Fichamento - Testamentos Katia Mattoso

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MATTOSO, Kátia M. de Queirós.

Testamentos de escravos libertos na Bahia


no século XIX: uma fonte para o estudo de mentalidades. Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 1979.

“Essa população de Salvador é mal conhecida. Sem dúvida, as categorias


dominantes, seus grane proprietários rurais, cultivadores de cana e fundadores
de engenhos de açúcar cada vez mais aperfeiçoados, seus comerciantes mais
ou menos ligados ao comércio internacional, seus funcionários representantes
do Poder, são talvez melhor conhecidos do que suas classes populares. Não é
menos verdadeiro, porém, que a população baiana permanece ainda mal
estudada [...] Foi a Africa, mais que Portugal, que povoou a Bahia, mas, apesar
disto, a categoria social formada por escravos e escravos libertos é sempre
descrita bastante superficialmente e como se formasse um todo homogêneo”
(p. 7)

“Mas de que tipo de fontes dispomos para estudar na Bahia o grupo dos
escravos libertos? As séries fiscais são praticamente inexistentes, vez que
foram destruidas em 1970. Permanecem, porém, numerosas outras séries, tais
como: jornais e periódicos, obras literárias, documentos provenientes de
associações de classe, de Irmandades religiosas, recenseamentos, registros
paroquiais, documentos das autoridades judiciária, policial e militar e,
finalmente, os arquivos notariais com seus livros de Notas e Escrituras, seus
registros de testamentos e seus maços de Inventários post-mortem” (p.8)

“Os livros de Notas e Escrituras registram, de maneira desordenada, mas


seguindo uma ordem cronológica, vários tipos de documentos: compra e venda
de propriedades, contratos de hipotecas e de empréstimos em dinheiro,
Iocação de imóveis e de mão de obra, atos de perfilhação etc., e,
principalmente, uma excelente série de Cartas de Alforria” (p.8)

“Ademais, como já mencionamos, os arquivos notariais são também ricos de


milhares de maços de inventários Post-mortem, assim como de uma série de
64 livros de registros de testamentos que cobrem o periodo de 1805 a 1890.
Esta série, apesar de lacunar, oferece ao estudioso mais de 3.000 testamentos
escritos por homens e mulheres da Bahia, que representem todas aquelas
categorias sociais cujos membros possuíam algum tipo de bens para deixar
como herança ou legar” (p.8-9)

“Em uma primeira etapa, e com a ajuda desses testamentos. Estabeleceu-se


uma série de minibiografias que comportam: nome, prenome, origem, lugar de
nascimento, profissão, nome dos pais (às vezes dos avós), estado civil, nome
do esposo (a), do concubino (a), número de filhos e endereço residencial do
testador, Acrescentaram-se também dados relativos ao testamenteiro, tais
como: nome, prenome, profissão, grau de parentesco com o testador endereço
residencial. Esse repertório permitiu, em seguida, distinguir cinco grupos para
um estudo isolado africanos e crioulos libertos, estrangeiros (portugueses e
outros), testadores nascidos em Salvador, testadores nascidos no Recôncavo e
na província da Bahia e testadores nascidos em outras partes do Brasil” (p.10)

“No presente trabalho estudaremos o grupo dos africanos e crioulos libertos,


utilizando 200 dos 482 testamentos que estes deixaram. Esses 482
testamentos representam cerca de 15% dessa série de testamentos, o que
constitui uma porcentagem bastante significativa, tendo-se principalmente em
vista que maioria dos historiadores consideram que os libertos integravam as
camadas menos favorecidas da sociedade baiana. Será que essa afirmação
pode ser considerada verdadeira? Já o fato de o grupo dominante ter praticado
a alforria em grande escala (7) sugere que uma certa mobilidade social era
possível na sociedade escravista do século XIX” (p.10)

“Assim, o propósito deste será de apresentar e discutir resultados fornecidos


pelo exame de 200 testamentos de libertos. Por que somente 200
testamentos? Porque ao escolher os 100 testamentos do Infeto de nosso
período (1790-1826) e os 100 testamentos do fim do período (1863-1890),
podemos esperar captar mudanças e evoluções, utilizando uma amostra que,
por outro lado, representa cerca de 40% dos testamentos deixados pelos
antigos escravos” (p.10-11)

“O liberto que dita o seu testamento assemelha-se muito ao autor de uma


autobiografia. Como aquele, este conta de sua vida os aspectos que lhe
parecem essenciais; como aquele, este, conscientemente ou não, procura
deixar de sua personagem a melhor lembrança possível’ (p.11)

“Os 100 testamentos analisados para o período 1790-1826 (período A)


referem-se a 53 mulheres e 47 homens; os outros 100, isto é, os do período
1863-1890 (período B), dizem respeito a 31 mulheres e 69 homens [...] Graças
à elaboração de fichas muito detalhadas, 16 variáveis puderam ser coletadas.
Oito dessas variáveis são de caráter pessoal, isto é, elas nos fornecem
indicações sobre o nome, prenome, profissão, etc.,do testador e seis
relacionam-se ao conteudo religioso e às razões pelas quais foi feito o
testamento” (p.13)

“A origem desses escravos libertos é particularmente interessante. No período


A, 67% dos homens são africanos, enquanto no período B todos os homens
são africanos. Como explicar essa predominância do elemento africano? Várias
hipóteses podem ser sugeridas. Primeiro, pode admitir-se que na cidade do
Salvador os escravos africanos são mais numerosos do que os escravos
crioulos, por força do tráfico que avulta na primeira metade do século.
Segundo, pode pensar-se que os escravos nascidos e criados no Brasil, talvez
possuissem mais oportunidades de serem libertos quando ainda crianças.
Terceiro, não seria de todo absurdo afirmar que o crioulo liberto sentia-se mais
"brasileiro" do que seu Irmão africano e por isso não havia necessidade de
declarar por escrito suas últimas vontades, que podia confiar oralmente a
membros da Família que o criou ou o libertou. Fomos levados a formular esta
hipótese pelo fato de ter encontrado um número muito pequeno de testamentos
oriundos das camadas livres da população, o que mostra que a prática de
testar era muito limitada. com efeito, a maioria dos que testam são estrangeiros
ou pessoas sem herdeiros obrigatórios” (p.14)

“Finalmente, pode ainda sugerir-se que o crioulo, nascido e criado na casa de


seu senhor poderia contar com a ajuda deste, mesmo depois de liberto, não
tendo assim a mesma premência que o africano de amealhar bens que lhe
permitissem prover a sua subsistência. Aliás o mesmo fenômeno observa-se
também para as mulheres no período A (1790-1826); menos de 20% são
crioulos e nenhuma no período B (1863-1890). Notemos ainda que em 1890,
dois liberto, originários da Costa da África, declaram-se brasileiros
“naturalizados” (p.14)

“Frequentemente a profissão não é mencionada com precisão nos


testamentos. Para o período A, somente 36% dos homens e 17% das mulheres
declaram uma profissão e, no período B essa porcentagem cai em 21% para os
homens 12% para mulheres. Sem dúvida isto se deve ao fato de que as
ocupações mais lucrativas para о escravo (as de ganho) não necessitam
de especialização, mas sim de força física quando se trata de
carregadores para os homens, de serventes e de lavadeiras, para as
mulheres, ou de aptidões pessoais para vender nas ruas e mercados
gêneros alimentícios ou produtos manufaturados [...] Para finalizar,
digamos ainda que dentro do sistema escravista, as especializações e
profissões eram certamente bem menos precisas e definitivas do que
geralmente se pensa. O escravo que era submetido a algum tipo de
aprendizado, devia possuir condições inatas de versatilidade, pois o exercício
de sua arte dependia, não somente da boa vontade de seu senhor, mas
também das condições do mercado de trabalho. Não era raro encontrar
escravos que eram bons pedreiros e bons alfaiates, ou bons pintores e bons
cozinheiros e, contudo, eram empregados em atividades de força tipicamente
manual e fisica, como por exemplo, as de simples serventes” (p.14-15)

“Mas é preciso saber que com frequência, o escravo liberto permanece de


certa maneira integrado a uma "família" no sentido largo da palavra, pelos
laços de intimidade que conserva com seu antigo senhor. Todavia, na medida
em que se avança no século, parece que esses laços começam a desatar-se e
a perder seu caráter de dependência obrigatória, pois no período de 1863-
1890, somente um quarto das mulheres e 14,5% dos homens mencionam o
nome de seu antigo dono, seja para deixar-lhe alguns mil reis de herança em
agradecimento, seja para lembrar que a sua liberdade foi comprada.
Evidentemente, não há nada de estranho nessa nova atitude se considerarmos
que se trata de um período no qual o problema da abolição da escravidão agita
todos os espíritos. Mas pensamos que, mesmo se a dependência material do
liberto com relação a seu antigo senhor diminuiu ou se apagou, laços vivos e
fortes ainda existem que ligam por toda sua vida o liberto a seu ultimo
proprietário” (p.20)

“[...] E contudo necessário fazer uma ressalva: quando falamos de vida


espiritual e religiosa dos africanos, referimo-nos aquelas atitudes que se
manifestam no contexto religioso da sociedade branca, a qual impõe o seu
próprio modelo o da religião cristã católica e romana, pois nada sabemos com
precisão sobre a outra vida religiosa e espiritual de nossos libertos, oriunda de
padrões religiosos africanos” (p.21)

“Como o escravo se libertou? Unicamente porque foi ajudado. Temos aqui uma
segunda chave para explicar os sucessos sociais dos libertos. Essa ajuda pode
ter provindo de antigos senhores, de outros libertos, de amigos próximos ou
mais afastados. A família baiana generosa e atuante serviu de ponto onde
nasciam as solidariedades: empréstimos em dinheiro com juros ou sem eles,
recomendações, emprego, dependiam inteiramente dos que os circundam. As
Irmandades religiosas, as associações leigas de assistência mútua,
completavam os apoios individuais. Ter sido escravo de uma pessoa
importante na dependência do qual ficava-se como agregado, ajudava o
sucesso social, como também ajudavam laços criados pelas camaradagens ou
pelos apadrinhamentos. O terceiro fator de promoção social do liberto
dependeu com frequência da estrutura familial, tomada aqui no sentido restrito
da palavra. Frequentemente solteiro, vimos que o liberto tinha poucos filhos, o
que significa poucas bocas para alimentar e educar e, frequentemente, se
casava com um cônjuge relativamente remediado numa verdadeira associação
de interesses. Finalmente, o quarto fator dependeu da conjuntura geral de
Salvador no século XIX. Este século foi, em seu conjunto, um período de
marasmo econômico. um marasmo que foi se acentuando com o passar dos
anos que sem dúvida, favoreceu aqueles que tinham maiores possibilidades de
adaptar-se e menos tradições. Não tendo o direito, porque libertos, de se
refugiarem nos empregos públicos, os nossos testadores certamente reagiram
como os judeus em outras sociedades: minoria que procurava integrar-se da
melhor maneira possível acompanhando as evoluções da conjuntura e
apoderando-se das ocasiões que os outros, os mais comprometidos com as
tradições, não podiam aproveitar. As diferenças na composição do patrimônio
dos libertos, entre o início e o fim do século, testemunham sua adaptação à
vida econômica da cidade” (p.44-45)

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