisas realizadas no grupo. A assistência psicológica era
oferecida aos pais, através de um grupo de apoio semanal, a partir de atendimentos
psicoterapêuticos breves e acompanhamento específico de cada família logo após o
diagnóstico da criança, e também em atendimentos psicológicos emergenciais frente a alguma
questão que viesse, eventualmente, desestabilizar emocionalmente alguma família. Posso
afirmar que iniciávamos, ainda timidamente, o que em outro momento denominaríamos, nesse
mesmo serviço, de Atendimento de Plantão. Permaneci, então, dois anos consecutivos nesse
estágio, e tive a oportunidade de realizar um projeto de iniciação científica, como bolsista da
FAPESP, sob a orientação da professora Elizabeth do Valle (“A família da criança com
câncer frente ao diagnóstico da doença – encontros iniciais com a psicóloga”). Dessa forma,
com o trabalho e a pesquisa em Psico-oncologia Pediátrica pautados em uma compreensão
fenomenológica da psicologia, fui, gradativamente, desenhando meu percurso como
profissional da saúde. E, a partir dessa relação acadêmica com a professora Elizabeth, surgiu
uma grande amizade e uma profícua parceira em trabalhos clínicos e científicos, o que me
levou a permanecer ligada ao GACC principalmente em atividades de pesquisa (“A criança
diante de uma amputação – relato de um acompanhamento psicológico pré-cirúrgico” e
“Acompanhamento psicológico domiciliar à criança em estado grave – relato de uma
experiência”).
Destarte, em 1996, dei início a meu mestrado na FFCLRP/USP, sob orientação da
Profª. Elizabeth, igualmente favorecida por bolsa da FAPESP. Interessei-me pelas crianças
que já haviam terminado o tratamento e retornavam às sextas-feiras, no Ambulatório de
Hematologia Infantil, com periodicidade que era variada e relativa ao tempo de finalização do
tratamento. Queria saber como elas estavam, o que faziam e como vivenciavam "a cura". Em
1998, pois, defendo a dissertação “A criança curada de câncer: modos de existir” e recebo o
título de Mestre em Psicologia.
Ao término desse mestrado, fui contratada como Psicóloga do GACC e, logo em
seguida, Psicóloga da Unidade de Oncologia do HC-FMRP/USP, mediante aprovação em
concurso público. A partir daí, a atuação como psicóloga hospitalar favoreceu que me
aproximasse cada vez mais do estudo e da compreensão acerca das modalidades de
atendimento psicológico em instituição. Era preciso romper com a hegemonia do modelo
clínico tradicional pautado exclusivamente na psicoterapia, e ampliar as possibilidades de
intervenções clínicas para atender às demandas institucionais. Em nosso grupo da Psico-
Oncologia Pediátrica, coordenado pela Profª. Elizabeth, tendo como parceiros psicólogos a
Profª. Drª Luciana Pagano Castilho e posteriormente o Prof. Dr. Danilo Sarretta Veríssimo,
desenvolvemos um inovador protocolo de atendimento às crianças adoecidas e aos seus
familiares, que abrangia todo o período do tratamento (Diagnóstico, Tratamento e Desfecho –
Cura ou morte/luto), a partir de diferentes formas de intervenção. Tal protocolo obedecia à
seguinte sistemática: primeiramente, após o diagnóstico confirmado, a família e a criança
recebiam as informações médicas (o modo de comunicar tais informações era constantemente
discutido em reuniões da equipe multiprofissional); em seguida, o psicólogo responsável pelo
caso procurava a família e iniciava o acompanhamento (nos contatos iniciais era possível
avaliar a maneira como essa família estava conseguindo lidar com a situação de
adormecimento e identificar a demanda premente). Algumas famílias e crianças apresentavam
a necessidade e a possibilidade de um acompanhamento psicoterapêutico breve e focal frente
à situação de adoecimento de modo geral. Outras necessitavam de um acolhimento e de um
processo de aconselhamento frente a momentos pontuais e específicos do tratamento, como,
por exemplo, acompanhar o filho em um exame invasivo e doloroso como o mielograma
(punção para coleta de material na medula). Quando a família e a criança apresentavam-se
integradas ao novo contexto, eram convidadas a participar dos grupos, respectivamente de
pais e das crianças. Os casos atendidos em psicoterapia breve eram encerrados quando as
crianças e os seus familiares apresentavam capacidade de expressar seus sentimentos, bem
como de criar recursos para se integrarem à rotina do tratamento oncológico. Ainda assim, em
situações específicas, como cirurgia, recidivas e/ou morte de algum paciente próximo que
havia se tornado colega, dentre outras que pudessem surgir, o serviço de psicologia
prontamente realizava um novo atendimento, que poderia ter continuidade ou não,
dependendo da demanda apresentada. Um aspecto fundamental que merece ser destacado na
aplicação desse novo protocolo foi a participação de estagiários de 4º e 5º ano nesse serviço, a
quem acompanhávamos, como supervisores de estágio, em cada etapa do processo de atenção
aos pacientes e à família. Havia, além disso, uma grande preocupação em formar profissionais
capazes de lidar com essa diversidade de modalidades de atendimento psicológico no âmbito
institucional.
Como Psicóloga da Unidade de Oncologia do HC-FMRP/USP, atendia também
pacientes adultos e seus familiares. O serviço de psicologia nessa área ainda não era tão
estruturado e ficava atrelado às características de cada especialidade das quais a Unidade se
tornava parceira. Desenvolvi assim atividades também junto às clínicas de Neurocirurgia
Oncológia, Proctologia Oncológica, Ortopedia Oncológica, e nos setores de Radioterapia e
Quimioterapia. Para atender essa gama de setores com características distintas, procurava
atuar nos dias específicos de cada ambulatório, mas mantinha todos os dias, no setor da
Radioterapia, localizado no balcão 11, em que eu tinha uma sala disponível, uma agenda
aberta para atendimentos emergenciais. Havendo alguma necessidade, o paciente, o familiar,
ou até alguém da própria equipe, poderia localizar-me nesse setor.
Nesse período iniciei o meu doutoramento, também sob orientação da Profª. Elizabeth.
Procurando dar sequência ao estudo realizado no mestrado, continuei voltada ao período da
cura. Nessa fase, estávamos formalizando a participação da Psicologia no já referido
Ambulatório de Hematologia Infantil, que carinhosamente chamávamos de "Ambulatório de
Curados". Assim como ocorreu na estruturação de nossa atuação em todos os outros setores,
o cuidado com os curados também foi alvo de estudos e adaptações de modalidades de
atendimentos que se adequassem às necessidades específicas do ambulatório. Surgiu, então,
entre a prática profissional cotidiana e a pesquisa científica do doutorado, o "Plantão
Psicológico no Ambulatório de Curados". Esse trabalho acontecia da seguinte forma: no
período da manhã eu recebia uma lista com os nomes dos pacientes, que retornariam no
ambulatório naquele dia. Então, de pronto, identificava os pacientes e o momento em que
estavam no pós-tratamento, ou seja, nos retornos iniciais, já em retornos mais espaçados, a
cada 3 ou 6 meses, ou até mesmo em retornos anuais. Participava, ainda, pela manhã, de uma
reunião clínica com o médico responsável pelo serviço em que ficava informada sobre o
estado físico da criança. No primeiro ano de participação da Psicologia no “Ambulatório de
Curados”, nossa atuação teve dois objetivos fundamentais: acompanhar a criança e sua família
após o término do tratamento oncológico (na passagem do Ambulatório de Quimioterapia
para esse novo contexto) e, ao mesmo tempo, divulgar que os psicólogos estariam de plantão
todas as sextas-feiras, durante o todo o período das consultas médicas. Porém, com o passar
do tempo, já não era mais necessário realizar essa comunicação, pois já éramos regularmente
procurados pelos pais ou até mesmo pelos adolescentes e até adultos que estavam sendo
atendidos no ambulatório e tinham sido crianças em tratamento oncológico há anos. Estava
assim, finalmente estruturado o Plantão Psicológico no Ambulatório de Curados. Em 2003, no
entanto, decidi deixar o trabalho no HCFMRP/USP para dedicar-me um pouco mais às
atividades docentes, com a ampliação da minha carga horária nas universidades às quais, por
essa época, já me encontrava vinculada. Em 2005, defendi a tese “A criança com câncer
ingressando no ambulatório de curados: um momento de passagem” e recebi o título de
Doutor em Ciências. Nesse interregno, tive a oportunidade de conhecer a ProfªDrª Yolanda
CintrãoForghieri, pioneira no ensino e pesquisa em psicologia no Brasil, que desde então tem
sido mais uma grande amiga e orientadora nos estudos da Psicologia Fenomenológica e no
campo do Aconselhamento.
Paralelamente ao trabalho no hospital e aos estudos na Pós-Graduação, novos rumos
iam sendo tomados e, em parceria com a professora Elizabeth, iniciei, em 1997, minha
carreira como docente na Universidade Paulista–UNIP. As disciplinas que ministrei a
princípio, e ainda estou atuando em algumas, sempre estiveram relacionadas à área da saúde,
ao contexto hospitalar e à abordagem fenomenológica. Dentre elas estão: Psicologia e Saúde
Pública, Psicologia Hospitalar Teórico-Prático; Plantão Psicológico, Aconselhamento
Psicológico Psicodiagnóstico Interventivo e Psicoterapia fenomenológico-Existencial. Apesar
de todo direcionamento institucional, havia também uma dedicação à prática clínica como
psicoterapeuta em consultório particular.
Em 2000, a convite do Prof. Dr. André Jacquemin, iniciei a atividade docente junto
ao curso de Psicologia da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), como supervisora do
estágio em Psicologia da Saúde. Gradativamente, fui ampliando minha participação nessa
universidade, supervisionando um maior número de alunos na área da saúde (Psicologia da
Saúde e Saúde da Família), e ministrando disciplinas teóricas no curso de Psicologia
(Psicologia da Saúde I, Psicologia da Saúde II que, posteriormente, foram readaptadas,
quando assaram a ser Psicologia da Saúde e Processos de Adoecimento, Teorias e Técnicas
de Psicoterapia Humanista e Existencial, Psicologia e Situações Traumáticas e
Emergenciais). Em 2001, compartilhando com a coordenação do curso de Psicologia dessa
universidade a necessidade de ampliar a recepção e o acolhimento dos usuários de nosso
serviço-escola, iniciamos a implantação do Plantão Psicológico através de uma atividade de
extensão sob minha supervisão. A cada ano, com a receptividade da coordenação e com o
apoio da universidade, fui ampliando um pouco mais o serviço de Plantão Psicológico da
Clínica-Escola da UNAERP, com a realização de novos projetos de extensão e de pesquisa
(“Plantão Psicológico em Clínica-Escola – implantação de um serviço”; “Aconselhamento
Terapêutico - uma nova possibilidade de atendimento a partir do Plantão Psicológico”;
“Caracterização e diferenciação das modalidades do atendimento psicológico na abordagem
fenomenológico-existencial em contextos institucionais”, “O atendimento psicológico na
abordagem fenomenológico-existencial em contextos institucionais – da demanda de técnica à
possibilidade pela téchne.”; “Atendimento psicológico em instituições: da tradição à
fenomenologia-existencial”; “Atendimento psicológico em instituições: da tradição à
fenomenologia-existencial. (continuidade)”. Pensando no atendimento clínico-institucional,
passei a direcionar ainda esses projetos, bem como a supervisão de atendimentos realizados
em formato de extensão extra-curricular ao contexto hospitalar (Hospital ElectroBonini e
Hospital Beneficência Portuguesa). Há 3 anos, a partir de reformulações curriculares, o
Plantão Psicológico foi inserido na grade curricular, e está sendo oferecido como estágio da
10 ª etapa para os alunos que optam pela ênfase institucional. A implantação desse estágio
trouxe algumas experiências muito interessantes. Quero destacar aqui o Plantão Psicológico,
que realizamos no Pronto-Atendimento (PA) do Hospital Beneficência Portuguesa, em 2011.
A característica desse PA, dentro de um hospital secundário, é receber pacientes
encaminhados pela Atenção Básica (Unidade Básica de Saúde – UBS; Unidade Básica
Distrital de Saúde - UBDS e Unidade de pronto Atendimento – UPA). De modo geral, esses
pacientes apresentam problemas emergenciais que não podem ser melhor avaliados e nem
mesmo solucionados na Atenção Básica (suspeita de Acidente Vascular Encefálico – AVE;
Infarto Agudo do Miocárdio – IAM; Alteração exacerbada da pressão arterial e Traumas
diversos, dentre outros). Os pacientes chegam no PA através da remoção oferecida no serviço
público, na maior parte das vezes o SAMU, quase sempre acompanhados por um familiar ou
amigo. Logo que chegam ao hospital já são direcionados para o PA, uma sala grande dividida
por um corredor interno em que ficam, aproximadamente 8 leitos e o posto de enfermagem.
Não é permitido ao acompanhante permanecer ao lado do paciente dentro dessa unidade. Esse
deve aguardar a avaliação médica e, posteriormente, a comunicação com o médico, do lado de
fora. No dia em que o Plantão Psicológico está sendo oferecido na instituição, assim que um
paciente encaminhado para o PA chega ao hospital, o estagiário já se aproxima do setor e
permanece à disposição.1 Muitas vezes, ao ver acompanhantes assustados e até em desespero
frente a situações indefinidas e tendo que se afastar do paciente, aproxima-se e se apresenta
como integrante do serviço de Psicologia do hospital. Procura levar a pessoa para um local
mais reservado, mas ainda próximo do PA, e inicia ali mesmo as intervenções de acolhimento.
Concomitantemente, outro estagiário, dentro do PA, inicia o atendimento ao paciente, desde
que esteja consciente e orientado. Obviamente todos ficam atentos às orientações das equipes
médica e de enfermagem para evitar que as condutas necessárias naquele contexto sejam
atrapalhadas. Em algumas situações, acompanha-se o médico na comunicação das
informações ao paciente e ao familiar, com o intuito de oferecer retaguarda frente à
comunicação de más notícias.
Nessa universidade, tenho tido também a oportunidade de orientar projetos de
pesquisa nas disciplinas Monografia III e Monografia IV. São, em geral, orientações
referenciadas no método fenomenológico de pesquisa em psicologia.
Em 2012, fui convidada pela reitoria do Centro Universitário UniSEB, que atualmente
integra o grupo Estácio, a integrar o grupo de docentes que participou da estruturação do
Projeto Pedagógico para a implantação do curso de Psicologia da instituição, bem como da
recepção e entrevistas com os avaliadores do Ministério da Educação (MEC). Após a
aprovação do projeto pelo MEC e a abertura do curso, tenho atuado como docente em
disciplinas relacionadas à área da saúde e à abordagem humanista e existencial (Estudos
Contemporâneos da Psicologia na Área da Saúde, Estágio Básico I – Observação, Psicologia
como Ciência Humana; Psicologia: morte e luto, dentre outras).
Ao longo de minha carreira como docente em cursos de graduação, participei em
diferentes momentos, como docente em cursos de Pós-Graduação Lato Sensu em algumas
universidades e centros de formação (Universidade Paranaense-UNIPAR, Centro de
Psicoterapia Existencial, UNAERP, UNIP). Coordenei, em parceira com a Profª. Drª.
Elizabeth Ranier Martins do Valle e a Profª. Drª. Luciana Pagano Castilho, o “Curso de
Aperfeiçoamento em Práticas de Saúde – Abordagem Fenomenológico-Existencial” nos anos
de 2007 e 2008, promovido pela Fundação Instituto de Enfermagem de Ribeirão Preto –
FIERP. Desde 2009 tenho coordenado, anualmente, em parceria com a psicóloga Luciane
Cerdan Del Lama o “Curso de Psicologia Hospitalar – Introdução à prática no atendimento
breve dentro do hospital geral”, que é levado a efeito no Hospital Beneficência Portuguesa em

1
Os funcionários do hospital Beneficência Portuguesa já estavam habituados à atuação do serviço de Psicologia e
prontamente nos informava sobre a entrada de um caso novo, bem como solicitava o atendimento frente alguma
intercocorrência.
Ribeirão Preto. Atualmente coordeno o Curso de Especialização em Psicologia Hospitalar,
oferecido pelo Psicolog – Instituto de Estudos do Comportamento, na mesma cidade.
Com a decisão do Conselho Federal de Psicologia de atribuir o título de Especialista a
algumas áreas de atuação, em 2002, obtive o título de Especialista em Psicologia Hospitalar
através da comprovação de atuação consistente na área. Em 2005, também pela atuação
comprovada na área da Psico-Oncologia, obtive certificação de distinção de conhecimento na
área de Psico-Oncologia pela Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia (SBPO).
O trabalho com o Plantão Psicológico nas universidades e hospitais a elas relacionados
levou-me a uma constante necessidade de ampliar meu conhecimento acerca das vivências em
situações de crise, morte e luto. Dessa forma, em 2011, participei do curso “Atenção e
Intervenção em Crises de Emergência Pós-Desastres – Módulo I, no “4 Estações Instituto de
Psicologia”’, na cidade de São Paulo. Isso contribuiu em minha formação para acrescentar
novos conhecimentos sobre as formas de atuação em situações emergenciais. De modo geral,
foi muito significativo e, por isso, em 2012, finalizei o programa, participando do Módulo II.
Com o objetivo de aprimorar meus estudos na área de interface entre a psicologia, a
fenomenologia e o existencialismo, em 2009 iniciei o Curso de Especialização em Psicologia
Fenomenológico-Existencial, no Instituo de Psicoterapia Fenomenológico-Existencial do Rio
de Janeiro (IFEN).
Vinte e seis anos se passaram e atuando hoje como docente nas áreas da
saúde/hospitalar e de psicoterapia fenomenológico-existencial, bem como em consultório
particular como psicoterapeuta, as temáticas da morte do luto são constantes e continuam a
inquietar-me em buscar um constante processo de compreensão. Ainda no sentido acadêmico
tenho me preocupado com a formação do graduando em Psicologia no que se refere à
temática da morte e do luto e, nesse sendo, iniciei um trabalho, que denominei “Ambulatório
do Luto” em uma universidade.
Nesse ano letivo, já em desenvolvimento do estudo previsto pelo pós-doutoramento,
considero importante destacar algumas atividades que realizei como docente e palestrante,
bem como na supervisão de atendimentos clínicos em situação de luto.
Em parceria com a coordenação do curso de Psicologia da UNAERP, em 03 de junho
realizamos o 1º. Simpósio do Grupo de Pesquisa sobre o Luto do Curso de Psicologia da
UNAERP, intitulado, “O pulso ainda pulsa e o corpo ainda é pouco”: Morte encefálica e
Luto. Com o objetivo de informar e esclarecer o público voltado para a área da saúde sobre
morte encefálica, doação e captação de órgãos e processo de luto, o simpósio foi composto
por 3 apresentações. A enfermeira Elaine Cantarella Lima abordou o tema ‘O papel do
enfermeiro no processo de doação de órgãos’; a mestranda sob minha orientação e psicóloga
Michele de Souza Tamburi Sadalla explanou sobre ‘O trabalho do psicólogo hospitalar na
terapia intensiva e sua atuação diante da notícia de morte encefálica, e, então encerro o evento
discorrendo sobre o luto “E agora amora, o que será da vida?” – Reflexões sobre o processo
de luto, por mim apresentado.
No programa de Mestrado em Saúde e Educação da UNAERP comecei a ministrar em
agosto a disciplina optativa “O processo de luto: perdas e rompimento de vínculos afetivos”,
abordando a questão da morte como uma realidade que permeia todo o desenvolvimento
humano e, ainda assim, é um tema gerador de dificuldade para a maior parte das pessoas.
Dessa forma, no âmbito da saúde e da educação, e especificamente no cenário da pós-
graduação, é importante que os profissionais desenvolvam habilidades para lidar com tal
realidade em sua profissão. É possível considerar que o conhecimento científico sobre a
temática da morte e do processo de luto certamente contribuirá para a formação do
profissional. Nesse programa estou orientando 3 alunos com temáticas relacionadas à morte e
ao luto, sendo que 2 estão em fase inicial ainda definido a especificidade do estudo dentro do
campo de cuidados paliativos e luto e o terceiro já em fase de exame de qualificação com um
estudo sobre a psicologia no cenário da morte encefálica e da doação e captação de órgãos.

Os estudos sobre o processo de luto, perdas e morte sempre integram a programação


científica de eventos relacionados à Psicologia Hospitalar. Em agosto, participei do XI
Congresso da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar (SBPH) como palestrante na
mesa redonda “A Psicologia Hospitalar na atenção secundária e terciária - sobre a formação, a
atuação no serviço público e no setor privado”, discorrendo sobre “Um olhar sobre a
formação do psicólogo hospitalar”. Apresentei dois trabalhos científicos: “Relato de
experiência: a atuação do psicólogo hospitalar e o luto antecipatório” e “A perspectiva de
neonatologistas sobre o psicólogo hospitalar na UTI neonatal contribuindo para a
comunicação de óbito”. O congresso também se configurou como um cenário de aprendizado
contínuo, e o curso pré-congresso “Luto e cuidados paliativos”, ministrado por Maria Helena
Pereira Franco e Daniela Achette, foi fundamental para compor tal aspecto.
Durante o decorrer do período letivo o Ambulatório de Luto recebeu casos novos que
foram acolhidos o mais rápido possível, sendo que alguns seguem em atendimento
psicoterapêutico até o momento e manteve os atendimentos de casos encaminhados do ano
anterior. Além de encaminhamentos, a participação no Ambulatório de Luto também prepara
o graduando para emergências relacionadas à morte, perda e luto, aspectos que serão
destacados como resultados parciais nesse relatório.
13

INTRODUÇÃO

As questões relacionadas à morte e ao processo de luto permeiam a existência humana


desde os primórdios da história. Dessa forma, inicio esse trabalho apresentando uma visão
mitológica acerca das questões relacionadas à vida e à morte, através dos mitos de Prometeu e
Sísifo.
Continuando nesse percurso, recorro então, aos estudos de Ariès (2003) para
apresentar uma compreensão histórica sobre a morte no ocidente. A ciência surge nesse
cenário comooutra possibilidade de abordar o tema. De forma breve apresento a alteração da
conceituação científica e médica para a definição da morte, agora atestada a partir do conceito
de morte encefálica.
A Psicologia como uma ciência rigorosa, tem abrigado em seu campo de saber
inúmeros estudos a respeito de tal temática. Muitos psicólogos e psiquiatras investigaram a
maneira como o homem compreende a morte ao longo do curso do desenvolvimento. Tais
estudos contribuíram de forma considerável para a atenção específica e diferenciada no
cuidado terapêutico oferecido à criança e ao adulto. No mesmo sentido, surgem os estudos a
respeito do processo de luto. Parto dos estudos de CollenParkes, grande referência nos
estudos do luto e apresento o Modelo do Processo Dual do Luto de Stroebe e Schut (1999).
Por fim, nesse estudo, em que parti dos conceitos tradicionais relacionados ao tema da
morte e do luto, questiono: Como se dá a relação terapêutica pautada na fenomenologia
existencial em situação de luto?”. Suspendo as conceituações teóricas e, vou até a vivência da
perda através de fragmentos de um discurso clínico, para abordar a intervenção
psicoterapêutica na clínica fenomenológico-existencial.

I: SOBRE A VIDA E A MORTE

1.1 O HOMEM – FAZENDO A VIDA E DEPARANDO-SE COM A MORTE

Ao iniciar uma temática tão difícil, e, ao mesmo tempo, extremamente presente na


existência humana, considerei oportuno recorrer aos mitos para abordar tal questão. Para
Bulfinch (1999) os mitos são histórias sagradas de cada cultura, que são passadas de geração
para geração. O surgimento do homem é abordado em alguns mitos e apresenta, em suas
diferentes versões, a luta constante entre vida e morte presente na dimensão humana.
14

No mito de Prometeu encontramos, a princípio, a ideia de caos, em que, antes de


serem criados a terra, o mar e o céu, todas as coisas se apresentavam como uma grande massa
sem forma na qual estavam latentes as sementes das coisas. Faltava ainda uma criatura em
que pudesse habitar o espírito divino. O Titã Prometeu e, seu irmão, Epimeteu foram
incumbidos de fazer o homem e assegurar-lhe, e aos outros animais, todas as faculdades
necessárias à sua preservação. Assim ele o fez. Por saber que na terra estava adormecida a
semente dos céus, pegou um pouco de argila e molhou-a com um pouco de água de um rio e
fez o homem, à semelhança dos deuses, para que fosse o senhor da terra. Buscou nas almas
dos animais características boas e más para animar a sua criatura. Essa criatura ficou tão
encantadora que Atena, deusa da sabedoria quis insuflar na mesma, através do seu sopro
divino, o espírito. Entretanto, faltava a esses seres algo fundamental: o conhecimento. Não
sabiam nada sobre sua origem divina, sobre a agricultura, a pesca e a caça e nem mesmo sobre
a arte da construção.
Prometeu foi o grande tutor dessas criaturas e ensinou-lhes todos esses segredos, mas
ficou faltando um último dom importantíssimo para mantê-los vivos, o fogo. Travou-se então
uma grande luta ente Prometeu e Zeus, o grande Deus, que havia negado o fogo aos humanos.
Após algumas artimanhas Prometeu entrega uma faísca do fogo divino aos homens sendo
severamente punido por isso. Por dar aos homens o fogo dos deuses ele foi condenado a
permanecer acorrentado a uma árvore tendo seu fígado comido por uma ave por toda a
eternidade.
Há com a criação da mulher, sendo a primeira, Pandora, um componente
importantíssimo na trajetória do homem. Ela é enviada a Terra para acompanhar o homem e
traz consigo uma caixa repleta de bens. Mesmo sendo orientada a não abri-la, assim o faz,
perdendo esses preciosos presentes. Resta aos homens ainda, na caixa de Pandora, a
esperança.
A mitologia nos apresenta a existência humana, desde seu surgimento, marcada por
lutas constantes. Manter-se vivo, em toda a amplitude desse existir exige diariamente a
superação de desafios.
Como profissionais da saúde, podemos nos questionar sobre nosso papel no cuidado
com o homem. Cuidar da vida e das dores desse ser é uma grande tarefa. Mas há ainda outro
aspecto que caracteriza a humanidade – sua finitude.
Novamente recorrendo aos mitos encontramos em Sísifo (BULFINCH, 1999), uma
bela metáfora para nossa condição. O rei Sísifo, que tinha a reputação de ser o mais
habilidoso e esperto dos homens, despertou a ira de Zeus quando contou ao deus dos rios,
15

Asopo, que Zeus tinha sequestrado a sua filha Egina. Zeus mandou o deus da morte, Tanatos,
perseguir Sísifo, mas este conseguiu enganá-lo e prender Tanatos. A prisão de Tanatos
impedia que os mortos pudessem alcançar o Reino das Trevas, tendo sido necessário que
fosse libertado por Ares. Foi então que Sísifo, não podendo escapar ao seu destino de morte,
instruiu a sua mulher a não lhe prestar homenagens fúnebres. Quando chegou ao mundo dos
mortos, queixou-se a Hades, soberano do reino das sombras, sobre esse descaso de sua esposa
e pediu-lhe para voltar ao mundo dos vivos apenas por um curto período, para castigá-la.
Tendo a permissão de Hades, voltou ao mundo dos vivos e se recusou a regressar para o
universo dos mortos. Hermes, o deus mensageiro e condutor das almas para o Além, castigou-
o uma punição pior do que a morte. Sísifo foi condenado para todo o sempre a empurrar uma
pedra até ao cume de um monte, caindo a pedra invariavelmente da montanha sempre que o
topo era atingido. Este processo seria sempre repetido até a eternidade.
É possível afirmar que muitas vezes desejamos, como Sísifo, a continuidade
ininterrupta de nossa vida, entretanto lidamos o tempo todo com as possibilidades antagônicas
que permeiam nosso cotidiano: a vida e a morte. A vida se dá em sua fluidez, solta no tempo,
e se constitui, a cada dia, marcada pela morte diária: por perdas e por mudanças. A morte
permeia toda nossa existência e nos inquieta.
O que é a morte? Do latim mors, mortis a morte é descrita como o fim da vida,
falecimento, termo, destruição (CUNHA, 2010). Todos nós sabemos que um dia iremos
morrer e que tudo que é vivo poderá fenecer e, certamente, morrerá.
Ariès (2003) apresenta as concepções atreladas à morte e ao morrer em diferentes
períodos históricos no ocidente, descrevendo as atitudes diante da morte ao longo do tempo
tanto no que se referem ao que permanece em sincronia por vários séculos quanto às
mudanças gradativas que vão surgindo. Para o autor a atitude mais antiga, mais longa e mais
comum é da morte domada, em que há uma resignação ao destino coletivo da espécie em que
todos irão morrer. Há uma familiaridade com a morte que é concebida sem medo e sem
desespero. Uma aceitação das leis da natureza, sem oposição. Essa resignação é acompanhada
de uma confiança mística e expressa um abandono ao destino. Mais que isso, é pela morte que
o destino de uma criatura se revela e, dessa forma, a cerimônia da morte, muitas vezes pública
torna-se tão importante quanto a dos funerais e a do luto.
Entre os séculos XII e XIV, na segunda fase da Idade Média, modificações sutis, e,
não a substituição por uma nova atitude, encerram um sentido dramático e pessoal ao modo
tão familiar como o homem vivenciava a morte. Surgem aspectos como a preocupação com o
julgamento que cada indivíduo irá enfrentar no final da vida e no momento da morte; temas
16

macabros relacionados à decomposição física e a personalização das sepulturas. Isso


evidencia um grande apego às coisas da vida, passando a denunciar a mortalidade como um
fracasso. Essa atitude, chamada por Ariès (2003) de a morte de si mesmo traduz a importância
da própria existência que é reconhecida, inclusive, ao longo da modernidade.
Um novo sentido começa a ser atribuído à morte a partir do século XVIII - é exaltada,
dramatizada, tida como arrebatadora e impressionante. Entretanto, a sociedade desse período
se ocupa menos com a própria morte, passando a ater-se à morte do outro. É o espaço para
abordar a saudade, vivência ocasionada por essa separação inadmissível que é a morte. Não
se trata mais de algo familiar, mas de uma ruptura da ordem habitual. Ariés (2003) descreve a
erotização presente na temática da morte no fim do século XV e início do século XVI citando
várias associações da morte e do amor encontradas na arte e na literatura. Dentre elas destaca:
o suplício de São Bartolomeu que tem sua pele arrancada por carrascos atléticos e nus; a
representação da união mística de Santa Teresa e Deus, aproximando imagens da agonia e do
transe amoroso e o romance de Romeu e Julieta. Sendo assim, tanto a morte como o ato
sexual são considerados como uma transgressão, uma ruptura que retira o homem de seu
cotidiano, de sua racionalidade e o lança em um mundo irracional e cruel. A partir de então, a
morte, concebida como ruptura vai se tornando mais dramática e mais tensa, seja em um
sentido de exaltação ou de contestação.
Considerando ainda a atitude da morte do outro, Ariès (2003) descreve que a partir do
século XVIII o moribundo tinha um papel central no cenário da morte, cabendo a ele
inclusive expressar suas idéias, seussentimentos e suas vontades através do testamento. O
familiar mais próximo ao indivíduo que estava morrendo era incumbido de algumas tarefas
que lhe eram entregues em confiança. Essa participação ativa do familiar no cenário da morte
favorece a efetivação dos rituais de luto. O período de duração do luto, bem como a maneira
de vivenciá-lo eram muito bem definidos no século XVIII. Já no século XIX o luto é descrito
como exagerado, apresentando grande dificuldade de aceitação da morte do outro. Vivenciar
a morte do outro, dessa forma tão intensa, gerou a necessidade de alterações na maneira de
cuidar dos corpos mortos. Acontece uma série de modificações acerca do local em que os
cadáveres deveriam ser enterrados, aproximando ao que conhecemos hoje como os cemitérios
e os túmulos.
A segunda metade do século XIX é marcada pela atitude da morte interdita, algo
vergonhoso e nada familiar. Sendo assim, falar verdadeiramente sobre a morte,
principalmente com quem está morrendo passa a ser um grande problema. Com o objetivo de
poupar o enfermo de um assunto tão desagradável e carregado de sofrimento, interdita-se essa
17

temática e o que a ela se relaciona, omite-se do homem que está morrendo as informações
relativas ao seu estado. Entre as décadas de 30 e 50 ocorre também o deslocamento do local
da morte, que não deve mais ocorrer na intimidade do lar, mas no ambiente asséptico do
hospital. Esse abandona o caráter de asilo dos que estavam à margem e torna-se um centro de
cura e luta contra a morte. É nessa época que ocorre uma grande modificação no cenário da
morte, que durante milênios pouco se alterou. A sociedade de modo geral e, principalmente as
crianças, devem se aperceber o mínimo possível da ocorrência da morte. Os rituais fúnebres
permanecem, sendo sempre discretos e contidos, sendo as manifestações mais efusivas de dor
e tristeza associadas às perturbações mentais ou mesmo à falta de educação. O luto deve ser
solitário e silencioso, ou seja, o que antes era exigido, hoje é proibido.
Gorer2 (1963 apud Ariès, 2003) sociólogo inglês apresenta a interdição da morte, que
passa a ser vivenciada como um tabu, como a substituição do sexo como principal interdito.
Hoje é possível explicar a uma criança os aspectos fisiológicos que levam ao nascimento de
um bebê, sem recorrer a imagens fantasiosas. Entretanto, ao contrário de épocas passadas em
que a criança acompanhava a morte à cabeceira da cama, hoje, quando simplesmente não
vêem mais alguém que ama, é informada que essa pessoa repousa num belo jardim.
A busca incessante em preservar a felicidade permanente, individual e coletiva
aparece, de alguma forma associada à atitude moderna de interdição da morte.
Ariès (2003) destaca, porém, que há publicações americanas, por volta de 1970,
questionando a desumanidade das mortes no ambiente hospitalar. Tais publicações apontam
que o morto perdeu seu lugar de central na morte e que ocorre uma paralisia que inibe as
reações familiares e profissionais. É uma tentativa de restabelecer a morte em um discurso do
qual havia sido banida.
Por muito tempo em nossa sociedade associamos o momento da morte com o
cessar das batidas do coração e, consequentemente, também dada respiração. Assim como
descreve Pazin-Filho (2005) médicos e leigos definem a morte como um instante, um
momento. É como se houvesse uma linha que dividisse a vida e a morte, sendo que, na
verdade, trata-se de um processo. O autor exemplifica o processo do morrer descrevendo a
morte celular, que ocorrer em etapas e não repentinamente. Além disso, destaca que muitas
células do nosso organismo morrem diariamente, algumas são repostas e outras não e, ainda
assim, para que o indivíduo morra, um processo mais amplo e mais complexo deve ocorrer

2
GORER, Geoffrey. The pornography of death, Encounter, p. 49-52, October 1955. Disponível em: <
http://www.unz.org/Pub/Encounter-1955oct-00049.[Artigo retomado como apêndice de seu último livro, Death
griefandmourning. Nova York, Doubleday, 1963].
18

levando a uma perda de função global que impossibilite a existência como um todo.Com o
avanço da medicina e da tecnologia para diagnósticos tornou-se necessário rever não somente
a idéia de morte como um instante único, mas também suas associações ao batimento
cardíaco.
Torres (2003) também aborda a questão da morte e pontua a grande dificuldade
existente em definir o que seria o fim de uma vida. Diz que: “A questão fundamental é a
seguinte: qual é o tipo de vida em relação a qual a morte deve ser determinada?”(p.478). Na
atualidade a ciência se encaminhou para a definição da morte totalmente cerebral, em que,
estar morto é ser incapaz de ser uma pessoa, o que requer um grau de consciência assegurado
pelo funcionamento cerebral adequado.
No Brasil, bem como em outros países, a interrupção irreversível das funções cerebrais
incluindo o tronco encefálico, representa a morte de uma pessoa (SANTOS; MORAES;
MASSAROLLO, 2012). O Conselho Federal de Medicina (1997) denomina, regulamenta e
diagnostica esta morte como “Morte encefálica”.

1.2 A MORTE COMO FINITUDE E TRANSFORMAÇÃO

O tema da morte traz consigo uma ampla possibilidade de abrangência. Falar da morte
é também deparar-se com as mudanças e transformações decorrentes da finitude, daquilo que
se encerra, que rompe. O mito greco-romano relacionado à união de Hades (Plutão) e
Perséfone (Prosérpina) (BULFINCH, 1999) é uma metáfora interessante para abordarmos tais
aspectos.
Zeus (Júpiter) ao rebelar-se contra seu pai, Cronos (Saturno) o destrona e divide seus
domínios com seus irmãos Poseidon (Netuno) e Dis ou Hades (Plutão). Zeus fica com o céu,
envolvendo a Terra e o Olimpo; Poseidon fica com os mares e a Hades é destinado o reino
dos mortos. Certo dia, Hades receoso de que seu reino pudesseser aberto à luz do sol decidiu
viajar pela terra para verificar se havia danos. Nesse mesmo dia, Afrodite (Vênus) e seu filho
Eros (Cupido) que brincavam na terra avistaram Hades. Com a intenção de aumentar seu
domínio, Afrodite pede ao filho que acerte Hades com uma de suas flechas fazendo com que o
mesmo se apaixonasse por Perséfone que brincava com suas companheiras em um bosque
onde a Primavera reinava perpetuamente. Logo que a vê, Hades fica enlouquecido de paixão e
decide raptá-la. Perséfone grita e pede ajuda a sua mãe, a deusa Deméter (Ceres), mas ainda
assim é levada pelo senhor do reino dos mortos.
19

Ela gritou pedindo ajuda à mãe e às companheiras; e, quando, apavorada, largou os


cantos do avental e deixou cair a flores, sentiu, infantilmente, sua perda como um
acréscimo ao seu sofrimento (BULFINCH, 1999, p.68).

Hades cavalgou até a beira do Rio Cíano, que se recusou à sua passagem, entretanto,
com o seu tridente, Hades feriu a margem do rio e a terra abriu-se dando-lhe passagem para o
mundo inferior, o Tártaro.
Deméter, desesperada procurou sua filha pelo mundo todo sem encontrá-la. Cansada e
disfarçada como uma velha mulher sentou-se em uma pedra e ali permaneceu por nove dias e
nove noites. Então, uma menina que passava por ali com seu pai a interpela chamando-a de
mãe e questiona sobre o motivo de estar ali. Deméter compartilha sua história e os três se
emocionam. Ela os acompanha até sua casa e lá descobre que o filho do velho homem estava
doente. Deméter se aproxima da criança, beija-lhe os lábios e, instantaneamente, ele retoma o
vigor da saúde. À noite, enquanto todos dormiam, Deméter encanta o menino com palavras
para transformá-lo em imortal, mas é surpreendida pela mãe da criança, que assustada, a
impede. Deméter diz:

Mãe, foste cruel no amor ao teu filho. Eu ia torná-lo imortal, mas frustraste meus
esforços. Não obstante, ele será grande e útil. Ensinará ao homem o uso do arado e
as recompensas que o trabalho pode obter do solo cultivado (BULFINCH, 1999, p.
71).

A busca por Perséfone continua e, ao encontrar sua guirlanda presa às margens de um


rio, Deméter constata a realidade da perda da filha. Enfurecida e, mesmo sem saber a causa,
decide vingar-se e lança a culpa sobre a terra – esta não gozará mais de seus favores e se
tornará infértil. Instaura-se uma era de profunda aridez em que o gado morreu e as sementes
não germinaram. Logo em seguida é informada que sua filha havia se tornado a esposa de
Hades, o que a faz correr até Zeus e implorar que ele a trouxesse de volta. Zeus consente o
retorno da filha de Deméter desde que ela não houvesse se alimentado no mundo dos mortos.
Hermes (Mercúrio) é encarregado de ir até o Tártaro pedir a libertação de Perséfone.
Entretanto, o ardiloso Hades, antecipa-se e oferece a ela uma romã, que tem alguns grãos
saboreados pela sua rainha. Dessa forma, sua liberação acontece, mas sempre incompleta:
Perséfone passa um período do ano com sua mãe e o outro com seu marido. A terra continua
recebendo as bênçãos de Deméter, mas passam a necessitar em alguns períodos do auxílio do
menino a quem ela havia ensinado a arte e o conhecimento da agricultura.
20

Nesse mito encontramos a referência à criança que é levada para uma nova etapa em
que ocorrem alguns rompimentos de vínculos com os pais para que novos envolvimentos
afetivos possam surgir. A menina que até então brincava, assume um novo papel, passa a ser
senhora de outro reino. Muitas vezes as mudanças ocorrem de forma tão repentina que são
experienciadas de forma traumática, como um rapto. O adulto que acompanha essa criança
agora crescida também é desalojado de seu papel mais conhecido e seguro. Abandona, ainda
que temporariamente sua forma mais própria, a deusa que cede lugar a velha senhora, Precisa
se reorganizar. Perde, sofre, e quase enlouquece, mas descobre novas maneiras de cuidar.
Toda mudança requer ajustes, novas configurações. O mundo ao redor chega a ficar árido e
repleto de infertilidade, mas novos recursos são acionados. As oscilações passam a fazer parte
da vida e integram uma nova possibilidade.
Assim como no mito, todo desenvolvimento humano é permeado por transformações,
perdas, mudanças e reorganizações. É inevitável esbarrarmos em assuntos relacionados à
morte quando entramos não âmbito da psicologia. Precisamos, contudo, estender nossa
compreensão acerca do conceito de morte, seja essa última relacionada à interrupção da vida,
às mudanças de etapas ao longo de nossa vida ou ainda ao rompimento de vínculos afetivos.
A morte que ceifa a vida dos indivíduos apresenta representações singulares de acordo com
cada cultura, período histórico e até mesmo vivências pessoais de cada um de nós. Para
Kovacs (1992) essa construção acontece durante todo o processo de desenvolvimento vital,
tendo características peculiares em cada etapa desse ciclo.
Com o intuito de realizar uma breve reflexão acerca das diferentes mudanças inerentes
ao longo do desenvolvimento humano, apresentarei, a seguir, alguns aspectos relacionados à
morte, perdas e rompimentos de vínculos afetivos na infância, adolescência, vida adulta e na
velhice.
Vendruscolo (2005) em estudo anterior retoma alguns aspectos relacionados à visão da
criança sobre a morte. Tais palavras – criança e morte - parecem contraditórias, é como se a
morte não se ocupasse da vida na infância seja pela morte da própria criança, pela perda de
alguém próximo de sua convivência, ou de um bichinho de estimação ou até mesmo pelas
imagens de TV e jogos infantis. Acreditar que a criança estará protegida do contato com as
perdas favorece atitudes inadequadas dos adultos quando uma situação dessa natureza vier a
ocorrer.
Ao não falar, o adulto crê estar protegendo a criança, como se essa proteção
aliviasse a dor e mudasse magicamente a realidade. O que ocorre é que a criança se
sente confusa e desamparada sem ter com quem conversar (KOVÁCS, 1992, p. 49).
21

Torres (1999) refere que as investigações sobre a compreensão da morte pela criança
começaram em 1934 e continuam ao longo desses anos diferenciando-se entre aquelas que
questionam sobre a idade em que as crianças compreendem a morte e aquelas que, além
disso, procuram investigar se a compreensão de cada componente está relacionada com o
nível de desenvolvimento global. Essas dimensões de níveis do conceito de morte na criança
são apresentadas da seguinte forma: irreversibilidade, impossibilidade de retornar ao estado
anterior, morte do corpo; não funcionalidade, compreensão de que todas as funções
definidoras da vida cessam com a morte e universalidade, tudo que é vivo morre.
A maneira como a criança organiza e expressa sua compreensão e seus sentimentos
frente à morte (e aos diferentes níveis acima descritos) bem como às perdas de modo
geral,está relacionada ao seu desenvolvimento afetivo e cognitivo. É imprescindível que para
cuidar do psiquismo infantil os profissionais da saúde e os pais tenham como referência a
moldura desenvolvimental, ou seja, que considerem o que é esperado em termos de
habilidades e competências para cada faixa etária (GREENSPAN; GREENSPAN, 1993;
VENDRUSCOLO, 2001).
Na transição da infância para a adolescência há um universo de fantasias, certezas e
seguranças que se despendem e abrem espaço para novos desejos, curiosidades e dúvidas.
O adolescente, assim como o adulto, compreende a morte como universal, irreversível
e como um cessar da funcionalidade. Entretanto, a ânsia da liberdade trazida pela
adolescência, acrescida da sensação de onipotência peculiar a essa etapa do ciclo vital,
favorece o envolvimento em situações extremamente perigosas. É como se o caráter da
universalidade ainda não estivesse bem compreendido – “Comigo não irá acontecer”.
(KOVÁCKS, 1992, 2003; RODRIGUES; KOVÁCKS, 2005).
O jovem adulto está no auge da força física e da resistência. Vivencia uma fase
aparentemente mais tranquila em que a revolução idealizada na adolescência começa
acontecer. Porém, é um período árduo de redefinição de relacionamentos pessoais (amigos,
trabalho, estudo) em que, além disso, precisa criar independência econômica e emocional para
arcar com suas escolhas (DE MARCO, 2012). A morte nessa fase não é uma grande
preocupação.
Já na meia-idade, por volta de 40 a 50 anos, ao mesmo tempo em que o adulto pode
sentir-se realizado profissionalmente e também no ambiente familiar, considerando a
estabilidade no relacionamento conjugal e a entrada dos filhos na vida adulta, ele também
começa a se deparar com a própria finitude. É o início de um período de perdas físicas, como
da visão, audição, força, resistência, colágeno, e cor dos cabelos. Nessa fase, na “crise da
22

meia-idade”, ocorre uma reavaliação da vida, a constatação do envelhecimento e a luta contra


ele (DE MARCO, 2012, BARBOSA; MELCHIORI; NEME, 2011).
Segundo De Marco (2012) o idoso, que socialmente é designado como indivíduo da
terceira idade, inicia sua jornada nessa fase do ciclo vital aos 60 anos. Para ou autor a última
crise do curso do desenvolvimento ocorrerá por volta dos 80 anos de idade envolvendo a luta
pela integridade contra o desespero diante da finitude. Vale ressaltar que o aumento da
longevidade requer novas formas de lidar com a velhice, ou seja, apesar de haver lamentos
pelos próprios infortúnios e pela vulnerabilidade e transitoriedade de sua condição o idoso
(lúcido) pode e deve escolher. Rabelo e Néri (2005) apontam uma grande reviravolta de
papéis sociais na velhice, ou seja, nessa fase pode ocorrer a inversão entre pais como
cuidadores e filhos sendo cuidados. Além disso, na velhice, com a morte dos genitores o idoso
deixa de ocupar o lugar de filho; com a viuvez perde a função de cônjuge e com a
aposentadoria ocupa o espaço daquele que não mais produz. Por isso é preciso escutá-los
sobre seus medos, suas perdas e suas dores, o que nem sempre significa que o idoso está
deprimido.
As pesquisadoras Barbosa, Melchiori e Neme (2011) deixam claro que não é a idéia da
sua própria morte que assusta o idoso, abordam a questão da morte como processo natural da
vida. Preocupam-se com as incertezas de como viverão até esse momento, se sofrerão com
adoecimentos ou durante a morte e se ficarão em uma situação de dependência de outras
pessoas. Uma grande fonte de tristeza para o idoso é a perda de pessoas queridas, vivenciadas
como um grande vazio, repleto de saudade e recordações.

1.3 O LUTO

Ao abordar os estudos relacionados à morte necessariamente nos direcionamos para a


atenção àqueles que também vivenciaram a proximidade com a morte, porém continuam
vivos, na experiência da dor de alguma perda – os indivíduos em luto.
Há tradicionalmente a associação do luto com a doença mental. Parkes (1998)
menciona a inclusão do luto no DSM - Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação
Norte-Americana de Psiquiatria, desde a primeira edição desse livro em 1972, no grupo de
“outras condições que podem ser foco de atenção clínica”. Ele ainda acrescenta que, em sua
concepção, se o luto tivesse que, necessariamente, ser incluído em um diagnóstico
psiquiátrico tradicional, esse seria o transtorno de ansiedade. Entretanto, o luto não é um
estado, mas um processo que se dá em relação às perdas significativas.
23

De acordo com a quarta edição desse manual. DSM IV, luto podia ser diagnosticado
como uma patologia, uma categoria diagnóstica e, consequentemente, tratado com
psicoterapia e até com medicamentos. O Luto inserido na categoria V62.82 descrito quando o
foco de atenção clínica é uma reação à morte de um ente querido. Como uma maneira de
reação à perda, alguns sintomas característicos de um Episódio Depressivo Maior, como
sensações de tristeza e sintomas associados, tais como insônia, perda de apetite e perda de
peso poderiam ser identificados. O critério para diferenciar Luto e Transtorno Depressivo
Maior estava associado à persistência dos sintomas por mais de 2 meses após a perda e
também à presença de certos sintomas que não são característicos de uma reação "normal" de
luto, tais como: culpa acerca de ações que o sobrevivente tenha realizado ou não à época do
falecimento; pensamentos sobre morte, outros que não o sentimento do sobrevivente de que
seria melhor estar morto ou de que deveria ter morrido com a pessoa falecida; preocupação
mórbida com inutilidade; retardo psicomotor acentuado; prejuízo funcional prolongado e
acentuado; experiências alucinatórias outras que não o fato de achar que ouve a voz ou vê
temporariamente a imagem da pessoa falecida.
Na edição atual, do DSM V (2014) ocorre a retirada do luto como critério de exclusão
do Transtorno Depressivo Maior, sendo possível aplicar esse diagnóstico mesmo às pessoas
que passaram pela perda de um ente querido há menos de dois anos. Há ainda a descrição do
Transtorno do Luto Complexo Persistente, caracterizado por aspectos como: tempo em que
ocorreu a perda (risco se a perda ocorreu há pelo menos 12 meses); sintomas do enlutado
(saudade, pesar, preocupação com o falecido); sentimentos de choque, raiva e culpa em
relação à morte; evitar entrar em contato com lembranças; prejuízos sociais e a influência na
vida cotidiana (levar em conta as diferenças culturais).
Outras preocupações também nortearam as pesquisas que buscavam compreender o
processo do luto. Franco (2010) destaca que até o final do século XX o desligamento
emocional em relação à pessoa falecida configurava-se como centro dos estudos sobre o luto.
Atualmente as pesquisas referentes a essa temática se ampliaram favorecendo que tanto a
compreensão quanto o trabalho com o luto possam ser realizados com base em múltiplas
referências.
Muitos estudos apontam os fatores de risco que influenciam a expressão do luto.
Parkes (2009) citando a importante revisão de Stroebe e Schut3 (2001) enumera quatro tipos

3
STROEBE, W.; SCHUT, H. Risk factors in coping with bereavement: a methodological and empirical review.
In: STROEBE, M.S.; STROEBE, W.; HANSSON, R. (Eds.) Handbook of bereavement. Cambridge:
Cambridge University Press. 2001, p. 349-72
24

de fatores de risco: vulnerabilidade pessoal do enlutado; relação com a pessoa falecida;


eventos e circunstâncias que levaram à morte, bem como da morte em si e apoio social e
outras circunstâncias após a morte. Ainda nessa revisão há o destaque para dois tipos de
complicações no luto relacionadas ao tipo de vínculo com o morto: o luto crônico, intenso
desde o princípio e ligado a relação de dependência e o luto conflituoso, que geralmente
demora a se instalar, sendo proveniente de uma relação ambivalente. Entretanto, tais
pesquisas não se voltam para a explicação de como tudo isso acontece.
Para compreendermos como ocorre o processo do luto devemos considerar diferentes
teorias. Autor de inúmeros estudos relacionados o luto, Parkes (2009), aborda em seu livro,
Amor e Perda. Raízes do luto e suas complicações, alguns aspectos teóricos em uma
perspectiva histórica.
Inicialmente apresenta a associação entre o luto e a teoria do apego, esta desenvolvida
por Bowlby (2002, 2004a e 2004b) e que, dentre outros constructos, descreveu as fases do
luto vividas por bebês quando separados da mãe por um tempo longo- protesto, desespero e
desapego. Parkes e Bowlby trabalharam juntos e identificaram a similaridade entre as
respostas de adultos que perderam seu companheiro e as respostas de crianças pequenas
separadas de suas mães (BOWLBY, PARKES4, 1970 apud PARKES, 2009). Acrescentaram
às fases anteriormente descritas a fase inicial de entorpecimento ou embotamento das
emoções. Apesar desses estudos serem amplamente aceitos e as fases do enlutamento
utilizadas como prescrição para o luto normal, ainda havia a falta de definição para o luto, o
que segundo o autor é um problema que perdura até a atualidade.
Vários instrumentos foram desenvolvidos para avaliar o medir o processo de luto.
Descrevem também algumas reações tais como: ameaças à segurança; mudanças importantes
na vida e na família que podem ou não estar associadas às lembranças terríveis e culpa pela
morte (dirigida a si ou ao outro). Mas esses aspectos não eram suficientes e uma definição
que fosse satisfatória acerca do que é luto deveria diferenciá-lo de outros fenômenos
psicológicos. Parkes (2009) apresenta, então, o que considera os componentes essenciais do
luto e sem os quais não se pode afirmar que o mesmo esteja ocorrendo: a experiência da perda
e uma reação de anseio intenso pelo objeto perdido. Acrescenta, ainda, a distinção
fundamental entre o processo de luto, as reações de um luto complicado e outros transtornos
psiquiátricos, como a depressão maior, embora possa estar acompanhado dela.

4
BOWLBY, J.; PARKES, C.M. Separation and loss wthin the family. In: MARRIS, P. (Ed.) The child in his
family. New York: Wiley, 1970.
25

Diferenciando o homem dos outros animais pela complexidade de nossa capacidade


mental, e diante da impossibilidade de uma única teoria abranger a compreensão sobre os
processos de luto por morte ou por quaisquer perdas que sofremos, Parkes (2009) formula a
teoria da transição psicossocial. Após uma mudança importante na vida ou uma perda
significativa, há a ocorrência de uma crise, ou seja, uma ruptura do nosso mundo presumido5,
gerando inquietude, tensão, ansiedade e indecisão até que as mudanças necessárias sejam
passíveis de serem realizadas. Dessa forma, o que anteriormente foi denominado “elaboração
do luto” passa a ser encarado como um trabalho de transição.
Dentro dessa perspectiva histórica o autor apresenta a relevância dos estudos sobre o
trauma e luto, considerando-os como experiências que podem ser concomitantes, mas são
distintas. Há muitas pesquisas que identificam as perdas traumáticas, ou seja, aquelas que
causam problemas duradouros e, em um curto espaço de tempo, devastaram o nosso mundo
presumido.
Parkes (2009), o grande estudioso dos processos de enlutamento, nos apresenta duas
maneiras de compreender o luto: a Teoria do Apego em que encontramos a explicação sobre a
urgência em chorar e buscar por alguém que foi perdido e a Teoria da transição psicossocial,
que esclarece sobre a necessidade de pensar e replanejar a vida após uma grande mudança.
Segundo o autor, com estudos contínuos nessa área, considerando e ampliando as pesquisas já
realizadas, Stroebe e Schut (1999) integram tais propostas teóricas com o Modelo do Processo
Dual do Luto.
O Modelo do Processo Dual do Luto (Dual Process Modelo Grief – DPM) é um
constructo científico com dois objetivos bem definidos: ajudar a compreensão de como as
pessoas vivem o luto em geral e diferenciar as formas de enfrentamento que auxiliam as
pessoas a lidar com a perda daquelas que não estão associadas a boa adaptação ao longo do
tempo (STROEBE; SCHUT, 1999).
Trata-se de uma proposta apresentada pela primeira vez em 1994 em conferências na
Europa e publicada em 1999 pelo periódico “Death Studies” (STROEBE; SCHUT, 1999) que
descreve o processo normal do luto pautado na oscilação entre a orientação para a perda e a
orientação para a restauração, que se constituem como dois fatores estressores nesse processo:
os relativos à pessoa perdida, como lembranças e aqueles relativos à restauração, que
aparecem como conseqüências mais indiretas da perda, tais como lidar com a mudança no

5
Termo cunhado por Parkes (2009) para descrever aquele aspecto do mundo interno que é tido como verdadeiro;
como o que temos de mais garantido, incluindo concepções sobre nós mesmos, a sociedade, nossas habilidades e
expectativas. O autor reforça a ideia de que não se trata de um mundo de fantasia, mas sim de uma visão real e
verdadeira que nos capacita, na maior parte das vezes, a abordar o mundo com confiança e segurança.
26

padrão sócio-econômico da família. Assim como afirma Franco (2010) o fundamento desse
modelo está na constatação de que pessoas em luto, vivenciam alternadamente, em um
movimento que não é linear e não acontece de forma simultânea, o enfrentamento da perda e a
necessidade de reajustar sua vida. Ainda de acordo com Stroebe e Schut (1999), podemos
acrescentar a visão de Parkes (2009) situando esse modelo como a essência da transição
psicossocial. O enlutamento é visto, portanto, em uma perspectiva dinâmica que não nega os
aspectos teóricos anteriores, mas os transcende, indo além da noção de fases que se sucedem.
Há um esquema representativo proposto por Stroebe e Schut (1999) que ilustra e
esclarece o modelo descrito anteriormente.

Figura 1 – Modelo do Processo Dual do Luto

Fonte: Stroebe e Schut (1999, p.213).

Nesse modelo em que a oscilação é inerente ao processo de enlutamento, há a


possibilidade do indivíduo que está sofrendo por uma perda perceber que tudo aquilo que
viveu no passado e que constitui sua memória, ainda que carregada de dor, continua presente
e tem importância na construção contínua de sua vida. Assim como destaca Parkes (2009), o
enlutado passa a perceber que o vínculo com aquele que já morreu permanece contínuo, não
27

sendo preciso tentar “segurá-lo”, pois fica muito claro que sua presença sempre permanecerá
“aqui”. Ainda com Parkes (2009):

Assim, o aspecto do luto que emerge da nossa necessidade infantil de procurar pelo
genitor perdido, e que é a essência da teoria do apego, ao longo do desenvolvimento
virá a ser complementado pela descoberta de que, em parte graças ao mundo
presumido que nossos pais nos ajudaram a desenvolver, podemos sobreviver durante
a transição para um mundo sem essa pessoa perdida. Por amar seu bebê a mãe irá
ensiná-lo a se separar dela (PARKES, 2009, p.48).

2: OBJETIVOS

Geral

Descrever a sistematização do “Ambulatório de Luto”, responsável pela


complementação da formação do graduando em psicologia e atendimento psicológico em
situação de luto e rompimentos de vínculos afetivos no Serviço-Escola de Psicologia da
UNAERP.

Específicos

O objetivo desse estudo consiste em:

 Sistematizar a rotina do “Ambulatório de Luto” junto ao Serviço-Escola de


Psicologia da UNAERP.
 Descrever o processo de formação do graduando em Psicologia para atuação em
situação de luto e rompimentos de vínculos afetivos.
 Descrever as intervenções psicológicas no contexto de luto e rompimentos de
vínculos afetivos.

3 JUSTIFICATIVA

Ao longo de 13 anos nessa universidade como docente em algumas disciplinas e


supervisora de estágio nas áreas de Psicologia da Saúde, Plantão Psicológico, Saúde da
Família e Psicoterapia Fenomenológico-Existencial, tenho tido contato com diferentes
histórias de vida relatadas pelos usuários de nosso serviço-escola. Especificamente nos
atendimentos emergenciais do Plantão Psicológico, temos recebido muitas pessoas que
procuram ajuda psicológica em virtude de estarem vivenciando uma situação de luto, seja por
morte ou por outro tipo de rompimento de vínculo afetivo. Na maior parte das vezes essas
pessoas já buscaram algum tipo de ajuda, médica e/ou espiritual, mas ainda anseiam por outro
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tipo de acolhimento, em que possam expressar a dor, a sensação de ausência de sentido na


vida, bem como qualquer outro aspecto que é silenciado na cotidianidade. Trata-se, portanto,
de uma escuta diferenciada, oferecida pelo atendimento psicológico direcionado às pessoas
enlutadas.

Em nossa cidade certamente podemos contar com profissionais capacitados para


atender a essa demanda, entretanto não contamos com essa modalidade de atendimento
oferecida por algum serviço-escola de Psicologia, o que torna essa proposta inovadora no
contexto universitário. Vale ressaltar que essa temática contribui em grande escala na
formação do graduando em Psicologia.

4 MÉTODO

4.1 Um caminho para a compreensão do fenômeno

A metodologia que orienta essa pesquisa está assentada na modalidade


fenomenológica de pesquisa em psicologia, que a concebe como uma ciência humana. Para
Giorgi (1978), essa concepção de ciência pode ser identificada paralelamente ao surgimento
da psicologia como ciência no modelo das ciências naturais, oficialmente, em 1879, com a
fundação do laboratório de Wundt, em Leipzig, Alemanha. Nessa mesma época, Wilhem
Dilthey (1833-1911) escrevia exaustivamente sobre a psicologia, procurando demonstrar que
as Ciências Humanas poderiam ser rigorosas e sistemáticas de uma forma diferente das
Ciências Naturais. Para Dilthey, havia sim uma diferença, pois, ao contrário das Ciências
Naturais, as Ciências Humanas não poderiam remover os fenômenos do seu contexto
histórico, pois esses é que lhe davam sentido. Outro pensador influente em relação a esse
aspecto metodológico é Franz Brentano (1838-1917), que propunha uma psicologia empírica,
mas não experimental. Para o autor, os fenômenos psíquicos eram caracterizados pela
diretividade em relação a um objeto ou referência a um conteúdo, demarcando assim, o
princípio da intencionalidade.

Edmund Husserl (1859-1938) que tem seu nome diretamente associado à origem da
fenomenologia, também questiona o aspecto metodológico presente até então nas Ciências
Humanas. Husserl une-se a Dilthey e a Brentano, procurando clarificar a necessidade delas
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não se restringirem à posições dogmáticas sobre a produção do conhecimento. (DARTIGUES,


1973; GIORGI;SOUSA, 2010).

Husserl manteve um diálogo permanente com a psicologia ao longo de sua obra e


propôs, como objeto fundamental para se compreender seu objeto de estudo, o conceito de
intencionalidade. Ao adaptar esse termo da obra de Brentano, Husserl nos apresenta a noção
de consciência sempre como “consciência de alguma coisa”, ou seja, sempre visando um
objeto, uma recordação, um sentimento ou mesmo uma fantasia. Portanto, o estudo da
psicologia em uma perspectiva fenomenológica tem como objeto “a vivência intencional, o
sentido da experiência humana” (GIORGI; SOUSA, 2010, p.40). Assim, não há, em uma
perspectiva husserliana, como analisar separadamente o ato de consciência e o objeto
intencional correspondente.

O pesquisador, assim como todos nós, em nossa cotidianidade, concebemos o mundo


na atitude natural, ou seja, de modo factualmente dado, de forma independente da
consciência. Também podemos identificar a atitude natural na concepção de mundo da
ciência, no sentido de explicar, atribuir significados, muitas vezes pautados em uma relação
de causa e efeito. Sendo o objetivo da psicologia fenomenológica, compreender a
intencionalidade da consciência que se apresenta no sentido das vivências, é preciso um
método de pesquisa que estude o fenômeno tal como ele se apresenta no seu modo de
aparecer, sem pressuposições ou hipóteses. Para Husserl, nas Ciências Humanas, a redução
fenomenológica psicológica parte sempre da suspensão das compreensões, explicações e
pensamentos previamente definidos, oriundos da atitude natural, fornecidos por alguma
disciplina científica ou mesmo de valor cultural ou social – a epoché.
.
Não se trata de negar o mundo, a realidade natural, de duvidar ou de entrar
em algum processo místico de negação dos objetos e das situações, mas de
desenvolver, sistematicamente, uma atitude que promova a explicitação do
objeto de estudo: os processos mentais intencionais. (GIORGI, SOUSA,
2010, p.49)

Não se trata apenas de um momento único em que se realiza essa suspensão, mas uma
atitude que se mantém ao longo da investigação, descartando qualquer conhecimento prévio
sobre aquilo que se pretende compreender na investigação científica.
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Ocorrerá, por fim, nessa abordagem, a compreensão do modo como o fenômeno se


desvela, se mostra à consciência, sem a busca de uma compreensão única e totalizante, pois o
fenômeno se apresenta em facetas e nunca na sua totalidade (GIORGI, SOUSA, 2010).

4.2 Participantes

Estão inseridos nesse estudo dois grupos de participantes:


1 - Os alunos de 4º e 5º anos do curso de Psicologia da UNAERP que participam do
“Ambulatório de Luto”. Há um processo seletivo para definir os alunos integrarão o serviço
no ano letivo.
2 – Crianças, adolescentes, adultos e idosos, em quaisquer situações de luto, por perdas ou
rompimento de vínculos afetivos que desejem o atendimento psicológico.

4.3 Local
Os dados estão sendo obtidos na Clínica-Escola de Psicologia da UNAERP. São
utilizadas as salas de atendimento psicológico disponíveis para o período, bem como
dependências da universidade em que se estende o serviço de psicologia da Clínica-Escola,
como o Hospital Electro Bonini.

5 UM EXEMPLO DE INTERPRETAÇÃO FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL


ACERCA DA MORTE E DO LUTO

Ainda recorrendo à mitologia grega para abordar a questão da finitude humana bem
como o desafio de conviver com a mesma em si e naquele que amamos, recorro nesse
momento, a história de Tétis, mãe do herói Aquiles.
Tétis era uma deusa muito bela e, com seu encanto, despertou em Zeus o desejo de
desposá-la. Porém, ao ser alertado por Prometeu, que o filho de Tétis seria maior que o pai, o
grande Deus desistiu de tal investida e ainda determinou que a deusa se casasse com um
mortal. Dessa forma, Peleu torna-se esposo de Tétis e pai de Aquiles, um grande guerreiro.
Tiveram vários filhos, os quais Tétis tentou transformá-los em deuses, porém não obteve
sucesso. Mas com o último filho, Aquiles, foi diferente. Sem que Peleu soubesse, Tétis levou
o filho ainda bebê ao Rio Estige, em cujas águas residia o dom da imortalidade para aquele
que fosse nele banhado. Segurou-o pelos calcanhares e o mergulhou nas águas tornando-o
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invulnerável aos diferentes males. A única exceção foram seus calcanhares que não foram
tocados pela água
Quando surge o início da organização para a grande batalha em que Menelau parte em
busca Helena, que seguiu com Páris para Tróia, Aquiles é convidado por Ulisses a
acompanhá-los. Tétis sabia que se seu filho partisse nessa expedição ele morreria, por isso,
tenta esconder o filho, que, inevitavelmente é encontrado e dissuadido a partir. Em diálogo
com sua mãe, é advertido pela mesma, que o previne em relação ao destino que o aguardava.
Diz ao filho que se fosse a Tróia, alcançaria a fama, porém sua vida seria breve; se, ao
contrário, ficasse, viveria por longo tempo, mas sem glória.
Aquiles tem a possibilidade de escolher, trilhar seu caminho e opta pela vida breve e
gloriosa.
Tétis, mãe, quer tornar seus filhos imortais e busca os recursos que dispõe e conhece
para tal feito. Com os primeiros filhos isso não ocorre e ela os perde, entregando-os à morte
na própria tentativa de eternizar a vida. A finitude se concretiza. Com o mais novo, Aquiles,
ela acredita ter obtido sucesso. Não foi queimado pelo fogo da condição humana, mas
banhado pelas águas da imortalidade. Quando Aquiles a questiona se deve partir para a
batalha de Tróia, ciente da finitude, e que ele não retornaria vivo da guerra, Tétis não subtrai
Aquiles de sua própria decisão. Ao responder que não se trata mais de evitar a morte,
condição de todos os humanos, mas de escolher o sentido com o qual a vida será construída,
devolve ao filho a tutela de sua vida, não busca mais, a qualquer custo, poupá-lo de sua
condição mais própria de humanidade.
O desejo de driblar a condição da finitude em busca da imortalidade permeia os
diferentes períodos históricos. O mundo contemporâneo procura a todo custo controlar os
riscos cotidianos com orientações precisas do que deve ser feito e do que deve ser evitado
para se obter uma vida segura e saudável. Ainda assim, como seres falíveis e mortais, tal
modelo prescritiva se evidencia falho.
O caso clínico que será apresentado a seguir apresenta um trecho da vida de uma
família, que, provavelmente, compartilhava da mesma expectativa de segurança e mínimo
controle do existir como qualquer homem contemporâneo e até mesmo como a personagem
mítica Tétis. Porém, assim como Aquiles, o filho de Tétis não escapa de seu destino de
guerreiro e parte para a batalha que ceifa sua vida, a família em questão também se depara
com a perda de seu filho e tem a ilusão de invulnerabilidade e controle rompidos pela
ocorrência de um desastre natural.
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Atendimento Marcos6
A proposta desse trabalho é apresentar um modo de compreender e desenvolver o
processo psicoterapêutico em situações de enlutamento a partir da perspectiva
fenomenológico-existencial. Não se trata, portanto de uma descrição de passos a serem
seguidos e muito menos de uma técnica a ser realizada.
Minha atuação como psicoterapeuta em atendimentos e como docente em supervisões
de casos de luto tem sido norteada pelo conceito de angústia. Sinto-me lançada a iniciar um
caminho com meu paciente que já está marcado pela condição da finitude, que
escandalosamente se presentifica com a perda. Para Heidegger (2012) a angústia é uma
condição inerente ao existir humano e não um sintoma a ser tratado. O Dasein, ente cujo
modo de ser está sempre em jogo, em abertura de possibilidades, cotidianamente se dilui na
impessoalidade, distanciando-se da angústia.
Será apresentado e discutidoum caso clínico através de fragmentos de algumas sessões
com o objetivo de exemplificar esse modo de pensar e atuar em uma clínica fenomenológico-
existencial em situações de luto.
Marcos, 42 anos, líder religioso protestante, estudante do 3º semestre do curso de
Psicologia, natural do Rio de Janeiro e residente em Ribeirão Preto há 6 anos. Procurou
atendimento psicológico em março de 2010, aproximadamente 2 meses após a morte de seu
filho de 12 anos, seus cunhados e 2 sobrinhos ainda crianças, em Nova Friburgo. A família
era constituída por Marcos, sua esposa Carla, Eduardo e Sara, de 7 anos.
O primeiro contato de Marcos foi realizado pelo telefone, através da indicação da
coordenadora do curso de Psicologia. Marcos fala diretamente comigo, solicita um horário
para a data mais próxima possível e já inicia o relato sobre sua perda. Diz estar precisando
muito de ajuda, pois seu filho de 12 anos havia morrido no deslizamento de terras ocorrido em
janeiro, na região serrana do Rio de Janeiro.
O atendimento psicológico ao enlutado pode ser configurado como procedimento de
emergência. A dor da perda ou do rompimento de um vínculo afetivo sangra, transbordando
muitas vezes de maneira desagregadora no existir. O que se tem é o indivíduo que está
sofrendo, vivenciando, na maior parte das vezes um período de fechamento de suas
possibilidades existenciais (FEIJOO, 2000).
Não se trata, portanto de aplicar uma técnica específica para uma essa queixa, mas de
uma modalidade de atendimento pautada na atitude fenomenológica. Segundo Sá (2008) a

6
Todos os nomes utilizados são fictícios.
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prática clínica da Psicologia parte da mudança da atitude natural para a atitude


fenomenológica. Para o autor, na atitude fenomenológica, independente de como pode ser
denominada a modalidade do atendimento, este se caracteriza como espaço de explicitação da
experiência existencial. Da mesma forma como em outro processo psicoterapêutico, esse
também se constitui então como a abertura às possibilidades e o resgate do modo de ser
temporal e livre e não necessariamente a mudança de comportamento ou a eliminação do
sintoma. Esta relação se dá em liberdade e não é uma técnica que se aplica, ou uma
ferramenta. Ela visa facilitar ao cliente falar a si mesmo, de uma forma própria e dessa forma
o homem assume a responsabilidade por suas escolhas. Além disso, se percebe lançado no
mundo, entregue ao seu poder-ser mais próprio (VENDRUSCOLO, 2009).
No caso aqui descrito devemos considerar, ainda, a abertura de Marcos à possibilidade
de submeter-se ao atendimento psicológico nesse momento. Assim como descreve Pompéia
(2004) sobre a psicoterapia e, estendendo sua consideração para o atendimento psicológico de
modo geral, nos deparamos com os termos pró-cura ou para cuidar. Quando Marcos formaliza
seu pedido de ajuda na conversa pelo telefone sinto que compartilha sua dor comigo, entrega-
se para o (meu) cuidar. Ainda que eu saiba que como terapeuta não irei tutelar seu percurso,
mas acompanhá-lo através da linguagem no diálogo terapêutico, é preciso acolher
imediatamente. Marcamos uma sessão para a manhã do dia seguinte.
Marcos chega ao consultório com a expressão física que indicava cansaço. Senta-se e
imediatamente começa a falar, ininterruptamente, por aproximadamente 50 minutos. Conta,
detalhadamente, toda a tragédia vivenciada. Procurarei reproduzir seu relato com os mesmos
destaques que ele apresentava em sua narrativa. Inicia descrevendo que seus pais residem no
Rio de Janeiro, mas a sogra e toda a família de origem de sua esposa residiam em Nova
Friburgo. Dessa forma, no período de férias escolares, viajavam para o estado do Rio e
alternavam a estadia nessas duas cidades. Na noite anterior ao acidente, a família de Marcos
estava na casa do cunhado Júlio, irmão de Carla. Vale ressaltar que no início da primeira
sessão, quando o morto surge no discurso do paciente procuro retirar o caráter difuso, que em
geral se apresenta e questiono: “Qual o nome dele?”. Não se trata neste caso, de “um filho”,
como podemos acompanhar no caso de Marcos, foi o Eduardo que morreu. Eduardo que
viveu uma existência singular e carregada de sentido. Preciso conhecer o Eduardo que se
constitui com Marcos (ser-com) à maneira da vida e, agora, ao modo da lembrança.
Também estavam na casa Célia, esposa de Júlio e o filho do casal, Tales de 10 anos.
Quando decidiram retornar para a casa da mãe de Carla, em outro bairro, Eduardo pediu ao
pai para dormir na casa dos tios, na companhia do primo. Como usualmente faziam, Marcos e
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Carla permitiram, mas apesar da insistência de Sara, ela teve que retornar à casa da avó com
os pais. Logo depois foram dormir.
Marcos narra que autoriza Eduardo a dormir na casa dos primos, mas que Sara deveria
seguir com os pais para a casa da avó. Relata um hábito familiar. Intervir nesse momento
procurando retirá-lo do imponderável só o irritaria. As orientações sedimentadas de mundo
são insistentemente verbalizadas socialmente: “aconteceu o que tinha de ser”, “Deus sabe o
que faz”, dentre outras. Cabe ao terapeuta aproximá-lo do sentido de sua escolha. O que
norteou o pedido de Eduardo bem como a decisão de Marcos? Vida! Assim como Tétis.
Marcos sabe que essa possibilidade permeia o existir, mas a deixa diluída na cotidianidade e
no impessoal do “todo mundo”. Autoriza que Eduardo fique com os primos, cuidando da
vida. Queria banhá-lo nas águas do rio da imortalidade, escondê-lo daquele que vem chamá-lo
para uma batalha, mas, inevitavelmente, não pode poupá-lo de ser. Ser-para-a-morte.
Durante a madrugada Marcos disse ter acordado com um forte estrondo, que o
assustou muito, mas não saiu de casa para verificar o que havia acontecido. Reforça em seu
discurso que ficou muito assustado com o barulho e menciona a hora exata em que isso
ocorreu. Continua contando que na manhã seguinte, bem cedo, ao sair de casa, se deparou
com a cena mais chocante de sua vida. Não havia mais algumas casas vizinhas a de sua sogra.
“Eu não entendia nada. Olhava e não via nada.” Descreve ter muito barro na rua e vê
algumas pessoas tão confusas quanto ele. Imediatamente alerta sua esposa e procura fazer
contato com seu cunhado, mas não consegue. Decide ir até a casa dele. O caminho é descrito
por Marcos como aterrorizador. Tudo devastado, pessoas desesperadas, chuva, lama e
destroços. Menciona que já sentia que algo muito ruim havia acontecido. Quando se aproxima
da região em que Júlio morava, desespera-se. Não havia mais nada. Fica mais confuso, tenta
localizar-se, mas não encontra nada, nenhuma referência da casa de seus familiares. “Sumiu
tudo. Desapareceu. Como se nunca tivesse estado lá”. Marcos descreve que via que a casa
havia sido destruída, mas não conseguia organizar seu pensamento. Inicia-se um tempo
sequencial de desespero: identificar o que aconteceu, proceder à busca e identificação dos
corpos e conviver nesse caos que estava instalado na cidade. Relata a ordem em que seus
familiares foram encontrados, chama-os pelo nome e, poucas vezes, usa a palavra “corpos”.
Marcos acompanhou o processo de busca e identificação de alguns parentes. Descreve para
mim a expressão que viu nos rosto de cada um. Entretanto, diz que sentia que estava próximo
o momento de encontrarem seu filho. Decidiu parar de acompanhar. Alguns dias depois do
ocorrido encontraram Eduardo. Ele estava abraçado ao primo Tales, ambos enrolados em um
mesmo edredom, abraçados por Júlio, que estava debruçado sobre eles. Marcos chora e eu me
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emociono. Ainda em meio às lágrimas continua, parecia não poder parar de contar-me, ou
contar e recontar para si mesmo essa parte tão triste de sua história. Outros familiares
acompanharam as buscas e resgates da família de Marcos. Esses descreveram a ele que
Eduardo estava com a fisionomia serena e com os olhos fechados. “Júlio deve ter escutado
algum barulho, foi ao quarto onde os meninos dormiam e ficou por lá para protegê-los. Meu
filho não morreu sozinho.”. Nesse momento, já estávamos avançados no tempo, mas percebia
a importância dele poder encerrar seu relato. Não interrompo. Quando ele diz que então
começaram os procedimentos para o funeral, que foi comunitário opto por interromper.
Pontuei a Marcos que eu havia acompanhado-o nessa volta à Nova Friburgo, feita durante a
sessão. Ele disse reviver essas cenas todos os dias. Acrescentei pontuando que, assim como a
palavra que ele usou – reviver – em relação a recordar a tragédia, tudo que ele havia contado
estava vivo, sangrando, doendo muito e que eu compreendia. “Eu sei que já deve ter dado
nossa hora, mas... eu deveria parar de pensar nisso? Não consigo.”. Questiono: “Deveria?
Você tem deveres com a sua dor?”. Marcos: “Todo mundo diz... ‘Esquece’.”. Continuo: “Que
bom que aqui somos só eu e você. Todo mundo não vem.” Procuro desde a primeira sessão
aproximar Marcos de seu poder-ser mais próprio, naquele instante, ser-pai-de-um-filho-morto.
A existência vai transcorrendo e, repentinamente, sua concretude se apresenta com a
ausência de alguém que amamos. Trata-se de uma realidade cognitivamente apropriada pelo
homem adulto que já compreende o caráter universal da morte. Mas o que se rompe com a
perda é a trama tecida pelo sentido daquela relação. Considerando que o Dasein é sempre ser-
com, estamos falando aqui do sentido mais próprio de ser. Quando Marcos se depara com a
morte de Eduardo, morre no mesmo instante seu modo de ser. Continuar lançando-se a ser a
cada dia exige um contínuo reconfigura-se. Nesse sentido, contrariamente às prescrições do
mundo moderno que buscam um modelo de atendimento psicológico que resolva e elimine a
dor do outro, a proposta do atendimento psicológico em situação de enlutamento procura
acompanhar o processo de existir na ambiguidade exacerbada de mergulhar em tudo que se
refere à perda, bem como em tudo que o remete à vida que se apresenta.
Recorrendo ao modelo gráfico de Stroeb e Schtz (1999), mas integrando-o à
perspectiva existencial, apresento-o da seguinte forma:
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Figura 2 - Modelo gráfico de Stroeb e Schutz (1999) integrado à perspectiva existencial

Fonte: Adaptado de Stroeb e Schutz (1999).

Após essas intervenções, que considero pautadas na preocupação por anteposição


libertadora, vejo a necessidade, no início desse processo terapêutico em situação de luto
traumático, de orientações inseridas no cenário da preocupação substitutiva: “Não há certo ou
errado na maneira de você viver essa situação. Você apenas está vivendo. Não há como você
mudar o que aconteceu e nem mesmo os seus sentimentos. Não há um botão para você
‘deletar’ todo o ocorrido e também não sei se é o que você quer. Mas você pode e, talvez,
queira falar sobre isso, lembrar e chorar. Ou seja, viver tudo isso de dois meses atrás hoje,
no que é sua vida hoje.”
Marcos diz que quer voltar no dia seguinte para me contar mais coisas. Marcamos a
segunda sessão de acordo com a sua necessidade.

ATENDIMENTOS SEGUINTES

Os atendimentos seguintes foram marcados de acordo com a necessidade e


disponibilidade de Marcos. Sua rotina estava muito alterada. Continuava freqüentando a
faculdade, porém tendo muitas faltas; no trabalho, como membro clérigo, recebia muitas
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solicitações de atendimentos e nem sempre conseguia corresponder a esses compromissos.


Chegou a marcar algumas sessões e esqueceu. A particularidade que percebo no atendimento
de enlutados também se apresenta na configuração do contrato terapêutico, que, a meu ver,
segue o mesmo sentido da vivência do paciente. Houve uma grande perda, a atmosfera da
angústia permeia grande parte da vivência cotidiana, com dificuldade de retornar a
naturalidade rotineira da vida. Ainda que um horário fixo seja definido para as sessões, é
preciso abertura para as variações que surgem a cada atendimento. Além disso, a vivência do
tempo e do espaço também se dá de maneira distinta, marcada pela da dor. Esquecimentos são
freqüentes e precisam ser acolhidos. Gradativamente fomos estabelecendo um horário fixo.
Em muitos atendimentos seu olhar era distante e falava muito sobre o acidente. Dizia com
freqüência: “É muita dor. Não consigo entender... Parece que não vai passar nunca”. A
intensidade da dor se mistura a sensação de eternidade do sofrimento. Há um fechamento, que
o aprisiona no presente. Marcos não vê nenhuma possibilidade de vida que não aquela que
experimenta hoje.
Procurei criar um espaço em que Marcos pudesse expor sua indignação frente à
facticidade. Não intencionava retirá-lo de sua dor, precisava caminhar com ele. Uma
intervenção que considerei importante foi dizer a ele que eu não tinha como evitar seu
sofrimento e que não estava ali para fazê-lo esquecer. Ao contrário, atualizávamos seu contato
com todo ocorrido a cada sessão. Marcos parece sentir-se à vontade para retomar detalhes da
tragédia. Então arrisquei a pedir que descrevesse o modo como havia vivenciado as situações.
Ele trazia o fato, o conteúdo, eu procurava aproximá-lo do fenômeno, desvelar o sentido.
A procura pelo atendimento é, na maior parte das vezes, marcada pela expectativa de
que o psicólogo ofereça conforto ao paciente e, o mais rápido possível o faça “superar” essa
vivência desagregadora conseguindo levá-lo de volta à suposta homeostase anterior à perda.
Marcos chega ao consultório psicológico queixando-se, diluído no impessoal. Assim,
apresenta o seu modo de ser, que se dá, no momento, restrito em suas possibilidades de
existir. Sua queixa, composta pela apresentação de sintomas, vela o sentido do ser. Em luto,
por sua vez, essa busca ainda se dá acrescida, mesmo que de forma contraditória, do desejo de
reter em si toda memória e vivência com aquele que morreu. Marcos quer que sua dor passe,
mas não quer esquecer seu filho. Em certa sessão questiona-me se pode trazer fotos de
Eduardo para que eu o conhecesse. Afirmo que sim e peço que me fale sobre esse pedido. Diz
que algumas pessoas se incomodam quando ele quer mostrar alguma foto do filho e até
questionam se ele deveria deixar as fotos de Eduardo expostas na casa, pois isso poderia
“atrapalhar” que a família seguisse a vida com tranquilidade. Questiono então sobre o que
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sente quando ouve tal comentário. Há um desejo de cindir a vivência para que se possa
distanciar dor e amor, saudade e esquecimento. Cabe ao psicoterapeuta, aproximar-se com seu
paciente da impossibilidade de tal empreitada.
Digo ao paciente, com muita clareza, que não há nenhuma preocupação de minha parte
em fazer com que ele esqueça seu menino, ou se distraia de sua dor. Restrito à recordação da
tragédia, que busca explicar, definir, tomar nas mãos e não consegue Marcos a rememora
todos os dias. Restringe seu existir. Na relação terapêutica, Marcos poderá reencontrar
Eduardo, novamente recordando, porém experimentando com o terapeuta pequenas aberturas
de possibilidades. Essas, muitas vezes, podem começar a surgir com questionamentos sobre
as regras do mundo moderno sobre “o tempo ideal” para terminar o sofrimento ou mesmo
sobre o que deve ou não ser feito enquanto se sofre. Continuo e digo que hoje Marcos se
constitui e cria novos sentidos a partir dor de não ter mais Eduardo com ele.
Muitos temas rodeavam o pensamento de Marcos: deveria questionar menos,
compreender à luz da religiosidade, a maneira aparentemente mais tranqüila como a esposa
“enfrentava” a perda. Nas sessões, eu procurava desfiar os temas e, ao seu lado, ajudá-lo em
um novo fiar. A vida seguia com dor, revolta, saudade e cansaço. Era preciso permanecer
onde ele estava.
A escuta clínica do terapeuta é o espaço de acolhimento em que o paciente, vai se
apropriar de seu modo de ser-com a maneira da ausência. Detalhando esse momento clínico, é
possível descrever um terapeuta que acompanha o paciente na sua dor. Não há pressa para que
pare de falar sobre o morto, ao contrário, a vivência se pauta na fluidez, no movimento. Ainda
na contramão, não há nenhuma preocupação em eliminar as contradições, mas integrar o
existir do enlutado às mesmas. É preciso dizer ao paciente que não há um único modo de
passar por tal situação, nem mesmo o forma mais adequada.
Quando se está em luto experimenta-se a sensação de que o tempo estagnou naquela
vivência dolorosa e que nunca mais haverá trégua para tamanho sofrimento. Mesmo com a
noção de movimento e de processo, é como se o mesmo ocupasse todo o existir. A
cotidianidade invade com sua rotina a vivência do ser em luto. As atividades mais triviais
como o cuidado diário de si, dos outros e das coisas do mundo que nos circunda são
permeadas pelo processo do luto. Marcos relata “Tocar a vida...”, sendo que essa está aí,
sendo vivida, porém, ainda de acordo com ele, “...sem brilho... estranha”. Na mesma sessão
em que compartilha o aniquilamento que sente quando não sente mais o cheiro de Eduardo,
que está abandonando as suas roupas guardadas no armário, Marcos se encanta com o festival
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de dança de Clara. Talvez, no processo de luto, o homem possa experimentar de maneira tão
explícita o que é a contradição de existir.
Figura 3 – Processo de luto

Fonte: Adaptado de Stroeb e Schutz (1999)

Dessa forma, não há mais a necessidade de “elaborar” o luto, com a expectativa de que
‘tudo isso um dia irá passar’. É possível mostrar ao paciente esse modelo gráfico para que ele
consiga visualizar o movimento de sua vivência nesse momento. Quase todos os espaços
invadidos pelo luto.
Alguns meses após o acidente, Marcos disse que ele e a esposa estavam planejando ter
outro filho, mas que teria que ser por inseminação artificial, pois ele havia feito vasectomia.
Questionou-me se eu considerava ser muito cedo para tal decisão. Parentes e amigos
próximos já haviam emitido suas opiniões, algumas favoráveis a idéia e outras absolutamente
contrárias. Ao ser indagada eu poderia responder-lhe a partir de conceitos prévios oriundos do
senso comum (“Que bom ter outro filho... Irá distrair-lhes um pouco...”) ou até mesmo de
interpretações que poderiam ter como base pré-suposições teóricas (negação da perda; fuga do
sofrimento; tentativa de substituição). Parto do lugar do não-saber. Sigo seu discurso e
pontuo: “Outro filho, o terceiro filho”. Marcos acenou positivamente com a cabeça: “O
Eduardo nunca será substituído.” Questionei-o sobre essa afirmação e ele passa a me dizer
sobre a opinião das pessoas. Volto para sua vivência: “Vocês terão 3 filhos, ou mais”.
Indaguei sobre “as pessoas” estarem tão presentes na intimidade do casal. Então ele retoma a
decisão do casal de terem apenas dois filhos. Não iria substituir Eduardo, mas assustava-se
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com a vinda do terceiro filho, não planejado anteriormente. Utilizei uma linguagem
metafórica pontuei: “O vento inesperado tem feito muitas visitas a vocês. Ele entra e bagunça
tudo. Onde foram parar os planos”
Para Heidegger (2012) o homem é cuidado, e assim, cuida de existir. Nesse sentido, o
autor nos mostra que o Dasein se ocupa dos entes simplesmente dados e se pré-ocupa com o
próprio dasein. Essa pré-ocupação pode ser substitutiva, saltando à frente do outro para que se
faça no lugar dele o que lhe é solicitado em seu existir. Mas também há outro modo, que
envolve a anteposição libertadora, posição essencial para o psicoterapeuta. Nessa última, ao
cuidar, acompanha-se o paciente em sua vivência de tal forma que seu discurso, dirigido ao
outro, já retorne à sua própria escuta através das pontuações do terapeuta. Assim, o paciente
vai se apropriando de seu modo de ser mais próprio. Trata-se, portanto, de um caminho árduo,
em que não há tutela do terapeuta sobre a vida do paciente, evidencia-se o tempo todo
liberdade e responsabilidade em existir.
Dasein, ente marcado pelo caráter de poder-ser é atravessada permanentemente pelas
facticidades. A perda de alguém querido, oriunda da morte ou do rompimento de uma relação
afetiva pode ser considerada como tal. Na dimensão da cotidianidade o Dasein se depara com
a angústia e dela se afasta diluindo-se na impessoalidade num movimento contínuo. È nesse
mesmo sentido que o processo de luto também se configura, transitando entre a orientação
voltada para a perda em si, como a dor, o rompimento dos laços, a sensação de que não
aconteceu e a orientação voltada para a restauração, como a realização de novas atividades, os
novos papéis e as novas respostas às mudanças da vida.
Na clínica existencial não há uma prescrição de como esse processo deve ocorrer.
Considera-se apenas o sentido que o mesmo tem atribuído a ele. O modo como as orientações
voltadas à perda e à restauração ocorrerão não são previamente definidas. O choro intenso de
um pai enlutado não demonstra maior dor do que a ausência de choro de outro. Assim como
ter mais um filho ou mesmo não desmontar o quarto do filho que já morreu podem ter o
sentido de restauração para duas pessoas. Voltamos aqui à importância do lugar do “não
saber”, ocupado pelo terapeuta, tão bem definido por Pompéia (2004).
A vida de Marcos e Carla se reconfigura a cada dia. Opiniões diversas são emitidas
ainda que não solicitadas, são orientações sedimentadas sobre o “melhor” no momento.
Decidem pela inseminação. E meses depois nascem os gêmeos: Lucas e Pedro.
A dor começa a ceder espaço à saudade. Aquilo que foi anteriormente descrito como
orientação para a perda, para o luto ainda se articula com a orientação para a restauração. É
41

como se todos os dias, no ritmo da vivência de cada um, esse processo fosse ocupando um
espaço menor, mas continuasse sempre ali, no existir.
Ao mesmo tempo novas questões surgiam, tornavam-se temas e se inseriam no
cotidiano de Marcos: a vida conjugal, desejo sexual, religiosidade, posicionamento religioso,
retornar ou não ao local da tragédia.
Gradativamente, esse processo que permanece no modo contínuo e tomando quase
toda a vida Marcos, começa a encontrar um novo modo de ocorrer, que pode trazer certo
receio.
Um grande temor do paciente logo que nos procura é medo que sente de ter suas
lembranças apagadas. Vale considerar que frente à noção moderna de que a psicoterapia irá
cauterizar os processos de sofrimento, esse receio é extremamente pertinente. Quando fui
indagada por Marcos se ele a dor iria passar, certamente não estava inclusa a expectativa de
esquecimento. Trata-se aqui da difícil tarefa de responder simultaneamente ao processo de
luto e ao existir.
Como citado anteriormente o paciente pede ajuda para sair desse conflito paradoxal
que vivencia buscando a anestesia de sua dor e a garantia de que não perderá sua lembrança.
Nesse sentido, o modelo do processo dual do luto apresentado por Stroeb e Schutz (1999) tem
sido de grande auxílionos atendimentos. Novamente recorrendo à representação gráfica, é
possível expor a permanência do processo do luto, que não será extinto, encerrado e
ampliação do campo das possibilidades existenciais.

Figura 4 - Permanência do processo do luto

Fonte: Adaptado de Stroeb e Schutz (1999)


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Em algum momento, algo específico como as datas comemorativas de modo geral, um


aroma, uma foto ou mesmo um som, surge repentinamente e amplia esse processo novamente.
E, nessa situação, o existir novamente se dá à maneira da perda. Em uma sessão, Marcos
conta que, certo dia, utilizando o seu computador, foi surpreendido ao abrir um arquivo, por
uma foto de Eduardo. “Fiquei olhando aquele rostinho. Parecia me olhar. Toquei a tela e
tentava sentí-lo... Desabei de novo” Falamos sobre esse momento em que saudade, dor e
lembrança se misturam. E se elevam como uma grande onda e, gradativamente as águas
retornam ao oceano, até a próxima onda.
Marcos interrompe a faculdade e passa a ficar mais tempo em casa auxiliando no
cuidado com os bebês. Encanta-se com essa nova fase, que é permeada pela presença de
Eduardo, que vai se integrando à casa de uma nova forma.

[...] enlutar-se não designa apenas um período necessário a ser esquecido ou superado,
mas uma crise de sentido que permite um novo relacionar-se com o que se perdeu do
outro e, portanto o que se perdeu de possibilidades de sua existência singular enquanto
ser-no-mundo, seja no esquecer, ou mesmo no manter uma coexistência na presença-
ausente da saudade (FREITAS, 2009, p. 104).

Novos projetos mesclam-se cotidianamente com a saudade constante. Mudam de casa,


se despedem do quarto de Eduardo e partem para habitar um novo lar, em que sua presença,
ao modo do não ser-mais-aí permanece. Marcos diz que conseguem deixar a casa, porque o
lar da família seguirá com eles. Já não sente tanto medo de sua dor e também pouco se
preocupa com sua alegria. Parece apenas ser.

6 RESULTADOS PRELIMINARES

Frente aos atendimentos psicológicos realizados no Ambulatório de Luto no decorrer


desse ano letivo, selecionei 4 casos que serão apresentados a seguir como resultados
preliminares dessa pesquisa. Vale relembrar que na pesquisa fenomenológica o pesquisador
faz o esforço de deixar a atitude natural e deve engajar-se na atitude fenomenológica ou anti-
natural já no momento em que identifica sua inquietação (problemática a ser investigada), ao
formular sua questão norteadora e na coleta dos dados a partir da mesma, mantendo tal atitude
ainda na construção dos resultados. Sendo assim, frente ao questionamento que norteou minha
leitura dos relatos e transcrições de sessões – “Como se dá a relação terapêutica pautada na
fenomenologia existencial em situação de luto?”- inicio a construção dos resultados desse
43

trabalho narrando 4 histórias: Carla, a viúva que não podia chorar!; Yara – quem é essa
mulher que canta sempre esse lamento?; Karina – não podemos falar da mamãe! e João,
Maria e Pedrinho – uma triste história de amor.

Carla, a viúva que não podia chorar!


Carla, de 25 anos de idade, chega ao Ambulatório de Luto por indicação de um amigo
após presenciar o assassinato de seu ex-namorado, Angelo. Eles viveram um relacionamento
por 8 anos, morando juntos nos últimos dois anos. Estavam separados há 5 meses e
mantinham um bom contato apesar de Carla não ter compreendido o rompimento repentino
por parte de Angelo. Logo descobriu através das redes sociais que ele estava com outra pessoa
e que ela estava grávida. Certo dia, Angelo a procura e marcam um encontro em um parque da
cidade. Assim aconteceu. Chegando ao parque permaneceram na rua para conversarem. Carla
relata que foi uma conversa muito gostosa e destaca vários aspectos expressos por Angelo.
Refere que ele disse não estar feliz em seu novo relacionamento e que gostaria de se separar,
porém não o fazia devido ao filho que estava para nascer. Continuando seu relato afirma que
ele disse que gostaria que a mãe deste filho fosse ela. Eles se abraçaram muito forte e nesse
momento dois indivíduos chegaram anunciando o assalto. Angelo reagiu e saiu rolando na
avenida em luta corporal e, de repente ela escutou o disparo de uma arma. Carla corre até
Angelo que estava gravemente ferido. Ele tenta conversar e a última palavra que pronuncia foi
seu nome. Esse primeiro atendimento foi permeado por muito choro e expressão de tristeza.
A partir desse relato Carla passa a descrever sua experiência de viuvez, bem como da
relação com a família de Angelo, com sua atual namorada e com o bebê que estava para
nascer. Ela participa dos ritos funerários e deixa claro que no velório ela não pode ficar perto
dele como queria, pois esse lugar estava ocupado pela a atual namorada, a qual, na percepção
de Carla não demonstrava nenhum sentimento. Até o momento do velório a atual namorada
não sabia que no momento do crime Carla estava com ele, bem como ela também comentou
que algumas pessoas no velório ficaram “olhando torto” para ela como se ela tivesse culpa,
achando que eles estavam fazendo alguma coisa de errado no encontro. Afirma
categoricamente ter certeza que nestes cinco meses de separação Deus a vinha preparando
para a perda de Angelo. Explicou também que tem uma ótima relação com os pais de seu ex-
namorado e que continua a visita-los e que, em contrapartida, eles não possuem bom
relacionamento com a nora atual. Relata ser uma base de apoio para os pais de Angelo,
especificamente o pai, que chegou a tentar suicídio. Carla expressa seu desejo de conversar
com a atual namorada de Angelo para explicar o que aconteceu no dia de sua morte e de
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estabelecer um convívio próximo com o filho que esta para nascer. Justifica-se afirmando que
a mãe não terá muita história pra contar de Angelo, e que o bebê verá as fotos de família e que
ela Carla estará presente em todas. Sendo assim, considera fundamental que essa criança saiba
quem ela foi.
Ao longo de 18 sessões Carla descreve sua insistente aproximação com a namorada de
Angelo e passa a denominá-la pelo nome, Ester. A cada atendimento Carla descreve seu
distanciamento de Angelo, como morto, e permanece fixada em seus pais, em Ester e sua filha
Beatriz. Passa a relatar seus contatos com eles a partir de uma descrição de muita intimidade.
Porém só há o relato de sua aproximação e nunca da recíproca dos mesmos. Com o
nascimento de Beatriz, Carla mostra-se absolutamente absorvida pela vida que não é a sua.
Chega a planejar o dia em que será a “verdadeira” mãe de Beatriz, a qual terá seu nome
trocado por Rafaela.
Carla criou uma realidade à parte e direcionou todo seu afeto nessa espécie de
“matrix”. A cada dia que passava o choro interditado nesse processo de luto não autorizado
cedia espaço para uma fantasia de alegria e de pertinência à família de Angelo. As
intervenções terapêuticas que buscavam pontuar seu discurso e aproximá-la da dor da perda
pareciam incomodá-la, de tal forma que interrompe os atendimentos afirmando estar bem e
não precisar mais desses cuidados.

Yara – quem é essa mulher que canta sempre esse lamento?


Yara, 63 anos, tem como melhor forma de ser apresentada a referência a uma mulher
que entoa ao longo de 22 atendimentos o lamento pelo suicídio de seu filho João, aos 30 anos
de idade, há 4 meses. Yara estava desaparecendo! Seus cabelos estavam caindo, havia perdido
10 kg e se esvaia em lágrimas a cada dia. João se enforcou no apartamento em que morava
com Yara enquanto ela estava no médico dele para buscar uma receita. Ela o encontrou e,
sozinha, colocou seu corpo deitado no chão.
Já no primeiro atendimento Yara nos apresenta João, um misto de um rapaz muito
especial e mal compreendido pelo mundo e um jovem depressivo, com muita dificuldade de
se libertar do uso abusivo de substâncias químicas há 17 anos. Tais incompreensões que
variavam desde calúnias sofridas no colégio até a alta precoce em internações eram, para
Yara, fatores causais para o suicídio de João. A expressão utilizada pela mãe para falar sobre
a morte do filho não era suicídio, mas dizia que ele “desistiu da vida”.
A cada sessão Yara revisitava João, seus planos, suas dores, seus fracassos, seus
amores e, inevitavelmente, sua morte. Pensava nele durante todo o dia e o encontrava a noite
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em seus sonhos. Ela mesma, a mulher, aparecia como uma imagem distorcida e quase
apagada em seus relatos. Sobre sua vida hoje, Yara conta que sai de casa apenas duas vezes
por semana, uma para ir à missa e outra ao grupo de oração. Reforça que não tem convívio
com ninguém e tem procurado se afastar, inclusive de sua irmã, pois não se conforma com o
tanto que ela se descreve como doente e reclama da vida pelo fato de seus filhos saírem para
passear.
Nos primeiros atendimentos João vai se tornando cada vez mais presente nos
atendimentos. Yara traz fotos do filho para mostrar para a psicóloga e lê o bilhete que ele
deixou no dia de sua morte: “Desculpa mãe, não dava mais para mim”. O espaço terapêutico
também se torna uma possibilidade de reencontrá-lo simbolicamente ao falar sobre ele, ver as
fotos, as postagens no facebook e os e-mails de amigos. Encontrar a psicóloga a aproxima de
João e, gradativamente, de sua própria dor. Yara passa a trazer algum tipo de alimento para a
psicóloga a partir do quarto atendimento. São bolachinhas, chocolates e bolos pelos quais
João tinha preferência. Ela parece começar a se alimentar, se nutrir na relação terapêutica.
Do mergulho na profundidade de sua dor, em que também diz sentir vontade de
desistir da vida, Yara emerge para pequenos planos como realizar um trabalho voluntário e se
aproximar dos irmãos e rapidamente submerge outra vez para suas recordações: “Parece que
o vejo no corredor lá de casa”. Esse movimento é sempre acentuado por datas significativas
que, nesse primeiro anos sem ele, se tornam mais significativas ainda. Ele nasceu e morreu
em setembro e passar por esse mês foi imensamente triste, principalmente pelas campanhas
relacionadas à prevenção do suicídio. Entretanto, Yara já tinha mais voz e, na mesma medida,
também se ouvia mais, respeitando seus sentimentos de pesar e de empenho pra vida com
mais tranquilidade.
Após muitos “mimos” como ela mesma descrevia os presentes que trazia para a
psicóloga, Yara traz balas de côco e reforça que João detestava. Começa a surgir outra
configurar a relação terapêutica, que às vezes tem um sabor que não é tão agradável, inclusive
por se aproximar do término do ano letivo e do encerramento dos atendimentos: “Você
também vai me deixar... vai embora... cuidar da sua vida...”.
Em 22 sessões o canto de lamento de Yara chama incansavelmente por João, que se
aproxima e se afasta em sua memória, porém não a impede de se apropriar de seu existir,
ainda que tão marcado pela dor de não poder mais afagar seu filho.
46

Karina – não podemos falar da mamãe!


Quando Karina tinha 4 anos sua mãe teve uma dor de cabeça muito forte durante a
madrugada e precisou ser hospitalizada. Ela não voltou mais para casa. Ficou em coma por
uma semana e morreu. Karina continuou morando com seu pai contando com o apoio de sua
tia e de sua avó. Após 3 meses do falecimento de sua mãe Karina começou a ter muita queda
de cabelo, o que foi apontado pelo médico como uma reação emocional. Desde então a
família passou a buscar atendimento psicológico.
No primeiro atendimento a criança é trazida pela tia e pelo pai, mas quando chamados
na sala de espera o pai se apressa em anunciar que apenas a tia iria conversar com a psicóloga.
Essa postura se mantém durante as 20 sessões realizadas, sendo que várias vezes foram
marcados atendimentos com ele, porém a sessão não acontecia porque o mesmo faltava e
relatava ter esquecido. Isso ocorre até o momento em que ele diz para a estagiária que não
consegue falar sobre a esposa e que não quer conversar sobre a Karina porque iria remetê-lo à
mãe e acreditava que não aguentaria.
O modo como o pai de Karina enfrentava a perda da esposa mostra-se diretamente
relacionado à forma como a criança foi informada sobre a morte de sua mãe. A tia conta que
Karina estava no meio dos adultos e, dessa forma difusa, ouviu tudo que foi falado pelos
mesmos sobre a morte da sua mãe. Apesar não querer ir ao velório, ela foi forçada por outra
tia, a ir e a tocar a mãe no caixão. Após esse episódio Karina calou-se. Nunca chorou ou
perguntou pela mãe, se fechou muito, preocupando os familiares que acreditam que tal atitude
não seja saudável para uma criança. A primeira vez que ela voltou a falar sobre sua mãe foi
após 4 meses, no natal, quando recebeu do correio um par de patins e perguntou porque Papai
Noel não havia mandado sua mãe dela de volta, uma vez que ela nem tinha pedido os patins.
Houve uma ocasião em que ficou doente e teve que ir à unidade de saúde, ficando muito
nervosa, teve uma “crise” segundo a tia, gritava e perguntava sobre a mãe. Sempre que falava
da mãe estava em momentos de raiva, perguntando quando ela voltaria, dizendo que ela está
demorando demais, que já deveria ter voltado. Quando percebia que estava falando sobre sua
mãe mudava o assunto e se fechava, exemplificado pela tia com a cena em que ela toma
banho e na hora de secar o cabelo fala “Olha, estou secando igual a mamãe”, mas ao se dar
conta do que havia dito parou de falar e não deu continuidade no assunto, ainda que a tia
tivesse incentivado falando que a mãe era mesmo muito vaidosa e que fazia o mesmo com o
cabelo.
As sessões com Karina eram, na maioria das vezes, marcadas desenhos livres e por
brincadeiras com os animais em que situações de morte e agressividade aconteciam. Os
47

bichos atacavam a psicóloga, morriam, viviam novamente, bem em acordo com o modo como
uma criança de 4 anos compreende a morte, ou seja, como um evento reversível. Quando a
terapeuta introduz um livro de ilustrações em que há a cena da morte de um bichinho e fica
explícita a tristeza de uma criança, Karina paralisa. Ela fica olhando para o livro, tenta
desenhar e não consegue: “Não consigo... tá aqui (bate na cabeça com sua mão) mas não sei
mais fazer... não consigo”. Passa a sessão toda calada e entristecida. As brincadeiras de
agressão e morte dos animais se repetem e ficam mais violentas, exigindo acolhimento
constante da terapeuta. Por volta da 15ª sessão, Karina vai ao atendimento com uma blusa que
tem a letra “M” estampada. Quando a psicóloga pergunta sobre a letra ela diz que é de
mamãe, porém rapidamente se corrige e diz que é do nome de um super herói. Falta na sessão
seguinte. A psicóloga mantém em cada sessão os mesmos brinquedos e livros e tudo se repete
até a última sessão realizada em que elas brincam de pintar o cabelo e Karina diz que vai
colorir o cabelo da terapeuta de amarelo. Quando questionada sobre o motivo ela diz que acha
bonito. A psicóloga pergunta quem ela conhece de cabelo amarelo e ela diz que é a mamãe.
Nesse momento continuam falando sobre o “cabelo amarelo” e Karina não se afasta do
assunto, ela já estava se autorizando a falar sobre a mamãe. Porém, novas faltas ocorreram e
sempre foi feito contato com a família para remarcar e após 3 faltas consecutivas a avó diz
que ela havia piorado, pois estava falando muito sobre a mãe, olhando para as fotos e que o
pai achava melhor não leva-la novamente à psicoterapia, porque assim poderia esquecer esse
“assunto”. Tentamos contato com o pai, mas foi em vão. A evolução positiva da criança em
terapia, ou seja, a aproximação com a memória da mãe, com as lembranças e, assim,
gradativamente, com a dor da perda foi compreendida pelo pai como uma vivência perigosa
que deveria ser evitada, através do silêncio. Não podemos falar da mamãe!

João, Maria e Pedrinho – uma triste história de amor.


Era uma vez João e Maria, jovens de 18 e 15 anos que se tornaram pais de Pedrinho. A
gravidez precoce assustou os pais e os avós, porém propiciou mudanças que gradativamente
iam preparando o contexto da chegada de Pedrinho. João começou a trabalhar em dois
empregos, Maria interrompeu os estudos e se organizava para viver com seu marido e filho.
Passado o susto inicial e já completamente apaixonados pelo bebê, ainda no ventre de Maria,
ela mencionava ter um único medo: que algo acontecesse com seu filhinho. A cada consulta
do pré-natal na maternidade da universidade a partir da 36ª semana, Maria falava de seu
temor. Mas era uma criança, ninguém lhe dava crédito, pois supunham que fosse o medo da
hora do parto, da dor e outras pressuposições. Na 39ª semana de gestação Maria estava na
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consulta médica e chorava muito, sendo solicitado que passasse pelo atendimento psicológico.
Durante o mesmo afirmava o receio de esperar muito tempo para o parto e algo ruim
acontecer ao Pedrinho. Então, é orientada a esclarecer essas dúvidas durante a consulta
médica e a pedido de Maria a psicóloga a acompanha durante essa situação. Quando retorna
nas outras duas semanas demonstra estar mais calma, mais ainda com medo de que seu filho
pudesse sofrer de alguma forma. A psicóloga combina com Maria para que eles a avisassem
quando viessem para a maternidade para a chegada de Pedrinho. E assim aconteceu. Com 42
semanas Maria interna no início da tarde, acompanhada por João e começa a espera pela
indução do parto. A psicóloga volta para vê-la ao entardecer e as dores estão presentes e
dilatação começa a ocorrer. Maria estava com dores, porém confiante. Combinam que se
fosse necessário a equipe ligaria para a psicóloga, caso contrário retornaria bem cedo no dia
seguinte para vê-los.
Pedrinho nasceu naquela madrugada por um parto tipo cesárea de emergência devido
ao deslocamento da placenta, o que ocasionou sofrimento fetal, várias paradas
cardiorrespiratórias após o nascimento, manobras de reanimação e, depois de
aproximadamente 8 horas de vida ele morreu, nos braços de Maria e de João.
Ao chegar à maternidade por volta das 7:00 horas a psicóloga é imediatamente
informada sobre a gravidade da situação e vai ao encontro dos pais. João apressava-se para
obter notícias sobre a possível transferência de Pedrinho para uma UTI (Unidade de Terapia
Intensiva) neo-natal em outro hospital. Maria contava e recontava como tinha sido todo o
processo: as dores, o pedido para fazer o parto logo, a constatação da oscilação do batimento
cardíaco do bebê, o parto e espera pelo choro de Pedrinho, que não aconteceu. Repetia que
tinha que ficar bem para cuidar seu filho e ao mesmo tempo pedia para que a psicóloga fosse
ao encontro de João para ver como ele estava. Nesse momento, a psicóloga o encontra em
frente a sala de urgência, em desespero. Ele invade a sala e vê que estavam massageando o
tórax de Pedrinho, que havia tido mais uma parada. Ela o ampara fisicamente, pede que os
médicos falem rapidamente com ele e o conduz para fora, combinando que não o deixaria sem
notícias. João literalmente desmorona encostado na parede da sala de urgências, deixando-se
espalhar pelo chão do corredor. Era preciso estar à altura de seus olhos para acolhê-lo e,
então, a psicóloga senta-se ao seu lado e ele chora compulsivamente. Pedrinho tem 7ª parada
e chega o momento de trazer Maria para se despedir de seu bebê. A psicóloga acompanha a
enfermeira e a médica que informam Maria sobre a gravidade da situação e sobre a extrema
fragilidade de Pedrinho. Na sala de urgência Maria e João são pais que sofrem a perda de um
bebê e ao mesmo tempo duas crianças que não sabem o que fazer. A psicóloga encaminha
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Maria para perto do berço, a acomoda em uma cadeira para que possa segurar Pedrinho em
seu colo. Conduz João para perto dos dois e diz que seria a hora deles conversarem com o
filho, dizerem o que sentiam por ele: “Vamos filho, papai tá aqui, você vai conseguir”.
Pedrinho morre no colo de Maria.
O atendimento psicológico emergencial em situação de luto foi mantido durante o dia
do óbito para toda a família, inclusive com os avós que estavam cuidando da parte burocrática
dos funerais e também nos dois de internação subsequentes à morte da criança. Sendo assim
foi possível acolher os pais no momento da morte e também nos primeiros dias do luto, em
que estavam se reorganizando para retornar para sua casa. Momento esse em que iriam se
deparam com o ambiente preparado para a chegada de Pedrinho. Tais aspectos foram trazidos
pelo casal, sendo que ao expressarem os sentimentos, os medos e as fantasias sobre essa
situação, conseguiam, pouco a pouco, criar recursos para enfrentar a perda.

7 PEDIDO DE PRORROGAÇÃO DA PESQUISA

Justificativa

Os dados inicialmente obtidos nesse trabalho apontam a amplitude do estudo sobre a


temática do luto na interface com o atendimento fenomenológico-existencial e a formação de
graduandos em psicologia. Dessa forma, considero necessário prorrogar a finalização dessa
pesquisa com o objetivo de aprofundar a compreensão sobre os casos atendidos, podendo
destacar os desdobramentos de tal processo tanto para o paciente e sua família quanto para os
alunos envolvidos.

Cronograma de atividades

01 e 02/18 – Atualização da revisão da literatura sobre as temáticas: luto;


psicologia/psicoterapia e luto e formação do aluno de psicologia e luto.

03 e 04 /18 - Aprofundamento da interface entre luto/psicoterapia e fenomenologia


existencial.
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05, 06 e 07/18 – Coleta de dados sobre registros de 4 casos atendidos no Ambulatório de


Luto.

08, 09 e 10/18 - Construção dos resultados finais, análise fenomenológico-existencial e


síntese descritiva.

11/18 – Finalização e entrega do relatório final.


51

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