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ESCOLAR:
UM ITINERÁRIO DE
FORMAÇÃO DOCENTE
Organizadores:
Morgana Domênica Hattge
Francieli Karine dos Santos
Daniel Marques Costa
(Organizadores)
INCLUSÃO ESCOLAR:
UM ITINERÁRIO DE FORMAÇÃO DOCENTE
Universidade do Vale do Taquari - Univates
Reitor: Prof. Me. Ney José Lazzari
Vice-Reitor e Presidente da Fuvates: Prof. Dr. Carlos Cândido da Silva Cyrne
Pró-Reitora de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação: Profa. Dra. Maria Madalena Dullius
Pró-Reitora de Ensino: Profa. Dra. Fernanda Storck Pinheiro
Pró-Reitora de Desenvolvimento Institucional: Profa. Dra. Júlia Elisabete Barden
Pró-Reitor Administrativo: Prof. Me. Oto Roberto Moerschbaecher
Editora Univates
Coordenação: Ana Paula Lisboa Monteiro
Editoração: Glauber Röhrig e Marlon Alceu Cristófoli
Imagem da capa: Raquel da Costa Bruxel
I37
104 p.
ISBN 978-65-86648-24-9
CDU: 37.014.53
!
As opiniões e os conceitos emitidos, bem como a exatidão,
adequação e procedência das citações e referências, são de
exclusiva responsabilidade dos autores.
Morgana Domênica Hattge
Francieli Karine dos Santos
Daniel Marques Costa
(Organizadores)
INCLUSÃO ESCOLAR:
UM ITINERÁRIO DE FORMAÇÃO DOCENTE
1ª edição
Lajeado, 2020
SUMÁRIO
AGRADECIMENTO............................................................................................................................................................... 6
ESTAMOS PREPARADOS?............................................................................................................................................... 37
Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do SUL (FAPERGS) pelo financiamento da
pesquisa “Inclusão: um itinerário de formação docente” (Edital ARD 01/2017) e à Universidade do Vale do Taquari
pela viabilização do estudo. Agradecemos também à Secretaria Municipal de Educação de Lajeado/RS pela parceria
e aos autores dos textos que compõem essa coletânea por sua contribuição. Em especial, nosso muito obrigado
a todos os professores que participaram das oficinas e grupos de estudos movimentando nosso pensamento e
construindo conosco este livro.
Este livro é resultado das observações, reflexões e experiências até então vivenciadas no decurso da pesquisa
intitulada “Inclusão Escolar: um itinerário de formação docente”, vinculada ao Grupo de Pesquisa CEM, financiada
pela FAPERGS.
Nesse movimento investigativo, ao pensar a inclusão escolar e as problemáticas surgidas nesse contexto,
temos levado em consideração duas provocações lançadas pelo professor Alfredo Veiga- Neto, com quem sempre
aprendemos tanto:
[...] assim como as ações inclusivas não são, em si mesmas, nem boas, nem corretas, nem defensáveis, as
políticas de inclusão não são, por si só, nem boas nem necessárias... E isso é assim por várias razões. Em
primeiro lugar, no mundo social não faz sentido pensar e falar sobre alguma coisa “por si só”, falar em uma
ação “em si mesma”. As coisas, nossas ações e o que pensamos sobre tudo isso só fazem sentido nas relações
que mantêm entre si e com o resto do mundo. Para dizer de outra maneira: não havendo como isolar, de modo
absoluto, um conceito, uma categoria, uma ação etc, é preciso pensá-los sempre relacionalmente, em conexão
uns com os outros, de modo interdependente. Em segundo lugar não se pode dizer que algo é bom ou ruim,
necessário ou desnecessário, sem examinar as condições a partir das quais tanto se está falando acerca desse
“algo”, quanto se está emitindo algum julgamento sobre ele. Por isso mesmo e em terceiro lugar [...] quando
falo sobre algo, sobre alguma coisa ou alguma ação, nunca me interessa partir de um juízo de valor antecipado.
Com uma antecipação desse tipo, colocam-se as soluções antes de colocar os problemas; é como se fôssemos a
campo para descobrir o que já se sabe. (VEIGA-NETO, 2008, p. 11-12)
É nesse sentido que, ao tratarmos da inclusão escolar neste livro, procuramos, primeiramente, nos conectar ao
universo de oito escolas da rede municipal de Lajeado, no Rio Grande do Sul e, sobretudo, reconhecer e discutir os
movimentos empreendidos pelos professores dessas escolas diante dos desafios e dilemas que surgem no âmbito da
educação inclusiva.
Conversar com esses professores, entendendo-os não como informantes da pesquisa, mas como sujeitos
ativos, ditou, em certa medida, os rumos desse estudo no sentido de nos dar visibilidade a temas que se colocam
como demandas importantes no cotidiano da escola. Em síntese, trata-se do seguinte: a pesquisa teve como
objetivo responder a uma questão bastante ampla, pois, o que se pretendeu foi verificar a necessidade de maior
aprofundamento de problemáticas que se evidenciaram a partir das escritas dos professores.
1 Algumas ideias presentes nesse texto foram apresentadas na mesa “Saberes docentes e aprendizagem na matriz de
experiência inclusiva” que ocorreu no “II Fórum Itinerante de Inclusão: aprendizagem em contextos educacionais”
pela Doutora Morgana Domênica Hattge
Contrariamente a essa ideia, o que temos percebido em alguns espaços educativos são discussões pautadas ainda
em binômios como bom/mau, certo/errado, normal/anormal... De um lado, a inclusão sendo vista como a prática que
nos tornará mais humanos, mais solidários. De outro lado, a inclusão sendo entendida como uma impossibilidade
porque não estamos preparados, porque as famílias não fazem a sua parte, entre outras razões.
Nas oficinas que realizamos nas escolas, temos percebido que esses entendimentos da inclusão angustiam os
professores, causam sofrimento. Diante disso, trazemos aqui uma reflexão da jornalista Eliane Brum, do seu livro
“A menina quebrada e outras colunas de Eliane Brum”. Pedimos desculpas pelo uso de uma citação longa, porém
entendemos que ela seja importante.
Vejo tanta gente sofrendo por aí, achando que sua vida está aquém do que deveria ser, porque tudo deveria
ser só bom. Não sei quando nos enfiaram garganta abaixo essa ideia absurda de um estado de felicidade
absoluta. Uma espécie de nirvana a ser alcançado em que nada mais nos perturbaria e que seríamos felizes
para sempre. [...] Acho que a grande causa atual de infelicidade é a exigência da felicidade. É o deslocamento
do lugar de felicidade para o centro da vida, como um fim a ser alcançado e a medida de uma existência que
valha a pena. Se nos lembrarmos bem dos contos de fadas, o “e foram felizes para sempre” era exatamente
o fim da história. Era quando o conto morria num ponto final porque não havia mais nada relevante para ser
contado. Tudo o que interessava, o que nos hipnotizava e nos mantinha pedindo a nossos pais ou à professora
ou a nós mesmos “de novo, conta de novo”, era o que vinha antes. O desejo, as turbulências, os avanços
e recuos, os tropeços e os arrependimentos, os erros, o frio na barriga, a busca. Tudo aquilo que é matéria
da vida de todos. O que realmente importa. Acho impressionante a quantidade de adultos pedindo um final
feliz para as suas vidas, para as suas histórias de amor, para o sucesso profissional. Não há nenhum mistério
no final. Independentemente do que cada um acredita, o fato é que no final a vida como cada um a conhece
acaba. Para viver, o que nos interessa não são os pontos finais, mas as vírgulas. Os acontecimentos do
meio, o enredo entre o primeiro parágrafo e o último. [...] A ideia de felicidade como um fim em si mesma
encobre e desbota tanto a delicadeza quanto a grandeza do que vivemos hoje, faz com que olhemos
para nossas pequenas conquistas, nossos amores nem sempre tão grandiloqüentes, nosso trabalho às
vezes chato, como se fosse pouco. Apenas porque nem a conquista nem o amor nem o trabalho é só bom. E
há uma crença coletiva e alimentada pelo mundo do consumo afirmando que tudo deveria ser só bom. E se
não é só bom é porque fracassamos. [...] a felicidade absoluta é mortífera, ela mata o tempo presente. Não
tenho nenhum interesse por essa pergunta corriqueira: “Você é feliz?”. Acho uma questão irrelevante. O que
me interessa perguntar a mim mesma – e pergunto a todos a quem entrevisto é “Você deseja?”. Desejar é o
contato permanente com o buraco, com a impossibilidade de ser completo. Desejar é o que une o homem à
sua vida. Une pela falta. Tem mais a ver com um estado permanente de insatisfação. Não a insatisfação que
Relacionando essas ideias construídas acerca da felicidade absoluta ao contexto escolar, percebemos que
comumente se espera o mesmo da inclusão, isto é, que ela seja “só boa”, feita somente de bons momentos. E como
ela não é, como ela se coloca nas vírgulas, nos acontecimentos do meio, feitos de grandes e pequenos desafios
diários, nós sofremos. Sofremos porque esperávamos uma inclusão total, uma inclusão como ponto de chegada. Essa
“inclusão como um fim em si mesma”, parafraseando Eliane Brum, “encobre e desbota a delicadeza e a grandeza”
do que fazemos cotidianamente. Ela nos diz que fracassamos. Ela mata o desejo.
Apoiadas no filósofo Michel Foucault, Maura Corcini Lopes e Juliane Morgenstern nos provocam a pensar na
inclusão como uma matriz de experiência
[...] em que experiências convergem para a conformação de uma forma de vida inclusiva permitindo-
nos interrogar o presente como integrante de uma época em que normas de comportamentos instituem e
naturalizam o estar junto, no mesmo espaço, como uma condição necessária para certa estabilidade do Estado,
embora algumas exclusões se configurem. (2014, p. 187)
Assim, argumentamos, mais uma vez, que, ao instituir-se como imperativo, a inclusão se coloca, muitas vezes,
para os sujeitos envolvidos no processo, como um lugar de chegada, como algo que deveria ser só bom. Mas,
lá no cotidiano da escola, ou da instituição de ensino superior, ou ainda daquela turma de Educação de Jovens e
Adultos, e em outros espaços educativos quaisquer nos quais sejamos mobilizados pelas demandas da inclusão,
nossas vivências não serão somente boas. Em outros textos temos argumentado já há algum tempo que não existe “a
inclusão”; o que existem são processos de in/exclusão, que se colocam permanentemente abalando nossas certezas,
desafiando nossas capacidades, exigindo criação, sensibilidade, produzindo avanços, instituindo recuos. E isso tudo
não é de todo mau. E isso tudo não é sempre bom. Talvez, se pararmos de perseguir “a inclusão” de fato, tenhamos
olhos para ver as pequenas vitórias do cotidiano e, a partir delas, construir outras e outras, entendendo sempre esse
fluxo permanente de vida que se coloca nesse processo e permanecendo em movimento numa busca por sentido,
sem nos conformarmos com o que nos impõem as políticas ou os governos, mas nos conectando com as demandas
reais dos sujeitos e com as nossas, mobilizando os saberes construídos em nossa formação docente, e entendendo
que outras áreas de conhecimento podem nos apoiar, mas não nos subjugar. Dessa forma
[...] é fundamental que os professores tenham uma formação sólida, discutam o currículo escolar, se apropriem
daquilo que será ensinado e repensem os processos educativos a partir do conjunto de saberes que constituem
a Pedagogia como ciência” (HATTGE, KLAUS, 2014, p. 337).
Isso não vai nos garantir uma “inclusão só boa”, mas vai nos permitir aprender e ensinar nesse processo,
abraçando algumas causas e recusando outras, num movimento sempre permanente de aprendizado.
Assim, o livro está dividido em duas seções. A primeira, intitulada “Da pesquisa como lócus da produção do
conhecimento”, composta por quatro textos, produzidos sob encomenda por pesquisadores e bolsistas vinculados ao
grupo CEM e pesquisadores convidados. As conversas com os professores nas oficinas e as escritas desenvolvidas
posteriormente trouxeram à tona temáticas que ainda demandam estudo, discussão, reflexão.
A segunda seção, denominada de “Outros Estudos”, é constituída também por quatro textos, oriundos de
pesquisas realizadas em cursos de graduação e no Programa de Pós-Graduação em Ensino da Univates.
No segundo texto “A escola como espaço ‘ideal’ para a inclusão”, a pesquisadora Roberta Acorsi (UFRGS)
propõe, inicialmente, uma breve discussão acerca da invenção da escola na modernidade, evidenciando, em seguida,
o funcionamento dessa instituição como maquinaria que se coloca a serviço da governamentalidade neoliberal,
sobretudo por meio da inclusão escolar.
O texto a seguir, intitulado “Redes de apoio e inclusão escolar: articulações necessárias”, escrito por Denise
Fabiane Polonio (Univates) e Raquel Fröhlich ( UDESC) reflete sobre as articulações entre a saúde e a educação
frente aos processos que envolvem a inclusão de alunos com deficiência, propondo, ainda, possíveis caminhos que
auxiliem na integração dessas duas áreas.
No texto “Estamos preparados?” as autoras Morgana Domênica Hattge (Univates) e Suzana Feldens Schwertner
(Univates) exploram um modo diferente de escrita. Para isso, acionam um gravador e passam a dialogar sobre um
tema que há muito tempo as inquieta, ou seja, a formação docente, especialmente no que se refere ao estar (ou não)
preparados/(des)preparados.
Na segunda seção o primeiro ensaio reflexivo é a escrita intitulada “Entre (laçando) etnomatemática e ensino de
surdos”. As autoras Francisca Melo Agapito (UFMA), Ieda Maria Giongo (Univates) e Morgana Domênica Hattge
(Univates) propõem importantes reflexões acerca do ensino de matemática para surdos através da educação bilíngue.
Em seguida, no texto “A psicologia e a pedagogia implicadas nos processos de inclusão escolar” os autores
Marino Rodrigues da Rosa (Univates) e Morgana Domênica Hattge (Univates) fazem uma reflexão acerca das
relações e da comunicação entre os profissionais da Psicologia e da Pedagogia acerca dos processos de inclusão
escolar.
No texto “O autismo e as possibilidades de inclusão escolar” as autoras Isabel Cristina Fink (Univates) e Fabiane
Olegário (Univates) se atêm a analisar como se dá a inclusão escolar de crianças autistas, através de um estudo de caso.
Para problematizar os processos de aprendizagem na escola foi selecionado o texto “Situação de não
aprendizagem: de que maneira as crianças a interpretam?” das autoras Viviane Danieli Schneider (Univates) e Danise
Vivian (Univates), em que elas desenvolvem uma análise dos processos de ensino e aprendizagem no contexto
escolar, problematizando a questão da não aprendizagem e do fracasso escolar.
Referências:
BRUM, Eliane. A menina quebrada e outras colunas de Eliane Brum. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013.
LOPES, Maura Corcini; MORGENSTERN, Juliane Marschall. Inclusão como matriz de experiência. In: Pro-posições, v.25, n.
2, mai-ago 2014, p. 177-193.
VEIGA-NETO, Alfredo. Neoliberalismo, Império e Políticas de Inclusão – problematizações iniciais. In: RECHICO, Cinara
Franco; FORTES, Vanessa Gadelha (orgs.). A educação e a inclusão na contemporaneidade. Boa Vista: Editora da UFRR,
2008, p. 11- 28.
Estamos em março de 2020 e uma pandemia bate à nossa porta. Surgido na China, o Coronavírus (Covid-19)
se espalha velozmente pelo mundo, contaminando, em proporções gigantescas, toda uma população. Na mídia, nas
redes sociais, nas conversas de grupo, o tema é exaustivamente replicado, ao mesmo tempo em que milhares de
pessoas vão sendo contagiadas.
Em nome de uma pandemia, se controlam corpos, se fecham fronteiras, confinam-se pessoas, escolas e
universidades são interditadas e os regimes biopolíticos se convertem em necropolíticas, determinando quais corpos
vivem riscos, quais permanecerão vivos, quais não poderão atravessar divisas. Nessa lógica, quanto mais frágeis
forem as populações, maior o desequilíbrio entre o poder da vida e o poder da morte. Além disso, a necessidade
de isolamento e o medo do contágio, como afirma Canetti (1995, 274)1, “produz como efeito o apartamento dos
homens, uns dos outros. O mais seguro é não se aproximar demasiadamente de ninguém, pois qualquer um poderia
estar já contaminado”. O sentimento preponderante é que o inimigo é secreto e invisível, não se pode vê-lo, não se
pode atingi-lo, “ele golpeia quando quer e golpeia a tantos que logo se teme que venha golpear a todos”. (CANETTI,
1995, p. 273).
Uma pandemia diz respeito ao modo rápido e eficaz como um vírus se propaga entre os corpos. Mas uma
pandemia também pode dizer respeito à proliferação de uma ideia, um pensamento, um comportamento, uma crença;
o quanto somos contaminados ou nos deixamos contaminar por elas. Nesse sentido, parece que outras pandemias
habitam esse tempo.
Nessa perspectiva, se a metade do século XX parecia apontar para um mundo que, em alguma medida, caminhava
para uma derrocada de fronteiras, preconceitos, princípios moralizantes, vivemos hoje uma espécie de falência das
experiências coletivas, das relações de alteridade, arrastando para trás lutas conquistadas à duras penas. Ressurge
uma pandemia de ideias que diz respeito ao colapso de uma democracia, em meio ao qual discursos excludentes,
autoritários e banalizadores da violência são reverberados diariamente. Tais discursos colocam em voga hierarquias
tradicionais de raça, gênero, padrões de normalidade, culturas, reforçando a ideia de que há vidas com menos valor.
Contudo, ao lado deste assombroso cenário, uma pandemia de resistências aparece, desdobrando-se em linhas
de forças, mostrando que não estamos sozinhos. E parece tão auspicioso que possamos produzir experiências que
nos permitam escutar, compartilhar, experimentar, reinventar-nos.
É desse fôlego que parece tratar o livro que aqui se apresenta. Retomar mais uma vez e outra vez mais o tema
da inclusão coloca-se urgente em meio a um modelo político e econômico excludente. Tratar da inclusão escolar
junto a professores é ainda mais urgente, pois a escola, de fato, é o espaço mais apropriado no qual dispositivos de
disciplinamento modelam indivíduos e estratégias biopolíticas governam condutas por meio de políticas e programas
de controle da população.
1 CANETTI, Elias. Massa e poder. Trad. Sério Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Produções como esta colocam sob suspeita qualquer forma de verdade e lançam-se em defesa da inclusão como
prática de modos de vida mais potentes. Eis uma palavra que talvez devesse ser incessantemente recuperada – ‘vida’.
Voltar a ela, retomá-la, transfigurá-la para que tenhamos a força de viralizar experiências, proliferar ideias, criar
pandemias que não nos deixem desassossegar enquanto educadores imersos nos paradoxos desse tempo. Certamente,
isso requer abrir um leque de sentidos em que a noção de vida pulveriza-se em multiplicidades, garantindo a cada
um a expressão pública de sua própria diferenciação ética.
Hummm, elas estão lá, nos gabinetes, fazendo pesquisa. Aqui, no chão da escola, a coisa é muito diferente.
(Algum professor em alguma escola de algum município desse mundão, 2019)
Buscando desmistificar afirmações como as acima mencionadas, nasce o projeto de pesquisa intitulado
“Inclusão escolar: um itinerário de formação docente”. O desejo? Ouvir os professores de anos iniciais, acolher
suas angústias, conhecer suas vitórias, estender-lhes a mão e pensar junto. A partir disso, estudar, escrever, ler,
conversar, duvidar, problematizar mais. O texto que segue procura refletir acerca de uma das temáticas levantadas
nas escritas desse grupo de professores de um conjunto de dez escolas municipais da cidade de Lajeado – RS, que
aceitaram o convite para compartilhar conosco algumas questões relacionadas as suas práticas: a preocupação com
o processo de patologização e a consequente medicalização da infância. Muitas são as questões: que complexa rede
de relações produz uma infância assolada por inúmeras patologias e que precisa ser medicada, controlada? Qual o
papel da escola e dos professores nesse cenário? Quais as perspectivas que se colocam? O texto está organizado
didaticamente de forma a buscar responder às questões anteriores. Cada uma dessas indagações dá título a uma
seção e, por fim, não no desejo de concluir a discussão, mas de colocar um ponto final na escrita deste texto, tecemos
algumas considerações a título de (in) conclusão.
“O tempo que preciso atender estes alunos incluídos, que em algumas vezes, não têm laudo, portanto, sem
saber ao certo, como ajudar, ou ter um profissional acompanhando...E os demais alunos? Como atendê-los?”
(Professora 10)
A infância como uma categoria única, como a expressão de uma forma de vida homogênea, há muito sabemos,
não passa de uma grande invenção. Analisando um cenário mais amplo, podemos dizer que a infância que se produz
no continente europeu não é a mesma que se vive no continente africano, ou que viver a infância nos Estados Unidos
é muito diferente de vivê-la no Brasil. Mas a filiação a um determinado continente ou país daria conta de dizer dessa
heterogeneidade da infância? Quantas infâncias cabem, por exemplo, em uma escola? Em uma sala de aula? Ou
talvez possamos também usar, em vez da categoria espaço, a categoria tempo para olhar para a infância. A infância
dos nossos pais é a mesma dos nossos filhos? Que infâncias estamos produzindo?
Nesse contexto mais amplo até aqui apresentado, há uma infância em especial que nos preocupa sobremaneira:
a medicalizada. Percebemos que a infância tem sido objeto de governo
[...] não apenas como tempo de vida com características próprias, certos padrões de desenvolvimento e ritmos
de aprendizagem, como também, e principalmente, como um “filtro para analisar comportamentos” e, portanto,
E nesse afã de diagnosticar qualquer que seja o desvio da norma padrão, cada vez mais cedo encaminhamos
as crianças aos consultórios médicos. Estudos como o de Maria Aparecida Affonso Moysés (2001) indicam que é
consideravelmente significativa a incidência de diagnósticos entre as crianças em idade escolar. Segundo a autora,
desde muito cedo, já na educação infantil, no decorrer das séries iniciais e também nas séries finais, o número
de diagnósticos vêm aumentando desde os anos 90 do século passado. Entre os fatores que têm provocado esse
aumento nos encaminhamentos e buscas pelo diagnóstico estão as mudanças de critérios para avaliação e captura de
sinais que possam localizar os alunos como alunos que não se encaixam na normalidade instituída.
Tais critérios aparentam estar cada vez mais abrangentes, abarcando singularidades da vida cotidiana que, em
muitos casos, podem ser justificadas pelos contextos e histórias de vida de cada um de nós. Assim, na atualidade,
parece ser muito difícil que alguém não se encaixe em algum dos transtornos mentais apresentados, por exemplo,
pela atual versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM 5, publicado em 2013.
Segundo Brzozowski e Capelo (2013, p. 210)
A medicalização dos desvios é possível por meio da flexibilização dos limites do que é considerado normal e
do que não é. A era moderna da classificação diagnóstica em saúde mental se originou nos asilos, porém hoje os
manuais diagnósticos não estão restritos a esses espaços. Suas categorias parecem englobar não somente uma
pequena minoria da população, mas quase todos nós. Os diagnósticos psiquiátricos incluem uma variedade
de condições que se situam, de acordo com Rose (2006), na fronteira da normalidade, tais como ansiedade,
pânico, depressão leve a moderada, transtornos de personalidade, TDAH, transtornos de conduta e transtornos
do espectro autista.
Nesse contexto, o olhar da presente discussão se volta ao público infantil, pois as dificuldades de aprendizagem,
de socialização, os comportamentos indisciplinados, entre outros tantos “sinais de desvios”, têm sido largamente
vistos como patologias que justificam encaminhamentos precoces das crianças ao campo da medicina em busca
de diagnósticos que expliquem tais modos de ser e estar na escola. A produção de um diagnóstico colocaria essas
crianças na condição de alunos para quem uma série de prescrições - produzidas a partir do estabelecimento de uma
rede de relações entre saberes clínicos (via terapias e medicamentos) e saberes pedagógicos e educacionais - são
visualizadas como capazes de controlar, reabilitar e, quando não for possível normalizar, aproximar os alunos de
gradientes aceitáveis de normalidade.
Trata-se patologicamente, muitas vezes, a criança por apresentar determinados comportamentos, mas não
se investiga o contexto social que pode também estar produzindo tais comportamentos. Dentre esses contextos,
localizamos também a escola e nos perguntamos sobre as relações que são produzidas no contexto escolar. Como
elas são conduzidas diante da indicação da percepção de um comportamento considerado não adequado? Que efeitos
a efetivação de um diagnóstico e a consequente medicalização1 do aluno provocam nas relações escolares? Questões
essas que procuramos problematizar na sequência do texto.
1 Segundo Moyses (2001) a medicalização pressupõe o processo vivido na atualidade em que transformamos em problemas individuais
problemas que são coletivos. Assim, ao olharmos para alunos que por apresentarem singularidades em seus processos de aprendizagem
são responsabilizados individualmente pelas dificuldades que estão encontrando e submetidos a encaminhamentos clínicos em busca da
produção de diagnósticos, estamos estabelecendo com ele uma relação baseada nos princípios da medicalização.
Essa busca, cada vez mais antecipada, dos possíveis riscos presentes nos modos de ser de alguns alunos, tem
resultado na produção de diagnósticos e classificações que os localizam no grupo dos anormais, especialmente
quando as dificuldades nos processos de aprendizagem emergem. Para Brzozowski e Capelo (2011), a maioria dos
requerimentos de avaliação clínica produzidos na infância
[...] são notados na escola e descobertos a partir do momento em que a criança desenvolve algum problema
de aprendizagem. Como exemplo, podemos pensar na alfabetização: se uma criança não aprende a ler com
determinada idade, ou então se tem dificuldade em prestar atenção na sala de aula, isso pode ser considerado
um desvio, e a criança pode, atualmente, ser encaminhada a um profissional da saúde para averiguar seu
quadro. Os desvios da infância, dessa forma, são aqueles relacionados com a quebra de normas e de regras
impostas socialmente, como, por exemplo, a falta de atenção e a agitação em sala de aula (BRZOZOWSKI E
CAPELO, 2013, p. 210).
Conforme Lockmann (2016), a escola, desde sua emergência na modernidade, vem sendo produzida como
espaço de governamento, sendo insistentemente convocada por políticas, programas e discursos públicos para
solucionar as mazelas sociais. Nesse processo, as práticas escolares na atualidade, ao serem aclamadas como
solução para problemas sociais que não são produzidos no interior da escola e que transcendem os limites das
suas responsabilidades, acabam servindo-se dos saberes clínicos para a produção de soluções de problemas, via
medicalização da infância, que não necessariamente têm uma origem clínica.
Segundo Brzozowski e Capelo (2013), essa influência dos saberes da saúde nas práticas escolares tem se
configurado de forma mais significativa no último século, o que pode indicar a medicalização da infância também
como um efeito das políticas neoliberais que, ao produzirem um ideal de aluno para a sociedade da produção e do
consumo, acabam produzindo também uma postura vigilante da escola com relação àqueles que talvez não consigam
se enquadrar nesse ideal.
Até alguns anos atrás, os problemas escolares eram resolvidos na escola ou por meio da família. Não havia
preocupação da área da saúde com esse tipo de comportamento, talvez porque a Medicina não fosse tão
resolutiva quanto hoje e, em consequência, tivesse preocupações mais urgentes para lidar, tais como infecções
fatais (facilmente controladas atualmente pela administração de antibióticos, por exemplo) (BRZOZOWSKI E
CAPELO, 2013, p. 211).
Por acreditarmos que as práticas vividas no ambiente escolar se constituem através de convivência de diferentes
indivíduos em determinado espaço social, entendemos que é preciso que os alunos sejam considerados a partir da
compreensão de que todos os indivíduos nesse contexto possuem peculiaridades, experiências distintas de vida e
histórias que justificam suas formas de ser. Sob essa ótica, a organização das práticas acaba se constituindo como um
desafio para todos os sujeitos envolvidos, desafio esse que se intensifica quando a escola passa a ser pensada como
aquela que será significativamente responsável pela produção de sujeitos aptos a uma vida (produtiva) em sociedade.
Como efeito, vimos tornar-se natural a busca por prescrições medicamentosas, uma vez que a possibilidade de
receita de um medicamento que leve as crianças a superar os desajustes apresentados é assumida como promessa de
retorno a uma vida dentro da normalidade. “Em outras palavras, o modelo médico traz consigo uma visão otimista
para o desvio, com a promessa de um resultado praticamente imediato.” (BRZOZOWSKI E CAPELO, 2013, p. 213).
Mães de crianças com TDAH, apesar de não gostarem de dar um medicamento psicotrópico para o filho, o
fazem, primeiramente, por ser uma recomendação médica, portanto, indiscutível. Em segundo lugar, existe
uma pressão por parte da escola para que essa criança receba uma avaliação e um acompanhamento médico.
Por fim, existe ainda uma preocupação da adequação de seus filhos na sociedade, para que eles possam ter as
mesmas oportunidades que os demais (Brzozowski, 2009 apud BRZOZOWSKI E CAPELO, 2013, p. 213).
Quando os laudos confirmam uma hipótese diagnóstica, dá-se início à construção de uma visão sobre o aluno
respaldada pela medicina, a partir da qual se pode passar a justificar sua “incapacidade” pelo argumento da doença
e/ou da deficiência, conduzindo-o ao lugar da falta, da correção, da normalização e muitas vezes da exclusão na
escola.
Embora as práticas de medicalização sejam operadas legalmente pelos saberes da medicina, é fato que em
outros campos do saber, incluindo a educação, busca-se incansavelmente solucionar os problemas que se apresentam
através de tais práticas. Nesse sentido, parece potente problematizar aqui por que é necessário curar uma doença que
muitas vezes não existe?
Segundo Colares et al (2016), podemos entender que quando se individualiza um problema coletivo,
estamos medicalizando. Medicalizar consiste na ação de transformar questões não médicas, problemas da
humanidade (políticos, sociais, econômicos, escolares) em pretensos problemas médicos. Esse olhar patologizante
e medicamentoso manifesta - se através dos processos de padronização e normalização que são produzidos
socialmente. Com isso, percebe-se que a questão da diferença passa a ser pouco a pouco considerada uma temática
que precisa ser problematizada. Para os autores
Por consequência desse olhar patologizante sobre os indivíduos, os mesmos passam a ser definidos pelo seu
diagnóstico, estando constantemente submetidos a práticas de correção e normalização.
Segundo Lockmann, o saber médico é entendido, em muitos casos, como aquele que tem a função de analisar
o comportamento e a forma de agir dos sujeitos, encontrando “em diferentes medicamentos a solução para o
Guarido (2007) promove uma reflexão frente à atuação do profissional que trabalha na área educacional,
entendendo que cabe a ele refletir acerca do discurso médico, pois, se o educador corroborar com a ideia
patologizante, corre-se um grande risco de culpabilizar o estudante ou mesmo a família pelo seu fracasso frente aos
processos de ensino e aprendizagem. Essa é uma forma simplista e reducionista de analisar os problemas que se
colocam no espaço da escola. Uma inversão dessa lógica é o que apresentaremos como alternativa na próxima seção.
Para que se vislumbre uma mudança na forma de olhar para as questões já explicitadas, quais sejam, a
patologização e medicalização da infância, faz-se necessário inverter a lógica que temos utilizado como base para
análise da presença da diferença nos espaços educativos. Formados em uma perspectiva humanista, baseada nos
ideais iluministas, fomos ensinados a acreditar que existe um ideal de sujeito a ser alcançado e que o papel da escola
é “moldar” as condutas, dirigir as ações, buscando adequar os sujeitos ao que costumamos chamar de “perfil ideal de
estudante”, definindo de antemão, antes da chegada daqueles que efetivamente estarão sentados à nossa frente nas
salas de aula. Macedo (2015) alerta acerca da armadilha que se produz ao instituir um sujeito ideal, universal:
O universalismo repousa e sempre repousará, senão em exclusões, pelo menos na indiferença em relação a
certas particularidades que ameaçam à abstração. O triunfo do indivíduo universal como representação de
todos é produzido pelo esquecimento do sujeito concreto que ameaça a pureza da representação (MACEDO,
2015, p. 897).
Ao ampararmos nosso planejamento escolar, nossas práticas curriculares na premissa de que há como prever de
antemão um ideal de aluno que recebemos na sala de aula, estamos entendendo “todos como um” (MACEDO, 2015,
p. 898).
As políticas de inclusão escolar que emergiram no Brasil no final do século passado, ao garantirem o direito
legal de todas as pessoas frequentarem a escola básica, passaram a produzir uma série de discursos que convocam
aqueles envolvidos direta ou indiretamente com a escola a ressignificar concepções que assumem esse princípio do
“todos como um”, de forma a considerar a necessidade de efetivação de práticas atentas à diferença e à singularidade.
Ocorre que, para que tais práticas se efetivem, faz-se necessário que o olhar destinado aos alunos desloque sua
centralidade das premissas clínicas, a partir das quais a diferença tem sido vista como aquilo que qualifica o estranho
na escola, aquele que resiste ao esquadrinhamento disciplinar e enquadramento das normas.
O perigo dessa concepção localiza-se no fato de que, ao tomar a norma como referência, passa-se a produzir
na escola dois grupos de alunos: anormais/diferentes e normais. Sobre os primeiros, práticas de correção são
operacionalizadas a partir de princípios clínicos, cuja intenção é reabilitar. Nesse processo operamos a tentativa
de apagamento da diferença, e nos tornamos incapazes de atentar para a subjetividade presente em cada aluno,
ignorando assim suas formas singulares de estar na escola. Ao tomarmos o diagnóstico como foco, esquecemo-
nos de olhar para o aluno que apresenta esse diagnóstico como manifestação singular, sujeitando-o a práticas in/
excludentes.
Na contramão dessa forma de compreender os alunos, propomos que se abram espaços para que se possa falar
sobre diferença na escola a partir de aspectos culturais, sociológicos, filosóficos. Assumindo outras possibilidades
É possível flexibilizar em certa medida cada uma dessas marcações cronológicas normativas, pois para a
psicologia é importante atentar que, a depender do seu ritmo de desenvolvimento biológico e dos estímulos que
receber do meio, cada sujeito poderá demorar-se mais ou menos dentro de cada estágio; no entanto, não há a
possibilidade de alguém pular estágios. Assim, passamos a compreender que cada desenvolvimento real localizado
nos sujeitos se constitui como uma representação do desenvolvimento ideal, portanto imperfeita, o que garante a
produção da falsa ideia de que estamos, na escola, atentos aos diferentes ritmos e certos de que o aluno ideal não
existe. Entendemos, no entanto, que ainda que se defenda a inexistência de um aluno cujo desenvolvimento pode
ser compreendido como ideal, mantém-se a certeza de que há uma forma normal de se desenvolver. Há um percurso
mais verdadeiro que todos devem percorrer.
Como pudemos analisar em algumas narrativas dos professores que participaram da pesquisa, ao olhar para
o aluno a partir de teorias da aprendizagem e do desenvolvimento, produz-se a compreensão que aquele que não
está conseguindo “acompanhar a turma”, seja em termos de aprendizagens, seja em termos de comportamento,
é aquele que além de não apresentar um desenvolvimento ideal (porque ninguém apresenta), passa a ser também
aquele que não se desenvolve dentro dos padrões de normalidade instituídos, e que, por isso, passa a ser alvo dos
encaminhamentos, avaliações, diagnósticos e processos de medicalização.
Nesse contexto, a diferença é tida como um desvio desses padrões. Se há uma norma de desenvolvimento a ser
seguida, e aceita-se que há sujeitos que, ainda que de maneira imperfeita (com diferentes ritmos) se desenvolvem
normalmente, há também aqueles que não alcançam essa norma, portanto apresentam um desenvolvimento imperfeito
e anormal. Toda a classificação diagnóstica é feita, então, a partir dessa relação normalidade X anormalidade, pois,
só é possível falar que alguém tem deficiência visual, por exemplo, porque o normal do desenvolvimento do ser
humano é possuir a capacidade total de visão preservada.
Por nos opormos a esse processo de produção de formas mais verdadeiras de compreensão dos sujeitos e
suas formas singulares de vida, elegemos teorizações (sociológicas, filosóficas, históricas) que nos possibilitam
compreender que as coisas não são em si verdadeiras ou falsas, e portanto o desenvolvimento não deve ser lido
pelo par normal/anormal, pois toda teoria/conceituação produzida com a intenção de descobrir mesmo como o
desenvolvimento acontece é uma forma de produzir – pela linguagem, a verdade sobre ele. Uma verdade produzida
por determinados sujeitos, em determinados contextos que precisa ser relativizada, pois tende a generalizar
e a homogeneizar formas de vida que são singulares porque foram produzidas como efeito de processos únicos,
Diante disso, ao assumirmos que não há uma verdade única sobre a forma como os sujeitos se desenvolvem,
mas sim formas múltiplas e singulares de desenvolvimento que não deveriam ser encerradas em teorias e modelos,
propomos que olhemos para cada aluno na escola como alguém que se desenvolve a sua maneira, a partir das
relações que vai estabelecendo com o outro nos diferentes contextos sociais que interage. Com isso, não estamos
querendo negar a existência de processos de desenvolvimento que dificultam a relação do sujeito com os conteúdos
curriculares, ou que não possibilitem que ele enxergue, ou caminhe, por exemplo. O que esperamos, sim, é que
essas formas de vida não sejam lidas e marcadas como formas anormais, e sim possibilidades outras de existência.
Nem imperfeitas, nem erradas, nem feias... “apenas” outras, e por assim ser, não precisam ser diagnosticadas com
fins de correção, compensação, normalização; precisam, sim, ser vividas, compreendidas e atendidas em suas
especificidades.
(In)conclusão
Se você leu até aqui, isso significa que aceitou o nosso convite para refletir acerca desse tema tão complexo
e instigante. Talvez seja importante deixar claro, nesse espaço de (in)conclusão, que nossa análise não tem como
objetivo culpabilizar o professor; atestar que as dificuldades que se colocam no cotidiano escolar ou afirmar que o
panorama educacional que apresentamos nas páginas anteriores assim sejam unicamente em função de uma suposta
falha na formação inicial e continuada. O debate que propomos caminha em outra direção. Entendemos que a
escola é uma instituição que se produz no contexto social em que está inserida. Assim, professores e gestores são
convocados a atender às demandas desse espaço e tempo em que estamos vivemos. Da mesma forma, as famílias
(que também são alvo constante da culpabilização quando se trata de temas como o fracasso escolar, as dificuldades
de aprendizagem, a inclusão…) precisam atender às exigências de um sistema em que o trabalho e o consumo são os
valores que estão no topo da lista. Nesse cenário, talvez seja importante questionar: que espaços e tempos “sobram”
para a infância?
Revisar nossos conceitos do que seja um desenvolvimento ideal, um aluno ideal, a família ideal, talvez possa
nos ajudar a enxergar, em alguns momentos, a infância como potência, como descoberta, experimentação, criação,
invenção. Infância como espaço e tempo da diferença. E aí talvez seja possível construir práticas em que a diferença
marcada como desvio dê espaço para a diferença como singularidade, como o que nos constitui únicos.
Essa nova postura diante da infância e da diferença não nos exime das nossas responsabilidades como
professores, mas talvez nos ajude a perceber as relações escolares de forma mais leve. Frente a tantas exigências
por um desempenho excelente, há momentos em que não nos permitimos ver os avanços, as conquistas. Fomos
acostumados a valorizar em demasia o “erro”, no sentido de entendê-lo como fracasso; assim, acabamos por não
percebê-lo como um componente essencial do processo de ensino e de aprendizagem, que indica a necessária
experimentação do aluno em direção às suas formas únicas de se relacionar com o conhecimento.
Ao finalizarmos (por ora) a discussão aqui proposta, reafirmamos que, ainda que tenhamos aprendido
a compreender a infância a partir de critérios de normalidade bem delimitados, acreditamos que seja possível o
estabelecimento de outras formas de compreendê-la. Formas menos determinadas por representações que a
caracterizem e/ou a relacionem com as identidades já inventadas (BORGES, 2019). Ao questionar não a criança
que não se sujeita à norma, mas sim as normas a partir das quais crianças são classificadas, tornamo-nos capazes
Assim, ressaltamos que esse convite à produção de outras maneiras de significar a infância e a diferença
pode produzir a escola como um espaço “mais flexível, menos definidor, menos estruturado, menos linear, menos
cronológico, menos domesticador e menos normalizador” (BORGES, 2019, p. 156). Nessa escola, a infância, tão
cheia de vida, de potência, que tem tanto para dividir e somar conosco, não precisa ser silenciada, contida com
medicamentos. Ela precisa ser vista como de fato é. Ao invés de seguirmos na busca por essa criança que idealizamos
no Projeto Pedagógico da Escola, que tal conhecermos melhor essa criança real que se coloca diante de nós?
Referências:
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Educar a diferença; educar na diferença; educar para a diferença passaram a ser palavras de ordem em
planos de educação de órgãos governamentais, em projetos políticos pedagógicos de escolas, em projetos de
organizações não governamentais. (GALLO, 2009, p.7)
Como lidar com a diferença? Essa tem me parecido ser a questão que vem norteando a organização das escolas
contemporâneas. A preocupação em se tornar uma escola inclusiva, que atenda a todos em sua diferença, vem
ocupando boa parte do tempo dos gestores, professores e especialistas envolvidos com o cotidiano escolar. Essa
preocupação não é uma exclusividade dos sistemas públicos de ensino, mas envolve também instituições privadas,
ONG’s, APAE’s, etc... Diante de tamanha preocupação, de investimentos que procuram dar conta de recursos
arquitetônicos e humanos, e também da proliferação de políticas públicas pró-inclusão, vemos ser desenhado o
cenário da inclusão nos dias de hoje. Além disso, percebemos que nesse cenário a escola aparece como uma das
principais instituições com a responsabilidade de ‘fazer acontecer a inclusão’. O que antes estava mais direcionado
e praticamente restrito à escola de ensino fundamental, agora ocupa um espaço considerável nas pautas de discussão
em todos os níveis e modalidades da educação. É da, e na, escola – seja na educação básica, na educação profissional
ou integrada – que aparecem possibilidades e necessidades de trabalhar com esse sujeito dito anormal, para que ao
sair da escola, ele possa conviver em sociedade e, ao mesmo tempo, a sociedade possa conviver com ele. Vemos
que está depositada na escola a esperança de preparar esse sujeito anormal para viver em sociedade e de preparar
a sociedade para receber e (con)viver com esse sujeito. Essa necessidade de incluir, de conviver com o diferente,
típica dos nossos tempos, não é algo que surge nos dias de hoje, é sim um processo que acompanhou e permeou a
invenção da instituição escolar.
Para discutir tais questões, mesmo que brevemente no espaço que este texto me oferece, pretendo percorrer
o seguinte caminho: inicialmente uma discussão rápida sobre a invenção da escola na Modernidade para depois
tratar sobre a necessidade que se coloca, ainda no século XVIII, de educar a todos em uma escola aberta para todos.
Feito isso, discuto sobre o espaço que os alunos ditos anormais ocuparam na escola, ao longo de sua história e a
mudança de ênfase que acontece da Especial para a Educação Inclusiva como mais um formato para a já conhecida
necessidade de educar a todos na escola. Para finalizar este texto – mas não a discussão – trago algumas questões
acerca das políticas de inclusão enquanto mobilizadoras do processo de inclusão contemporâneo, fazendo da escola
uma importante maquinaria que coloca em funcionamento a governamentalidade neoliberal, entre tantas outras
formas, por meio da inclusão. Para finalizar, trago uma discussão sobre a relação ao mesmo tempo problemática e
produtiva que se estabelece atualmente entre a educação profissional e a inclusão.
A Modernidade, época em que a escola se constitui, pode ser pensada como o tempo em que se reflete a ordem.
Um tempo onde não há espaço para a ambivalência e para o caos. Um tempo de classificação e segregação. Muito
mais do que uma época, a Modernidade pode ser entendida no contexto desta discussão, como um estilo de vida,
uma maneira de estar no mundo, onde o tempo é linear e controlado pelo relógio (ACORSI, 2007).
Em sua busca constante pela ordem, a Modernidade não economiza esforços no combate à ambivalência, à
desordem. Através de um movimento constante de classificação, segregação e separação a utopia moderna de um
É nesse cenário que se inventa a escola. Uma instituição que representa a possibilidade de manutenção da
ordem, já que é capaz de oferecer aos sujeitos, ou melhor, às crianças e jovens, o conhecimento e as habilidades
necessárias para a construção de um “mundo perfeito”. Ou seja, segundo o projeto moderno de educação, é através
da passagem pela escola que serão formados os bons cidadãos (ACORSI, 2007). Respondendo a essa necessidade de
ordem que se colocava a partir do final do século XVII e também à necessidade de preparar novos sujeitos para uma
nova sociedade, a escola irá substituir a aprendizagem pela observação como meio de educação. As crianças serão
separadas dos adultos e colocadas nessa instituição onde, através do processo de escolarização, abandonarão sua
condição selvagem e se transformarão em seres civilizados. Segundo Ariès,
[...] isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada com os adultos e de aprender a vida diretamente com
eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e colocada numa
espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou então
um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se
estende até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização. (1981, p.11)
Estamos diante de duas formas de enclausuramento. A primeira delas, que Ariès nomeia como quarentena,
e que tem como objetivo ensinar às crianças para que posteriormente possam viver em sociedade, e a segunda,
aquela destinada aos loucos, pobres, prostitutas, etc.. Trata-se aqui de uma clara separação entre normais e anormais,
ou então, entre quem tem o direito de estar na escola e quem deve frequentar outras instituições, destinadas
especialmente ao atendimento social. Essa divisão talvez se justifique pela necessidade moderna de manter a ordem
e a pureza.
Comenius, ao observar as escolas de sua época, escreve a Didática Magna considerada como “o livro da
Pedagogia” (NARODOWSKI, 2001). A Didática Magna será, portanto, uma resposta de Comenius “ao desafio que
a Modernidade colocava acerca da educação do corpo infantil” (NARODOWSKI, 2001, p.14). O “ideal pansófico”,
ou ideal educativo proposto por Comenius, traz consigo uma pretensão totalizadora: ensinar tudo a todos. Para ele, a
utopia comeniana – ensinar tudo a todos – só é possível na medida em que “o homem é dotado de educabilidade, isto
é, ele é educável por natureza” (NARODOWSKI, 2001, p.26). Partindo desse pressuposto, Comenius irá afirmar que
ninguém pode ficar de fora, pois o ensino deve ser destinado a todos. Mas quem são todos para Comenius? Ao longo
da Didática Magna deixa claro que se refere em primeiro lugar a crianças de todas as idades, em segundo as crianças
dos sexos masculino e feminino e em terceiro lugar a todas as crianças de todas as classes sociais. Em suma: ao
defender uma escola para todos, o que representou uma importante ruptura para a época, Comenius determinou
quais categorias de pessoas fazem parte desse todo. São elas: homens e mulheres, ricos ou pobres, de todas as
idades. Isso se justifica pela afirmação de que todos os seres humanos são dotados do princípio de educabilidade.
[...] é tão raro achar seres completamente incapazes de entendimento quanto seres aos
quais falte, pela natureza algum membro. De fato a cegueira, a surdez, a coxeadura ou a má
saúde muito raramente nascem com o homem; em geral são adquiridas por nossa culpa. Do mesmo
modo, a estupidez cerebral extrema. (COMENIUS, 1997, p.30)
Nesse contexto, é possível perceber que, para Comenius, os anormais, ou os “ineptos” como ele mesmo nomeia,
não representam mais do que exceções (NARODOWSKI, 2001). E é exatamente por se constituírem como exceções,
como desvios da natureza, que segundo Comenius, não há motivos para nos ocuparmos com eles. Ao afirmar, na
citação anterior, que raramente o homem nasce com deficiências, mas as adquire por sua culpa, ele responsabiliza o
próprio homem pela sua condição, reforçando novamente o princípio da educabilidade como algo natural. Em suma:
[...] a viabilidade do ideal pansófico reside na confiança na educabilidade do homem, dado que
os escolarizáveis são a maioria. E como os sujeitos não educáveis são portadores das diferenças
improváveis – diferenças que não constituem a natureza humana –, eles portanto sic formam um
grupo pelo qual não é preciso nos preocuparmos. (NARODOWSKI, 2001, p.81-82)
A partir desta rápida incursão pela Didática Magna, fica claro o lugar que os anormais ocuparam no cenário
educativo tanto no século XVII, época em que Comenius escreve esse livro, quanto nos dois séculos seguintes.
Estiveram sempre fora. Fora da escola, fora do convívio social, porém, atendidos por instituições especializadas.
Ao longo desse período vimos se consolidar uma rede de especialistas para o atendimento desses sujeitos. Por isso,
o fato de estarem fora não caracterizava mais seu esquecimento ou apagamento como acontecia, por exemplo,
com os leprosos na Idade Média, quando os doentes tinham sua morte simbólica decretada publicamente e eram
banidos das cidades e deixados à espera da morte. Diferentemente da exclusão negativa, o que vemos se estabelecer
na Modernidade é todo um processo de inclusão pautado pela perspectiva da reclusão. Os anormais não são mais
banidos da cidade e abandonados à própria sorte. Ao contrário, são enclausurados em instituições de atendimento e
correção – aquelas que Foucault (1987) chamou de instituições de sequestro – para, quem sabe, quando estiverem
“recuperados” voltarem ao convívio social.
A necessidade de correção dos sujeitos para “devolvê-los” ao convívio social aparece como o reflexo da arte
liberal de governar, que tem como objetivo o governo da sociedade. Essa preocupação liberal com o governo de
todos, tem como objetivo construir “uma sociedade formada por sujeitos que são, cada um e ao mesmo tempo,
objeto (governado de fora) e parceiro (sujeito auto-governado)” (VEIGA-NETO, 2000, p.187).
É através da pretensão de uma máxima governamentalização do Estado, impulsionada pela arte liberal de
governar, que a escolarização de massas aparece como uma questão importante. Frente a esse contexto, vemos se
instituir no Brasil, já no século XX, um importante deslocamento. Estimulado pela necessidade de escolarização de
todos, se estabelecem as primeiras iniciativas de escolarização dos anormais em escolas comuns. Inicialmente, sob
a denominação de excepcionais, esses alunos foram matriculados em escolas comuns, porém, em classes especiais.
Aqueles que não apresentavam condições para tal, continuaram matriculados em escolas especiais. Essa divisão
entre Educação Especial e Educação Comum permaneceu por muito tempo. Nesse período foram intensificados
os esforços para atender adequadamente essas crianças e jovens, mantendo-as ao mesmo tempo juntas – na mesma
escola –, mas separadas – em classes especiais – daquelas consideradas normais.
Por volta da década de 1990, assistimos a uma proliferação de documentos legais, no âmbito nacional e
internacional, pró-inclusão. Embora muitos deles não tragam estampada esta palavra, trata-se de documentos que
asseguram os direitos das pessoas com deficiência à saúde, ao mercado de trabalho, ao lazer, à educação, para citar
alguns exemplos. Toda essa proliferação discursiva e material que reafirma os direitos de todos à educação provoca
efeitos imediatos na escola, reforçando a ideia de uma ‘escola para todos’.
Há, porém, um grande e importante deslocamento nessa lógica. Passamos da escola para todos comeniana, onde
cabiam três categorias de pessoas – homens, mulheres, ricos e pobres de todas as idades – para uma escola para todos
aberta à diversidade, onde cabem todos aqueles aos quais podemos nomear. Outro deslocamento importante que se
coloca trata da própria definição dos sujeitos anormais. Explico: o que quero dizer não é que a definição normal e
anormal tenha mudado, o que muda é o seu contexto de referência. O ponto de referência para isso continua sendo
a posição do sujeito no interior da norma, porém, diferentemente do conceito de norma com a ênfase disciplinar,
passamos agora ao entendimento de um conceito definido a partir de uma ênfase na seguridade. Isso significa que a
norma passa a ser definida a partir do normal, ou seja, o normal aparece em primeiro lugar e a norma – ou normas –
são definidas a partir dele como campo de referência.
Temos, portanto aqui uma coisa que parte do normal e que se serve de certas distribuições consideradas,
digamos assim, mais normais que as outras. [...] São essas distribuições que vão servir de norma. A norma está
em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro, e a norma, se deduz dele, ou é
a partir desse estudo das normalidades que a norma se fixa e desempenha seu papel operatório (FOUCAULT,
2008, p.83)
Partindo do conceito apresentado por Foucault na citação anterior, é possível perceber que o movimento que se
opera a partir da norma é o de normalização, e não mais de normação como na ênfase disciplinar. Ou seja, a norma
aqui tem por função diminuir ao máximo as distribuições consideradas “menos normais que as outras”. Essa questão
é importante para entendermos o processo de normalização que se opera no interior das instituições, neste caso,
a escola. “Nas operações de normalização – que implicam tanto trazer os desviantes para a área da normalidade,
quanto naturalizar a presença de tais desviantes no contexto social onde circulam – devem ser minimizadas certas
marcas, certos traços e certos impedimentos de distintas ordens”. (LOPES, 2009a, p.160)
[...] parece ser necessário que a sociedade defenda-se das diferenças, contenha-as num padrão de normalidade,
para que possam ser administradas, governadas, para que não fujam ao controle, uma vez que não teríamos
como saber as consequências de um acontecimento dessa natureza. (GALLO, 2009, p.9)
E para evitar que a diferença fuja do controle, outro deslocamento no conceito de anormal aparece: o alargamento
da própria categoria dos anormais. Isso quer dizer que a questão da anormalidade se descola da deficiência, da
marca corporal, moral ou intelectual. Na escola aberta à diversidade se proliferam as categorias de sujeitos a
serem incluídos, confirmando o alargamento da categoria da anomalia. São os deficientes, os pobres, os negros, os
homossexuais, os imigrantes, os tímidos demais, os hiperativos, os sindrômicos e todos mais que pudermos nomear.
Esse imperativo da escolarização de massas, assim como o da universalização da inclusão que ganha força
no Brasil na década de 1990, parece se constituir como um princípio caro ao neoliberalismo. Diferente da arte
liberal de governar, discutida de forma breve neste texto, o neoliberalismo não se coloca mais como um inimigo
do Estado, porém, defende a intervenção mínima do Estado, apenas no gerenciamento dos recursos fundamentais,
entre eles, a escola. Através de um deslocamento no objetivo de governo – a sociedade para os liberais –, o
neoliberalismo passa a se preocupar com o governo dos indivíduos. Pois, nessa nova racionalidade que se
estabelece é necessário, pois, que se produzam também novos tipos de sujeitos, capazes de se adaptar a ela. Nesse
sentido, a escola passa a ser crucial para o funcionamento deste novo tipo de sociedade. Essa outra escola, para
esse outro modelo de sociedade, precisa ser inclusiva, pois para manter em funcionamento o mercado, princípio
pelo qual se pauta a arte neoliberal de governar, é preciso da participação de todos os sujeitos. Assim, a inclusão
aparece também como uma possibilidade de garantir o sucesso de um governo sobre cada indivíduo. Ao proclamar
a importância de uma escolarização de todos,
[...] a implementação de políticas públicas que procuram modernizar a escola (leia-se empresariar) a escola e
expandir o acesso a ela, bem como intensificar ou aumentar a permanência da criança [e o jovem]1 nela, são
iniciativas que confirmam o quanto a escola é ainda considerada importante (VEIGA-NETO, 2000, p.205).
Frente a valorização do papel da escola, especialmente, quanto à valorização de cada indivíduo em função de
sua potencialidade de consumo e competição, princípios caros ao neoliberalismo, me pergunto: de que inclusão
estamos falando?
Derivada do latim includere, incluir tem como primeiro significado “inserir, pôr, colocar para dentro”.
Considerando apenas esse significado, incluir resume-se, então, a abrir os portões da escola para todos, colocando
todos para dentro. É a partir de tal entendimento que penso ser possível localizar a problemática da inclusão escolar
nos dias hoje, na medida em que, em alguns casos, incluir tem se resumido apenas a estar junto em um mesmo
espaço. Diferentemente da divisão que se estabelecia entre classes especiais e classes comuns, a escola inclusiva
se pauta por esse princípio, pois na maioria dos casos incluir tem se resumido a fazer com que todos esses sujeitos
estejam no mesmo espaço. De certa forma, isso vem sendo reforçado pelas estatísticas que tratam do contexto
escolar. Algumas dessas estatísticas apontam o crescimento do número de matrículas de alunos com deficiência
na escola regular, porém ao mensurar apenas o acesso dos chamados “alunos de inclusão” à escola regular, não
consideram a permanência ou a aprendizagem desses alunos.
Segundo Fabris e Lopes (2003), estar junto constitui-se em uma perversa estratégia de exclusão, pois não
garante condições de aprendizagem aos sujeitos. Ao contrário disso, marca a diferença entre eles e faz da divisão
1 Acréscimos meus.
A lógica binária na qual se apoia o processo de disciplinamento e normalização proposto pela instituição escolar
não permite que se fale apenas em inclusão, já que, colado a ela e, por que não dizer, de forma simultânea, se
estabelece também um processo de exclusão. Isso que vemos acontecendo em muitas escolas em nome da inclusão
trabalha para reforçar a ideia de que todos devem ter acesso à escola, mesmo que esse acesso não lhes garanta
a aprendizagem, reduzindo-se, assim, a educação desses sujeitos à sua socialização. Nesse momento, inclusão e
exclusão passam a ser duas faces de uma mesma moeda, e por isso penso que seja possível reuni-las aqui, assim
como outros autores já vem fazendo, em uma única palavra: in/exclusão. Conforme já comentei anteriormente, o
ideal de escola para todos, defendido por Comenius na Didática Magna e reconfigurado na escola contemporânea
através do discurso da “escola para todos”, aparece como uma possibilidade para reforçar a ideia de in/exclusão que
perpassa o processo de inclusão escolar.
Frente à discussão realizada até aqui, acredito que seja possível afirmar que o ideal pansófico de ensinar tudo a
todos em uma escola aberta a todos vem ao encontro da utopia da inclusão contemporânea. Ao colocar lado a lado a
inclusão e a exclusão não como princípios distintos, mas sim como princípios amarrados em uma mesma ordem, a
inclusão passa a ser vista como o ponto de chegada do processo educativo.
[...] estes conceitos fundem-se e proclamam o ‘medo da diferença’, assim como o apagamento de tudo que
possa ser considerado ambíguo e, conseqüentemente sic, possa comprometer a clareza de quem ocupa o lado
de dentro e de quem ocupa o espaço do lado de fora. (2003, p.2)
A marcação das posições que os sujeitos ocupam no espaço escolar, e também fora dele, faz com que se
coloquem e sejam colocados uns em oposição aos outros, definindo e marcando suas diferenças. Nesse contexto,
a diferença, entendida como ambivalência, como algo que perturba a ordem, deve ser evitada, pois se torna uma
ameaça. A diferença passa, então, a ser nomeada para que possa ser corrigida ou evitada, punida, registrada ou até
mesmo apagada. Mais do que isso, as diferenças são classificadas e aparecem como mais um ponto apresentado
pelas estatísticas que acabam contribuindo para materializar o pretenso sucesso da inclusão escolar na escola
contemporânea.
Os mesmos esforços pela abertura da escola para todos são empreendidos para a normalização dos sujeitos,
agindo sobre seu corpo com um objetivo maior: moldar sua alma2. A escola, como espaço inventado para o
disciplinamento dos sujeitos, torna-se responsável por mais esse processo, o de produção de um determinado tipo
de sujeito, aquele que a sociedade espera. Ninguém pode ficar fora desse processo. O disciplinamento, a correção, a
normalização daqueles sujeitos marcadamente diferentes que ocupam um espaço cada vez maior na escola passa a
dar o tom das práticas pedagógicas que nelas se engendram, pois é na escolarização que reside sua possibilidade de
civilização. Dessa forma, a inclusão de todos na escola pretende garantir a formação de uma população civilizada,
2 Ao utilizar aqui o conceito de alma, faço-o na perspectiva foucaultiana, que entende que a alma “[...] existe, que tem uma realidade, que é
produzida permanentemente, em torno da superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os punidos
– de uma maneira geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre
os que são fixados a um aparelho e produção e controlados durante toda a existência [...] é o elemento onde se articulam os efeitos de
um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber
reconduz e reforça os efeitos de poder [...]” (Foucault, 1987, p.28-29).
Diante disso, penso que seja possível entender a inclusão como um imperativo de Estado que se fortalece no
contexto da governamentalidade neoliberal. Digo isso porque esse entendimento se afasta tanto da exclusão negativa
da Idade Média, quanto do princípio da inclusão pela reclusão da Modernidade e aponta para um entendimento
de inclusão que está na ordem da circulação e da participação dos sujeitos. Ou seja, colocar aqueles sujeitos que
antes estavam reclusos em circulação na sociedade. Colocar esses sujeitos “dentro” implica necessariamente fazê-
los trabalhar, produzir, consumir, competir. Essa circulação social e essa participação no jogo econômico neoliberal
só é possível para sujeitos capazes de se autogovernar. É aí que vemos a escola se instituindo como o espaço
ideal de inclusão. É através da escolarização de todos, de um investimento em sua socialização, na produção de
competências e habilidades, especialmente no seu disciplinamento, que serão formados os sujeitos capazes de jogar
o jogo neoliberal. A passagem de todos pela escola aparece como condição fundamental para o funcionamento
da governamentalidade neoliberal. Garantindo o acesso de todos à escola, garante-se também a manutenção da
racionalidade neoliberal. Afinal, um dos principais objetivos da escola, desde sua invenção, é a formação de um
determinado tipo de sujeito para uma configuração social específica. Muda-se a configuração social, porém a escola
segue sendo uma importante, senão a mais importante, maquinaria que faz funcionar esse outro modelo social.
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Os discursos e práticas de inclusão estão presentes no cotidiano escolar há décadas. Desde meados de 1990,
com políticas internacionais1 que indicaram a necessidade de universalização do acesso à escola comum, é crescente
a preocupação em atender a metanarrativa da “escola para todos”. No Brasil, a preocupação com a inclusão escolar
aparece, de forma mais contundente, a partir dos anos 2000, articulando várias frentes de ação para efetivar a inclusão
escolar em todo território nacional: proliferação de políticas, formação de gestores e professores, investimentos em
espaços específicos, investimentos financeiros em escolas públicas2.
Mesmo com tais investimentos e tentativas de “tornar comum” a inclusão nos espaços escolares, não é raro
encontrar discursos que acusam a inclusão como algo ruim, oneroso e difícil de se realizar, bem como discursos
que defendem a inclusão como uma forma de realizar mudanças significativas na estrutura escolar e nas formas de
se relacionar com esse “outro” diferente. Nessa relação de forças, optamos por “não escolher um dos lados”, pois
acreditamos que posições binárias não favorecem uma discussão potente para pensar no que podemos avançar em
relação às práticas escolares que intencionam favorecer a aprendizagem de todos e de qualquer aluno.
Como profissionais das áreas da Educação e Saúde, somos interpeladas e acionadas, cotidianamente, para discutir
os processos que envolvem a inclusão de alunos com deficiência no sistema escolar. Importante destacar que ao
falarmos de deficiência estamos nos referindo a limitações físicas, mentais, e dificuldades de outras ordens, tais como
dificuldades de conduta e comportamento. No trabalho realizado na Clínica Universitária Regional de Educação e
Saúde do Vale do Taquari/RS, rotineiramente recebíamos referências para atendimento de crianças que apresentavam
deficiências e/ou dificuldades atitudinais ou na conduta, no ambiente educacional. Nos encaminhamentos recebidos,
era visível que as escolas buscavam laudos ou prescrições que tornassem possível a convivência de tais sujeitos no
contexto escolar. Assim, ao iniciar o acompanhamento dos sujeitos encaminhados ao serviço e realizar reuniões
sistemáticas com as escolas para discutir as demandas apresentadas, percebíamos que os professores buscavam algo
para além de um laudo, de um diagnóstico ou de uma medicação. As narrativas apresentadas demonstravam que além
do aluno, os próprios professores necessitavam de auxílio para resolver demandas e, até mesmo, para compartilhar
suas frustrações e pensar em novas práticas pedagógicas.
Movidas por reflexões que estiveram presentes nesse contexto de trabalho, compreendíamos a potência desses
encontros e como produziam articulações importantes para o cuidado do sujeito em atendimento na escola e
no serviço. Tais professores demonstravam desejo de pensar na inclusão: contudo, era frequente o discurso dos
professores de que não conseguiam se aproximar dos serviços de saúde ou dos profissionais que elaboravam laudos
e prescreviam medicamentos às crianças, para discutir com estes as estratégias de cuidado e as possibilidades de
inclusão desses sujeitos no contexto escolar.
1 Como exemplos de políticas internacionais que versam sobre a universalização ao acesso à escola, citamos a Declaração Mundial sobre
Educação para Todos (UNESCO, 1990) e a Declaração de Salamanca (UNESCO,1994).
2 No Brasil, a partir da década de 2000, encontramos uma proliferação de políticas públicas e programas direcionados à operacionalização
e efetivação da inclusão escolar. Entre elas, apontamos: Programa Educação Inclusiva: Direito à Diversidade (BRASIL, 2005a), Programa
Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais (BRASIL, 2005b), Decreto nº 6253 (BRASIL, 2007).
O cenário acima descrito não é uma exceção na rotina escolar de instituições que atendem alunos com
deficiência. A cena, muito familiar a todos nós que atuamos de forma direta ou indireta nas escolas, provoca-nos
a discutir as necessárias articulações que devem (ou deveriam?) ser estabelecidas como forma de criar estratégias
pedagógicas para o atendimento/acompanhamento dos alunos com deficiência em escolas do ensino regular.
Dessa maneira, o presente texto objetiva problematizar a articulação entre educação e saúde com a rede de
apoio como estratégia para pensarmos os processos de inclusão escolar. Assim, dividimos o texto em duas partes: na
primeira apresentamos um entendimento sobre o conceito de inclusão. Não nos propomos a questionar os direitos
conquistados através de lutas históricas de grupos minoritários, ou a reafirmar o processo de universalização à escola.
Buscamos apresentar o conceito de inclusão, ou melhor, de “in/exclusão” (LOPES; FABRIS, 2013), como algo
produzido e necessário em nossa atualidade, produzindo efeitos em todos os sujeitos. Na segunda parte, discutimos
as articulações, ou falta delas, entre educação e saúde, que se estabelecem para pensar os processos de in/exclusão
escolar. Nas considerações finais, retomamos as principais ideias apresentadas para tensionar outros modos de olhar
para inclusão escolar na atualidade.
As discussões sobre inclusão nos interpelam de diferentes formas na atualidade. Parece impossível estar ou
ficar alheio a tais discussões. Assim, entendemos que os discursos e práticas que dão visibilidade aos processos de
inclusão capturam a todos, sem distinção. Nesse sentido, a inclusão torna-se um imperativo do qual dificilmente
conseguimos escapar. Lopes e Rech (2013, p. 212) dizem que a “inclusão como imperativo implica, pelo seu caráter
de abrangência e de imposição a todos, que ninguém possa deixar de cumpri-la, que nenhuma instituição ou órgão
público possa dela declinar”.
Na atualidade, soa como obsceno as posições contrárias à inclusão, apesar de diferentes sujeitos apontarem
as dificuldades deste processo. Porém, acreditamos que, para além de uma marcação binária que festeja ou acusa
os processos de inclusão, podemos entender a inclusão como algo fabricado em nosso tempo, e que possui um
entendimento polissêmico. Sabendo dessa condição polissêmica da palavra inclusão, assumimos com Veiga-Neto e
Lopes (2011) seus diferentes entendimentos:
A inclusão pode ser entendida como ― um conjunto de práticas que subjetivam os indivíduos a olharem para
si e para o outro, fundadas em uma divisão platônica das relações; também pode ser entendida como uma
condição de vida em luta pelo direito de se autorrepresentar, participar de espaços públicos, ser contabilizado
e atingido pelas políticas de Estado. [...] pode ser entendida como conjunto de práticas sociais, culturais,
educacionais, de saúde, entre outras, voltadas para a população que se quer disciplinar, acompanhar e
regulamentar. (VEIGA-NETO; LOPES, 2011, p. 126).
A emergência da inclusão escolar a partir da década de 1990, através de políticas públicas, mobilizou tensões
que permanecem na atualidade e que estão longe de ser minimizadas. Assim, observamos a crescente preocupação,
no caso das instituições escolares, em produzir práticas “efetivamente” inclusivas. A produção de tais ações está
enredada em uma lógica que articula diferentes estratégias para constituir e colocar em circulação um sujeito que
Nessa conjuntura, é importante destacar que, ao viabilizar a participação de todos, em diferentes espaços,
o conceito de inclusão permite outra possibilidade de entendimento. Pensar a inclusão mediante a noção de in/
exclusão permite “o entendimento de que a inclusão se constituía também pelas práticas de exclusão”. (LOPES;
FABRIS, 2013, p. 19). Em outras palavras, a noção de in/exclusão dá visibilidade à necessidade de fazer com que
todos se movimentem e participem das diferentes relações que se estabelecem na atualidade, de acordo com suas
possibilidades. Assim, nesse jogo permanente de “in/exclusão”, ora estamos incluídos em determinados discursos e
em determinadas práticas, ora estamos excluídos em tais processos.
Em relação às práticas escolares, é observável uma ampla divulgação das “experiências inclusivas”.
Comemoram-se práticas pedagógicas que dão condições para que alunos com deficiência permaneçam e aprendam
nas instituições escolares. Não pretendemos desconsiderar tais experiências de sucesso; porém, queremos enfatizar
que tais práticas de inclusão também produzem exclusão. Ao incluir conteúdos em um currículo para determinado
aluno, estamos retirando outros conteúdos; ao incluir algumas formas de avaliar, retiramos outras; ao incluir o aluno
com deficiência em espaços de atendimento direcionados para sua condição, retiramos o mesmo de outros espaços
comuns. E assim sucessivamente.
Tais escolhas são necessárias para pensar no atendimento às necessidades educacionais dos alunos com
deficiência. E por isso não entramos no mérito de julgar se isso pode ser considerado bom ou ruim. O fato é que
nesse movimento de “in/exclusão”, dificilmente chegamos a uma “escola inclusiva”. Lopes e Fabris destacam que:
Denominar a educação de inclusiva nos parece uma redundância, pois educar significa trazer os “recém-
chegados” para a cultura que vivemos, para um pertencimento aos diferentes grupos culturais; familiar,
escolar, social, etc. A educação assim entendida é na sua gênese inclusiva, mas os processos da população é
que passaram e passam por processos de segregação, exclusão, em diferentes graus e tempos diferenciados
(LOPES; FABRIS, 2013, p. 112).
Para Hattge e Klaus (2014) não existe uma “escola inclusiva”, mas sim processos de in/exclusão vivenciados
permanentemente por todos os sujeitos envolvidos no processo educativo. Assim, todas as situações em que um
sujeito se desvia, mesmo que por alguns instantes, do ideal de normalidade, instituído nas relações escolares, este
passa a experimentar processos de exclusão (HATTGE & KLAUS, 2014). Por isso, é necessário reflexões constantes
acerca dos processos de inclusão no ambiente escolar, para que se perceba as reais necessidades do sujeito, criando
práticas que correspondam a suas expectativas.
Hattge e Klaus (2014) indicam que cabe a Pedagogia criar e organizar estratégias que consigam acolher as
demandas de aprendizagem individuais e sociais vivenciadas pelos sujeitos, utilizando-as a seu favor, para que se
tornem processos de ensino e de aprendizagem permanente nos contextos de sala de aula. Porém, com a emergência
da inclusão escolar, as funções da escola ampliam-se e estendem-se para além das práticas consideradas pedagógicas
e ligadas ao ensino e a aprendizagem de conteúdos formais, próprias de sua constituição.
Na atualidade, os processos de inclusão escolar interpelam serviços de diferentes áreas para dar conta das
demandas dos alunos com deficiência. Nesse sentido, Silva e Maciel (2005) argumentam que, sem serviços de apoio,
não há inclusão e que esta, por sua vez, está atrelada à implantação de serviços de apoio. Nas palavras das autoras:
“a certeza é de que incluir exige, sim, serviços e recursos de apoio complementar tanto para os professores quanto
para os alunos”. (SILVA; MACIEL, 2005, p. 109).
Dando sequência às nossas reflexões, nos propomos na próxima sessão a discutir as relações entre educação e
saúde como forma de pensar os processos de in/exclusão escolar.
Redes de apoio: articulações possíveis e necessárias para pensar e operacionalizar a inclusão escolar
Percebemos que cada vez mais, com o “advento” da inclusão escolar, a instituição escola tem solicitado diferentes
formas de apoio e a intervenção de outros saberes – médicos, psicológicos e outras áreas da Saúde e Educação – para
garantir a permanência e a aprendizagem dos alunos com deficiência. Nesse sentido, Mendes, Vilaronga e Zerbato
(2014) salientam que, na atualidade, há um entendimento da “concepção de política de inclusão escolar enquanto
rede de serviços” (p. 18). As autoras acrescentam que ao mesmo tempo em que as políticas educacionais indicam que
o processo de escolarização de alunos com deficiência deva ocorrer em classes comuns de ensino, tais documentos
fazem referência “aos serviços de apoio para a inclusão escolar”. (MENDES; VILARONGA; ZERBATO, 2014, p.
26).
Nessa discussão as autoras alertam para duas problemáticas que emergem no entendimento e funcionamento
das redes de apoio. A primeira problemática se refere à necessidade de pensar diferentes tipos de serviços e redes
de apoio, uma vez que as necessidades dos alunos são de ordens diversas e muitas vezes a inclusão não se volta
especificamente a deficiência, mas a outras dificuldades escolares apresentadas pelos alunos. Para as autoras:
[...] uma política efetiva requer uma rede de diferentes tipos de serviços de apoio, porque as necessidades
das crianças e jovens da população-alvo da Educação Especial são variadas em natureza e intensidade, não
havendo nenhum tipo de apoio que sirva como modelo de tamanho único para apoiar toda essa população.
(MENDES; VILARONGA; ZERBATO, 2014, p. 24).
A segunda problemática indica que a oferta de serviços de apoio coloca o “problema” da inclusão centrado nos
alunos com deficiência e desresponsabiliza a escola em operar com certas mudanças necessárias para a educação
desses sujeitos (MENDES; VILARONGA; ZERBATO, 2014). Conforme as autoras, essa forma de entendimento:
[...] reforça o pressuposto de que o problema está no aluno, e não na escola. O que há de especial neste sistema
de apoio, incluindo o aluno, seu professor e seu ensino, fica restrito ao ambiente especializado e segregado da
sala de recursos enquanto a classe comum permanece inalterada. A abordagem de atendimento é funcionalista
porque se centra em compensar supostos déficits no aluno com deficiência. (MENDES; VILARONGA;
ZERBATO, 2014, p. 29).
Percebemos que o funcionamento dos serviços e redes de apoio são, em sua maioria, voltados ao atendimento
do aluno com deficiência: tais sujeitos são encaminhados a diferentes especialistas para que sejam produzidos
diagnósticos, laudos, prescrições que poderiam auxiliar a permanência e garantir determinadas aprendizagens no
espaço escolar. E é importante ressaltar que tais formas de apoio organizadas em serviços oferecidos por diferentes
profissionais e fora da escola são importantes. Contudo, cabe destacar que os atendimentos especializados destinados
ao aluno com deficiência parecem não ser suficientes para organizar estratégias que favoreçam o desenvolvimento
escolar dos alunos com deficiência. É recorrente encontrar narrativas dos professores indicando o acesso dos alunos
A equipe [multiprofissional], não raro, ao invés de estar desde o princípio acompanhando o trabalho do professor
com toda a turma, é utilizada como último recurso para encaminhar somente aqueles alunos com dificuldades
extremas em relação à aprendizagem. Neste sentido, o papel da escola fica restrito ao encaminhamento para
serviços outros que, via de regra, só reforçam a individualização do problema e desresponsabilizam àquela em
relação às dificuldades do aluno. (BRASIL, 2005c, p. 09)
Conforme alguns documentos normativos educacionais, é possível indicar que as redes de serviço e de apoio
ligados à àrea da Saúde, não necessitam, exclusivamente, centrarem-se no atendimento ao aluno com deficiência. Ao
contrário, tais normativas apontam a necessidade de interlocução e articulação entre Educação, Saúde, Assistência
Social para favorecer o desenvolvimento integral de tais sujeitos:
Desenvolver ações articuladas e integradas, entre as áreas da educação, ação social, saúde e trabalho,
para os processos de avaliação/acompanhamento, diagnóstico diferencial, atendimento educacional e
preparação para o trabalho. (BRASIL, 1994, p. 57, grifos nossos).
Estimular a criação de centros multidisciplinares de apoio, pesquisa e assessoria, articulados com instituições
acadêmicas e integrados por profissionais das áreas de saúde, assistência social, pedagogia e psicologia,
para apoiar o trabalho dos(as) professores da educação básica com os(as) alunos(as) com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. (BRASIL, 2014, s/p, grifos
nossos).
[...] oferta de rede de serviços articulados, com atuação intersetorial, nos diferentes níveis de complexidade,
para atender às necessidades específicas da pessoa com deficiência; (BRASIL, 2015, s/p, grifos meus).
Nesse sentido, diferentes documentos vinculados à área da saúde também apontam a necessidade de interlocução
e articulação entre educação e saúde para atender às demandas dos processos de inclusão escolar das pessoas com
deficiência. Ao discutir a implantação da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência como condição
de política pública estruturante do SUS em 2012, Mendes (2014) diz que a proposta de tal rede é a criação, a
ampliação e a adequação de serviços ligados ao SUS. Esta rede procura regular e articular os serviços em benefício
do atendimento à saúde das pessoas com deficiência. De acordo com Mendes (2014), tais serviços operam para:
[...] articular-se com as Redes de Ensino das Regiões de Saúde para identificar crianças e adolescentes com
deficiência e avaliar suas necessidades; dar apoio e orientação aos educadores, às famílias e à comunidade
escolar, visando à adequação do ambiente escolar às especificidades das pessoas com deficiência.
(MENDES, 2014, p. 150, grifos nossos).
O excerto acima faz referência às possibilidades de articulação entre a rede da Saúde com o sistema educacional.
Podemos verificar que identificar pessoas com deficiência, avaliar suas necessidades e dar apoio e orientação aos
educadores, visando à adequação do ambiente escolar, são ações a serem desenvolvidas pela rede de Saúde. Essa
forma de operacionalizar uma rede de cuidados à Saúde também intervém diretamente na escola e nos processos de
in/exclusão. (FRÖHLICH, 2018).
Sibilia (2012), analisando a escola em tempos de dispersão, aponta que a instituição escola está imersa nessa
nova configuração organizativa e operacional das políticas educacionais e, com isso, também é interpelada em seu
funcionamento interno. Em relação aos processos de in/exclusão, a escola passa, a constituir-se como um ponto da
rede que se articula com diferentes setores externos para, de certa maneira, responder as demandas deste processo e
efetivar a inclusão escolar. (FRÖHLICH, 2018).
Conforme o documento subsidiário à política de inclusão (BRASIL, 2005) se faz necessário a criação de
uma rede intersetorial e interdisciplinar como apoio para a implementação da política de educação inclusiva. Tal
rede objetiva o atendimento a diversidade social e a atenção às necessidades educacionais especiais dos alunos. A
implementação dessa rede tem como função:
[...] ampliar a atenção integral à saúde do aluno com necessidades educacionais especiais; assessorar às escolas
e às unidades de saúde e reabilitação; formar profissionais de Saúde e Educação para apoiar a escola inclusiva;
assessorar a comunidade escolar na identificação dos recursos da saúde e da educação existentes na comunidade
e orientar quanto à utilização destes recursos; informar sobre a legislação referente à atenção integral ao aluno
com necessidades educacionais especiais e sobre o direito à educação e sensibilizar a comunidade escolar para
o convívio com as diferenças (BRASIL, 2005, p.46).
Uma rede intersetorial e interdisciplinar se forma com profissionais de Saúde e da Educação de acordo com as
necessidades do contexto e se propõe a realizar: levantamento das necessidades específicas das escolas; programas
de assessoramento às escolas; orientação e acompanhamento das famílias dos alunos com necessidades educacionais
especiais e assessoramento aos professores que possuem alunos com necessidades educacionais especiais em suas
turmas (BRASIL, 2005). Frente ao que traz o documento subsidiário nosso debate se intensifica, pois sob esse viés a
rede de apoio à política de educação inclusiva não se volta apenas a pensar os alunos com deficiência, mas sim todos
os sujeitos presentes e envolvidos nesse processo.
A construção de tal articulação entre diferentes serviços é, claramente, um desafio permanente. Visualizar os
alunos para além de uma patologia ou de um diagnóstico, desconstruir o status e o poder conferido aos laudos,
ressignificar entendimentos sobre as práticas escolares são ações estratégicas quando pensamos em discutir e
possibilitar processos de inclusão. Assim, “[...] a constituição de uma equipe interdisciplinar, que permita pensar o
trabalho educativo desde os diversos campos do conhecimento, é fundamental para compor uma prática inclusiva
junto ao professor” (BRASIL, 2005c, p. 09).
Ana Maria Vasconcellos (UNICEF, 2004) aponta que uma rede intersetorial pode se apresentar como uma
condição para o desenvolvimento de políticas de atenção à criança e ao adolescente, isto porque ela se propõe a
intervir nas demandas que surgem na escola, mas que fazem parte do contexto e da vida desses sujeitos. Nessa
conjuntura, uma rede intersetorial é uma estratégia potente para o desenvolvimento de ações condizentes com a
diversidade de situações que se apresentam cotidianamente aos professores, e que muitas vezes, não estão atreladas
ao processo de ensino e de aprendizagem, mas acabam interferindo neste, pois os alunos acabam trazendo-as para o
ambiente escolar.
Considerações finais
Os processos de inclusão vêm tensionando as estruturas seculares da instituição escolar. Mesmo com a
permanência de determinados entendimentos e funcionamentos, a escola, e seus sujeitos, é convocada a repensar
e ressignificar sua organização e suas práticas a partir do atendimento educacional de alunos com deficiência. E
Para tanto, a escola vem acionando diferentes serviços de apoio para que o processo de inclusão se efetive.
Entendemos que isso é necessário: porém, apontamos a necessidade que tais serviços e atendimentos especializados
não centrem-se somente em nomear sintomas que resultam em um diagnóstico do aluno incluído. Professores e
gestores estão, de forma intensa, envolvidos com tais processos. Dessa forma, a articulação entre educação e saúde
é imprescindível para amenizar as barreiras que surgem no caminho, bem como para construir com a escola novos
sentidos para a vivência dos sujeitos incluídos. Precisamos criar momentos de diálogos onde juntos possamos
compartilhar nossas conquistas, dificuldades, construir estratégias de cuidado e de aprendizado.
Momentos em que nossos saberes se articulem, proporcionando um olhar diferenciado para as práticas
de inclusão. Um olhar que permita potencializar as vivências dos sujeitos com dificuldades, que nos instigue a
um tornar-se flexível diante do instituído, que não busque enquadrar todos os sujeitos nos mesmos padrões, mas
que nos faça perceber e valorizar toda descoberta, toda construção, todo esforço e todas as formas de ensino e de
aprendizagem. Olhar que não nos amedronte perante as diferenças, fazendo compreender que existem diferentes
formas de vivenciar as situações que se apresentam.
A aproximação entre diferentes saberes mobiliza e é potente. Abandonar certo conforto em nossos entendimentos
e em nossas práticas individuais, construir um pensamento conjunto, colaborativo e sem julgamentos ou acusações
possibilita a construção de práticas de inclusão baseadas nos desejos e necessidades dos sujeitos com deficiência e
de suas famílias, investindo em estratégias que façam sentido e promovam qualidade de vida a estes sujeitos.
Acreditamos que os processos de inclusão não se efetivam de forma solitária. Ao contrário, a inclusão captura
e produz efeitos distintos em todos os sujeitos envolvidos nesse processo. O desafio que se estabelece está em
construir espaços conjuntos entre educação e saúde para pensarmos juntos. Assim, poderemos nos amparar,
constituir e fortalecer uma rede de cuidados, investir em novas ações, possibilitar uma escuta ativa e acolhedora,
legitimando os desejos dos sujeitos com deficiência, auxiliando-o a reconhecer suas potencialidades e a conviver
com suas limitações.
A construção de redes interdisciplinares e intersetoriais parece ser uma estratégia potente para desenvolvermos
práticas articuladas, contínuas e coletivas, aproximando diferentes saberes e promovendo cuidado condizente com as
demandas locais, além de ampliarmos nossas práticas. Nessa perspectiva, entendemos como urgente a necessidade
de ações conjuntas e colaborativas entre diferentes campos de saber e diferentes serviços para promover não apenas
o processo de inclusão escolar, mas também a promoção de diferentes entendimentos em relação à deficiência e suas
possibilidades frente às condições de vida na atualidade.
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VEIGA-NETO, Alfredo; LOPES, Maura Corcini. Inclusão, exclusão, in/exclusão. In: VERVE, São Paulo, n. 20, p. 121-135,
out. 2011.
Para o capítulo que fecha essa seção, buscamos um modo diferente de escrever: planejamos conversar, dialogar
sobre um tema que há muito nos preocupava. Uma fala recorrente em muitos dos espaços que percorremos ao longo
de nossos mais de 20 anos como pesquisadoras, especialmente naqueles que se comprometem a pensar a formação
de sujeitos: as escolas por onde passamos. Trata-se da fala que remete ao “nunca estar preparados”, ao fato de buscar
uma resposta e indicação precisa para dilemas tão complexos que vivemos no ensino contemporâneo; uma arapuca,
uma armadilha, na qual constantemente caímos, em busca de uma solução ideal para lidar com esse ou aquele
estudante, com aquela ou esta turma, para ensinar de modo completo, perfeito, isento, neutro, pontual, instantâneo.
Uma cilada que nos conduz a buscar algozes ou vítimas, oprimidos ou opressores, ordenados ou subalternos - um
binarismo que não nos leva jamais à miríade de combinações próprias de um ser humano em formação.
Foi isso que buscamos nessa conversa: pensar em conjunto, duplamente, sobre formar e não formar (no sentido
de enquadrar), sobre abrir o pensamento aos aspectos que nos tangenciam enquanto pedagoga e psicóloga que somos:
um gravador ligado, duas cabeças em conjunto e um milhão de ideias e pensamentos sendo provocados. Trata-se,
então, de um encontro que quer pensar sobre formação de professores, em meio aos tantos e diferentes estudantes
com os quais convivemos, produzido em algumas tardes. Esse encontro foi sintetizado nos diálogos apresentados a
seguir1, que guardam as marcas da oralidade, desse momento ímpar de troca entre duas professoras/pesquisadoras/
colegas e, sobretudo, amigas.
S: Estamos preparados?
M: Estamos preparados? (pausa) Não, não estamos (risos). Então, eu sempre defendo que nós nunca estamos
totalmente preparados e jamais estaremos para as situações mil que se apresentam no contexto de uma sala de aula,
em especial se estivermos falando de questões relacionadas à inclusão escolar. Tanto de uma forma mais restrita da
Educação Especial, nas dificuldades de aprendizagem, transtornos, deficiências, quanto com relação a questões mais
amplas de raça, gênero, etnia, enfim. Mas o que considero sempre importante defender é: não estar preparado não
significa que eu vou pra sala de aula de qualquer forma, sem ter estudado, sem ter lido, sem ter planejado. Eu preciso
ter um repertório que trago para a sala de aula; um repertório tanto das coisas que já estudei, quanto das vivências
com as quais aprendi. Aquele meu aluno com Síndrome de Down, com o qual trabalhei durante um ano, ele me
traz, sim, um repertório. Eu posso ter um outro aluno com Síndrome de Down que vai ser totalmente diferente dele,
mas eu vou buscar daquela vivência não só aquilo que eu vivi, na urgência dos acontecimentos, mas as reflexões
que fiz, depois ou durante ou antes. Então, essa é uma questão que precisamos pensar em termos de formação de
professores, porque, às vezes, os professores se sentem muito angustiados no sentido de que eles gostariam de estar
prontos (ênfase) para toda e qualquer situação que se apresente.
S: Como se fosse fazer um curso de Manual de Primeiros Socorros. E isso é uma coisa interessante, agora eu
fiquei pensando. Os Primeiros Socorros. Quantos cursos eu já acompanhei de Primeiros Socorros em escolas, que
estamos ali numa situação segura, fechada, listando situações e o que se deve fazer em cada situação. E mesmo
1 Agradecemos a transcrição cuidadosa, sensível e atenta das bolsistas de Iniciação Científica Bianca Isabel Pederiva e Franciele Karine dos
Santos.
M: O inesperado…
M: E outra, é a reação do outro (pausa). Porque não é só como eu me movimento naquela situação, mas ela
sempre se dá em relação. Então, quer dizer, eu não tenho ali um boneco inerte tal qual a situação do treinamento.
S: Isso.
M: Então, penso esse exemplo é muito interessante. Eu tenho pensado muito sobre essa questão, de não estar
preparado, já que é recorrente nas falas dos professores. Nesse sentido me dou conta de que já trabalho, estudo e
pesquiso essas questões há mais de duas décadas e aí, me pergunto: eu estou preparada? Eu me sinto preparada.
Se alguém me perguntar: “- Morgana, tu estás preparada para trabalhar com estudantes com deficiência?”. Eu me
sinto preparada. Se eu hoje estiver em uma sala de aula com um estudante com uma necessidade específica (o
que é comum no Ensino Superior) posso dizer que me sinto preparada. Mas o que significa nesse contexto “estar
preparado”? Não se trata de uma expectativa de que saberei imediatamente o que fazer, mas de que sei caminhos
para buscar alternativas, soluções, de que estarei aberta para receber esse sujeito e conhecê-lo.
M: Exato. Primeiramente é preciso conhecer, me aproximar, deixar que ele me conheça também, criar um
vínculo. E aí, bom, aí é momento de colocar em ação as ferramentas com as quais a pedagogia nos instrumentaliza.
Em alguns momentos os professores também se perguntam: “ah, eu sou só, entre aspas, uma pedagoga, eu não sou
educadora especial, eu não sou formada em AEE”. Mas aí podemos buscar na pedagogia subsídios para dar conta
dos desafios que se impõem. Mesmo que não estejamos tratando das questões da inclusão, que é que sabemos sobre
o nosso trabalho numa sala de aula? Primeiro é importante fazer aquilo que chamamos de sondagem, diagnóstico,
avaliação diagnóstica (os nomes são muitos). Então depois de conhecer um pouco melhor esse sujeito, é preciso
saber o que ele já sabe, como ele já sabe (pausa); depois vale perguntar também pra ele, como ele se sente mais
confortável para aprender, quais as facilidades que percebe, as dificuldades que encontra, aí se colocam em ação
diferentes estratégias metodológicas, se adapta o currículo. Portanto, isso pode significar estar preparado. E não
podemos esquecer também de nos prepararmos para entender que as coisas talvez não deem tão certo numa primeira
tentativa.
S: Eu fiquei pensando Morgana, quando... Eu estava pensando sobre esse tema, um dos autores que veio muito
forte pra mim… um não, são vários! Quando nos provocamos a pensar essa fala, há uns dois meses, fomos pensando
em filmes, em livros de história infantil e infanto-juvenil. E lembrei muito do texto que estávamos estudando no
grupo de estudos, que é “O Mestre Inventor” do Walter Kohan (KOHAN, 2015). E tem uma coisa muito interessante,
que ele vai trazer a figura de Dom Simón Rodríguez, enfim, que foi o preceptor de outro Simon, o Bolívar, por volta
de 1820, que o chamava de “Sócrates de Caracas”. Tinha uma coisa que ele gostava muito: ele queria abrir escolas.
Essa era a proposta dele, era a ideia dele: uma educação popular, para que todos pudessem estar na escola nas
Américas. Teve, assim, um lance, que abre o livro (no “capítulo zero”, A história de Thomas) quando ele percebeu
que tinha um menino de rua, que ele estava lá com alguns alunos da escola, tentando resolver uma situação num
chapéu que caiu numa sacada; e o menino de rua, que estava lá do lado, que não fazia parte da escola, disse: “mas
por que que vocês não fazem desse jeito?”. E ele falou “mas o que que esse menino tá fazendo aqui que não tá
S: Uma concepção da área de inclusão. E aí uma coisa que ele gostava muito e que ele batalhava muito quando
ele viajava, ele foi pra vários países, na América Central, enfim, na América do Sul e ele dizia: “eu quero aprender
línguas”. Era a primeira coisa que ele dizia que era importante aprender numa escola. Aprender diferentes idiomas,
por onde passar: aprender o inglês, aprender o patois jamaicano, aprender o espanhol, aprender... Porque ele dizia -
fechando com o que tu estás dizendo -, que é a primeira coisa pra nos aproximarmos das pessoas. Então, independente
de colocarmos em primeiro lugar que aquela criança tem Transtorno de Espectro Autista, que ela apresenta um
Transtorno Opositor-Desafiador, que ela é uma criança, enfim, com uma série de outros rótulos que imprimimos aos
sujeitos, a primeira coisa que sabemos é que ela é uma criança; a primeira coisa que precisamos entender é que ela
é um ser humano, e que como ser humano precisamos nos aproximar. Então eu acho que a ideia das línguas, de se
conhecer, de se encontrar e de se entender, é o primeiro passo para fazer qualquer outra coisa. Talvez um primeiro
passo para “estar preparado”: pro encontro! Que pode ser desencontro...
M: Tentar se entender. Mas isso requer escuta, requer sensibilidade. Vivemos tempos em que as políticas
públicas nos ensinam que a qualidade da escola se mede a partir de um índice, da posição que essa escola ocupa
em rankings educacionais. Mas e a qualidade das relações que se dão ali dentro? Entendo que abrir na escola o
espaço pra conversa, pra se conhecer, pra se encontrar, pra construir junto um jeito de ensinar e aprender, isso é
extremamente transgressor e revolucionário no tempo em que estamos vivendo. É muito transgressor.
S: Imagina, se isso era pro Simón Rodríguez lá no final do século XVII, início do século XIX. Falamos muito
isso quando estudávamos o livro, como ele é atual, parece que tanto tempo se passou continuamos nessa mesma
proposta de criticar uma escola em que ele diz assim, uma escola que serve para muitos momentos, não sempre, mas
em muitos momentos, apenas imitar e não inventar, e não fazer pensar. Ele falava muito do pensamento. Eu acho
que por vezes falamos isso pensando nos alunos e esquecemos de pensar nos próprios professores porque, como diz
ele também dentro do livro, a função do professor é estudar. E às vezes colocamos: “a função do professor é ensinar
e a função do aluno é estudar” e na verdade ele coloca como função do professor o estudar, porque ele precisa
estudar muito para poder se encontrar com eles, com os estudantes.
M: Eu costumo dizer aos estudantes dos cursos de licenciatura, e mesmo aos mestrandos e doutorandos que é
sempre bom lembrar aos professores o que a nossa LDB 9394/96 fala sobre a função do professor. Poucas pessoas
veem beleza numa legislação (risos); o estudo da legislação geralmente é uma coisa muito chata, muito pesada. Mas,
na minha opinião, uma das coisas mais belas é uma palavra que temos lá na nossa LDB no artigo 13, em que se diz
que a função do professor é zelar pela aprendizagem dos seus alunos (BRASIL, 1996). Zelar. Zelo é uma palavra
que pode nos dizer tanta coisa se estivermos dispostos a ouvir. É mais do que ensinar e aprender. É sim pensar em
como estou ensinando, mas com esse caráter de um cuidado, de um olhar, de uma escuta e aí está dentro disso o
quanto que eu estudo, o quanto eu me preparo. Está incluído neste zelo também, esse cuidado que eu tenho com a
aprendizagem do meu aluno.
S: Acho que o zelar também tem a ver... bonito, bem bonito isso, Morgana, porque o zelar também tem a ver
com… não é só ensinar e não é só compreender se essa aprendizagem está acontecendo: o zelar passa por escutar
esse estudante, essa criança, esse sujeito, pra saber o quanto isso está produzindo efeitos e é isso que é um pouco
M: É. E eu acho que tem aí, também, uma questão que podemos trazer para a conversa: quando tu falas que
o professor faz parte de um coletivo, e tem essa relação com seus alunos, entendo que podemos pensar também
num outro ator que entra nessa sala de aula quando falamos de processos de inclusão ligados à deficiência ou aos
transtornos, que é a figura do monitor. Essa também é uma relação que se estabelece ali. E aí eu penso que tem uma
potência tão grande (pausa) quando entra mais alguém dentro dessa sala, dentro dessa turma. Tem uma riqueza aí
que pode acontecer e às vezes estamos vendo que ela não acontece. Ouvimos muitas pessoas clamando por esses
monitores dentro da sala de aula: as famílias que sentem que seus alunos precisam; os professores que afirmam:
“olha, preciso de mais alguém”. Mas quando esse alguém entra, como é que essa relação se estabelece? Porque uma
coisa precisamos considerar: é muito diferente se eu “colo” um monitor numa criança com deficiência e aí eu coloco
essa criança num lugar bastante complicado por vezes, um lugar que produz mais preconceito, mais afastamento dos
próprios colegas.
S: Da professora…
M: Da professora. Porque aí a monitora ou auxiliar (cada rede de ensino nomeia de uma forma diferente) fica
muito próxima do aluno e a professora atende ao restante da turma. E se pensarmos numa outra dinâmica dentro
dessa sala de aula? Se pensarmos em uma organização na qual professora e monitora são responsáveis por todo
grupo e conversam, trocam ideias, analisam as diferentes percepções, porque uma mesma situação, dentro de uma
sala de aula, ela pode produzir uma determinada percepção em ti, Suzi, diferente da minha, Morgana. E aí podemos
complexificar isso: conversando, trocando; podemos alternar esses papéis de quem acompanha esse estudante, de
quem acompanha a turma, a realização de uma atividade. Entendo que isso também é uma questão que passa por
esse preparo. Porque se o professor não se sente preparado, os monitores relatam: “ah, eu estou no segundo semestre
da faculdade, eu cheguei na escola, me colocaram lá, junto com um menino autista e às vezes eu não sei o que eu
faço com ele”. Isso é muito sério e esse acadêmico ainda em formação está lá responsável, muitas vezes, até pelo
planejamento das atividades para o estudante que acompanha.
S: Sabe Morgana, isso me lembra duas coisas que eu falo bastante em aula. São duas coisas que aconteceram
que eu participei, que fez parte da minha formação como professora, como eu continuo fazendo parte em vários
momentos. Eu fico lembrando de vários momentos que eu tive aqui dentro da Univates na minha formação como
professora de Ensino Superior, e são dois que me marcaram muito. Em um deles tivemos uma conversa com Antônio
M: Até porque tu trazes uma coisa interessante, Suzi. Bom, a questão da aprendizagem, a questão do estar
dentro do espaço de uma sala de aula, ela não tem a ver somente com o que se passa ali dentro dessa sala de aula. Ela
tem a ver com todo um entorno. Então nós vivemos hoje num momento que é um momento complexo, no sentido de
tantas patologias que estão se produzindo. E me preocupa muito o quanto tudo acaba sendo patologizado. Qualquer
mínimo desvio. Eu me lembro, quando era pequena, de ouvir muito a expressão: “andar na linha”. Então, saindo da
linha um pouquinho, já nos perguntamos: qual é a patologia? E a partir disso já se instituem os rótulos e aí, enfim,
isso é muito complicado. Mas estamos vivendo um momento também de muitas transformações sociais em função
da tecnologia e temos que pensar essa sala de aula, dentro desse mundo novo que se abriu para nós nos últimos vinte
anos. Vamos pensar, no ano dois mil, o que significava a internet na nossa vida e o que que significa hoje a internet.
Há poucos anos atrás lembro bem que eu me recusava a ter o meu e-mail no celular. E hoje, não consigo imaginar
como era isso. Então, o mundo está sempre em transformação, inclusive aquilo que se ensina e aquilo que se aprende
e isso vai produzir efeitos nas nossas relações, sempre, não?
S: Eu fiquei lembrando de vários textos, mas, por exemplo, o Williges e o Edson Souza, falam de um texto sobre
a cultura do déficit de atenção, hoje, e tu estás falando disso, né? Do quanto as patologias vêm surgindo e crescendo
em exponencial, especialmente o déficit de atenção, que é o que mais vem sendo diagnosticado e que aparece dentro
das salas de aulas e com o qual os professores se incomodam. Só que daí eu sempre gosto de pensar: que mundo é
esse em que estamos vivendo em que temos zilhões de informações acontecendo todas ao mesmo tempo e temos
que estar sabendo de tudo isso. Nós também, adultos, estamos envolvidos nessa cultura do déficit de atenção e aí
lembra aquela história do Alienista (Machado de Assis). Assim, esse vai ser enclausurado, esse... daqui a pouco está
todo mundo enclausurado. Então só um pouquinho, vamos voltar todo mundo, qual é o problema? O problema é o
sujeito que está prendendo todo mundo. Então, têm vários elementos que fazem parte da escola hoje, acho que cada
vez mais, assuntos da escola se ampliam e não tem mais como dizermos que não podem mais fazer parte da escola
porque tá lá, e tá aqui, e tá fora e tá dentro, e tá dentro e tá fora. E essa ideia de, tem um autor americano, que fala
que o que existe hoje é uma cultura de um transtorno de déficit de natureza (LOUV, 2016). Ele vai trazer um outro
olhar e dizer assim “o que falta com as crianças hoje é poder estar em contato com outras coisas para além das telas”
e isso também vai chegar dentro da escola. E isso é perceptível: o momento do pátio é às vezes o único momento em
que é possível respirar dentro disso que tu dizia antes, tudo já bem quadrado, horários completamente delimitados,
a impossibilidade de deixar um espaço de criação, um tempo de respirar, um tempo de pensar, um tempo de se
conhecer. Que às vezes parece que também não faz parte, não entra na ordem do dia e aí eu lembrei aqui, Morgana, de
uma frase muito interessante, do livro do Kohan, que me remeteu a pensar o quanto o estar preparado parece colocar
2 Palestra de encerramento do IV Seminário Institucional do Pibid Univates, o II Simpósio Nacional sobre Docência na Educação Básica e
o I Congresso Internacional de Ensino e Aprendizagens, realizada na Univates, em 07 de junho de 2014.
3 Palestra de abertura do curso de especialização Supervisão e Gestão Educacional, em 2016.
M: É, eu entendo que se trata de uma inversão da lógica do que hoje na escola se busca. Estamos vivendo um
momento em que se busca cada vez mais uma padronização curricular, por exemplo. Uma preocupação muito grande
que se coloca é a própria questão da Base Nacional Comum Curricular. Acredito que nada seja totalmente bom ou
totalmente mau em si mesmo; importa é a forma como fazemos uso disso que se coloca na nossa frente. Dependendo
da forma como nós formos usar a BNCC; se formos usar entendendo que todo mundo tem que aprender a mesma
coisa, ao mesmo tempo, no mesmo momento, caminhamos mais alguns passos para trás e fica cada vez mais distante
disso que tu estás apresentando aí como questões muito potentes: as possibilidades de invenção, de criação. Eu
percebo que o professor muitas vezes tem medo de não dar conta, considerando que a aprendizagem do aluno é
a razão pela qual nós estamos dentro da escola. Então, sendo o papel do professor promover essa aprendizagem,
zelar por essa aprendizagem, então se o sujeito não aprende, é o meu fracasso que fica evidente, colocando mil
aspas aí porque é uma coisa que eu trago pra problematizar; não é uma afirmação. Então o que acontece? Muitas
vezes é também uma questão de defesa desse professor, uma forma de se manter saudável dentro daquele processo
colocar no sujeito a origem do problema, sugerir a busca de um diagnóstico, daí a escola já encaminha, e isso me
preocupa um pouco porque sim, existem, não vamos negar que existe a materialidade da deficiência ou de um
transtorno, esses sujeitos dos quais uma equipe multidisciplinar, um atendimento uma medicação vai fazer muita
diferença, vai ser importante, mas existem muitos sujeitos que se formos olhar a fundo, conhecer a história veremos
que o rótulo foi colocado muito cedo e ele foi se reproduzindo e o próprio sujeito foi se constituindo a partir dele
acreditando naquela verdade. Penso que isso tudo vem do medo, vem do receio, então como vamos pensar dentro
e fora da escola espaços para esse professor trazer as suas questões poder conversar, dizer do que fez ou faz que
considera que tenha dado muito certo, que tenha dado muito errado e por que será que deu tão errado, sem que haja
um julgamento do tipo: tu me contas o que aconteceu na sua sala de aula e eu aponto o dedo: - “ Suzi, como que tu
faz uma coisa dessas, que horror, tu és uma incompetente”! Não, veja bem, naquele momento tu fizeste dessa forma,
que consideraste a mais adequada, mas podíamos pensar juntas em outras soluções possíveis. Espaços como esse
requerem maturidade, tempo, disponibilidade, abertura, esses espaços penso que estejam faltando muito na escola.
S: Eu acho que tu começaste falando isso, Morgana me lembrou muito assim, como falta e eu falo muito isso
também no mestrado com os estudantes que são professores e estão fazendo o mestrado em ensino, para se pensar
melhor... e é muito legal como muitos ficam me dizendo: “Nossa, to vendo tanta coisa a partir dos estudos”, e eles
fazem tantas experiências em sala de aula, né, que vemos que essa experiência precisaria ser compartilhada e de
novo vem o coletivizar, o trocar com os colegas, o refletir sobre essa experiência, e temos essa mania muito de
compartilhar só as coisas que foram lindas, não?
S: Isso, das boas práticas... e o que não deu certo, e o que eu paguei mico, e o que eu fiz e ficou um horror? Só que
isso muitas vezes me ajudou a pensar muito mais do que qualquer boa prática que eu fiz, e temos medo da exposição,
da crítica; sim, e isso seria fundamental; é o que tentamos trabalhar em Processos de Ensino e Aprendizagem, no
Mestrado em Ensino: relatar uma experiência de ensino, ou uma experiência de aprendizagem que pode ter sido um
M: E aí tu me ajudas a pensar em outra coisa que considero fundamental: tem um livro com o qual aprendo
muito que se chama “O que sabe quem erra” da professora Maria Tereza Esteban. Ela vai tratar do erro do aluno,
ali nesse contexto do livro, mas eu entendo que possamos pensar também, no professor dentro desse processo. Ela
vai nos fazer pensar no livro que quando corrigimos uma prova, um trabalho, assinalamos o erro; mas seria muito
mais potente analisar em profundidade essa resposta dada pelo aluno, buscando ali entender a lógica que ele usou
para resolver tal ou qual situação e esse seria um caminho para qualificar seu processo de aprendizagem; porque por
vezes aquele que acerta reproduziu alguma coisa, imitou e aquele que erra criou um caminho que só precisa de um
outro olhar para que possamos avançar na construção do conhecimento; (ESTEBAN, 2006) e quantas vezes com
o professor também não pode ser assim? Falávamos antes de comodidade; a boa prática me coloca em um lugar
confortável, já nem preciso pensar muito sobre ela, diferente daquela situação em que as coisas não saíram tão bem
quanto esperado; a sala de aula é um lugar de urgências as coisas acontecem e não dá pra ir lá buscar um manual.
S: É... ao vivo!
M: É, é ao vivo e eu tenho que dar uma resposta. Muitas vezes aquela resposta não vai ser a mais adequada
no primeiro momento, mas em outro momento se eu conseguir usar aquela situação que não foi tão adequada para
pensar, estudar um pouco mais, conversar com outras pessoas, eu crio a partir dela um repertório. Então assim: o
que sabe quem erra e o quanto pode avançar quem erra? Qual o lugar do erro, como estamos tomando o erro, tanto
com relação aos nossos alunos, quanto com relação a nós mesmos? São questões importantes. Podemos retomar,
por exemplo, tu falaste antes do transtorno de déficit de atenção, nesse nosso processo da pesquisa, na conversa
com os professores muitas vezes foi citada a questão do transtorno opositor e muito a questão do autismo, são as
três questões que eu mais ouvi que estão desacomodando; bom, tem aí algumas coisas pra pensarmos: essa criança
autista que pensa de um outro jeito, se comunica de um outro jeito...
M: Brinca de outro jeito. Exato. O que que é o certo e o errado ali naquele contexto? Como é que eu significo
isso? Então há uma série de questões sobre as quais precisamos pensar na nossa formação.
S: E isso é muito anterior: quando tem um erro escondemos, esquecemos, queremos esquecer, aí foi um dia ruim,
aí eu quero esquecer, e não deveríamos fazer isso; deveríamos tentar entender, pensar naquilo que falhou, porque
aquilo falhou e o que que eu posso fazer diferente?. Sim, tu falas dos transtornos, Morgana, eu então como psicóloga,
além de ser professora também, tenho uma ação na parte clínica de atendimentos, especialmente com criança e
adolescente; junto com isso que tu traz especialmente o TDAH (transtorno de Déficit de atenção e hiperatividade)
tem transtorno opositor desafiador e há casos graves de depressão e esses nem aparecem citados pelos professores.
Por quê? Porque nem se observa, porque muitas vezes em alguns momentos, em crianças a depressão pode se
apresentar um pouco diferente porque até pode ser uma criança inclusive diagnosticada como TDAH e ela pode ser
uma criança depressiva, porque ela tem movimentos diferentes do adulto, mas o adolescente por exemplo ele fica
ensimesmado, ele se aquieta, ele não dá trabalho.
M: Por isso que muitas vezes sentimos essa sensação de “não estarmos preparados”.
S: Por isso que não fazemos um curso fechado que dê conta de tudo...
M: Exatamente, e aí eu penso que tem um coisa que há uns anos atrás eu e a professora Viviane Klaus, da
Unisinos, escrevemos um texto sobre isso, sobre o quanto o professor pode assumir esse lugar de quem tem
elementos, de quem tem ferramentas para fazer isso (HATTGE; KLAUS, 2014). Porque isso é uma outra coisa; tu
sabes, tu és da área da psicologia, às vezes o professor enxerga o psicólogo como, ah, se tivesse o psicólogo aqui
na escola estaria tudo resolvido, se fosse encaminhado para o neuro estaria tudo resolvido, como se as respostas
estivessem sempre em outras áreas; e eu entendo que sim, as outras áreas tem respostas para compor junto com a
nossa. Porque quem sabe desse processo da sala de aula, quem sabe desse coletivo dessas relações somos nós.
S: É o professor...
M: São os próprios professores; os outros profissionais terão um olhar que vai trazer elementos que contribuem
para a nossa prática. Há uma situação que percebo como recorrente no espaço da escola, que é a seguinte: o médico
escreve um parecer sobre como o professor tem que trabalhar com um determinado estudante diagnosticado com
uma síndrome, ou transtorno, por exemplo. Bem, o médico pode dizer de como aquele sujeito se comporta em
termos cognitivos, ele tem acesso a algumas ferramentas clínicas diagnósticas...
M: Exato. Agora, ali dentro da sala de aula, não é o médico que vai dizer que metodologias, que formas de
interação são mais adequadas; é o professor e eu tenho a impressão de que estamos precisando nos empoderar mais;
sou da opinião de que o empoderamento do professor é uma questão hoje sobre a qual é preciso seguir conversando.
REFERÊNCIAS
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ESTEBAN, Maria Teresa. O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. 4 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HATTGE, Morgana Domênica; KLAUS, Viviane. A importância da pedagogia nos processos inclusivos. Revista Educação
Especial. V.27. n.49 . p.327-340. Maio/agosto 2014.
Enlaces iniciais
Se pensássemos, inspirados nos ensinamentos de Wittgenstein, não na existência de uma única matemática –
essa que Lizcano (2006) identifica como a forma de vida da “tribo européia” (que, com sua pureza e ordem,
Foucault lembra ter dado “a superioridade [a]os europeus – em termos de navegação, comércio, política, arte
militar”), mas em diferentes matemáticas...(KNIJNIK, 2017, p. 47) [grifos da autora].
Tecendo fio a fio, entrelaçando-os entre idas e vindas, utilizamos como inspiração a epígrafe que inicia este
texto, na qual Knijnik (2017), nos instiga a dar visibilidade às distintas matemáticas praticadas por grupos sociais.
Nos aportamos ainda na urdidura da educação bilíngue para surdos, para tecer alguns apontamentos sobre a
valorização dos artefatos culturais destes sujeitos em prol do seu ensino e assim buscarmos aproximações com a
Etnomatemática. Nesta lógica, galgamos nestes escritos “[...] uma estrutura que amarre em nós bem firmes as frases
sucessivas, como “um ponto dado com elegância”” (MACHADO, 2003, p. 175) [grifos da autora].
A priori consideramos interessante trazer à tona o fio histórico que envolve sujeitos surdos. Evidenciamos que os
estudos realizados por Viana e Barreto (2014, p. 1), revelam que “O acesso de indivíduos surdos aos conhecimentos
socialmente acumulados pela humanidade, inclusive o acesso ao conhecimento matemático foi negado durante
séculos”. Muitas mudanças – que denotaram avanços ou retrocessos – ocorreram desde que a invenção da surdez
(LOPES, 2011), forjada pelo discurso médico, adentrou na pauta de discussões sociais.
Na esteira desse debate, cabe o registro de alguns aspectos históricos ainda perceptíveis na contemporaneidade.
Logo, faz-se necessário um processo de (des)construção sobre discursos ainda arraigados de que somos “[...] um
país supostamente monolíngue” agregada a “[...] uma posição ideológica que estabelece a língua portuguesa como
a única língua falada no país” (QUADROS, 2017, p. 189), e desdobrada nos diferentes âmbitos e aqui direcionamos
nosso olhar para o educacional.
Neste sentido, nos servimos de outros fios, seguindo uma direção oposta aos discursos que ainda difundem
uma condição monolíngue, que deve ser a base para o ensino de todos os sujeitos. Sendo assim, este texto discute
possibilidades para o ensino de Matemática para surdos, por meio da educação bilíngue realizada em escolas
destinadas para tal finalidade. Locais que valorizam a língua natural do surdo, isto é, a Língua Brasileira de
Sinais (Libras), a própria surdez como uma diferença, a visualidade deste, enfim, pontos se arrematam em prol da
valorização deste grupo cultural específico.
Por conseguinte, ao ratificarmos a centralidade dos aspectos culturais na mediação dos processos cognitivos
realizados em escolas bilíngues, encontramos uma aproximação com o fio da Etnomatemática, que escrutina modos
outros de produzir conhecimentos matemáticos e considera “[...] a variável cultura no ensinar e no aprender”
(KNIJNIK et al., 2013, p. 26) dessa disciplina.
Em resumo, os movimentos dos fios aqui entremeados percorrerão os enlaces propostos pela Etnomatemática,
como investiga Knijnik et al. (2013). Em seguida tecemos algumas considerações sobre educação bilíngue para
surdos, para então, buscarmos entrelaçá-la com a Etnomatemática. Momento este que buscamos dar forma ao tecido
deste texto, com o intuito de evidenciar possibilidades outras de matematizar, em especial, para sujeitos surdos. Por
fim, nossos escritos se encerram com alguns arremates acerca desta discussão.
Iniciamos a escrita desta seção tecendo o fio que se remete a Etnomatemática como um campo da Educação
Matemática, que investiga modos outros de produzir conhecimentos matemáticos. Esta “[...] desde sua emergência,
vem se constituindo como um campo vasto e heterogêneo” (KNIJNIK et al., 2013, p. 23), assim, diante da
multiplicidade de investigações, ratificamos que os enlaces teóricos que sustentam este estudo partem do seguinte
entendimento:
[...] temos concebido nossa perspectiva etnomatemática como “uma caixa de ferramentas” que possibilita
analisar os discursos que instituem as Matemáticas Acadêmica e escolar e seus efeitos de verdade e examinar
os jogos de linguagem que constituem cada uma das diferentes Matemáticas, analisando suas semelhanças de
família (KNIJNIK et al., p. 2013, p. 28).
Convém enfocar que a referida caixa de ferramentas provém dos estudos de Ludwig Wittgenstein em seu
período da maturidade e de Michel Foucault. Ao entrelaçarmos as ferramentas teóricas destes dois filósofos tem
sido possível discutir sobre a existência de diferentes etnomatemáticas, “[...] assim como o discurso eurocêntrico da
matemática escolar e seus efeitos de verdade” (KNIJNIK, 2017, p. 47).
No que tange o trabalho tardio de Wittgenstein em Investigações Filosóficas, é produtivo para nossa discussão
trazer algumas noções que convergem com a perspectiva Etnomatemática. A priori evocamos a negativa de uma
linguagem universal defendida pelo filósofo, isto é, a compreensão sobre um ideário único de razão, concebido
de forma natural é desertado, cedendo espaço para a racionalidade no sentido de algo em construção. Logo, as
construções oriundas de um contexto têm sentido imersas neste, sendo muitas vezes particulares, circunstanciais,
enfim, mutáveis. Zanon, Giongo e Munhoz (2016, p. 21), explicam que a:
Racionalidade é vista por Wittgenstein como produto das interações entre os jogos de linguagem, uma
“construção” que permite a articulação da linguagem dentro de uma forma de vida, originando assim a
possibilidade de se definir o que é correto ou não de acordo com os jogos de linguagem e sua gramática.
Nesse sentido, os argumentos aluídos pelo filósofo sobre como as linguagens se manifestam, sendo
a multiplicidade a marca desse processo, formam uma das urdiduras imprescindíveis às investigações da
Etnomatemática, pois, a existência de ‘linguagens’, permite que haja também a refutação “[...] de uma linguagem
matemática universal” (KNIJNIK et al., 2013, p. 29). Seguindo esse raciocínio, não há uma essência determinada
para a linguagem, logo, a palavra adquire sentido conforme é utilizada dentro de um contexto. Neste sentido, o
filósofo expressa a analogia:
Com base no excerto acima, é congruente afirmarmos que diante da pluralidade de sentidos, as palavras
adquirem sentido conforme o uso, ou seja, é permissível que uma expressão assuma diferentes sentidos, dependendo
do contexto. Em outros termos, de acordo com a forma de vida, uma palavra tem certo significado. Logo, “[...]
sem que se conheçam os jogos nos quais os indivíduos estão inseridos, não é possível compreender o sentido da
linguagem empregada” (JUNGES; WANDERER, 2018, p. 35).
Complementa a assertiva anterior, o exemplo destacado por Júnior (2017, p. 970): “Como o dinheiro, as
palavras têm muitos usos: com aquele compra-se pão, viaja-se, tem-se um lugar no estádio, etc.; com estas, pede-
se, descreve-se, informa-se”. Assim sendo, partir do uso de certas palavras podemos dar sentido às coisas, em uma
determinada circunstância. Avançando nesse rastro, emerge então a noção de forma de vida que envolve a tríade,
linguagem, visão de mundo e cultura (KNIJNIK, 2017), que formam o modo de vida de determinados grupos, as
práticas sociais e consequentemente emergem os jogos de linguagem.
Em efeito, a forma de vida é condição indubitável para que certo jogo de linguagem tenha sentido, ou seja, estes
“[...] e as regras que os constituem estão fortemente imbricadas pelo uso que deles fazemos, ou seja, é parte integrante
de uma determinada forma de vida” (GIONGO, 2008, p. 152). Dito de outra forma, é requisito indispensável que um
jogo de linguagem esteja em um contexto próprio, sendo praticado por um grupo social que possui práticas culturais,
as quais, o fazem ter sentido mediante o uso.
Nos aportando no argumento anterior podemos exemplificar práticas matemáticas da forma de vida de alunos
surdos. O estudo realizado por Picoli, Giongo e Lopes (2018), identificou que um grupo de alunos surdos de uma
sala de recursos, possuíam outros modos de produzir conhecimentos matemáticos. “Na contingência da vida dos
alunos surdos participantes da pesquisa, os jogos de linguagem matemáticos ali gestados diferiam daqueles presentes
nas salas de aula da disciplina Matemática” (IBIDEM, 2018, p. 188), portanto, na forma de vida em análise, os jogos
engendrados adquiriram sentido.
Denotou-se ainda no citado estudo, algumas semelhanças de família, pois dentre as estratégias utilizadas
identificou-se o uso da decomposição e da numeração de base dez, próprias da Matemática Escolar. Sobre este
último ponto evidenciado pelas autoras, evocamos a seguir a noção desenvolvida por Wittgenstein (2014, p. 52):
“[...] as várias semelhanças que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos
olhos, andar, temperamento etc. etc. - E eu direi: os “jogos” formam uma família” [grifos do autor]. Nesta ótica, há
a possibilidade de haver semelhanças ou dessemelhanças entre distintos jogos ou ainda entre aqueles praticados em
uma mesma forma de vida.
Outro fio entremeado às nossas discussões remete-se aos discursos sobre a Matemática Acadêmica e Escolar
e seus efeitos de verdade. Assim, a contribuição de Foucault nos permite a sustentação para examinarmos “[...] os
efeitos de poder que operam sobre tais jogos” (kNIJNIK 2017, p. 53). Nesta ótica, a produção do discurso como
propõe o filósofo “[...] tem por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 2009, p. 9), difundindo verdades socialmente instituídas
e consideradas corretas. Em especial, referente às Matemáticas Escolar e Acadêmica, estas são espraiadas como as
únicas apropriadas para fazer ciência.
Não obstante, Foucault (2017, p. 52) já anunciava que “A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder”. Logo, a regulação de que existe essencialmente
uma Matemática, que deve ser seguida em todos os contextos, é o corolário de um sistema que advoga tal premissa
como verdadeira. Em outras palavras, aqueles que têm “[...] o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”
em cada sociedade, têm sua forma para homologar ou não algo como verdadeiro, diante de dispositivos e “[...]
procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade” (IBIDEM, p. 52).
Em suma, os fios entremeados das ferramentas teóricas advindas de Wittgenstein e Foucault, nos fornecem
elementos “[...] para seguir pensando as coisas da Etnomatemática” (KNIJNIK, 2016, p. 19), e nessa esteira darmos
visibilidade as matemáticas outras praticadas por grupos culturais distintos. E nesse contexto, nos permite estender
àquelas realizadas por sujeitos surdos, que se constituem como um grupo com identidades e cultura surdas e língua
própria, qual seja, a Libras. Logo, imersos em práticas sociais vinculadas à forma de vida em que estão associadas,
podem gerar matemáticas que ali tem sentido. Nessa meada, a seguir realizamos alguns enlaces sobre educação
bilíngue para surdos entremeando aproximações com a Etnomatemática.
As tramas que se entrelaçaram aos construtos históricos vivenciados por sujeitos surdos, cunharam condições
de possibilidade para a efetivação da educação bilíngue. Entendemos que buscar nos meandros das transformações
sociais, os discursos e situações que ao longo dos tempos levaram a comunidade surda a se movimentar por uma
educação bilíngue que contemplasse suas especificidades, é salutar, pois “[...] o discurso não tem apenas um sentido
ou uma verdade, mas uma história, e uma história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho”
(FOUCAULT, 2016, p. 155).
Nessa lógica, convém lembrar que muitas foram as situações que se imbricaram para que, no cenário atual
identificássemos a efetivação da educação bilíngue, citamos algumas: a criação da primeira escola pública para
surdos em Paris, por volta de 1770, foi um fio entremeado que possibilitou que os discursos sobre a condição destes
sujeitos se tornassem promissores, pois, nesse momento foi possível confirmar a língua de sinais como meio para as
aprendizagens (LOPES, 2011).
Seguindo mais um pouco nessa ligeira digressão histórica, mencionamos o Congresso de Milão, ocorrido em
1880, que determinou o oralismo como único meio aceitável para o ensino destes sujeitos. Neste ponto da história
é possível identificarmos as relações de poder que ali se instauraram. Como afirma Foucault (2017), os discursos
representam formas de poder e de produção de sentidos, ou seja, ações e pensamentos são constituídos conforme
determinados contextos históricos. Logo, os discursos clínicos aliados àqueles que estavam com a força do poder
nas mãos, disseminaram verdades sobre a filosofia oralista como forma mais viável para a condução do processo de
ensino dos surdos.
As implicações acerca desse movimento foram extremamente positivas. Enfatizamos em especial, a criação de
uma comissão para acompanhamento das políticas públicas voltadas para os surdos, à abertura para as discussões
e criação de escolas bilíngues e a permanência do INES (IBIDEM, 2011). Em suma, tecemos alguns fios que se
estabeleceram cunhando condições para a efetivação da educação bilíngue, em escolas destinadas para esse fim,
como ensejam os sujeitos surdos e que nos permite então, discutir sobre o ensino realizado nesses ambientes
educacionais específicos.
Denotados estes pontos, ratificamos que a luta dos surdos pelas escolas bilíngues, reside no fato de que nestas
as especificidades destes sujeitos podem ser exploradas para que ensino e aprendizagem sejam efetivos. Como bem
enfatizam sobre tal aspecto, os dizeres de Lopes e Veiga-Neto (2017, p. 700) sintetizam exatamente o exposto: “A
aposta surda é no sujeito surdo e, acima de tudo, na aprendizagem proporcionada pela escola de surdos. Eles querem
uma escola que, acima de tudo, ensine”. Tal assertiva é corroborada por Viera-Machado e Victor (2015, p. 632), ao
explicarem os aspectos que se remetem a educação bilíngue.
Em nosso tempo, a proposta educacional prevista para o sujeito surdo nas políticas e nas práticas se dá pelo
que chamamos de práticas bilíngues. Trata-se de pensar uma pedagogia visual que se constitui nas línguas
e nas relações com as narrativas e os movimentos surdos, levando em conta a historicidade do grupo, tendo
como base uma proposta educacional bilíngue em que a língua de instrução é a língua de sinais e a língua
portuguesa é adquirida como segunda língua.
A proposta da educação bilíngue visa o ensino do aluno surdo por meio da Libras, que é sua língua natural
e nesse contexto educacional é utilizada como língua de instrução. Além disso, é importante mencionar que sua
exposição o mais cedo possível oportunizará a aquisição linguística, visto que há o convívio com seus pares e com
professores surdos e ouvintes fluentes nesta língua. Com a efetivação de práticas bilíngues, que são embasadas na
língua deste sujeito para a mediação de todos os processos cognitivos, haverá a possibilidade de aquisição de valores,
linguagem, cultura, comportamento social, que são imprescindíveis e possíveis a partir do uso de uma língua.
Alicerçando-nos no Decreto no 5.626/05 que especifica, em seu artigo 2o, pessoa surda é aquela que, “[...] por
ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura
principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras” (BRASIL, 2005) [grifos nossos], podemos refletir
ainda que, os aspectos linguístico e cultural do sujeito surdo, encontram-se explicitados legalmente. Ademais, sobre
este último, faz-se imprescindível também compreender que há a geração de valores, costumes, apreensão de mundo
que se manifesta de modo particular neste grupo. Em suma, às características desse “[...] modus vivendi dá-se o nome
de Cultura Surda” (FELIPE, 2008, p. 38). Portanto, devem ser valorizados e respeitados nos diferentes processos; e
aqui chamamos a atenção para os educacionais.
1 A discussão empreendida sobre esse aspecto é entendida do ponto de vista que a inclusão como vem sendo realizada não atende as
necessidades deste grupo específico. “Na atual configuração da educação inclusiva e do atendimento educacional especializado (AEE) a
Libras não assume centralidade como língua principal na dialogia que envolve estudantes surdos nas escolas” (FERNANDES; MOREIRA,
2014, p. 66), prejudicando o processo de aquisição linguística, cultural, além priorizar aprendizagens que são mediadas pela língua
adicional do sujeito surdo.
2 Sobre esse assunto a Revista Feneis, n° 44 publicou um dossiê acerca da movimentação ocorrida nesse período, e a culminância do ato
cultural e político da comunidade surda em defesa das escolas bilíngue; ainda nesse sentido, discutem de forma detalhada, sobre esses dois
aspectos as autoras surdas, Campello e Rezende (2014) no artigo intitulado Em defesa da escola bilíngue para surdos: a história de lutas
do movimento surdo brasileiro.
Ao deslocar a proposta de ensino para a abordagem bilíngue, estes atores sociais – os surdos – estão procurando
consolidar um mecanismo que lhes oportunize a apropriação de conhecimentos. Sendo estes traduzidos no uso de
sua língua natural como base para a mediação de conhecimentos, em formas de ensino e busca por aprendizagens
que atendam suas especificidades, para que o acesso à educação seja pleno.
A cultura surda e a pedagogia do surdo, um jeito de ensinar ao surdo, partem de experiências sensoriais visuais,
das línguas de sinais, dos educadores surdos, do contato da comunidade com os pais, com as crianças, com a
história surda e com os estudos surdos (BRASIL/MEC/SECADI, 2014, p. 13).
Nessa lógica, a busca por amarrações consistentes que assegurem uma educação bilíngue, que possa suprir as
especificidades do sujeito surdo, como as expostas no excerto anterior, vêm sendo orquestrada. O engendramento que
pesquisadores da área e o próprio movimento surdo vem galgando no seu entorno, busca uma urdidura que sustente
a efetivação de uma educação ofertada em escolas bilíngues. Principalmente porque nestas, os discursos valorizam
os surdos e a própria surdez a partir da diferença cultural e linguística, estes artefatos culturais são efetivados e “[...]
produzem práticas de ensino-aprendizagem realizadas por meio da língua de sinais, com o português escrito sendo
considerado como segunda língua” (THOMA, 2016, p. 769).
Segue esse mesmo raciocínio os demais conteúdos, tais como os matemáticos, que compõe o componente
curricular escolar, e a estes sujeitos deve ser oportunizado na construção de conhecimentos e formação. Nesse
contexto, aprendizagens que se referem as matemáticas devem levar em consideração aspectos relacionados a este
grupo cultural específico, possuidor de uma língua de modalidade visuoespacial, isto é, a Libras, além de uma forma
de apreensão de mundo, que é imanentemente visual (BRASIL, 2005).
Na contemporaneidade, discussões estão considerando que as matemáticas devam ser ensinadas levando-se em
consideração o modo de vida, a cultura dos sujeitos aprendentes. Ratificam o exposto Longo e Wanderer (2018, p.
306), ao endossarem que o “[...] ensino de matemática vinculado às formas de vida dos estudantes tem sido um dos
enunciados mais potentes do discurso da educação matemática e, em especial, do discurso etnomatemático”.
Nessa conjuntura, a educação bilíngue para surdos efetiva uma aproximação muito frutífera com as discussões
empreendidas pela Etnomatemática, visto que, práticas como as descritas acima, isto é, pautadas na valorização
social e cultural desse grupo, já ocorrem em escolas bilíngues. Tal situação vem se efetivando porque a comunidade
surda, imbuída de seus direitos, passou a requerer, em relação ao ensino a ela direcionado, “[...] uma mudança
abrupta de paradigma; muda-se o foco educacional da audição ausente na orelha do surdo para a competência
linguística e para o potencial cognitivo que o surdo tem” (NASCIMENTO; COSTA, 2014, p. 159).
Isso equivale à incursão em uma “[...] oportunidade de acesso real e concreto a todo tipo de conhecimento
construído e alcançado pelo ser humano” (IBIDEM, p. 159), pois, nesse espaço escolar o currículo centraliza a Libras
e a perspectiva cultural desses sujeitos em prol de conhecimentos que devem ser construídos. E aqui ratificamos
Nessa tratativa, ao dar visibilidade às características que demarcam o grupo dos surdos a partir da cultura surda e
da Libras, dentre outros aspectos que se remetem aos seus artefatos culturais (STROBEL, 2018), entrelaçamos estes,
as investigações da Etnomatemática. Dessa maneira, conjecturamos que estes sujeitos realizam práticas matemáticas
que são próprias da forma de vida que estão imersos e no contexto de suas realizações, ganham sentido. Logo, tais
práticas, no nosso entendimento, constituem-se como Etnomatemáticas.
Corroborando com o exposto, Knijnik (2010) argumenta que a ocorrência de matemáticas entre grupos
de homens, mulheres, assim como os momentos de lazer que envolvem crianças e suas matemáticas, e, ainda, a
própria Matemática Escolar, também compõem o objeto de estudo da Etnomatemática. Convergindo com as ideias
apresentadas, as matemáticas praticadas pelo grupo cultural específico de alunos surdos, inseridos em escolas
bilíngues, se encaixam ao explicitado.
Em efeito, a perspectiva Etnomatemática, como compreende Knijnik (2017, p. 48), ou seja, “[...] como uma caixa de
ferramentas teóricas (no sentido dado por Deleuze), que possibilita analisar os jogos de linguagem de diferentes formas
de vida e suas semelhanças de família” viabiliza as aproximações que aspiramos neste trabalho. A citada autora ainda
complementa que outras formas de raciocinar matematicamente, podem ser identificadas a partir da:
[...] noção wittgensteiniana de “semelhanças de família”... Ela nos permite argumentar sobre a existência
de jogos de linguagem de formas de vida escolares não-ocidentais que podem ser consideradas como
“matemáticos”, porque identificamos semelhanças de famílias entre tais jogos e aqueles nos quais fomos
escolarizados no mundo ocidental. Este é o critério a ser usado para decidir se jogos de linguagem de uma
determinada forma de vida são “matemáticos” ou não. Em síntese, essa construção argumentativa nos permitiu
obter uma justificativa teórica para a razão pela qual podemos considerar como práticas matemáticas algumas
específicas práticas sociais “do Outro” (IBIDEM, p. 51) [grifos da autora].
Vislumbrando entrelaçar o exposto, reiteramos que a perspectiva Etnomatemática realiza a aproximação com
as práticas realizadas por grupos específicos, buscando nesse processo, traçar, também, analogias e semelhanças
com a Matemática Escolar. Vinculando ainda, de modo pertinente o “[...] exame das matemáticas produzidas pelos
mais diversos grupos sociais, especificamente suas formas de organizar, gerar e disseminar os (conhecimentos
matemáticos) presentes em suas culturas” (WANDERER, 2014, p. 183) [grifos nossos].
De fato, neste campo da Educação Matemática há a possibilidade de escrutinar modos de aprender, explicar,
entender, enfim, desenvolver as matemáticas de um determinado grupo, como por exemplo, surdos imersos em um
contexto educacional bilíngue, buscando inclusive, nos jogos de linguagem por eles praticados, semelhanças de
família entre suas matemáticas e aquelas difundidas pela Matemática Escolar.
Portanto, nas tramas da educação bilíngue formas outras de matematizar, como expõe a Etnomatemática, podem
se materializar. Isto porque, a valorização dos artefatos culturais dos surdos é efetiva, convergindo com estudos que
“[...] têm apontado para a relevância de considerar as questões culturais no centro dos processos de aprender e ensinar
matemática” (KNIJNIK, 2017, p. 47). Logo, há possibilidades para que acepções da perspectiva Etnomatemática se
alinhavem de modo consistente e significativo ao ensino de surdos.
Fios entremeados, tecido finalizado. É chegada a hora de alguns arremates. A urdidura deste artigo, formada
através das teorizações da Etnomatemática e da educação bilíngue para surdos, tem seus últimos nós amarrados.
As tessituras realizadas nos conduziram a refutação de uma linguagem universal, uma essência invariável,
fornecendo-nos elementos para pensar em linguagens, as quais tem sentido mediante seus usos (WITTGENSTEIN,
2014). As investigações do filósofo em seu período de maturidade, oportunizam traçar uma confluência com a
Etnomatemática e suas discussões, pois esta coloca “[...] sob suspeição uma linguagem matemática universal que
seria desdobrada, “aplicada”, em múltiplas práticas produzidas pelos diferentes grupos culturais” (WANDERER,
2014, p. 203) [grifos da autora].
Percorrendo essa senda, emergem os fios que propiciam falar de jogos de linguagem, os quais se manifestam
no interior das formas de vida a que estão associados, com regras próprias e gramática específica que atende as
necessidades destas. Nesta esteira, há possibilidades de haver semelhanças de família, ou como Wittgenstein (2014,
P. 51) argumenta: “[...] você não verá algo que seria comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos”.
Importa assinalar ainda que, com Foucault podemos examinar efeitos de poder das Matemáticas Acadêmica
e Escolar. Suas ferramentas propiciam o escrutínio dos discursos, isto posto “[...] os discursos da matemática são
estudados levando-se em conta as relações de poder-saber que os instituem e são por eles instituídos” (GIONGO,
2008, p. 145-146).
Na meada aqui proposta, vislumbramos ainda tecer alguns fios sobre a educação bilíngue para surdos, que
realizada em escolas específicas, promove a valorização cultural e linguística destes. Nesses espaços os enlaces se
coadunam com artefatos culturais, como a Libras, que é manifesta através da visualidade e a própria cultura surda
e seus desdobramentos (STROBEL, 2018). Em síntese, fios diferentes afloram, se cruzam e se entrelaçam para
oportunizar a estes sujeitos aprendizagens efetivas.
Portanto, estendendo essa premissa aos conhecimentos matemáticos, inferimos as potencialidades forjadas
sobre outros modos outros de medir, inferir, contar, enfim matematizar, que tais locais podem apresentar. Assim,
com os fios entrecruzados corroboramos o entrelaçamentos que propomos nestes escritos, pois estes se fazem
presentes nas investigações da Etnomatemática, conforme as posições defendidas por Knijnik et al. (2013, p. 31) ao
“[...] considerar as Matemáticas produzidas nas diferentes culturas como conjuntos de jogos de linguagem que se
constituem por meio de múltiplos usos”.
Logo, ao buscarmos operar com outros modos de construir conhecimentos matemáticos colocamos “[...] sob
suspeição o lugar ocupado pelo que denominamos ‘a matemática’” (GIONGO, 2008, p. 187), o que nos oportuniza
visibilizar outras matemáticas praticadas por grupos culturais distintos, como sujeitos surdos inseridos na forma
de vida de escolas bilíngues. Destacamos ainda que, conforme os fios que escolhemos tecer nesses escritos,
compreendemos que tantos outros permanecem soltos, e, portanto, outras tessituras podem ser formadas, como o
registro de atividades específicas deste grupo, que nos ocupamos neste artigo.
Por fim, este aspecto que nos move a “[...] Considerar a importância da pensarmos a educação Matemática não
como uma área eminentemente técnica, asséptica, marcada pela neutralidade, pelo conhecimento desinteressado
e desenraizado das injunções do mundo social” (KNIJNIK et al., 2013, p. 84), mas de movimentarmos fios que
possam [...] dar respostas, mesmo que sempre provisórias, a questões do “chão da escola”, da prática de sala de aula,
especialmente nos processos de escolarização de grupos culturais que temos estudado” (IBIDEM, p. 34).
Introdução
A pesquisa que dá origem a este artigo tem como objetivo compreender o papel da Psicologia e da Pedagogia
nos processos de inclusão escolar e analisar como se dá a relação entre as áreas da Psicologia e da Pedagogia nos
processos de inclusão. Esta pesquisa foi realizada com profissionais da psicologia e da pedagogia que trabalham
diretamente com inclusão, em um Município do Vale do Taquari (RS).
O artigo está organizado da seguinte forma: na primeira seção, problematizaremos a inclusão escolar, trazendo
um panorama do tema e os caminhos metodológicos pelos quais foi construída a pesquisa; na segunda seção, serão
apresentadas as análises das entrevistas; por fim, fazem-se as considerações finais acerca do estudo.
A inclusão escolar é um tema que está sendo muito discutido nos meios de comunicação, em uma tentativa
de que ela realmente venha a acontecer. No processo de inclusão, é de suma importância que se tenha um olhar
voltado para os sujeitos que ali estão, pois cada aluno vai apresentar as suas dificuldades e potencialidades de forma
diferente, e isso precisa ser levado em consideração.
Com o passar do tempo, a escola foi construindo alguns estigmas dentro do seu contexto, o que veio a padronizar
os alunos, retirando, em alguns momentos, a responsabilidade da escola. Nos dias de hoje, há uma preocupação
com o grande número de encaminhamentos feitos pelos professores, que cada vez mais estão buscando outros
profissionais para obter diagnósticos que explicam o comportamento dos alunos. Conforme Rechico e Fortes (2008,
p. 55), “ao encaminharem alunos para avaliação médica e psicopedagógica, os professores descrevem sintomas que
geralmente são confirmados pelos médicos em seus laudos”, ou seja, esses alunos já são “diagnosticados”, antes
mesmo de serem avaliados por um profissional que esteja apto para isso. Nesses termos, obter o laudo é só uma
maneira de confirmar tudo aquilo que já estava predefinido pela escola. Ao patologizar-se um aluno, de certa forma,
ele já está sendo excluído, pois será visto como um portador de patologia e sem capacidade suficiente para ter um
bom desenvolvimento escolar. Diante disso, muitas vezes, a escola acaba se acomodando e deixando de exercer o
seu papel, que é ensinar, independentemente das dificuldades que o aluno possa ter.
O acesso à educação especial, previsto na legislação educacional, deve dar-se de maneira adequada para todos
os alunos que tiverem alguma necessidade específica, seja na estrutura da escola ou na adaptação de currículo, seja
nos métodos e técnicas de ensino ou até mesmo no acesso a eles. A educação especial é uma modalidade voltada a
um determinado público, que requer intervenções específicas para o desenvolvimento e aprendizagem. Nem todos
os alunos com dificuldades de aprendizagem necessitam de educação especial. Outro fator fundamental, previsto em
lei, envolve a formação e a busca por uma melhor qualificação dos professores para que eles possam proporcionar
para os educandos uma melhor inclusão.
Art. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar,
oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais.
§3º A oferta da educação especial, dever constitucional do Estado, tem início na faixa etária de zero a seis
anos, durante a educação infantil(BRASIL, 1996).
Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida
preferencialmente na rede regular de ensino, para “educandos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação” [...] (BRASIL, 1996).
Existir uma lei que regulamenta o direito de frequentar a escola é de fundamental importância. Contudo, não
basta só estar no espaço escolar; é necessário que a criança se sinta pertencente a ele. E este é o papel da escola
e dos profissionais que ali estão: desenvolver métodos e estratégias que possam auxiliar os alunos a construir
aprendizagens significativas e participar efetivamente do espaço escolar. Já está garantido em lei, mas, além disso, é
importante que esse ambiente esteja preparado para receber os alunos. Dessa forma, foram introduzidas as políticas
públicas de inclusão escolar, que têm como objetivo proporcionar acesso à educação para todos.
A inclusão escolar só acontecerá de forma eficaz dentro das escolas no momento em que forem repensadas as
práticas que ali estão sendo desenvolvidas, considerando-se se essas práticas realmente estariam promovendo os
processos inclusivos, ou se estariam fortalecendo ainda mais uma possível exclusão. Socializar não é incluir, e saber
diferenciar isso é um primeiro passo para proporcionar novos métodos de ensino e aprendizagem. A escola precisa
repensar qual é o seu papel nesse processo, e isso passa pelos profissionais que atuam no espaço escolar. Assim, este
estudo busca compreender o papel da Psicologia e da Pedagogia nos processos de inclusão escolar e analisar como
se dá a relação entre as áreas da Psicologia e da Pedagogia nesses processos.
Para compreender como vem ocorrendo o trabalho dos profissionais da Psicologia e da Pedagogia, foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com duas profissionais da Pedagogia e também duas da Psicologia, em um
município do Vale do Taquari (RS).Essas entrevistas foram feitas com profissionais que atuam dentro do contexto
escolar e que estão, de alguma maneira, trabalhando com esse tema.
Para buscarmos entender um pouco mais o que é a entrevista, a que ela se propõe e que tipo de situação é essa,
citamos Silveira (2002, p. 139-140):
Um jogo interlocutivo em que um/a entrevistador/a ‘quer saber algo’, propondo ao/à entrevistado/a uma
espécie de exercício de lacunas a serem preenchidas...Para esse preenchimento, os/as entrevistados/as saberão
Ao utilizarmos a entrevista como instrumento de pesquisa, é necessário que levemos em consideração todos
os fatores que possam influenciar na sua realização. Segundo Silveira (2002, p. 122-123), nesse processo, é muito
importante que o entrevistador “seja simpático, não sugira respostas, respeite o/a entrevistado, não o interrompa, não
o/a intimide, estabeleça um clima de confiança, etc.”. Esses são alguns cuidados que o entrevistador pode levar em
conta para que a entrevista atinja os objetivos que a pesquisa propõe.
Esta pesquisa é qualitativa e teve como objetivo compreender o papel da Psicologia e da Pedagogia nos
processos de inclusão escolar e analisar como se dá a relação entre as áreas da Psicologia e da Pedagogia nos
processos de inclusão. Na realização deste trabalho, foram utilizados livros, artigos de revistas e sites da internet
como fontes de pesquisa.
Na realização das entrevistas, foi possível perceber o quanto ainda está enraizado o papel que cada profissional
deve exercer dentro da escola. Cada pergunta feita trazia à tona a grande dificuldade que os profissionais da Psicologia
e da Pedagogia vêm enfrentando para conseguir desenvolver um trabalho voltado para a inclusão escolar. Embora
todos saibam que é muito importante trabalhar a inclusão escolar, as dificuldades que eles encontram aparentam
ser muito grandes. O distanciamento que existe entre a Psicologia e a Pedagogia no contexto escolar mostrou-se
evidente. As pedagogas1relatam que não recebem retorno quando encaminham um aluno para o profissional da
Psicologia; já as psicólogas dizem que é muito difícil conseguir dialogar com os professores, seja por falta de tempo
de ambos, seja por questões que atravessam essa relação.
O que fica muito nítido é que o diálogo entre esses profissionais dificilmente acontece. Assim como existem
vários estigmas no contexto escolar sobre o comportamento dos alunos, esses estigmas também ficam visíveis na
relação entre Psicologia e Pedagogia. As professoras relatam que a profissional da Psicologia não está todos os dias
dentro da sala de aula e, por isso, não sabe o que realmente acontece; já a profissional de Psicologia diz que não
adianta dialogar com os professores, pois eles não conseguem sair daquele sistema que está instituído há muitos anos
na escola. Ou seja, enquanto esses estigmas não forem desconstruídos, provavelmente a inclusão escolar continuará
caminhando a passos lentos. A partir dos discursos das entrevistas, ficou evidente que, muitas vezes, os profissionais
que atuam no contexto escolar, em muitos casos, não acreditam que a inclusão escolar realmente possa acontecer.
Eles relatam que são muitas as dificuldades que encontram e que na teoria a inclusão é muito bonita, mas na prática
ela não acontece. Diante desse discurso, podemos perceber que há certa acomodação por parte desses profissionais,
pois eles estão realizando um trabalho que eles mesmos não acreditam que possa dar certo. “Nas escolas, esse
processo de inclusão é muito complicado, porque é tudo tão mecânico, e às vezes não se questiona esse padrão
mecânico que está naturalizado na escola” (PSIE 1).
Ao falarmos do papel da Pedagogia, pensando na inclusão escolar, devemos olhar para as práticas que estão
operando nas escolas e a maneira como os profissionais estão colocando os seus saberes perante esse tema. Observa-
se que, cada vez mais, os saberes clínicos estão sendo posicionados como uma única verdade nas escolas e, com
isso, estão apagando o saber da Pedagogia. A busca pela normatização e pelo enquadramento dos alunos foi a forma
que a escola encontrou para tentar padronizar os sujeitos que ali estão.
1 Utilizaremos o gênero feminino porque todas as entrevistas foram realizadas com mulheres.
Se estamos pensando na inclusão escolar, o aluno que vier a ter algum diagnóstico não poderá ser visto como
incapaz de realizar alguma atividade.
Na verdade, sempre tem alunos nas turmas com quem a gente precisa fazer atividades diferenciadas. [...] por
exemplo, tem aluno que está no quarto, quinto ano, que ainda não está alfabetizado, então, precisa pegar e
organizar atividades diferentes com esse aluno e fazer com que ele aprenda (PEDE 2).
Todos os alunos enfrentaram ou enfrentarão alguma dificuldade de realizar alguma tarefa durante o processo
de ensino e aprendizagem. Então, possuir um diagnóstico não pode ser fator de exclusão, pois não será isso que
definirá o que um aluno pode ou não pode vir a aprender na escola. Diante disso, o contexto escolar muitas vezes
acaba estigmatizando alguns comportamentos; por exemplo, se um aluno não consegue aprender, é porque tem
algum transtorno. Ao estigmatizar, de certa forma, a escola já está excluindo, padronizando e também demonstrando
o quanto muitas vezes se omite em sua responsabilidade.
Muitas vezes, eu recebo uma demanda do Joãozinho, que não está aprendendo, aí eu pergunto para o professor:
o Joãozinho está tendo aula de reforço? Ele está frequentando a sala de recursos? Aí a escola diz assim: para
ele frequentar a sala de recursos, ele precisa ter um laudo. Mas aí eu fico me perguntando, será mesmo que
precisa de um laudo? Porque se já está nítido que ele tem um pouco de dificuldade, para que necessita de um
laudo? Isso eu fico me questionando. Porque, muitas vezes, ele está no começo dos atendimentos comigo, e
é muito recente para se fechar um diagnóstico, mas a dificuldade está ali. Mas, muitas vezes, querem o laudo
do médico para ele dizer o que é e o que precisa fazer, para comprovar o que já está nítido, que é a dificuldade
da criança. Eu acho essa questão um pouco complicada. Em algumas situações, até justifica, mas isso muitas
vezes acaba emperrando algumas coisas que podiam fluir melhor (PSIE 1).
Eu recebi um encaminhamento dizendo que o aluno não se adapta, não se enquadra no ambiente escolar. Opa!
O que está acontecendo ali? Como assim, o aluno não se enquadra no ambiente escolar? O aluno é do ambiente
escolar, esse ambiente é dele. Às vezes, eu fico preocupada nesse sentido, assim, porque o discurso é um, mas
as práticas são totalmente outras (PSIE 2).
A partir da pré-escola, todas as crianças têm o direito de estar inseridas no contexto escolar, e cabe ao Estado
e aos profissionais que ali estão proporcionar de forma igual que todos os alunos tenham condições de adquirir o
conhecimento no processo de ensino e aprendizagem. Diante disso, é necessário que os profissionais que atuam no
espaço escolar estejam preparados para exercer essa função.
Nas políticas públicas de inclusão escolar, promove-se uma política de universalização da escolarização: todos
são chamados a participar do sistema escolar; assim, supostamente todos, por partilharem o mesmo espaço
escolar, passam a ter acesso à educação escolarizada e à igualdade de condições para aprender (LASTA;
HILLESHEIM, 2011, p.91).
O espaço escolar precisa ser um lugar onde aprender a conviver com a diferença é necessário, e as políticas
públicas de inclusão escolar proporcionam essa integração entre as diferenças. Um aluno com necessidades especiais
precisa sentir-se acolhido por todos no contexto escolar e não pode ser considerado diferente dos demais. A escola
é o primeiro contato que uma criança tem com a sociedade, e, para que ela possa vir a sentir-se parte desta, é
fundamental que o processo de inclusão aconteça.
Na verdade, assim, a gente tem muito isso, e acho que aqui cabe de novo ao professor, eu acho, o professor
muitas vezes, essas avaliações que ele faz do aluno, é importante que ele tenha o conhecimento para saber se
Com relação à inserção da Psicologia no contexto escolar, essa é uma área de conhecimento humano e tem
muito a contribuir, pois não basta que todos estejam inseridos no mesmo espaço, devendo-se também levar em
conta como estão sendo realizados os processos de inserção das crianças. Para isso, é importante que se tenha um
olhar para os sujeitos, para as singularidades que cada um possui, sem discriminação de cor, raça, crença, cultura
ou classe social.
Eu acho que cada escola deveria ter um psicólogo(a), para que ele(a) pudesse dar um suporte para os
professores também, porque tem muitas situações que nós não sabemos como lidar. Muitas vezes, nós não
sabemos se estamos ajudando ou não, então, eu volto a insistir nessa questão da rede, que é fundamental que
tenhamos o apoio do(a) psicólogo(a) da UBS, do NAB, da Secretaria da Educação, enfim (PEDE 2).
As diferenças fazem parte de qualquer contexto em que possamos estar inseridos; somos constituídos por elas, e
no espaço escolar não é diferente. Quando estamos falando de inclusão nas escolas, é para que todos tenham o direito
de fazer as suas próprias escolhas, sem que isso os exclua. Diante disso, o profissional de Psicologia que atua nas
escolas exerce o papel de ajudar a desenvolver estratégias para que todos os alunos possam sentir-se pertencentes ao
mesmo espaço (DAZZANI, 2010).
Quando acontece de virem esses alunos para alguma avaliação, então, esses casos normalmente são casos
que precisam de inclusão também. Mas assim, esse processo é um pouco complicado porque normalmente
não conseguimos parar para discutir com a escola sobre isso. Assim como nós temos as nossas limitações
para avaliar esses alunos, a escola também tem; por exemplo, eu tenho pacientes que vêm encaminhados com
TDAH, com dificuldades de aprendizagem, que deveriam estar com o currículo adaptado ou com um monitor
do lado, mas acaba não tendo (PSIE 1).
Ao inserir-se em uma escola, o profissional de Psicologia precisa estar atento para todos os fatores que possam
dificultar o processo de inclusão escolar. É fundamental que esse profissional tenha um olhar para as questões
subjetivas que permeiam o espaço escolar e, dessa forma, proporcione momentos de escuta para todos que ali estão.
Também é essencial que o profissional de Psicologia busque dialogar com a escola. Diante disso, reafirma-se que
o papel da Psicologia no espaço educacional é central, pois esse ambiente pode vir a ser um grande causador de
sofrimento psíquico, tanto para os professores, quanto para as crianças que o frequentam. Dessa maneira, é muito
importante que o psicólogo escolar entenda qual é a sua função dentro desse contexto e, consequentemente,
desenvolva estratégias para facilitar o processo de ensino e aprendizagem.
Eu acho que a própria Psicologia tem um papel social de inclusão, de dar voz para quem tem um pouco mais
de dificuldade. Então, eu acho essencial que a Psicologia atente um pouco mais para isso, embora na academia
a gente fale muito pouco sobre inclusão, ou melhor, não se fala sobre inclusão na academia. Quando a gente
chega na prática clínica, depois de formados, aí nos deparamos com algumas situações de inclusão (PSIE 1).
Pensando na inclusão escolar, a Psicologia tem um papel relevante nesse contexto, pois os estudantes de
Psicologia que pretendem trabalhar nessa área precisam conscientizar-se do quanto o psicólogo é importante no
processo educativo. É fundamental que possam buscar aperfeiçoar-se adquirir conhecimento no seu processo de
formação, pois trabalhar no espaço escolar requer muito conhecimento teórico, e isso fará toda a diferença na sua
prática frente a estudantes com necessidades educacionais especiais no contexto escolar. A partir do conhecimento
adquirido no processo de formação, o futuro profissional de Psicologia saberá que ele terá o papel de proporcionar
estratégias que possam ajudar os outros profissionais que atuam dentro do campo educacional (AQUINO;
CAVALCANTE; FERREIRA,2016).
Diante disso, é fundamental que o profissional de Psicologia que for atuar dentro das escolas esteja atento a
essas práticas que estão sendo desenvolvidas.
Eu acho que Psicologia e Pedagogia poderiam andar juntas, porque no nosso trabalho, como Pedagoga com
os alunos, também precisamos de um apoio, assim como as famílias que, muitas vezes, parecem perdidas.
Também as crianças dentro da escola, muitas vezes, elas acabam se autorrotulando, que não são capazes de
realizar alguma tarefa... Essas crianças devem ser trabalhadas também no lado psicológico (PEDE 1).
O profissional de Psicologia que vier a atuar dentro das escolas não pode ser visto como alguém que está ali
apenas para trabalhar com os alunos que apresentam alguma deficiência ou comportamento “inadequado”, nem para
fazer uma avaliação psicológica quando a escola achar necessário. Importante considerar que o psicólogo precisa
participar e compor a equipe escolar para acompanhar o processo e não apenas participar de forma esporádica. O
psicólogo escolar, além de desenvolver todo um trabalho com as crianças, deve potencializar estratégias de trabalho
com a própria equipe e também manter um contato com as redes de cuidado e de apoio que possam vir a auxiliar no
seu trabalho no contexto escolar, podendo facilitar o processo de inclusão nas escolas. Segundo Boff (2004, p. 33),
“cuidar é mais que um ato, é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção, de zelo e desvelo.
Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização com o outro”. Percebe-se que as práticas de
cuidado estão muito ligadas aos profissionais que trabalham no espaço escolar.
É que, assim, se nós formos bem realistas, a inclusão, ela não acontece! No papel, a gente sabe que ela está
muito bem elaborada, muito bem feita, e, por mais que a gente esteja ali o tempo todo tentando incluir esses
alunos, ao incluir, tu acabas excluindo, porque eles se sentem excluídos. Por exemplo, enquanto os demais
alunos estão lá, fazendo atividades físicas, digamos, o aluno que não tem condições de fazer essa atividade
está fazendo alguma coisa mais teórica. Então, tu estás excluindo. Enquanto todos estão lendo um texto, o
aluno que tem uma deficiência, que não sabe ler ainda, ele fica lá, colando bolinhas. Então, isso é uma coisa
que a gente sempre aprendia na Pedagogia, que não é para fazer, que é para tentar sempre procurar evitar essa
exclusão, porque a gente acaba excluindo, tentando incluir (PEDE 2);
O que cabe à Pedagogia, nesse caso, é partir desses processos de in/exclusão para criar e organizar estratégias
que percebam as questões individuais e de grupo, que permeiam o processo de aprendizagem, e utilizá-las a
seu favor, seja como pistas para estudo e pesquisa, seja como produção de práticas pedagógicas que tencionem
permanentemente os processos de ensino e aprendizagem implementados em sala de aula.
Nesse processo, é fundamental que o profissional de Psicologia que atua dentro das escolas participe, juntamente
com a Pedagogia, para que desenvolvam estratégias pensando na inclusão desses alunos.
É que, assim, existe quase que uma rixa dos professores com a Psicologia, porque eles dizem que o psicólogo
não está na sala de aula. Embora não seja com todos, não quero generalizar, mas o que eu acho é que a
Psicologia poderia participar junto com a Pedagogia nos planos pedagógicos, discutindo juntos algumas
questões. Porque cada aluno tem uma forma de aprender, de se expressar, então, muitas vezes, as coisas são
muito impostas, e tem diferentes maneiras de aprender e de ensinar (PSIE 1).
Diante disso, podemos perceber o distanciamento que ainda existe entre Pedagogia e Psicologia. Pensando na
inclusão escolar, é fundamental que esses dois saberes possam aproximar-se e conversar.
Trabalhar o tema inclusão pode ser muito mais complicado do que realmente deveria ser, mas esse é um processo
que precisa ser trabalhado incansavelmente. Nesse sentido, a Psicologia e a Pedagogia têm muito a contribuir
uma com a outra, mas, para que isso realmente aconteça, é necessário que os profissionais dessas duas áreas do
conhecimento humano busquem essa aproximação. Esse é um processo que precisa ser construído e só acontecerá
no momento em que esses profissionais colocarem seus conhecimentos para conversar.
Conclusão
Frente ao que até aqui foi desenvolvido, conclui-se que, embora o distanciamento entre Psicologia e Pedagogia
dentro do contexto escolar ainda seja bastante visível, o que, de alguma forma, acaba se refletindo negativamente
nos processos inclusivos, também podemos perceber que ambos os profissionais que ali estão igualmente percebem
que a proximidade entre essas duas áreas seria de grande importância. Diante disso, acreditamos firmemente que
essa proximidade entre Psicologia e Pedagogia ainda vá acontecer. Percebe-se que há esse desejo por parte dos
profissionais, mas esse é um processo lento. Não basta apenas o desejo de que isso venha a acontecer – precisa-se
que esses profissionais estejam implicados nesse processo.
Também podemos perceber que os processos inclusivos dentro das escolas ainda estão caminhando em passos
lentos. Há certa resistência por parte dos profissionais que trabalham diretamente com a inclusão dentro do contexto
escolar, que demonstram nos seus relatos, durante as entrevistas, que dificilmente a inclusão virá a acontecer
realmente. Ou seja, não acreditar no próprio trabalho que estão realizando é o primeiro passo para que a inclusão
não aconteça. É claro que não queremos aqui afirmar que existe uma inclusão “de fato”, um lugar de chegada, onde
todos os problemas estão resolvidos e as dificuldades inexistem. Entendemos a inclusão como um processo contínuo,
permeado por situações de in/exclusão que são inerentes às relações humanas. Acreditamos que este trabalho possa
vir a contribuir deforma positiva e reflexiva para todos os profissionais que trabalham ou querem trabalhar com
inclusão no contexto escolar.
Referências
AQUINO, Fabíola de Sousa Braz; CAVALCANTE, Lorena de Almeida; FERREIRA, Ingrid Rayssa Lucena. Concepções e
Práticas de Psicólogos Escolares e Docentes acerca da Inclusão Escolar. Revista Psicologia: Ciência e Profissão, v. 36, n. 2, p.
255-256, abr./ jun.2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pcp/v36n2/1982-3703-pcp-36-2-0255.pdf>. Acesso em: 01
mai. 2018.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Especial na Educação
Básica. Brasília: CNE/CEB, 2001. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/diretrizes.pdf>. Acesso em: 01
mai. 2018.
BRASIL. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 01 mai. 2018.
DAZZANI, Maria Virgínia. A Psicologia Escolar e a Educação Inclusiva: Uma Leitura Crítica. Revista Psicologia Ciência e
Profissão, v. 20, n. 2, Salvador, p. 362-375, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pcp/v30n2/v30n2a11.pdf>. Acesso
em: 04 nov. 2017.
HATTGE, Morgana Domênica; KLAUS, Viviane. A importância da pedagogia nos processos inclusivos. Revista Educação
Especial, v 27, n. 49, p. 327-340, 2014.
RECHICO, Cinara Franco; FORTES, Vanessa Gadelha. A educação e a inclusão na contemporaneidade. Boa Vista:
EDUFRR, 2008.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. A entrevista na Pesquisa em Educação-uma arena de significados. In: COSTA, Marisa Vorraber
(Org.). Caminhos Investigativos II. Brasil: DP&A, 2002. p. 139-140.
Não é recente que a inclusão é palavra de ordem e bandeira de discursos de diversos órgãos e esferas, tanto no
contexto social como educacional. Quando se fala de inclusão na escola regular de ensino, segundo Veiga-Neto e
Lopes (2011, p.123), estamos falando da “educação das diferenças”.
A inclusão no Brasil, considerando-se o período compreendido entre o século XVIII e o início da segunda
década dos anos 2000, as diversas discussões e acordos, e as legislações que deles resultaram, permitiram a mudança
de um foco excludente para uma visão inclusiva. Em outras palavras, são visíveis, na história, práticas de exclusão
daqueles que eram ignorados pela sociedade. Segundo Frias e Menezes (2008, p.04) “no século XVIII, período que
se caracterizou por movimentos de exclusão, as pessoas com deficiência foram retiradas do convívio social porque
não tinham direitos, nem a sociedade as aceitava, portanto necessitavam viver reclusos em tempo integral”.
Mais tarde, no século XIX, verificam-se movimentos de reclusão parcial para aqueles considerados diferentes
do padrão de normalidade. Somente instituições específicas (APAE e outras instituições afins) poderiam receber os
ditos “diferentes”, pois eram especialistas na educação para esse público. Nelas, os sujeitos ganhavam tratamento,
educação e formação para o trabalho, de acordo com suas potencialidades e capacidades. A necessidade de incluir
pessoas com deficiência em diferentes espaços e funções vem à tona no século XX, sendo a escola um desses
espaços, pois nela os sujeitos são “capazes de aprender e criar outras condições de vida”. Tal visão constitui a
inclusão como um processo imperativo e, portanto, necessário no século XXI (LOPES; MORGENSTERN, 2014,
p.184). Para os autores Veiga-Neto e Lopes (2011, p.126), “a inclusão pode ser entendida, como um conjunto de
práticas sociais e culturais, educacionais, de saúde, entre outras, voltadas para a população que se quer disciplinar,
acompanhar e regulamentar”.
A implantação das leis que regem os métodos e as formas de inclusão no Brasil, mais especificamente, com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, e as discussões mundiais, como a Educação para todos, na Tailândia
em 1990, e a Declaração de Salamanca, na Espanha em 1994, além da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
Lei 9394/12/1996, que provocaram transformações importantes na concepção de inclusão social na sociedade
brasileira, permitindo seu afloramento no final da década de 1990. Os investimentos do Estado na educação e a
participação social dos entendidos como “diferentes”, articulados aos desejos das pessoas com deficiências e suas
famílias, possibilitam a constituição de ambientes inclusivos, que primam pela socialização como princípio da
prática inclusiva.
No ambiente escolar, percebe-se que “o simples fato de o aluno frequentar a escola, tendo a oportunidade
de conviver com os demais colegas e professores, justificaria sua permanência em sala de aula. Negligencia-se a
construção do conhecimento em prol da socialização do sujeito” (HATTGE; KLAUS, 2014, p. 329). É importante
notar que o processo de socialização é priorizado nas práticas inclusivas. Embora importante, a socialização deve
estar atrelada às aprendizagens e potencialidades dos sujeitos. Ou seja, ambas as práticas devem coexistir durante o
Desse modo, os processos inclusivos não devem privilegiar somente a socialização. Mas, sobretudo, devem
oportunizar a aprendizagem de alunos com necessidades específicas, já que “a escola tem um compromisso com o
desenvolvimento desses sujeitos” (HATTGE; KLAUS, 2014, p.329).
Hattge e Klaus (2014, p.330) ainda afirmam que “é preciso pensar que os processos de in/exclusão fazem parte
da nossa vida social e do sistema educativo”, e cabe, portanto:
Criar e organizar estratégias que percebam as questões individuais e de grupo, que permeiam o processo
de aprendizagem, e utilizá-las a seu favor, seja como pistas para estudo e pesquisa, seja como produção de
práticas pedagógicas que tencionem permanentemente os processos de ensino e aprendizagem implementados
em sala de aula.
Ainda, é importante considerar o sentido mais ampliado da inclusão dado aos movimentos implicados nesse
processo, visto que se voltam à necessidade de exclusão. Mas o que significa a expressão in/exclusão? Veiga-Neto e
Lopes (2011, p.130) explicam:
Atuais formas de inclusão e de exclusão que caracterizam um modo contemporâneo de operação não opõem
a inclusão à exclusão, mas as articulam de tal forma que uma só opera na relação com a outra e por meio do
sujeito, de sua subjetividade. [...] in/exclusão foi a expressão criada para marcar as peculiaridades de nosso
tempo, ou seja, para “atender à provisoriedade determinada pelas relações pautadas pelo mercado e por um
Estado neoliberal desde a perspectiva do mercado”. Dessa forma marcadamente relacional, a in/exclusão se
caracteriza pela presença de todos nos mesmos espaços físicos e pelo convencimento dos indivíduos de suas
incapacidades e/ou capacidades limitadas de entendimento, participação e promoção social, educacional e
laboral.
Nesse sentido, Veiga-Neto e Lopes (2011, p. 129-130) chamam a atenção para o uso alargado da palavra
inclusão, pois entendem que: “[...] seu uso, além de banalizar o conceito e o sentido ético que pode ser dado a ela,
também reduz o princípio universal das condições de igualdade para todos, a uma simples introdução ‘de todos’
num mesmo espaço físico”. Todos têm o direito a ocupar os mesmos espaços, porém de maneiras diferentes, isto
é, indivíduos são colocados numa situação de incluídos, mas ao mesmo tempo de excluídos. Logo, inclui-se para
excluir, fazendo-se, desse modo, uma inclusão excludente.
O uso mais ampliado do termo inclusão não consegue estabelecer a necessária diferenciação entre as várias
categorias excluídas. Portanto, podemos pensar que todos, indistintamente, são submetidos aos mesmos processos
de in/exclusão; assim, é comum que a escola adote o mesmo processo de in/exclusão, quer se trate de uma criança
autista, quer se trate de um jovem surdo, quer se trate de uma pessoa considerada normal.
Do Autismo
Historicamente, o termo autismo surge em 1911, a partir das pesquisas de Bleuler, designando-o como uma
característica da esquizofrenia. Em 1943, com as pesquisas e estudos de Leo Kanner, o autismo passa a ter um
tratamento próprio, não mais sendo considerado como um tipo de esquizofrenia. A partir disso, o autismo passou a
ser conhecido como uma síndrome que Kanner chamou de Autismo Infantil Precoce (BOSA, 2002).
Em 1944, Hans Asperger publica seu trabalho, com base nos pacientes por ele acompanhados:
Levantando, sobretudo, “características mais amplas que as de Leo Kanner, incluindo casos envolvendo
comprometimento orgânico”. Asperger chama atenção para as peculiaridades dos gestos – carentes de
Na medida em que, a temática do autismo se tornava o foco de investigação dos pesquisadores, ganhava
novas definições, tais como: a) psicose e esquizofrenia aplicados por Leo Kanner e Hans Asperger; b) transtorno
invasivo do desenvolvimento pela área da psicologia e c) transtorno global de desenvolvimento pela psiquiatria. Na
contemporaneidade, a área da neurociência o classifica como patologia neurológica e usa o termo “transtorno do
espectro autista”, para nomeá-la. Nela se inclui o autismo propriamente dito, a síndrome de Asperger e a síndrome
de Rett”. (CONSENZA; GUERRA, 2011, p. 132).
Um transtorno neurobiológico do desenvolvimento que tem uma origem genética poligênica que pode afetar
muitos órgãos, mas com predomínio da alteração do funcionamento do sistema nervoso central, especialmente,
estruturas como o córtex cerebral, o cerebelo e áreas do sistema límbico. [...] é caracterizado por anormalidades
no comportamento, envolvendo a interação social, a linguagem e a cognição, com retardo mental em 70% dos
casos e convulsões em 30% deles. O diagnóstico é clínico, feito pela observação do comportamento.
Quanto às suas características, Consenza e Guerra (2011, p.134) delineiam como as mais marcantes: “Os
comportamentos estereotipados (repetitivos) e os problemas de comunicação, de habilidade social e de cognição
(aprendizagem)”.
A palavra “autismo”, escrita de diferentes formas - com “a” maiúsculo ou minúsculo, com ou sem o artigo
precedendo a palavra (o Autismo ou o autismo) como síndrome comportamental, síndrome neuropsiquiátrico-
neuropsicológica, como transtorno invasivo do desenvolvimento, transtorno global do desenvolvimento,
transtorno persuasivo do desenvolvimento, psicose infantil precoce, pré-autismo, pseudo-autismo e pós-
autismo.
Conforme Gillberg apud Orrú (2009, p. 23), “o diagnóstico e tratamento do autismo infantil, é considerado
uma síndrome comportamental com etiologias múltiplas e curso de um distúrbio de desenvolvimento”. O autismo,
segundo essa concepção, seria uma síndrome cujo fator preponderante é a alteração profunda do comportamento,
com diversas origens e causas e, consequentemente, constitui-se caminho para evolução de distúrbios e alterações
importantes no desenvolvimento social da criança:
Oliveira (2009) apud Onzi e Gomes (2015, p.189) esclarece que a palavra autismo significa “‘autos’ [...]
‘próprio’ e ‘ismo’ [compreendidos como] um estado ou uma orientação, isto é, uma pessoa fechada, reclusa em si”.
Nesse sentido, o autismo é entendido como um estado ou condição em que o indivíduo com este diagnóstico, parece
estar recluso em si mesmo.
Nessa medida, o “autismo é uma inadequacidade no desenvolvimento que se manifesta de maneira grave,
durante toda a vida. É incapacitante e aparece tipicamente nos três primeiros anos de vida” (BORALLI, 2008, p. 21).
Esta definição vem ao encontro do que afirma Steiner (2002), com o agravante de que a síndrome torna o indivíduo
incapaz de responder por seus atos e ações.
Segundo Camargo e Bosa (2009), o autismo é assim classificado pelo DSM-IV-TR (Associação Psiquiátrica
Americana [APA], 2002):
É preciso reiterar, diante do exposto sobre autismo, que as características citadas, quando verificadas na criança
antes dos três anos de idade, são consideradas uma forma típica de autismo infantil. Se verificado após esta idade,
classifica-se como autismo atípico. No entanto, ele pode iniciar na adolescência, como também na vida adulta.
Quanto à prevalência do autismo, a patologia acomete em maior número sujeitos do sexo masculino. Conforme
Bosa e Baptista (2002, p. 31), até 2002, o prognóstico era de que o autismo
acomete cerca de cinco entre cada dez mil nascidos e é quatro vezes mais comum entre meninos do que
meninas. Hoje no Brasil, segundo pesquisas, existem 600 mil pessoas afetadas pela síndrome do autismo.
Sendo que é quatro vezes maior em meninos do que em meninas, com uma diferença da pesquisa americana,
no que diz respeito às meninas afetadas pelo autismo, que segundo evidências são mais severamente afetadas
pelo fato de que meninas autistas apresentam QI (coeficiente de inteligência) mais baixos do que os meninos.
Em relação à incidência do autismo por faixa etária, no Brasil, de acordo o censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2000), há os seguintes dados:
Considerando-se as taxas de 60/10.000 ou a mais recente taxa de 1% se pode estimar, que entre 1 a 2 milhões
de brasileiros preencham critério para o espectro autista, sendo de 400 a 600 mil com menos de 20 anos, e
entre 120 e 200 mil menores de cinco anos (IBGE, 2000, apud ONZI; GOMES, 2015).
Nesse sentido, pode-se afirmar que as teorias em relação ao aparecimento do TEA são muitas. Cada uma das
áreas de pesquisa em relação ao assunto tem conceitos distintos em relação à patologia, mas há uma concordância
entre elas: o autismo é caracterizado por anormalidades no comportamento, envolvendo a interação social, a
linguagem e a cognição.
Com relação ao termo “Espectro” presente na nomenclatura da patologia, justifica-se pelo fato de que o autismo
não se manifesta nos sujeitos da mesma forma. Em outras palavras, TEA (Transtorno do Espectro Autista) ou
Autismo, se desenvolve nos sujeitos em áreas, aspectos e níveis diferentes. Devido a essa característica, o autismo
recebe uma nomenclatura específica, conforme a área em que acomete o sujeito (Síndrome de Asperger, Síndrome
de Rett, entre outras).
Muitos pensam que inclusão social e escolar é só para crianças com deficiência. Na verdade, porém, inclusão
é direito de todos, sem exceção. Em seu artigo 205, a Constituição Federal de 1988 estabelece “a educação como
um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o
trabalho”.
Entre 1990/2000, há uma crescente preocupação com formulação de políticas públicas para a educação
inclusiva, tais como a Declaração Mundial de Educação para Todos em 1990, e a Declaração de Salamanca em
1994, documentos que, a partir de então, “passam a influenciar a formulação das políticas públicas da educação
inclusiva”. (Portaria 948/2007, p. 7).
Com o andamento do processo de inclusão no sistema regular de ensino, era preciso disseminar os conceitos
e diretrizes mundiais para a inclusão. Para reafirmar o direito e os benefícios de escolarização conjunta de alunos
com e sem deficiência em turmas do ensino regular, em 2004, o Ministério Público Federal divulga o documento “O
Acesso de Alunos com Deficiência às Escolas e Classes Comuns do Ensino Regular” com o objetivo de propagar os
conceitos e diretrizes mundiais para a inclusão e reafirmar o direito e os benefícios da educação inclusiva de alunos
com e sem deficiência em turmas do ensino regular (MEC. Decreto nº 5.296/2004).
A Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista é criada pela Lei nº
12.764/2012. O art. 1º desta Lei, também conhecida como Lei Berenice Piana, estabelece no “Artigo 1º: A pessoa
com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.” (MEC Lei
12.764 /12 /2012). Ou seja, ela inclui o autismo na listagem das pessoas com necessidades especiais. Além de
consolidar um conjunto de direitos, esta lei em seu artigo 7º, veda a recusa de matrícula às pessoas com qualquer
tipo de deficiência e estabelece punição para o gestor escolar ou autoridade competente.
Assim, graças à Lei Berenice Piana, de 28 de dezembro de 2012, é que as demais Leis brasileiras que protegem
as pessoas com deficiências e incluem em seus artigos também os autistas.
Após os estudos teóricos referentes aos processos que envolvem a inclusão, num entendimento mais amplo de
in/exclusão, bem como de compreender características e nuances sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA),
busca-se mostrar um pouco da rotina da Escola do menino diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA),
estudante do 1º ano do ensino fundamental de uma Escola de Ensino Fundamental da rede municipal de Lajeado/RS/
BR e o que pensam as professoras sobre o autismo.
Para a produção dos dados da pesquisa foram realizadas três observações na turma do primeiro ano em que
estava o aluno autista e entrevistas com questões semiestruturadas às professoras titular e assistente da turma,
objetivando mostrar de que forma compreendem o autismo e a inclusão escolar.
O aluno observado possui diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA) moderado, agravado por AVC
(Acidente Vascular Cerebral) acometido aos três anos de idade, do qual apresenta algumas sequelas. Além da escola
regular, o aluno frequenta a APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) em dia específico, no turno
inverso ao da escola. A partir das observações, foi possível perceber que não há interação entre as duas profissionais
no processo de inclusão do aluno com deficiência, pois as práticas ficam somente a cargo da professora assistente,
sendo que a professora titular somente se dedica ao atendimento das demais crianças da turma.
Esta preocupação também foi pronunciada pela professora da turma na entrevista realizada. Ao todo foram
cinco questões específicas. A primeira questão indagava sobre os conhecimentos teóricos em relação ao Autismo.
A professora titular, atuando na área da educação há pelo menos 26 anos e com formação em Pedagogia, não se
pronunciou de forma específica sobre a pergunta. Preferiu iniciar sua fala discorrendo sobre a sua experiência ao
receber um aluno autista em sua sala de aula. Afirma:
Olha, é a primeira vez que esse ano, que eu tenho uma criança autista. Está sendo uma experiência nova, não
muito fácil, principalmente no que tange à adaptação do aluno. É um aluno muito agitado, mesmo tomando
medicação sob prescrição médica, porque apresenta inquietação, não consegue permanecer sentado por muito
tempo, não consegue realizar as atividades propostas, devido aos comprometimentos neurológicos que a
patologia lhe impõe (PROFESSORA TITULAR).
Frias e Menezes (2008) mostram o quanto é desafiador para os professores a experiência de educar alunos com
necessidades especiais:
O desafio colocado aos professores é grande e que parte significativa continua “não preparada” para
desenvolver estratégias de ensino diversificado, mas, o aluno com necessidades especiais está na escola, então
cabe a cada um, encarar esse desafio de forma a contribuir para que no espaço escolar, aconteçam avanços
e transformações, ainda que pequenas, mas que possam propiciar o início de uma inclusão escolar possível
(FRIAS; MENEZES, 2008, p. 13).
Desafio este, que só será conquistado a partir do comprometimento da escola, (equipe diretiva, gestores e
professores), por meio de promoção de formação específica para estes profissionais. Nessa medida, cabe salientar, a
importância da figura do professor como pesquisador e um eterno aprendiz.
Já a professora assistente relata que tem formação em áreas específicas, licenciatura plena em História e
Geografia, especialização em Orientação e Gestão Escolar. Quanto à pergunta sobre seus conhecimentos teóricos
sobre o Autismo, ela assim se expressa:
Tenho cursos na área da educação especial e no período que trabalhei em Escolas de Educação Infantil e
Séries Iniciais tive, com alunos com deficiências, o diretor de uma das Escolas disponibilizou polígrafo sobre o
autismo, para todas as professoras lerem. (PROFESSORA ASSISTENTE).
Analisando a fala da professora assistente, percebe-se que, apesar da formação adquirida na área da educação
especial, no que diz respeito ao autismo e a questões práticas quanto ao processo de inclusão, segue realizando cursos
na área da educação especial. Nesse sentido, a busca de conhecimentos da professora mostra a necessidade de rever
a sua prática educativa, pois, conforme Lopes e Veiga Neto (2011, p. 123), “a inclusão não é boa por si mesma”.
Entende-se a afirmação como uma aposta no processo de formação do professor e, inclusive, nas possibilidades que
ele tem de elencar questões acerca da inclusão, sem que lhe pareça um movimento naturalizado.
A segunda pergunta se referiu à adaptação escolar do aluno autista à classe regular de ensino. A professora
titular responde brevemente que já havia respondido na primeira pergunta às questões referentes às dificuldades de
adaptação do aluno.
Foi bastante difícil. O aluno veio de uma EMEI, próxima à escola. Entrou numa turma diferente daquela
em que estava habituado. Com colegas com idades também diferentes das crianças com que convivia
na EMEI. Nesse meio tempo, os pais se separaram, e a professora precisou se ausentar por um período de
tempo para tratamento médico, que corroboraram com a dificuldade de adaptação do menino. O aluno tinha
comprometimento motor em função de AVC (Acidente Vascular Cerebral) sofrido aos três anos de idade, que o
deixou paralisado do lado esquerdo do corpo. Mas que, com ajuda da fisioterapia na APAE e atividades físicas
realizadas por mim, tem feito avanços significativos na sua motricidade (PROFESSORA ASSISTENTE).
O terceiro questionamento objetivou saber de que forma são trabalhados os comportamentos repetitivos do
aluno com o transtorno do espectro autista:
Essa parte é com a minha assistente, é ela quem trabalha diretamente com o aluno. Ela depois poderá falar
mais sobre isso. Ela vai poder te dar mais detalhes (PROFESSORA TITULAR).
Tal resposta dada pela professora, nos permite pensar que, às vezes, as atividades pedagógicas não são
compartilhadas pelos docentes. Nesse caso específico, nos dá a impressão de que falar sobre o menino com
diagnóstico de autismo, cabe somente ao profissional que o acompanha; ou seja, a monitora. Em outras palavras,
parece-nos que a professora desautoriza a si mesma a falar sobre o aluno.
É preciso ter muita paciência para lidar com os comportamentos e atos inesperados e involuntários do aluno.
Principalmente, nos momentos em que o aluno dá demonstrações de interesse por alguma atividade, procuro
incentivá-lo a novas aprendizagens. Procuro, ainda, conversar e explicar aos demais alunos da turma sobre
esses comportamentos, para não prejudicar a integração do menino com seus colegas (PROFESSORA
ASSISTENTE).
Ele tem desenvolvido aprendizagens diversas. Desenvolveu a oralidade, onde fez grandes avanços. Começa
a desenvolver a escrita, com rabiscos no papel. Pinta desenhos, mas ainda não sabe pintar dentro das
linhas. Para atividades de pontilhado, precisa de ajuda (a professora pega na mão). Ressalta ainda a mestra
desenvolvimentos conquistados pelo aluno no que tange à capacidade de memorização (PROFESSORA
ASSISTENTE).
Na fala de ambas às professoras, fica visível a preocupação central focada na alfabetização do aluno, ficando a
sua socialização em segundo plano. Torna-se relevante salientar que lhe são oferecidas atividades que diferem das
dos colegas. Neste caso, pode-se afirmar que o aluno está inserido em uma turma de ensino regular, em que somente
se tem em vista sua alfabetização, opondo-se aos pressupostos de Hattge e Klaus (2014, p. 329), ao afirmarem
que a “socialização estaria na base dos processos inclusivos vinculados a esse princípio [...] e que os processos
inclusivos na escola não se justificam simplesmente em função da socialização dos sujeitos”. Ou seja, num processo
de inclusão, a socialização e as aprendizagens devem ser trabalhadas concomitantemente.
A pergunta seguinte teve como foco os procedimentos de avaliação das aprendizagens do estudante. Para a
abordagem do tema, foi realizado o seguinte questionamento: De que forma é feita a avaliação dessas aprendizagens?
A resposta da professora titular foi sucinta. Segundo ela, a avaliação do aluno é contínua, portanto em todos os
momentos o aluno com espectro autista é avaliado. Já a professora assistente enfatiza na sua resposta os seguintes
procedimentos adotados pela escola para a avaliação do aluno:
Avalia-se o aluno em todos os momentos. Cada trabalho ou atividade que o aluno faz se avalia para ver o que
ele desenvolveu ou não. A cada trimestre, reúnem-se a professora titular, a assistente, coordenação pedagógica,
os professores da sala de recursos, de arte, música e educação física, e fazem uma mesa redonda, para avaliar o
desenvolvimento e aprendizagem do aluno em cada uma das áreas (PROFESSORA ASSISTENTE).
Nesse sentido, as afirmações das profissionais em questão compartilham em parte as ideias apregoadas por Rech
(2015, p. 175) apud Westenhofen (2016, p. 55), ao afirmar que a avaliação pode e deve ser:
[...] Pensada, (re)pensada e, principalmente, problematizada a todo o momento. Não existe uma única forma de
enxergarmos a inclusão; não nos serve mais tentar descobrir se ela é boa ou ruim. O que temos são diferentes
práticas, muitos sujeitos envolvidos e, além disso, uma série de desafios a nos desafiar cotidianamente.
No que concerne aos aspectos relativos a adaptações necessárias para o ingresso de alunos com deficiência, na
escola e na sala de aula regular, verificou-se que tanto as adaptações de currículos, objetivos, práticas pedagógicas
quanto de espaços físicos, nesta situação de inclusão, também são deficitárias e até mesmo, em alguns aspectos,
inexistentes. Conclui-se, então, que o modelo de inclusão proposto ao aluno corrobora para sua integração na
turma, pois permite sua interação com os colegas, através da convivência diária com seus pares, através de jogos
e brincadeiras em sala de aula e no pátio da escola. Mesmo que essas práticas sejam importantes ao menino com
diagnóstico autista, não garantem a sua efetiva inclusão na educação escolar.
Considerações finais
Quanto ao processo de ensino e aprendizagem de alunos com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), incluídos
em turma do ensino regular, torna-se relevante lembrar que este deve ser condizente e adequado ao da turma. No
entanto, há de se levar em conta a necessidade de adaptações de currículos, objetivos e conteúdos, de acordo com as
capacidades do aluno.
Como causas potenciais, ficou evidente que não há causas específicas para o desenvolvimento do autismo, e sim
vários são os fatores que podem contribuir para o desencadeamento do transtorno.
Para a construção de uma inclusão efetiva, não basta somente a garantia da Lei. Ela se tornou o norte para o início
das mudanças necessárias no que tange à inclusão. Contudo, precisa ir além das leis e definições de espaço, sejam
eles especiais ou regulares. Passa, ainda, pela aceitação das diversidades e diferenças como primeiro passo para a
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A aprendizagem escolar está cada vez mais presente em meio às discussões de autores como Campos (1972) e
Santos (2009). Tais pesquisadores buscam sempre estar a par de aspectos que caracterizam a educação na sociedade
atual, fato que pode indicar que estamos inseridos em uma realidade que exige/necessita de novas pesquisas sobre
a aprendizagem escolar. Pensando nas dificuldades que os alunos encontram durante a vida escolar, preocupou-se
em realizar uma pesquisa que estivesse pautada especialmente nas aprendizagens que os alunos não conseguem
construir ao longo dos anos escolares.
Portanto, pesquisou-se sobre a aprendizagem dos alunos matriculados nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental,
uma vez que é a partir dos Anos Iniciais que são realizadas avaliações com os alunos que medem o quanto estes
aprenderam ou não sobre os conteúdos estudados em aula. Dessa forma, a não aprendizagem escolar torna-se cada
vez mais perceptível, iniciando assim um processo mais intenso de “medição” das aprendizagens neste nível de
ensino.
Há palavras que por vezes são confundidas com o conceito de não aprendizagem, alguns exemplos são os
conceitos de inclusão, de dificuldade de aprendizagem, de transtornos cognitivos e de síndromes. Palavras estas que
são utilizadas de mandeira inadequada, justamente por estarem sendo confundidos com outros termos. Há situações
em que o aluno não possui qualquer alteração biológica que possa resultar em uma situação de não aprendizagem,
e, mesmo assim, este se encontra em um momento da vida em que não consegue apresentar evoluções significativas
quanto à aprendizagem de conteúdos escolares.
A partir de assuntos como esses, realizaram-se pesquisas para conhecer mais tais conceitos. Para tanto, iniciou-se
a pesquisa buscando o conceito de deficiência, depois procurou-se estudar o conceito de aprendizagem, para chegar
a uma explicação do que é a não aprendizagem. Durante as pesquisas, surgiram inúmeras dúvidas que serviram de
base para dar sequência aos estudos. Mas é a partir do conceito de pessoa com deficiência encontrado na legislação,
o qual será detalhado na sequência, que surgiram as primeiras dúvidas, as quais impulsionaram a pesquisa: Do que
se trata a situação de não aprendizagem escolar? Um aluno que não aprende em determinado momento da vida é um
aluno com deficiência? Por que a aprendizagem “não ocorre” da forma esperada para alguns indivíduos? Quais os
fatores que podem influenciar na não aprendizagem?
A partir dos questionamentos acima, e da confusão que eles provocam, bem como o conceito de deficiência
encontrado na legislação brasileira, ficou estabelecido como tema de pesquisa a situação de não aprendizagem.
Questionou-se, então, se as pessoas que se encontram em situação de não aprendizagem são consideradas pessoas
com deficiência. Partindo desse olhar sobre a deficiência, constituiu-se o interesse em relação à dificuldade de
aprendizagem. Assim, surgiu o desejo de compreender como os alunos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental
entendem o conceito de situação de não aprendizagem.
A presente pesquisa, fruto do Trabalho de Conclusão de Curso, buscou verificar de que maneira os alunos dos
Anos Iniciais do Ensino Fundamental compreendem a situação de não aprendizagem. A pesquisa aborda assuntos
atuais, que estão relacionados às configurações sociais, da realidade social. O presente trabalho foi organizado em
quatro seções, na primeira discute-se os conceitos utilizados durante a pesquisa, os possiveis motivos para a situação
de não aprendizagem de acordo com Biesta (2013) e Charlot (2000) e a relação dos alunos com a aprendizagem
escolar. Nos dois capítulos seguintes inicia-se a apresentação dos dados coletados, em que é apresentada, a partir das
falas das crianças, a mandeira que elas compreendem o ensino escolar e o que cosideram importante no processo de
ensino. Por fim, serão apresentadas as principais problematizações e conclusões elencadas a partir desta pesquisa.
Vários foram os processos para a efetivação da pesquisa, primeiramente fez-se um levantamento teórico e
conceitual dos termos utilizados na pesquisa. Em seguida, iniciou-se a pesquisa de campo, em que foi realizado
o grupo focal com treze alunos matriculados no quarto ano do Ensino Fundamental de uma escola Estadual do
município de Lajeado. Vinte e uma crianças foram convidadas a participarem, mas apenas treze foram autorizadas
pelos pais ou responsáveis.
Para a efetivação da pesquisa optou-se pela realização do grupo focal por ele permitir a interação dos
participantes, e, a troca de opiniões entre os mesmos. De acordo com Backes et al. (2011, p. 438) o grupo focal,
se caracteriza, como “[...] uma técnica de coleta de dados que, a partir da interação grupal, promove uma ampla
problematização sobre um tema ou foco específico”. Backes et al. (2011, p. 439) afirmam ainda que “o grupo focal
pode facilitar, ainda, a discussão de temas que normalmente são pouco explorados [...] visto que tendem a gerar
comentários mais críticos [...]”.
Sendo assim, os dados produzidos foram transcritos, lidos e analisados para a efetivação da pesquisa. Em
seguida, foram buscadas recorrências nas respostas dos alunos, gerando categorias de estudo no que compete ao que
os alunos estão compreendendo como situação de não aprendizagem.
Ao longo deste capítulo serão apresentados os conceitos de aprendizagem, de deficiência e de inclusão, para
poder pensar na relação com o conceito de situação de não aprendizagem, e posteriormente discutir sobre os
possíveis motivos para a efetivação da não aprendizagem em meio aos educandos. Também será analisada a relação
dos alunos com os saberes escolares.
De acordo com Campos (1972, p. 31), “a aprendizagem envolve o uso e o desenvolvimento de todos os poderes,
capacidades, potencialidades do homem, tanto físicas, quanto mentais e afetivas [...]”. A partir disso, constata-se
que tudo aquilo que os indivíduos desenvolvem são aprendizagens, como aprender a caminhar, a comer sozinho, a
escrever o nome, a realizar cálculos, todas esses pequenos aprendizados que constituem as pessoas como sujeitos
“aprendentes”1.
1 Termo que se refere, nesta pesquisa, a pessoas que aprendem, que têm a capacidade de aprender.
Pode-se afirmar, então, que fatores psicológicos e emocionais implicam também na aprendizagem do educando,
mas isso não torna os indivíduos incompetentes ou incapazes. Segundo Santos (2009, p. 07), mesmo que a criança
que se encontre com dificuldades na aprendizagem, na assimilação de novos conhecimentos, “[...] não significa que
[...] não aprenda, mas sim que seu processo de aprendizagem se encontra desequilibrado e que as aprendizagens são
realizadas de maneira diferenciada da esperada”.
Dessa forma, a pessoa que passa por dificuldades para assimilar algum conhecimento ou aprendizagem está,
ou pode estar, em situação de não aprendizagem, e poderá desenvolver novas aprendizagens em outro momento.
Tal conceito, o de situação de não aprendizagem, não se encaixa, por exemplo, quando temos algum aluno com
deficiência. Segundo o artigo 1º do decreto número 6.949, de 25 de agosto de 2009, “pessoas com deficiência são
aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial” (BRASIL, 2009,
texto digital).
Portanto, alunos em situação de não aprendizagem estão passando por alguma situação que pode ser passageira,
já alunos com deficiência possuem dificuldades a longo prazo, ou seja, são dificuldades que farão parte da vida das
pessoas, por exemplo os transtornos cognitivos ou síndromes. Sob essa perspectiva, quando encontrado um aluno
que, em sala de aula, não desenvolve sua aprendizagem da mesma forma que os demais colegas, existe a tendência
de taxá-lo com algum transtorno ou deficiência, de modo a justificar a não aprendizagem. No entanto, não há uma
relação direta entre estes dois conceitos, o que faz com que não seja possível dizer que alunos em situação de não
aprendizagem são especialmente pessoas com deficiência.
Dentre as possíveis influências para a situação de não aprendizagem, pode-se citar as dificuldades no
relacionamento familiar, a baixa renda, a fome, os problemas psicológicos, afetivos ou emocionais, no entanto
alguns desses fatores são desconsiderados por alguns autores. Já os possíveis motivos da deficiência são mais de
ordem biológica, ou, como afirma Silva (2006, p. 118), “[...] como um problema orgânico do indivíduo”, que pode
estar relacionado a empecilhos ocorridos durante a gestação, ferimentos graves que podem ter afetado os neurônios,
por exemplo.
Todas as pessoas que possuem qualquer especificidade, independentemente de ser deficiência ou situação de
não aprendizagem, estes passam a ser incluídos nas escolas. Uma vez que (neste estudo) utiliza-se o termo inclusão
para designar esta forma de acolher todos os alunos, independentemente das características físicas ou mentais, de
terem ou não dificuldades no processo de aprendizagem, de possuírem ou não anomalias genéticas (deficiências ou
transtornos). Nesse sentido, Lopes (2011, p. 107) entende “a inclusão como conjunto de práticas que subjetivam
os indivíduos, de forma que eles passem a olhar para si e para o outro, sem necessariamente ter como referência
fronteiras que delimitam o lugar do anormal e do normal [...]”.
Outro ponto a pensar é como que a escola vem se tornando uma instituição em que cada vez mais se encontram
alunos com diferentes demandas, desde problemas familiares, questões financeiras, biológicas, brigas, até os casos
em que os alunos migraram de outros países e não falam a língua do país para o qual se mudaram, por exemplo.
Com isso, todas as pessoas, independentemente de suas características físicas, psicológicas ou mentais, estão
estudando em um mesmo ambiente, em uma mesma sala de aula, recebendo as mesmas informações do mesmo
professor, tendo de possuir o mesmo conhecimento, independentemente de estar ou não interessadas, com ou sem
disposição para aprender. Essa educação como direito de todos está prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (1996), no Plano Nacional de Educação (2014) e na Constituição Federal (1988).
Indivíduos incluídos não são apenas aqueles que possuem deficiências, todas as pessoas podem fazer parte
de grupos nos quais são incluídos, bem como podem ser excluídos de outros grupos, vivenciando situações de in/
exclusão a todo momento. Todos No entanto, tem-se o costume de considerar diferente apenas aquele que apresenta
alguma dificuldade na associação dos conhecimentos, ou alguma anomalia genética. Dessa maneira, pessoas com
deficiência possuem certa dificuldade ao relacionar-se em meio à sociedade, uma vez que não são aceitas em um
mundo social em que todas as pessoas deveriam ser perfeitas.
Para além da não aceitação, existem inúmeros fatores que prejudicam o desenvolvimento cognitivo das pessoas,
em muitos casos, os alunos não compreendem a necessidade de estar estudando determinados conteúdos, ou, até
mesmo, não conseguem relacionar os assuntos apresentados pela escola com a sua realidade, com suas vivências.
A incapacidade de relacionar os conteúdos estudados com a realidade em que se encontra o indivíduo pode causar
um desinteresse nos estudos, que gera, então, a situação de não aprendizagem. Afinal, se o aluno não consegue
relacionar o conteúdo com sua vida, não haverá para ele sentido em estudar tal assunto. Charlot (2000) afirma que as
relações internas do sujeito são necessárias para a aprendizagem, complementando ainda que
[...] não há saber senão para um sujeito, não há saber senão organizado de acordo com relações internas, não há
saber senão produzido em uma “confrontação interpessoal”. Em outras palavras, a ideia de saber implica a de
sujeito, [...] de relação do sujeito com ele mesmo [...], [e] com os outros [...] (CHARLOT, 2000, p. 61, grifos
do autor).
É possível também que a situação de não aprendizagem não decorra apenas de um fator, pode ela emergir de
dois ou mais fatores. Campos (1972) afirma que a aprendizagem por si só envolve inúmeros fatores, como o uso
e desenvolvimento de funções mentais, físicas e emocionais. Se para a efetivação da aprendizagem é necessária a
harmonia nas três funções citadas por Moreira (2011) - mental, física e emocional, não necessariamente nelas entre
si, mas em cada uma separadamente – o aluno que estiver com algum fator desequilibrado pode ter dificuldades em
assimilar novos conhecimentos.
A escola possui a responsabilidade de dar conta de todos os conteúdos estabelecidos para cada ano/ciclo, no
entanto, também é responsabilidade da instituição escolar formar cidadãos que consigam relacionar os conteúdos
estudados com a sua realidade. Como afirmado no artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
a educação “[...] tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Sendo assim, o educando que concluir as etapas da Educação Básica,
preferencialmente, até “[...] os 17 (dezessete) anos de idade” (BRASIL, 1996, texto digital), deve conseguir transitar
com autonomia entre os conteúdos estudados em suas vivências. Como afirma Biesta (2013), nas últimas décadas, o
aluno conseguiu tornar-se mais racional, pois “[...] a educação tornou-se compreendida como o processo que ajuda
as pessoas a desenvolver seu potencial racional para que possam se tornar autônomas [...]” (BIESTA, 2013, p. 19).
Além dos possíveis motivos já citados, Bossa (2000) considera que alguns dos empecilhos para a aprendizagem
dos educandos são: a evasão escolar, o aumento do número de alunos com problemas de aprendizagem, a formação
dos alunos extremamente precária mesmo para aqueles que conseguem concluir o Ensino Fundamental, e o
desinteresse geral pelo trabalho escolar.
Também, é importante enfatizar que as crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem, geralmente,
apresentam desmotivação com as tarefas escolares, gerando um sentimento de incapacidade, que leva, naturalmente,
para a frustração, o desinteresse e à falta de atenção e concentração. Nesse contexto, muitas vezes, a escola passa a
ser vista por elas como a causa da infelicidade e as crianças passam a não gostar de estudar. Dubet (1997) disserta,
nesse sentido, sobre o quanto alguns alunos não se sentem bem nas escolas, afirmando que muitos alunos “[...] são
extremamente infelizes na escola, sentem-se humilhados, magoados. [...] para [eles], a situação escolar não tem
nenhum sentido” (DUBET, 1997, p. 226).
Portanto, percebe-se que a situação de não aprendizagem possui centenas de motivos, muitos ainda nem
imaginados, no entanto, é importante a preocupação, principalmente dos educadores para com os alunos. Há alguns
motivos que nesta pesquisa são mencionados com maior intensidade, devido aos questionamentos e resultados
coletados. Dentre eles, a afetividade tanto do professor em relação ao aluno como da família para com o educando e,
em algumas situações, a deficiência ou a falta de interesse dos alunos.
A partir dos questionamentos feitos às crianças, sobre a sua relação com os saberes escolares, foi possível
identificar de que maneira estes compreendem o ensino escolar, criar relações entre o ser aluno e o ser criança e
compreender de que maneira os alunos caracterizam o ensino.
Antes de dissertar sobre o que os alunos afirmaram sobre a aprendizagem, vale retomar que Dubet (1997) afirma
que as crianças deveriam aprender menos, mas aprender com intensidade, realmente criar significação para os novos
conhecimentos a serem produzidos. Nesse sentido, é importante que a criança construa aprendizagens que para ela
têm sentido, aprendizagens que deem prazer, e que, quando é proposto ao aluno algo que o faça se sentir bem, este
por sua vez acaba por realizar a tarefa com disposição.
Dessa forma, de acordo com Lourenço e Paiva (2010, p. 134), “O aluno intrinsecamente motivado concretiza
a tarefa apenas pelo prazer, porque se interessa por ela e se satisfaz verdadeiramente com a actividade em si”. No
entanto, durante a realização do grupo focal com as crianças, ficou bastante evidente que para elas a aprendizagem
restringe-se apenas ao estudo de conteúdos escolares, enquanto que aprender a jogar determinado jogo é “perda de
tempo”. Pode-se dizer que para elas não se aprende o que se deseja ou o que se gosta, mas sim o que a professora
A professora e doutora Roselane Zordan Costella (2018), em uma palestra que ministrou na Universidade do Vale
do Taquari - Univates, sobre a Base Nacional Comum Curricular3, menciona que na Base estão previstos conteúdos,
habilidades e competências para cada nível de ensino, que podem trazer significações aos alunos. Costella (2018)
afirma também que o uso da Base é necessário em todas as escolas brasileiras, no entanto, menciona a importância de
cada educador retirar da Base aquilo que considera mais adequado e interessante para a turma em que atua, ou seja, é
papel do professor “peneirar” aquilo que está de acordo com a realidade das crianças.
Na fala do “Aluno J” também é possível perceber o quanto as crianças julgam que o jogo e a brincadeira
prejudicam os estudos: “Quando a pessoa tiver jogando, ou brincando, a pessoa deve parar e dar um tempo para
estudar. Porque daí, quando ela virar adulta ela vai pensar tudo [...] [de] quando ela era criança e só ficava
brincando. E se ela estudar ela pode virar uma grande4 pessoa”5. Fica evidente que essa criança acredita que, se
as pessoas quando crianças ficarem jogando, elas não terão boas oportunidades no mercado de trabalho, visto que
cada um constrói o seu futuro, sua identidade e suas diferenças, como afirma Silva (2000, p. 2): “A identidade e a
diferença têm que ser ativamente produzidas. [...] Somos nós que as fabricamos[..]”.
Durante a conversa com as crianças, surgiram ideias muito fixas de que para ser uma pessoa bem sucedida
socialmente é preciso estudar muito e dedicar-se quando criança, quando em fase escolar. O “Aluno A” sugere uma
solução para o problema das crianças que possuem dificuldades de aprendizagem, afirmando que “tem que apoiar e
tentar ajudar, levar essa criança para o mundo dos estudos”, de modo que quando crescer “ela pode estudar e ficar
uma boa pessoa” (Aluno H) ao invés de “virar pedreiro” (Aluno I).
Outro aspecto que ficou bastante evidente nas falas das crianças foi o discurso adultizado que elas assumiram,
especialmente quando se referem ao fato de que é necessário levar as crianças ao mundo dos estudos. De acordo com
um dos alunos “Se a pessoa estudar, começar a se ‘puxar’, ela pode até conseguir aprender bastante, ficar esperto,
passar de ano, ir para a faculdade, mas se ela ficar brincando na aula, que nem ela fazia e ela não se ‘puxar’, [...]
ela não vai conseguir passar de ano e ela não vai aprender pelo resto da vida” (Aluno K - grifo nosso). É possível
perceber o quanto que para as crianças é importante que elas estudem para seguir a vida conforme orientações dos
adultos. No entanto, mais uma vez, é evidente o quanto as crianças acreditam apenas nas aprendizagens escolares,
fundamentadas muitas vezes pelas argumentações de seus responsáveis.
As crianças vivem refletindo ações e repetindo discursos que escutam das pessoas mais velhas, discursos
que dizem respeito à maneira como devem se comportar, às atitudes que devem seguir e às decisões que devem
tomar. Algumas crianças, quando questionadas em relação ao que devem fazer enquanto crianças para evitar a não
aprendizagem, responderam que deveriam estudar e se esforçar muito para ser uma pessoa na vida. Mas de onde
2 Para preservar a identidade dos alunos participantes do grupo focal, estes foram identificados por letras do alfabeto. Da
mesma forma, os responsáveis estão aqui identificados como “Responsável pelo Aluno J”, “Responsável pelo Aluno A”, e
assim sucessivamente.
3 O estudo da Base Nacional Comum Curricular não é o foco central da presente pesquisa, no entanto julga-se interessante
fazer esta relação, visto que a pesquisa está pautada em saberes escolares e na relação dos alunos com estes saberes.
4 Durante a entrevista foi questionado às crianças o que é ser uma grande pessoa, e algumas crianças responderam que é ter
um emprego bom e dinheiro.
5 Salienta-se que as transcrições das crianças do grupo focal foram apresentadas de maneira literal.
Quando as crianças se apossam do discurso dos responsáveis, estas se espelham neles para tomar decisões,
e, assim, fica evidente o quanto a família é importante no processo de ensino e de aprendizagem. Muitas vezes as
famílias culpabilizam a escola e a escola culpabiliza a família quando o aluno não aprende. No entanto, é de extrema
importância a tanto a participação dos pais no processo de aprendizagem como a participação da escola, ambos em
direção a um mesmo objetivo.
Pode-se afirmar que a aprendizagem das crianças depende de centenas de fatores, dentre eles a realidade em que
as crianças se encontram, o comprometimento da professora e a participação da família no ensino dos alunos, por
isso é importante que a legislação seja cumprida de maneira correta, para que a criança possa estar bem para aprender
e viver bem. Vale ressaltar que fatores como fome, má alimentação e saúde precária interferem negativamente na
aprendizagem das crianças, dificultando a aquisição de novos conhecimentos.
De acordo com a pesquisa realizada, as crianças baseiam-se nas atitudes dos adultos, seguindo suas falas e
comportamentos, tornando seu discurso adultizado, além de acreditarem que a professora escolhe o que deseja
ensinar, não o que os alunos gostariam, caracterizando o ensino como conteudista. Por esses motivos, caracteriza-se
a relação dos alunos com os saberes escolares como adultizada e conteudista.
No início do trabalho, apresentou-se o conceito de aprendizagem segundo Campos (1972), em que ele afirma
que a aprendizagem é o uso e o desenvolvimento de todas as habilidades. Sendo assim, inclusive as aprendizagens
que o indivíduo adquire em casa, com a família, são aprendizagens. A cada tarefa, atividade ou situação que a
criança desenvolve, ela estará exercitando determinada habilidade, podendo ser habilidades manuais, como organizar
espaços, ou de controle corporal, como ouvir a família quando se comunica com ela. Portanto, a participação da
família é essencial para o desenvolvimento de novos conhecimentos.
A partir das respostas das crianças, também fica evidente o quanto percebem a importância dos pais e seu apoio
nos estudos. Charlot (2000) menciona a importância do comprometimento dos pais, especialmente quando afirma
A escola e a família devem andar sempre juntas em direção a um mesmo objetivo: de educar e escolarizar
as crianças, de modo a tornar a aprendizagem significativa. A união da família e da escola é importante, pois a
aprendizagem escolar está mais centrada em ensinar conteúdos em uma perspectiva escolarizante, todavia, não se
pode negar a educação em uma perspectiva ampla, juntamente com a família e com a sociedade. Desenvolvendo
a educação, a escola consegue aperfeiçoar a escolarização, desenvolvendo as múltiplas dimensões formativas do
sujeito, como a ética, o afetivo, a estética, o social e o cognitivo.
De acordo com as reflexões apresentadas, a aprendizagem dos educandos dependerá da maneira com que o
professor e a família se comprometem com o ensino das crianças, além do esforço individual de cada aluno para
que ele consiga desenvolver aprendizagens. É importante ressaltar que se partiu do pressuposto de que a realidade
em que o indivíduo está inserido implica nas suas aprendizagens, portanto, como afirma Charlot (2000), para que o
indivíduo consiga adquirir saber, ele precisa viver certas experiências e estabelecer uma relação com o mundo, para
que ele conheça certas realidades ele precisa vivenciá-las, e, a partir de suas vivências, construir seus conhecimentos.
Em um contexto geral, os alunos afirmam que se não estão aprendendo é porque eles mesmos não estão se
esforçando para tal, dando prioridade a outras atividades em seu dia a dia ao invés dos estudos, como jogos ou outros
divertimentos que sejam de interesse do próprio aluno, não somente atividades ou assuntos à escolha da professora.
No entanto, durante a pesquisa, foi possível perceber o quanto a relação dos alunos com os saberes é adultizada,
sendo assim, o aluno irá apossar-se das falas, e, muitas vezes, das atitudes dos adultos para pensar sobre determinado
assunto, ou seja, a maneira como os adultos lidam com esta criança será decisiva nas ações delas perante outras
pessoas e novas aprendizagens.
A realidade em que o aluno está inserido não é apenas a realidade familiar, pois a criança carrega muito da escola
em sua personalidade, sendo o papel da instituição escolar fundamental no processo de ensino e de aprendizagem,
assim como o dos responsáveis. A aprendizagem dos educandos perpassa todas as vivências dos indivíduos, a
realidade em que ele está inserido, a metodologia utilizada pela professora, e, também, os recursos disponíveis na
escola.
Considerações finais
Indivíduos que passam por dificuldades para assimilar algum conhecimento ou aprendizagem estão, ou podem
estar, em situação de não aprendizagem, o que significa que estes estão momentaneamente com dificuldades na
aprendizagem, mas que em outro momento da vida poderão desenvolver determinadas habilidades. Há uma grande
diferença entre deficiência e situação de não aprendizagem, visto que a deficiência é uma implicação a longo prazo, e
a dificuldade de aprendizagem é uma implicação a curto prazo. Além disso, a deficiência pode ou não estar associada
à não aprendizagem do indivíduo, diferente da situação de não aprendizagem, que está especificamente relacionada
à aprendizagem do indivíduo.
A não aprendizagem está associada à realidade em que o indivíduo se encontra, e modela-se conforme
as intervenções da sociedade - escola e família -, que irão agir diretamente sobre o ser que está compondo suas
aprendizagens. Se o indivíduo receber apoio da família e da escola, bem como carinho, atenção, uma vida bem
Durante a realização da pesquisa foi possível perceber o quanto a maioria das crianças pensa de maneira muito
parecida, muitas vezes relatando que é culpa delas mesmas quando não conseguem assimilar novos conhecimentos.
Percebe-se então que as crianças estão vivendo em um mundo de responsabilidades desde muito cedo, apoderando-
se não somente dos discursos adultizados, mas das responsabilidades dos adultos também. No entanto, o que as
crianças não conseguem compreender ainda é a complexidade de todo o processo de aprendizagem e os inúmeros
fatores que podem influenciar nessa jornada de aquisição de novos conhecimentos.
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Danise Vivian:
Pedagoga, Mestra e Doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ UFRGS. Professora e
coordenadora do curso de Pedagogia da Universidade do Vale do Taquari - Univates. E-mail para contato: dvivian@
univates.br.
Fabiane Olegário:
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, é professora do Curso de Pedagogia
na Universidade do Vale do Taquari - Univates. Coordenadora do Projeto de Extensão Pensamento Nômade e da
Pesquisa Procedimentos didáticos e a reinvenção de arquivos na docência (CNPq/Univates). Integrante do Grupo de
Pesquisa Currículo, Espaço e Movimento (CEM/CNPq/Univates). E-mail para contato: [email protected].
Raquel Fröhlich:
Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Professora do Departamento de
Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Inclusão (Gepi/Unisinos/CNPq) e do Observatório de Políticas
Curriculares e Educação Inclusiva (OPEN/FAED/UDESC). E-mail para contato: [email protected].
Roberta Acorsi:
Doutoranda em Educação PPGEdu/UFRGS. Mestre em Educação pela ULBRA, Especialista em Educação Especial
e Pedagoga pela UNISINOS. Seus interesses de pesquisa discutem a temática da inclusão e sua articulação com a
educação profissional. É Coordenadora Pedagógica do SENAI Lajeado e Guaporé. E-mail para contato: roberta.
[email protected].
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