Retrato Falado e A Mulher Negra No Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO SÓCIO ECONÔMICO


DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
CURSO SERVIÇO SOCIAL

DANDARA MANOELA DOS SANTOS

Retrato Falado e a mulher negra no Brasil: Uma reflexão sobre a relação entre o
singular e o universal.

Florianópolis
2019
DANDARA MANOELA DOS SANTOS

Retrato Falado e a mulher negra no Brasil: Uma reflexão sobre a relação entre o
singular e o universal.

Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em


Serviço Social do Centro sócio econômico da
Universidade Federal de Santa Catarina como
requisito para a obtenção do Título de
Bacharel/Licenciado em Serviço Social.
Orientador: Profa. Dra. Cristiane Luiza Sabino de
Souza.

Florianópolis
2019
DANDARA MANOELA DOS SANTOS

Retrato Falado e a mulher negra no Brasil: Uma reflexão sobre a relação entre o
singular e o universal.

Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de
Assistente Social e aprovado em sua forma final pelo Curso.

Florianópolis, 18 de dezembro de 2019.

________________________
Prof.ª Dr.ª Dilceane Carraro
Coordenadora do Curso

Banca Examinadora:

________________________
Prof.ª Dr.ª Cristiane L. Sabino de Souza
Orientadora
Universidade Federal de Santa Catarina

________________________
Prof.ª Dr.ª Beatriz Augusto de Paiva
Universidade Federal de Santa Catarina

________________________
Prof.ª Dr.ª Clara Martins do Nascimento
Universidade de Pernambuco
Este trabalho é dedicado a todas as mulheres
negras, mas principalmente, as que fizeram de
tudo para que eu estivesse aqui: Delba Martins
Santos, Deborah dos Santos, Elisângela de
Paula Pereira e Fátima Aparecida Pereira.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a toda minha família, em especial, minha avó Delba (in memória), por
toda sua dedicação na minha criação e por fazer transbordar o significado de amor. A
minha tia Deborah (Tata), que decidiu me adotar e que fez e faz de tudo para que
nada nunca me falte. A pessoa que sei que posso sempre contar nessa vida, minha
mãe, Elisângela, por ser tão guerreira e ter dado nó em todos os becos que a vida a
tentou colocar, você me inspira. E também minha avó Fátima, que é ponto de partida
fundante do meu disco e desse TCC que, mesmo sem saber, me fez despertar para
essa sociedade. Mulheres negras que formam esse retrato, vocês são minhas maiores
referências, e tudo que sou e tenho, dedico a vocês. Também agradeço meus irmãos:
Taynara, Kauê, Juninho, Caio e Lucas por existirem e darem mais alegria e força para
seguir lutando na vida. Agradeço ao meu pai Aminadab, e todos meus primos(as), em
especial Fernando, Camila, Érica, Kallel, Izac, que, mesmo com a distância, sempre
fizeram valer pra mim o significado de amor. Agradeço também minhas referências
acadêmicas: Joana Célia dos Passos, obrigada por tão cedo ter confiado em mim, por
me ajudar a confiar em mim. Cauane Maia, por subverter o retrato esperado para uma
mulher preta nessa sociedade e por sempre mover estruturas toda vez que faz uma
fala. Cristiane Luiza Sabino de Souza, obrigada por fazer desse momento possível e
por me fazer me sentir verdadeiramente acolhida, desde a primeira orientação.
Agradeço de todo meu coração, minha companheira de vida, amiga, esposa e
namorada, Renata Schlickmann, por me apoiar em tudo que eu faço, me dar suporte,
segurança, amor e literalmente botar a mão na massa e fazer acontecer comigo, por
topar construir uma nova história lado a lado e por me presentear com uma família
linda, Fernando, Eugênia, Fernanda, Zuca e Tuça, amo vocês.
Agradeço a primeira amiga que conheci no Serviço Social, Ingrid Maria, que
presente te encontrar, minha eterna best, por todas as alegrias que você me
possibilitou dentro dessa universidade e fora dela. Agradeço a Marissol Mwaba, por
ser referência de mulher preta em tantos campos da vida, por ser minha grande amiga
de todas as horas e por ter topado cuidar com unhas e dentes desse nosso
afeto. Bruna Barreto, você é o futuro, obrigada por me dar moral, apoio, carinho. Por
ser minha filhota de coração e irmã, por ser família, sempre estarei aqui pra você.
Sarah Massí, por toda alegria, energia, amor. Por ter me ensinado tanto nos últimos
anos, sobre acreditar, ter fé e fazer acontecer, por ter me convocado a ser parte das
Cores de Aidê, por ser realizadora, sócia, parceira da vida e principalmente, minha
grande amiga. Agradeço as integrantes da banda mais incrível desse Brasil, Bê Sodré,
Cauane Maia, Carla Luz, Cris Fernandes, Fernanda Jerônimo, Laila Dominique, Luana
Nascimento, Nattana Marques, Nine Martins e Sarah Massí, pela nossa vivência,
ensinamentos e parceria. Também agradeço os integrantes das bandas do meu
projeto solo, Cris Ubrother, Mateus Romero, Jeff Nefferkturu, Marcelo Santhu,
Matheus Crippa, Otis Selemane, Adriel Job, Diogo Nazareth, obrigada por abraçarem
com tanto carinho esse Retrato, eu amo vocês.
E essa tal liberdade, onde é que anda, onde é que
vai?
Pela minha janela vejo que o meu povo é o primeiro
que cai
É que agora mudamos, deixa de papo, é pura ilusão
Acabou o racismo, quer conferir liga a televisão
[...] É choro perdido, é tiro encontrado, é corpo no
chão
Todo mundo assustado e parece que foi só uma
confusão
E se não acredita e quer conferir,
desligue a televisão e vai lá pra janela
pra sua janela, olha que situação

Dona Georgina - Dandara Manoela, 2018.

RESUMO
Falar de mulheres negras é falar de uma infinidade de atravessamentos que
constituem seus cotidianos, suas vidas. A música Retrato Falado de Dandara Manoela
conta a história de sua bisavó, sua avó e sua mãe, até chegar na história dela. Todas
essas mulheres são negras e seus caminhos estão cruzados, mas ao olhar a
sociedade brasileira como um todo, é possível perceber que essas histórias compõem
contradições sociais de classe, raça e gênero que se repetem na maioria da vida das
mulheres negras do país. Nesse sentido, este trabalho de conclusão de curso teve
como objetivo elaborar mediações teórico-reflexivas sobre as contradições sociais -
de classe, raça e gênero - na sociedade brasileira a partir da música Retrato Falado e
buscando mediações teóricas a partir da pesquisa bibliográfica com referência em de
autoras/es que abordam a temática da questão racial e, particularmente, sobre a
situação da mulher negra no Brasil. O resultado foi a confirmação de que a estrutura
racista em que o Brasil foi constituído e que permanece em pleno desenvolvimento,
contribui para que a história se repita ainda hoje, mantendo a maioria das mulheres
negras em lugares de subordinação e solidão, mas que essas mesmas mulheres
continuam resistindo e subvertendo esse processo.

Palavras-chave: Mulher negra; Classe; Raça; Gênero; Retrato Falado.

ABSTRACT
To talk about black women is to talk about several aspects that constitute their day-by-
day, their lives. The song "Retrato Falado" by Dandara Manoela tells the story of her
great grandmother, her grandmother and her mother, until it comes to her own story.
All these women are black and their paths are crossed, but as we look at the brazilian
society, it is noticeable that these stories are made of social class, race and gender
contradictions, that repeat in the lives of most black women in the country. Therefore,
this completion of course work has the goal to elaborate theoretical-reflexive
discussions about the social class, race and gender contradictions in brazilian society
trough the song "Retrato Falado", and to look for theoretical mediations from the
bibliographic research with the reference of authors that bring the racial thematic,
particulaly about black women's situation in Brazil. The result was the confirmation that
the racist structure in which Brazil was constituted in, and that remains in it's full
development, contribues for the story to repeat within today, keeping most black
women in places of subjection and solitude, and even so, still resisting and subverting
this process.

Key words: Black woman; Class; Race; Gender; Retrato Falado.

LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Infográfico referente a habitação e saneamento segundo sexo e raça/cor
(2009) ........................................................................................................................ 21
Figura 2 - Infográfico de distribuição de renda segundo sexo e raça/cor (2009) ...... 23
Figura 3 - Gráfico sobre a taxa de homicídios de negros e não negros no Brasil (2007-
2017) ......................................................................................................................... 36
Figura 4 - Infográfico referente a desemprego segundo sexo e raça (2009) ............ 40
Figura 5 - Gráfico referente à porcentagem de trabalhadoras domésticas com carteira
de trabalho assinada segundo raça/cor (1996-2007) ................................................ 41

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13
2 PRÉ RETRATO: CONTEXTO DA ESTRUTURA RACIAL NO BRASIL ............ 17
3 RETRATO FALADO: VOZ E IMAGEM EM MOVIMENTO ................................. 28
3.1 O RETRATO DA VIOLÊNCIA ............................................................................ 31
3.2 O RETRATO DA SOLIDÃO................................................................................ 37
3.3 O RETRATO DA LOUCURA .............................................................................. 41
3.4 O RETRATO DA LUTA E DA RESISTÊNCIA .................................................... 44
4 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 47
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 49
13

1 INTRODUÇÃO

Este tema de pesquisa foi escolhido na intenção de reunir minhas motivações


acadêmicas e artístico/musicais. Além de estudante de serviço social, sou cantora e
compositora. Como mulher negra, periférica, pelas vivências que tive, por muito tempo
pensei que a universidade pública era um plano distante da minha realidade, com
autoestima intelectual sempre baixa, acreditei ser algo que não fosse possível
alcançar, ao menos nessa vida, uma vontade reprimida e quase conformada com esse
não lugar. A música sempre pareceu ser um espaço liberado para se sonhar, onde
meu corpo e minha voz poderiam passear, lugar mais comum de encontrar
representatividade, um lugar não proibido, aliás, até uma forma mais ‘simples’ de se
pensar uma preta bem-sucedida, porém, ainda assim, o lugar da exceção, ou seja,
não menos difícil na prática. A partir de um financiamento coletivo - que se materializa
como uma “vaquinha” dentro de um site, onde as pessoas podem contribuir com
valores variados e colaborar com projetos autônomos em andamento - levantei o
orçamento necessário para gravação do meu primeiro CD.
A princípio resisti muito à iniciativa do financiamento coletivo, por parecer um
tiro incerto, por medo de não chegar lá, ou por estabelecer a forte dependência que
tem uma artista independente. Mas, muito logo, com apoio de pessoas que convivo,
pude perceber que era possível. Canto e sou ouvida, e querer materializar isso seria
estender e atravessar limites impostos, quebrar e romper barreiras. Retrato Falado, é
um CD todo autoral, onde eu falo sobre ser mulher negra, das nossas próprias
vivências, sobre cantar/falar, estender e atravessar limites impostos pela sociedade,
num trato vestido de canção, utilizando da música e dos palcos para trazer reflexões
políticas e denúncias urgentes.
Nas composições faço denúncia das desigualdades e opressões, canto as
expressões da questão social e, não tarde, busco um diploma para legitimar. A
conexão que faço com o Serviço social é pela abertura que encontrei dentro desse
muro rígido que se faz a academia para questionar as mazelas da sociedade. Onde
questionar, movimentar, pensar criticamente é tarefa acadêmica/profissional que levo
para vida.
Vejo a arte, principalmente a música, com uma potência transformadora em
muitos aspectos. Tanto na sua execução direta, no que se refere ao ensino e
aprendizado da música, quanto no impacto que ela tem na sociedade, como
14

representação de uma cultura, desabafo, expressão do que se pensa, ou do que se


vive em determinados espaços, denúncia e intervenção, que tem suas potências e
contradições.
Compreendendo o Serviço Social, segundo o apontado pelo Conselho
Regional do Serviço Social do Rio de Janeiro, CRESS/RJ, como uma profissão crítica
de caráter sociopolítico, que se propõe intervir nas múltiplas formas em que
expressam as questões sociais, em áreas diversas que têm vínculo social direto na
vida humana, como a educação, a justiça, a saúde, a habitação, a previdência e o
lazer. É pertinente, portanto, considerar os impactos que a arte, nesse caso
especificamente a música, tem nos desdobramentos da sociedade, visto que “[...] a
possibilidade de emancipação e humanização inerentes a arte pode oferecer aos
sujeitos condições para criticar a situação vivida e redimensioná–la”. (CONCEIÇÃO,
2010, p.51).
Sendo assim, nesse trabalho vou usar a música que nomeia meu primeiro CD,
Retrato Falado (composição autoral), música que traz conceitos pungentes nas
expressões da questão social como: Racismo, violência doméstica, violência policial,
aborto, machismo, patriarcado, violência de gênero, classe, abuso de poder,
desamor. Entre tantas músicas possíveis e até bem mais populares e conhecidas que
eu poderia usar como base de análise para esse trabalho, decidi como ponto de
partida para desenvolvimento da pesquisa usar uma música de minha autoria, usar o
meu retrato, usar uma música que conta a minha história.
Tudo isso, sobre uma história que se apresenta na minha vida cotidiana como
uma história singular, demarcada por minhas próprias vivências e a das mulheres da
minha família. Entretanto, o movimento de questionar a experiência própria, buscando
mediações e referências para além delas mesmas, ampliando a visão para a dinâmica
das relações - complexas e contraditórias - que circundam esta vivência, permite uma
outra apreensão desta realidade, na qual a experiência própria se mostra como
experiência histórica e socialmente construída.
O objetivo deste trabalho é, portanto, elaborar mediações teórico-reflexivas
sobre as contradições sociais - de classe, raça e gênero - na sociedade brasileira,
com foco na mulher negra, a partir da música Retrato Falado, de modo a trazer
mediações que possibilitem explicitar a relação fundamental entre o singular e o
universal - minha experiência como mulher negra na sociedade brasileira e a realidade
da mulher negra nesta sociedade.
15

Este trabalho sintetiza, deste modo, um o salto ontológico 1 possibilitado pela


formação teórica e política adquirida tanto pela graduação no curso de serviço social,
quanto pelo desenvolvimento artístico construído a partir da escuta e estudo da
música enquanto ferramenta de transformação.
É sabido que, historicamente, a arte é utilizada pelo povo negro em várias
culturas distintas como forma de expressão, denúncia e também de forma estratégica
política de resistência, como o jongo, o samba, funk, rap, samba-reggae (BRAZ,
2013).
É a síntese, portanto, da trajetória de transformação intelectual e política de
uma estudante que quando entrou no curso de serviço social utilizava da composição
musical como uma forma política de se expressar, forma de desabafo da sua história
particular, para uma estudante que sai com uma perspectiva que permite apreender a
sociedade e as relações sociais como uma totalidade.
Assim, o que aparecia como próprio passa a ser evidenciado como coletivo,
produto não dos azares e incompetências individuais, mas sim da dinâmica
contraditória de uma sociedade fundada na dominação e na exploração, na qual a
desigualdade se assenta no racismo, no patriarcado e na luta de classes. Lélia
Gonzalez aponta que:

[...] enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar


nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição
dos modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação
das ciências sociais. Os textos só nos falavam da mulher negra numa
perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de problemas
propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sem um resto
que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar.
Exatamente a partir das noções de mulata, doméstica e mãe preta que
estavam ali, nos martelando com sua insistência. (GONZALEZ, 1984,
p. 22).

Para responder aos intentos do trabalho, o objetivo geral proposto foi: Elaborar
mediações teórico-reflexivas sobre as contradições sociais - de classe, raça e gênero
- na sociedade brasileira a partir da música Retrato Falado. Buscando
especificamente: estudar e sistematizar os elementos fundamentais da formação
social brasileira com vistas a apreender a dinâmica constitutiva das relações sociais e
suas contradições, focado na questão racial; analisar a letra da música Retrato Falado

1
Analogia ao sentido dado por Lukács (2013) ao dissertar sobre o surgimento do ser social.
16

de modo a trazer mediações teóricas que possibilitem refletir sobre as contradições


abordadas na composição. Sistematizar a reflexão sobre o processo de formação
acadêmica e artística para evidenciar as transformações.
A síntese final do trabalho está estruturada, além desta introdução, a partir dos
seguintes itens: 1) uma breve exposição sobre os elementos fundamentais da
formação social brasileira com vistas a explicitar a dinâmica constitutiva das relações
sociais e suas contradições; 2) análise da letra da música Retrato Falado, à luz das
mediações teóricas de referência e dados da realidade empírica, realizando uma
reflexão sobre as contradições abordadas na composição; e 3) conclusão.
O aporte metodológico deste trabalho de conclusão de curso baseia-se em uma
abordagem de pesquisa qualitativa visto que

[...] não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com


o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma
organização, etc. Os pesquisadores que adotam a abordagem
qualitativa opõem-se ao pressuposto que defende um modelo único
de pesquisa para todas as ciências, já que as ciências sociais têm sua
especificidade, o que pressupõe uma metodologia própria.
[...] A pesquisa qualitativa preocupa-se, portanto, com aspectos da
realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na
compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais. Para
Minayo (2001), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que
corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos
e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização
de variáveis. (GERHARDT; SILVEIRA, 2009, p. 31-32)

O procedimento técnico, por sua vez, foi a pesquisa bibliográfica pois, realiza
levantamento e análise de “[...] referências teóricas já analisadas, e publicadas por
meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites”
(GERHARDT; SILVEIRA, 2009, p. 37), dentre as quais pode-se destacar referências
teóricas que abordam a temática da questão racial/racismo no Brasil e,
particularmente, a situação das mulheres negras. A partir destas referências foi
realizada uma análise de discurso da música Retrato Falado, entendendo que “[...] a
linguagem vai além do texto, trazendo sentidos pré-construídos que são ecos da
memória do dizer” (CAREGNATO; MUTTI, 2006, p. 681). Nessa pesquisa foi dada a
prioridade ao estudo de autoras negras, como Lélia Gonzalez, Bell Hooks, Angela
Davis.
17

2 PRÉ RETRATO: CONTEXTO DA ESTRUTURA RACIAL NO BRASIL

É importante iniciar contextualizando como se estrutura o racismo na sociedade


brasileira. Para isso, utilizamos como referência, o sociólogo Clóvis Moura (1983) que
discute a relação intrínseca entre escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo.
De acordo com Moura (1983), a racialização, que hierarquizou povos distintos de
diversas partes do mundo, inferiorizando aqueles denominados pelos colonizadores
como negros e índios, serviu de justificativa ideológica para a subordinação dos
territórios e a exploração das suas gentes no escravismo colonial e estruturou a
sociedade brasileira no Brasil no pós-abolição, que foi quando as pessoas negras
passaram a fazer parte da sociedade enquanto “cidadãs”, já que antes eram tidas
como coisa.
De acordo com Sílvio Luiz de Almeida (2018), o racismo é estrutural, o que
significa que não é um fenômeno conjuntural, uma anomalia ou patologia como
costuma se reivindicar. O racismo é uma forma de racionalidade, de normalização, de
assimilação das relações, das ações conscientes e subconscientes (ALMEIDA, 2018).
Dialogando com autores como Frantz Fanon, Clóvis Moura e Silvio Almeida,
Souza (2019) destaca que a normalidade da sociedade burguesa produz e reproduz
as condições de desigualdade, das quais desencadeiam múltiplas determinações que
se desdobram nas diversas formas de violência. O racismo estrutura a totalidade das
relações sociais nesta sociedade e, para entender a sua dinâmica é preciso
questionarmos a sua vinculação com a dimensão econômica, política e cultural da
sociedade.
De acordo com CLR James (2010), o escravismo nas Américas respondeu às
necessidades de expansão das classes dominantes europeias e se assentou sobre
uma larga destruição do campesinato dominante no território africano, e por vezes,
mais desenvolvido que o da Europa. – com a destruição da vida tribal, – deu-se
instalação da barbárie, com o sequestro, a fome e toda forma de violência e
ferocidade, “a caça a peles negras”. O tráfico dos negros escravizados se dava através
do transporte marítimo, que em péssimas condições - um metro quadrado para cada
escravizado, levava o nome de navio negreiro, definido por James (2010), como o
lugar mais miserável do mundo. Num processo contínuo durante os quatrocentos anos
de escravidão, a população negra escravizada era vendida como mercadoria.
18

De acordo com James (2010), uma vez vendidos como uma mercadoria
qualquer para os colonialistas americanos, os escravizados foram obrigados a
trabalhar de sol a sol – homens e mulheres de diferentes idades – com repressão e
vigilância constante, vivendo em péssimas condições de alimentação e moradia.

Os escravos recebiam o chicote com mais regularidade e certeza do


que recebiam a comida. Era o incentivo para o trabalho e o zelador da
disciplina. Mas não havia engenho que o medo ou uma imaginação
depravada não pudesse conceber para romper o ânimo dos escravos
e satisfazer a luxúria e ressentimento de seus proprietários e
guardiães: ferros nas mãos e nos pés; blocos de madeira, que os
escravos tinham de arrastar por onde quer que fossem; a máscara de
folha de lata, projetada para evitar que eles comessem a cana-de-
açúcar, e o colar de ferro. O açoite era interrompido para esfregar um
pedaço de madeira em brasa no traseiro da vítima; sal, pimenta e
cidra, carvão, aloé e cinzas quentes eram deitadas nas feridas
abertas. As mutilações eram comuns: membros, orelhas e, algumas
vezes, as partes pudendas para despojá-los dos prazeres aos quais
eles poderiam se entregar sem custo. Seus senhores derramavam
cera quente em seus braços, mãos e ombros, despejavam o caldo
fervente da cana nas suas cabeças; queimavam-nos vivos; assavam-
nos em fogo brando; enchiam-nos de pólvora e os explodiam com uma
mecha; enterravam-nos até o pescoço e lambuzavam as suas
cabeças com açúcar para as moscas as devorassem; amarravam-nos
nas proximidades de ninhos de formigas ou de vespas; faziam-nos
comer os próprios excrementos, beber a própria urina e lamber a saliva
dos outros escravos. (JAMES, 2010, p. 26-27).

Além das péssimas condições de trabalho e vida, os escravizados sofriam


punições e todo tipo de tortura de controle e repressão. O autor coloca que é
impossível verificar se seriam essas ações meros incidentes ou uma prática habitual
dos colonialistas, mas o fato é que, independentemente dessa verificação, existem
evidências que confirmam que essas práticas truculentas por parte do colonizador
eram características normais na vida do escravizado. Esse questionamento aparece
quando ideólogos, num ato de vergonha pelo passado, buscam ocultar e minimizar o
terror da escravidão, defendendo que essas seriam práticas pontuais, fechando os
olhos para realidade, o que se aproxima muito dos dias atuais quando o Estado
defende a existência de uma democracia racial, que ainda é inexistente.
Num processo de alienação colonial, os escravizados iam se adaptando ao
embrutecimento, violência e bestialidade, e executavam ações de crimes contra os
proprietários e até mesmo seus próprios companheiros. Outro fato decorrente do
processo escravagista é referente a intelectualidade dos escravizados que é
19

bloqueada pela impossibilidade de acessar qualquer tipo de educação, o que gera


reflexos até os dias atuais, quando para a população negra estão reservados
trabalhos braçais e existe pouco incentivo - até a política de cotas, conquistada pelo
movimento negro - para que ocupemos os espaços educacionais. Entretanto,
subvertendo as expectativas, a inteligência e humanidade dos negros escravizados,
apesar do sistema de dominação, persistiam, o que assustava os colonialistas. Cultos
e cantos que muitas vezes eram centros estratégicos para comunicação e fugas,
evidenciam a persistência de sua vontade de liberdade. (JAMES, 2010)
Nesse período, nem todos os escravizados eram vistos e tratados da mesma
forma, existia uma espécie de divisão social do trabalho e um sistema de diferenciação
entre eles: Os escravos domésticos e os escravos do eito. Alguns dos escravos
“domésticos” eram apegados aos senhores e servis, e outros aproveitavam a posição
para se instruírem. Já os escravos do eito, eram aqueles que ficavam com os trabalhos
mais pesados, tinham os piores tratamentos e alimentação. Entretanto, o número de
escravos domésticos, comparado aos de eito, era infinitamente pequeno, a maioria de
escravos tinha uma vida penosa, e não a aceitando, fugiam criando-se assim, os
Quilombos. As fortificações quilombolas eram o terror dos colonialistas, pois atraía os
escravos do eito, além de saquear as cidades (JAMES, 2010). Nesse sentido, o autor,
assim como Clóvis Moura, vai destacar a resistência do povo negro como parte
fundamental do processo que vai dinamizar as contradições da sociedade escravista.
De acordo com Moura (1983), o processo de “libertação” foi consolidado com a
mobilização e resistência da população negra escravizada, ações que foram
fundamentais para mudanças sociais, como a própria abolição. Entretanto, os projetos
políticos que resultaram do processo de abolição culminaram no isolamento político,
econômico e social da população negra na sociedade brasileira, já que os governantes
se viram pressionados a pensar num novo modelo de sociedade, para o qual, segundo
as ideologias racistas da época, o negro e o índio não poderiam contribuir, dada a sua
“inferioridade”.
A racialização continuou operando de modo a tornar o negro um “cidadão de
segunda classe” e a política de branqueamento, iniciada antes mesmo da abolição, é
uma das expressões do seu movimento na estruturação da sociedade. Ademais, ao
longo de todo o processo, por medo de uma revolução nos moldes da ocorrida no
Haiti, foram pensadas diversas formas de realizar um apagamento social do povo
preto, o que teve continuidade ao longo da formação da sociedade livre, posto que a
20

população negra, imersa nas piores expressões da desigualdade, permanece sendo


vista como um inimigo social (JAMES, 2010).
No momento de transição do processo escravista para o capitalismo
independente foram geradas várias medidas que tiveram incidência direta na
imobilização do negro no mercado de trabalho e também nas suas condições
econômico, sociais e de moradia. A ausência de condições materiais e morais na
sociedade “livre” perpetua, basicamente, mesmo espaço social que o negro ocupava
na escravidão.

Isto levou a que o cidadão negro - o ex-escravo - não encontrasse


oportunidade no mercado de trabalho, na interação social global,
tendo um espaço social no qual lhe permitiam uma circulação restrita
de tal forma que sua personalidade, sem conseguir criar mecanismos
de defesa contra tal situação, se deformou pela ansiedade cotidiana
que dele se apoderou desde quando saiu de casa e especialmente
quando reivindicou cargos ou funções que a ele, por táticas sub-
reptícias e não mais visíveis, não foram permitido socialmente. Com
o princípio de que todos são iguais perante a Lei, os mecanismos de
barragem étnica se refinaram, sofisticaram-se e ficaram invisíveis,
tem-se a impressão de que o seu achatamento social, econômico e
cultural é uma decorrência das suas próprias insuficiências individuais
ou grupais. Essa deformação da sua personalidade que é uma
consequência do comportamento patológico das elites racistas
termina segregando-o em um gueto, no nível das relações raciais,
especialmente entre negros e brancos, uma sociedade neurótica e
produtora de uma paranóia social, quer entre os brancos, quer entre
os negros. (MOURA, 2014, p.210-211).

Assim ele ocupa não só os piores postos de trabalho, mas também os piores
postos territoriais, refletindo, consequentemente, a menos acesso também à saúde,
educação e renda. Realidade que segue até os dias atuais, conforme ilustrado muito
nitidamente pelo infográfico:
21

Figura 1 - Infográfico referente a habitação e saneamento segundo sexo e raça/cor (2009)

Fonte: IPEA, 2011.

Nesse sentido Lélia Gonzalez aponta que:

As condições de existência material da comunidade negra remetem a


condicionamentos psicológicos que têm que ser atacados e
desmascarados. Os diferentes índices de dominação das diferentes
formas de produção econômica existentes no Brasil parecem coincidir
num mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do “lugar natural” de
Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma
evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores
e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são as
moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou
do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de
policiamento que vão desde seus feitores, capitães de mato,
capangas, etc, até a polícia formalmente constituída. Desde a casa
grande e do sobrado até os belos edifícios e residências atuais, o
critério tem sido o mesmo. já o lugar natural do negro é o oposto,
evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e
conjuntos “habitacionais”(...) dos dias de hoje, o critério tem sido
simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço (...) No caso do
22

grupo dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas


em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais
precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que
não é para proteger, mas para reprimir, violentar, amedrontar. É por aí
que se entende porque o outro lugar natural do negro sejam as
prisões. A sistemática repressão policial, dado o seu caráter racista,
tem por objetivo próximo a instauração da submissão. (GONZALEZ,
1984, p. 232).

O projeto Retrato das desigualdades de gênero e raça do IPEA, recolhidos por


Souza (2019) entre os anos de 1995 a 2015, traz dados importantes referente ao
desemprego nos dias atuais:

[...] as mulheres negras em 2009, eram as mais atingidas pelo


desemprego, 12,5% contra 9,2 das mulheres brancas; no mesmo ano,
a média de anos de estudo das mulheres negras era de 7,8 anos,
enquanto as mulheres brancas estudavam em média, 9,7 anos; mais
de ¼ dos domicílios (24%) eram chefiados apenas por mulheres
negras no Brasil; a renda média das mulheres negras em 2009 era de
R$544,40, enquanto a média dos homens brancos é de R$1491,00,
mais de duas vezes mais. (SOUZA, 2019, p. 214).

O Infográfico abaixo demonstra de forma mais visual o que está explícito nos
dados, nos possibilitando perceber como as mulheres negras estão a margem, mais
uma vez.
23

Figura 2 - Infográfico de distribuição de renda segundo sexo e raça/cor (2009)

Fonte: IPEA, 2011.

Ou seja, a materialização dos planos, medidas e projetos políticos traçados


desde de o pós-abolição se apresenta também nesses números que deixam a
população negra - em evidência, as mulheres - a margem dessa sociedade. Entre as
medidas adotadas, se destacam a lei de terras (1850) e a política imigrantista. A
política imigrantista defendia a criação de uma raça superior que constituiria o Brasil
no pós-abolição. Os governantes da época

[...] começam a buscar no exterior o povo ideal para formar a futura


nacionalidade brasileira. A força de atração destas propostas
imigrantistas foi tão grande que em fins do século a antiga
preocupação com o destino dos ex-escravos e pobres livres foi
praticamente sobrepujada pelo grande debate em torno do imigrante
ideal ou do tipo racial mais adequado para purificar “a raça brasílica”
e engendrar por fim uma identidade nacional. (AZEVEDO, 1987, p.
37).
24

A classe dominante e racista buscou substituir a população egressa da


escravidão por imigrantes europeus, acarretando em um processo de violência
psíquica tão intenso que fez com que a população negra buscasse suavizar sua leitura
enquanto negritude, tendo como objetivo tornar-se branco, ou o mais próximo disso,
no sentido fenotípico e também cultural, afastando-os de suas origens. Após a
abolição, inicia uma hierarquização social onde a cor da pele e os traços fenotípicos
são determinantes para distribuição de bens e serviços.

Em determinada fase da nossa história econômica houve uma


coincidência entre a divisão social do trabalho e a divisão racial do
trabalho. Mas através de mecanismos repressivos ou simplesmente
reguladores dessas relações ficou estabelecido que, em certos ramos,
os brancos predominassem e, em outros, os negros e os seus
descendentes diretos predominassem. Tudo aquilo que representava
trabalho qualificado, intelectual, nobre, era exercido pela minoria
branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não qualificado,
braçal, sujo, e mal remunerado era praticado pelos escravos,
inicialmente, e pelos negros livres após a abolição.
Esta divisão do trabalho, reflexo de uma estrutura social rigidamente
estratificada, ainda persiste em nossos dias de forma significativa.
Assim como a sociedade brasileira não se democratizou nas relações
sociais fundamentais, também não se democratizou nas suas relações
raciais. (MOURA, 1988, p.45).

De acordo com Clóvis Moura, o processo de branqueamento, a partir da


introdução de imigrantes europeus, foi fundamental na hierarquização do mercado de
trabalho no Brasil e, consequentemente, para a manutenção do negro nas condições
mais perversas de exploração. Para o autor, a grande diferença dos imigrantes pobres
europeus e do povo negro recém “livre” é a distribuição da terra. Nesse sentido,
Manuel Correia de Andrade (apud MOURA, 2014, p.120) aponta que

Onde houve a empresa da migração, houve a possibilidade do


migrante adquirir terras, seja por poupança individual ou apoio
institucional. Nas outras regiões, o Nordeste em particular, onde os
engenhos de decadência não permitiam aos senhores importar mão
de obra, estes facilitaram a permanência de trabalhadores livres como
“moradores de condição”, ou seja, com permissão para morar e
trabalhar na terra, mas com a obrigação de trabalhar em alguma
medida para o proprietário.

O imigrante europeu chega com um pedaço de terra para reproduzir, enquanto


a população negra é deixada sem nenhum recurso para se estruturar. Os imigrantes,
25

dada a política de branqueamento, estavam numa situação melhor que a dos negros.
Além disso, busca-se naturalizar a ideologia de que pessoas negras são inferiores.

Por esta razão, a mobilidade social para o negro descendente do


antigo escravo é muito pequena no espaço social. Ele foi praticamente
imobilizado por mecanismos seletivos que a estratégia das classes
dominantes estabeleceu. Para que isto funcionasse eficazmente foi
criado um amplo painel ideológico para explicar e/ou justificar essa
imobilização estrategicamente montada. (MOURA, 1988 p.45).

Para Moura (1988) isto refletirá de várias maneiras na estruturação da


sociedade capitalista e organização competitiva da força de trabalho.

Criam-se, em cima disto, duas pontes ideológicas: a primeira é de que


com a miscigenação nós democratizamos a sociedade brasileira,
criando aqui a maior democracia racial do mundo; a segunda de que
se os negros e demais segmentos não-brancos estão na atual posição
econômica, social e cultural a culpa é exclusivamente deles que não
souberam aproveitar o grande leque de oportunidades que esta
sociedade lhes deu. Com isto, identifica-se o crime, a marginalização
da população negra, transformando-se as populações não-brancas
em criminosos em potencial (MOURA, 1988, p.46).

Nesse sentido, podemos observar também os reflexos deste processo nas


formas como o Estado brasileiro, estruturado também a partir da dominação racial
(ALMEIDA, 2018), lida com a população negra sobrante do mercado de trabalho: com
repressão, genocídio e encarceramento em massa. Para Almeida (2018):

[...] a democracia racial não se refere apenas a questões de ordem


moral. Trata-se de um esquema muito mais complexo, que envolve a
reorganização de estratégias de dominação política, econômica e
racial adaptadas a circunstâncias históricas específicas. (ALMEIDA,
2018, p.179).

Assim, é necessário explicitar que os mecanismos de dominação da população


negra, mascarados por esta pseudodemocracia racial, terão no Estado um aparato
fundamental para se dinamizarem. De acordo com Almeida (2018, p.180-181)

O Estado brasileiro não é diferente dos outros Estados capitalistas


neste aspecto, pois o racismo é elemento constituinte da política e da
economia em o qual não é possível compreender as suas estruturas.
Nessa vereda a ideologia da democracia racial produz um
discurso racista e legitimador da violência e da desigualdade racial
diante das especificidades do capitalismo brasileiro.
26

Portanto, não é o racismo estranho à formação social de qualquer Estado


capitalista, mas um fator estrutural, que organiza as relações políticas e econômicas.
A compreensão do racismo no seu caráter histórico e estrutural nos ajuda a
entender a dinâmica social que produz para a população negra e, em particular para
as mulheres negras, um processo contínuo de múltiplas violências. Assim, refletir
sobre esta realidade traz à tona a necessidade de superação deste processo.
27

RETRATO FALADO
Dona Preta, minha avó, resolvi cantar,
suas histórias, suas memórias, seu penar
Tantos planos, desenganos, tanta dor
Solidão, viver, crescer, sem ter amor
Ela apanhava tanto até a alma sangrar, mulher
e a menina filha, vó, debaixo da mesa, observava o derramar
escondida, encolhida, com coberta de sangue, tremia de medo
acompanhada da sua pouca idade, teve parte da vida um segredo,
Tantos tapas, tantos gritos, tantas noites, tanto dor
Até que um dia a menina filha, resolveu falar,
foi na delegacia, foi lá denunciar
e aí, te tacaram numa cela, tiraram sua roupa e seu valor
e a menina sangrou na pele tudo que lhe restava de amor
a prenderam a força, contra a parede, contra moral,
e do dia pra noite, a menina filha, ficou grávida, grávida do policial
Então, foi menina de vez, mulher, chorando perdida entre valas e vielas,
e a cada esquina que passava, sua sanidade pingava em gotas no chão
que aos poucos formavam um rio de perigo
sujando o caminho sem proteção
Perambulava sozinha, de um canto pro outro, pra lá e pra cá
e a cidade de pau sujo, tinha coragem do seu corpo cobiçar
Filha do crime perfeito, a criança nasceu, mãe
E a menina filha teve que entregar
não tinha como cuidar, mas é abandono, é absurdo, transtorno
te julgaram, te cuspiram, te pisaram
e debaixo da mesa, observava o derramar
entre o hospício e o precipício foi crescendo,
em meio ao ódio e o doce rebelde viver,
sem entender a desordem de cada amanhecer
Engravidou de mim e quis abortar a missão
de mais uma geração mulher, que sofre o abuso da solidão.
Dandara Manoela, 2018.
28

3 RETRATO FALADO: VOZ E IMAGEM EM MOVIMENTO

E o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as


implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados
(infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na
terceira pessoa, porque falada pelos adultos), que neste trabalho
assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa
(GONZALEZ, 1984, p.225).

Retrato Falado é espelho da realidade em movimento, denúncia e expressão,


uma música que registra a história da minha bisavó, da minha avó, da minha mãe e a
minha história, um retrato íntimo, a princípio. Mas é a partir da inserção na
Universidade, no curso de Serviço Social, que passo a compreender que “Retrato
Falado” não é uma história pontual, mas sim o retrato de grande parte das mulheres
negras na sociedade brasileira. Assim, neste trabalho de conclusão de curso, tenho
por objetivo refletir sobre esta compreensão, a partir do movimento de sair do singular
e buscar suas mediações com a totalidade das relações sociais e suas contradições.

Dona Preta, minha avó, resolvi cantar,


suas histórias, suas memórias, seu penar
Tantos planos, desenganos, tanta dor
Solidão, viver, crescer, sem ter amor

Dona Preta, como inicia o primeiro verso da canção, hoje representa outras
mulheres, principalmente mulheres negras, que tem partes de sua história registradas
nesses versos, mesmo que não de forma literal. Foi dentro da universidade, que minha
avó, numa visita que fez a Florianópolis, revelou toda essa história. Eu já sabia que
minha vó tinha passado 12 anos no sanatório, eu já sabia que minha mãe tinha
pensado em me abortar, sabia também que em alguma ocasião ela tentou se matar,
eu já sabia de algumas coisas, mas eu não entendia essa continuidade, os processos,
era tudo muito solto, jogado, quase que como fofoca de família, já que eu nunca tinha
ouvido nada por parte delas. Ter ciência da minha história através da minha avó foi
libertador, me trouxe indignação, mas também a vontade de reescrevê-la.
Na composição ela surge ainda de forma literal, mesmo que com um ar poético,
de forma geral, ela segue a história na íntegra e vem sendo reescrita nos processos
da minha vida, aparece na ação, na vivência, nessa formação, no canto, onde a
29

continuidade do Retrato Falado começa a encontrar refúgios para se colocar fora do


cenário estrutural, cíclico e racista, da violência. Ou seja, a composição de uma
expressão artística é a síntese de uma elaboração das informações e vivências ao
mesmo tempo que se configura como uma forma de conviver com as mesmas e seguir
adiante, Conceição Evaristo, denomina esse movimento por Escrevivência e diz:
“Minha escrita é muito comprometida com as minhas vivências. Nossa história não
começa com vitória. Ela sempre começa com luta e resistência. Não tenho elementos
para criar uma história que começa com amenidades” (EVARISTO, 2017 apud
ALVES, 2017, p. 02).
A elaboração do TCC possibilita uma outra dimensão dessa elaboração, que
expande as referências para além da trajetória individual/familiar e busca situá-las nas
contradições da sociedade como um todo, entendendo que a mesma se estrutura a
partir de desigualdades de classe, raça e gênero. Desigualdades estas que farão com
que às mulheres negras estejam reservados os piores lugares nesta sociedade.
Sociedade essa que defende que somos todos iguais, que temos uma democracia
racial, mas que com isso só violenta e isola.

Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo
que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua
violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o
outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa
mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada
doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu
endeusamento se exerce como fortes cargas de agressividade. É por
aí, também que se constata que os termos mulata e doméstica são
atribuídos a um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação
em que somos vistas. (GONZALEZ, 1984, p.228).

Segundo Lélia Gonzalez (1984) a mulher negra é vista de três formas: Mulata,
doméstica e mãe Preta. Ou seja, as versões de mulheres que existem para servir,
para o trabalho que ninguém quer fazer, para satisfazer os desejos sexuais do
opressor ou para ser aquela que cuida, mas que não é cuidada, não é vista.
Clóvis Moura (2014) fala sobre o ocultamento da história dos vencidos e o
apagamento da memória-história do povo negro pela academia. Para o autor, a
história é feita a partir de um processo seletivo no qual as classes dominantes
estabelecem uma visão elitista e manipuladora da realidade. Contar a história de
mulheres negras na sociedade brasileira num trabalho de conclusão de curso
30

acadêmico é importante pela oportunidade de subverter os processos do racismo


institucional que nos silencia sistematicamente. É importante também, para
contextualizar e contestar os estereótipos e pensamentos enrijecidos que foram
construídos de forma a alimentar a estrutura racista da sociedade.
A branquitude2 reserva compulsoriamente lugares subjugados para o corpo
preto a partir de estereótipos construídos num projeto que nos coloca como inferiores,
e que ainda sustenta um discurso meritocrático alegando que se esses lugares se
mantém, é porque não houve esforço suficiente. Não relaciona esses lugares pré-
estabelecidos com o racismo, mas sim como lugares comuns para o povo preto e que
são essas escolhas que não nos permitem ocupar outros lugares e não o racismo que
reforça tais papéis. Usando também as exceções para dizer que se houver esforço,
“chegaremos lá”, ignorando o processo histórico dessa sociedade e estabelecendo o
mito da democracia racial. Ou seja, somos preguiçosos. O homem negro é malandro,
ladrão, a criança é pivete, trombadinha, a mulher é cozinheira, faxineira, servente e
ou prostituta. Estamos onde queremos estar, “temos o que merecemos”. (GONZALEZ,
1984).

[...] que foi que ocorreu, para que o mito da democracia racial tenha
tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os processos que
teriam determinado sua construção? Que é que ele oculta, para além
do que mostra? Como a mulher negra é situada no seu discurso?
O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre
o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se
constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural
brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo
produz efeitos violentos sobre a mulher negra em
particular. (GONZALEZ, 1984, p.224)

Com um pouco de esforço e análise histórico-social, fica difícil não


compreender que a realidade é resultado de um processo violento onde o objetivo
fundamental é a exploração econômica e as condições para tal demandam um
processo contínuo de dominação e opressão. A deturpação moral do negro na
sociedade brasileira corresponde à sua marginalização e exploração no mercado de
trabalho no capitalismo dependente (SOUZA, 2019).
A branquitude não relaciona esses lugares pré-estabelecidos com o racismo,
mas sim como lugares comuns para o povo preto e que são essas escolhas que não

2
Para saber mais sobre branquitude ler: Bento (2002); Sovik (2002); Cardoso (2011);
Schucman (2013).
31

nos permitem ocupar outros lugares e não o racismo que reforça tais papéis. Usando
também as exceções para dizer que se houver esforço, “chegaremos lá”, ignorando o
processo histórico dessa sociedade. Maria Aparecida Bento (2002) possui uma
citação irônica que resume esse pensamento muito característico da branquitude:

Eles reconhecem as desigualdades raciais, só que não associam


essas desigualdades raciais à discriminação e isto é um dos primeiros
sintomas da branquitude. Há desigualdade raciais? Há! Há uma
carência negra? Há! Isso tem alguma coisa a ver com o branco? Não!
É porque o negro foi escravizado, ou seja, é legado inerte de um
passado no qual os brancos parecem ter estado ausentes. (BENTO,
2002, p. 26).

Ou seja, há uma reafirmação cotidiana de que as pessoas negras são as


responsáveis por não ascenderem socialmente e a negação de uma responsabilidade
que vem de séculos de escravização, desumanização e privação de direitos.

3.1 O RETRATO DA VIOLÊNCIA

Ela apanhava tanto até a alma sangrar, mulher


e a menina filha, vó, debaixo da mesa, observava o derramar
escondida, encolhida, com coberta de sangue, tremia de medo
acompanhada da sua pouca idade, teve parte da vida um segredo,
Tantos tapas, tantos gritos, tantas noites, tanto dor.

Essa era minha bisavó, apanhando do meu bisa vô, que é um homem negro
retratado pela minha vó como um homem extremamente violento. Esse é o retrato de
um número absurdo de mulheres, em particular mulheres negras, inseridas numa
sociedade patriarcal e racista, na qual seus corpos e suas vidas são violentados
cotidianamente de muitas formas. A violência que impacta a vida das mulheres negras
é conformada dentro desta estrutura desigual fundada no escravismo, na qual também
o homem negro é vítima constante, ainda que possa ser também reprodutor da
violência. Para Bell Hooks,
32

Essa talvez seja a razão pela qual muitos negros estabeleceram


relações familiares espelhadas na brutalidade que conheceram na
época da escravidão. Seguindo o mesmo modelo hierárquico, eles
criaram espaços domésticos onde havia tensões em torno do poder,
tensões que muitas vezes levavam homens negros a espancarem as
mulheres negras, puni-las por más ações, que levavam adultos a
espancar crianças como que para provar seu controle e dominação
(HOOKS, 1993, p. 232)3.

De acordo com os dados do Atlas da Violência (IPEA, 2019), 66% das mulheres
assassinadas no país entre 2007 e 2017 são negras. O mesmo relatório aponta que
o aumento da taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 1,6%, enquanto de
mulheres negras cresceu 29,9%.
Os dados sobre a realidade demarcam a situação social da mulher negra e
refletem a incapacidade dessa sociedade racista e patriarcal de resolver as
desigualdades estruturais que a sustenta, e a violência segue:

Até que um dia a menina filha, resolveu falar,


foi na delegacia, foi lá denunciar
e aí, te tacaram numa cela, tiraram sua roupa e seu valor
e a menina sangrou na pele tudo que lhe restava de amor
a prenderam a força, contra a parede, contra moral,
e do dia pra noite, a menina filha, ficou grávida, grávida do policial

A música também trata da violência sexual, estupro, sofrida pela minha vó, por
um homem branco que representa uma autoridade e que se aproveita de um momento
de fragilidade e do estigma que ela tinha como “louquinha do bairro”, quando a mesma
decide pedir proteção por conta das violências que estava vivendo. Nesse ponto, há
dois elementos para destacar. O primeiro é a objetificação do corpo da mulher negra
e o histórico de abuso sexual em que a mesma está submetida desde a escravidão;

3
Texto original: No wonder then that many black folks established domestic households that
mirrored the brutal arrangements they had know in slavery. Using a hierarchical model of family
life, they created domestic espaces where there were tensions around power, tensions that
often led black men to severely whip black women, to punish them for perceived wrongdoing,
that led adults to beat children to asset domination and control. (HOOKS, 1993, p. 232).
33

onde às mulheres negras eram reservados não só as brutais açoitadas e mutilações,


como aos homens negros, mas também o estupro (DAVIS, 2016).

Seria um erro interpretar o padrão de estupros instituído durante a


escravidão como uma expressão dos impulsos sexuais dos homens
brancos, reprimidos pelo espectro da feminilidade casta das mulheres
brancas. Essa explicação seria muito simplista. O estupro era uma
arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo oculto era
aniquilar o desejo das escravas de resistir e, nesse processo,
desmoralizar seus companheiros. (DAVIS, 2016, p. 36)

O estupro vem como forma de dominação, controle e repressão, que assim


como para as mulheres escravizadas, a intenção nos dias atuais é reafirmar o lugar
de subordinação, de objeto, a partir de uma ação que busca legitimar o lugar de poder
do dominador.
O segundo elemento aparece na explícita inversão do papel do Estado, do lugar
de quem deveria assegurar, para o lugar de quem viola, agride, em ações
expressadas através do abuso de autoridade a partir da reprodução e repetição da
violência, por uma instituição que não protege, mas, ao contrário, ataca o povo preto,
elegendo descaradamente aqueles que vai proteger, que se representam por um
corpo que está no topo da escala do privilégio: O homem branco.
De acordo com Almeida (2018),

O racismo tem, portanto, duas funções ligadas ao poder do Estado: a


primeira é a de fragmentação, de divisão no contínuo biológico da
espécie humana, introduzindo hierarquias, distinções, classificações
de raças. O racismo estabelecerá a linha divisória entre superiores e
inferiores, entre bons e maus, entre os grupo que merecem viver e os
que merecem morrer, entre os que terão a vida prolongada e os que
serão deixados para a morte, entre os que devem permanecer vivos e
o que serão mortos. E que se entenda que a morte aqui não é apenas
a retirada da vida, mas também é entendida como a exposição ao risco
da morte, a morte política, a expulsão e a rejeição.
A outra função do racismo é permitir que se estabeleça uma relação
positiva com a morte do outro. Não se trata de uma tradicional relação
militar e guerreira em que a vida de alguém depende da morte de um
inimigo. Trata-se, para Foucault, de uma relação inteiramente nova,
compatível com o exercício do biopoder, em que será estabelecida
uma relação de tipo biológico, em que a morte do outro - visto não
como meu adversário, mas como um degenerado, um anormal,
pertence a uma “raça ruim” - não é apenas uma garantia de segurança
do indivíduo ou das pessoas próximas a ele, mas do livre, sadio,
vigoroso e desimpedido desenvolvimento da espécie, do
fortalecimento do grupo ao qual pertence.(ALMEIDA, 2018, p.115-116)
34

Os dados recolhidos pela Agência Patrícia Galvão (SOUZA, 2019), apontam


que as mulheres negras somam 58,86% das vítimas de violência doméstica e 56,8%
das vítimas de estupro. A violência sexual é uma constante na vida de grande parte
das mulheres negras, cujos corpos são tomados como mero objeto. O abuso sexual
cometido pelos homens brancos, contra as mulheres negras, desde o período da
escravidão, tem continuidade na sociedade “livre” e opera a partir do racismo.

O abuso sexual de mulheres negras, é óbvio, nem sempre se


manifesta na forma de uma violência tão aberta e pública. Há o drama
diário do racismo representado pelos incontáveis e anônimos
enfrentamentos entre as mulheres negras e seus abusadores brancos.
Essas agressões têm sido ideologicamente sancionadas por políticos,
intelectuais e jornalistas, bem como por literatos que com frequência
retratam as mulheres negras como promíscuas e imorais. (DAVIS,
2016, p.181).

No que tange à violência sexual, Davis (2016) chama atenção ainda para a
construção ideológica do “mito do negro estuprador” que na batalha conformada por
racismo e sexismo, reforça a deturpação do homem negro e a sua apresentação como
imoral, violento, animalizado, etc. A estereotipação racista faz com que aqueles que
detém a estrutura de poder - homens brancos - passem impunes nos inúmeros crimes
que cometem, ao passo que, quando ocupam a estrutura do Estado, também a
utilizam para legitimar seu lugar de poder.

O mito do estuprador negro continua a levar a cabo o pérfido trabalho


da ideologia racista. E deve ser responsável por grande parte do
fracasso da maioria das teorias antiestupro na busca da identidade do
enorme número de estupradores anônimos, que seguem sem
denúncia, julgamento e condenação. Enquanto suas análises focaram
acusados de estupros que são denunciados e presos, portanto,
apenas uma fração dos estupros de fato cometidos - os homens
negros (e outros de minorias étnicas) serão inevitavelmente vistos
como vilões responsáveis pela atual epidemia de violência sexual. O
anonimato que cerca a imensa maioria dos estupros é, em
consequência, tratado como um detalhe estatístico - ou mais do que
isso, como um mistério cujo sentido é indecifrável.
Mas, em primeiro lugar, por que existem tantos estupradores
anônimos? Não seria esse anonimato um privilégio usufruído pelos
homens cuja condição social os protege de processos judiciais?
Embora os homens brancos que são empregadores, executivos,
políticos, médicos, professores universitários etc. sejam conhecidos
por “tirar vantagem” de mulheres que eles consideram socialmente
inferiores, seus delitos sexuais raramente vêm à luz em tribunais.
Portanto, não é bastante provável que esses homens de classe
capitalista e da classe médica sejam responsáveis por uma proporção
significativa dos estupros não notificados? Muitos desses estupros
35

certamente envolvem vítimas que são mulheres negras: sua


experiência histórica mostra que a ideologia racista subentende um
convite aberto ao estupro. Com base da licença para estuprar as
mulheres negras durante a escravidão era o poder econômico dos
proprietários de escravos, a estrutura de classe da sociedade
capitalista também abriga um incentivo ao estupro. Na verdade,
parece que homens da classe capitalista e seus parceiros de classe
média são imunes aos processos judiciais porque comentem suas
agressões sexuais com a mesma autoridade incontestada que legitima
suas agressões diárias contra o trabalho e a dignidade de
trabalhadores e trabalhadoras. (DAVIS, 2016, p.201)

Num país racista, a estrutura do Estado, que se apresenta ideologicamente


como uma estrutura de poder, de “proteção aos cidadãos”, funciona para encobrir a
perversidade histórica dos donos do poder - homens brancos e suas representações
- e reproduz a desigualdade e violência permanentemente, o que exige mudanças
radicais na própria estrutura da sociedade, pois somente numa sociedade que não
seja fundada nas desigualdades de raça, gênero e classe pode haver proteção à vida
e a individualidade de cada um.
O abuso de autoridade se reflete também na omissão do Estado frente aos
dados de desigualdade social. Quando levantamos os dados de homicídio do país,
podemos observar que os números expressivos referentes a população negra se
configuram no genocídio. O Atlas da violência de 2019, afirma o aumento da
desigualdade racial a partir dos indicadores de violência letal no Brasil.

Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros


(definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo
a classificação do IBGE, utilizada também pelo SIM), sendo que a taxa
de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de
não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. (IPEA, 2019,
p. 49).

É perceptível, portanto, que existe uma discrepância entre os homicídios de


pessoas negras e não negras, podendo ser melhor percebido no gráfico abaixo:
36

Figura 3 - Gráfico sobre a taxa de homicídios de negros e não negros no Brasil (2007-2017)

Fonte: IPEA, 2019, p. 46.

A linha azul em ascendência retrata que existe uma diferença numérica


referente a taxa de homicídio da população negra, mas para além disso, demonstra
uma falta de interesse por parte do Estado em mudar esse cenário, visto que a linha
que retrata os homicídios de pessoas não negras se mantém estável nesses dez anos,
demonstrando que o plano de extermínio, do genocídio da população negra está em
plena execução.
Outro dado alarmante é o do sistema prisional brasileiro, segundo o Portal da
Câmara dos deputados: 61,7% dos presos são pretos ou pardos, contra 37,22%
brancos. Sendo que 53,53% da população brasileira é negra (pretos e pardos), para
45,48% de não negros. (BRASIL, 2018). Esses dados vêm reforçar a omissão - que é
intenção - do Estado e os abusos de autoridade perante a população negra, visto que
são os maiores índices de encarceramento e mortes. Nesse sentido, dialogando com
Achille Mbembe, Almeida (2018, p.95) aponta que

Ana Luiza Flauziana fala-nos como os mecanismos de destruição das


vidas negras se aperfeiçoam no contexto neoliberal, conferindo ao
extermínio formas mais sofisticadas do que o encarceramento puro e
simples. Para ela, “as imagens e os números que cercam as condições
de vida da população negra estampam essa dinâmica”. A expulsão
37

escolar, a pobreza endêmica, a negligência com a saúde da mulher


negra e a interdição da identidade negra seriam, juntamente com o
sistema prisional, partes de uma engrenagem social de dor e morte. A
necropolítica, portanto, instaura-se como a organização necessária do
poder em um mundo que a morte avança implacavelmente sobre a
vida. A justificação da morte em nome dos riscos à economia e à
segurança torna-se o fundamento ético dessa realidade. Diante disso,
a lógica da colônia materializa-se na gestão praticada pelos Estados
contemporâneos, especialmente nos países da periferia do
capitalismo, em que as antigas práticas coloniais deixaram resquícios.
Como também observa Achille Mbembe, o neoliberalismo cria o devir-
negro do mundo: as mazelas econômicas antes destinadas aos
habitantes das colônias agora espalham para todos os cantos e
ameaçam fazer com que toda a humanidade venha a ter o seu dia de
negro, que pouco tem a ver com a cor da pele, mas essencialmente
com a condição de viver para a morte, de conviver com o medo, com
a expectativa ou com a efetividade da vida pobre e miserável.
(ALMEIDA, 2018, p. 95-96)

Ao Estado, em tese, caberia a responsabilidade de pensar ações com objetivo


de minimizar as expressões da questão social, considerando gênero, raça e classe,
pontos fundantes dessas expressões e não a legitimação das desigualdades.
Silvio Almeida traz que

[...] uma vez que o Estado é a forma política do mundo


contemporâneo, o racismo não poderia se reproduzir-se, ao mesmo
tempo, não alimentasse e fosse também alimentado pelas estruturas
estatais. É por meio do Estado que a classificação de pessoas e a
divisão dos indivíduos em classes e grupo é realizada (ALMEIDA,
2018, p. 67-68).

Ou seja, os órgãos estruturantes que regem essa sociedade, possuem como


base uma formação social que tem como prática política a hierarquização das pessoas
a partir de raça, classe e gênero e legitimam as violências praticadas a corpos
considerados inferiores.

3.2 O RETRATO DA SOLIDÃO

Então, foi menina de vez, mulher, chorando perdida entre valas e vielas,
e a cada esquina que passava, sua sanidade pingava em gotas no chão
que aos poucos formavam um rio de perigo
38

sujando o caminho sem proteção


Perambulava sozinha, de um canto pro outro, pra lá e pra cá
e a cidade de pau sujo, tinha coragem do seu corpo cobiçar

Existem muitos estudos que trazem a tona a denúncia referente a solidão da


mulher negra, a maioria deles traz essa solidão no sentido afetivo, inclusive com dados
que comprovam essa solidão, mostrando que a mulher negra é a que menos se casa,
ou então a que tem número mais expressivos como “chefe de família”, enquanto mãe
solo e que discutem aspectos relacionados com as escolhas afetivas e solidão da
mulher negra.
Mas nesse trabalho quero refletir e trazer uma perspectiva menos
heteronormativa, onde tudo bem a mulher negra ser solteira, mãe solo, ou não ser
casada de forma convencional com um homem cis, caso ela estivesse amparada pelo
Estado, caso ela tivesse recursos de moradia, saúde, educação, de forma igualitária,
caso não fosse ela a ocupar apenas subempregos, caso ela não carregasse tantos
estigmas enquanto corpo violável, sem lei, caso fosse de sua escolha, de nossa
escolha.
A solidão da mulher negra é muito mais que a solidão afetiva. É o não ser
notada, não ter nome, ser a pessoa que faz, mas não é vista, ser a pessoa que
alcança, mas quando olha para o lado não reconhece outras como ela. É a solidão da
apreensão de não saber se sua filha ou filho chegará bem e vivo em casa, de ter que
provar o tempo todo que é merecedora, que os seus e as suas são competentes,
íntegros. É a violência que começa pelo Estado com suas políticas de exclusão e
genocídio, por sua omissão com a população negra. Uma solidão que se intensifica
quando as mulheres negras falam, apontam as injustiças, sendo taxadas de
agressivas e raivosas.

As pessoas não imaginam o quão hostil é estar em um lugar em que


só você é a pessoa negra ou é aquela que vai ser posta no lugar da
chata agressiva porque só fala disso. De olhar para o lado e não
perceber um olhar de acolhimento quando passa por situações
discriminatórias. De ser desacreditada, atacada porque as pessoas
esperam a queda de quem ousou sair do seu lugar. (RIBEIRO, 2019,
p. 3).
39

A solidão de ter que ser forte, sempre forte, “essa exigência de força atesta a
ilegalidade do Estado. Poder assumir as fragilidades e tristezas e ter atenção a saúde
mental de qualidade seria restituir de humanidade essas mulheres” (RIBEIRO, 2019,
p. 3). E essa solidão vai afetando o psíquico das pessoas negras, das mulheres
negras, podendo causar, de fato, adoecimentos psíquicos (RIBEIRO, 2019) como foi
o caso da minha avó, que ficou muitos anos vivendo em sanatório e nem mesmo a
família era presente, porque toda essa estrutura nos faz acreditar que é o lugar que
ela deve estar, acarretando em ainda mais solidão.
Portanto, a solidão da mulher negra transcende a questão afetiva, é uma
solidão autorizada e disseminada pelo Estado e suas políticas de exclusão que
contribuem para ações cotidianas de apagamento, invisibilização dessas mulheres
que estão nos espaços servindo, cuidando, mas, também, das que estão em espaços
de destaque, pois são as exceções, as guerreiras, os pontos fora da curva. Esse
infográfico retirado do Retrato das Desigualdade de Gênero e Raça de 2011 é um
exemplo bastante prático e explícito da discrepância em que vivem as mulheres
negras na sociedade, que se encontram excluídas do mercado de trabalho.
40

Figura 4 - Infográfico referente a desemprego segundo sexo e raça (2009)

Fonte: IPEA, 2011

E quando possuem empregos, normalmente são subempregos que não


garantem seus direitos, como pode-se perceber no gráfico abaixo:
41

Figura 5 - Gráfico referente à porcentagem de trabalhadoras domésticas com carteira de


trabalho assinada segundo raça/cor (1996-2007)

Fonte: BONETTI; ABREU, 2011, p. 99.

Pensar no fim da solidão das mulheres negras, portanto, é pensar em uma


ruptura estrutural que as coloque em evidência, que as tire dos espaços de serventia
e subordinação como regra, algo que muitos coletivos de feminismo negro têm
buscado fazer, mas que sem uma nova percepção social sobre essas mulheres acaba
se tornando bastante difícil de alcançar. Minha avó, Dona Preta, é a pessoa mais
solitária que eu conheci na vida.

3.3 O RETRATO DA LOUCURA

Filha do crime perfeito, a criança nasceu, mãe


E a menina filha teve que entregar
não tinha como cuidar, mas é abandono, é absurdo, transtorno
te julgaram, te cuspiram, te pisaram
e debaixo da mesa, observava o derramar
entre o hospício e o precipício foi crescendo,
em meio ao ódio e o doce rebelde viver,
sem entender a desordem de cada amanhecer
42

Os efeitos psicossociais do racismo têm sido discutidos por pesquisadores


negros, em particular influenciados pelo pioneirismo de Frantz Fanon (2008),
psiquiatra martinicano e grande referência na luta contra o racismo e o colonialismo.
Para este autor, entender as neuroses da sociedade fundada pelo colonialismo requer
ampliar a visão para todo o processo social e psicológico que engendrou na
constituição desta sociedade. E sendo a psiquiatria, e a área da ciência em geral,
eminentemente branca e colonizadora, a dificuldade de compreender as
particularidades das manifestações de psicopatologias em pessoas negras passa pela
negação da compreensão dos impactos do racismo na formação psicológica, não do
ponto de vista individual, mas enquanto coletividade, sociedade; bem como a sua
construção cotidiana através dos mecanismos de dominação.
O racismo, coloca a população negra exposta a situações de extrema violência
que se configura de diversas maneiras nessa sociedade, através de um racismo que
exclui, humilha, abusa e mata. Ou seja, as situações que a negritude é exposta, desde
a infância, referente ao genocídio, a situação do encarceramento, renda da população
negra, condições de moradia, educação, segurança, refletem consequentemente na
sua saúde mental (GONÇALVES, 2017), que mais uma vez fica à mercê de um Estado
que escolhe quem protege.
Em entrevista ao Jornal Nexo (2019) sobre “O impacto do racismo na saúde
mental da população negra”, o psicólogo Valter da Mata, aponta que o racismo incide
psicologicamente em duas dimensões:

A primeira dimensão da psicologia atingida é a autoestima, como a


pessoa se avalia, se valoriza. Ela vive uma série de situações onde vai
ser minimizada, ignorada, invisibilizada ou ainda associada a coisas
ruins. Sem compreender, a vítima de racismo passa a introjetar essa
menos-valia, acreditando ser burra, feia, inferior. Existia no Brasil, por
exemplo, o famigerado “boa aparência”. A pessoa negra é taxada
desde a escola com adjetivos muito pesados com relação a seus
traços, ao cabelo, então ela se auto-discrimina, e não acredita que
tenha boa aparência.
Outra dimensão que forma a espinha dorsal da questão psíquica é a
da identidade. A identidade nada mais é do que referências em torno
das quais o indivíduo se reconhece. Existe a identidade pessoal,
ligada às características do sujeito (“Eu sou tímido, sou extrovertido,
sou competente, sou alegre”), que são características psicológicas, e
a identidade social, o pertencimento a grupos sociais. (JORNAL
NEXO, 2019)
43

O racismo, ao se constituir como estrutural e estruturante das relações sociais,


incidirá, portanto, também nas condições de saúde da população negra e indígena.
Ao mesmo passo em que sofremos as incidências do racismo, a sociedade eugênica
e higienista, por meio do Estado, atua para estigmatizar ainda mais aqueles que
apresentam um sofrimento mental, tratando como algo inerente à população negra.
Neste sentido, Gonçalves (2017) aponta que, para compreender a questão da saúde
da população negra é necessário repensarmos a perspectiva de raça, a sua
construção histórica e social assentada na desigualdade e na extrema violência contra
a população negra.
De acordo com os dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2018), em relatório
realizado pela UnB aponta que o suicídio atinge mais a pessoas negras do que
brancas, em particular os jovens e adolescentes negros.

A tendência da taxa de mortalidade por suicídio entre adolescentes e


jovens negros apresentou um crescimento estatisticamente
significativo no período de 2012 a 2016. Em 2012, a taxa de
mortalidade por suicídio foi de 4,88 óbitos por 100 mil entre
adolescentes e jovens negros e aumentou 12%, alcançando 5,88
óbitos por 100 mil entre adolescentes e jovens negros em 2016. Por
outro lado, a taxa de mortalidade por suicídio entre os brancos
permaneceu estável, isto é, a variação não foi significativa
estatisticamente. Em 2012, a taxa de mortalidade por suicídio entre
adolescentes e jovens brancos foi de 3,65 óbitos por 100 mil, e em
2016 essa taxa foi de 3,76 óbitos por 100 mil. Analisando esses dois
grupos em 2016, nota-se que a cada 10 suicídios em adolescentes e
jovens, aproximadamente seis ocorreram em negros e quatro em
brancos. (BRASIL, 2018, p.24).

O retrato da loucura, portanto, se faz consequência do pré-retrato, do retrato


da violência e do retrato da solidão. Ou seja, a loucura, nesse caso, é o retrato do
racismo. Minha avó conta que o período em que ela esteve presa no manicômio, ela
passou por situações de tortura e com base nisso, debruçada na leitura dos Jacobinos
negros, James (2010), noto que muitas dessas ações, são análogas a escravidão, que
desde aquela época já incitavam o desprazer da vida, sendo combustível para um
desequilíbrio psíquico, tendo como consequência iniciativas suicidas, entre outras. A
música intitulada A carne composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette
(1998), interpretada e aclamada na voz de Elza Soares (2002), denuncia:
44

A carne mais barata do mercado é a carne negra


Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos (JORGE; YUCA; CAPELLETTE, 1998).

Somos a “carne” que vai para os piores lugares como consequência de toda
violência direcionada à vida da população negra e mais uma vez, não de forma
individual, mas sim universal. Voltamos ao ciclo: Onde estamos? Quem somos? Quais
empregos ocupamos? Quais são nossos salários? Moradia? Educação? Quais são
nossas condições de mudar essa história quando - ainda que com novas roupagens -
o racismo continua como estrutural nessa sociedade?

3.4 O RETRATO DA LUTA E DA RESISTÊNCIA

Engravidou de mim e quis abortar a missão


de mais uma geração mulher (preta), que sofre o abuso da solidão.

Às mulheres negras foi renegado o direito ao controle de natalidade desde o


início desta discussão lá no século XIX. Decidir sobre o próprio corpo era algo que
estava sendo buscado pelo feminismo, mas sem considerar as mulheres negras e as
trabalhadoras. Esse feminismo que é branco e que, na época, justificava que as
mulheres negras e pobres estavam muito preocupadas com outras questões e que,
por isso, não participavam das discussões sobre o tema, desconsiderava que estas
mulheres já estavam há muito tempo pensando e buscando formas de prevenir
gravidez e de não tê-las quando acontecesse indesejadamente. Mulheres que
abortavam suas crianças por desespero de ter que colocar no mundo mais um ser que
seria escravizado, como na época da escravidão. (DAVIS, 2016)
Mulheres que tinham seus corpos violentados e não tinham a menor condição
material e emocional de sustentar uma nova vida. Que quando foram incluídas nas
políticas de controle de natalidade foram esterilizadas involuntariamente, num plano
de extermínio e descontinuidade da raça (DAVIS, 2016). Ou, quando se findou o
45

tráfico negreiro, foram subjugadas ao papel de reprodutoras de força de trabalho para


atender à demanda da sociedade escravista que permaneceu após o fim do tráfico.
Ações essas que contribuíram para a solidão das mulheres negras, para a sua
desesperança e vontade de permanecer e de dar seguimento a outras vidas.

Por que os abortos autoinduzidos e os atos relutantes de infanticídio


eram ocorrências tão comuns durante a escravidão? Não era porque
as mulheres negras haviam descoberto soluções para suas agonias,
e sim porque elas estavam desesperadas. Abortos e infanticídios eram
atos de desespero, motivados não pelo processo biológico do
nascimento, mas pelas condições opressoras da escravidão. A
maioria dessas mulheres, sem dúvida, teria expressado seu
ressentimento mais profundo caso alguém saudasse seus abortos
como um passo rumo à liberdade. (DAVIS, 2016, p.208).

Eu cresci ouvindo de algumas pessoas da família, que minha mãe pensou em


me abortar, isso vinha jogado, afinal era um assunto tabu, assim como outras histórias,
e durante anos na minha infância foi motivo de tristeza, dúvidas, insegurança. Quando
minha avó materna, aqui dentro da universidade me contou todo o retrato descrito na
música, do início ao “fim”, foi como um momento de cura, onde eu consegui
compreender mais do que eu imaginava já saber, sobre as consequências de um
racismo estrutural. Foi onde eu consegui enxergar a força de minhas ancestrais, onde
tive forças pra seguir em frente e continuar mudando o curso dessa história, e não a
minha particular, mas a história de nós mulheres negras dentro dessa sociedade. É
baseada em Ângela Davis que hoje consigo perceber que tanto me abortar quanto
seguir com o curso da gravidez, qualquer uma das duas opções, seria um ato de
resistência da minha mãe e é um ato de resistência das mulheres negras. Por mais
que hoje não sejamos escravizadas, estamos à mercê dessa sociedade que nos
violenta, oprime e subjuga e nós nos armamos para o enfrentamento.
Estar dentro da Universidade hoje, enquanto mulher preta, ser lida e ouvida
nesse espaço, ter a oportunidade de partilhar minha história num trabalho acadêmico,
é mudar as linhas de um Retrato difícil de ser ouvido, difícil de ser falado, difícil de ser
cantado. Poder trazer pra dentro da Universidade minha bisavó, minha avó, minha
mãe, minha tia, mulheres negras que são referência pra mim, é ter minha própria
história como ruptura de um ciclo. É dizer que apesar desse plano de extermínio das
nossas vidas, nós mulheres negras continuamos resistindo sendo a fonte da nossa
própria força, nos apoiando e nos inspirando. Nós estamos presentes ocupando os
46

espaços que nos foram negados durante tanto tempo e tem muitas mulheres pretas
fazendo isso há muito tempo: Bell Hooks, Conceição Evaristo, Elza Soares, Ângela
Davis, Lélia Gonzalez, Cristiane Sabino, que trago em alguns momentos neste
trabalho, são algumas delas. Chegou a minha vez e eu agradeço a todas, por terem
me oportunizado estar aqui.
47

4 CONCLUSÃO

Foi a partir do curso de serviço social que despertei um olhar de criticidade para
o sistema em que vivemos e consequente me deu suporte para elaborar as mediações
levantadas neste trabalho, refletindo sobre as expressões da questão social que
apesar de ser um termo que surge sob uma ótica Europeia, para dar conta da primeira
onda industrializante no século XVIII, se atualiza, segundo Netto (2013), não como
uma “nova questão social”, mas sim, na necessidade e emergência de investigar as
novas expressões da “Questão Social”,

Se a “lei geral” opera independentemente de fronteiras políticas e


culturais, seus resultantes societários trazem a marca da história que
a concretiza. Isto significa que o desafio teórico anteriormente
salientado envolve, ainda, a pesquisa das diferencialidades histórico-
culturais (que entrelaçam elementos de relações de classe,
geracionais, de gênero e de etnia constituídos em formações sociais
específicas) que se cruzam e tensionam na efetividade social. Em
poucas palavras: a caracterização da “questão social”, em suas
manifestações já conhecidas e em suas expressões novas, tem de
considerar as particularidades histórico-culturais e nacionais. (NETTO,
2013, p.29).

Considerando o processo histórico-cultural em que a sociedade brasileira foi


constituída, juntamente com as mediações elaboradas neste trabalho, com base em
autoras/es que discutem sobre a questão racial, é pertinente apontar que ter o racismo
na estrutura do país se reflete, sem dúvidas nas expressões da questão social. Por
esse motivo, acredito que seria importante um maior aprofundamento da categoria
referente aos desdobramentos do racismo.
A partir do levantamento bibliográfico feito para contextualizar como essa
sociedade se estrutura racialmente, foi possível elaborar as mediações teóricas junto
da música Retrato Falado, que à princípio traz vivências específicas de uma família
de mulheres negras brasileiras, o que trouxe reflexão sobre as contradições de
gênero, raça e classe, ainda presentes. Dessa forma, foi possível constatar que a
estrutura racista em que o Brasil foi constituído, contribui para que a história se repita
ainda hoje, mantendo a maioria das mulheres negras em lugar de subordinação e
solidão. Ou seja, a história descrita na música, que sai de um retrato singular, na
verdade é um retrato da vida de grande parte das mulheres negras dessa sociedade,
se tornando um retrato universal, mas que ainda assim se reproduz e é redesenhado
48

de diversas formas. Por isso, descrevemos esse retrato como Retrato Falado: Voz e
imagem em Movimento e em sequência vamos descrevendo seus desdobramentos
como Retrato da Violência, Retrato da Solidão, Retrato da Loucura. Buscando uma
forma de apresentar onde e como o pré-Retrato vai se desdobrando. Entendendo que
os movimentos históricos que constituem essa sociedade não findam em si, mas que
tem consequências que vão se refletindo a todo tempo. Foi possível também
constatar através dos dados de homicídio, salário, escolaridade, cárcere, moradia, a
omissão do Estado perante o racismo e seus desdobramentos e não só a omissão,
mas muitas vezes sua ação em legitimar um lugar de subordinação do povo preto,
que se apresentam no policiamento e abuso de poder (como também descrito na
música). Um Estado que deveria estar atento e ativo na elaboração de ações para de
fato chegarmos a uma democracia racial, na verdade decide quem vai proteger e não
somos nós.
Como forma de entender o percurso das linhas riscadas, chegamos, por fim,
no Retrato da Resistência, onde encontro todas as mulheres negras que
oportunizaram que eu estivesse aqui direta ou indiretamente, onde eu elaboro esse
trabalho de conclusão de curso do Serviço Social, contando a minha história e de
minhas ancestrais, me aproximo do tão sonhado diploma, contradizendo as linhas que
foram há tanto tempo brutalmente reservadas para nós e é dessa forma que eu
concluo esse Retrato, resistindo.
49

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