Retrato Falado e A Mulher Negra No Brasil
Retrato Falado e A Mulher Negra No Brasil
Retrato Falado e A Mulher Negra No Brasil
Retrato Falado e a mulher negra no Brasil: Uma reflexão sobre a relação entre o
singular e o universal.
Florianópolis
2019
DANDARA MANOELA DOS SANTOS
Retrato Falado e a mulher negra no Brasil: Uma reflexão sobre a relação entre o
singular e o universal.
Florianópolis
2019
DANDARA MANOELA DOS SANTOS
Retrato Falado e a mulher negra no Brasil: Uma reflexão sobre a relação entre o
singular e o universal.
Este Trabalho Conclusão de Curso foi julgado adequado para obtenção do Título de
Assistente Social e aprovado em sua forma final pelo Curso.
________________________
Prof.ª Dr.ª Dilceane Carraro
Coordenadora do Curso
Banca Examinadora:
________________________
Prof.ª Dr.ª Cristiane L. Sabino de Souza
Orientadora
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Prof.ª Dr.ª Beatriz Augusto de Paiva
Universidade Federal de Santa Catarina
________________________
Prof.ª Dr.ª Clara Martins do Nascimento
Universidade de Pernambuco
Este trabalho é dedicado a todas as mulheres
negras, mas principalmente, as que fizeram de
tudo para que eu estivesse aqui: Delba Martins
Santos, Deborah dos Santos, Elisângela de
Paula Pereira e Fátima Aparecida Pereira.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a toda minha família, em especial, minha avó Delba (in memória), por
toda sua dedicação na minha criação e por fazer transbordar o significado de amor. A
minha tia Deborah (Tata), que decidiu me adotar e que fez e faz de tudo para que
nada nunca me falte. A pessoa que sei que posso sempre contar nessa vida, minha
mãe, Elisângela, por ser tão guerreira e ter dado nó em todos os becos que a vida a
tentou colocar, você me inspira. E também minha avó Fátima, que é ponto de partida
fundante do meu disco e desse TCC que, mesmo sem saber, me fez despertar para
essa sociedade. Mulheres negras que formam esse retrato, vocês são minhas maiores
referências, e tudo que sou e tenho, dedico a vocês. Também agradeço meus irmãos:
Taynara, Kauê, Juninho, Caio e Lucas por existirem e darem mais alegria e força para
seguir lutando na vida. Agradeço ao meu pai Aminadab, e todos meus primos(as), em
especial Fernando, Camila, Érica, Kallel, Izac, que, mesmo com a distância, sempre
fizeram valer pra mim o significado de amor. Agradeço também minhas referências
acadêmicas: Joana Célia dos Passos, obrigada por tão cedo ter confiado em mim, por
me ajudar a confiar em mim. Cauane Maia, por subverter o retrato esperado para uma
mulher preta nessa sociedade e por sempre mover estruturas toda vez que faz uma
fala. Cristiane Luiza Sabino de Souza, obrigada por fazer desse momento possível e
por me fazer me sentir verdadeiramente acolhida, desde a primeira orientação.
Agradeço de todo meu coração, minha companheira de vida, amiga, esposa e
namorada, Renata Schlickmann, por me apoiar em tudo que eu faço, me dar suporte,
segurança, amor e literalmente botar a mão na massa e fazer acontecer comigo, por
topar construir uma nova história lado a lado e por me presentear com uma família
linda, Fernando, Eugênia, Fernanda, Zuca e Tuça, amo vocês.
Agradeço a primeira amiga que conheci no Serviço Social, Ingrid Maria, que
presente te encontrar, minha eterna best, por todas as alegrias que você me
possibilitou dentro dessa universidade e fora dela. Agradeço a Marissol Mwaba, por
ser referência de mulher preta em tantos campos da vida, por ser minha grande amiga
de todas as horas e por ter topado cuidar com unhas e dentes desse nosso
afeto. Bruna Barreto, você é o futuro, obrigada por me dar moral, apoio, carinho. Por
ser minha filhota de coração e irmã, por ser família, sempre estarei aqui pra você.
Sarah Massí, por toda alegria, energia, amor. Por ter me ensinado tanto nos últimos
anos, sobre acreditar, ter fé e fazer acontecer, por ter me convocado a ser parte das
Cores de Aidê, por ser realizadora, sócia, parceira da vida e principalmente, minha
grande amiga. Agradeço as integrantes da banda mais incrível desse Brasil, Bê Sodré,
Cauane Maia, Carla Luz, Cris Fernandes, Fernanda Jerônimo, Laila Dominique, Luana
Nascimento, Nattana Marques, Nine Martins e Sarah Massí, pela nossa vivência,
ensinamentos e parceria. Também agradeço os integrantes das bandas do meu
projeto solo, Cris Ubrother, Mateus Romero, Jeff Nefferkturu, Marcelo Santhu,
Matheus Crippa, Otis Selemane, Adriel Job, Diogo Nazareth, obrigada por abraçarem
com tanto carinho esse Retrato, eu amo vocês.
E essa tal liberdade, onde é que anda, onde é que
vai?
Pela minha janela vejo que o meu povo é o primeiro
que cai
É que agora mudamos, deixa de papo, é pura ilusão
Acabou o racismo, quer conferir liga a televisão
[...] É choro perdido, é tiro encontrado, é corpo no
chão
Todo mundo assustado e parece que foi só uma
confusão
E se não acredita e quer conferir,
desligue a televisão e vai lá pra janela
pra sua janela, olha que situação
RESUMO
Falar de mulheres negras é falar de uma infinidade de atravessamentos que
constituem seus cotidianos, suas vidas. A música Retrato Falado de Dandara Manoela
conta a história de sua bisavó, sua avó e sua mãe, até chegar na história dela. Todas
essas mulheres são negras e seus caminhos estão cruzados, mas ao olhar a
sociedade brasileira como um todo, é possível perceber que essas histórias compõem
contradições sociais de classe, raça e gênero que se repetem na maioria da vida das
mulheres negras do país. Nesse sentido, este trabalho de conclusão de curso teve
como objetivo elaborar mediações teórico-reflexivas sobre as contradições sociais -
de classe, raça e gênero - na sociedade brasileira a partir da música Retrato Falado e
buscando mediações teóricas a partir da pesquisa bibliográfica com referência em de
autoras/es que abordam a temática da questão racial e, particularmente, sobre a
situação da mulher negra no Brasil. O resultado foi a confirmação de que a estrutura
racista em que o Brasil foi constituído e que permanece em pleno desenvolvimento,
contribui para que a história se repita ainda hoje, mantendo a maioria das mulheres
negras em lugares de subordinação e solidão, mas que essas mesmas mulheres
continuam resistindo e subvertendo esse processo.
ABSTRACT
To talk about black women is to talk about several aspects that constitute their day-by-
day, their lives. The song "Retrato Falado" by Dandara Manoela tells the story of her
great grandmother, her grandmother and her mother, until it comes to her own story.
All these women are black and their paths are crossed, but as we look at the brazilian
society, it is noticeable that these stories are made of social class, race and gender
contradictions, that repeat in the lives of most black women in the country. Therefore,
this completion of course work has the goal to elaborate theoretical-reflexive
discussions about the social class, race and gender contradictions in brazilian society
trough the song "Retrato Falado", and to look for theoretical mediations from the
bibliographic research with the reference of authors that bring the racial thematic,
particulaly about black women's situation in Brazil. The result was the confirmation that
the racist structure in which Brazil was constituted in, and that remains in it's full
development, contribues for the story to repeat within today, keeping most black
women in places of subjection and solitude, and even so, still resisting and subverting
this process.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Infográfico referente a habitação e saneamento segundo sexo e raça/cor
(2009) ........................................................................................................................ 21
Figura 2 - Infográfico de distribuição de renda segundo sexo e raça/cor (2009) ...... 23
Figura 3 - Gráfico sobre a taxa de homicídios de negros e não negros no Brasil (2007-
2017) ......................................................................................................................... 36
Figura 4 - Infográfico referente a desemprego segundo sexo e raça (2009) ............ 40
Figura 5 - Gráfico referente à porcentagem de trabalhadoras domésticas com carteira
de trabalho assinada segundo raça/cor (1996-2007) ................................................ 41
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13
2 PRÉ RETRATO: CONTEXTO DA ESTRUTURA RACIAL NO BRASIL ............ 17
3 RETRATO FALADO: VOZ E IMAGEM EM MOVIMENTO ................................. 28
3.1 O RETRATO DA VIOLÊNCIA ............................................................................ 31
3.2 O RETRATO DA SOLIDÃO................................................................................ 37
3.3 O RETRATO DA LOUCURA .............................................................................. 41
3.4 O RETRATO DA LUTA E DA RESISTÊNCIA .................................................... 44
4 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 47
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 49
13
1 INTRODUÇÃO
Para responder aos intentos do trabalho, o objetivo geral proposto foi: Elaborar
mediações teórico-reflexivas sobre as contradições sociais - de classe, raça e gênero
- na sociedade brasileira a partir da música Retrato Falado. Buscando
especificamente: estudar e sistematizar os elementos fundamentais da formação
social brasileira com vistas a apreender a dinâmica constitutiva das relações sociais e
suas contradições, focado na questão racial; analisar a letra da música Retrato Falado
1
Analogia ao sentido dado por Lukács (2013) ao dissertar sobre o surgimento do ser social.
16
O procedimento técnico, por sua vez, foi a pesquisa bibliográfica pois, realiza
levantamento e análise de “[...] referências teóricas já analisadas, e publicadas por
meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites”
(GERHARDT; SILVEIRA, 2009, p. 37), dentre as quais pode-se destacar referências
teóricas que abordam a temática da questão racial/racismo no Brasil e,
particularmente, a situação das mulheres negras. A partir destas referências foi
realizada uma análise de discurso da música Retrato Falado, entendendo que “[...] a
linguagem vai além do texto, trazendo sentidos pré-construídos que são ecos da
memória do dizer” (CAREGNATO; MUTTI, 2006, p. 681). Nessa pesquisa foi dada a
prioridade ao estudo de autoras negras, como Lélia Gonzalez, Bell Hooks, Angela
Davis.
17
De acordo com James (2010), uma vez vendidos como uma mercadoria
qualquer para os colonialistas americanos, os escravizados foram obrigados a
trabalhar de sol a sol – homens e mulheres de diferentes idades – com repressão e
vigilância constante, vivendo em péssimas condições de alimentação e moradia.
Assim ele ocupa não só os piores postos de trabalho, mas também os piores
postos territoriais, refletindo, consequentemente, a menos acesso também à saúde,
educação e renda. Realidade que segue até os dias atuais, conforme ilustrado muito
nitidamente pelo infográfico:
21
O Infográfico abaixo demonstra de forma mais visual o que está explícito nos
dados, nos possibilitando perceber como as mulheres negras estão a margem, mais
uma vez.
23
dada a política de branqueamento, estavam numa situação melhor que a dos negros.
Além disso, busca-se naturalizar a ideologia de que pessoas negras são inferiores.
RETRATO FALADO
Dona Preta, minha avó, resolvi cantar,
suas histórias, suas memórias, seu penar
Tantos planos, desenganos, tanta dor
Solidão, viver, crescer, sem ter amor
Ela apanhava tanto até a alma sangrar, mulher
e a menina filha, vó, debaixo da mesa, observava o derramar
escondida, encolhida, com coberta de sangue, tremia de medo
acompanhada da sua pouca idade, teve parte da vida um segredo,
Tantos tapas, tantos gritos, tantas noites, tanto dor
Até que um dia a menina filha, resolveu falar,
foi na delegacia, foi lá denunciar
e aí, te tacaram numa cela, tiraram sua roupa e seu valor
e a menina sangrou na pele tudo que lhe restava de amor
a prenderam a força, contra a parede, contra moral,
e do dia pra noite, a menina filha, ficou grávida, grávida do policial
Então, foi menina de vez, mulher, chorando perdida entre valas e vielas,
e a cada esquina que passava, sua sanidade pingava em gotas no chão
que aos poucos formavam um rio de perigo
sujando o caminho sem proteção
Perambulava sozinha, de um canto pro outro, pra lá e pra cá
e a cidade de pau sujo, tinha coragem do seu corpo cobiçar
Filha do crime perfeito, a criança nasceu, mãe
E a menina filha teve que entregar
não tinha como cuidar, mas é abandono, é absurdo, transtorno
te julgaram, te cuspiram, te pisaram
e debaixo da mesa, observava o derramar
entre o hospício e o precipício foi crescendo,
em meio ao ódio e o doce rebelde viver,
sem entender a desordem de cada amanhecer
Engravidou de mim e quis abortar a missão
de mais uma geração mulher, que sofre o abuso da solidão.
Dandara Manoela, 2018.
28
Dona Preta, como inicia o primeiro verso da canção, hoje representa outras
mulheres, principalmente mulheres negras, que tem partes de sua história registradas
nesses versos, mesmo que não de forma literal. Foi dentro da universidade, que minha
avó, numa visita que fez a Florianópolis, revelou toda essa história. Eu já sabia que
minha vó tinha passado 12 anos no sanatório, eu já sabia que minha mãe tinha
pensado em me abortar, sabia também que em alguma ocasião ela tentou se matar,
eu já sabia de algumas coisas, mas eu não entendia essa continuidade, os processos,
era tudo muito solto, jogado, quase que como fofoca de família, já que eu nunca tinha
ouvido nada por parte delas. Ter ciência da minha história através da minha avó foi
libertador, me trouxe indignação, mas também a vontade de reescrevê-la.
Na composição ela surge ainda de forma literal, mesmo que com um ar poético,
de forma geral, ela segue a história na íntegra e vem sendo reescrita nos processos
da minha vida, aparece na ação, na vivência, nessa formação, no canto, onde a
29
Como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo
que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua
violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra. Pois o
outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa
mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada
doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu
endeusamento se exerce como fortes cargas de agressividade. É por
aí, também que se constata que os termos mulata e doméstica são
atribuídos a um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação
em que somos vistas. (GONZALEZ, 1984, p.228).
Segundo Lélia Gonzalez (1984) a mulher negra é vista de três formas: Mulata,
doméstica e mãe Preta. Ou seja, as versões de mulheres que existem para servir,
para o trabalho que ninguém quer fazer, para satisfazer os desejos sexuais do
opressor ou para ser aquela que cuida, mas que não é cuidada, não é vista.
Clóvis Moura (2014) fala sobre o ocultamento da história dos vencidos e o
apagamento da memória-história do povo negro pela academia. Para o autor, a
história é feita a partir de um processo seletivo no qual as classes dominantes
estabelecem uma visão elitista e manipuladora da realidade. Contar a história de
mulheres negras na sociedade brasileira num trabalho de conclusão de curso
30
[...] que foi que ocorreu, para que o mito da democracia racial tenha
tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os processos que
teriam determinado sua construção? Que é que ele oculta, para além
do que mostra? Como a mulher negra é situada no seu discurso?
O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre
o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se
constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural
brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo
produz efeitos violentos sobre a mulher negra em
particular. (GONZALEZ, 1984, p.224)
2
Para saber mais sobre branquitude ler: Bento (2002); Sovik (2002); Cardoso (2011);
Schucman (2013).
31
nos permitem ocupar outros lugares e não o racismo que reforça tais papéis. Usando
também as exceções para dizer que se houver esforço, “chegaremos lá”, ignorando o
processo histórico dessa sociedade. Maria Aparecida Bento (2002) possui uma
citação irônica que resume esse pensamento muito característico da branquitude:
Essa era minha bisavó, apanhando do meu bisa vô, que é um homem negro
retratado pela minha vó como um homem extremamente violento. Esse é o retrato de
um número absurdo de mulheres, em particular mulheres negras, inseridas numa
sociedade patriarcal e racista, na qual seus corpos e suas vidas são violentados
cotidianamente de muitas formas. A violência que impacta a vida das mulheres negras
é conformada dentro desta estrutura desigual fundada no escravismo, na qual também
o homem negro é vítima constante, ainda que possa ser também reprodutor da
violência. Para Bell Hooks,
32
De acordo com os dados do Atlas da Violência (IPEA, 2019), 66% das mulheres
assassinadas no país entre 2007 e 2017 são negras. O mesmo relatório aponta que
o aumento da taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 1,6%, enquanto de
mulheres negras cresceu 29,9%.
Os dados sobre a realidade demarcam a situação social da mulher negra e
refletem a incapacidade dessa sociedade racista e patriarcal de resolver as
desigualdades estruturais que a sustenta, e a violência segue:
A música também trata da violência sexual, estupro, sofrida pela minha vó, por
um homem branco que representa uma autoridade e que se aproveita de um momento
de fragilidade e do estigma que ela tinha como “louquinha do bairro”, quando a mesma
decide pedir proteção por conta das violências que estava vivendo. Nesse ponto, há
dois elementos para destacar. O primeiro é a objetificação do corpo da mulher negra
e o histórico de abuso sexual em que a mesma está submetida desde a escravidão;
3
Texto original: No wonder then that many black folks established domestic households that
mirrored the brutal arrangements they had know in slavery. Using a hierarchical model of family
life, they created domestic espaces where there were tensions around power, tensions that
often led black men to severely whip black women, to punish them for perceived wrongdoing,
that led adults to beat children to asset domination and control. (HOOKS, 1993, p. 232).
33
No que tange à violência sexual, Davis (2016) chama atenção ainda para a
construção ideológica do “mito do negro estuprador” que na batalha conformada por
racismo e sexismo, reforça a deturpação do homem negro e a sua apresentação como
imoral, violento, animalizado, etc. A estereotipação racista faz com que aqueles que
detém a estrutura de poder - homens brancos - passem impunes nos inúmeros crimes
que cometem, ao passo que, quando ocupam a estrutura do Estado, também a
utilizam para legitimar seu lugar de poder.
Figura 3 - Gráfico sobre a taxa de homicídios de negros e não negros no Brasil (2007-2017)
Então, foi menina de vez, mulher, chorando perdida entre valas e vielas,
e a cada esquina que passava, sua sanidade pingava em gotas no chão
que aos poucos formavam um rio de perigo
38
A solidão de ter que ser forte, sempre forte, “essa exigência de força atesta a
ilegalidade do Estado. Poder assumir as fragilidades e tristezas e ter atenção a saúde
mental de qualidade seria restituir de humanidade essas mulheres” (RIBEIRO, 2019,
p. 3). E essa solidão vai afetando o psíquico das pessoas negras, das mulheres
negras, podendo causar, de fato, adoecimentos psíquicos (RIBEIRO, 2019) como foi
o caso da minha avó, que ficou muitos anos vivendo em sanatório e nem mesmo a
família era presente, porque toda essa estrutura nos faz acreditar que é o lugar que
ela deve estar, acarretando em ainda mais solidão.
Portanto, a solidão da mulher negra transcende a questão afetiva, é uma
solidão autorizada e disseminada pelo Estado e suas políticas de exclusão que
contribuem para ações cotidianas de apagamento, invisibilização dessas mulheres
que estão nos espaços servindo, cuidando, mas, também, das que estão em espaços
de destaque, pois são as exceções, as guerreiras, os pontos fora da curva. Esse
infográfico retirado do Retrato das Desigualdade de Gênero e Raça de 2011 é um
exemplo bastante prático e explícito da discrepância em que vivem as mulheres
negras na sociedade, que se encontram excluídas do mercado de trabalho.
40
Somos a “carne” que vai para os piores lugares como consequência de toda
violência direcionada à vida da população negra e mais uma vez, não de forma
individual, mas sim universal. Voltamos ao ciclo: Onde estamos? Quem somos? Quais
empregos ocupamos? Quais são nossos salários? Moradia? Educação? Quais são
nossas condições de mudar essa história quando - ainda que com novas roupagens -
o racismo continua como estrutural nessa sociedade?
espaços que nos foram negados durante tanto tempo e tem muitas mulheres pretas
fazendo isso há muito tempo: Bell Hooks, Conceição Evaristo, Elza Soares, Ângela
Davis, Lélia Gonzalez, Cristiane Sabino, que trago em alguns momentos neste
trabalho, são algumas delas. Chegou a minha vez e eu agradeço a todas, por terem
me oportunizado estar aqui.
47
4 CONCLUSÃO
Foi a partir do curso de serviço social que despertei um olhar de criticidade para
o sistema em que vivemos e consequente me deu suporte para elaborar as mediações
levantadas neste trabalho, refletindo sobre as expressões da questão social que
apesar de ser um termo que surge sob uma ótica Europeia, para dar conta da primeira
onda industrializante no século XVIII, se atualiza, segundo Netto (2013), não como
uma “nova questão social”, mas sim, na necessidade e emergência de investigar as
novas expressões da “Questão Social”,
de diversas formas. Por isso, descrevemos esse retrato como Retrato Falado: Voz e
imagem em Movimento e em sequência vamos descrevendo seus desdobramentos
como Retrato da Violência, Retrato da Solidão, Retrato da Loucura. Buscando uma
forma de apresentar onde e como o pré-Retrato vai se desdobrando. Entendendo que
os movimentos históricos que constituem essa sociedade não findam em si, mas que
tem consequências que vão se refletindo a todo tempo. Foi possível também
constatar através dos dados de homicídio, salário, escolaridade, cárcere, moradia, a
omissão do Estado perante o racismo e seus desdobramentos e não só a omissão,
mas muitas vezes sua ação em legitimar um lugar de subordinação do povo preto,
que se apresentam no policiamento e abuso de poder (como também descrito na
música). Um Estado que deveria estar atento e ativo na elaboração de ações para de
fato chegarmos a uma democracia racial, na verdade decide quem vai proteger e não
somos nós.
Como forma de entender o percurso das linhas riscadas, chegamos, por fim,
no Retrato da Resistência, onde encontro todas as mulheres negras que
oportunizaram que eu estivesse aqui direta ou indiretamente, onde eu elaboro esse
trabalho de conclusão de curso do Serviço Social, contando a minha história e de
minhas ancestrais, me aproximo do tão sonhado diploma, contradizendo as linhas que
foram há tanto tempo brutalmente reservadas para nós e é dessa forma que eu
concluo esse Retrato, resistindo.
49
REFERÊNCIAS
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Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento
de Apoio à Gestão Participativa e ao Controle Social. Universidade de Brasília,
Observatório de Saúde de Populações em Vulnerabilidade – Brasília: Ministério da
Saúde, 2018.
HOOKS, B. Living to love. In: WHITE, E. C. (org.). The Black Women's Health
Book: Speaking for Ourselves. Seal Press, 1993. p. 231-236.
IPEA (org.). Atlas da violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.
IPEA [et al.]. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4ª ed. Brasília: Ipea,
2011.
JORGE, S.; YUCA, M.; CAPELLETTE, W. A carne. Rio de Janeiro: Polygram, 1988.
CD (3min38seg).
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013.
NETTO, J. P. “Questão social” elementos para uma concepção crítica. In: BRAZ, M.
Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a questão social e a
questão cultural no Brasil. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013. p. 19-30.
51
RIBEIRO, D. A solidão institucional. Folha de São Paulo. São Paulo, p. 1-5. 01 nov.
2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-
ribeiro/2019/11/a-solidao-institucional.shtml> . Acesso em: 05 dez. 2019.
SOUZA, Cristiane Luíza Sabino de. Terra, Trabalho e Racismo: Veias Abertas de
Uma Análise Histórico-Estrutural no Brasil. Tese (doutorado) – Universidade Federal
de Santa Catarina, Centro Sócio Econômico, Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social, Florianópolis, 2019. 265 p.