Ebook Narrativas Transatlanticas de Mulheres Negras
Ebook Narrativas Transatlanticas de Mulheres Negras
Ebook Narrativas Transatlanticas de Mulheres Negras
Beatriz Nascimento
Na r r a t i v a s T r a n s a t l â n t i c a s d e
Editora Responsável Dayse Sacramento
Organizadoras Alane Reis, Naiara Leite, Silene A.Franco,
Valdecir Nascimento
Nascimento, Beatriz
Narrativas transatlânticas de mulheres negras /
Beatriz Nascimento. -- 1. ed. -- Salvador, BA :
Diálogos Insubmissos de Mulheres Negras, 2022.
ISBN 978-65-997246-2-6
22-104923 CDD-305.42
Índices para catálogo sistemático:
Somente alguns direitos reservados. Esta obra possui a licença Creative Commons de “Atribuição + Uso não comercial + Não a
obras derivadas” (BY-NC-ND)” (saiba mais aqui).
Agradecimentos
É tempo de honrar e agradecer a nossa an-
cestralidade por chegarmos até aqui. Muitas têm sido
as lutas travadas pela população negra nesse grande
Atlântico.
Prefácio .......... 11
Apresentação .......... 17
Parte I .......... 20
Olhares insurgentes de mulheres negras
sobre a formação e o ativismo político: A
Escola Beatriz Nascimento e o Pensamen-
to das Mulheres Negras
6
Projeto Político das Mulheres Negras:
Pensando o bem viver
Rosa Marques; Valdecir Nascimento .......... 79
Parte II ..........90
Aprendendo com quem veio antes: experi-
ências e trajetórias de mulheres negras em
processos organizativos
GRUMAP Quarentando:
quatro décadas de ativismo de mulheres negras trilhados
pela arte, educação e pés no chão do território negro
Rita Santa Rita Pereira; Juscélia Bispo Pereira; Luciana Silveira; Karine Damasceno
........................................................147
7
AQUILOMB’ART:
A resistência feminina Cabuleira
Janice de Sena Nicolin; Vanessa Cerqueira .......... 161
Caminhos de Abundância:
As Economias Popular e Solidária e sua importância no
fomento da sustentabilidade nas organizações sociais
Lídia Rafaela Barbosa dos Santos .......... 177
8
Parte III ......... 192
Comunicação e Incidência Política de
Mulheres Negras.
9
Prefácio
A modernidade/colonialidade, ordem so-
cial imposta violentamente sobre nosso continente,
implicou o estabelecimento de hierarquias raciais,
sociais, de sexo, de sexualidade, de geopolítica, de
nacionalidade, etc., que se mantêm até hoje em dia.
Nossos povos, negros/afro e indígenas, ao longo da
história do continente, têm sido considerados não ra-
cionais, não suficientemente humanos, sem saberes,
considerados “os outros” de acordo com uma pers-
pectiva euronorcêntrica.
11
conta de pontos de vistas situados a partir de uma po-
sição dialógica entre pensamento e ativismo, cujo pro-
jeto político é alcançar a justiça social, não só para as
mulheres negras, mas como disse Frantz Fanon, para
todxs xs condenadxs da terra.
12
coletivos, uma estratégia política que tem permitido
criar comunidade, como fonte inesgotável de nosso
posicionamento no mundo enfrentando o individua-
lismo liberal colonial.
13
produção é outra maneira de fazê-lo.
14
15
Apresentação
As mulheres negras não são o problema. Nós
somos a solução do Brasil. Somos o único gru-
po humano capaz de olhar as mais complexas
estruturas. Somos o grupo que tem resistido às
opressões produzidas pelo racismo, sexismo e
pelo poder concentrado na mão dos brancos que
tentam nos subalternizar, principalmente, no
Nordeste, mas a gente é “cavalo do cão” e rein-
venta a ordem.
Valdecir Nascimento (2018)
17
ainda vamos percorrer na luta pela liberdade, autono-
mia e na construção de uma sociedade centrada no Ebó
das pretas, que é o Bem Viver.
Aqui, vamos conversar, trocar, aprender e
fortalecer as palavras, pensamentos, desafios presen-
tes nas narrativas, memórias, histórias e no hoje das
guerreiras negras de torço estampado, amefricanas,
transatlânticas, decoloniais, revolucionárias e insur-
gentes que vêm disputando a construção de um mun-
do radicalmente possível, humano, feliz e ousado para
nós, mulheres negras.
Este livro fala de ancestralidade, irmandade,
generosidade, poder e resistências, baseadas na cos-
movisão de mundo concebida na diáspora negra, lati-
noamericana e nordestina. Uma produção referenciada
na força de Beatriz Nascimento, negra, ativista, inte-
lectual e nordestina. Traz as vozes, produção e pensa-
mento de mulheres negras intelectuais da rua, das suas
comunidades, dos seus becos, dos seus quilombos, das
feiras, das universidades e desse outro grande territó-
rio chamado Nordeste.
É o anúncio dessas vozes que reafirma todos
dias, na arena do combate ao racismo, ao sexismo e de
todas as formas de opressão, que somos corpas negras
diversas no mundo e que não viveremos o Bem Viver
sem nossas estranhezas, diferenças de ver, estar e
olhar mundo. É a afirmação de que a nossa maior radi-
calidade é o acolhimento da nossa diversidade de ser e
existir mulher negra.
Em movimentos sintonizados, percebemos
que a epígrafe de Valdecir Nascimento - negra, lésbica,
nordestina - que abre esta apresentação, nos convida a
potencializar nossos pontos de vista e campos de luta a
partir dos nossos contextos. Estamos falando das his-
tórias das mulheres negras nas travessias do Atlântico,
que nos colocam sujeitas com histórias, pertencimentos
e lugares diferenciados. Até aqui muita luta foi travada.
E, diante de tantos desafios, reafirmamos que
a conquista do Bem Viver será protagonizada por elas,
as pretas, que tecem cotidianamente outras formas de
18
estar no mundo. Produzem e compartilham seus co-
nhecimentos, experiências, pesquisas, descobertas
e segredos com as jovens, meninas, mulheres, trans,
yas, que vão conduzir a nação brasileira, para o rom-
pimento de sistemas violentos e subalternizantes,
difundindo o movimento contra o desamor, contra o
ódio, o descaso. Nessa caminhada, venceremos com a
recuperação de nossas humanidades.
Nesse sentido, entregamos esta publicação
com a finalidade de somar às demais produções que
têm alimentado e retroalimentado reflexões impor-
tantes sobre a história de participação política das
mulheres negras, desde que pisaram nesta terra hostil,
racista, violenta. Romper o silêncio e visibilizar o pon-
to de vista, as percepções, o pensamento e as estraté-
gias de sobrevivência, dessas incansáveis estrelas além
do tempo sobre o impacto da intersecção perversa do
racismo, sexismo e lesbitransfobia, nas suas vidas e de
todo o povo preto no Brasil.
19
PARTE I
Olhares insurgentes de mulheres negras
sobre a formação e o ativismo político:
A Escola Beatriz Nascimento e o
Pensamento das Mulheres Negras
20
Um breve relato da
insubmissão de
Valdecir Pereira do
Nascimento¹
Angela Figueiredo² e
Valdecir Pereira do Nascimento³
1 Uma primeira versão deste texto foi originalmente publicada na Revista de His-
tória Comparada (UFRJ) v. 14, p. 6, 2020.
2 Professora e pesquisadora da UFRB, PPGNEIM e POSAFRO/UFBA, coordenadora
do Coletivo Angela Davis e integrante do Fórum Marielle.
3 Idealizadora e fundadora do Odara – Instituto da Mulher Negra. Historiadora
pela UFBA e Mestre em Educação pela Universidade do Estado da Bahia.
21
aguerrida, que alia sua luta prática a um pensamento
crítico sagaz, típico das grandes pensadoras. Valdecir
é muito corajosa, não tem medo de dizer o que pensa
em qualquer circunstância e para quem quer que seja,
como diria minha mãe. Suas análises de conjuntu-
ra política são aulas para ninguém botar defeito, pois
aliam a experiência de quem nasceu nas palafitas do
Uruguai, em 31 de outubro de 1959, um bairro pobre
e negro da periferia de Salvador, e a luta pela sobre-
vivência material e simbólica. Valdecir é a quarta dos
cinco filhos de Maria José Chagas Pedreira e Manuel
Hermenegildo do Nascimento.
Valdecir sempre recorda do cotidiano familiar,
no qual as reflexões e debates em torno do racismo
eram relativamente comuns, diante de um contexto
histórico em que a ideologia da mestiçagem era muito
forte. Sua mãe, negra de pela clara, nascida em Santo
Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia, ao che-
gar a Salvador, começou a namorar e depois viver uma
união estável com o seu pai, um homem negro retinto,
de candomblé, ferreiro, ativista do movimento comu-
nista e perseguido no Golpe de 64, o que gerou confli-
tos raciais na família de sua mãe. Esse é um dado im-
portante para compreender como, desde muito cedo,
o racismo impactou a vida de Valdecir. Ela conta que
seus pais sempre problematizaram junto a ela e a seus
irmãos a questão do racismo e a necessidade de reagir
frente a situações de subjugação e de inferioridade.
Valdecir estudou no Colégio Estadual Luís
Tarquínio e completou o ensino médio no Colégio João
Florêncio Gomes, ambos na Cidade Baixa. As vivências
educacionais de Val aguçaram a sua percepção de que
algo errado existia na relação entre professor/a e es-
tudantes negros/as. Suas experiências foram traumá-
ticas, por um longo tempo não ouviu uma palavra de
incentivo, apoio ou narrativas positivas para impulsio-
nar o seu processo de aprendizado. Ela experimentou
na escola, cotidianamente, o reforço à subalternidade
e à negação, além de constantes constrangimentos e
medidas corretivas a cada reação e insubordinação,
mas Valdecir resistiu. Graduada em História pela Uni-
22
versidade Federal da Bahia (UFBA/1996), fez Mestra-
do em Educação na Universidade Estadual da Bahia
(UNEB/2007) e tem 40 anos de militância no Movi-
mento Negro Unificado - MNU, pois iniciou sua traje-
tória política aos 20 anos de idade e nunca mais parou.
Val, em sua experiência, analisa e recorda as ações do
MNU ao longo de todos esses anos, já que é parte cons-
titutiva desse movimento.
Durante a época da ditadura militar, a parti-
cipação nas pastorais da Igreja Católica era uma for-
ma de driblar o autoritarismo do regime, na constru-
ção de estratégias de emancipação e fortalecimento da
consciência crítica e da solidariedade entre os pobres e
os oprimidos. Valdecir considera que a sua passagem
pela Igreja Católica foi o primeiro passo para a mili-
tância política. O grupo de jovens do qual participava
atuou com afinco na problematização da pobreza, das
desigualdades, contra a marginalização da população
negra e pobre, e ainda contra a introdução do comér-
cio de drogas nas comunidades. Tudo isso foi possível,
porque atuavam numa igreja comandada por jesuítas
comprometidos com a teologia da libertação, que usa-
vam o teatro e a música para converter e conscientizar
os congregados. Esses jovens encenaram Deus Negro,
de Neimar de Barros, nos anos de 1980, e a partir disso
foi solicitada à Igreja a autorização para a formação de
um grupo de jovens negros católicos, mas a instituição
rejeitou; de todo modo, essa mobilização foi impor-
tante e funcionou como um dos embriões para a cons-
tituição da Pastoral Negra. Inclusive, a sua entrada no
MNU foi através do padre Clovis Cabral, exatamente
um padre filho de uma mãe de Santo.
O encontro de Valdecir com o MNU potencia-
lizou a sua perspectiva radical, pois bastou participar
de apenas uma reunião desta organização para que
ela voltasse para casa, passasse em uma barbearia e
cortasse todo o seu cabelo alisado. “Não era possível
mais carregar essa marca da opressão”4, revela Val-
decir. A conexão entre a experiência de vida de Val-
decir e a concepção ideológica defendida pelo MNU se
complementaram numa perspectiva revolucionária de
23
mudança da sua expectativa de vida e visão de mundo.
Valdecir destaca que os primeiros enfrentamentos in-
ternos foram em função das atitudes machistas e au-
toritárias dos homens do MNU em relação às mulhe-
res negras, também ativistas. A partir desse momento,
cria-se o Grupo de Mulheres do MNU (GM/1981).
Com a criação do GM do MNU5, Valdecir afirma
que houve um diálogo continuo e complexo com Lélia
Gonzalez sobre a necessidade da luta por autonomia
das mulheres negras, pois identificou-se que a articu-
lação perversa entre racismo e sexismo se constituía
como o ponto nevrálgico do movimento negro6 e do
movimento feminista branco. A história de Valdecir,
nesse sentido, expressa o que Angela Davis (2018) ob-
servou sobre uma pergunta recorrente quando o femi-
nismo negro surgiu, se isso se construiria como uma
ruptura com o movimento negro, ao que Angela res-
ponde, mencionando que a questão está errada, pois o
objetivo não é romper, mas reconsiderar, destruindo o
machismo dentro do movimento negro.
É no MNU que Valdecir vai construir e confa-
bular a perspectiva das comunidades negras rurais,
hoje identificadas como comunidades quilombolas,
possibilitando uma incidência qualificada na Consti-
tuição de 1988. Gostaria de destacar que, em Brasília,
ocorreu, nesse período, a Convenção dos Negros e a
Constituinte, espaço que produziu um conjunto de rei-
vindicações para o enfrentamento ao racismo, em bus-
ca da garantia de direitos para a população negra. Uma
das estratégias de incidência da Convenção foi encabe-
çada pelas mulheres negras do MNU, que entregaram
uma carta às parlamentares brasileiras, reivindicando
direitos para a população negra, em particular, para as
mulheres negras. Do mesmo modo, as mulheres ne-
24
gras do MNU exigiram o direito de que as mães pudes-
sem registrar seus filhos sem a presença dos pais.
As articulações nacionais e internacionais do
MNU possibilitaram a Valdecir viajar e conhecer dife-
rentes regiões do Brasil e outros países, ampliando a
sua consciência crítica sobre o entendimento e a im-
portância das mulheres negras no mundo. Em 1991, ao
lado de Jurema Batista, Lélia Gonzalez e Luiza Bairros,
foi construído o I Encontro Nacional de Mulheres do
MNU, com o objetivo de afirmar o papel político das
mulheres negras na transformação da nação. É através
do MNU que Valdecir vai para a República Dominica-
na, protestar contra a celebração oficial dos 500 anos
de colonização das Américas e forjar coletivamente o
25 de Julho – Dia da Mulher Afro-Latino-Americana,
Afro-Caribenha e da Diáspora.
A partir do fortalecimento das mulheres ne-
gras, Valdecir participou, em Itapecerica da Serra, do
Seminário sobre Mulheres Negras e Demografia, a fim
de identificar a situação das mulheres negras no deba-
te sobre população e desenvolvimento para apresentar
denúncias na Conferência de Cairo, em 1994. Lá, foi
produzida a Carta das Mulheres Negras de Itapecerica
da Serra, com a finalidade de apontar o processo de es-
terilização em massa das mulheres negras e denunciar
o genocídio brasileiro da população negra. Vale desta-
car também que todo esse acúmulo contribuiu para a
construção do II Seminário Nacional de Mulheres Ne-
gras, ocorrido na Bahia, com o protagonismo dos nove
estados da região Nordeste para a construção da par-
ticipação das mulheres negras rumo à Conferência de
Beijing (1995).
Apesar do engajamento das mulheres ne-
gras do Nordeste em todo o processo de mobilização
e aprofundamento da situação das mulheres negras
no Brasil, as representações nas conferências inter-
nacionais do Cairo, Beijing e Durban nunca foram as-
seguradas para as mulheres negras do Nordeste. Val-
decir destaca que não teve a presença das nordestinas
organizadas em nenhum desses processos, mesmo
com toda a ação que as mulheres negras do Nordeste
25
vinham construindo juntas.
O pensamento de Valdecir é insubmisso e ino-
vador, ela tece críticas precisas ao modelo de exclusão
racial impetrado pelo Estado brasileiro ao longo de
mais de 500 anos, pois se perpetua até os dias atuais.
Aqui, é importante destacar o caráter estrutural e sis-
têmico do racismo, na perspectiva analítica de Valde-
cir, que não poupa críticas ao modo como a esquerda
branca rejeita a participação política negra, particular-
mente, a participação feminina negra nos quadros ma-
joritários. Vale observar a inexistência de estratégias
de reconhecimento de lideranças negras nos partidos
de esquerda deste país, mais que essa constatação, as
narrativas veiculadas e escolhidas intencionalmente
pela esquerda branca sobre a conquista da democracia
ou do atual sistema de governo, sempre invisibilizou a
participação e o protagonismo dos/as ativistas negros/
as. De modo enfático, ela assegura: “Basta olhar os re-
sultados da última eleição para averiguar os meus ar-
gumentos”. Valdecir é empírica, na maioria das vezes,
sua fala está respaldada em evidências incontestáveis.
Sua luta no combate às desigualdades raciais
a levou a assumir diversos cargos: foi Coordenadora
Executiva do Programa de Profissionalização de Jo-
vens e Adolescentes Negros (CEAFRO), do Centro de
Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA/1995); foi Di-
retora de Igualdade Racial da Secretaria da Mulher de
Lauro de Freitas (BA/2005); Consultora da Organiza-
ção das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO) nos programas inovadores de curso
(2005) – fazendo acompanhamento e monitoramen-
to de pré-vestibular para negros e indígenas na Bahia;
Consultora do Programa de Combate ao Racismo Ins-
titucional no Brasil (PCRI/2006); Superintendente de
Políticas para as Mulheres na Secretaria de Promo-
ção da Igualdade Racial do Estado da Bahia (SEPRO-
MI/2008-2010); Professora Substituta da Universida-
de Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB/2009-2010);
e Notório Saber do Conselho Nacional de Promoção da
Igualdade Racial (CNPIR/2012-2014).
No movimento de mulheres negras, Valdecir
26
tem construído importantes agendas para o forta-
lecimento das mulheres negras no Brasil e na região
Nordeste7. Atualmente, é Coordenadora Executiva da
Articulação de Organizações de Mulheres Negras Bra-
sileiras (AMNB); compõe a Secretaria Executiva do
Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR); e é
Coordenadora no Brasil da Red de Mujeres Afrolatino-
americanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora. Em 2013,
foi uma das organizadoras do livro Bullying não, isto é
racismo, pela editora Mazza.
É fundadora e coordenadora do Programa de
Direitos Humanos do Odara – Instituto da Mulher Ne-
gra, onde assumiu o desafio e a tarefa de articular e
organizar as mulheres negras com base na autonomia,
emancipação e liberdade. Valdecir considera que esses
são princípios que provocam estranhamentos por par-
te de muitos grupos, mas afirma que: “Subalternos e
subalternas não se rebelam”. Por isso, o poderoso Ju-
lho das Pretas surge, tendo como mentora Valdecir,
como uma estratégia de incidência política e articula-
ção das mulheres negras no Nordeste e na região Ama-
zônica, com a finalidade de afirmar para o Brasil quem
fará a revolução negra nesse país. Iniciado em julho de
2013, o Julho das Pretas foi pensado como uma estra-
tégia para ampliar e dar visibilidade às ações comemo-
rativas do dia 25 de julho. Atualmente, ele é formado
por tantas ações que chega a invadir o mês de agosto.
Valdecir foi uma das mais importantes articu-
ladoras da histórica e inesquecível Marcha de Mulhe-
res Negras Contra o Racismo, a Violência e pelo Bem
Viver8, ocorrida em 18 de novembro de 2015, quando
aproximadamente 35 mil mulheres marcharam em
Brasília – esta foi a maior marcha contra o racismo
desde a de Zumbi, em 1995 – com palavras de denún-
cia contra os desmandos do governo, a violência poli-
cial, a falta de acesso à saúde, à educação e ao trabalho,
27
enfim, foi denunciada a não existência das mínimas
condições de sobrevivência da população negra e a ur-
gência de um novo projeto civilizatório para a socie-
dade brasileira, visto que somos 25% dessa população,
50,5 milhões de mulheres negras, ou seja, um quarto
da população nacional que está à margem desse mode-
lo econômico, político e social excludente.
Em agosto de 2019, no contexto das ações pro-
movidas pela Escola Internacional Feminista Negra
Decolonial – UFRB, em Cachoeira –, foi lançado o Selo
Valdecir Nascimento, com o objetivo de reconhecer as
iniciativas de pesquisas e publicações que abordam os
aspectos das desigualdades raciais e de gênero. Uma
homenagem mais do que merecida a esta Guerreira.
Valdecir acredita no sonho e luta por liberdade
e autonomia para as mulheres negras. Val é potência!
28
REFERÊNCIAS
BISPO, Silvana. de. Feminismo em debate: reflexões sobre as
organizações de mulheres negras em Salvador (1978-1979).
2011. 198 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Interdiscipli-
nares sobre Mulher, Gênero e Feminismo) – Faculdade de Fi-
losofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2011.
29
SMITH, Barbara. 1982. Racism and women’s studies. In: All
the women are White, all the black are men but some of us
are brave. Edited By HULL. Gloria T, SCOTT, Patricia Bell and
SMITH, Barbara. New York, Feminist Press, 1982.
30
31
“A MILITÂNCIA É
MINHA EXISTÊNCIA”1:
ESCRITA,
(RE)EXISTÊNCIAS E
TRAJETÓRIAS DE
MULHERES NEGRAS NA
CONSTRUÇÃO DE UM
PROJETO POLÍTICO DE
SOCIEDADE
Silvana Santos Bispo
Beatriz Nascimento.
33
A proposta deste artigo é discorrer sobre as
trajetórias de mulheres negras e sua importância his-
tórica para continuidade da luta e da construção de
um projeto efetivo de sociedade. Falo em continuida-
de, pois o lugar de coadjuvantes não nos pertence e/ou
nunca nos pertenceu. Refletir sobre o presente tema é
localizar uma luta histórica empreendida por tais su-
jeitas3 políticas em tempos e lugares diferenciados.
Nesse sentido, é imperativo o constante registro das
potencialidades construídas por nós mulheres ne-
gras em nossas diversidades, visto que o apagamento
epistêmico, simbólico e físico são dimensões impos-
tas pelas experiências com o racismo, a misoginia, o
sexismo, o classismo, a sexualidade hegemônica com-
pulsória, bem como com as diversas outras estruturas
de opressões que buscam nos subalternizar.
Nessa perspectiva, acredito que um processo
importante de nossa (re)existência seja o ato da es-
crita, o registro de nossas falas e memórias como di-
mensão constitutiva de nossas trajetórias. Isso sem
perder de vista a importância histórica e ancestral da
oralidade para as populações das diásporas negras. Co-
locarmo-nos na escrita é um processo de (re)condução
na produção do conhecimento. O ato de escrever é para
nós uma atitude estratégica de insubmissão, postura
crítica, política, de posicionalidade e é também de-
colonial. Ademais, essa conformação de neutralidade
empreendida pelo academicismo é inexistente, pois,
quando falamos, o fazemos a partir de um lugar, seja
ele político, social, identitário, da racialidade, da sexu-
alidade, das relações de gênero, da territorialidade, da
classe e outros. E isso afeta diretamente nosso proces-
so de escrita, bem como a construção do próprio saber.
Assim, a importância da escrita como um ato político,
a qual é realizada por pessoas que experimentam e vi-
venciam processos múltiplos de apagamento histórico
e opressões tal como demonstra Grada Kilomba:
3 Faço uso do termo sujeita no feminino, seguindo o que aponta Angela Figueiredo
(2020), na perspectiva de politizar, feminilizar e enegrecer a linguagem nos textos
produzidos por autoras e autores negros nesse novo milênio.
34
(...) enquanto escrevo, eu me torno a narradora e
a escritora da minha própria realidade, a autora
e a autoridade de minha própria história. Nesse
sentido, eu me torno a oposição absoluta do que
o projeto colonial predeterminou. (...) escrever é
um ato de descolonização no qual quem escre-
ve se opõe a posições coloniais tornando-se a/o
escritora/o “validado/o” e “legitimada/o” e, ao
reinventar a si mesma/o, nomeia uma realidade
que fora nomeada erroneamente ou se quer fora
nomeada. (KILOMBA, 2019, p. 28)
35
anos, entendo que a ancestralidade, a representativi-
dade e como nos colocamos numa sociedade racista,
sexista e discriminatória, como a nossa, impõe nos-
so exercício cotidiano de insubordinação. A educação
no meu processo formativo sempre foi pautada como
relevante como condição de transformação social. É a
partir desse lugar que me faço, desfaço, refaço. A edu-
cação pública me possibilitou horizontes, bem como
os movimentos sociais negros nos quais atuo desde a
adolescência. É a partir desse lugar que me inscrevo no
mundo e, este lugar é representativo da memória an-
cestral construída pelas mulheres que vieram antes de
mim, que pavimentaram meu processo de existência e
(re)existência.
36
tural, social, simbólica e histórica dessa coletividade
formadora de pertencimentos e saberes ancestrais.
Essas experiências não podem de forma alguma ser
compreendidas como menor, a-histórico, a-científico,
pois compreendemos a relação de poder e estruturas
racistas, misóginas, sexistas, LGBTQIA+fóbicas envol-
tas nas intersecções de tais opressões. Desse modo, é
importante pensar que, por exemplo, (...) “a academia
não é um espaço neutro nem tampouco simplesmente
um espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e
erudição, é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a”
(KILOMBA, 2019, p. 51).
Nesse ínterim, conduzo minhas indagações,
refletindo sob a ótica de alguns questionamentos ne-
cessários para nosso debate. Qual o lugar que ocupa-
mos historicamente no imaginário da sociedade como
mulheres negras? Quais as estratégias de organiza-
ção política contemporâneas são empreendidas pelas
mesmas? Quais pessoas são entendidas como possui-
doras de conhecimento? Tais respostas vêm sendo de-
senvolvidas por ativistas e intelectuais negras das mais
variadas áreas e atuação política, as quais têm se de-
bruçado para transgredir a produção de uma episteme
eurocentrada, androcêntrica, brancocêntrica e que se
pensa hegemônica das relações humanas.
37
Contrapondo-nos a esse ideal colonial, avan-
çamos, conduzindo e produzindo politicamente di-
versas frentes de luta. Nesse contexto, localizamos o
projeto político empreendido pela Escola Beatriz Nas-
cimento4, como uma das bases de fortalecimento de
nossas lutas, que tem como um dos focos de atuação a
condução do ativismo e a formação política para mu-
lheres negras em suas diferenciações – geracionais,
territoriais, de sexualidades, e outros, – erguendo um
projeto político de nação ainda em construção, tendo,
a partir do bem viver, da representatividade, da con-
testação e do ativismo, eixos importantes para nossa
organização.
Falo em projeto de nação ainda em construção,
pois não podemos nos iludir nesse projeto de socieda-
de brasileira que aí está. País que se pensa democráti-
co, inclusivo e totalizante, é herdeiro de um processo
de colonização compulsória, violenta e excludente, ao
qual atingiu e ainda ressoa suas práticas discrimina-
tórias e de exclusão aos povos originários e nas po-
pulações de origem africana. Especialmente, quando
observamos todo processo de violências nas variadas
esferas de nosso cotidiano, do desrespeito, da subju-
gação e do descrédito aos quais as artimanhas do ra-
cismo brasileiro ainda nos submetem.
Pensando na condução da luta contra as
opressões correlatas que vivenciamos, questiono: que
democracia é essa que encarcera um contingente ab-
surdo de pessoas negras? Que democracia é essa que
assiste passivamente o extermínio da juventude ne-
gra? Que democracia é essa que discrimina e assassi-
na sumariamente as pessoas LGBTQIA+? Cabe apenas
a nós problematizá-la, questioná-la e denunciá-la!
Diante disso, cabe ainda questionar: como falar em
democracia plena com índices alarmantes de femini-
4 Escola de ativismo político para mulheres negras criada em 2020 pelo Odara:
Instituto da Mulher Negra. A escola tem por objetivo contribuir para o fortaleci-
mento político e organizacional de grupos, coletivos e de mulheres negras cis e
trans.
38
cídios, nos quais as mulheres negras são as principais
vítimas? Que nação é essa a qual um percentual popu-
lacional grandioso não tem acesso qualificado à saúde,
segurança, educação, habitação, lazer, segurança ali-
mentar e saneamento básico?
Essas violações e violências recaem também
na produção do conhecimento, quando nos são ne-
gados e invisibilizados o direito de registro de nossas
próprias falas, experiências, trajetórias e escrita de
si. De modo que, quando pensamos na perspectiva do
epistemicídio5, no dispositivo da racialidade (CAR-
NEIRO, 2005) e nas relações de poder intersecciona-
das nessas condições históricas, acabamos por obser-
var como diversas estratégias de apagamento foram
historicamente construídas e conduziram irrealidades
em torno de nossas existências como pessoas negras
nas diásporas africanas. Assim, as estratégias criadas
para diminuir, desacreditar, invisibilizar, estereotipar
e apagar nossos saberes, nossos conhecimentos an-
cestrais, os valores civilizatórios africanos, afro-dias-
póricos e afro-brasileiros são ações históricas empre-
endidas estrategicamente dentro desse projeto político
de nação brasileira, o qual deve ser cotidianamente
questionado, para que, de fato, possamos vivê-lo de
forma plena, real e plural.
Desse modo, é no mínimo violento como o
racismo epistêmico, por exemplo, invisibiliza nomes
importantes, como o de Maria Beatriz Nascimento, da
historiografia nacional e da construção da memória
social. Ativista, intelectual, pesquisadora, roteirista,
professora, poeta, Beatriz Nascimento é portadora de
reflexões ímpar sobre a sociedade brasileira. Pensa-
dora de dimensões analíticas como corpo-território,
5 Epistemicídio é uma noção trabalhada por Boaventura Sousa Santos (1997), para
quem o epistemicídio, segundo Sueli Carneiro (2005) se constituiu e se consti-
tui num instrumento dos mais eficazes e duradouros à dominação étnica/racial,
para a negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento, do
conhecimento produzido pelos grupos dominados e, consequentemente de seus
membros enquanto sujeito do conhecimento.
39
corpo-mapa, quilombo como pertencimento, como
espaço de localização política, física e espiritual de
pessoas negras – o aquilombamento, ela é inovadora
em suas abordagens teóricas. Como uma intelectual da
transatlânticidade, ela pensou o Brasil profundamen-
te. Ela estabeleceu reflexões importantes em torno da
situação das populações negras brasileiras, e ainda de-
nunciou as condições estereotipadas e romantizadas
como a historiografia nacional registrou a história das
populações negras.
Meu primeiro contato com o pensamento de
Beatriz Nascimento se deu dentro da militância polí-
tica negra, através de leituras e pesquisas sobre as in-
telectuais negras nacionais fora e dentro do universo
acadêmico. Nessa perspectiva, é importante o convi-
te para uma leitura atenta sobre o pensamento dessa
intelectual. Se você ainda não se oportunizou ler/re-
fletir/estudar as reflexões construídas por essa nor-
destina de nascimento, te convido a fazê-lo. Venho
estudando seu pensamento há algum tempo, e cada
vez mais me surpreendo com sua potencialidade inte-
lectual e transgressora ao pensamento canônico. Bea-
triz questiona a postura historiográfica reducionista e
simplista em retratar as experiências de povos africa-
nos e de seus descendentes na diáspora. Desse modo,
ela nos afirma que:
40
é um branco, antes de tudo judeu, isto é, po-
deroso como povo, graças ao auxílio mútuo
que historicamente desenvolveram entre si.
Não será possível que tenhamos características
próprias, não só em termos “culturais”, so-
ciais, mas em termos humanos? Individuais?
Creio que sim. Eu sou preta, penso e sinto assim
(NASCIMENTO, 2018b, p. 44).
41
de cada vez mais explicitar, estudar, debater, pesquisar
e divulgar o pensamento de mulheres negras ao longo
de nossa história. Esse é um campo político importante
e estratégico que não podemos abrir mão. Nessa pers-
pectiva, devemos cada vez mais divulgar nomes, refle-
xões e os escritos empreendidos por mulheres negras,
pois somos muitas e múltiplas, especialmente de re-
giões como norte e nordeste, pois é sintomático como
muito de nossas produções ainda não circulam, e este é
um ponto que devemos estar atentas.
42
pois, o racismo, de forma diferenciada, afeta a
todas e todos. Dessa forma, não há como lutar-
mos pela autonomia das mulheres negras, sem
que sejam incluídas as variáveis que margina-
lizam, também, os homens que são vitimados
pelo racismo. Nesse contexto, as interrelações
entre estruturas de dominação e seus efeitos na
vida cotidiana dos indivíduos são intersecções
que precisam estar no panorama das discussões.
(BISPO, 2011, p. 121)
43
se fundamenta e inicia a sua dinâmica. [...] Es-
crevivência, em sua concepção inicial, se realiza
como um ato de escrita das mulheres negras,
como uma ação que pretende borrar, desfazer
uma imagem do passado, em que o corpo-voz
de mulheres negras escravizadas tinha sua po-
tência de emissão também sob o controle dos
escravocratas, homens, mulheres e até crianças.
E se ontem nem a voz pertencia às mulheres
escravizadas, hoje a letra, a escrita, nos perten-
cem também. Pertencem, pois nos apropriamos
desses signos gráficos, do valor da escrita, sem
esquecer a pujança da oralidade de nossas e de
nossos ancestrais. Potência de voz, de criação,
de engenhosidade que a casa-grande soube
escravizar para o deleite de seus filhos. E se a
voz de nossas ancestrais tinha rumos e funções
demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita
não. Por isso, afirmo: “a nossa escrevivência
não é para adormecer os da casa-grande, e sim
acordá-los de seus sonhos injustos”.
(EVARISTO, 2020, 29-30)
44
em diversas áreas do conhecimento; e c) pelo
enfrentamento político ao racismo, ao sexismo
e ao heterossexismo através de uma perspectiva
interseccional. (CARDOSO, 2012, p. 25)
45
estamos diante da “ideologia do branqueamento, e a
lógica da dominação que visa à dominação da negrada
mediante a internalização e a reprodução dos valores
brancos ocidentais” (GONZALEZ, 1984, p. 237). Sendo
assim, é necessário captar a diversidade constitutiva
de nossa formação. No mais, as reflexões não se esgo-
tam e como falei durante todo o texto, vamos registrar
nossas vozes, falas e escritas a partir de nosso método
principal de análise: nossas vivências. Assim, agradeço
ao Instituto Odara e à Escola de Ativismo Político Be-
atriz Nascimento, por fazer parte desse projeto. Agra-
deço às cursistas da segunda turma da escola pelas
trocas, aprendizados e carinho.
UBUNTU!
46
REFERÊNCIAS
BISPO, Silvana. Feminismo em debate: reflexão sobre as or-
ganizações de mulheres negras em Salvador (1978-1979).
2011. 198 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Interdiscipli-
nares sobre Mulher, Gênero e Feminismo) – Faculdade de Fi-
losofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2011.
47
48
Mulheres negras e
educação: insurgências
pedagógicas e práticas
insubmissas para a
descolonização do
conhecimento
Angela Figueiredo¹
49
presidente João Goulart. Considerando esse importante
motivo, optei por falar neste texto sobre a importância
das mulheres negras na educação, uma homenagem
mais do que merecida para todas nós professoras, pela
possibilidade de transformar a vida de tantas pessoas.
Aproveito a oportunidade para agradecer ao Instituto
Odara pela linda homenagem a nós, professoras ne-
gras, no Instagram.
Os 18 meses de isolamento social, decorren-
tes da pandemia causada pela Covid-19, somam mais
de 600 mil mortes no Brasil. Essa experiência de iso-
lamento funcionou como um catalisador de ações e
iniciativas voltadas para a educação nas redes sociais,
principalmente através dos cursos e escolas de forma-
ção feministas negras e antirracistas. Foram muitos
cursos, lives, aulas públicas, conferências, seminários,
webinários etc. Os cards não deixam dúvidas quanto ao
número de iniciativas voltadas para o aprendizado, a
divulgação e a reflexão sobre a contribuição negra na
ciência e na política. Nesse contexto, destacamos a Es-
cola de Formação Beatriz Nascimento, uma iniciativa
voltada para a formação do pensamento e da prática
política feminista negra.
50
Anteriormente à Escola Beatriz Nascimento,
em 2017, o Coletivo Angela Davis2, em parceria com o
Instituto Odara, realizou a I Escola Internacional Fe-
minista Negra Decolonial, cujo objetivo foi contribuir
com a formação de pesquisadoras dos estudos de gê-
nero, raça, feminismo, ativismo de mulheres negras
e interseccionalidade, criando estratégias de enfren-
tamento ao racismo e fortalecendo parcerias entre a
universidade e os movimentos sociais, promovendo
um diálogo entre pesquisadoras e ativistas. A Escola
Internacional já teve três edições, sempre buscando
criar um espaço de interlocução onde a reflexão, as es-
tratégias de intervenção e a atuação política caminhem
lado a lado.
Ao realizar esse tipo de formação, deslocamos
a geografia da razão, motivo pelo qual foi escolhido o
Brasil e, em especial, a cidade de Cachoeira, conheci-
da pela centenária irmandade feminina negra da Boa
Morte, para acolher esta iniciativa. A Irmandade da
Boa Morte é uma organização que foi construída ex-
clusivamente por mulheres que viveram a condição de
escravidão, em uma sociedade patriarcal e marcada por
fortes desigualdades raciais e de gênero. Elas criaram
estratégias de sobrevivência e aprenderam a cultuar a
religião dos dominantes, mantendo viva as suas cren-
ças ancestrais, além de contribuir através do suor do
trabalho para a compra da sua própria liberdade e da
liberdade dos seus. Quem conhece essa e tantas histó-
rias protagonizadas por mulheres negras rejeita a ten-
tativa de classificação da mobilização feminina negra
como parte da quarta onda feminista, pois a narrativa
hegemônica sempre nos excluiu. Sempre estivemos lá,
vocês é que não nos viram!
Como é conhecido por todes, o feminismo ne-
gro nasce da prática da luta diária pela sobrevivência,
51
portanto, fora dos espaços acadêmicos, pois é fru-
to da tradição histórica de resistência e de conquistas
levadas a cabo pelas mulheres negras aqui e alhures.
Entretanto, o conhecimento é fundamental para as
transformações sociais, por isso, precisamos e que-
remos nos apropriar, transformar e produzir conhe-
cimento do nosso ponto de vista, um conhecimento
engajado. Como dito em outro texto:
52
blicas e a consequente formação de novos coletivos
negros dentro das universidades, o que tem contribu-
ído, sobremaneira, para ampliar o conceito de ativis-
mo negro e as experiências para além dos muros das
universidades.
53
conselheira nacional de educação e professora titular
da Faculdade de Educação da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar) – e da então Ministra da Igualdade
Racial, Matilde Ribeiro.
Como dito acima, a produção acadêmica negra
posicionada, ativista e engajada foi determinante para
a implementação da reserva de vagas nas universida-
des públicas brasileiras. No meio acadêmico, essa po-
sição engajada na produção do conhecimento é viven-
ciada com muita tensão no meio acadêmico,
54
negra. “A experiência pessoal, a experiência vi-
vida e compartilhada é para nós, pesquisadores
e pesquisadoras negras, uma evidência muito
importante, já que é a base de nossa reflexão e
teorização”. (FIGUEIREDO, 2020, p. 9)
55
nialidade do saber pode ser definida brevemente pela
relação de poder e saber que se estabelece em todas as
dimensões da cultura, a partir de uma lógica e de uma
visão de mundo europeia, além da denúncia à violência
epistêmica e na busca da compreensão, inclusão, vali-
dação de outras pedagogias, conteúdos e sujeitos pro-
dutores de conhecimento.
Nesse sentido, bell hooks (1995) destaca o
modo como a linguagem machista insiste em apresen-
tar as mulheres como naturalmente inimigas, e como
nós assumimos esse discurso como parte de nosso sis-
tema de representações. Da mesma maneira, o sistema
racista tenta nos convencer de que somos intelectual-
mente débeis, incompetentes, insignificantes. Como
sugere Sueli Carneiro (2003), em “Enegrecer o femi-
nismo: a situação da mulher negra na América Latina
a partir de uma perspectiva de gênero”, precisamos
enegrecer e feminilizar os referenciais na produção do
conhecimento, e é desse modo que as escolas feminis-
tas negras têm proposto suas iniciativas educativas e
de intervenção política.
Referindo-se aos limites impostos pelo gênero
e pela raça das mulheres de grupos racializados, Glória
Anzaldúa considera que:
56
drupla. Porém, neste ato reside nossa sobre-
vivência, porque uma mulher que escreve tem
poder. E uma mulher com poder é temida. (AN-
ZALDÚA, 2000, p. 234).
57
tativa com relação aos estudantes negras, inclusive
sobre aqueles que estão na Pós-Graduação. É preciso
escutar sobre esse problema e sobre as demandas que
teimam em retirá-las das atividades acadêmicas, da
família que não compreende que, em vez de trabalhar,
aquela mulher resolve investir todo o seu tempo com
o estudo. Além disso, há os familiares que necessitam
de ajuda e que, inconscientemente ou não, imaginam
que esse auxílio deve vir de uma mulher. Enfim, afa-
zeres domésticos, cuidado com os filhos, atuação nos
movimentos sociais, nas associações de bairro e tantos
outros lugares de luta social que são majoritariamente
ocupados por mulheres.
Outra saída que temos encontrado é a ação
coletiva. Atuar em coletivos tem nos ajudado a com-
partilhar experiências para manter os projetos dentro
e fora da universidade. Nesse sentido, posso citar o
Coletivo Angela Davis, que tem agregado estudantes e
professores em diferentes níveis de formação acadê-
mica. E ainda que a maioria seja formada por mulhe-
res, contamos com a presença de alguns homens no
processo de formação acadêmica e política, já que o
Coletivo parte da experiência acadêmica para pensar
também a vida política.
É importante lembrar o quanto o espaço aca-
dêmico ainda tem sido hostil para com a nossa presen-
ça e que as representações sobre as mulheres negras
consolidaram uma imagem segundo a qual a mulher
negra está no mundo para servir, como já foi dito. Que-
ro também lembrar que bell hooks (1995) fala da im-
portância do lúdico, do erótico e do afeto no processo
de educação.
Para finalizar, gostaria de destacar a impor-
tância dessas iniciativas de formação teórica e política
como práticas insurgentes levadas a cabo pelo movi-
mento negro, desde seus primórdios, e nesse sentido é
preciso destacar a relevância do trabalho realizado pe-
las mulheres negras, dentro e fora dos espaços formais.
Boaventura Souza Santos (2007) destaca a im-
portância da pluricultura do saber, em oposição à mo-
58
nocultura que temos vivenciado nas universidades e na
sociedade de maneira mais abrangente. Como membros
de minorias políticas, as mulheres negras sabem que
seu conhecimento se origina do ponto de vista da ex-
periência de exclusão, mas também da memória, como
definido por Gonzalez (1983, p. 226) “o não-saber que
conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma
história que não foi escrita, o lugar da emergência da
verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”.
Sem pretender generalizar, os espaços cons-
truídos presencialmente ou online para os cursos e
escolas de formação são espaços de relações mais ho-
rizontalizadas no processo de aprendizado. O conheci-
mento formal e o conhecimento vivido – a experiên-
cia – são igualmente valorizados, uma vez que esses
espaços não são apenas de ensino/aprendizado, mas
fundamentalmente para trocar experiências. São es-
paços em que a acolhida, através da escuta e do respei-
to, propicia de forma singular um contexto favorável
para o aprendizado.
A atuação em redes, a troca de experiência e
a criação de espaços de fortalecimento e aprendizado
têm sido práticas político-pedagógicas importantes
para as escolas feministas negras, no sentido de com-
partilhar experiências que contribuem para construir
caminhos insurgentes e insubmissos, do ponto de vista
dos espaços formais da construção do conhecimento.
Certamente que a dimensão do afeto, do amor
e da generosidade nos ensina a transgredir, ir além das
representações racistas que nos aprisionam.
59
REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, Glória. Falando em línguas: uma carta para as
mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas,
Florianópolis, p. 229-235, 2000.
60
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira.
Ciências Sociais Hoje, Brasília, Anpocs, n. 2, p. 223-244, 1983.
61
VINHAS, Wagner. Palavras sobre uma historiadora transa-
tlântica: estudo da trajetória intelectual de Beatriz Nasci-
mento. 2016. Tese (Doutorado em Estudos Étnicos e Africa-
nos) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.
62
Escola Beatriz
Nascimento: espaço
seguro para o
fortalecimento de
vozes de mulheres
negras (um relato de
experiência)
Rívia de Jesus Santos1
65
fissional. O curso foi realizado entre os meses de ou-
tubro de 2020 a fevereiro de 2021, durante a pandemia
de COVID-19, através de atividade remota tecnológica
via plataforma Zoom. Antes de discutir sobre o impacto
das experiências da Escola Beatriz Nascimento em mi-
nha vida, gostaria de localizar e compartilhar de onde
eu vim, afinal: “Nossos passos vêm de longe!” (WER-
NECK, 2010).
66
domingo de semana santa no ano de 2001, antes mes-
mo de completar um ano de aposentada.
Quando minha avó faleceu, eu tinha doze anos.
Foi um momento muito difícil e de muita dor. Eu não
entendia como ela podia ter se recolhido tão cedo, ela
estava bem, cozinhou as comidas da semana santa,
convidou bastante gente para ir almoçar lá em casa,
estava feliz. Naquela semana, especificamente, ela es-
tava muito feliz, fazendo vários planos para a reforma
da casa, inclusive estava programando viagem, coisa
que ela nunca tinha feito. A imagem e a presença da
minha avó continuam muito presentes em minha vida.
O sonho dela era ver os netos formados, como ela dizia,
e sinto muito por ela não ter vivenciado isso aqui no
Aiê, mas ela está comigo, na minha perseverança nas
lutas, em cada conquista e na reconexão com minha
ancestralidade. Obrigada por me ensinar tanto, mes-
mo não estando mais aqui em presença física. Te amo
minha avó!
67
mãe, quando criança, esperava minha avó trazer as so-
bras da casa grande, meu pai tinha que deixar o pouco
de alimento que tinha para os irmãos mais novos e, as-
sim, viveram a cruel realidade da extrema pobreza.
Minha mãe começou a trabalhar como empre-
gada doméstica e babá para uma família branca quan-
do tinha apenas sete anos. A princípio, a dona da casa
pediu para minha avó, para que deixasse minha mãe
ficar na casa dela para brincar com seu filho, um bebê
de sete meses e, em troca, minha mãe teria teto, co-
mida e poderia estudar, mas a realidade não foi essa.
Ela se ocupava dos trabalhos domésticos, do cuidado
com o bebê e de uma idosa (mãe da “patroa”) que resi-
dia em um quartinho nos fundos da residência. Minha
mãe conta que para lavar a louça tinha que subir em
um banquinho, pois não alcançava a pia, tinha dificul-
dades em manusear a enceradeira pesada para dar o
brilho no chão, e, para cuidar do bebê, colocava-o no
chão, pois não aguentava o peso da criança. Depois de
trabalhar para essa família, ela continuou trabalhando
como empregada doméstica durante muitos anos até
ter os dois filhos e partir em retirada com o meu pai
rumo ao sudeste do país em busca de melhores condi-
ções de vida.
Minha mãe só estudou até a quarta série (do
antigo fundamental), mas sabia, desde muito cedo, a
importância da educação para os filhos. Não tínhamos
condições para comprar livros, ela fez a carteirinha da
biblioteca municipal para que eu e meu irmão pegás-
semos livro toda a semana para a gente ler. Lembro
que, quando eu ainda não sabia ler, ela pedia para que
eu escolhesse o livro e, quando chegávamos em casa,
ela lia o livro para mim. Ela sempre se desdobrou para
arranjar vaga nas melhores escolas públicas da cidade,
acompanhava nossa educação de perto e sempre falava
da importância de estudar. Ela, juntamente com meu
pai, foi o alicerce para que eu chegasse onde estou hoje.
Gratidão imensa aos meus maiores mestres da vida.
68
com as rimas de sangue
e fome
(Conceição Evaristo, 2017)
69
família e também é fruto de um contexto de luta an-
terior à minha existência. A minha entrada na univer-
sidade possibilitou eu acessar espaços que jamais eu e
os meus havíamos acessado. Acesso ao conhecimento,
viagens, mudança de perspectiva e futuro. Tudo isso
não me impactou somente, mas aos meus pais e pes-
soas ao meu redor.
Quando termino a graduação, a luta pela so-
brevivência continua. Trabalhei ministrando aulas, às
vezes, tendo que me submeter a trabalhos precários e
com pouco retorno financeiro. Em 2017, depois de al-
gumas tentativas de ingressar no mestrado, consegui a
aprovação no mestrado em Educação da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Faço o mestra-
do sem bolsa, trabalhando em uma cidade e estudando
em outra e continuo na luta. Em 2019, após o térmi-
no do mestrado, ministrei aulas de forma esporádica,
quando apareciam algumas possibilidades de serviço e
sempre fazendo seleções, concursos em busca da so-
brevivência. Em 2020, as aulas esporádicas que apa-
reciam foram suspensas por conta da pandemia de
COVID-19. Foi um momento muito difícil, ficar sem
recurso, sem uma alternativa de trabalho e em meio a
tudo que estava acontecendo no mundo por conta da
pandemia, foi muito complicado e entristecedor. Foi
em meio a todo esse processo, que a Escola Beatriz
Nascimento atravessou minha vida de forma potente
e fortalecedora.
70
Nascimento através de uma amiga, quando eu abri
o link com as informações sobre o curso, fiquei bem
animada e motivada para participar. Não hesitei,
fiz minha inscrição e das 322 inscrições recebidas,
fui selecionada para o curso. Daí em diante, o que o
curso, através de todas as mulheres negras potentes
que eu conheci e tive a oportunidade de ouvir, ofer-
tou para minha vida, foi um resgate ancestral e um
aquilombamento que me possibilitaram pensar em
elaborações de projetos que viriam a se concretizar
mais tarde.
Já havia um tempo que eu vinha me debru-
çando sobre as escritas de mulheres negras. Com a
pandemia, buscando elaborar outros projetos de
vida, acabei me aprofundando mais sobre os estudos
da temática racial, o feminismo negro e a decolonia-
lidade. Foi, então, que, durante a pandemia, surgiu a
ideia de pensar na escrita de um projeto de doutora-
do, algo que eu nem pensava mais em fazer. Quando
as aulas da escola começaram, eu estava no processo
da escrita do projeto, ainda com muito medo e muita
insegurança e me questionando se fazer doutorado
era mesmo o meu lugar, se eu tinha realmente capa-
cidade de estar nesse espaço de pesquisa.
A escola me fortaleceu de diversas formas, no
âmbito pessoal, profissional, na militância e no meu
reconhecimento enquanto mulher negra intelectual.
Cada aula era uma potência, um reencontro que só me
fortalecia cada vez mais. Foi um resgate de autoestima,
autocuidado e autoconhecimento.
A formação que a escola proporciona às cur-
sistas é um fortalecimento na luta antirracista e na
organização política de mulheres negras, sobretudo
se considerarmos o período em que o curso foi desen-
volvido, em meio a uma pandemia que afetou direta-
mente a vida de mulheres negras, periféricas, mães
solos, trabalhadoras, desempregadas, mulheres que
acabam, por diversas vezes, sendo responsável pelo
cuidado da família e que não contam com um suporte
de rede de apoio.
71
O curso foi elaborado e ministrado por mulhe-
res negras, para mulheres negras de diversas regiões
do Brasil e as leituras envolviam a produção intelectual
de mulheres negras. O espaço, apesar de ser realizado
na modalidade remota, foi muito acolhedor, cheio de
afeto, sempre respeitando a fala e a escuta das cursis-
tas. Mesmo diante das diversas demandas do cotidiano
e do cansaço físico, psicológico, era muito prazero-
so sentar em frente ao computador para participar do
curso. Era um momento para recarregar as energias.
As experiências de nós mulheres negras, nos
espaços que frequentamos, são marcadas por situ-
ações de racismo e sexismo. Isso não é fácil aconte-
cer em espaços hegemonicamente demarcados para
pessoas brancas. Quando acessamos esses espaços, as
experiências dolorosas do racismo marcam nossas vi-
das. Essas vivências fazem, por diversas vezes, a gente
questionar a nossa existência e a nossa presença nesses
espaços. Durante minha trajetória acadêmica, eu sem-
pre me questionei se era mesmo uma pesquisadora e se
aquele era realmente o meu lugar. Os espaços de movi-
mento de mulheres negras sempre me fortaleceram e a
Escola Beatriz Nascimento é esse ambiente seguro para
mulheres negras, sobre o qual Collins (2019) afirma: as
mulheres negras formaram espaços seguros em busca
de voz, seja nas relações familiares, nas famílias es-
tendidas, na vizinhança, nas organizações de mulheres
negras, na literatura, na música, nos espaços de terrei-
ro, na política, na educação e nos espaços de formação.
A Escola Beatriz Nascimento é esse espaço se-
guro na busca do fortalecimento das vozes de mulhe-
res negras, pois durante todo o curso podíamos falar
sobre nossas dores, nossas fragilidades, nossas po-
tências, nossos sonhos, sobre nossos projetos, nossas
dúvidas e, juntas, ouvíamos umas às outras, buscan-
do estratégias para nosso fortalecimento. As mulheres
negras têm buscado formas de organização social que
não condizem com a lógica individualista, desigual,
racista, sexista, que o sistema capitalista tem histori-
camente mostrado.
Ler mulheres negras, ouvir mulheres negras,
72
estar na formação política com mulheres negras, é
organizar estratégias de luta que vão de encontro com
o que está posto por esse modelo opressor. Podemos
vivenciar esse lugar de fortalecimento de voz, através
do projeto de intervenção que foi elaborado por nós,
cursistas, em que cada uma propôs a realização de
uma atividade prática em algum espaço no qual fa-
zemos parte, utilizando os conhecimentos adquiridos
durante o curso. A minha proposta foi realizar rodas
de conversa sobre, raça, gênero, política, desigualda-
de social com jovens de terreiro, utilizando as escritas
de mulheres negras (livros, poesias, músicas, produ-
ções audiovisual) e, assim, construir, junto com a co-
munidade do terreiro, a construção de um ambiente
de formação política.
Lélia Gonzalez aborda sobre a importância
das mulheres amefricanas da chamada Améfrica Ladi-
na2 que trazem uma cultura ancestral com outra dinâ-
mica histórica. Para ela:
2 Lélia Gonzalez utiliza o termo Améfrica Ladina para trazer a centralidade das
experiências dos povos africanos, no qual o Brasil é, na verdade, uma América
Africana (Améfrica) e questionando a latinidade, por isso o t é substituído pelo
d (Ladina).
73
Os nossos antepassados negros só puderam resistir ao
processo escravocrata, porque criaram estratégias de
sobrevivência e, mesmo depois da escravidão, a gente
carrega esse conhecimento ancestral. Só estamos aqui
hoje, porque os nossos passos vêm de longe.
Não mais invisíveis,
não mais mercadoria
74
em que essas podem acessar conhecimentos que vão
impactar diretamente nas suas vidas, na sua profissão
e nos espaços de militância. Essa lógica está pautada
na construção social do bem viver. O bem viver pen-
sado como um código sociopolítico equitativo, justo,
coletivo e solidário. Não será por isso que as mulheres
negras têm trazido ameaças aos pilares do patriarcado,
do racismo e do capitalismo? Posso dizer que o impac-
to que a formação da Escola trouxe para minha vida,
já está se multiplicando, florescendo e sendo propaga-
do. Desejo vida longa à Escola e que haja tantas outras
mulheres negras podendo fazer parte desse processo
enriquecedor. A minha experiência com a Escola foi
um resgate ancestral e de aquilombamento. Axé!
Sou imensamente grata à: Valdeci Nasci-
mento, Silene Arcanja Franco, Alane Reis, Ana Pau-
la Rosário, Mohara Valle, Christiane Gomes, Rosane
Borges, Benilda Brito, Ana Claudia Pacheco, Zelinda
Barros, Maisa Vale, Ana Cristina Conceição, Ema-
nuelle Góes, Rosa Marques, Naiara Leite, Amélia Ma-
raux, Viviane Ferreira, NegaFya, Rosana Fernandes,
Larissa Santiago e a todas as companheiras cursistas
que partilharam suas vivências.
E, para finalizar, deixo as palavras da nossa
querida Beatriz Nascimento (2021, p. 241):
75
REFERÊNCIAS
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhe-
cimento, consciência e política do empoderamento. 1 ed. São
Paulo: Boitempo, 2019.
76
Projeto Político das
Mulheres Negras:
Pensando O Bem Viver
Rosa Marques
Valdecir Nascimento
79
ração de riqueza que estrutura este país desde sempre,
a incidência e a participação política, como também o
bom senso e um discurso preciso. Tudo isso utilizando
várias linguagens que atingissem as crianças, adoles-
centes, jovens, mulheres adultas e velhas negras, e, ao
mesmo tempo, refletindo o sentimento de indignação,
horror, tristeza e insatisfação que tem atravessado as
nossas vidas.
Foi possível mobilizar trabalhadoras domés-
ticas, profissionais da saúde, educação, agricultoras,
trabalhadoras rurais, pescadoras, marisqueiras, pro-
fissionais liberais, estudantes, prestadoras de serviços,
camelô, as que vivem de bico, cozinheiras e catadoras
de resíduos sólidos. Mesmo sendo um país com dimen-
sões continentais, esse grito ecoou por todos os cantos,
sendo possível atravessar rios e montanhas, florestas e
cerrados, mares e mangues, roça, campo, periferias e
capitais. Movemos o Brasil de ponta a ponta.
Não findamos com o racismo e todas as formas
de violências que atinge as pessoas negras, mas escan-
caramos a hipocrisia do racismo perverso brasileiro,
evidenciamos sua institucionalidade e seus impactos
na vida do povo negro, além de propormos um novo
pacto político includente, amoroso, solidário, comu-
nitário e ancestral. Como afirma a nossa poetiza Cris-
tiane Sobral (2016), “não vou mais lavar os pratos”!
Tampouco vamos sucumbir diante das atrocidades
impostas ao nosso povo. Nessa direção, reafirmamos
nosso pensamento, nossa prática ancestral descrita
com letras enegrecidas da Carta da Marcha:
80
tivamente uma outra dinâmica de vida e ação
política, que só é possível por meio da supera-
ção do racismo, do sexismo e de todas as formas
de discriminação, responsáveis pela negação
da humanidade de mulheres e homens negros.
(CARTA DA MARCHA DAS MULHERES NEGRAS,
2015).
81
ma vampiro que se alimenta da lógica da opressão, da
exclusão, do racismo, da eliminação e da morte. Um
sistema centrado numa perspectiva hegemônica que
utiliza as diferenças para fomentar o ódio, a violência,
o individualismo e a disputa, a fim de impor a supre-
macia de um grupo sobre outro. Seguimos, tecendo as
redes de povos e comunidades tradicionais para for-
talecer e reerguer os pilares e legados deixados pelas
nossas ancestrais, no intuito de tecer as teias que irão
derrotar o fascismo, o desamor, o racismo e o ódio. Te-
mos o intuito de que a alegria passe a convocar todas
essas energias e reorganizar o planeta, a fim de cons-
truir uma ética amorosa que, como define bell hooks
(2020, p. 123), “pressupõe que todos têm direito de ser
livres, de viver bem e plenamente. Para trazer a ética
amorosa para todas as dimensões de nossa vida, nossa
sociedade precisaria abraçar a mudança”.
Alimentada pelas reflexões que bell hooks nos
apresenta, reafirmamos estar no caminho certo ao
reivindicar o Bem Viver como base central de um novo
pacto civilizatório, pois
82
O Brasil do ponto de vista das Mulheres Negras
83
radas pelo sistema, que articula racismo, violências,
opressão e desigualdades, têm afetado a saúde mental
da população negra, agravando as doenças prevalentes
e neurológicas, como a hipertensão, glaucoma, diabe-
tes, fibromialgia, doenças uterinas, câncer de mama,
além das enfermidades provocadas pela insegurança
alimentar e nutricional. Sobre esse aspecto, Nasci-
mento (2022) afirma:
84
nosso projeto político.
Diante de tudo isso, qual será a saída? Por
onde seguir? Consideramos que o mundo está exi-
gindo novos arranjos existenciais. O planeta clama
aos humanos que estabeleçam novas formas de se
relacionar, ou se pense dentro de um ecossistema no
qual o conjunto de seres vivos, que nele habitam, é
interdependente entre si. Dessa maneira, é necessá-
rio equilíbrio nesse ecossistema, já que tudo tem vida,
as florestas, os rios, as montanhas, os mares, o ar, o
fogo, a terra é vida.
85
e a mobilização de coletivos, grupos, organizações
e demais formas de agrupamento, a fim de difundir
uma ética baseada em princípios que priorizam a vida
e tudo que as cercam, convocamos o Estado e a So-
ciedade brasileira para dar as mãos e unir forças para
construirmos coletivamente outra dinâmica de vida e
ação política, que só é possível, por meio da supera-
ção do racismo, do sexismo e de todas as formas de
discriminação, responsáveis pela negação da huma-
nidade de mulheres e homens negros, como aponta a
Carta da Marcha (2015):
86
tam o planeta e que devem decidir conjunta-
mente os destinos da sociedade.
Buscamos fundamentos nas concepções mile-
nares de Bem Viver que fundam e constituem
as formas do social e do político a partir de
princípios plurais que englobam novas con-
cepções de gestão do coletivo e do individual,
da natureza (política ambiental) e da cultura,
enfim das formas que dão sentido e valor à nos-
sa existência, calcada em uma visão utópica de
viver e construir o mundo de todas(os) e para
todas(os).Nossa concepção de Bem Viver é in-
compatível com o capitalismo racista patriarcal
excludente, que nos engessa em espaços sociais
de exploração, subalternidade e marginalida-
de, e que associa qualidade de vida a consumo.
Exige, pois, transformações radicais no modelo
de sociedade que temos, em sua estrutura e va-
lores. É, portanto, inconciliável com propostas
desenvolvimentistas, violentas, exploradoras,
privatizadoras e monopolizadoras de saberes e
recursos (saberes e fazeres que correspondem
ao padrão tecnológico das sociedades, onde tec-
nologia está relacionada com a arte de decidir
bem sobre o território e suas riquezas naturais,
materiais e simbólicas).
87
REFERÊNCIAS
BORGES, R. Uma possível análise do nosso tempo: desafios à
ação política. 2019.
88
SALES JÚNIOR, R. Raça e Justiça: o mito da democracia racial
e o racismo institucional no fluxo da justiça. Recife: Funda-
ção Joaquim Nabuco. Editora Massangana, 2009.
89
PARTE II
Aprendendo com quem veio antes:
experiências e trajetórias de mulheres
negras em processos organizativos
História de
organização de
mulheres negras: uma
proposta de formação
emancipatória
Luciana Da Cruz Brito1
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
91
cupações eram fundamentais na elaboração da ementa.
A primeira delas foi abordar períodos histó-
ricos distintos. Sem reduzir a trajetória de mulheres
negras à experiência de escravidão, começamos pelo
Brasil Imperial escravista para entender a vida de mu-
lheres negras naquele momento. Tratamos também do
período pós-abolição e das primeiras iniciativas polí-
ticas de organização no início do século XX. A despeito
do silêncio sobre a ação política de mulheres negras
no século XX, abordamos as primeiras organizações
fundadas por elas e que tinham por objetivo reivindi-
car melhores condições de trabalho. Posteriormente,
compreendemos sobre a presença das mulheres negras
nas lutas pela democracia no país durante os anos de
ditadura militar, quando também tiveram papel deci-
sivo na fundação do movimento negro contemporâneo.
Privilegiamos esse último período para darmos ênfase
aos anos 1980, quando a temática das especificidades
de mulheres negras, no que diz respeito aos impactos
do racismo e do sexismo em suas vidas, produziu uma
agenda política que desafiou os movimentos feminis-
ta e o movimento negro. Por fim, o curso concluiria
sua abordagem histórica com a marcha das mulheres
negras, ocorrida em Brasília, em novembro de 2015,
marcando uma virada na participação das mulheres
negras no cenário político brasileiro.
Além da seleção desse conteúdo, após escolher
qual história seria contada, duas outras preocupações
orientaram a feitura dessa ementa: a metodologia e
um referencial teórico no qual mulheres negras, a
maioria delas nordestinas, fossem a base intelectu-
al principal do curso. Para tanto, do ponto de vista da
história, nossa principal referência teórica foi a his-
toriadora Beatriz Nascimento. Foi a partir da análise
da vida e, sobretudo, da formulação intelectual dessa
pesquisadora e militante, que lançamos nosso olhar
para a parte inicial do curso, que tratava da história da
escravidão, um dos seus principais objetos de análise:
92
mais me chocava era o eterno estudo, quando se
referia ao negro, sobre o escravo, como se du-
rante todo o tempo da história do Brasil nós só
tivéssemos existido dentro da nação como mão
de obra escrava, como mão de obra pra fazenda
e pra mineração. (NASCIMENTO, 2018, p. 127)
93
curantismo no papel feminino não é somente
quanto a esses estabelecimentos, mas um pa-
drão do estudo histórico e da historiografia em
geral. (NASCIMENTO, 2018, p. 410)
94
Mulheres negras história e formação do
povo brasileiro
95
Analisando as fotografias de mulheres negras libertas
do século XIX, nos perguntamos: como viviam essas
mulheres? O que almejavam as escravizadas? Quais
os desafios cotidianos impostos às libertas para que
garantissem sua autonomia financeira, fundamental
para o sustento da vida em liberdade?
96
policiais numa sociedade escravista e patriarcal. Para
entender esse cotidiano, também nos debruçamos so-
bre o trabalho da historiadora Isabel Cristina Ferreira
dos Reis (2012) para entender os esforço de mulheres
negras para manterem seus vínculos afetivos, além
dos seus sonhos de família e liberdade numa sociedade
que lhes negava o direito ou a todo momento ameaçava
seus desejos mais íntimos de intimidade, afeto e ma-
nutenção dos vínculos que construíram.
Em seguida, discutimos a pesquisa da histo-
riadora Juliana Barreto Farias (2012) para conhecer-
mos a iniciativa de mulheres negras de nação Mina.
Essas mulheres não hesitaram em recorrer à justiça já
no século XIX para requerer o divórcio de companhei-
ros que consideravam pouco empreendedores, abusi-
vos e exploradores. A partir de documentos da justiça,
a historiadora demonstrou um cotidiano de autono-
mia, empreendedorismo, mas também de resistência
aos abusos sofridos, tanto pela estrutura do estado
comprometido com a escravidão e com a manutenção
da pobreza dessas mulheres, como também de reação
aos arranjos familiares os quais elas não vacilavam
em finalizar.
Por fim, trouxe para nosso debate a história da
africana Sabina da Cruz, personagem a qual, além de
mim, também foi investigada em outros trabalhos his-
toriográficos, e ficou conhecida pela historiografia por
ser a mulher que denunciou o levante dos Malês (ver
BRITO, 2016). Um olhar mais atento aos rastros deixa-
dos por Sabina da Cruz através do seu testamento e ou-
tros documentos que revelam sua relação com a justiça
e a rede de relações na cidade de Salvador, podemos ver
uma vida complexa de uma mulher liberta que chegou
ao Brasil ainda criança. Longe de estar isolada de um
grupo, percebemos que até mesmo ela estava inserida
numa rede de afeto formada por pessoas negras, africa-
nas e afro-brasileiras, com as quais desenvolveu laços
familiares e, mais tarde, se tornaram suas herdeiras.
Assim, longe de seguirem o perfil descrito pela
historiografia oficial que reduziu ao romance e ao ero-
tismo as atitudes de mulheres negras diante de uma
97
sociedade escravista e patriarcal, a vida de mulheres
negras no Brasil e a historiografia social da escravidão
nos permitiu acessar histórias de mulheres inconfor-
madas, dinâmicas e sedentas por autonomia e liber-
dade. Entendemos que, de diversas formas, mulheres
africanas e afro-brasileiras, escravizadas ou libertas,
sempre tensionaram a sociedade brasileira, desafiando
o cativeiro e o patriarcado de diversas maneiras. Ainda
assim, não deixamos de destacar suas ações de auxílio
mútuo, o que pudemos depreender das pesquisas sobre
a participação delas em associações e irmandades re-
ligiosas, como a Irmandade da Boa Morte, fundada na
primeira metade do século XIX3. As pesquisas da his-
toriadora Luciana Falcão Lessa (2007) e da historiado-
ra Lisa Castillo (2007) revelam, além da organização
em torno dessa confraria católica, o culto concomi-
tante à religião dos orixás, o candomblé, que também
cumpriu papel decisivo como esteio político e espiri-
tual para a comunidade negra, organizada em torno da
ação de mulheres anônimas, ou aquelas que deixaram
rastros nas fontes documentais ou na memória das
populações negras, como Francisca da Silva - Yá Nassô
e Marcelina da Silva - Obatossi.
3 Sobre a Boa Morte ver também: CONCEIÇÃO, JOANICE S. Tenha uma Boa Morte:
notas sobre a Irmandade da Boa Morte. PLURA, Revista de Estudos de Religião,
ISSN 2179-0019, vol. 3, no 2, 2012, p. 101-130
98
na cidade de Santos, a Associação Profissional dos
Empregados Domésticos. Em 1950, Maria de Lurdes
Vale Nascimento tornou-se uma das lideranças fun-
dadoras do Conselho Nacional das Mulheres Negras.
Ambas tinham como objetivo organizar as trabalha-
doras domésticas do Rio de Janeiro. Uma década depois
estariam implicadas na luta contra a ditadura militar,
atuando em organizações mistas, nas quais, a despeito
do racismo e do sexismo, também atuavam na defesa
da democracia, ao mesmo tempo que já começavam a
discutir questões específicas da vida das mulheres ne-
gras brasileiras.
No entanto, é, na década de 1970, que falas
mais contundentes começaram a surgir sobre a neces-
sidade de “enegrecer o feminismo”, como afirma a fi-
lósofa Sueli Carneiro. Atuando nos movimentos negro
e de esquerda, mulheres negras começaram a discutir
um novo projeto para a sociedade brasileira, ao mesmo
tempo que expunham os desafios e limites de uma atu-
ação política ao lado de companheiros negros que re-
sistiam ao debate sobre as práticas sexistas, e das mili-
tantes brancas do movimento feminista que resistiam
a discutir a questão racial. O manifesto de mulheres
negras escrito durante o Congresso de Mulheres Bra-
sileiras de 1975 revela a especificidade dessa luta das
mulheres negras: “as mulheres negras brasileiras têm
recebido uma herança cruel: ser objeto de prazer dos
colonizadores…”. Sueli Carneiro descreveu a necessi-
dade de enegrecer o feminismo da seguinte forma.
Enegrecer o movimento feminista brasileiro
tem significado, concretamente, demarcar e instituir
na agenda do movimento de mulheres o peso que a
questão racial tem na configuração, por exemplo, das
políticas demográficas, na caracterização da questão
da violência contra a mulher pela introdução do con-
ceito de violência racial como aspecto determinante
das formas de violência sofridas por metade da popu-
lação feminina do país que não é branca; introduzir a
discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as do-
enças com maior incidência sobre a população negra
como questões fundamentais na formulação de polí-
99
ticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos
mecanismos de seleção no mercado de trabalho como
a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os
privilégios entre as mulheres brancas e negras (CAR-
NEIRO, 2003).
Foi, a partir dos encontros de mulheres da dé-
cada de 1970, que mulheres negras começaram a se or-
ganizar em torno de uma pauta específica, formando
coletivos, associações e organizações de mulheres ne-
gras. Nesse período, quando lideranças negras, como
Lélia Gonzalez, já começavam a tratar da questão da
mulher negra no mercado de trabalho, mesmo mo-
mento em que eram fundadas entidades negras como
o Bloco Afro Ilê Aiyê (1974), o grupo Nêgo (Salvador,
1978), o próprio MNU (1978), a década de 1980 teste-
munhou a criação de organizações de mulheres ne-
gras como o grupo Aqualtune (1978, RJ), Luiza MAhin
(1980, RJ), o Grupo Nzinga (1983, RJ), o grupo Gele-
dés ( 1988, SP), dentre outros. Assim, conforme afirma
Matilde Ribeiro, mulheres negras desafiavam a noção
de uma suposta igualdade implícita, fosse entre as
mulheres das organizações feministas ou os homens
negros, das organizações de movimento negro (CAL-
DWELL, 2007).
Esse momento de construção das organizações
de mulheres negras teve como momentos fundamen-
tais a III Conferência Mundial das Mulheres, que acon-
teceu no Nairobi, em 1985, e o III Encontro Feminista
Latino - americano e do Caribe, que aconteceu em Ber-
tioga, em 1985, sendo que este último evento foi fun-
damental para a preparação do primeiro encontro de
mulheres negras que ocorreria em Valença, no Rio de
Janeiro, em 1988. Acusadas pelas feministas brancas
de provocarem uma cisão no movimento feminista, as
mulheres negras começaram a construir esse encontro
a partir de pautas como direitos reprodutivos, direitos
do trabalho, a questão da violência doméstica dentre
outras as quais lhes atingiam de forma especifica. A
despeito dos grandes desafios e das divergências, além
da diversidade que marcava as origens e realidade das
mulheres negras que organizaram o Encontro, pesqui-
100
sadoras e militantes reconhecem que o I Encontro de
Mulheres Negras foi um marco importante na atuação
e articulação nacional de mulheres negras brasileiras
(MOREIRA, 2014).
Entender o momento histórico e a importân-
cia dos encontros na formação da agenda política das
mulheres negras brasileiras foi algo fundamental, e,
quando falamos de encontros nacionais e de ativida-
des que envolviam a articulação de mulheres de partes
diferentes do Brasil, estivemos atentas para as dispa-
ridades regionais que acabam privilegiando e dando
maior visibilidade às regiões sudestinas do Brasil, Rio
de Janeiro e São Paulo notadamente. Desconstruindo o
regionalismo que marca essa narrativa que construiu a
história do movimento de mulheres negras, o artigo de
Angela Figueiredo destaca o papel da cidade de Salva-
dor no plano nacional.
Para tanto, são relevantes as atuações de mi-
litantes como Valdecir Nascimento, Ana Célia Silva,
Arani Santana, Lindinalva Barbosa, Vilma Reis, Lui-
za Bairros, dentre outras que pautavam a questão das
mulheres negras na cidade de Salvador no final dos
anos 1970 e década de 1980 (FIGUEIREDO, 2018). Na
cidade de Salvador, um marco importante nessa ação
política, e que se distinguiu um pouco do restante do
país foi a fundação do Grupo de Mulheres do MNU, o
GM. A pesquisa de Silvana Bispo (2011) foi nossa fonte
principal de informação, pois nela a pesquisadora ana-
lisa depoimentos preciosos de mulheres que fundaram
o GM e instalaram uma mudança de paradigma no de-
bate racial na Bahia, pautando a questão da mulher
negra dentro da principal organização de movimento
negro do país. A partir da atuação das mulheres ne-
gras, temas como a lesbofobia, o direito à sexualidade
de mulheres negras e uma democracia inacabada que
seguiria os anos pós-ditadura seriam feridas expos-
tas por mulheres negras dentro dos movimentos de
esquerda. Segundo os relatos dessas mulheres, os de-
safios e as resistências da parte dos seus companhei-
ros negros de militância não foram poucos, mas essas
rupturas foram fundamentais para que dali começasse
101
a se falar num feminismo negro no Brasil.
102
Mulheres negras de diferentes classes sociais
e escolaridades, idades diversas, assim como diversas
eram suas regiões e cidades, mulheres que atuavam
em organizações mistas ou de mulheres, mulheres
quilombolas, ribeirinhas, moradoras de comunidades,
lésbicas, mães e mulheres sem filhos, num dos mo-
mentos mais difíceis da história do Brasil, de recru-
descimento do conservadorismo e do movimento an-
tidemocrático que ganhava força na política brasileira
naquele momento, tiveram a coragem de marchar em
defesa de uma vida digna. A carta entregue à presiden-
ta Dilma, com propostas diversas em defesa da vida, do
meio ambiente, da educação e do combate à violência
que tira a vida da juventude negra, bem como em de-
fesa da saúde, do acesso à moradia, justiça e liberdade,
anunciava o desejo de um Brasil diferente, com proje-
tos políticos de bem viver para as mulheres negras, e
para toda a sociedade brasileira.
A carta entregue à presidenta Dilma, que foi
destituída do cargo de presidenta não muito tempo
depois, trazia aquilo que era de mais avançado e so-
fisticado enquanto projeto para a sociedade brasileira.
Dali, o Brasil seguiu outro caminho, completamente
oposto daquilo que era apresentado na carta de mulhe-
res negras. Contudo, após a Marcha, percebemos uma
intensa participação de mulheres negras na disputa do
espaço político brasileiro, nas mais diversas instân-
cias de poder. Portanto, como vimos ao longo do curso,
combinando sabedoria milenar e acompanhando os
mais recentes rumos da sociedade, atualizando pautas
e inserindo demandas novas, mulheres negras, ao lon-
go da sua história na sociedade brasileira empurraram
103
o Brasil para outro caminho, mais democrático, com
direitos e cidadania para todas as pessoas. E ainda que
o racismo, o sexismo e o patriarcado brasileiro seguis-
se empurrando o país para outro lado, elas não desisti-
ram. Por isso, nós continuamos em Marcha e que essa
história seja sempre lembrada por nós.
104
REFERÊNCIAS
BISPO, Silvana. S. Feminismos em debate: reflexões sobre a
organização do movimento de mulheres negras em Salvador
(1978 – 1997) / Dissertação (mestrado) – Universidade Fe-
deral da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Salvador, 2011.
105
LESSA, Luciana Falcão. Senhoras do Cajado: um estudo sobre
a Irmandade da Boa Morte de São Gonçalo dos Campos, dis-
sertação de mestrado. Universidade Federal da Bahia, 2005.
106
Organização das
mulheres negras na
contemporaneidade: vivendo
o cotidiano do movimento
de mulheres negras a partir
da I Marcha de Mulheres
Negras à Brasília
Maísa Vale
Introdução
109
preende a organização política das mulheres negras
na contemporaneidade. Colocar pedra sobre pedra,
não a partir do ponto mais longínquo que se pos-
sa imaginar, o que exigiria muito mais páginas. Dito
isso, o que importa é assegurar uma historiografia
condizente com a pluralidade constitutiva desse mo-
vimento desde sempre.
No tange à Organização das Mulheres Negras,
num período mais recente, é possível destacar a cria-
ção do primeiro coletivo de mulheres negras: Aqual-
tune. Fundado em 1978, no Rio de Janeiro, teve en-
tre suas participantes nomes de destaque como o de
Azoilda Trindade, Cristina Daniel Cruz, Édila Silva das
Virgens, Estela da Costa Monteiro, Irani Maia Pereira,
Léa Garcia, Jurema Gomes da Silva, Oir Nascimento de
Oliveira, Pedrina de Deus, Shirlei da Silva, Suzete Pai-
va, entre outras (SCHUMAHER; VITAL BRAZIL, 2007;
SEBASTIÃO, 2007).
Dentre as contribuições recentes acerca desse
movimento, destaco o debate despertado pelo artigo
“Mulheres Negras Brasileiras: de Bertioga a Beijing”,
da intelectual Matilde Ribeiro (1995), que aborda o sur-
gimento da organização. A autora, nesse artigo, sugere
que o movimento contemporâneo de mulheres negras
emergiu pós-criação do Movimento Negro Unificado
(MNU), como um movimento autônomo no bojo das
lutas feminista e negra, em meados da década de 1970.
Entretanto, convém atentar para o que enfa-
tiza a pesquisadora Joselina da Silva, em seu artigo “I
Encontro Nacional de Mulheres Negras: o pensamen-
to das feministas negras na década de 1980” (2014),
quando a autora alerta para o risco de se tomar a or-
ganização das mulheres negras como algo recente,
que emerge nesse período com os chamados “novos
movimentos”.
Penso que a autora, provavelmente, se referia
também ao Conselho Nacional de Mulheres Negras,
criado em 1950, no Rio de Janeiro. Esse Conselho foi
um desdobramento do Departamento Feminino do
Teatro Experimental do Negro (1944), sob a direção
110
de Maria Nascimento. Atualmente, é considerado
como o primeiro registro de organização autônoma
de mulheres negras no Brasil. Ao longo de suas aná-
lises, Joselina da Silva (2005) relembra ainda nomes
fortes de lideranças negras dessa época, como Maria
de Lurdes Nascimento, Nair Theodora Araújo e An-
tonieta de Barros, que protagonizaram a luta por au-
tonomia e reconhecimento das mulheres negras, bem
como denunciaram as desigualdades raciais, de gêne-
ro e social no Brasil.
O fato é que, antes disso, afirma Silva (2014,
p. 36), na década de 1970, nós “já éramos mulheres
e negras, do ponto de vista argumentativo e da cons-
trução identitária”. Isso significa afirmar que “nos-
sos passos vêm de longe”, e com o advento das lutas
feministas nesse período, o que ocorreu foi que nós
passamos a reconhecer e nomear aquelas práticas in-
dividuais e coletivas oriundas desse sujeito desde a
chegada das nossas ancestrais, e antes disso também,
como sendo práticas feministas, da organização das
mulheres negras.
111
Boa Morte para fazer a abertura da Marcha e entregar
o documento à Presidenta Dilma, bem como a con-
centração em cima dos trios elétricos de mulheres ne-
gras referências da nossa intelectualidade - Phumzile
Mlambo-Ngcuka, Leci Brandão; Conceição Evaristo;
Nilma Bentes, etc. Tudo isso, visto no conjunto, tor-
na evidente que ali estava sendo posto em prática um
conjunto de expertises e táticas, direcionando a linha
estratégica de ação que o movimento queria adotar.
Esses documentos, aos quais me refiro - Carta
de Curitiba - Encontro da Rede Lai, Lai Apejo, Carta de
Recife (Seminário Tecendo a Rede de Mulheres Negras
do Nordeste), Carta de Salvador (Reunião da Rede de
Mulheres Negras do Nordeste), Carta de Brasília (III
Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Ra-
cial – CONAPIR) e, por fim, a Carta do Rio de Janeiro,
no Seminário “Democracia e desenvolvimento sem ra-
cismo – Por um Brasil afirmativo) -, fazem parte do
acervo desse marco de construção da IMMNB. Daí o
entendimento defendido de que ali havia um fio con-
dutor estratégico, articulando nacionalmente essas
Mulheres Negras rumo à Marcha.
A referida assertiva, não apenas no ato de
marchar, mas também na forma com que essas ações
foram conduzidas e implementadas em cada territó-
rio, revelam que muitas foram às iniciativas que igual-
mente fizeram parte e potencializaram esse processo
de mobilização. Entretanto, o conhecimento produzido
a partir dessa construção social, por um lado, encon-
tra-se fragmentado, disperso; por outro, apresenta-se
restrito apenas àquelas organizações e com membros
que estão mais diretamente ligados a essas institui-
ções, carecendo, portanto, de uma maior socialização
que poderia tornar-se, a partir da difusão desses sa-
beres produzidos pelo movimento, um sistema mais
integrado e a RMNN mais coesa e fortalecida.
112
Metodologias adotadas para mobilização do
Nordeste Brasileiro
113
histórico de luta; autoestima e combate aos estereóti-
pos e política sexual2. Conforme deliberaram, a orga-
nização baseia-se não na unidade como um fim para as
mulheres negras, mas na irmandade, na cumplicida-
de e solidariedade dessas mulheres que compartilham
projetos políticos de emancipação mútua. Insurgem
contra os modelos de desenvolvimento econômico e
político desigual, adotado pelo Estado, contra o qual
são levantadas bandeiras reivindicativas de inclusão
da maioria da população excluída.
As reuniões da Rede aconteceram em espaços
como a sede do Odara – Instituto da Mulher Negra,
sede do Bahia Street, Centro de Estudos Afro Oriental
(CEAO/UFBA), e outros fora da capital, como no caso
das caravanas, quando levamos nossas reuniões para
outros municípios: Camaçari, Cachoeira, São Fran-
cisco do Conde, Feira de Santana, Cruz das Almas,
Serrinha, Itaberaba, Bom Jesus da Lapa e tantos ou-
tros. Nessas ocasiões, pontuamos a participação de
diversos coletivos e representações dos movimentos
de mulheres negras (lésbicas, marisqueiras, de santo,
agricultoras, marisqueiras, população em situação de
rua, movimento sem teto, trabalhadoras domésticas
e de Juventude).
Esses ciclos formativos foram pensados pela
RMNBA para serem momentos de acolhimento, au-
to-cuidado e formação política. Nesses espaços, foi
possível notar a existência de uma forte relação entre a
educação e a decolonialidade, pois não se tratava, uni-
camente, de treinar mulheres para algo. A ideia central
sempre foi a de contribuir para que elas, com a des-
naturalização da exclusão e das opressões que tinham
que conviver cotidianamente, pudessem reconhecer
as estruturas e as condições sociais de dominação, que
criam tal desumanidade.
114
Aspecto intrínseco dessas formações que tive-
ram sempre como objetivo romper com esse processo
de desumanização que lhes foram impostos pelo bran-
co colonizador. Isso pressupôs extrair, dos conteúdos
do dia a dia, as possibilidades que brotam dessa expe-
riência para atribuir-lhes significado, dar-lhes sen-
tido e apropriar-se para uso no seu cotidiano. Porém,
sobretudo, o de atuar responsavelmente e consciente-
mente contra as estruturas e as condições sociais que
pretendem negar a sua humanidade.
Nesse sentido, a necessidade de formar todos/
as, inclusive quem estava formando, esteve sempre
implícita. Eram tratadas como possibilidades para que
se pudesse refletir sobre o conhecimento e sobre o ato
de pensar. Estratégias pedagógicas desenvolvidas na
perspectiva anti-racista, a partir de suas experiên-
cias como instrumento de ensino e de aprendizagem,
possibilitando para essas mulheres a reflexão sobre a
complexidade social acerca de diversas dimensões da
vida, do corpo, da corporeidade, do comportamento e
da subjetividade.
É importante desenvolver reflexões e estra-
tégias pedagógicas, na perspectiva antirracista, para
compreender a complexidade social, respeitando as
outras identidades construídas socialmente pelos su-
jeitos; lidando de maneira positiva com todas elas
(GOMES, 2002, 2005; CAVALLEIRO, 2005, MUNANGA,
2005, MOTA, 2015). O que se tem tentado afirmar, com
essa prática pedagógica, é que se o modelo educacio-
nal padrão, que forma a sociedade brasileira, é racista,
a pedagogia preta é genuinamente de resistência. Isso
porque a pedagogia para o empoderamento das mu-
lheres negras têm o potencial de contribuir para que
elas revejam suas concepções e vivências das formas
e conteúdos construídos a partir da sua própria expe-
riência de vida. Sendo assim, os conteúdos utilizados
nessas formações favorecem a independência, a criati-
vidade e a autocrítica na construção do conhecimento.
Aqui, a coerência entre forma e conteúdo está a ser-
viço da autonomia e da transformação social, contrá-
ria, portanto, à manutenção da ordem social opressiva
115
e desigual estabelecida com o intuito de oferecer uma
chance para que o processo de construção da marcha
fosse um lócus de empoderamento de sujeitos.
116
tos de desenvolvimento que não nos enxergam e pela
nossa sobrevivência.
Assim, Dona Dijé sintetiza a luta das mulheres
negras:
117
c. Rede Mulheres Negras da Paraíba
118
tidade política no 25 de Julho, data simbólica de co-
memoração ao dia da Mulher Afro-latino-americana
e Caribenha. A RMNPB também optou por difundir
mais ainda a campanha de promoção da identida-
de negra na Paraíba “Moren@ não. Eu sou negr@”,
visando reverter esse alto índice de negação de suas
raízes negras e indígenas.
Em 2015, durante o processo de construção da
Marcha, a Bamidelê, organização de mulheres negras
de maior expressividade no estado da Paraíba, pro-
moveu o Prêmio “Mulheres Negras em Foco: Um Click
contra o Racismo”. Esse Prêmio teve como finalidade
estimular a produção fotográfica e incentivar as ar-
tes, convidando mulheres fotógrafas, profissionais e
amadoras a dedicar seus diferentes olhares e percep-
ções ao registro positivo da diversidade das mulheres
negras paraibanas.
Preliminarmente, as manifestações artístico-
-culturais do estado foram o mote utilizado pela Rede
de Mulheres Negras da Paraíba para exibir a força da
cultura local e representação do estado, assumindo a
chita para este fim - um dos tecidos mais conhecidos
por todo o país – nada mais criativo do que trazê-la
para caracterizar as mulheres negras paraibanas no
contexto da I MMNB.
Vale ressaltar ainda que a Paraíba é um estado
que possui uma cultura riquíssima, com destaque para
as festas juninas, consideradas umas das melhores do
país. Portanto, nada melhor do que reforçar a ideia da
alegria genuína do povo nordestino através da chita.
Pano popular devido às estampas e à combinação de
cores vivas e misturas descontroladas, esteve presente
ao longo da história de castigo, festa, moda, decora-
ção, trabalho e arte das mulheres negras nordestinas e
recentemente na IMMNB. É a partir desse reconheci-
mento que a chita foi incorporada à história da IMMNB
como representativa da força cultural deste país.
119
d. Rede de Mulheres Negras de Pernambuco -
RMNPE
120
tro do processo de construção da Marcha, que conside-
ro bastante emblemáticas: Os “ensaios fotográficos” e
a história da “conversa na cozinha”.
121
dar sentido porque só quando as mulheres que
estão ali se tocam aquilo bate na memória, no
paladar, no olhar, no sentir, elas se fortalecem e
desejam continuar. (MARQUES, 2016)
Considerações Finais
122
durante uma reunião de avaliação da Marcha e plane-
jamento estratégico do Odara, a partir de uma série de
considerações, repletas de comparações sutis, afirma
que, daqui pra frente, a tentativa de superar dificulda-
des orgânicas identificadas no movimento negro pre-
cisa considerar a IMMNB como um ponto central de
reflexão e avaliação, na medida em que esta anuncia a
criação de um movimento em comum, o qual galvaniza
e dá vida à luta antirracista a partir do protagonismo e
olhar das mulheres negras.
Ele ainda vai além, ao ressaltar que, qualquer
ação, não apenas do movimento negro, mas, da es-
querda brasileira, que seja feita daqui por diante, ne-
cessariamente, tem que considerar o potencial político
construtivo desse movimento que articulou a I MMNB,
no Brasil, em 2015.
123
REFERÊNCIAS
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Bra-
sil: identidade nacional versus identidade negra. 3 ed., Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
124
Memória e trajetória
de organização das
lésbicas, bissexuais,
travestis e
transexuais negras
Ana Cristina Conceição Santos1
127
ção dos modelos que nos eram oferecidos pelo
esforço de investigação das ciências sociais.
Os textos só nos falam de mulher negra numa
perspectiva sócio-econômica que elucidava
uma série de problemas propostos pelas rela-
ções raciais. (GONZALEZ, 1983, p. 227)
2 Utilizarei o gênero feminino neste escrito para palavras que nos habituamos a
grafar no masculino.
3 Passarei a utilizar a sigla LBTT para me referir às lésbicas, bissexuais, travestis
e transexuais.
128
Lésbica: mulher que se sente emocional, sexual
e romanticamente atraída por outras mulheres;
Mulher bissexual: pessoa que se sente emocio-
nal, sexual e romanticamente atraída por ho-
mens e mulheres;
Travestis: pessoas que foram identificadas como
sendo pertencentes ao gênero masculino no
nascimento, mas que se reconhecem como per-
tencentes ao gênero feminino e têm expressão
de gênero feminina, embora não se reconheçam
como mulheres de acordo com o que ser mulher
está construído em nossa sociedade;
Pessoa cis (cisgênera): pessoa cuja identida-
de de gênero corresponde àquela designada ao
nascer;
Mulheres transexuais: pessoas que foram iden-
tificadas com o gênero masculino no nascimen-
to, mas que se reconhecem como pertencentes
ao gênero feminino e se reivindicam como mu-
lheres. (IIRIDH, 2020, p. 08-09)
129
bianismo e foram atendidas. As lésbicas, em reunião,
pontuaram a urgência de um encontro só de lésbicas
fora dos espaços dos encontros feministas (FERNAN-
DES, 2018). Infelizmente, desconheço documentos que
tragam a participação e a intervenção das lésbicas ne-
gras nessa reunião.
As mulheres negras delinearam, em seus am-
bientes de militância (sindicatos, movimentos negros,
feministas, entre outros), a necessidade de serem vistas
como sujeitas de direitos e, no espaço dos encontros fe-
ministas (assim como as lésbicas), em especial, no IX
Encontro Feminista, realizado em Garanhuns/PE, elas
decidem realizar um encontro de mulheres negras.
Desse modo, foram realizados os I e II Encon-
tro Nacional de Mulheres Negras que aconteceram nos
anos de 1988, em Valença/RJ, e 1991, em Salvador/Ba.
Nesses encontros, não constavam, na programação,
atividades com a temática lésbica, mesmo assim as
lésbicas negras presentes se reconheceram e promo-
veram atividades, abordando o amor entre mulheres.
Nos documentos finais desses encontros, não apare-
cem as atividades propostas pelas lésbicas, entretanto
esses momentos estão registrados em suas memórias
e falas (SANTOS, 2015).
No que diz respeito às bissexuais, são escassos
os registros da participação nos movimentos sociais.
Grande parte dos movimentos sociais, em particular
o movimento LGBTQI+4, faz o apagamento da bisse-
xualidade, anulando suas existências, pois são con-
sideradas, de forma preconceituosa, lésbicas, quando
mantém relacionamentos afetivo-sexuais com outras
mulheres, ou heterossexuais, quando mantém relacio-
namentos afetivo-sexuais com homens, também são
tidas como promíscuas, indecisas, bigâmicas, entre
outros. Ao ponderar sobre as bissexuais negras, esse
apagamento se torna maior.
130
Lembro-me da participação das/dos bisse-
xuais no XII Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e
Transgêneros (EBGLT), em 2005, que ocorreu em Bra-
sília. Na plenária final, as/os bissexuais discorreram
sobre a invisibilidade dentro do movimento LGBT5,
tanto que, na sigla do evento, não existia referências
aos bissexuais. Então, anunciaram que estavam crian-
do um coletivo e as/os participantes do encontro que
se identificavam como bissexuais foram convidadas/
os a se juntarem. Tal anúncio gerou o maior burburi-
nho na plateia e injúrias como “mal resolvidas/os” e
outras já expostas foram ditas, revelando a bifobia do
movimento.
Giddens (1993, p. 203) comenta que: “a bisse-
xualidade é ainda mais difícil de ser entendida porque
parece ser uma mistura de homo e heterossexualidade,
comprovando a teoria maior de que a orientação sexual
pode se manifestar por vários caminhos”.. Assim como
as bissexuais, os registros da participação das travestis
e transexuais, em especial as negras, nos movimentos
sociais, com exceção do movimento LGBT, também
são insuficientes. Carvalho e Carrara asseveram que:
5 A sigla LGBT passa a ser usada a partir de 2008, antes passou por algumas mu-
danças a nomenclatura e em 2005 era usada a sigla GLBT.
131
partir do governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da
Silva6 e dada continuidade com a ex-presidenta Dilma
Rousseff (2003 a 2016), tiveram maior participação
dos movimentos sociais, inclusive o movimento LGBT.
Os documentos finais das conferências nacionais de
educação, igualdade racial, saúde, mulheres, entre
outras, trouxeram ações para LGBT e algumas inter-
secções com orientação sexual, identidade de gênero e
raça, a exemplo da II Conferência Nacional de Políticas
para as Mulheres (2007), na qual as mulheres negras,
lésbicas e lésbicas negras propuseram e conseguiram a
aprovação da inserção do eixo “Enfrentamento do ra-
cismo, sexismo e lesbofobia”, no II Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres, o qual, devido a sua impor-
tância, permaneceu na III Plano Nacional de Políticas
para as Mulheres (2013-2015).
132
sim, violações de direitos e todos os tipos de violências,
as quais, em muitos casos, levam à morte. Tanya Saun-
ders (2017) afirma que se nós não desafiarmos esse
universal do humano, provavelmente continuaremos a
sofrer com as violências epistêmica, afetiva e corporal.
Portanto, as intersecções das nossas identi-
dades vulnerabilizadas (mulheres negras cis ou trans,
lésbicas ou bissexuais) estão conectadas com as vio-
lências que vivenciamos, e, por isso, é essencial que
possamos analisar as violações dos nossos direitos a
partir de uma perspectiva interseccional.
Nesse sentido, compreendo a interseccionali-
dade como uma construção do movimento de mulhe-
res negras, pois, em suas denúncias e reivindicações,
elas traziam e trazem as opressões raciais, sexuais,
gênero, classe, entre outras, não existindo, como nos
afirma Audre Lorde (1983), hierarquias de opressões
uma vez que todas elas estão interligadas agindo sin-
cronicamente, isto é, de forma interseccional.
Patrícia Hill Collins (2000) declara que a re-
jeição a uma interpretação aditiva das opressões foi
impulsionada pelo pensamento feminista negro ao
reconhecer que as opressões são compostas por uma
estrutura de dominação, nas quais as explorações são
mútuas. No entanto, o termo interseccionalidade tor-
nou-se acadêmico a partir da sistematização feita pela
ativista acadêmica Kimberlé Crenshaw que define a in-
terseccionalidade como:
133
ta analisar de modo conectado as subjugações, que se
constituem em desigualdades de gênero, raciais, de
orientação sexual, classe etc., que agem sobre uma
única sujeita, favorecendo o modelo cisheteronorma-
tivo e excluindo quem está à margem na sociedade,
como as LBTT negras, uma vez que somos vistas como
sem importância, a exemplo das mortes de Luana Bar-
bosa7, Roberta8, Crismily Pérola9, entre tantas outras.
Ao buscarmos dados sobre a violência contra
LBTT, percebe-se que os poucos registros existentes
não trazem, de forma significativa, a interseccionali-
dade. É fundamental dizer que a maioria dos dados es-
tatísticos sobre a população LGBTQI+ são produzidos
pelo movimento LGBT, o que denuncia o descompro-
misso do Estado, e os que apresentam o recorte racial
são recentes.
O Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada
(IPEA) é um órgão do estado ligado ao Ministério da
Economia e, desde 2016, publica o Atlas da Violência.
No ano de 2019 e 2020, foram incorporados dados em
relação à violência contra a população LGBTQI+; con-
tudo, o Atlas (2019/2020) expõe que, em consequência
da ausência da coleta de dados sobre a orientação se-
xual pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), pela polícia e no registro de óbitos, “...torna-se
uma tarefa extremamente árdua dimensionar e tra-
çar diagnósticos para produzir políticas públicas que
venha a mitigar a violência contra a população LGB-
TI+” (ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019, p. 56). No atlas, as
violências contra LGBTQI+ são analisadas a partir das
denúncias feitas no Disque 10010 e nos documentos
do Sistema de Informação de Agravos e Notificação
134
(Sinan)11, e mostram que houve aumento dos casos
de violência no período de 2011 a 2017. Entretanto, a
crítica que se faz a esse levantamento é que o Disque
100 não registra a identidade de gênero, abrindo assim
uma lacuna nas informações.
Em 2018, foi publicado o dossiê sobre lesbocí-
dio no Brasil com dados de 2014 a 2017. As pesquisado-
ras, ao apresentarem o dossiê, nos alertam que:
135
sinalizado que os dados referentes à raça demonstram
que as lésbicas brancas são mais mortas do que as ne-
gras e as indígenas. Uma das hipóteses é o fato que a
mídia, ao selecionar o que é rentável, exclui as sujeitas
que não correspondem a um ideal de mulher (branca).
A Associação Nacional de Travestis e Tran-
sexuais (ANTRA), desde 2018, elabora um dossiê com
dados sobre assassinatos e violências sofridas por tra-
vestis e transexuais. No último dossiê, com dados de
2020 e lançado em 2021, os dados levantados infor-
mam que os estados da região nordeste estão entre
aqueles com maiores assassinatos de pessoas trans12,
sendo o Ceará (2º lugar), Bahia (3º lugar) e Alagoas (6º
lugar). O dossiê revela ainda que 78% das travestis e
transexuais assassinadas eram negras, pois “essas
mortes acontecem com maior intensidade entre tra-
vestis e mulheres transexuais, principalmente contra
negras, assim como são as negras as que têm a menor
escolaridade, menor acesso ao mercado formal de tra-
balho e a políticas públicas” (BENEVIDES, NOGUEIRA,
2021, p. 49).
Assim como o do lesbocídio, o dossiê de assas-
sinatos e violência contra pessoas trans aponta que há
subnotificação e dificuldade aos dados e as informa-
ções obtidas são através das mídias. O documento ma-
nifesta a inexistência de mapeamento realizada pelo
estado e que os dados produzidos pelos movimentos
sociais não são reconhecidos.
136
mações sobre identidade de gênero dos aten-
dimentos, ou mesmo no Dossiê Mulher e nos
relatórios do Disque 100 - exemplos de publi-
cações que lançam dados anualmente, sem se
preocupar com um recorte que inclua e visibilize
a violência contra a nossa população, apesar dos
dados constantemente denunciados pelas orga-
nizações. (BENEVIDES, NOGUEIRA, 2021, p. 29)
137
dicando o direito de ir e vir, estamos exigindo o direito
à nossa existência.
Já comentei que nós, LBTT negras, estivemos
sempre presente em diversos ambientes políticos (sin-
dicatos, movimentos, eventos etc.) mesmo assim éra-
mos, e ainda somos em muitos lugares, até mesmo no
movimento LGBT, silenciadas e experimentamos um
apagamento de nossas negritudes intercruzada com
nossas identidades de gênero e orientação sexual. To-
davia, nunca ficamos inertes, pois afrontamos e bus-
camos nos fortalecer, dentro desses espaços nos quais
já estávamos inseridas, tecendo estratégias e/ou for-
mando novas organizações.
O registro de organização de lésbicas negras
data da década de 1990 com a criação do Coletivo de
Lésbicas Negras do Rio de Janeiro (COLERJ) fundado e
dirigido por Neusa das Dores. Ela, Neusa, representou
um momento simbólico, enquanto lésbica negra, ao
participar, em 1995, da 17ª Conferência da Associação
Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA) e coordenou o
grupo de trabalho sobre lesbianismo e negritude. O jor-
nal Folha de São Paulo13 fez a cobertura do evento e en-
trevistou Neusa das Dores que declarou: “o movimento
negro é lesbofóbico e há um profundo racismo dentro
do movimento homossexual”. Essa fala desvela que nos
posicionamos a muito tempo de forma interseccional ao
denunciar o racismo e a lesbofobia que atinge lésbicas
negras. Foi, nessa conferência, que as lésbicas começa-
ram a conceber o primeiro seminário nacional.
O COLERJ foi responsável pela realização do I
Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE), em 1996,
na cidade do Rio de Janeiro. Na sexta edição do semi-
nário, que aconteceu em Recife, no ano de 2006, as
lésbicas negras reivindicaram que a questão racial fos-
se pautada, com isso foi realizada a mesa “Racismo,
discriminação racial e lesbianidade”.
138
No VIII SENALE, Porto Alegre/2014, houve a
participação das bissexuais e foi deliberado que o nome
do evento passaria a ser chamado SENALESBI, assim
as bissexuais e as mulheres transexuais e travestis, que
sejam lésbicas ou bissexuais, também poderiam parti-
cipar dos seminários subsequentes.
Em 2006, as lésbicas negras começaram a se
organizar em grupos e redes nacionais. Uma das pri-
meiras organizações, que eu tenho conhecimento, foi
a Rede de Lésbicas Negras, que era virtual, e as in-
tegrantes também faziam parte da Rede Nacional de
Negras e Negros LGBT14. Nesse mesmo ano, o grupo
Minas de Cor, juntamente com o COLERJ, promoveu
o I Encontro Nacional de Lésbicas Negras com a te-
mática “Afirmando identidades”, e os conteúdos
abordados tratavam da construção e da promoção de
políticas identitárias, invisibilidade negra e lésbica,
articulação com movimentos sociais e órgãos gover-
namentais. Esse encontro permitiu que várias lés-
bicas negras pudessem demarcar, em seus locais de
atuação, suas demandas.
O II Encontro Nacional de Lésbicas Negras e
Bissexuais, Curitiba/2015, organizado pela Rede de
Mulheres Negras do Paraná, teve como tema “Afir-
mando identidades para a saúde integral” e, nesse en-
contro, foi garantida a participação das bissexuais. Ao
final, elaboramos um documento sobre a participação
das lésbicas e bissexuais negras na Marcha das Mulhe-
res Negras15 que ocorreu no mesmo ano. Em 2019, foi
realizado, na cidade de Natal, o III Seminário Nacional
de Lésbicas e Bissexuais Negras, sendo chamado agora
de SENALE NEGRAS. O tema do evento trouxe as trans
e se chamou “LBT’s Negras: enfrentando a lesbitrans-
fobia e o racismo estrutural”.
139
Em 2007, surgiram duas organizações de LBTT
negras e que são atuantes até hoje: o Coletivo Canda-
ces - Coletivo Nacional de Lésbicas e Bissexuais Negras
Feministas Autônomas e que tem como objetivo “dar
visibilidade, letramento e empoderamento para as lés-
bicas negras, fortalecendo seu protagonismo em seus
diversos espaços de atuação”16, bem como a Rede SA-
PATÁ que se constitui como um espaço de:
140
do FONATRANS, estavam e continuam em outras or-
ganizações. A FONATRANS já realizou seis encontros
nacionais e, em 2020, teve um projeto apoiado pelo
Fundo Brasil na linha “Enfrentando o Racismo a Partir
da Base – Fortalecimento Institucional e Mobilização
para Defesa de Direitos”.
A organização, enquanto coletivos das LBTT
negras, é recente, no entanto, nós estávamos em todos
os espaços, denunciando as opressões que sofríamos
e sofremos, mas, para além das denúncias, é impres-
cindível reconhecer que as mulheres negras, indepen-
dente de ser cis ou trans, em um primeiro momento,
trazem à tona para a sociedade o modus operandi do
racismo imbricado com o machismo e o classismo que
vão nos marginalizando, retirando nossa humanidade
e, em um segundo momento, possibilita a construção
de caminhos para que possamos fazer outras reivin-
dicações, tal como o direito de não sermos despreza-
das pela nossa orientação sexual e pela identidade de
gênero. As escassas políticas públicas que existem com
direção interseccional são graças à nossa organização.
(In)conclusões
141
desumaniza. E, este ano, 2021, o movimento de lésbi-
cas lançou o lesbocenso que “pretende coletar infor-
mações sobre autoidentificação, trabalho, educação,
saúde, relacionamentos, relações familiares e redes de
apoio que as lésbicas e sapatão possuem nas diversas
regiões do país” 19, portanto, o movimento social mais
uma vez fazendo o que seria função do estado.
Há datas comemorativas que lembram nos-
sas (re) existências: 29 de janeiro – dia da visibilidade
trans, 29 de agosto – dia da visibilidade lésbica e 23 de
setembro – dia da visibilidade bissexual. Essas datas
são importantes, porque surgiram em momentos signi-
ficativos, mas queremos ser visibilizadas todos os dias
do ano conquistando uma existência digna e segura.
Ao aceitar o desafio para escrever este texto,
sabia que existiriam hiatos, porque a escrita é situada
a partir das minhas vivências e leituras. Por isso, este
texto não está finalizado e nem tinha essa pretensão,
pois reconheço que esta escrita precisa ter continui-
dade com outras mãos, mãos de LBTT negras que es-
tão ressignificando a militância, que estão afrontan-
do a sociedade e que abrem novas direções, ao mesmo
tempo em que reconhecem que “nossos passos vêm de
longe”20.
142
REFERÊNCIAS
BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos Revisitados. In: RIBEI-
RO, Matilde (Org.) Dossiê Mulheres Negras. Revista Estudos
Feministas. Florianópolis: CFH/CCE/UFSC, v.3, n.2, 1995, p.
458-463.
143
Direitos Humanos, 2020.
144
GRUMAP quarentando:
quatro décadas de ativismo
de mulheres negras trilhadas
pela arte, educação popular
e pés no chão do
território negro
Rita Santa Rita Pereira
Jucélia Bispo Ribeiro
Luciana Silveira
Karine Damasceno
Introdução
147
Eu me pergunto muito sobre ancestralidade.
Precisamos reforçar essa ponte porque a gente
também está construindo ancestralidade.
(Roda Virtual GRUMAP de Cuidado e
Autocuidado)
Eia, mulheres!
Aqui estamos nós, mulheres pretas, para con-
versar, com essas palavras, com vocês e outras tantas
mulheres negras do território do Alto das Pombas e
outros territórios. Estamos aqui para dizer que esta-
mos seguindo o voo da ave Sankofa, olhando para trás,
para nossa história, nosso passado, mas estamos de
olho no futuro. Um futuro que podemos dizer como
queremos que seja; e que aponte para um novo tempo.
Sim. Mulheres voando como Sankofas. Sanko-
fa, símbolo africano Adinkra em forma de uma ave
que, ao voar, verga sua cabeça para trás, nos lembran-
do que temos memória, temos histórias importantes.
Ela nos lembra que precisamos nutrir nossos corpos
no presente com a força das nossas mais velhas, das
nossas ancestrais, das que se foram e as que perma-
necem na luta. E todas vivas em nós! E, alimentadas
do que elas nos legaram, somos capazes de inovar e
renovar nossas esperanças de vivermos dias melho-
res num futuro que está logo ali, próximo, há alguns
passos. Que futuro é esse? Acompanhe o que estamos
tramando, articulando, tecendo a partir do que vamos
te dizer nessas linhas.
Falamos de passado, presente e futuro, teci-
dos por uma herança bendita de mulheres aguerridas,
prenhas de amor pela política do bem-viver, da segu-
rança, da proteção, da moradia, da arte-educação e de
uma sociedade sem racismo.
Nesse texto, vamos conversar sobre o que sig-
nifica, para a GRUMAP chegar aos quase 40 anos de
idade, a partir de uma trajetória de luta de mulheres
negras, que, desde lá, olhavam para a frente -o futuro
-numa empreitada coletiva pelo direito de viver e mo-
rar num pedaço da cidade, assegurando creche e escola
148
para crianças e jovens no território. E, ao longo dessas
quatro décadas, como a GRUMAP renasce em seu coti-
diano, renovando-se como sujeito coletivo.
Com essas palavras, neste texto, nós sauda-
mos a vocês, mulheres negras, e a nós, Grupo de Mu-
lheres do Alto das Pombas, pelas histórias que tecemos
juntas nas lutas e lidas pelo direito à moradia, à cidade,
à vida digna, a uma sociedade sem racismo, à plenitude
de sermos mulheres, e pretas, com orgulho, fé, amo-
rosidade e coragem.
149
gra, chamada Conceição Evaristo, evoca as vozes de
mulheres, das bisavós, avós e filhas, trazendo para a
gente, em um dos trechinhos de seus poemas, algo que
nos diz assim:
150
sim como nas lutas pela terra, no contexto rural, essas
mulheres fizeram a luta por moradia na cidade, assim
como as do campo, reivindicando e afirmando um lu-
gar para o viver bem. Uma luta de tempos remotos, de
histórias de migrações de muitas dessas mulheres ex-
pulsas da terra onde trabalhavam para virem morar e
trabalhar na cidade, tanto no contexto da periferia ur-
bana de Salvador, como em tantas outras capitais.
Nesse contexto, essas mulheres reunidas no
coletivo chamado Clube de Mães entenderam que o
morar no território implicava em lutar por equipa-
mentos sociais urbanos e acesso a serviços essenciais
como creche para as crianças, escola, posto de saúde,
conjugando dois ingredientes que não poderiam fal-
tar no cotidiano da vida de pretas e pretos do Alto das
Pombas: educação e saúde enquanto políticas e assis-
tência e a convicção do direito a ter direitos.
Depois de décadas de luta, o Clube de Mães,
atualizando o presente do que o contexto político pe-
dia, renomeou o movimento como Grupo de Mulheres
do Alto das Pombas - GRUMAP, a partir de então, uma
organização política sem fins lucrativos é fundada em 8
de março de 1982. O grupo passa a ser constituído por
mulheres moradoras do Alto das Pombas e mulheres
parceiras que, à beira de completar 40 anos de exis-
tência em 2022, vem atuando na construção e imple-
mentação das ações que envolvem atividades em prol
da luta por direitos políticos e seguridade social. Essas
ações dizem respeito ao acesso a serviços de saúde e
educação, direitos básicos, à ampliação do debate racial
e de gênero e em defesa de uma vida digna para a popu-
lação negra do território. Educação popular, arte e edu-
cação têm sido os caminhos trilhados por essa GRU-
MAP que se renova a cada voo Sankofa, sempre de olho
no futuro do que queremos e necessitamos no âmbito
do que o movimento entende por justiça racial e social.
E, ao longo dessa história de quase 40 anos, o
Grupo desenvolve ações de formação com mulheres,
crianças e juventudes. A partir de rodas de conversas,
diversas oficinas de arte-educação, corpo-memória
e saúde, saraus, bazar, feiras, cineclub mulher, jornal
151
COMUNICA GRUMAP, cuidado coletivo da saúde men-
tal das ativistas do grupo, produção de podcast, rodas
virtuais de cuidado e autocuidado, dentre outras ativi-
dades, o grupo vem dialogando com esse passado que
continua novo na luta pelo presente.
O legado que temos das mulheres mais velhas
que fizeram o coletivo atuante de mulheres no Alto das
Pombas é aquele de um projeto político do cuidado no
contexto popular. As mulheres já sabiam como tomar
conta dos “seus” e dos “nossos”. Importavam-se com
a própria casa e a moradia digna das outras. Entendiam
que escola seria fundamental para crianças e jovens e
que o posto de saúde precisava funcionar na perspec-
tiva da garantia da promoção e da prevenção à saúde
como preconizava o Sistema Único de Saúde. Como nos
afirma Fernanda Carneiro (2006):
152
2. GRUMAP e suas renovações/inovações: arte,
educação, saúde e tecnologias digitais e analógicas
na comunicação para dentro e para fora
153
da unidade de saúde e das escolas. E se, em tempos de
Covid-19, as mulheres não podem correr o risco de se
juntarem fisicamente, o GRUMAP vai até às mulhe-
res com seus podcasts, falando sobre: defesa da vida
e saúde das mulheres; Segurança Alimentar; Ecos de
Saúde e Ecos de Cura.
O GRUMAP descobre também que as mulheres
podem continuar cuidando umas das outras em tem-
pos de mais vulnerabilidades, de distanciamento fí-
sico e social forçado pela veiculação de um vírus letal.
Com isso, novamente se agrupa pela tela do celular ou
computador, convidando as mulheres para o cuidado
de si, da saúde mental, para a conversa conjunta, mas
à distância, virtual, em rodas de cuidado e autocuidado
online. Cuidados permeados de afetos, fortalecimento
e resistência para continuarem na luta coletiva são as
mensagens que circulam nas rodas de autocuidado. E,
quando Adisa (2006) nos lembra sobre o estresse nas
mulheres negras, nós nos levantamos nas Rodas de
Cuidado e discutimos sobre o fato que:
154
do povo preto e como sistema universal de acesso que
pode garantir qualidade de vida e longevidade às pes-
soas desassistidas e sofridas pelas trajetórias de des-
gastes físicos e emocionais ao longo da vida. Sabemos
que parte significativa da população negra sofre de
comorbidades como pressão arterial, diabetes, AVC, e
como o histórico de estresse, perdas de várias nature-
zas, sofrimento psicoemocional impactam no corpo,
na saúde psíquica e espiritual, sobretudo das mulheres
negras (BRASIL, 2017; ADISA, 2006).
A história de abandono, desassistência, racis-
mo, injustiças, omissões a que vive a população negra,
e perpetradas estruturalmente com o aval do Estado,
tem acarretado muitas sobrecargas sobre o corpo e o
psicológico desse nosso povo. As raivas se presentifi-
cam nas histórias de várias famílias negras que sentem
as dificuldades de lidar com tantas opressões, desem-
prego, sonhos não realizados e racismo.
Audre Lorde (2019) afirma que as mulheres
negras respondem ao racismo com raiva. São mui-
tas raivas. E que podemos aprender a lidar com ela, a
raiva, a nos defendermos das opressões a partir dela,
a expressar nossos sentimentos, a reagirmos ao racis-
mo pela raiva. Raiva é diferente de ódio. O ódio vem da
opressão, da aniquilação, da violência, da dor que pre-
judica. A raiva, se trabalhada, pode ajudar a enfrentar
formas de opressão. E é nessa perspectiva que as Rodas
de autocuidado abrem espaço de escuta e de fala para
que a raiva não seja silenciada, não seja sufocada. E no
espaço coletivo, possamos pensar, juntas, o que que-
remos fazer com ela e como ela pode nos ajudar, como
mulheres negras que experimentam essas dores.
155
de Iracema em sua obra fotográfica artística
literária. São nossas manifestações corporais
que nos fazem Ser, Viver e Transcender. Peles
Negras, escuras, Tataranetas, bisnetas, netas de
Africanas, Quilombolas, Mães Pretas de lutas e
resistências.
Luciana Silveira
156
do GRUMAP educadora que projeta um futuro de um
novo tempo, tramado a partir de uma nova ordem so-
cial em que enxergamos a Unidade Básica de Saúde,
funcionando plenamente. Nesse tempo, as pessoas,
sobretudo as negras, empregadas, as crianças, e nos-
sas crianças negras vivendo a infância, tendo o direito
de brincar, de serem acompanhadas, acolhidas, ama-
das; as juventudes, em sua grande maioria, as pretas,
vivas, construindo e projetando o porvir e sonhando
sonhos que podem ser muito reais, ancestralmente e
no aqui e agora.
Aqui, resistir é criar e criar é transformar. A
vida e a resistência que se confundem, e, muitas ve-
zes, é necessário que se confundam para a própria so-
brevivência das mulheres, seja no enfrentamento do
autoritarismo do poder público, na busca de renda, na
relação familiar, nos embates com o tráfico de drogas,
na manutenção da atenção e carinho com o outro. As
mulheres no meio popular da cidade de Salvador mos-
tram que resistir é enfrentar a realidade e propor alter-
nativas para suas vidas e de seus próximos. É estarem
atentas às suas necessidades internas, ao subjetivo,
sem perder de vista “o mundo lá fora”, pois viver por
viver é acomodar-se à situação que lhe é destinada,
mas resistir para viver ou viver para resistir é apostar
na crença de que dias melhores virão.
Temos a certeza de que nossas ANCESTRAIS
estão muito ORGULHOSAS de todas NÓS. Estamos
SEGUINDO AS TRILHAS e TECENDO NOVAS TRILHAS.
Agora, cabe saudarmos com minutos de PALMAS
a ELAS e a TODAS NÓS. Salve, mulher preta! Salve,
GRUMAP!
157
REFERÊNCIAS
ADISA, Opal. Palmer. Balançando sob a luz do sol: Stress e
mulher negra. In.: WERNECK, Jurema, MENDONÇA, Maisa,
WHITE, Evelyn C. (Orgs.). O livro da saúde das mulheres ne-
gras. Nossos passos vêm de longe. 2 ed. Rio de Janeiro: Pallas/
Criola, 2006.
https://www.youtube.com/watch?v=95MZGzbJN1A
https://www.youtube.com/watch?v=sfQY92eH5Tc
https://www.youtube.com/watch?v=d5zthpnFCuE
https://www.youtube.com/watch?v=H7yH5tSTIls
158
AQUILOMB’ART:
A RESISTÊNCIA
FEMININA
CABULEIRA
Janice de Sena Nicolin1
Vanessa Cerqueira
161
questionamentos, das reflexões, interpretações e crí-
ticas ao racismo, sexismo e machismo, bem como é
capaz de mostrar por um rigor sensível as dinâmicas
da formação política de lideranças femininas para se
aquilombarem e, assim, fortalecerem os movimentos
sociais nas territorialidades negras.
E, muito mais do que uma narrativa, Aqui-
lomb’Art é um estilo de vida, poética na forma de luta,
cuja estética recriada da África-Mãe perdura com toda
vitalidade nos dias atuais. E, tal como a rainha Nzin-
ga criou o quilombo na floresta dos reinos Ndongo e
Matamba, atual Angola, lideranças feministas negras
contemporâneas recriam florestas e montam o acam-
pamento ativista contra o feminicídio e o genocídio da
população negra.
162
tuição Nacional de 1988, “Dos Direitos e Deveres In-
dividuais e Coletivos”, imprime que todas as pessoas
são iguais e têm direito à vida, à liberdade e à igualda-
de; sendo assim a ruptura desses direitos impulsiona a
montagem do equipamento quilombola.
Nzinga rejeitava o termo rainha, imposto pe-
los portugueses, sempre usou o termo Ngola, que sig-
nifica quem reina na língua africana quimbundo. Nas
sociedades tradicionais africanas, não há distinção por
gênero, este é um designativo do sistema de valores
simbólicos ocidentais universais e se incumbe de sub-
jugar, desqualificar e inferiorizar princípios e valores
simbólicos das sociedades tradicionais que são plurais.
Nas narrativas míticas ou mitos da cosmovi-
são africana, não há distinção de gênero entre entidade
masculina ou feminina, há entidade detentora dos po-
deres masculinos ou femininos; o gênero conduz aos
equívocos teóricos sobre as referências simbólicas das
sociedades tradicionais africanas, em suas diversas cul-
turais. O Projeto Oba dê Adê da Odeart (Quem reina está
com a coroa) é uma iniciativa criada, em 2009, para
mulheres negras do Cabula e entorno e faz jus à herança
de Nzinga, dando continuidade ao legado feminino.
Oyeronke Oyewumi (1997), antropóloga nige-
riana, afirma que a imposição da categoria gênero pela
dominação ocidental inglesa gerou construções sociais
inadequadas ao simbolismo existencial ioruba, cita o
exemplo da palavra omo, usado para pessoa masculina
ou feminina criança e não menino ou menina. Oyewumi
(1997) ressalta que na cultura iorubá há distinção ana-
tômica do sexo. Outro exemplo de termo submetido a
distorções ocidentais é oba, significa pessoa que reina,
não importa quem porta a coroa, pessoa feminina ou
masculina, o título será oba.
No Cabula, uma territorialidade de Salvador
que fundou um dos mais combativos quilombos contra
colonização, as heranças do aquilombamento expres-
sam a vivificação da sociabilidade quilombola com li-
deranças femininas negras do movimento social.
No século XIX, duas lideranças femininas se
163
destacaram na resistência quilombola de Salvador:
Zeferina e Nicácia. Zeferina, conhecida por portar um
arco e flecha, ia sempre à frente do grupo de rebelados.
Narrativas contam que, na sua última batalha contra
as tropas da província baiana, ela liderava mais de 50
homens, os quais também usavam arco e flecha na luta
pela liberdade. Ao portar o Ofá, arco e flecha na língua
iorubá, Zeferina imprimiu o sentido de omo-odé, cria
de Odé, princípio africano nagô da fartura, da guarda e
expansão de território protetor e provedor do seu povo.
Nicácia, sacerdotisa afro-brasileira, liderava
um forte séquito de insurgentes. Era muito respeitada
e temida pela polícia da província baiana, também ia à
frente do grupo, impulsionando-os à luta pela liberda-
de, fortalecendo o aquilombamento. Essas ancestrais
fincaram raízes na territorialidade Cabula. Nicácia ti-
nha um pouso, uma roça com axé plantado; Zeferina,
liderança do Quilombo Orobó, nas matas das Cajazei-
ras, tinha morada móveis no Cabula, lugar onde seu
corpo foi enterrado.
No pós-abolição, as casas de matriz africana,
candomblé, eram perseguidas e até fechadas na Bahia.
No Cabula, tivemos a liderança feminina negra atuante,
Maria Neném, Mameto Tuenda Kwa Nzaambi, ancestral
matriarca de Angola na Bahia que enfrentou a polícia,
deixou grande legado de ensinamentos ao movimento
social feminista negro, através da expressão “Cá te es-
pero”, dirigida às autoridades policiais de Salvador.
É importante ressaltar que o Projeto Oba dê
Adê da Odeart busca aproximar-se dos valores sim-
bólicos da ancestralidade africana com o uso do termo
Oba que não tem significado de gênero, visa destacar
que as lideranças femininas iorubás assumem o trono
do reino, portam Adê (coroa) e governam, ressaltando
que é preciso romper os equívocos coloniais.
164
rasga pedras e fere o chão com sua correnteza
translúcida.”
Lívia Natália
165
tar situações de racismo de maneiras especificamente
relacionadas a seu gênero” (CRENSHAW, 2002, s/d p.
09). Após esse breve histórico proponho, nessa sessão,
refletirmos sobre a importância do Movimento Femi-
nista Negro, na cidade de Salvador, Bahia. Além disso,
pensaremos, aqui, a arte, a poesia como ferramentas
de transformação social.
A poesia, para Audre Lorde (2020), não é so-
mente um jogo de palavras, é a destilação da experi-
ência. Para as mulheres negras, a poesia é uma neces-
sidade vital de nossa existência e não apenas um luxo.
Nossos medos, experiências diárias e resistências são
revestidas pelos poemas. Logo, a arte negra feminis-
ta é também um modo de resistência. O Aquilomb’Art,
nesse sentido, pensa a arte como ferramenta de trans-
formação social. Aquilomb’Art é, pois, um antídoto
contra essas discriminações que “operam juntas, li-
mitando as chances de sucesso das mulheres negras”
(CRENSHAW, 2002, p. 08).
Para Lorde, é como se toda mulher carregasse
em si a poesia. Ela contrapõe o pensamento de vida aos
moldes europeus, em que a vida é apenas um proble-
ma a ser resolvido. Para os patriarcas brancos apenas
as ideias nos libertam, o que invalida as subjetividades.
E quando entramos em contato com a nossa ances-
tralidade como uma consciência de vida, aprendemos
a apreciar nossos sentimentos e as fontes ocultas do
nosso poder, a partir disso surge o verdadeiro conhe-
cimento: “Sinto, logo, sou livre”.
É com essa perspectiva, de atenuar nossas do-
res e fazer ecoar nossas poéticas, que nasce o Sarau
Das Pretas Odeart. O sarau surge como uma proposta
para Agenda Julho das Pretas, em 2013, e se expande
ao levar a poesia negra feminina às comunidades peri-
féricas, especialmente, às encruzilhadas do Cabula. Os
saraus feitos por mulheres pretas surgem da necessi-
dade de termos espaço para fazer ecoar nossas dores
e afetos. Basta lembrar que, como qualquer outro am-
biente, as rodas de poesia, batalhas de rap ou Slams,
eram, majoritariamente, compostas e dominadas por
um público masculino.
166
Os Saraus e Slams feitos por mulheres surgem
e passam a modificar esse cenário, criando uma maior
diversidade nesses espaços. Hoje, de modo geral, há
muito mais saraus diversos que abrangem todos os
públicos. A poesia, para nós, feministas pretas, é tra-
tada como algo concreto, como um enfrentamento às
opressões que nos atingem. A poesia negra nos engaja
e às vezes nos salva até de nós mesmas. Logo, a poesia
é uma ferramenta que nos liberta, além de ser produ-
ção de conhecimento. Para nós, vida e poesia são in-
dissociáveis.
A poesia feita por mulheres pretas é arte, lin-
guagem e ferramenta cultural contra todo discurso
estereotipado e colonizado. É um dos modos que en-
contramos para romper e rasurar a estrutura sexista e
racista, pois a linguagem e a arte possuem um poder
transformador. Para romper com o colonialismo, não
podemos usar as ferramentas do colonizador. Por isso,
a existência da Literatura Negra Feminina é a nossa
ferramenta simbólica da luta socioexistencial.
O Sarau das Pretas é uma linguagem de for-
mação política para o feminismo negro no Cabula e em
Salvador, desde 2013. Ele reúne poetas feministas ne-
gras lésbicas, heterossexuais, bissexuais, transexuais
em rodas de poesias e Slams; estudiosas do feminismo
negro debatem os temas em rodas de diálogos, nas ofi-
cinas de arte, cantoras, atrizes, dançarinas e percus-
sionistas celebram a arte política da mulher negra.
O Julho das Pretas nasceu, em 2013, em Salva-
dor, e é um movimento realizado por mulheres negras
feministas para incidência política no Nordeste, gesta-
do pelo Odara - Instituto da Mulher Negra com ativi-
dades durante o mês de julho. A dinamização do Julho é
feita por organizações de mulheres negras e organiza-
ções mistas lideradas por mulheres negras que buscam
comemorar o 25 de julho, Dia Internacional da Mulher
Afro-latino-americana e Caribenha e Dia Nacional da
Mulher Negra no Brasil, celebrando a luta por igualdade.
O Sarau das Pretas é um grande palco de aqui-
lombamento feminino, é uma das ações do Projeto Oba
167
dê Adê, de empoderamento das mulheres negras.
168
de Fanon (1968), e da descolonização da educação, an-
corada na episteme africano-brasileira de Narcimária
Luz (2000), já que a presença constante de mulheres
negras na Odeart denunciava o racismo, compreen-
dendo que “a violência racial resulta em prejuízos ir-
reversíveis” (BRITO; NASCIMENTO, 2013), bem como
o machismo e o sexismo.
A educação é a nossa estratégia de luta: cursos
de qualificação de artesanato, corte e costura e rodas
de diálogos por onde realizamos constantes trocas de
saberes com mulheres negras. Em 2015, surgiu a par-
ceria com o Odara - Instituto da Mulher Negra, através
do Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não
Chegar, iniciativa do Odara de acolhimento às mães de
jovens negros vítimas do genocídio. Esse projeto tem
parcerias com mais cinco localidades de Salvador.
O projeto Minha Mãe Não Dorme é muito im-
portante para o fortalecimento de mais de 100 mulhe-
res acolhidas ao ano pelo Oba Dê Adê. Ele fortaleceu a
ancoragem teórica com uso dos termos “mulher ne-
gra” e “feminismo negro” nas rodas de diálogos, an-
corados no pensamento de Luiza Bairros (1995) e Bea-
triz Nascimento (1976).
Cláudia Gomes, uma das mulheres acolhidas
pela Odeart, em 2016, afirma: “nas rodas tinham mui-
tos temas bons para nós, mulheres negras, que vinham
de situação difícil de violência, como eu que perdi um
ente querido por arma de fogo”. Tinham dores, mas
encontravam alegria: “antes das rodas tinham ativida-
des para nos alegrar, brincadeiras, atividades que faci-
litavam o nosso conversar, daí cada uma falava de suas
vivências” (GOMES, 2021). Elisângela Gomes do Nasci-
mento, também acolhida pelo programa afirma: “É um
trabalho sério, nos oferece cursos, oficinas de qualifi-
cação para fonte de renda, rodas de conversas que nos
dão saberes sobre nossa cultura de gente negra, mexem
com nossa autoestima e nos deixa pra frente”.
Assim, se dá a educação para o feminismo ne-
gro com mulheres do Cabula, o qual ganhou corpo ao
promover diálogos com organizações do bairro, in-
169
clusive com lideranças femininas da Rede Cabula Vive,
iniciativa com 25 organizações da região, impulsiona-
da pela Odeart, em 2018, com apoio do Odara - Institu-
to da Mulher Negra e Centro de Artes e Meio Ambiente
– CAMA. Nessa Rede, a Odeart está em constante diá-
logo de formação política sobre o racismo, machismo
e sexismo.
Três iniciativas foram importantíssimas para
a expansão da luta feminista negra no Cabula: Agenda
Julho das Pretas (2013, aos dias atuais), a organiza-
ção da Rede de Mulheres Negras do Norte e Nordeste
(2013), cujas lideranças expressivas são Lindinalva de
Paula e Sueli Santos, e ainda a Marcha das Mulheres
Negras do Brasil (2015) que ocupou Brasília com mais
de 100 mil mulheres pretas.
Os conceitos de gênero e raça, mulher negra
e ativismo feminista, a partir das obras de Beatriz
Nascimento e Luiza Bairros, fortalecem nossa “pe-
dagogia negra” (LUZ, 2000) de orientação dos cuida-
dos com o ori, cabeça na língua ioruba, parte do corpo
importante para formação da pessoa, nessa situação,
para mulher negra.
Nossas experiências de formação política co-
meçam com acolhimento: “quando cheguei na Odeart,
em 2016, estava sem força, muitas portas fecharam
para mim, lá vi a Andréa, que me recebeu sorrindo,
disse que o curso estava completo, mas ia encontrar
um lugar para mim. Estou até hoje por lá”, relembra
Cláudia Gomes.
O curso é um “abre alas” para mobilização de
mulheres negras, Cláudia Gomes hoje é uma das mu-
lheres mais atuantes no Cabula, uma companheira, na
Odeart, na luta por igualdade de gênero e raça. Ela par-
ticipa do acolhimento das recém-chegadas na inicia-
tiva Oba Dê Adê, em parceria com o Projeto Minha Mãe
não Dorme.
Essa mesma perspectiva podemos observar na
fala de Zenivan Guimarães, mobilizadora das mulhe-
res, ao falar da pedagogia negra de formação política
feminista no Cabula:
170
O Projeto Minha Mãe não dorme na Odeart
abriu meus horizontes e de todas as mulheres
que estavam comigo, a didática das rodas de
conversa e das aulas alternativas em vários lu-
gares com mulheres negras, a participação em
eventos com lideranças e intelectuais negras nos
ensinaram sobre o que é ser mulher negra, sobre
racismo, machismo, resistência da mulher ne-
gra, empoderamento, isto tudo nos enriqueceu
de conhecimento, nos fez crescer e a Odeart nos
proporcionou isto no Cabula. Somos mulheres
empoderadas. (GUIMARÃES, 2021, entrevista)
171
o tempo, foram entendendo o jogo ardiloso racista,
sexista e machista, vendo como o racismo opera na
vida das mulheres negras, e conhecendo as histórias
de luta da ancestralidade africana feminina e suas
resiliências.
Conhecer a história do Cabula, como o palco de
lutas pela liberdade, liderado por duas bravas mulhe-
res negras do lugar, encheram-nas de orgulho: “Ca-
bula, um lugar histórico, iniciado por quilombos, tem
a comunidade com maior população de negros de Sal-
vador, têm mulheres negras guerreiras que lutaram”
(GOMES, 2021, entrevista).
O nome Cabuleiras vem desse conhecimento e
reconhecimento do rico legado de luta africana e afri-
cano-brasileira do lugar localizado no “miolo de Sal-
vador. No Oba dê Adê, essa história de resistência negra
e de resiliência é contextualizada, conhecendo o pas-
sado se faz o caminho de volta a nós mesmas, a nossa
descendência africana.
Rita de Cassia Araújo, mobilizadora do projeto,
expressa seu orgulho de pertencer ao Coletivo Cabulei-
ras. Após quatro anos do seu acolhimento na Odeart,
ela assegura:
172
achei importante, é muito bom se sentir impor-
tante. Nas Cabuleiras me sinto importante, sei
que aquelas mulheres que estão ali junto co-
migo são importantes e que elas pensam assim
de mim: “Você pode”. (NASCIMENTO, 2021,
entrevista)
173
REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de
novembro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28
ago. 2021.
174
Caminhos de Abundância:
as Economias Popular
e Solidária e sua
importância no fomento
da Sustentabilidade nas
Organizações Sociais
Lídia Rafaela Barbosa dos Santos1
177
sempre juntas, fortalecendo as origens, revivendo e
resignificando estratégias e tecnologias de sobrevi-
vência ancestral. Aquele ano de 2015 possibilitou en-
tender as ações solidárias enquanto instrumento de
luta e resistência. Começou com a escuta ativa, com o
apoio na mobilização de recursos e desembocou num
lindo show que reuniu grupos potentes e aguerridos
com a luta em prol das mulheres e pelo bem viver. Es-
tar fora da comunidade, realizando uma ação coleti-
va tão significativa com homens e mulheres de outras
comunidades, possibilitou perceber que o quilombo
independe do território, pode ser erigido em qualquer
lugar, assim haja desejo e disposição.
Após a mobilização de recursos, era tempo de
marchar. Andar de avião, receber o aconchego de mu-
lheres de gerações diferentes e de lugares tão diversos,
reenergizou. Em mãos, um cartaz anunciava: “Mu-
lheres negras: olhando adiante e seguindo em frente”.
Milhares de mulheres tomaram como uma ordem. Os
breves diálogos evidenciavam os mais variados sota-
ques e vivências. Porém, também deixavam explícitas
características comuns: as dores, a força e a esperança.
Mulheres plurais caminhando juntas.
O retorno para casa foi marcado pelo misto
entre o senso de responsabilidade, que fez a bolsa ga-
nhar contornos de mala, e a sensação de ter sonhado.
Aquela quarta-feira tinha os tons cinzentos da “baia-
nidade nagô” e o desejo de vencer e viver festejando.
O quilombo edificado, nesse processo, foi reavivado na
vida de cada um; ele era a morada dos acordos firma-
dos coletivamente e regia a vida individual e coletiva.
Já não era possível ignorar os fatos e o enfren-
tamento virou uma constante. A prática de trabalho
ganhou ingredientes importantes: o combate ao ra-
cismo e a edificação dos quilombos. Um trabalho ár-
duo que propiciou a reflexão quanto à importância das
economias plurais no desenvolvimento das localida-
des e dos seus membros, o estreitamento de laços com
comunidades e pessoas, a ampliação do olhar sobre as
diversas possibilidades de existir, e ainda ampliar o re-
pertório de ações e o conhecimento sobre as comple-
178
xidades de viver em comunidade e empreender lutas
coletivas. No documentário Orí (1989), Beatriz Nasci-
mento afirma:
179
era ganhadeira, lavava roupa de ganho e, com esse di-
nheiro, conseguiu adquirir um terreno, junto com o
marido que era pedreiro, construiu a casa que servia
de lugar para a criação dos seus seis filhos. Essa casa
abrigava também um quintal produtivo, onde plan-
tava e criava os animais que eram doados, vendidos e
trocados com os vizinhos. Anos depois, descobri que
essas ações recebem o nome de agricultura familiar.
A senhora Maria da Luz também comandava uma es-
pécie de cooperativa que mobilizava as trabalhadoras
e suas famílias residentes da Rua Irapuan, em Cosme
de Farias, Salvador.
Descobrir que o que minhas avós praticavam,
junto com suas companheiras de lutas diárias, era
Economia Solidária, mudou totalmente a forma como
eu enxergava as políticas públicas sobre essa temáti-
ca. Na universidade, o professor um dia explicou que,
quando se trata de políticas públicas, existem dois ti-
pos de teorias: a teoria exposta, a qual em linhas gerais
indica o que e como deveria acontecer; e a teoria em
uso, que indicava o que e como de fato acontece. Sobre
as Políticas Públicas, Boullosa (2014, p.144) afirma:
180
ações, dimensões e princípios são diariamente modi-
ficados e resignificados no território, por seus mem-
bros e nisso reside o diferencial, a grandiosidade e as
potencialidades dessa economia, que, embora receba
aqui a denominação de solidária, pode ser apreendida
por economia feminista, social, economia das trocas,
de terreiro e tantas outras. Sem perder o objetivo prin-
cipal: a valorização do ser humano, suas relações e o
desenvolvimento do território.
A experiência adquirida na atuação comuni-
tária, somada às experiências acadêmicas e profissio-
nais, possibilitou criar estratégias de sobrevivência
após a perda do emprego fixo. Empreender foi a saída
mais viável. Passei a prestar os serviços que outrora
realizava, agora de maneira autônoma, e em formato
de consultorias. Tem sido um grande desafio, princi-
palmente firmar contratos e garantir a qualidade dos
trabalhos prestados. A atuação em rede tem possibi-
litado ampliar os territórios de atuação e fortalecer as
ações individuais sem perder de vista a luta coletiva.
Aqui, aproveito para saudar o Coletivo Pérola Negra
que me acolheu neste ano de 2021.
Em busca de aprofundar conhecimento sobre a
legislação de combate ao racismo, me inscrevi no cur-
so de ativismo, oferecido pelo Instituto Odara, e con-
segui a vaga. Foi um momento de grande alegria. As
aulas eram grandes rodas de trocas e curas. Era como
se novamente empunhássemos as bandeiras que con-
clamavam as mulheres negras a olhar adiante e seguir
em frente. Escutar e ler sobre Beatriz Nascimento pos-
sibilitou refletir sobre as potencialidades ao passo que
imprimia um estado de urgência. O curso da Escola de
Ativismo Beatriz Nascimento foi realizado online e nos
reconectou com mulheres diversas. Era como reviver a
Marcha a cada encontro.
As aulas sobre ativismo digital contribuíram
para a mudança no uso das redes sociais, saindo do uso
passivo, para o uso ativo, ao compartilhar informa-
ções relevantes sobre as negritudes, visando romper
as bolhas e os algoritmos. As aulas sobre direito sexual
e reprodutivo me possibilitaram qualificar o discurso,
181
outrora impregnado de preconceitos. Aprofundar co-
nhecimento sobre racismo estrutural propiciou uma
revisão no meu fazer trabalho: era urgente identificar e
combater a reprodução diária do racismo, começando
sempre comigo. Mas, foi na construção do projeto po-
lítico de nação das mulheres negras que pude ampliar
meu olhar sobre as possibilidades de atuação. Após a
finalização do curso, ingressei num curso de pós-gra-
duação, em que estou estudando sobre gestão estraté-
gia de negócios e serviços.
Tal qual preconiza as ações da educação po-
pular, a EBN, ao mesmo tempo em que possibilitava
intenso contato com as teorias, propiciava os exercí-
cios vivenciais através dos relatos compartilhados e o
incentivo a pensar soluções. E foi assim que surgiu o
desejo de realizar um projeto que auxiliasse no reco-
nhecimento e no fortalecimento das práticas econômi-
co-solidárias nas organizações sociais, como também
pudesse pensar no aprimoramento dessas práticas,
a luz dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS), visando contribuir para a sustentabilidade das
organizações e dos seus membros.
Mesmo pensado a partir da minha vivência, o
projeto contou com a colaboração de duas companhei-
ras potentes com as quais já havia feito trabalhos em
grupo. A princípio, o projeto seria aplicado exclusiva-
mente em organizações sociais vinculadas às religi-
ões de matrizes africanas e, por isso, se fez necessário
buscar o apoio de Maria Aparecida, praticante da reli-
gião que orientou sobre como tratar sobre a temática.
Quanto aos recortes e à análise crítica, a companheira
Viviane Marcelino teve importância decisiva.
Apesar de estarmos em grupo, o processo não
foi de fácil construção, tanto Viviane quanto Apare-
cida também estavam envolvidas em seus projetos
pessoais e em outros projetos coletivos, o que, muitas
vezes, tornava difícil realizar uma simples reunião. As
tecnologias ajudaram e pudemos alinhar as informa-
ções sobre esse e outros projetos. Após a apresentação
final, ocorreu a sugestão de ampliar a implementação
do projeto para as organizações sociais sem vínculos
182
religiosos. A sugestão foi acatada e hoje está em cur-
so a implementação do projeto em uma organização
focada na inserção sócio produtiva de jovens com es-
pectro autista.
As aulas da Escola Beatriz Nascimento gera-
vam inquietações e, em uma delas, surgiu a pergun-
ta geradora do projeto político de nação das mulheres
negras: de que maneira as práticas de economias po-
pulares e solidárias podem contribuir para a susten-
tabilidade das ações desenvolvidas pela e nas organi-
zações sociais?
A resposta a essa questão, requer, antes de
tudo, o empenho de ampliar o campo de visão, mirar a
realidade imposta e enxergar além dela. A sobre(vivên-
cia) em comunidade impõe o contato com realidades
adversas ao mesmo tempo em que apresenta inúme-
ras possibilidades. Uma das memórias mais patentes
vem a ser justamente a construção das comunidades
periféricas. Em muitos casos, a população era despe-
jada de uma região e os moradores tinham que migrar
para outros espaços e reconstruir a vida. A construção
coletiva de casas, os processos de urbanização das co-
munidades e o compartilhamento de recursos em prol
da vida coletiva era algo natural.
Ainda hoje, o cuidado coletivo com crianças
(levar/ buscar da creche e escola), a construção e re-
forma coletiva de casas (digitório), ações de poupança
(caixa), as trocas de produtos e serviços, principal-
mente, entre as mulheres (troca de serviços de beleza
por itens de perfumaria, roupas e acessórios) e o em-
penho da palavra, seja adquirindo algum item empres-
tado com o vizinho ou mesmo comprando fiado no co-
mércio local. As situações expostas ajudam a ilustrar o
diferencial das relações econômicas comunitárias que
levam em conta as relações sociais estabelecidas, o ser
humano, suas necessidades e potencialidades.
O sistema econômico capitalista focado em
acumular riquezas contribui para a naturalização da
dimensão econômica concentrada nos meios e nos fins
que geram lucro. Isso ocorre ao desconsiderar as re-
183
lações significativas estabelecidas nas comunidades e
o fato de que, para que ocorra a produção, circulação,
distribuição e consumo de bens e serviços, as rela-
ções sociais precisam existir. Segundo Polany (2000),
a economia estava enraizada no sistema social, sendo
impossível separá-la mentalmente de outras ativida-
des societárias.
Assim, a Economia Solidária é apresenta-
da como alternativa ao Sistema Capitalista, trazendo
consigo a prática, princípios e valores coletivos e mais
igualitários para organizações, quanto à sua gestão,
sua produção e comercialização. Uma economia cole-
tiva, baseada na solidariedade, democracia, comércio
justo e solidário, consumo consciente, cooperação, va-
lorização do ser humano e coletivismo, como afirmado
por França Filho e Laville (2004).
184
lacionam baseados nos princípios democráticos
e igualitários da auto-gestão, promovendo a
solidariedade e a justiça entre os membros da
organização e todos os demais envolvidos no
sistema produtivo. (SINGER, 2003, p. 116)
185
espaço Coletivo de Comercialização realizado pelo Pro-
jeto Fantástico Mundo Autista em parceria com a Dibu-
tu: Assessoria Técnica, tem sido realizado com recursos
próprios e com apoio de parceiros.
186
no bairro do Garcia, mas o bazar já foi realizado na Feira
de São Joaquim, na Universidade Federal da Bahia, até
antes da pandemia; e hoje, tem sido realizado no Casa-
rão da Diversidade, situado à Rua do Tijolo, n° 08, Cen-
tro, Salvador. Além do bazar, são realizadas também
rodas de conversas em que são discutidas as questões
relativas às políticas de saúde e temas interseccionais.
187
vidades, coletando os materiais recicláveis nos prédios
situados no entorno da comunidade e nos estabeleci-
mentos comerciais.
188
catálogo de negócios da comunidade: o Mutirão. Muitos
dos jovens envolvidos nesse projeto integram o quadro
de funcionários de empresas e estão empreendendo es-
forços diários para transformar suas realidades.
189
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen,
2019. 152p. (Feminismos Plurais / coordenação de Djamila
Ribeiro).
190
PARTE III
Comunicação e Incidência Política de
Mulheres Negras
192
PRO MUNDO FICAR
ODARA: Comunicação
e incidência política a
partir do Programa de
Comunicação do Odara -
Instituto da Mulher Negra
1 Alane Reis e Naiara Leite são jornalistas. Ambas possuem mestrado em comuni-
cação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), são militantes da
Revista Afirmativa e do Odara - Instituto da Mulher Negra.
2 Trecho do texto de Néia Daniel, utilizado por Luiza Bairros, no artigo Lembran-
do Lélia Gonzalez, 1998.
193
Inspiradas na capacidade criativa afrodias-
pórica de IMAGINAR, convidamos você a sentar nesta
roda, em formato de texto, dedicada a todas as mulhe-
res negras que, mesmo muitos passos atrás da bran-
quitude, no que diz respeito ao acesso aos meios e às
tecnologias da comunicação e da informação, vêm for-
jando formas de se apropriar de ferramentas capazes
de produzir e reverberar narrativas por emancipação e
disputa de poder.
As reflexões trazidas aqui são fruto de leitu-
ras e diálogos travados em torno dos movimentos de
mulheres negras que constroem a agenda política pelo
direito à comunicação, à informação, às tecnologias e
à memória; nascem do trabalho cotidiano do Progra-
ma de Comunicação do Odara - Instituto da Mulher
Negra, ao longo dos últimos 11 anos; brotam das ideias
elaboradas por mulheres e homens negros no Brasil,
que há pelo menos dois séculos de história vêm usan-
do a imprensa negra, e mais recentemente a comuni-
cação negra e feminista, como um campo poderoso de
defesa da humanidade e dos direitos da gente negra
escravizada, empobrecida, explorada e coisificada na
diáspora africana.
Você reparou que a nossa conversa começou
com um trecho de citação de Néia Daniel, mencio-
nada por Luiza Bairros, em referência a Lélia Gon-
zalez, como a grande Amazonas cuja voz e palavras
foram responsáveis por contar histórias de amor, luta
e liberdade para a população negra? Escolhemos essa
trança entre as ativistas e pensadoras Néia, Luiza e
Lélia (que chamamos pelos primeiros nomes exclu-
sivamente pelo sentimento de intimidade que temos
com suas palavras) para iniciarmos esta prosa sobre
comunicação e incidência política, falando da impor-
tância de nossas histórias, a partir das característi-
cas e dos efeitos de um conceito-fenômeno chamado:
Narrativa.
Ao lançar mão da poética de Néia, para abrir o
artigo sobre Lélia, Luiza apontou uma luz para os ca-
minhos de reflexão sobre a força inquebrantável que
Narrar tem para nós, povos negros, que, durante o
194
processo de colonização, escravização e constituição
das sociedades modernas e contemporâneas, fomos
alijados do direito de enunciar. E é refletindo sobre
a força e o poder das narrativas das mulheres negras
que iniciamos esta conversa, dedicada a todas as mu-
lheres negras que ao longo da história do Brasil vêm
desafiando a hegemonia branca patriarcal a partir do
exercício de comunicar.
As narrativas estão presentes em quase todas
as formas de comunicação, e são matéria prima do
todo conhecimento sistematizado e perpetuado em
qualquer sociedade. Narrar, para nós, seres humanos,
é característica inerente do existir em contato com
outros. Narrar nos ajuda a gerar sentido sobre a vida
e o mundo, nos ajuda a refletir e a entender. Narrar
é característica inerente da própria fala e de todas as
outras formas de linguagem. A possibilidade de nar-
rar não é exclusiva para as pessoas falantes, ouvintes,
ou letradas. São inúmeras as possibilidades de cons-
tituir narrativas.
Quando escrevemos, falamos, desenhamos,
usamos gestos, sinais ou qualquer outra linguagem
para narrar sobre um fato do presente ou do passado,
recriamos aquele fato a partir do nosso olhar e das re-
ferências, subjetividades individuais e coletivas, por
onde experimentamos o fato narrado.
Esse pensamento, quando alicerçados nas
reflexões sobre a comunicação elaboradas pelos mo-
vimentos de mulheres negras, aponta para a impor-
tância das nossas construções narrativas, visto que o
compromisso por recontar os processos de violência
e resistência da população negra no Brasil atravessa
a própria história dos movimentos negros brasileiros.
Além disso, a narrativa como o elemento fundamen-
tal da produção de sentidos, dá o tom de como o fato
vai ser posto em comum e pode provocar sentimentos,
curiosidades, identificação ou repulsa, por exemplo, às
denúncias de situações ou práticas racistas e sexistas.
O Instituto Odara, como uma organização negra
feminista, centrada no legado africano, aposta na força
195
da palavra e da narrativa como estratégia para conquis-
tar mentes e corações para a perspectiva revolucionária.
Comunicar por uma sociedade antirracista, antisexista
e de Bem Viver, é a própria missão dessa organização,
a qual defende que comunicação está em tudo, e, diante
das desvantagens que possuímos em relação à disputa
de poder na sociedade, a possibilidade de comunicar e
de ecoar nossas narrativas é o nosso maior poder na luta
por direitos e pela defesa da nossa humanidade.
É partindo dessa concepção que pensamos a
incidência política do Odara, e, ao idealizarmos a Es-
cola de Ativismo e Formação Política para Mulheres
Negras - Beatriz Nascimento, compreendemos que
Comunicação e Incidência Política precisaria ser um
componente curricular fundamental na formação das
ativistas negras. E, assim, ocorreu nas Turmas 1 e 2 da
Escola Beatriz Nascimento (EBN), ao longo dos anos de
2020 e 2021. As reflexões aqui expostas também foram
lapidadas a partir dos encontros e trocas com as duas
turmas de mulheres negras da EBN. Nesses encontros,
refletimos sobre: “O que é comunicação para incidên-
cia política das mulheres negras?”; “Como se faz esse
tipo de comunicação?”; “Quais condições temos de fa-
zê-la?”; “Como tocar mais e mais mulheres negras, e a
sociedade em geral, com essas reflexões?”.
Você que chegou até aqui, talvez esperasse um
texto mais direcionado à construção de respostas para
essas perguntas a partir das práticas e dos conceitos
que costumamos encontrar nos termos “Comunicação
e advocacy”. Não deixa de ser, mas começou antes e vai
mais além. Como mulheres negras ativistas a partir da
tradição cultural dos movimentos negros brasileiros,
temos um compromisso fundamental com o Tempo
e a Memória, que nos obriga, para este debate, voltar
um pouco na história para imaginarmos o Futuro que
queremos, tendo a comunicação social como terreno
de disputa política.
196
Histórico da Comunicação feita pelos movimentos
negros e pelas mulheres negras no Brasil
197
Figura 1: Manuscrito de Búzios
198
grenta disputa, culminando no fim da escravidão e na
independência da colônia francesa.
Décadas depois, em 1833, na cidade do Rio de
Janeiro, surgiu o Jornal O Homem de Cor, considerado
o primeiro veículo da imprensa negra brasileira, orga-
nizado por homens negros livres. O veículo se concen-
trava em tratar de assuntos relacionados aos direitos
das pessoas “de cor” livres ou libertas no Brasil, país
cujo regime de escravidão imperou até 1888. O pas-
quim foi estudado por Ana Flávia Magalhães Pinto
(2010) no conjunto dos sete jornais da imprensa negra
no Brasil, no século XIX, encontrados e analisados pela
autora. Segundo Pinto (2010):
199
Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.
Pires (2006) nos conta que invariavelmente as asso-
ciações paulistas investiram esforços coletivos e indi-
viduais de negros letrados e profissionais liberais – em
maioria, para criarem jornais de imprensa negra. O au-
tor menciona 35 jornais atuantes naquele estado entre
1915 e 1963.
200
mentos de suas atuações. Essa prática comunicativa
são os primórdios da incidência política negra, atra-
vés da comunicação no Brasil.
Durante o fim da primeira metade do século
XX, mais precisamente em 1948, destacamos a im-
portância do Jornal Quilombo. Surgido no contexto de
atuação do Teatro Experimental do Negro (TEN), no
Rio de Janeiro, O Quilombo tinha como editor, o pri-
meiro negro senador da república no Brasil, Abdias
Nascimento. O jornal circulou por dois anos, ficou
conhecido como um dos mais importantes jornais da
luta negra da época e destacou-se pela expressiva par-
ticipação das mulheres na sua manutenção. É, nessa
época, aliás, que começa a aparecer o lugar social das
mulheres negras como produtoras de informação na
imprensa negra, outrora invisibilizada entre os “Ho-
mens de Cor”.
201
A pesquisadora Joselina Silva (2017) reforça
que a década de 1980 foi um período significativo para
visibilização do pensamento das mulheres negras em
periódicos negros de ampla circulação no país. A au-
tora também revela que os jornais publicados pelo
movimento negro, na época, deixavam manifestos os
inúmeros atos liderados pelas mulheres negras em di-
ferentes pontos do Brasil.
202
ricos que costumeiramente não eram debatidos.
Bentes (1986) rebate tal argumento que em sua
visão baseia-se na perpetuação do imaginário
onde a mulher é representada através de le-
tras de músicas, como objeto sexual. A tese do
Prof. Pinsky creio ser discutível, não há dúvidas
de que as escravas foram moral e sexualmente
violentadas. Mesmo que se leve em conta que
na África as relações eram poligâmicas (ao que
tudo indica), é difícil se acreditar que as escra-
vas teriam com os senhores o mesmo “desem-
penho”, a mesma “naturalidade” com que se
relacionava com seus companheiros na África.
Durante as discussões argumentei que seria
temeroso buscar a origem do mito nas negras
que se “insinuavam”, já que seria a “minoria
selecionada” ... Creio que todas as vezes em que
as teorias apontarem na direção em que nos
coloca como principais agentes de nossas pró-
prias“desgraças”, deveremos ir mais fundo nos
questionamentos. (BENTES, 1986 apud SILVA,
2017, p. 9)
203
mesmo tempo em que os periódicos trabalhavam para
divulgação da ação política das organizações negras
e dos seus\suas expoentes, eles serviam como espa-
ço para apresentar e problematizar os desafios das
construções políticas presentes nos cenários da época,
como foi o caso da ausência de reconhecimento da luta
das mulheres negras e de enfrentamento ao racismo
para o movimento feminista branco do período.
Os estudos de Ana Angélica Sebastião (2007)
nos mostra que entre 1991 e 1995, o Geledés - Insti-
tuto da Mulher Negra produziu o Caderno Geledés,
uma revista dedicada a aprofundar temas diversos sob
a perspectiva das mulheres negras. A organização se
tornou uma importante referência da mídia produzida
por mulheres negras no Brasil, produzindo outras pu-
blicações ao longo de sua história e mantendo um site
de grande circulação, o qual ainda funciona, nos dias
atuais, como uma plataforma de publicação do pensa-
mento crítico negro no Brasil.
204
distribuído gratuitamente, com notícias e reporta-
gens sobre a temática da mulher negra e da popula-
ção afro-descendente.
205
Figura 5: Capa da Revista Eparrei!, maio e junho de 2014
206
Figuras 6 e 7: Site Blogueiras Negras e Revista Afirmativa
207
Ao longo dos anos, nossa comunicação foi se
construindo como o coração da militância que trava-
mos. Dessa forma, além de produzir as ações de asses-
soria institucional, nosso Programa de Comunicação
tem como principais objetivos:
208
africana, “palavra tem poder” de gerar, de atrair, de
conclamar. Entendemos a palavra como arma potente
nos ouvidos de quem sequer consegue nos entender.
Consideramos aqui a palavra como base da narrativa;
e a narrativa, como dito, é a matéria prima do conhe-
cimento e da comunicação.
Orientadas por essa perspectiva do poder das
palavras e das narrativas, cada ação, peça e conteú-
do de Comunicação do Odara são cuidadosamente
construídos com zelo aos sentidos que podem gerar,
a partir de algumas provocações básicas: Quais nar-
rativas e discursos estão em voga em torno do fato
que queremos comunicar? Para quais públicos nós
queremos comunicar? Quais discursos e abordagens a
nossa narrativa precisa conter para visibilizar o nos-
so ponto de vista sobre aquele fato? Quais palavras e
signos sobre o fato que queremos comunicar acionam
referências anteriores dos nossos diferentes públicos,
e como podemos usá-las para conquistá-los para o
nosso ponto de vista?
Partimos dessas perguntas para o desenvolvi-
mento das nossas ações de comunicação de incidência
política, tendo a noção primordial que tudo que cons-
truímos, enquanto tática de luta política, disputa com
as grandes estruturas de comunicação hegemônica, as
quais historicamente construíram imaginários sociais
negativos sobre as mulheres negras. Uma boa referên-
cia de como esses imaginários atuam está no conceito
de Imagens de Controle (controlling images) de Patri-
cia Hill Collins (2010).
Collins (2010) usa o termo Imagens de Contro-
le para se referir aos estereótipos e às representações
negativas e subalternizadas das mulheres negras na
mídia hegemônica. Para a autora, as imagens de con-
trole são designadas para mascarar o racismo, o sexis-
mo, a pobreza e outras injustiças sociais, fazendo-os
parecer natural, normal e parte inevitável do cotidiano.
Collins (2016) também sugere que as imagens de con-
trole devem ser contrapostas pelas mulheres negras
a partir do agenciamento das imagens que desejamos
produzir sobre nós.
209
Entendemos, então, que a nossa comunicação, a
qual defende os direitos e a humanidade da gente negra,
bem como a tomada de poder das mulheres negras para
conduzir a sociedade rumo ao Bem Viver, está em cons-
tante disputa de narrativas e imaginários com os gigan-
tes da comunicação hegemônica branca e patriarcal.
Talvez você esteja pensando: “Mas essa dispu-
ta é desleal e impossível de ser vencida”. E nós te di-
remos que é desleal e desproporcional, como sempre
foi, mas sendo a comunicação um elemento primordial
da cultura, e sendo a cultura um campo de possibili-
dades e transformações, nada está perdido. Não cabe
aqui o pessimismo, justamente porque é no campo das
disputas de narrativas que os movimentos negros no
Brasil alcançaram as principais vitórias.
É vitória, por exemplo, a desarticulação do
discurso da falsa Democracia Racial Brasileira, para o
estabelecimento de um cenário em que a mídia hege-
mônica, em geral, assume a existência do racismo en-
quanto estrutural e cultural no Brasil. É vitória, tam-
bém, que cada vez mais pessoas negras conheçam e se
compromentam na reverberação das nossas memórias
de luta, aqui expostas a partir do breve histórico da
imprensa negra e negra feminista no país.
Como a hegemonia está atenta às mudanças da
cultura para se perpetuar, vemos cada vez mais pesso-
as negras nos veículos hegemônicos, o que muitas ve-
zes pode ser encarado como vitória, e de fato é. Porém,
é sempre necessário cautela e cuidado ao analisarmos
essas presenças negras nas mídias hegemônicas jus-
tamente porque essas instituições estão se renovan-
do a partir da incorporação minoritária, e, sobretudo,
controlada, de pessoas negras em seu quadro de repre-
sentações, justamente como estratégia de proteção às
denúncias cada vez mais fortes do racismo na mídia e
na sociedade em geral.
Seguindo a nossa prosa, daqui em diante, gosta-
ríamos de compartilhar alguns exemplos da produção de
comunicação de incidência política, construída a partir
dos quatro objetivos do nosso programa de comunicação.
210
O Julho das Pretas
211
que seja possível falar por nós mesmas, do nosso jeito,
com nossas palavras, com a radicalidade que travamos
nossa luta. É possível conhecer melhor a história do
Julho das Pretas no site do Odara6.
Em 2021, oito anos depois da criação Julho das
Pretas como campanha de incidência política, quando
chegamos na 9ª edição, foi interessante perceber como
diversos setores da sociedade, tais como empresas
privadas, governantes, setores da mídia hegemôni-
ca, artistas e personalidades que não necessariamente
possuem engajamento com o combate ao racismo ao
longo do ano, fazem ações no Julho das Pretas. Ava-
liamos o uso do nome e da marca do Julho, por estes
seguimentos, como estratégia de apropriação e esva-
ziamento de nossas agendas, ao tempo que tentam se
estabelecer, de maneira superficial, como antirracis-
ta, visto que cada dia mais o capitalismo e seus sujei-
tos hegemônicos acionam o discurso da “diversidade”
como estratégia de marketing.
Vale relembrar que, em 2015, o Instituto Oda-
ra e o Movimento de Mulheres Negras da Bahia lançou
carta pública intitulada “PELA AUTONOMIA DO MOVI-
MENTO DE MULHERES NEGRAS – O JULHO DAS PRETAS É
NOSSO”7, quando denunciou a Secretaria de Promoção
da Igualdade Racial da Bahia (SEPROMI), que se apro-
priou indevidamente da marca e história de construção
do “Julho das Pretas” na Bahia. Além de questionar o
uso indevido da marca do Julho das Pretas, a carta tam-
bém questionou o papel da Secretaria e a desatenção
às demandas das Mulheres Negras no estado da Bahia,
que clamam por criação de políticas públicas em res-
posta urgente ao crescimento da violência doméstica e
feminicídio no estado, à violência contra a juventude,
212
falta de moradia, trabalho, educação, entre outras.
O documento é importante para reafirmar a
autonomia política das mulheres negras, mas também
é apropriado para que os gestores públicos e a socieda-
de em geral reflitam sobre a urgência da incorporação
verdadeira de políticas públicas para o enfrentamento
do racismo e das diferentes opressões que atravessam
a vida da população negra e das mulheres negras.
Entendemos que não é possível que os orga-
nismos de Estado se comportem como movimentos
sociais e sigam um fluxo marqueteiro se apropriando
de nossas campanhas. Em 2015 dissemos à SEPROMI e
ao governo do estado da Bahia: Secretarias de Estados
criadas para combater o racismo e defender as vidas
negras precisam agir através das ações políticas que
cabem ao Estado e Governo. Estamos atentas às mano-
bras de apropriação e esvaziamento de nossas pautas
por supostos “aliados”.
213
Figura 9: Abdias e Carolina, parceiros velhos a nos observar
214
Já falamos aqui sobre as estratégias de apro-
priação da representação de mulheres negras pelos
poderes hegemônicos a fim de se perpetuarem e lu-
crarem com as chamadas “diversidade” e “represen-
tatividade”. Desta forma, grupos que não possuem
qualquer responsabilidade real com o antirracismo
se apropriam de signos, imagens e datas caras da luta
política das mulheres negras e constroem narrativas
e discursos que esvaziam seus sentidos originais, ou
de autoreferência. O Dia da Consciência Negra (20 de
novembro) é uma das agendas que mais sofrem com
este fenômeno.
É muito comum, nos 20 de novembros, ver-
mos peças publicitárias de empresas de todos os
portes, de artistas, políticos e personalidades bran-
cas em geral que trazem representações de harmonia
racial entre pessoas brancas e negras representadas
por mãos dadas e faces pintadas. Com esta peça,
publicada em novembro de 2019, acionamos dire-
tamente imagens agendadas nas mídias para ques-
tionar, de maneira satírica, sobre o que representa
para nós a Dia da Consciência Negra. Informamos ao
grande público que, para nós, não há luta antirracis-
ta sem acesso a poder e sem políticas reais de redu-
ção de desigualdades.
215
Nesse card sobre a visibilidade lésbica, trou-
xemos a imagem de amor entre duas mulheres negras
retintas e gordas. A fotografia da sulafricana Zane-
li Muholi estampa a peça e passa a singeleza de um
carinho e companheirismo entre duas mulheres. Em-
bora estejam nuas, não há apelo sexual na imagem,
o que contraria toda lógica dos algoritmos quando
digitamos nos buscadores da internet “Lésbicas Ne-
gras”. No texto do card, usamos uma poesia da poeta
soteropolitana Tainá Almeida que menciona o termo
“sapatão”, que ao mesmo tempo que é usado como
forma de estigmatizar mulheres lésbicas, é também
apropriado e utilizado como elemento de fortaleci-
mento da identidade lésbica.
Conclusão
216
luta das mulheres negras.
Acreditamos no poder curativo das nossas
narrativas, para fazer emergir nossas memórias de re-
sistência e glória; para sensibilizar e mobilizar a nós
mesmas e os sujeitos outros; e projetar o mundo que
queremos viver.
217
REFERÊNCIAS
COLLINS, P. H. Black feminist thought: knowledge, cons-
ciousness, and the politics of empowerment. New York/Lon-
don: Routledge, 2010.
218
po da cultura. Revista da ABPN, v. 1, n. 1, p. 64-77, mar/jun,
2010. Disponível em: http://www.abpnrevista.org.br/revista/
index.php/revistaabpn1/article/view/308/286. Acesso em: 17
set 2021.
219
Ativismo feminista
negro em tempos de
imersão tecnológica
digital e capitalismo de
vigilância
Zelinda Barros1
221
cesso de extração de dados para a mercantilização que
normaliza a exploração dos seres humanos por meio
dos dados. No Brasil, outro fenômeno que intensifica o
processo de precarização da cidadania é a ascensão da
extrema direita, que estimula o ódio e a violência con-
tra as populações subalternizadas.
Num contexto de imersão tecnológica digital,
em que somos atravessadas por tecnologias como a
internet, e de ataque intensivo a direitos duramente
conquistados, como a comunicação em rede altera a
forma como nos relacionamos, nos organizamos e
agimos politicamente, ao reivindicarmos direitos, in-
cluindo o próprio direito à comunicação e informa-
ção? Neste artigo, após apresentar as principais nar-
rativas sobre a emergência do Feminismo Negro no
Brasil, discuto algumas implicações de um contexto
marcado pela produção e consumo de tecnologias di-
gitais para esse tipo de ativismo e os desafios que se
apresentam a nós no contexto da cibercultura (LE-
MOS, 2013; LÉVY, 1999, 2013).
222
negras, nos levantamos e criamos estratégias coletivas
de luta. Não podemos esquecer que a primeira organi-
zação formal autônoma de mulheres negras, o Conse-
lho Nacional da Mulher Negra, fundado em 18 de maio
de 1950, e dirigido por Maria de Lurdes Nascimento, foi
um dos desdobramentos das ações realizadas no De-
partamento Feminino do Teatro Experimental do Negro.
O conselho era formado por mulheres negras vincula-
das à cultura, às artes e à política. Apesar de reconhecer
a importância de experiências de ativismo forjadas em
outros lugares da diáspora, e até mesmo do continen-
te africano, é importante levarmos em conta em quais
espaços produzimos nossas próprias experiências e de
que modo os territórios que habitamos e suas contra-
dições influenciam nesse processo sem, no entanto,
desconsiderarmos as convergências que marcam as
nossas experiências como grupo sobre o qual incidem
formas específicas de opressão, tal como alertado por
Patricia Hill Collins (2012).
Originária de uma comunidade quilombola do
Recôncavo baiano2,percebo diferenças no modo como a
opressão é percebida, e nas estratégias de luta forjadas
por nós, mulheres negras dos territórios quilombolas
rurais e aquelas que vivem em contextos urbanos, in-
clusive quilombolas. A compreensão da importância da
valorização das experiências comunitárias é algo que
marca nossas existências nesses territórios, estejamos
ou não vivendo neles. Apesar de não explorar tal par-
ticularidade neste artigo, é importante que estejamos
cientes dessa diferença, a fim de que possamos dimen-
sionar o que ela implica, e eliminar o estranhamento
provocado pelo relacionamento das mulheres negras de
povos tradicionais com as tecnologias e, contempora-
neamente, com as tecnologias de base eletrônica.
223
Feminismo Negro na cibercultura
224
Um movimento interessante, protagoniza-
do por pesquisadores/as negros/as (CUNHA JÚNIOR,
2005, 2010; MACHADO, 2014; PINHEIRO, 2021), tem
sido feito no sentido de reconstruir a história da tecno-
logia, visibilizando o protagonismo africano em áreas
como medicina, astronomia, engenharia, metalurgia e
outras. Com isso, um passo importante é dado no sen-
tido de combater o epistemicídio (SANTOS, 2005) e as
pilhagens epistemológicas3 que o acompanham (FREI-
TAS, 2016).
Falta a esses trabalhos, no entanto, uma pers-
pectiva de gênero, que nos mostra que a tecnologia
é uma das principais formas de expressão do gêne-
ro e que habilidades técnicas e domínios de expertise
são divididos entre os gêneros e internamente a eles
(BRAY, 2007). O fato de que pesquisadores homens fo-
ram os pioneiros nos estudos sobre africanos e tecno-
logia no Brasil é um indicativo dessa divisão.
No Brasil, se a barreira do acesso às tecnolo-
gias digitais vem diminuindo com o passar dos anos4,
a participação de mulheres na gestão das políticas pú-
blicas na área de ciência e tecnologia ainda é exagera-
damente desproporcional. Em 2020, no Ministério da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, órgão
de referência para a formulação de políticas públicas
na área, do total de 98 profissionais de primeiro e se-
gundo escalões (ministro, secretário, subsecretário,
chefe de gabinete, diretor, coordenador e assessor),
apenas 33% são mulheres – nenhuma negra (BRASIL,
225
2020). Mesmo num contexto político de maior aber-
tura à participação de minorias políticas no poder pú-
blico, anterior à ascensão da extrema direita e de suas
políticas restritivas, em 2015, a Coordenação de Aper-
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior/CAPES iden-
tificou apenas 5,5% de mulheres negras como bolsis-
tas na área de Exatas.
Em 2017, quando ministrei aulas no Curso In-
ternacional “Decolonial Black Feminism in The Ame-
ricas” com as professoras e ativistas Angela Davis, Ân-
gela Figueiredo, Gina Dent e Ochy Curiel, em Cachoeira,
na Bahia, fiz um levantamento em que identifiquei um
crescimento significativo do número de teses e disser-
tações sobre mulheres negras no Brasil: de apenas 2
(duas), em 1995, para 83 (oitenta e três), em 2016. Das
476 teses e dissertações produzidas no período, apenas
9,2% eram declaradamente fundamentadas nos pres-
supostos teóricos do Feminismo Negro. Diante do nú-
mero de mulheres negras que atualmente se afirmam
feministas negras na universidade, suponho que esse
número de estudos, ainda pequeno em comparação ao
total de estudos sobre mulheres negras, tende a cres-
cer. No que se refere às teses e dissertações sobre tec-
nologias numa perspectiva feminista negra, podemos
observar um avanço, desde 2009, quando foi defendida
a primeira dissertação sobre gênero, raça e tecnologias
digitais5, até 2017, quando já tinham sido defendidos 9
(nove) trabalhos nessa área temática (BRASIL, 2018).
Por meio das pesquisas “Afro-brasileiras e
africanas, desafiando a brecha digital”, financiada
pelo CNPq, e “Participação de mulheres afro-brasi-
leiras e africanas no processo de produção e pesquisa
sobre tecnologias digitais”, financiada pela FAPESB,
realizadas em 2019-2020, na Universidade da Integra-
226
ção da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), coordena-
das por mim, pudemos constatar como a participação
de mulheres negras na área de pesquisa sobre tecno-
logias digitais nos cursos de Comunicação, Ciência
da Computação, Pedagogia e Ciências Sociais, ainda é
incipiente; enquanto as pesquisadoras brancas repre-
sentam 90,4% do contingente de mulheres que atuam
na área, as pesquisadoras negras representam apenas
9,6%. Nos países africanos de língua oficial portugue-
sa (PALOP) (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné
Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe), en-
contramos dificuldades na condução da pesquisa de-
vido à falta de informações nos sites institucionais. O
fato de ainda não estarem estruturados, como no Bra-
sil, restringiu nosso acesso a informações confiáveis.
Na educação em rede, a difusão de informações
e produção de conhecimentos sobre mulheres negras e
tecnologias ocorre não apenas em territórios privativos
no ciberespaço (BARROS, 2017), o que aponta para uma
perspectiva de democratização de conhecimento que
não se limita a espaços cujo acesso é restrito a deter-
minados grupos portadores de credenciais específicas,
como nos cursos online.
O ativismo digital de mulheres negras no Bra-
sil, que envolve ações de denúncia, mobilização, par-
ticipação cidadã e educação, visando a transformação
social, surgiu como um desdobramento do ativismo
que ocorria em organizações que já atuavam em prol
do reconhecimento dos direitos de homens e mulheres
negros, sendo os blogs, as campanhas com hashtags e
as redes sociais alguns dos principais meios utilizados
para a difusão de informações relacionadas à condi-
ção e à atuação política de mulheres negras. Os grupos
abertos em redes sociais têm se proliferado e ensejado
o debate público sobre os mais variados temas que nos
dizem respeito, assim também nos expõem à violência
como alvos preferenciais de ataques virtuais.
Os insultos, a intimidação, a desqualificação
pública e a pornografia de vingança são algumas das
violências sofridas por nós no ciberespaço. Os cibera-
taques são caracterizados pelo fechamento dos canais
227
de comunicação e expressão de indivíduos ou grupos
feministas, com a exclusão de perfis, restrições de uso,
etc. e, num quadro de guerra de informação6, pela di-
vulgação em massa de notícias falsas, as chamadas
fakenews, com o intuito de confundir, desacreditar e
desarticular.
Antes dos blogs, as listas de discussão por
e-mail tiveram um papel fundamental na articulação
das feministas negras, por meio do compartilhamento
de textos, da divulgação de eventos e da troca de ideias.
A lista “mulheresnegras”, foi criada em 2000, no
Yahoo, no contexto de preparação para a Conferência
de Durban, com quase 500 participantes. Em dezembro
de 2008, criei um dos primeiros blogs feministas ne-
gros, o Casos e Coisas do Gênero7, que mais tarde contou
com o Blogueiras Negras8, em 2012, com maior alcance.
O portal Geledés9, criado pelo Instituto Gele-
dés, no final da década de 1990, trouxe para o cibe-
respaço informações que reforçam a luta por direitos
da população negra. A partir do webinário “Mulheres
Negras e Ciberativismo”, em 2017, realizado pela ONG
Criola10 com o objetivo de fomentar a construção de
uma rede nacional de mulheres negras ciberativistas
em defesa da vida e dos direitos das mulheres negras
e pensar estratégias sobre o uso de ferramentas online
para o fortalecimento de ações em defesa dos direitos
humanos das mulheres negras, foi criada a Rede Na-
cional de Ciberativistas Negras em Defesa das Mulheres
Negras11, que atua em defesa dos direitos das mulheres
negras, buscando desencadear ações rápidas, por meio
6 Segundo Malini & Antoun (2013, p. 156), esta guerra é caracterizada pelo “uso da
informação para confundir, decepcionar, desorientar, desestabilizar e desbaratar
uma população ou um exército adversário marca a transformação radical da infor-
mação usada como arma de guerra (Kopp, 2000)”.
7 Blog Casos e Coisas do Gênero:http://www.casosecoisasdogenero.blogspot.com
8 Blogueiras Negras: http://www.blogueirasnegras.org
9 Portal Geledés: https://www.geledes.org.br
10 Criola: http://criola.org.br
11 Esta iniciativa foi promovida por Criola, em parceria com Oxfam Brasil,
como parte do projeto “Mulheres negras fortalecidas na luta contra o racismo
e sexismo”.
228
do ciberativismo, bem como potencializar estratégias
de comunicação desenvolvidas por mulheres negras
que contestem narrativas racistas e sexistas.
O Julho das Pretas, iniciativa criada na Bahia
pelo Odara – Instituto da Mulher Negra12, em 2013,
vem realizando uma campanha intensiva nas redes
sociais, desde 2017, o que tem contribuído significa-
tivamente para mobilizar mulheres negras em todo o
estado. A Olabi, organização social criada, em 2014,
e que trabalha para democratizar a produção de tec-
nologia, construiu o PretaLab13, um mapeamento das
mulheres negras que atuam na ciência e tecnologia no
Brasil, em 2018. Nele, podemos constatar as brechas
racial e de gênero na área tecnológica, composta ma-
joritariamente por homens, brancos, jovens de classes
socioeconômicas média e alta que começaram a sua
trajetória nos centros formais de ensino. Em que pese
a importância da iniciativa do Olabi, precisamos esti-
mular a criação de mais iniciativas que nos permitam
conhecer não somente o número de usuárias e onde
atuam, como também de que forma mulheres negras
consomem tecnologias.
Como feministas, nos interessam, particular-
mente, as formas como nós, mulheres negras, conce-
bemos, produzimos e utilizamos tecnologias, apesar
das barreiras que nos são interpostas e como, mais
recentemente, desafiamos a brecha digital de gêne-
ro e racial, participando do campo de pesquisa sobre
tecnologias digitais14, visando construir os subsídios
que nos preparem para construirmos a sociedade que
desejamos e na qual merecemos viver, livres de quais-
quer tipos de opressão.
229
Para que possamos construir um novo mun-
do, onde diversos mundos possam coexistir de modo
sustentável, precisaremos fortalecer as iniciativas
existentes e criar espaços autônomos e seguros para
transformarmos as informações que produzimos nos
espaços virtuais em conhecimentos com potencial
transformador das relações marcadas pela vigilância
e controle característicos das sociedades capitalistas
contemporâneas.
230
REFERÊNCIAS:
BARROS, Zelinda. “Democratizar a educação em territórios
privativos no ciberespaço?”. In: SANTIAGO, Ana Rita et. ali
(Org.). Descolonização do conhecimento no contexto afro-
-brasileiro. Cruz das Almas, Ed. UFRB, 2017. p. 283-300.
231
LIMA, Dulcilei da Conceição. O Feminismo Negro na era dos
ativismos digitais. Conexão Política, Teresina, v. 8, n. 1, p.
49-70, jan./jun. 2019.
232
Tecnoresistências de
mulheres negras
Larissa Santiago1
[1985]
Arcos e seteiras
Manifesto de ruídos
Profusos animais alados Segredos
arcaicos
Irrompem em revoadas evocativas
Qual urgência de alianças
Perplexidade tombada
Semivivos rastreando a luz
De corpos brilhantes e brilhantes...
Do reflexão de mourão
Saqueador navegante
“Razzias da Jaga-nação
Casa sagrada da propiciação
A tomada se faz na planície
Não no líquido primordial
Onde o plano original ?
A essência da força vital?”
N’ tu sou, muntu o outro
Brilhante de asas arrebatadas
Malungo todos untados
Pela seiva da procriação
Faça-se o plano da reação
Retinir sacrílego do metal
Informe ao amálgama terral
Tão possível na sabedoria ancestral
Irreconhecível no elo mortal
Correção imediata do equilíbrio
Reinvenção do sonho pressentido
Imune ao deus escondido:
235
Mono-ara do sacrifício,
Mono-theo do sentido, incumbido
Da missão encapuzada do prazer
Negação do meu leito ao nascer
Mono-sumo do líquido etílico
Faça-se tu em forma visível
Repara a trajetória do ato
Incompatível com a origem do fato
De todos em um e em Si
Lição que dos meus aprendi
Verdade que cedo escolhi
Da argila Afra nasci
Quando eras fui eu quem o vi
Beatriz Nascimento
236
Salto histórico I
237
Salto Histórico II
238
gra no seu conceito mais amplo! Elementos de lingua-
gem, aparatos culturais e sistemas de significação dos
mais sofisticados.
Presente na vida das mulheres negras desde a
invenção da sacola (WERNECK, 2019)**, a intimida-
de com aparatos tecnológicos sempre aparece quando
perguntamos nas oficinas de cuidados digitais “Qual
foi o seu primeiro contato com tecnologia?”. Máquinas de
escrever e de costurar, geladeiras, mamadeiras e tan-
tas outras coisas são citadas sem nenhum constrangi-
mento, numa demonstração de que sim, a tecnologia é
um conhecimento ancestral.
E rememorar essa prática, entendendo os por-
quês de um sistemático afastamento das pessoas negras
do fazer tecnológico, é nos reapropriar de um lugar que
sempre foi nosso; é nos reconhecer inventores e rein-
ventores de tantas coisas quanto podem ser listadas.
239
Isso posto, nós não podemos fechar os olhos
para o que significa ter nossos corpos, desde sempre,
subordinados às experiências mais avançadas quando
se trata de desenvolver, testar e implementar os di-
ferentes artefatos de tecnologia para nos vigiar. É nos
monitorando que as estruturas de poder nos mantém
segregados, presos, oprimidos, condenados e divididos.
A Bahia e Pernambuco, por exemplo, têm sido
os estados em que os governos estão, nesse momen-
to, desenvolvendo, testando e implementando apli-
cativos de rastreamento de celular, apresentando-os
como a solução preditiva da violência. As secretarias
de segurança desses estados estão promovendo tais
tecnologias com a desculpa de que os celulares podem
ser encontrados em caso de roubo, basta que os cida-
dãos forneçam às suas centrais de polícia o número
de IMEI3.
O que tem acontecido, na prática, é que o pro-
jeto tem sido usado para constranger, oprimir e obri-
gar militantes, pessoas negras e outros corpos dissi-
dentes a entregarem seus números de IMEI de maneira
compulsória, fornecendo ao banco de dados das Secre-
tarias de Segurança Pública uma quantidade significa-
tiva de celulares já politicamente rastreáveis.
Estamos falando de 2021, mas se voltarmos ao
passado, perceberemos outras ferramentas tecnoló-
gicas com o intuito de vigiar corpos marginalizados: a
senzala, a marcação dos corpos, as decapitações. O ra-
cismo consegue, assim como a tecnologia, se adaptar à
realidade e beneficiar uns ou outros, de acordo com a
sua intencionalidade e seus “inputs”.
O algoritmo, que é um conjunto de regras que
mostram o passo a passo para a execução de uma tare-
fa, está, assim como a linguagem, também permeado
240
por racismos. Essa sequência lógica, finita e definida
de instruções, é construída por desenvolvedores que,
em sua grande maioria, não aprenderam o quão pode
ser racista, por exemplo, elencar imagens de mulheres
brancas num buscador quando nós pesquisamos pelo
termo “mulheres bonitas”.
Como grande parte do que conhecemos hoje
por tecnologia digital é desenvolvida através de algo-
ritmos, é possível afirmar que o racismo algorítmico -
como uma nova classificação para o racismo - repete
velhos mecanismos de opressão (penso mulher bonita,
logo existo mulher branca), garantindo a perpetuação
de poder e privilégio.
O desafio desta conversa-texto é nos per-
guntar: e o que nós, as mulheres negras, vamos fazer
com isso?
241
mulheres negras em Bertioga, marchamos em 2015.
Essa experiência, motivo de tantas conquistas (desde
novos modelos epistemológicos dentro da academia
até o surgimento e fortalecimento de grupos, coletivos
e organizações de mulheres negras no Brasil), pode ser
lida como a nossa tecnoresistência da década.
À luz do pensamento inovador e propositivo de
Beatriz Nascimento, já nos anos 1970, pudemos apon-
tar iniciativas como Preta Acadêmica, Coletivo Filhas
do Vento, Articulação de Negras Jovens Feministas,
InfoPreta, Rede de Ciberativistas Negras, Conexão Ma-
lunga, Ogunhê Podcast, Rede de Mulheres Negras do
Nordeste e tantas outras invenções on e offline.
Iniciativas essas que valorizam a comunicação
e a tecnologia e as percebem como parte fundamental
para a memória de mulheres negras. São essas e ou-
tras tantas o retrato fiel da Tecnoresistência das Mulhe-
res Negras, que, em meio a tanto racismo e sexismo,
conseguem ser propositivas, projetar e pensar futuros,
sem esquecer o passado.
Tecnoresistências que são resultado dos ele-
mentos transatlânticos, reconhecidos, rememorados,
reificados e revividos. Em todas e cada uma dessas e
das milhares de experiências, a certeza de que o con-
ceito amplo de tecnologia, o conhecimento dos meios
e métodos de comunicação, a invenção de programas
e aplicativos, a produção de conteúdo estão no Orí da
nossa história. De um jeito ou de outro, mais ou menos
“tecnológico” aos olhos deles, nós somos as que - na
urgência - sabemos agir, conseguimos criar saídas a
cenários de morte e, juntas, de maneira micro, criamos
todos os dias, Palmares de novo.
E com esse espírito, fechamos a gira da Escola
Beatriz Nascimento, rememorando:
“Luiza Mahin
Chefa de negro livres
E a preta Zeferina
Exemplo de Heroína
Aqualtune de Palmares
242
Soberana quilombola
E Felipa do Pará
Negra Ginga de Angola
África liberta em tuas trincheiras
Quantas anônimas guerreiras brasileiras”
243
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Bia; TRESCA, Laura; LAUSCHNER, Tanara (org.)
TIC, Governança da Internet e Gênero: tendências e desafios.
CGI.br, 2021. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/pu-
blicacoes/4/20210422084146/ColetaneadeArtigos_TIC_Go-
vernancadaInternet_Genero_digital_CGIbr.pdf Acesso em
10 out 2021.
244
fail.medialabufrj.net/_fail-sobre/ Acesso em: 10 out 2021.
245